05. Knockin’ On Heaven’s Door

História Finalizada

Capítulo Único

“Seu destino nos move apenas porque poderia ter sido o nosso - porque o oráculo lançou a mesma maldição sobre nós antes do nosso nascimento, como sobre ele. É o destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai. Nossos sonhos nos convencem de que isso é assim” – Freud sobre Édipo.

1992

Eu já havia resolvido inúmeras questões a respeito de ondas sonoras. Vez ou outra, quando minha mente se dispersava ao longo de uma conversa, todo o som emitido pelo interlocutor eu revertia em projeções parabólicas contínuas que pressionavam o meio pelo qual eram propagadas. Baseando-me em conceitos de gênios anteriores a mim, estas visualizações transformavam-se em cálculos, e de repente tudo era explicitado através da física. No entanto, há sempre algo que ultrapassa a capacidade de compreensão de alguém. E este algo, na noite de vinte e dois de junho de mil novecentos e noventa e dois, foi o grito de .
Os lábios quentes de Calebe O’Hara estavam colados aos meus, seus dedos cautelosamente apalpando o que encontrara dentro de minha saia. Quando empurrei o estudante de Medicina de maneira brusca, bastou um único olhar para que fosse constatado o óbvio: ele também escutara o berro.
- Você acha que...? – Calebe deixou-se sussurrar a frase incompleta.
Eu achava.
Após o primeiro grito, outros vieram sucessivamente.
Em meio ao desespero a que fui submetida, minhas pernas levaram poucos segundos para reagir, assim permitindo com que eu corresse para fora do quarto e então ao longo do corredor que daria no quarto de .
- , espere! – Calebe berrou ao ser deixado para trás.
- ? – Chamei-a, meu coração pulsando forte. Os sons emitidos por ela tornavam-se a cada instante mais assustadores; parecia agonizar.
Quando cheguei ao quarto de minha melhor amiga, meus olhos míopes foram capazes de registrá-la caída ao chão, o vestido avermelhado de sangue. mantinha ambas as mãos sobre a enorme barriga, os olhos cerrados possivelmente para que melhor se rendesse à gritaria que protagonizava.
- Está nascendo, ! – Sua voz arranhou o caminho para fora da garganta. – Ele está nascendo!
Paralisei ali mesmo, na porta, e O’Hara chocou-se a mim antes de compreender a situação e adentrar o recinto. Ele levantou o vestido de e, após fazê-lo, pareceu-me tão desesperado quanto ela.
- Está coroando! – Ofegou durante a fala, já sacando o celular do bolso. – , não vai dar tempo de chegarem aqui. A gente tem que fazer alguma coisa!
- O que eu faço? – Quase gritei, as mãos sacudindo na frente do corpo. – Eu estudo Física, Calebe! Física! Não estendo este tipo de fenômeno!
- Forre a cama com lençóis e toalhas. – Assenti ao comando dele, mas não saí do lugar. – Anda, !
Após um pulo, corri para o armário embutido na parede. Na parte superior estavam guardados alguns edredons, e com dificuldade puxei-os para baixo.
- Eu não sei o endereço daqui, porra! – O’Hara berrou ao telefone. – É a casa da Tetra Pi. Fica... Fica do ladinho da Universidade Brown, e tem aquela praça enorme cheia de pinheiros. Isso! Isso...
Forrei a cama uma, duas, três vezes. De volta ao armário, derrubei alguns cremes antes de enfim localizar uma caixa de luvas descartáveis – joguei duas na direção de Calebe quando ele finalizou a ligação.
- Me ajude a colocá-la na cama – pediu a mim.
- ... – balbuciou. Sua maquiagem escorria pelo rosto, e ela chorava tanto que senti como se meu coração fosse esmagado dentro do peito. – , vocês não podem... Fazer o parto... – Minha mão foi apertada quando a ofereci. – A Hepatite... Não quero passá-la ao meu filho, ...
Cerca de nove meses atrás, Samuel Holt chegou e desapareceu da cidade em muito pouco tempo, mas fora o suficiente para transferir a , minha melhor amiga e também futura médica, um bom espermatozoide corredor e uma doença sexualmente transmissível – e Hepatite B, respectivamente.
Sem saber como acalmar minha amiga , recorri a Calebe com o olhar, mas o estudante de Medicina ocupava-se em envolver um braço dela em volta de seus ombros. Sinalizou para que eu fizesse o mesmo.
- , você vai precisar confiar em mim – Calebe, com toda a calma do mundo, disse à grávida quando conseguimos deitá-la na cama. – Em qual posição você quer?
- Você vai fazer a porra do parto ou um kamasutra? – Protestou , em pânico.
- Calebe... – chamei-o, também assustada. – Nós vamos mesmo fazer o parto?
Mas ele apenas me puxou pelo braço até o banheiro, abriu a torneira e despejou sabonete líquido em minhas mãos e antebraços.
- Ela tem que ficar calma... – sussurrei.
- Se a ajuda não chegar logo, ... – Calebe suspirou, as mãos se esfregando e induzindo-me a fazer o mesmo. – Caralho, eu realmente não sei muito o que fazer... Essa não é a minha área!
- A ajuda vai chegar – dizer aquilo em voz alta fez com que eu de fato acreditasse.
De volta ao quarto, sentei-me ao lado de e arrastei-a até que minha amiga tivesse as costas apoiadas por travesseiros. Tirei sua calcinha, subi seu vestido e pus um lençol sobre seus joelhos agora levantados; Calebe logo os segurou.
- , minha linda... – ele falava em voz baixa; parecia calmo, apesar de anteriormente ter ilustrado a mim o seu medo. – Respire devagar. Puxe o ar com força. – E reproduzia seu discurso para servir de exemplo a .
- Está doendo! – Ela gemeu, e não parava de chorar por um só segundo.
- A ajuda está a caminho, ... – sussurrei enquanto vestia as luvas.
berrou, seus dedos enrolando-se nos lençóis e apertando-os. Corri para oferecer uma de minhas mãos a ela, e com a livre pus-me a acariciar seus fios suados.
- Empurre, ! – Calebe encorajou-a. – Mas o faça gentilmente. Gentilmente. – Frisou.
Quase quebrando os ossos de minha mão por conta da força que aplicara no aperto, gritou. Acredito que tenha empurrado a criança, já que O’Hara, mais embaixo, gritou algo como “ai, meu Deus”.
- Continue, ! O garoto está saindo!
Ela gritou, as costas arqueadas e a cabeça forçando-se contra o travesseiro. Cerrei meus olhos, chorando também, e apertei de volta a mão de minha amiga.
Quando o volume dos gritos foi diminuindo para dar espaço à respiração incontrolada de , ouvi a campainha tocar e, ao fundo, a sirene da ambulância.
- Calebe! – Chamei-o alto. – Chegaram!
- Venha até aqui! – Ele ordenou.
Num ímpeto, soltei-me de , meus joelhos frouxos caindo ao lado de Calebe O’Hara. O futuro médico indicou o lugar sob o lençol sujo de sangue, mas eu quase não podia ver o que havia lá dentro.
- Apoie a cabeça do bebê. – Foi-me dito com firmeza.
- Como é que é?
- Você tem de fazer isso, . Coloque a porra da mão embaixo da cabecinha e apoie-a. Agora!
Era escorregadio, ensebado e ensanguentado. Ao enfiar a mão sob a cabeça de , até mesmo semicerrei os olhos, acreditando estar diante de uma experiência inesquecivelmente asquerosa. Mas então, quando o bebê resmungou um som baixinho e adorável, abri os olhos para que pudesse vê-lo.
E era , sim, mas não somente o filho de – era o nosso menino. Nosso bebê.
Era ele quem chutava minha mão quando eu a colocava sobre a barriga que separava nosso contato direto; com quem eu conversava ao agachar-me para abraçar a barriga de , para quem eu comprava presentes e chorava na sala dos ultrassons.
virou o beicinho rosado e eu me atrevi a, com a mão livre, acariciar o que enxergava dele, meu peito esquentando ao passo em que meus olhos marejavam, vítimas da emoção.
- Vai dar tudo certo, meu amor... – Prometi ao bebê. – A tia está aqui.

1999
- ?
Entreabri a porta da casa e coloquei a cabeça para dentro. Não que eu fosse uma mal-educada, mas aquela vaca havia pedido para que eu viesse buscá-la e agora simplesmente não atendia à campainha.
- ... Banana... – cantarolei, mas resposta alguma obtive.
Frustrada, adentrei a casa de uma vez e bati a porta atrás de mim. Foi então que, logo ao primeiro degrau da escada, pude ouvir a gritaria lá em cima.
- Ai, meu Deus, isso é tão bom!
Definitivamente era .
Risos ecoavam do andar superior – os de em conjunto com os do pequeno ser que havia saído de dentro dela uns anos atrás. Apoiada no corrimão, tentei manter a postura enfezada, mas é claro que não pude, já que sempre me corrompia.
- Vamos, , mais alto! O mais alto que você puder! – Induzia . O menino gargalhou gostosamente, e um segundo barulho se fez notar: o de molas.
Ao adentrar o quarto de , eu tinha plena consciência de que não encontraria uma cena cem por cento sã. Não imaginava, no entanto, que minha melhor amiga e seu filho estivessem pulando na cama.
O vestido de rodava e voava. mantinha ambos os bracinhos para o alto, festejando através de murmúrios sem sentido, mas engraçados, ao meu ver.
- Olha, , a tia chegou! – deu um berro. – Pule em cima dela!
E ele pulou.
Num reflexo, agarrei o garoto com os dois braços. Inicialmente, cambaleei um pouco, mas depois, com o apoio de um de um móvel, peguei firmeza.
- Que menino pesado!
- Mas a mamãe disse que eu estou magrinho! – Contrapôs , rindo em meu ouvido e enlaçando os braços e pernas ao meu redor como se fosse uma mochila.
- E te obrigou a comer brócolis? – Olhei para por cima do ombro de seu filho. Minha melhor amiga havia se sentado na cama e, sorrindo, piscou para mim. – Essa mamãe... – estalei a língua. – Posso dar uma lição nela, se você deixar.
- Não, tia ! – afastou-se um pouco para que eu o visse negando veementemente com a cabeça. – Ela é a melhor mãe do mundo!
Sorri diante de sua afirmação, e assim também o fez , que estendeu os braços num pedido mudo para que eu levasse o menino até ela.
havia passado por muita coisa ruim desde a chegada de , como por exemplo no primeiro ano, quando trancou a faculdade para que pudesse se dedicar plenamente ao filho.
- Você pode deixá-lo com sua mãe, ... – lembro-me da sugestão de Calebe e do olhar mortífero que lhe lançou de imediato.
É claro que ela não abriu mão de . Muito pelo contrário – o acolheu como mandava a responsabilidade de ser mãe. Colocou-o numa creche, conseguiu um emprego como secretária e, integralmente, amou o menino.
Eu estava lá para ajudá-la, é claro. Vi como recompensa estar presente para apreciar o crescimento de , o milagre que não permitiu que o menino contraísse hepatite B no parto; a evolução de minha melhor amiga não apenas como empregada e mãe, mas como ser humano.
Ao passar dos anos, a situação da pequena família começou a melhorar– graças a Deus! conseguiu tempo para retomar os estudos – mesmo que o fizesse lentamente –, e aparentava ser tão feliz que o sentimento positivo me era emanado a todo o momento.
Quanto a Calebe O’Hara...
Nosso pseudo relacionamento não vingou, mas nas diversas noites em que eu me permitia passar sob os lençóis dele, Calebe não desistiu da ideia de me fazer ficar por mais um tempo.
Nunca conseguiu.
Mesmo que por alguns meses ele tenha ficado ressentido comigo, não saiu do ombro de . Era Calebe o anjo que cuidava de quando o menino adoecia; também fazia questão de regular , já que de tanto descuidar da hepatite, minha amiga havia desenvolvido problemas no fígado.
- Não é nada demais! – Ela repetiu, como de praxe, quando nós três nos juntamos num grande bar ao centro de Providence. Pegou um copo de cerveja e deu algumas goladas, esbugalhando os olhos para mim e, em seguida, para O’Hara. – Não é como se eu fosse morrer!
Calebe revirou ou olhos, porém nada mais disse por um instante – pegou sua cerveja e sentou-se ao meu lado para beber o líquido.
- Você conseguiu entender o que essa caipira disse? – Indagou, os lábios gélidos tocando brevemente minha orelha mais próxima em indireta provocação.
- Não... – dei de ombros, meu corpo escorregando para trás até que estivesse encostado no ombro dele. Calebe envolveu minha cintura com um braço. – Eu nunca entendo o que ela diz. Por que você acha que somos amigas?
O médico riu em meu ombro. , à nossa frente, cruzou os braços, claramente irritada.
- Eu vou dar uma volta – ela disse, desgostosa. – Provavelmente os pombinhos querem se despedir.
Franzi o cenho, meus lábios entreabrindo-se para perguntar a sobre o que diabos ela estava falando, mas minha amiga já havia girado os calcanhares, seus quadris serpenteando sedutoramente enquanto ela se afastava.
- Como assim “se despedir”? – Restou-me perguntar a Calebe.
Ele riu. Não um riso verdadeiro, daqueles que bagunçavam seu cabelo ao imediatamente jogar seus fios para trás. Não... Calebe O’Hara riu sem pressa, o som forçado liberando uma lufada de ar em minha pele. Quando me afastei para fitar o doutor, ele alisava a própria nuca, apenas um canto dos lábios erguido.
- O que houve? – Apertei as mãos dele, ansiosa.
- Você choraria se eu te contasse...
- Calebe! – Ralhei. Ele sabia como eu era curiosa.
Apresentando-me um sorriso tão fraco quanto o anterior, O’Hara passou um dos braços por meus ombros e beijou minha cabeça.
- Por que você acha que eu chamei vocês duas aqui, ? – Questionou.
- Porque nos ama? – Sugeri inocentemente.
- Bom... – ele riu, sua boca descendo até ser pressionada contra minha têmpora mais próxima. – Também. Mas há um motivo especial.
Virei o rosto para ele. Calebe aproveitou-se de nossa proximidade para roubar um selinho de meus lábios, o que enfim o fez sorrir mostrando os dentes. Depois, apenas quando meus olhos incisivamente fixaram-se nos seus, o médico viu-se obrigado a prosseguir com a notícia:
- Consegui um emprego em Newport, . Vou embora na semana que vem.
Semicerrei os olhos, surpresa.
Calebe estava indo embora.
Busquei os lábios dele por impulso, uma saudade preventiva apoderando-se de meu interior. O’Hara correspondeu-me com voracidade, os lábios carnudos engolindo minha boca antes de abrirem-se para que nossas línguas entrassem em contato.
Apesar de tudo, Calebe era uma das pessoas mais próximas que eu possuía em Provence. Eu sentiria muito a falta dele.
No instante em que suas mãos agarraram minha cintura, entretanto, um pigarro chamou nossa atenção.
- Doutor O’Hara... – uma das garçonetes chamou meu amigo com cautela. Afastei-me dele sorrindo de canto, porque ainda era engraçado ouvir chamarem-no daquela maneira. – É a ...
Meu sorriso se desfez.
Guiados até um canto mais isolado do estabelecimento, Calebe e eu deparamo-nos com uma cena um tanto quanto desesperadora: havia sido amparada por um rapaz, e estava pálida. Quando os olhos verdes dela se ergueram até os meus, não mais transmitiam a esperança que lhes eram característica, pois parecia terminantemente apavorada.
- , o que é que você tem? – Indagou O’Hara, vencendo a distância até ela e examinando-a com as mãos.
gemeu baixo, os dedos pressionando certo ponto da região abdominal.
- Está doendo... – reclamou.
Foi então que os ombros do doutor O’Hara se enrijeceram.

2000
- Tia ?

Meus olhos formigavam de sono. A voz do outro lado da linha soara distante de tão baixa e cautelosa, e levei vários segundos para identificar o timbre de .
- ? – Questionei para ter certeza. – , meu amor, está tudo bem?
Ao som de sua respiração entrecortada, ergui-me da cama e acendi o abajur para que pudesse checar o relógio.
Passavam das três da manhã.
- Eu estou com fome... – ele murmurou devagar, fazendo-me sentir aliviada durante o intervalo silencioso que utilizou antes de prosseguir: – Mas a minha mãe não acorda, tia . Fiquei com medo... achei que, se eu ligasse, a senhora poderia me ajudar... fungou. – Ela não acorda.
Não me lembro de uma ocasião em que eu tenha me sentido tão desesperada como naquela. Quando o choro veio, torrencial, trabalhou em conjunto com minha visão míope para tornar os contornos ainda mais difusos. O celular escapou de meus dedos, e sequer o fato de eu estar usando pijamas fez diferença quando saí de casa às pressas. O que, afinal, poderia ser grandioso o bastante para que eu me importasse, se estava morta?
Embrenhei-me na escuridão noturna para percorrer a distância até a casa de minha melhor amiga. Carros barulhentos também se aproximavam, suas luzes superiores vermelhas piscando para sinalizar a tragédia que logo despertou a vizinhança. foi a única a permanecer imóvel ao lado de seu jovem filho faminto, e não poderia ter sido diferente: a hepatite B transmitida pelo pai de ocasionara em um distúrbio no fígado e, posteriormente, o câncer contra o qual lutou ao longo do último ano.
Quando se tem o coração destroçado pela morte de um ente querido, é pouco provável que sua mente consiga pensar de maneira racional. Eu deveria ter mostrado força a , deveria tê-lo abraçado e dito mentiras que o confortariam mesmo que fugazmente, mas não o fiz. Foi o garoto, aliás, quem tomou esta iniciativa ao registrar o nível violento de meu pranto.
- Não chore, tia ... – ele pediu, os bracinhos magros envolvendo minha cintura num aperto firme. – Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
Devolvi o abraço de , meu corpo abaixando um pouco para que eu pudesse beijar a cabeça dele, que fungou baixinho.
- Não chore, tia ... – insistiu o pequeno, por mais que também chorasse. – Agora a senhora já está aqui comigo... vai dar tudo certo.
Mas não ia.
Naquele momento, eu já estava certa de que tudo havia desmoronado sobre minha cabeça e sobre a de , que se tornara órfão. No entanto, a situação piorou um ou dois dias depois, quando uma carta foi descoberta.
”, a difícil letra da médica que seria saudou-me na primeira linha da folha. “Eu sei que você será a vaca que dirá “eu te avisei” ao jogar as flores no meu túmulo. Me desculpe por morrer... espero que consiga superar. Meu testamento está no criado-mudo; deixei a casa para minha mãe e confiei a você. Cuide do meu menino, . Uma década passa rápido.”
Não faço ideia de quantas vezes li aquelas malditas palavras. Como tivera coragem de fazer aquilo comigo? Eu não daria conta! Não se tratavam apenas de dez anos! Eu teria de criar o garoto, formá-lo como homem, assumir toda a responsabilidade de criar um indivíduo e estabelecer regras, ensiná-lo a ser um cidadão de bem e tantas, tantas outras coisas. A ideia me apavorou de imediato, e reagir de outra forma que não surtando pareceu-me um ideal inalcançável.
Eu estava perdidamente fodida.
A princípio, recordei-me de minha infância, de como detestava ter de ajudar minha mãe a criar meus irmãos – este foi, afinal, um dos porquês de minha fuga aos dezoito anos, tão pouco tempo atrás.
- Eu não consigo, Calebe... – esperneei nos braços de meu amigo logo ao encontrá-lo no aeroporto. – Eu apenas não consigo!
- ... – ele suspirou em meus cabelos, acariciando-os em suas mãos ásperas e firmes. – É claro que você consegue. – Assegurou-me. – Você é como uma maldita mulher-maravilha, , e por isso confiou o menino a você.
Esfreguei os olhos, o peso de suas palavras envergonhando-me. não havia simplesmente o deixado para mim, afinal, já que não se tratava de um objeto – era seu filho. Era . Uma criança linda e cheia de vida que exibia a mim suas provas de matemática por saber que eu amava as exatas. Quem estava lá para mim quando perdi minha melhor amiga, mesmo que seu coraçãozinho órfão estivesse em chamas.
Eu não poderia abandoná-lo.
- Gostaria de ficar com ele, se você não pudesse, filha. – A mãe de fez questão de dizer a mim quando nos encontramos, logo após a cerimônia fúnebre. – Você sabe como sou pobre, e a situação pode até estar pior agora, por conta da doença de meu marido... Mas é meu neto. É claro que eu penso em pegá-lo para mim, se você não o quiser.
E, de certo modo, eu não o queria.
Tinha medo de não ser o suficiente para o pequeno . De não conseguir ser presente em sua vida, de prejudicar ainda mais seu psicológico com um lar deficiente.
Eu tinha medo de tudo.
No entanto, era . Meu amiguinho.
Seus braços encontravam dificuldade para largar meu corpo durante a noite, e eu sabia o quanto ele precisava e sempre precisaria de mim após o ocorrido com sua mãe.
- Mude-se para Newport – Calebe disse a mim, na semana seguinte a da perda de . – É uma cidade tão tranquila, ! Você e poderiam começar uma nova vida. E eu... – o médico sorriu torto, seus dedos aproximando-se para se entrelaçarem aos da minha mão mais próxima. – Eu poderia ajudar você, é claro.
- O que você acha que vai acontecer, Calebe? – Meus olhos inchados chegaram a doer quando os comprimi durante meu riso amargo. – Acha que vamos nos casar e virar uma família feliz?
- Não... – ele respondeu devagar, o cenho franzido e os lábios tremulando antes de sorrir. – Na verdade, eu estava pensando em te arrumar uma casa e um bom cargo onde eu trabalho.
- E o que eu seria? – Rolei os olhos. – Você é médico legista, Calebe!
- E você é física! – Ele fez um gesto exagerado com as mãos. – Pode entrar para a perícia. Basta uma prova, um bom preparo psicológico e treinamento bruto, .
Passei uma mão pelos cabelos, o receio apoderando-se de cada molécula do meu ser e agitando-as para resultar em calor.
A perícia de Newport.
Seria aquela a solução para os meus problemas?
É claro que para responder à pergunta eu primeiramente teria de reorganizar toda a minha vida, e tudo em prol da felicidade de .
Mas valeria a pena?

2005
Havia uma diversidade de coisas com as quais eu havia me habituado ao longo da vida – aos treze anos, quando Howard deixou sua casa e filhos, tive de conviver com a ideia de que, como membro mais velho de sua prole, deveria assumir parte do controle da casa; aos dezoito, quando fugi com meu namorado rockeiro e sua Harley-Davidson, tive de aprender a viver sem a constante áurea maternal de minha mãe e as trinta refeições deliciosas que todos os dias ela fazia questão de me empurrar garganta abaixo; aos vinte e três, quando veio a falecer, novamente houve uma reviravolta em minha linha da vida, visto que à pedido de minha amiga eu recebi um novo ser para abrigar sob minhas asas, por mais que estas ainda não estivessem devidamente prontas para voo. Tendo passado por poucas e boas ao longo dos dez anos mencionados, eu acreditava ser capaz de me habituar a qualquer coisa.
A não ser àquele cheiro.
Joguei a cabeça para trás, para o banco acolchoado do carro da polícia, e decidi, então, puxar o ar lentamente pela boca, mas de nada adiantou – o cheiro podre da morte havia se impregnado às minhas narinas desde o momento em que cheguei à cena do crime. Era forte o suficiente para tornar o ar pesado, e alcançava distância significativa, abraçando tudo o que estivesse ao longo dela.
Sempre que eu e a equipe checávamos locais suspeitos, eu tinha de estar preparada para o cheiro. No começo – especialmente durante meu treinamento para a perícia de Newport –, costumava ficar tão abalada que não conseguia comer pelo resto do dia. Agora, porém, o impacto era consideravelmente mais suave – eu comia, bebia e fazia o que quer que fosse, mas jamais teria a capacidade de efetivamente dizer-me adaptada ao odor, ainda que pudesse suportá-lo durante horas.
- , estamos precisando de você aqui! – Alguém da equipe gritou da porta da casa, e eu logo estava pronta para adentrá-la. – São dois corpos!
Dois.
Quando é que o ser humano ia parar de se aproximar da animalidade?
- Vai almoçar com a gente hoje? – Izzy, a fotógrafa, questionou enquanto eu periciava o segundo cadáver.
- Não... – Indiquei a ela o ferimento atrás da cabeça da vítima. – está me esperando em casa. Prometi que o ajudaria com o dever de matemática.
E então, não muito depois, um montante de cabelos negros corria até mim em alta velocidade. Era um costume inevitável do menino.
- ! – quase gritava para explicitar sua alegria. Agarrou-se à minha cintura, os olhos azuis sorrindo com genuína satisfação ao erguerem-se até meu rosto. – Achei que não chegaria!
- Eu sempre chego, meu amor... – Ri um pouco, meus dedos embrenhando-se brevemente por seus fios desgrenhados. – Mas o que eu já disse sobre isso? – Indiquei os braços dele e meneei a cabeça antes de afastá-lo de mim.
- Desculpe... – murmurou. – Hoje foi um daqueles dias, não é?
Ao fim de seus doze anos, já tinha noção de muitas coisas sobre nosso modo de vida, e eu suspirava em alívio quando me era oferecida sua compreensão. A não ser por um único período, no ano anterior, em que colocou na cabeça que tinha de achar o pai, não me lembro de ter tido problemas sérios com ele. O pequeno era pacífico, acredito eu que especialmente por conta de suas visitas semanais à psicóloga e pelo lar tranquilo que criei para que pudesse inseri-lo.
- Vou pegar roupas limpas. – Ele se ofereceu, dando alguns passos para trás. Uma fração de segundo depois, entretanto, franziu o cenho e girou o pescoço até que estivesse olhando para a cozinha. – Calebe está aqui – acrescentou, seu timbre sofrendo mudança que me foi perceptiva, mas não compreensível.
- ... – antes que eu pudesse concluir o que viria a ser um questionamento, o menino correu escada a cima.
- ? – Calebe, em timing perfeito, gritou da cozinha, e não tive outra alternativa a não ser procurar por ele.
Meu velho amigo estava retirando alguma coisa do forno quando o alcancei – trajava calça de linho e blusa social branca com os três primeiros botões abertos; seu cabelo meticulosamente arrumado não era mais o castanho puro de quando o conheci, já que alguns fios brancos já surgiam em alguns pontos de sua cabeça, conferindo a Calebe um charme a mais em todo o seu delicioso exagero. Ele sorriu ao virar-se para mim, ajudando-me em nossa aproximação. Quando me inclinei para beijá-lo no rosto, o médico se aproveitou de minha lentidão para selar brevemente nossos lábios.
- Como você está? – Indagou.
Dei de ombros, meus passos já arrastados levando meu corpo até a mesa.
- Me diagnostique, doutor – sugeri.
Calebe O’Hara avaliou-me enquanto se sentava de frente para mim. Ele tinha olhos penetrantes de tão curiosos, e eu gostava de como, mesmo que sempre estivessem focados em meus traços, nunca pareciam tê-los descobertos plenamente.
- Sua frase foi dita em balbucio... – Meneou a cabeça numa espécie de repreensão. – Como tem cuidado de seu psicológico ultimamente, ?
Aquela história besta de cuidar da mente. O que é que poderia me fazer surtar agora? Tanto eu já havia superado.
- ? – nos interrompeu da porta da cozinha.
Quando girei o pescoço para ampliar meu campo visual até o pequeno, notei que ele trazia uma muda de roupas nas mãos, a que anteriormente havia me prometido. sorriu de leve para mim, mas suas feições perderam a suavidade quando ele, de rabo de olho, encarou Calebe.
- Ela já vai, . – O médico lhe disse, mas o menino esperou que meu olhar fizesse o pedido para que pudesse assentir, concordando.
- Sabe... – murmurei a Calebe quando a figura de desapareceu além da porta. – Tenho reparado... algo estranho nele.
O’Hara arqueou uma sobrancelha, implicitamente solicitando que eu avançasse.
- ... Ele, bem... – Como era constrangedor ter de dizer aquilo em voz alta! Mas, ao mesmo tempo, era Calebe, uma das únicas pessoas com quem eu efetivamente poderia compartilhar todos os tipos de problemas. – Tenho reparado que ele fica ereto, Calebe. Ereto! – Meio exaltada, inclinei-me para frente ao repetir a palavra em sussurro.
Meu amigo franziu a testa por alguns segundos antes de esconder o rosto com as mãos e começar a rir.
- ! – Exclamou.
- É verdade!
Mas as risadas dele não cessaram. Tal fato fez com que eu me sentisse ainda mais constrangida e, posteriormente, irritada.
Notando meu bico emburrado, Calebe forçou-se a dizer alguma coisa:
- Ah, ... E quem é que não ficaria duro tendo você como mamãe?
- Calebe! – Repreendi-o, horrorizada. – Isso é sério! É realmente como seu eu fosse a mãe do !
Quando me ergui da mesa num ímpeto violento, o médico arregalou os olhos e tentou me segurar. Eu sabia que ele não havia feito por mal, mas foi como se as palavras sujas de seu comentário infeliz tivessem esburacado minha cabeça – de repente ela recebia pontadas desconfortáveis entre curtos intervalos de tempo, e eu apenas queria que Calebe desaparecesse dali.
- Saia – pedi simplesmente, os olhos cerrados com força e os dedos apertando a borda da mesa. – Saia, Calebe, por favor.
- Me desculpe... – ele ainda ousou tentar.
- Saia! – Gritei.
No instante em que o grande corpo passou depressa por mim visando ao nosso distanciamento, um outro, menor, aproximou-se para abraçar-me. Pode ter sido uma falha de minha visão míope, ou mesmo fruto de uma breve alucinação provocada pela dor intensa na cabeça, mas eu poderia jurar que, ao olhar para baixo, para o rosto de afundado em meu colo, a expressão do menino era mais que sua pacificidade usual – os lábios dele estavam erguidos para cima no que qualquer um teria identificado como um sorriso.

2008
A lâmpada da varanda não estava acesa. Por não fazer ideia de qual das chaves do molho abriria a porta de casa, pensei em tentar uma por uma, porém tudo se tornou ainda mais complicado quando percebi que meus olhos simplesmente não focalizavam a fechadura. Seria a miopia ou a embriaguez? Na dúvida, culpei a ambas.
Apoiei meu corpo num pé só, o com menos bolhas, então abracei a mim mesma, pois o frio começara a tornar-se insuportável, uma vez que este envolvia com vigor minhas pernas e braços descobertos. Foi naquele momento que a frustração se misturou à sensibilidade trazida pelo porre, e tive de me conter para não começar a chorar. Em vez disso, encostei a testa à porta de casa e liberei um suspiro.
Quando a madeira foi movida, imediatamente meu corpo a seguiu, o que averiguou sua maldita inércia.
Cambaleando sobre o salto agulha, adentrei os primeiros centímetros de casa antes de ser amparada por fortes braços bronzeados, ao longo dos quais deslizei meus dedos visando firmar-me.
- ! – Sussurrei, porque só poderia tratar-se dele.
- Que bonito, uh? – Contrapôs o garoto em tom censurador. Entretanto, seguidamente riu, e num impulso único alinhou minha postura.
- Me desculpe... – vi-me obrigada a dizer. – Por favor, não siga o meu exemplo.
riu outra vez, mas nada respondeu; ocupou-se guiando-me até um dos sofás, o maior, e ali sentou a nós dois.
- Como foi a festa? – Seus dedos delicadamente escorregaram por um de meus calcanhares até alcançarem o zíper de meu sapato. Cerrei os olhos. – Imagino que tenha se divertido.
- Talvez um pouquinho... – Sinalizei com os dedos indicador e polegar da mão direita, ambos na horizontal e um paralelo ao outro. Ao repetido som do riso de , perguntei-me se ele não estaria achando engraçado o meu modo bêbado de pronunciar as palavras. – O que você ficou fazendo esse tempo todo?
- Esperando por você, – ele disse sem pressa, e já retirava o segundo sapato do par. – Sentindo sua falta...
Meus lábios se repuxaram para cima. era tão bobo.
Lentamente, comecei a abrir os olhos. A sala encontrava-se imersa na penumbra; sua única fonte de luz e calor provinha da lareira, onde a tora crepitava de modo a tornar o clima do ambiente acolhedor.
- Você está bem? – indagou, e chamas alaranjadas poluíam o antes nítido azul de seu olhar. O rapaz capturou minha mão mais próxima com as suas, então jogou a cabeça para trás, relaxando o pescoço no encosto do móvel acolchoado.
Meu menino havia crescido tanto. Estava tão bonito.
Girei meu corpo para ficar de lado e melhor avaliar os traços de . Em geral, ele havia herdado pouco de sua mãe, – eu só conseguia ver semelhança plena no desenho de seus lábios e no formato dos dedos das mãos e pés. Não me recordava muito bem da figura do pai dele, Samuel Holt, mas sabia que o maxilar quadrado era uma característica comum a ambos, bem como os olhos azuis. Quanto ao temperamento, meu sempre fora tranquilo e adorável como a avó materna, apesar de ter se tornado mais nervoso na adolescência.
Eu o amava tanto.
- O que é? – Questionou sob meu olhar fixo, sorrindo de lado. – Vai me deixar com vergonha...
- Você está virando um homenzinho – murmurei, melancólica. – ficaria tão feliz.
- ... – meneou a cabeça antes de se virar de lado, ficando cara-a-cara comigo. – Sem choradeira, por favor. Você nem está tão bêbada assim.
Utilizei as costas de uma das mãos para acariciar o rosto dele. Minha pele passeou pela sua, que ainda era deliciosamente macia; o que dizia ser sua barba máscula eu ainda identificava como fiozinhos hilários, e foi por isso que ri ao breve contato com alguns deles.
- Me abraça? – Pedi, o timbre enrouquecido.
prontamente o fez: seus braços fortes envolveram minha cintura e puxaram-me para frente até que nossos peitos se chocassem. A respiração dele bateu quente em meu cabelo, agitando alguns fios, e todo o contato físico de nossos corpos fez-me sentir uma corrente elétrica que anunciava nossa também conexão sentimental.
- Vamos, , levante-se daí – ele sussurrou, a voz um sopro que alcançou meu pescoço descoberto. – Eu preparei um banho para você.
Mas eu ignorei sua fala. Sentia-me bem apenas estando ali, com meu rapazinho, os lábios dele pressionando meu ombro repetidas vezes e traçando a partir dali um caminho até a curva que daria em minha nuca. Inclinei a cabeça para trás, meus olhos cerrados, e os dedos de logo subiram por minha cintura – dois deles se enrolaram numa das alças de meu vestido e puxaram-na para o lado.
- ? – Com a respiração entrecortada, chamei-o.
- Sim? – Ele murmurou.
Afastei-o pelo peito, meus sentidos oscilando para o lado racional.
- O que você está fazendo? – Prossegui.
Mas já havia se levantado, e seu corpo bloqueou a luz da lareira de modo que eu não pudesse enxergar o que havia em sua expressão.
- Nada, ... – foi o que sussurrou, distanciando-se ainda mais. – Me desculpe.

2010
Era um acidente de trânsito.
O carro – uma velha picape prateada – havia destruído seu próprio capô e um poste na batida. O motorista morreu na hora.
Ao encaixar meus óculos no rosto, a cena trágica tornou-se consideravelmente mais clara: vi as folhas esparramadas pelo chão do automóvel, os guardanapos sujos por algo enegrecido, a substância branca que certamente o laudo de constatação preliminar identificaria como cocaína.
Nada muito fora do comum.
Quando Izzy se aproximou, seus volumosos cachos balançando com o movimento como se tivessem vida própria, trocamos um olhar cúmplice.
- Detesto terças-feiras... – reclamou ela, abanando uma mão no ar. – O que você acha disso? – Fez um círculo com o indicador, se referindo ao cenário.
- A vítima com certeza estava drogada... – acenei com a cabeça para o que restou da picape e Izzy assentiu, sabendo que eu me referia ao pó no chão do veículo. – Acredito que tenha tido um surto e, bom, o resultado está diante de nossos olhos.
- Aposto que você está cometendo um equívoco.
Semicerrei os olhos. A voz em tom desafiador pertencia a Lynn, outra colega de equipe. Ela deu uma breve risada.
- Enquanto eu recolho as evidências dentro do carro, , por que você não dá uma olhada nas marcas de pneu no chão? – Sugeriu.
E eu o fiz.
Desprendendo-me dos berros dos civis que já adornavam o local, verifiquei a trajetória de frenagem do veículo, Izzy auxiliando-me ao tirar as fotos.
Não foi difícil encontrar o motivo para a divergência entre minha opinião e a de Lynn, afinal: as manchas de pneu no chão não faziam sentido. Eram muitas.
A princípio, deduzi que as marcas parasitando a cena do acidente pertenciam à ambulância que viera resgatar a vítima. No entanto, agachando para sentir sua temperatura e seguindo o rastro por alguns metros, tive a certeza de que se tratava de um pneu solitário. Um pneu de moto.
Outra pessoa passara por ali.
- Amélia! – Um berro cortou o burburinho da multidão e abriu caminho por ela. – Amélia, meu amor!
A família.
Ergui-me depressa para que pudesse chegar rápido ao corpo. Um homem tentava alcançá-lo assim como eu, porém de maneira muito mais desesperada. Certamente tratava-se de um familiar.
Era como um ciclo vicioso: alguém morria ou era morto, Lynn e eu éramos chamadas para periciar o local já infestado de gente e, enfim, os familiares da vítima apareciam – geralmente em prantos – e tínhamos de lidar com eles.
- Sabemos como deve estar se sentindo, senhor, mas temos de terminar o nosso trabalho por aqui... – murmurei com calma a frase pronta. Lynn completou-a com palavras que mal compreendi, pois naquele instante algum ponto em minha cabeça foi atingido por uma dor chata e crescente.
No meio em que eu havia fixado minha vida, era extremamente difícil separar o profissional do emocional. Já fazia quase dez anos que eu estava na perícia e, algumas vezes, sentia que se não fosse por e seu auxílio na ancoragem de meu psicológico, eu já teria me rendido à enorme força da correnteza.
Por conta disso, ao chegar em casa, mais tarde naquele mesmo dia, instantaneamente sorri ao registrar e seu amiguinho Victor durante uma batalha de qualquer coisa no videogame.
- Desgraçado! – Victor sempre se exaltava. – Eu vou comer o seu...
- Olá, Victor! – Gritei o cumprimento para dar um susto nele.
Ao som do berro do menino, caí na gargalhada. copiou-me após piscar para mim, indicando ter apreciado meu feito anterior.
- É Radar, ! – Corrigiu-me o moleque louro. – Ra-Radar... – repetiu, porém de modo mais lento, já que parecia ocupado demais babando sobre mim.
deu um tapa na cabeça do amigo ao passar por ele.
- Me desculpe... – eu disse. – Sempre me esqueço.
- Ah, tanto faz! – Meu menino deu de ombros, parando em minha frente e abrindo os braços.
- ! – Ralhei. – Eu estava com gente morta!
- E daí?
Sem esperar meus argumentos, passou os braços ao meu redor e levantou-me no ar. Dei risada.
- Vou colocar você de castigo! – Ameacei.
- Mas eu já tenho quase dezoito anos! – Rebateu.
- Falando nisso... – Victor se meteu. – Bem que você poderia liberar a casa para que a gente desse uma festa, não é, ?
- É? – Encarei quando ele me pôs no chão. O rapaz ergueu as mãos na altura dos ombros, denotando rendimento.
- Sim! – Prosseguiu seu amiguinho. – E na semana seguinte tem aquele jogo importantíssimo de lacrosse! Uns olheiros da Cornell vêm nos ver jogar! – Radar era só euforia; eu praticamente já via a hora de ele começar a dar pulinhos em meu sofá.
- Cornell? – Repeti, olhando de soslaio para e me fazendo de desentendida. Como me conhecia bem, seus olhos azuis apenas me afrontaram, meio debochados. – Vou pensar no caso de vocês.
- Pense com carinho – miou .
Bati continência antes de girar os calcanhares e me dirigir ao andar de cima. Precisava tanto de um banho! No entanto, quando no meio da escada, ouvi um murmúrio que atraiu minha atenção novamente para o andar de baixo.
- Gostosa... – Radar havia sido o locutor. No mesmo instante enfiou o cotovelo no estômago do amigo, defendendo minha honra.
Eu achava engraçada a maneira como se preocupava em me defender, seja dos comentários de seus amigos ou da própria vida. Fora assim durante todos os dez anos em que criei o menino, que agora já era um rapaz e em breve seria um homem.
era incrível. Sempre foi uma criança boa e prestativa, mesmo que tenha se tornado meio nervoso após a puberdade. Quanto a mim... fiz tudo o que estava ao meu alcance por ele, e até um pouco mais. Assumo que, nos primeiros anos após a morte de , só consegui lidar plenamente com por tê-lo colocado para ter acompanhamento psicológico. No final, entretanto, tudo funcionou.
Quando nos mudamos para Newport, quase uma década atrás, eu jamais teria acreditado que as coisas dariam tão certo. Mas, tendo e Calebe como pilastras, construí uma vida digna. Eu trabalhava na perícia todos os dias, e havia ainda arrumado uma vaga como professora substituta e ocasionalmente monitora no colégio onde estudava – em parte, admito, para que pudesse ficar de olho nele. Consegui uma bela casa, e pouco a pouco era muito bem-sucedida financeiramente, obrigada.
Quando deitava em minha cama ao fim de todos os dias, era apenas para me sentir satisfeita, e estava sempre compartilhando da sensação junto a mim – geralmente se voluntariava para massagear as costas da “velha”.
Era triste pensar que, em pouco tempo, eu não mais teria responsabilidades para com o meu menino. , porém, mesmo que sempre falasse sobre o tal dos dezoito anos, em momento algum mostrou interesse em deixar a casa, e tenho quase certeza de que o motivo era o bom relacionamento que mantínhamos. É claro que vez ou outra nos estranhávamos, mas, durante uma discussão, eu procurava ser compreensiva, uma vez que era ainda um adolescente.
Balancei a cabeça para espantar os pensamentos antes que a nostalgia se emaranhasse com mais vigor em meu ser. Dirigi-me, então, ao banheiro, onde, após um longo banho quente, ocupei-me massageando o rosto com alguns cremes que prometiam prevenir o envelhecimento precoce da pele. Eles deixavam minha imagem no espelho um tanto quanto cômica, esbranquiçando totalmente algumas áreas e deixando o mel de meus olhos pesados sobressair-se sob a luz fluorescente do recinto. Adornando meu rosto, então, estavam os fios loiros recém-cortados, leves ondas estendendo-se em desordem até quase alcançarem meus ombros.
Exausta, voltei a sentir a breve pontada na cabeça que me atormentara mais cedo naquele dia. Vesti o roupão sobre a lingerie e, antes mesmo que o amarrasse na cintura, irrompeu pela porta.
- ! – O garoto gritou, seus olhos azuis chamuscando em algo que identifiquei como desespero. ofegava. – A vítima do acidente de carro... foi você quem periciou o local?
- Sim. – Fechei o roupão devagar, o cenho franzido para demonstrar minha confusão.
- Você viu o corpo, ?
- Não, meu amor... fiquei responsável por outra...
- Era Amélia Hawking! – Ele me interrompeu, os braços gesticulando por conta de sua exaltação. – Minha professora de física!

- Professora do ?! – Calebe estranhou quando eu lhe expus o fato, na manhã seguinte. O médico legista deu a volta no laboratório e parou em minha frente, sua testa franzida e os braços fortes cruzados sobre o peito.
- Esquisito, não é? Eu já havia cruzado com ela pelos corredores do colégio... – Projetei meu lábio inferior para frente enquanto arrumava o jaleco branco do doutor.
- Acha que vão pedir para que você a substitua? – Indagou ele.
- É isso o que eu sou, não é? – Movi os ombros em descaso. – Mas e aí, o que pode me dizer sobre Amélia? Foi uma overdose?
- Overdose? – Calebe negou prontamente com a cabeça. – Sequer acredito que ela era uma usuária de drogas, .
- Então... – Mordi o lábio, intrigada. – Então qual foi a causa da morte?
- Hemorragia.
Soltei o ar de modo pesado, minha mente atordoando a si mesma por conta do fluxo de pensamentos que a circundou. Não passaram mais que dez segundos até que minha garganta secasse.
Doutor O’Hara seguiu ao meu encalço pelo corredor que daria no bebedouro.
- Há algo em especial que precisa que eu cheque? – Questionou.
Cerrei os olhos quando a água gelada escorregou por minha garganta. Delícia.
- Ainda estamos falando sobre o caso da Hawking? – Provoquei em tom brincalhão.
- Sim... – Calebe fez bico, os dedos arrumando seu cabelo para cima. – Não me leve a mal, mas a perícia está te deixando cheia de rugas, meu amor.
Arregalei os olhos para encará-lo, minhas mãos instintivamente voando até os lados de meu rosto. Mesmo depois, quando O’Hara começou a rir e ameaçou me puxar para um abraço, eu ainda estava ressentida.
- Não toque em mim! – Movi a cabeça para reafirmar a ordem.
- É brincadeira, ! – Tentou contornar a situação.
- É, vai, continua! Eu estou velha, acabada, cheia de rugas... O que mais? – Aproximei-me dele para sussurrar, exaltada: – Meus peitos estão caídos?
- ... – Calebe ria sem parar. – É brincadeira! Você está tão jovem e bonita quanto quando nos conhecemos, em Brown.
Quando o médico agarrou um de meus braços, acabou por usar certa força para que eu não saísse da frente dele, nossas faces encarando-se de maneira fixa. E como era linda, a do desgraçado! Calebe O’Hara parecia um galã de novela mexicana – tinha a pele bronzeada por conta de sua recente viagem à Califórnia, o cabelo arrumado com gel, os lábios umedecidos pela língua e os olhos... os olhos eram de um castanho tão cálido e acinzentado que, sempre ao encará-los, eu me perguntava porque nunca havia me apaixonado por eles.
- Não fique com raiva de mim... – o médico murmurou em seu timbre suave que certamente pretendia induzir-me à hipnose. Rolei os olhos.
- Brunonian! – Alguém gritou ao longe, e a expressão de Calebe endureceu.
Havia muitas razões para que eu deduzisse que aquela nova voz pertencia a Connor Wheeler, um dos detetives que trabalhava conosco. Poderia ter sido por conta de sua voz forte e áspera, pelo consequente tremor que esta ocasionou em minha virilha; poderiam ter sido os passos fortes, o ciúme nítido apoderando-se das feições do doutor O’Hara; tantas coisas e, por fim, nenhuma delas. Soube que se tratava de Connor porque apenas ele se referia a mim como Brunonian, um termo usado para pessoas relacionadas à Universidade Brown, onde me formei.
O detetive Wheeler parecia ter saído de um seriado policiesco. Quando ele parou à minha frente, fez questão de arrumar a pistola no coldre antes de, com a mesma mão, segurar uma das minhas e levá-la até os lábios carnudos.
Eu precisava transar com aquele cara.
Bom, eu e todas as funcionárias do sexo feminino do laboratório de criminalística. Talvez metade dos do sexo masculino, também.
- Estava procurando a senhorita. – Tive a impressão de que as ondas sonoras que Connor proferia vibravam tanto que transmitiam o tremor para os meus ovários. O detetive foi soltando minha mão aos poucos, nossas peles roçando enquanto ele insistia em conectar os olhos cor de âmbar aos meus. – Gostaria de almoçar comigo?
Gostaria de ser o seu almoço.
Meneei a cabeça, e por um breve instante pude ver as feições contorcidas de Calebe. Tive de me controlar para não rir.
- Hoje eu não posso... – respondi a contragosto. – Preciso buscar meu menino no colégio.
- Certo. – O olhar de Connor deslizou brevemente por meu corpo, e ele sorriu de lado. – Aliás, como ele está após a morte da professora?
Eu sinceramente não sabia, mas inventei alguma coisa para dizer a Wheeler enquanto ele me acompanhava até o estacionamento e me beijava no rosto para despedir-se. Eu ainda estava molhada quando adentrou o banco do carona, minutos depois. O garoto arremessou a mochila para a parte traseira de meu Ford F-150, então inclinou-se para beijar meu rosto também.
- Como você está? – Questionei, meus dedos acariciando de leve o cabelo dele para em seguida retornarem ao volante.
- Bem! – respondeu-me como se fosse óbvio, e colocou o cinto de segurança antes de voltar a falar. – Mas a escola está meio que um caos: todo mundo só sabe falar da Sra. Hawking! Ainda bem que a filha dela não foi à aula hoje... teria sido péssimo.
- E você a conhece? – Olhei de soslaio para ele por tempo o suficiente para vê-lo escorregar um pouco no banco, sorrindo torto.
- Você é quem vai substituir a mãe dela? – mudou de assunto com maestria, os dedos batucando no painel do carro.
- Acredito que sim.
- Ótimo! – O garoto não parecia muito contente com a ideia. – Vai ser muito legal ouvir meus amigos falando sobre os seus peitos, . Como se eles já não fizessem isso o suficiente.
Joguei a cabeça de leve para trás, caindo na gargalhada.
- , pelo amor de Deus! Eu já estou velha e... – Engoli em seco para seguidamente reproduzir o discurso de Calebe O’Hara: – Cheia de rugas.
Foi a vez do menino rir.
- , pode ter certeza... – Seus olhos azuis me fitaram até que eu rapidamente o fizesse de volta, minha testa franzida e um canto de meus lábios ousando se erguer. – Eu preferiria você a muitas garotas de “pele lisinha”.
- Então você também acha que eu tenho rugas, ?! – Aumentei o tom de voz para assustar o menino, que engoliu em seco.
- ... – ele disse baixinho, algum tempo depois, querendo consertar o que sequer havia dito.
Quando o olhei, fingindo estar brava, recuou. Seus olhos, no entanto, não desviaram de mim por um segundo sequer – senti-os queimar minha pele, penetrá-la até que eu estivesse desconfortável o suficiente para errar a marcha, o que provocou um ruído estranho no carro.
- Me desculpe... – falou, ainda baixo, como se precisasse ter cautela.
Apenas assenti, esperando que o menino voltasse a se sentar direito e fixasse seu olhar invasivo em outro ponto que não estivesse relacionado a mim. Isso, entretanto, não aconteceu, e logo eu era vítima de uma sensação de formigamento na boca do estômago. Quando me virei para num sinal vermelho e capturei seus orbes azulados, a sensação desceu.
- Está tudo bem... – disse a ele, meus ombros movendo-se na tentativa inútil de mandar para o espaço o peso sobre eles. – Eu estava brincando, . Sei que não quis dizer aquilo.
- Sabe mesmo? – Indagou o menino num fio de voz.
- Mas é claro! – Forcei uma risada. – Eu tenho espelho em casa, não tenho?

Com a morte da Sra. Hawking, St. Luke High School não demorou a solicitar os meus serviços. As turmas do ensino médio foram divididas entre mim e uma professora cujo nome não fiz questão de memorizar, e de segunda a quarta eu entrava nas salas de aula lotadas empunhando apenas uma xícara de café; não achava necessária a ajuda de livros para que fosse feita a tradução da física.
Fui muito bem aceita como nova professora. Acredito que deslumbrava os alunos por trabalhar na perícia e ter porte de arma. Quando finalizava a aula mais cedo, divertia-os com histórias sobre o laboratório, mas geralmente tinha de cortá-las por sempre me levarem ao caso da Sra. Hawking, ainda em andamento.
Uma das turmas que assumi, por coincidência ou não, foi a de . Quando dava aulas ao menino, ele apoiava os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos durante todos os longos minutos, encarando-me com um conjunto de olhar orgulhoso e sorriso torto. Era como se ao mesmo tempo ele se divertisse e apreciasse me ver ali.
Apenas duas ou três aulas minhas foram interrompidas por ligações de Lynn, minha colega de trabalho. Estávamos com certa dificuldade para provar a ação de uma segunda pessoa no caso da Sra. Hawking, mas não parávamos de apostar naquilo. Lynn havia pedido para que eu sondasse os alunos motoqueiros em busca de um suspeito, e eu já havia abordado pelo menos cinco.
- Triste o que aconteceu com a Hawking, não é? – Comentei distraidamente com Radar numa segunda-feira, quando me sentei ao lado dele na arquibancada contida no campo.
O garoto loiro usava o uniforme do time, mas sem o capacete, as luvas e os tênis – era como se ele os tivesse substituído pelo biscoito que comia não muito educadamente. Quando me olhou de soslaio, à princípio, foi estranhando minha presença no local, mas então gritou de algum lugar próximo ao gol, agitando seu bastão de lacrosse no ar para atrair nossos olhares, o que deu certo.
- Ele está mais fissurado que o normal, não é? – Cutuquei Radar, que enfiou um punhado de cheetos na boca antes de começar a rir. Bastante coisa voou.
- É por causa dos olheiros da Cornell. – ele disse o que eu já tinha certa noção, e logo estendeu-me o pacote daquela coisa fedida, oferecendo. Neguei depressa.
- Sempre quis que ele fosse para Brown... – lamentei. – Mas a Cornell também é ótima. Você acha que ele consegue a bolsa?
- ... – Radar deu risada uma vez mais. – é um filho da puta que consegue tudo o que quer.
- Adoro o seu belíssimo vocabulário, Victor – ironizei.
- É Radar, ! – O garoto agitou as mãos e bateu com ambas em punhos em suas coxas. – Ra-dar! – Reafirmou.
Apertei os lábios um no outro para evitar a risada.
- Me desculpe! – Abri as palmas e mostrei-as a ele num pedido de calma.
Radar fez um bico teatral antes de voltar a comer seu biscoito cheio de corante – o som de seus dentes triturando aquele negócio foi a única coisa que ouvi durante um ou dois minutos, o que já estava começando a me irritar. No instante em que decidi que contornaria nossa conversa para retornar ao caso de Amélia, porém, um grito no campo chamou minha atenção.
- Viu o que fez, seu babaca?! – Um garoto enorme arrancou seu capacete de proteção e atirou-o para o lado. Ele estava de frente para mim, e por isso vislumbrei seu rosto desconhecido antes que o jogador avançasse na direção de um outro.
Na direção de .
- Acha que pode agir desse jeito só porque a mamãe policial agora tá pela escola?
Levantei-me de meu assento e arrumei o óculos no rosto, preocupada com o que poderia acontecer, mas o treinador logo estava enfiado entre os dois meninos.
- Não liga, não... – Radar tocou meu pulso para que eu o olhasse. – O Brian é o capitão do time. Você sabe, o típico babaca. Só faltava ser rico. – E deu risada de sua piada ruim.
- Pensei que ele fosse fazer alguma coisa...
- E ele vai! – Victor disse de boca cheia. – Durante o jogo.
- Mas ele não... – comecei, já exaltada.
- ... – o garoto franziu o cenho e balançou a cabeça para mim. – É lacrosse.
Lacrosse era a porcaria de um jogo violento, e no fundo eu sabia que Radar tinha razão. O que, porém, não significava que eu ficaria ali para ver ser morto por aquele outro garoto enorme.
- Tudo por Cornell, . – Radar tentou justificar quando peguei minha bolsa, indiretamente anunciando minha partida. – Espere, não se vá ainda! – Pediu. – Temos assuntos para tratar.
Olhei para o menino de cima a baixo, sem querer menosprezando-o com o feito. Victor, por sua vez, abandonou o pacote de cheetos sob o banco e limpou as mãos nas calças.
- A festa de . – Ele foi direto ao ponto, mas olhou para cima e crispou os lábios na tentativa de esconder o riso sacana que lhes preencheu. – O aniversário dele é na sexta... – enrolou um pouco. – O que você nos deixaria aprontar se realmente déssemos uma festa?
Massageei as têmporas. No fundo, tinha medo que a palavra “aprontar” tivesse um significado muito diferente para Victor do que tinha para mim. Mas então, pensando somente no impacto positivo sob ponto de vista de – o que eu sempre costumava fazer –, acabei cedendo.
- Eu quero todo mundo fora da minha casa antes das quatro da manhã. – Apontei um dedo para o loiro, que arregalou os olhos, já demonstrando euforia. – Também quero tudo limpo antes que o dia seguinte anoiteça, está me ouvindo? Vocês vão arcar com qualquer prejuízo se algum objeto meu for quebrado e, Radar, por favor... – Aproximei-me do moleque, os olhos semicerrados e o tom mais baixo para denotar certa ameaça. – Não quero cavalos na minha cozinha. E nem sexo na porra do meu quarto!

Sempre pensei nos dezoito anos de como algo maravilhoso. Meu menino estaria pronto para a faculdade, para a vida adulta, e tudo porque eu o havia criado para ser o homem que estaria se tornando.
Quando o dia vinte e dois de junho amanheceu, porém, foi uma sensação nauseante que se prendeu à minha essência, uma espécie de medo e nervosismo que fez com que eu tremesse dos pés à cabeça ao pegar o presente mal embrulhado que pretendia dar a , bem como o envelope com o acréscimo em dinheiro.
Bati à porta do quarto dele. O menino gritou alguma coisa de dentro do recinto e eu aguardei, as unhas se apertando nas palmas até que enfim surgisse.
O cabelo dele estava molhado, o que enegrecia ainda mais os fios e, não obstante, oferecia certo realce aos seus olhos azuis. , lambendo de leve o lábio inferior, me olhou de cima a baixo antes de abrir por completo a porta do quarto. O menino trajava apenas uma toalha roxa em volta da cintura, mas nada impediu que, depois de apoiar seu presente na parede do corredor, eu jogasse os braços para cima e agarrasse o jogador de lacrosse com força. Automaticamente as lágrimas vieram, quentes em contraste com a pele fria das costas de , onde as derramei.
- Eu não acredito que você já tem dezoito anos! – Funguei, meus dedos se embrenhando na umidade do cabelo dele para sem querer retê-la. – Você já é um homenzinho, meu amor!
- Você tira toda a mágica do negócio falando desse jeito, – reclamou, mas não parecia de fato chateado. – Homenzinho.
Afastei-me dele, a vista meio embaçada.
- Cale a boca! – Rolei os olhos. – Espere, eu tenho algo para você.
Busquei o presente no corredor e estendi-o a , que logo descobriu o óbvio: era um bastão de lacrosse.
- Para você usar no dia do grande jogo – eu disse enquanto ele tirava a lembrança do embrulho. – Tem alguma coisa especial nele além do fato de eu tê-lo a dado a você. – Gabei-me. – E vai te fazer entrar para Cornell.
- Eu não duvido disso.
, com os olhos brilhando, segurou o bastão com as duas mãos e fez uma pose engraçada, seu queixo se erguendo repetidamente numa maneira de me perguntar como estava se saindo. Dei risada.
- Você vai arrasar! – Assegurei-lhe, querendo prosseguir com aquilo, mas ao mesmo tempo ansiosa para dar o segundo presente. Puxei o envelope devagar para fora de meu bolso traseiro. – E isso... – comecei, já atraindo o olhar de , que arqueou as sobrancelhas. – É para você torrar com alguma besteira.
Quando o menino pegou as notas de cem dólares de dentro do envelope, percebeu que eram muitas, mas certamente não esperava que fossem dez.
- ... – murmurou, meio sem jeito. – Você sabe o que eu penso sobre isso...
O velho papo de “eu odeio dar mais trabalho a você”. A mesma desculpa usava sempre ao arrumar um emprego novo – dos quais apenas um durou mais que um mês, devo salientar.
- Shhh... – coloquei um dedo sobre seus lábios. ameaçou me morder, mas apenas largou o dinheiro sobre a cama e ocupou os braços com meu corpo, apertando-o contra o seu.
- Obrigado, ... – Ele se abaixou para que pudesse sussurrar as palavras em meu ouvido. – Você é a melhor.
- E é por isso que eu estou indo embora.
passou uma mão por meus cabelos e afastou-se para olhar em meu rosto, confuso.
Eu havia marcado com Connor Wheeler, o policial. Enfim almoçaríamos juntos e eu me ofereceria parar passar a sexta-feira em sua cama. Tinha até comprado um vestido novo e uma calcinha cuja parte traseira media menos de um centímetro.
Connor ia acabar comigo e, só de pensar naquilo, minha vagina aquecia até umedecer.
- Vou passar o dia fora – expliquei a , esforçando-me para conter o sorriso sacana. – Você sabe, para te deixar à vontade em casa, já que mais tarde tem a festa. Não precisa nem agradecer!
- Agradecer pelo quê? – O garoto tinha o cenho franzido e começou a negar com a cabeça. – Eu nunca pedi para que você fizesse isso, .
- Oi? – Ergui os ombros e uma das mãos, mostrando que não compreendia.
- Você tem de ficar aqui. – Ele proferiu com simplicidade. – Eu quero que você esteja na festa.
E foi o bastante para que eu ligasse para Connor, desmarcando o nosso encontro. Estava começando a acreditar que nunca transaria com aquele cara.
Horas mais tarde, Radar chegou à casa e a bagunça começou. Eu os olhei de longe, sem querer fiscalizar, mesmo que estivesse me coçando para fazê-lo. Quando pedia minha opinião – o que corria frequentemente – eu me limitava a perguntar “e nisso tem um pônei?” antes de aprovar a ideia.
Às seis e meia, minha sala de estar havia se transformado numa boate – luzes coloridas, caixas de som, móveis afastados para formar uma modesta pista de dança. Minha cozinha, ao fim do corredor, era como um bar. Radar havia me assegurado de que não havia nada com teor alcoólico ali, apesar de o próprio já estar meio alterado, o que me obrigou a provar o ponche.
- Onde está o bolo? – Indaguei perto das oito da noite, quando a campainha tocou pela primeira vez.
- Bolo? – Victor gargalhou de uma maneira alta e totalmente desnecessária. – Você sabe que isso não é a festa de quinze anos de uma garotinha, não sabe, ?
- Você sabe que eu tenho porte de arma, não sabe, Victor? – Pisquei repetidas vezes para forjar delicadeza. – E se eu encontrar o que quer que seja que você está tomando aí, escondidinho, quebro a garrafa na sua cabeça! – Apontei um dedo para ele, que se afastou um passo, na defensiva. – Você pode até ser maior de idade, mas muitos dos convidados não são.
- Relaxa, .
- Ah, mas eu estou relaxada... – Abanei uma mão no ar, meus lábios erguendo-se num sorriso venenoso antes que eu prosseguisse. – Ao contrário de você, Radar – proferi o apelido meio ironicamente –, eu trabalho no meio criminal.
O garoto engoliu em seco, assentindo, e a expressão em seu rosto foi tão engraçada que me retirei da cozinha para não ser pega rindo.
Péssima escolha a minha ter retornado à sala. O local já tinha uma quantidade considerável de adolescentes – em sua maioria alunos meus – que pareceram assustados ao me reconhecer. Acenei para alguns e dirigi-me silenciosamente às escadas.
- ! – gritou por mim quando meus saltos se chocaram contra o terceiro degrau. Praguejei baixinho.
Virei-me para que nos encarássemos quando o menino subiu também.
- Uau! – Exclamei. – Desde quando você é tão gostoso assim?
jogou a cabeça para trás ao gargalhar. Ele trajava all star, calça jeans de lavagem escura, blusa gola-polo de riscas e uma jaqueta de couro por cima. O conjunto ficava realmente bem em seu corpo bem desenvolvido, e na tentativa de fazê-lo rir um pouco mais, deslizei as mãos por seus braços até alcançar seus ombros, que apertei, sentindo os músculos duros mesmo sob toda aquela roupa.
- Desde sempre... – O garoto se gabou, as mãos subindo para colocarem-se sobre as minhas e acariciá-las. – Você também está muito bonita, senhorita . – E fez-me dar uma voltinha.
Eu concordava com , já que meu corpo era abrigado pelo vestido que comprei para especificamente seduzir o detetive Connor Wheeler. A peça era branca na parte superior, onde havia um decote em formato de coração que terminava um ou dos centímetros sobre a linha de separação de meus seios. A partir de minha cintura, a saia do vestido se estendia de maneira bem solta, tons pastéis se mesclando até a ponta se tornar rosa. Nada muito excepcional havia em mim além da peça – meus olhos usavam lentes de contato e haviam sido bem delineados; meus lábios preenchi com batom vermelho.
- Quando te vi subindo as escadas, tive a impressão de que estava fugindo da festa... – comentou como quem não quer nada.
- Eu? – Coloquei uma mão sobre o peito, me fingindo de desentendida. – Imagina!
O menino deu risada e se inclinou para beijar uma de minhas bochechas. Depois, virando-se, levou minha mão direita até seu ombro esquerdo e me arrastou de volta para a sala, que a cada segundo parecia mais abarrotada de hormônios.
Fui apresentada a alguns amigos de antes de finalmente conseguir me isolar num cantinho. Radar viera até mim uma vez ou outra trazer ponche, mas não encontrou meu esconderijo durante a hora que passei nele. Foi só quando a velhice se manifestou numa dor nas costas que eu me levantei, fiz uma ronda pela cozinha e então finalmente larguei-me de volta na poltrona de couro.
Mesmo com a música eletrônica retumbando pelas caixas de som, o tédio fez com que eu sentisse sono. Mas então houve aquela sensação esquisita, como se olhos perfurassem minha pele de tão profundamente que a enxergavam.
Era , do outro lado da sala.
Quando nossos olhares se entrelaçaram através da luz que alcançava a ambos, o rapaz sorriu. Não foi um sorriso simples; era algo mais sentimental e conectivo. Os lábios dele se ergueram levemente durante o breve momento e, ainda me olhando, deixou que sua cabeça pendesse para um lado; mordeu o lábio inferior e esperou até que eu lhe sorrisse de volta para girar os calcanhares e desaparecer na aglomeração de adolescentes que permeavam a festa. Meu sorriso não se abalou com a falta do pequeno , no entanto – permaneceu ali, pintando meus lábios com as cores da estranha sensação que se espalhara ainda mais por meu interior.
Radar deveria ter batizado meu ponche.
Moleque maldito.
Eu não soube quantos minutos se arrastaram antes que um suave e melancólico som de piano substituísse a agitação da música eletrônica que tocava anteriormente. Os convidados da festa reclamaram com resmungos, e eu fiquei sem entender nada até que reconhecesse a canção – ocorreu exatamente quando abriu caminho até mim, rindo de uma maneira que fazia com que seus olhos se comprimissem.
O filho da puta – com todo o respeito à falecida – havia colocado Richard Marx para tocar.
- Oceans apart, day after day... – Seus lábios moveram-se junto à canção, o semblante dramatizando e assim fazendo com que eu risse. – Dance comigo, . – pediu ao parar à minha frente, a mão direita fortalecendo o convite ao estender-se em minha direção.
Deixei que o menino me puxasse para cima, meus lábios erguendo-se sem que eu de fato permitisse sua movimentação. juntou nossos corpos e, com certa facilidade, girou-nos até que estivéssemos no meio do pessoal.
- O que, vai virar uma festinha de bicha? – Algum garoto babaca gritou ao longe.
revirou seus olhos azuis. Tomando o cuidado de tampar meus ouvidos antes – mesmo que, por fim, não tivesse muita diferença –, gritou:
- Vá se foder, Myers!
Fingi que não tinha ouvido.
Alguns casais logo dançavam ao nosso redor, o que me lembrava festas do século passado – saias rodando, meu velho namorado rockeiro e sua banda ditando o ritmo da multidão. Eu achava aquele clima gostoso, e sem querer ergui os braços para cima, entrelaçando-os na nuca de , que apertou minha cintura com mais força.
- Quando eu disse que te queria na festa, ... – O menino começou, seus dedos meio sem jeito ao colocar mechas de meu cabelo atrás da orelha, livrando-a para que sua boca se colasse ali. – Era participando.
Ri baixo.
Por eu estar usando saltos, era apenas um par de centímetros maior, o que facilitou sua nova mania de afundar os olhos azuis nos meus.
- ? – Chamou-me baixinho.
Meus quadris serpenteavam vagarosamente, a voz de Richard dominando-os de maneira nostálgica. Sorri para o menino , meus lábios desenhando um pedido para que ele prosseguisse.
- Se eu não for para Cornell – ele começou, o cenho franzindo. – Têm outras faculdades, não é? Tipo, sei lá, a Salve Regina. Eu não deveria estar tão preocupado...
De certo modo, era engraçado ver imerso em insegurança. Aquele seu semblante me lembrou e o desespero da maternidade. Hoje seu menino – nosso menino – já era, tecnicamente, um digno homem.
- Sim, , têm outras faculdades... – soprei em seu ouvido. – Mas se você quer Cornell, vai entrar em Cornell. Porque está habilitado para isso, meu amor. Você tem se esforçado tanto... E eu tenho tanto orgulho de você.
Lá estava aquela sensação outra vez – minha garganta seca, os olhos marejando. me segurou com mais força, alinhando minha postura, então seu rosto se afundou em meu pescoço, os lábios pressionando o local até que, consequentemente, meu corpo inteiro estivesse arrepiado.
- Obrigado. – O jogador disse contra minha pele, a boca raspando um caminho íngreme para cima; foi quando ela roçou em minha orelha que a música parou. Não houve silêncio, no entanto, pois os jovens faziam questão de manter o burburinho. Principalmente quando um cara vestido de preto atravessou a multidão para chegar até .
- O que você está fazendo aqui? – Eu nunca havia ouvido meu menino falar daquela maneira tão categórica. Afastou-se de mim, e fiquei sem ação no meio da sala.
- O que você acha que eu estou fazendo? – O outro garoto roubou um salgadinho de uma mesa e enfiou-o na boca. – O que parece que eu estou fazendo?
liberou um riso alto e ácido.
- Vá embora daqui antes que eu te obrigue, seu filho de uma puta! – Bradou.
Quando o rival chegou mais perto de nós, eu o reconheci prontamente: era Brian, o maldito capitão do time de lacrosse.
- O que é, ? – Ele disse, sua voz afinando-se. – Vai querer dar um de bacana só porque está na frente da mamãe?
Aquele moleque atrevido estava falando de mim?
- Ela não sabe que você...
- Cale a boca, merda! – berrou, as mãos agitadas.
- Ela não sabe que você é um maconheirozinho de merda, ?
Semicerrei os olhos, curiosa diante daquela informação. Antes que pudesse me meter na briga, contudo, havia voado para cima do moleque Brian.
- Caralho! – Radar chegou gritando da cozinha.
Radar.
Minha mente sequer havia compreendido por completo a situação, mas já sabia como resolvê-la.
- Victor! – Agarrei-o pela gola da camisa, arrastando-o até mim. – Brian é maior de idade?
Radar ergueu as sobrancelhas, e senti certo julgamento de sua parte antes que o garoto desse um pulo, captando a mensagem.
- É! – Assegurou-me.
Larguei os saltos enquanto subia as escadas correndo.
Nunca gostei muito de trazer armas para casa, mas sempre tinha uma ou duas guardadas no cofre. Optei pelo rifle, que estava sempre carregado, e girei-o na mão direita antes de retornar à sala.
Minha cabeça rodava e doía feito o inferno.
Ao registro da arma em minhas mãos, vários adolescentes já gritavam e corriam para fora da casa. No olho do furacão, porém, Brian e , mesmo que já separados e segurados cada um por um outro rapaz, cuspiam ameaças um ao outro.
Brian arregalou os olhos ao me ver.
Desativei a trava de segurança.
- Dá o fora. – Eu lhe disse, minha cabeça acenando para a porta.
E fora simples assim espantar o babaca e todo o resto da turminha. Quando dei por mim, até mesmo Radar havia desaparecido – restara apenas , escorado numa parede, o lábio inferior rachado ao meio; e eu, ofegante, o rifle ainda em punho.
- ... – lamentou, sua cabeça balançando de um lado para o outro.
- Sem desculpas, . – Cortei-o, e ainda não tinha vontade de abaixar a arma. – Que história de maconha é essa?
- Você vai ficar apontando essa porcaria para mim como faz com os delinquentes?! – Exaltou-se o menino.
- E como eu posso saber se não estou diante de um? – Rebati.
- !
- !
Encaramo-nos por vários segundos antes que eu puxasse de volta a corrediça do rifle. Meus olhos, então, choraram, uma mistura de tristeza e raiva, mágoa e decepção.
- , por favor... O Brian, ele...
- Não minta para mim! – Interrompi-o com o grito. – O Brian estava inventando alguma coisa?
- ...
- Ele estava inventando ou era verdade, ?
O garoto se aproximou de mim e, aproveitando-se de minha fragilidade trazida pelo surto psicótico, fez tudo num ímpeto só: pegou a arma de minha mão e jogou-a longe, agarrou-me pelos ombros com firmeza que eu desconhecia e encarou-me de perto, seus olhos o mar revolto que enfezava ainda mais a carranca em sua expressão.
- Brian paga de badboy porque vende maconha. – Ele arremessou a verdade em minha cara como se ela fosse um tapa. – E eu já fiz compras com ele, sim.
Empurrei com tanta força que ele tropeçou e caiu no chão. Eu queria gritar, esmurrá-lo e descarregar meu rifle em seu estômago, mas ao mesmo tempo sentia-me tão impotente que apenas peguei a arma e dirigi-me ao andar de cima.
Para onde havia ido a doce ilusão de que eu havia criado para o bem? A ignorância fora, afinal, bondosa, e não havia consolo na verdade de que o menino de nosso menino – não passava de mais um adolescente drogado.
Como eu nunca havia notado?
O quão cega a miopia me tornara?
Aos soluços, guardei a arma no cofre, meu coração batendo tão alto e violento que o confundi com os passos de quando o menino apareceu.
Ele me virou daquele jeito de novo, as mãos segurando meus ombros com vigor e seguidamente empurrando-me para a parede. respirou pesado em meu rosto, e parecia uma fera prestes a atacar.
- Eu não consigo entender, ... – Disse entredentes.
- Por que você fez isso comigo? – Questionei, magoada.
- Me desculpe... Juro para você que não é um hábito, . Foram poucas vezes...
- Eu te dei tudo, . O que mais você poderia querer? No que estava pensando quando...
- Me desculpe! – Ele tornou a dizer, a voz trêmula.
encostou nossos narizes e roçou um no outro com afeto. Ele parecia prestes a chorar, mas assim que entreabri os lábios para repreendê-lo um pouco mais, fui beijada.
O garoto simplesmente juntou nossas bocas e enfiou a língua onde não devia. Mais que isso – me puxou pela cintura com força excessiva, fazendo-me perguntar se não teria afundado os dedos em minha pele se tivesse a oportunidade. Imóvel e silenciosamente, notei quando ele subiu uma das mãos até meus cabelos e enfiou-a entre os fios, puxando-os para trás até que eu finalmente mergulhasse a língua de volta entre seus lábios, beijando-o com sofreguidão repentina.
Fora rápido e quente, ardera e fizera com que eu me contorcesse durante a noite, sem saber explicar o que havia sentido. Sabia apenas desejar mais, pois assim que quebrou o contato e me deu as costas, acendi por inteiro.

Éramos e eu dançando na festa. Os lábios do garoto estavam em meu pescoço, uma de suas mãos na base de minhas costas dando a entender que era uma questão de tempo até que descesse um pouco mais.
Quando Calebe me olhou de maneira altiva e acusatória, entendi prontamente o que se passava pela cabeça do médico. Ele afastou a fotografia, permitindo assim que eu visse uma outra. Nesta, eram meus lábios sorridentes no ouvido de , e apesar de o teor daquele sorriso me parecer visualmente muito do sacana, quando eu de fato o abrira, três noites atrás, fora com boas intenções.
- Quem te deu essas fotos? – Perguntei ao doutor O’Hara num impulso raivoso.
Calebe ergueu as sobrancelhas para mim e soltou um riso anasalado. Ele estava apoiado num balcão do laboratório agora, os braços cruzados sobre o tórax, os olhos ainda indiretamente acusando-me pelo que eu sequer havia feito.
Não durante a dança, pelo menos.
- Eu sabia que essa história não daria certo, – começou o médico, o timbre meio desgostoso. – Você sempre se torna uma completa babaca quando o assunto em pauta é . Era uma questão de tempo até que isso acontecesse.
- Isso o que, Calebe? – Ofereci-lhe as mãos abertas para cima, fingindo incompreensão. – Estávamos dançando. Era aniversário dele.
- Por isso você me disse que a festa era só para os amigos de ... – prosseguiu ele, ignorando meu protesto. – Porque você queria estar lá sozinha. – Acusou-me.
- Pelo amor de Deus!
- Deus? – Calebe aumentou o tom de voz e se virou bruscamente para mim. – Você acha que Deus aprova os seus feitos, ? é quase um filho nosso!
- Ele é filho da ! – Apontei um dedo para o médico. – E, quando ela morreu, eu fiz de tudo por aquele menino, Calebe! Continuo fazendo, mesmo que não seja mais minha obrigação. Então você não pode...
- Sim, eu posso! Olha como vocês estavam agarrados, !
Exausta diante daquela discussão desnecessária, minha cabeça começou a doer. Pensei em deixar Calebe falando sozinho e sair em busca de um remédio, mas há tanto eu sentia essas dores e há tanto só o descanso me livrava delas...
- Quem tirou essas fotos? – Insisti.
- Encontrei na internet. É o boato da semana... O Complexo de Édipo.
- Não seja ridículo, Calebe! – Berrei.
- Eu sou ridículo? Você é que é uma vadia sem noção, ! O filho da sua melhor amiga? Sério mesmo? Foi por causa dessa putaria que você, em todos esses anos, sempre me rejeitou?
- Calebe!
As palavras dele arderam como o inferno que eu logo conheceria, já que, em parte, meu velho amigo tinha razão.
Quando minhas pernas começaram a tremer, eu soube que aquele bate-boca já havia passado dos limites. Rasguei as fotos ao meio e, ao arremessá-las em Calebe, ordenei entredentes:
- Nunca mais olhe na minha cara, seu infeliz!

Durante os dias que antecederam o grande jogo de lacrosse, a situação em casa foi muito esquisita. Eu evitei durante toda a semana – tinha vergonha de olhá-lo nos olhos após ter-me entregado com tanta veemência ao beijo dele. Era receio, mas também raiva, desespero e, na calada da noite, o ardor que tentava me impelir ao replay.
O garoto também parecia fugir de mim. Nos vimos apenas de segunda a quarta, dias em que o levei à escola e dei aulas a ele. À noite, quando eu chegava do laboratório, estava sempre no quarto, e após espiá-lo através da fechadura da porta, eu também me trancava no meu.
Na quinta-feira de manhã, lavei cuidadosamente o uniforme vermelho que pertencia a , e durante o ato peguei-me lembrando da força com que fui segurada na sexta. Era como se estivesse me descobrindo, e a sensação fora tão gostosa que minha consciência se auto repreendia.
Deus, eu estava tão distante do pedido feito por . Senti-me um mostro emergindo da sujeira que era aquele pecado e, por isso, horas antes do jogo, na sexta, ingeri algumas doses de uísque.
Quando cheguei à escola, minha visão estava turva; manter o óculos no rosto pouco adiantava na focalização das imagens, e por isso me livrei do objeto para bater a cabeça no volante do carro. Após sem querer acionar a buzina, joguei-me para trás, incerta sobre o que deveria fazer a seguir.
A verdade era que eu precisava confrontar . Queria empurrá-lo num canto e repreendê-lo por ter usados drogas, por ter me enganado por tanto tempo, por ter me beijado de um modo tão novo e tão inesquecível que minhas pernas bambeavam ao recordá-lo.
Quando bati a porta da picape e segui pelo caminho vazio até o campo, Radar surgiu em meu encalço.
- Preciso falar com você, ... – o garoto disse, apreensivo, mas eu não poderia me importar menos.
- Onde o está?
Meu tom de voz fora tão grave e cortante que Radar puxou o ar com força antes de, relutantemente, me passar a informação:
- No vestiário.
Bati os pés até o local indicado e abri a porta com um chute. , que estava sentando num longo banco de madeira limpando os tênis com um pano, ergueu os olhos apenas pelo tempo necessário para registrar minha presença, então retomou a tarefa.
- Tenho umas coisas para dizer. – Comentei não muito feliz. – Está sozinho?
largou os sapatos no chão, mas não olhou para mim de novo. Em vez disso, cobriu o rosto com as mãos e bufou por entre os dedos.
- O que quer que tenha para dizer, – ele começou, e aparentava exaustão. –, não dá para esperar até o fim do jogo? Eu preciso impressionar os olheiros.
- Me desculpe, ... – Soltei o ar pela boca num riso meio incrédulo, meio irônico. – Eu só precisava mesmo olhar na sua cara e gritar uma coisinha ou duas. Mas uma mulher traída sempre pode esperar para explodir, não é?
- Uma mulher traída? – Repetiu ele, o rosto de sobrancelhas erguidas enfim alinhando-se ao meu. – , não fale como se eu tivesse cometido um crime grave.
- E como eu devo falar?
- Você não deve! – Ele socou o banco com uma mão. – Porra, esquece esse assunto! Eu já te contei tudo!
- Não é fácil para mim...
Mas ergueu-se do banco e avançou em minha direção. Tonta, cambaleei para trás, e o menino teve de me segurar pelo braço para evitar uma queda.
- O que foi? – Ele indagou, forçando preocupação. Um canto de seus lábios foi erguido, e segurou também meu outro braço, o rosto inclinando-se para frente.
- Eu bebi um pouco... – confessei. O jogador riu.
- Adoro quando você o faz, ... fica tão mais acessível.
Agitei-me na tentativa de livrar-me do aperto dele. franziu o cenho, usando mais força para que pudesse me parar e, ao conseguir, impeliu seu corpo para frente até que eu fosse obrigada a andar para trás, alcançando a parede mais próxima.
- Aonde foi que eu errei, ? – Cuspi a pergunta, meus olhos buscando nos seus o retorno que nem tão cedo eu iria obter.
- Em lugar algum... – Ele soprou, o nariz roçando em minha bochecha. – Você só tem acertado, . E eu estou louco para ganhar o jogo.
desceu as mãos até meus quadris para apertá-los num gesto dolorido e possessivo; respondi-o erguendo a cabeça para gemer em protesto, mas foi exatamente durante ele que tive meus lábios tomados.
Era aquele beijo de novo, a sensação ardente se alastrando e arrepiando meus pelos sensíveis. Eu queria permitir que sugasse minha língua, meu pescoço, mais embaixo e até além disso, mas ao mesmo tempo havia aquele fio de sanidade gritando o pecado que aquele tipo de contato poderia significar.
Eu já havia estado cara a cara com o perigo algumas vezes, mas não daquela forma. Não sabia se deveria culpar a mim mesma por ser tão fraca, a por subir minhas roupas e arranhar meu pescoço com seus dentes, à embriaguez por deturpar meus sentidos – sabia somente que precisava experimentar o que quer fosse que o garoto indiretamente prometia me oferecer. Queria saciar todo o desejo súbito e incontrolável que treinei para permanecer dentro de mim desde a semana anterior, mas falhei ao finalmente entrar em contato com outra vez.
Eu queria me render.
Beijei com a voracidade que meus instintos proporcionavam. Meus dedos subiram pelo peito dele, arrancando-lhe a camisa do time e então percorrendo minuciosamente sua pele para descobri-la de uma nova maneira. O garoto, ofegante, abaixou minha blusa e mordeu o bico de um de meus seios, puxando-o para si e fazendo com que eu gemesse numa interessante mescla de dor e prazer.
Nós não dissemos nada um ao outro. Em parte, minha falta de palavras inteligíveis devia-se ao medo de estragar um momento tão gostoso.
carregou-me até um dos chuveiros e fechou a porta de alumínio atrás de nós. Em êxtase, o garoto livrou-se de minha calça jeans e afastou minha calcinha antes de enfiar a boca no que havia sob o pano. Afundei as unhas em seus ombros e gemi alta e longamente, sem fôlego.
- Cale a boca, . – Ele ordenou, mas parecia dizer o contrário ao sugar com mais força. Apertei os dentes, mas os gemidos escapavam de qualquer maneira. – Cale a boca! – disse outra vez, e tinha razão, mas eu apenas não estava capacitada para obedecê-lo.
Então, trazendo minha calcinha consigo e pondo-se de pé, o garoto me beijou de novo. O gosto – meu gosto – era salgado e ácido; enquanto o sentia, tateei o tronco de até encontrar seu short, peça que puxei para baixo no mesmo instante.
Não havia cueca.
Quando apertei a carne de seu membro em minha mão, movendo-a de cima para baixo, mordeu meu pescoço e afundou os dedos em minha cintura.
- Você é tão gostosa... – ele disse, puxando-me contra si. – Puta merda, !
E então, enfiando a calcinha em minha boca e puxando uma de suas bordas para trás de minha cabeça numa mordaça primitiva, ergueu minhas pernas sem muito esforço, abrindo-as para que ele simplesmente se enfiasse ali, numa estocada só, nossas peles se atritando e o prazer se acumulando quando o garoto se movimentou.
Foi uma das sensações mais deliciosas que já experimentei. Com meus braços em volta do pescoço dele, ficou mais fácil para o menino ir cada vez mais rápido e fundo, envolvendo-me num aperto tão firme que chegava a ser doloroso. gemia de olhos fechados, seu rosto ficando vermelho e pingando suor. Quando se cansou, sentei sobre ele no chão, meus quadris em febre chocando-se audivelmente contra os seus antes que me segurasse, impulsionando-se para ajudar nos movimentos. Eu estava sugando seu pescoço e rebolando com velocidade alucinada quando o jogador urrou, prendendo meu corpo para que estivesse ao fundo dele quando derramasse seu gozo, que foi seguido pelo meu, forte e enlouquecedor. Mesmo minutos depois, quando fui largada ali com a iminência do jogo de lacrosse, a calcinha impedindo a propagação de meus gemidos, ainda me contraía pelo orgasmo.
Foi somente ao ruído de meu celular tocando, lá fora, que eu de fato me ergui do chão úmido, trôpega, e tirei a mordaça da boca.
Não poderia ter feito coisa pior.
- ? – Era Lynn do outro lado da linha, um barulho infernal por trás de sua voz gritante. – Você está na escola do ?
Engoli em seco.
- Sim, eu... eu estou. – Vesti a calcinha depressa. – Hoje é o grande jogo, lembra?
- Me encontre no último andar. – Ela ordenou. – Outra pessoa morreu.
Desliguei o celular e vesti as roupas o mais rápido que pude, meus dedos trêmulos procurando o distintivo na bolsa.
Deus, quando as coisas se tornaram tão cruéis? Enquanto, lá embaixo, eu revirava os olhos de prazer, nua, um indivíduo morria andares acima.
Subi os lances de escada correndo. O interior da escola estava quase que completamente escuro, mas uma luz ao fim do corredor e faixas isolando uma sala de aula indicaram-me o canto em que eu deveria agir.
Mostrei o distintivo antes de erguer a faixa amarela. Lynn estava lá, e esfregava as mãos uma na outra, denotando seu nervosismo.
- O nome dela é Jane – disse a mim quando parei em sua frente. Girei o pescoço para o lado, meus olhos comprimindo-se na tentativa de focalizar o cadáver ao fundo da sala.
Tratava-se apenas de uma menina. Quando me aproximei, tive a impressão de que Jane fosse ainda mais jovem que – era isso, pelo menos, o que anunciavam seus traços ainda rosados e angelicais. Cachos loiros moldavam seu rosto, e quando o toquei, foi para sentir a pele ainda morna sob meus dedos. Sequer havia o cheiro podre típico da morte, o que fortaleceu a ideia de que a garota havia morrido recentemente.
- Achamos isto caído no chão. – Lynn indicou uma seringa apoiada sobre a mesa à frente, a evidência recolhida num saco plástico. Parecia ter a ponta suja de sangue. – ... O nome dela é Jane Hawking.
Hawking.
Como a Sra. Hawking.
Sentindo meus lábios secarem, deixei a sala. Garotos do time já se aglomeravam lá fora, bem como professores e pais de alunos, todos querendo saber por que diabos a polícia estava ali.
Mas então alguém acenou perto das escadas, e mesmo estando sem meu óculos, tive a certeza de que se tratava de Radar. O garoto me chamou com as mãos, meio que em desespero. Hesitante, o segui, e assim fui levava de volta ao térreo, para a frente da escola e, finalmente, para a cena instigante que talvez fosse a que Victor pretendia me mostrar desde o princípio: eram e Brian – o tal do capitão do time que nas horas vagas vendia ilícitos – noutra discussão.
Mantive-me distante, escondida numa mureta. Não era como se pudesse ouvi-los, mas quando Brian empurrou numa árvore e bateu os pés para o outro lado da rua, o badboy subiu num veículo de apenas duas rodas.
Uma moto.
Sem conter a curiosidade, corri até a rua, meus olhos míopes comprimindo-se até que eu enfim verificasse o óbvio: os pneus de Brian deixaram marcas semelhantes às da cena do “acidente” da Sra. Hawking. Mais que isso – meus instintos aguçados arriscariam afirmar que eram as mesmas.

- O que você estava fazendo com aquele cara? – Berrei na cara de quando chegamos em casa naquela noite.
O adolescente jogou o equipamento de lacrosse no chão da sala antes de contorná-la para chegar até mim.
- Eu já disse! – Gaguejou. – Foi o Brian quem veio me provocar!
- É mentira! – Apontei um dedo para ele, acusatória.
- Então qual é a verdade, ? O que você quer que eu diga?
Passei uma mão pelo rosto, exausta. Todo aquele estresse certamente contribuiria para o aparecimento precoce de rugas.
Lembrando-me de como desviara o foco da conversa semanas atrás, quando eu falei sobre a menina Hawking, cuspi a tragédia em sua cara:
- Jane está morta.
arregalou os olhos, as mãos por instinto voando até seus cabelos. O garoto respirou alto com o susto.
- Não brinca com isso, ...
- Você acha que eu brincaria com trabalho, ? – Coloquei as mãos na cintura. – Ela morreu! A garota morreu e Brian está envolvido nisso, não está?
sentou-se no sofá, seus lábios resmungando palavras baixas que não fizeram sentido para mim. Ele balançou a cabeça por diversas vezes e, quando soluçou, eu quis sentir compaixão, mas tinha de me manter firme.
- Agora... – murmurei, sentando-me no braço do sofá. – A verdade, . Me diga a verdade.
- Brian era namorado de Jane, ... – ele me disse, nitidamente afetado. – Eu... sabe, eu tentei tirá-la de perto dele quando soube o que estava acontecendo, mas ela não deixou. Não confiou em mim.
Aguardei em silêncio, desnorteada por conta das possibilidades que minha mente criou. Nenhuma delas, entretanto, aproximava-se da verdade que proferiu:
- Ela vendia drogas para o Brian. Quando Amélia descobriu, deu o maior rolo, e ela estava prestes a denunciá-lo. Acho que por isso Brian provocou a morte dela e fez parecer um acaso...
- E como você sabe disso tudo? – Perguntei entredentes.
- Porque eu... – ele começou, os olhos se erguendo por um instante fugaz. – Porque eu também fazia isso.
Prendi a respiração, as unhas afundando-se nas palmas.
Não, .
Por favor, não.
- Eu também vendia drogas para o Brian, .
- Você o quê?! – Vociferei.
- Me perdoa...
Mas eu já o estava empurrando contra o sofá para que pudesse ver seu rosto. Sacudi o menino uma vez, grunhindo, e a raiva quase fez com que eu o esbofeteasse.
- Você acha que eu te criei por todos esses anos para isso, ?! – Berrei, já fora de mim.
- E para que você me criou, ? – Ele também estava gritando, e forçou o corpo para frente, desprendendo-se de mim numa afronta. – Para que eu fosse parar na porra da sua cama?
Ergui uma mão para pegar impulso, mas apenas deixei-a erguida no ar. chegou a se encolher, mas assim que lhe ofereci a oportunidade, distanciou-se.
- Você não entende! – Berrava, chorando. – Eu nunca consegui ser independente nessa cidade! Estava sempre à sua sombra, sempre era o pobre órfão criado pela policial. É por isso que eu nunca sequer consegui me manter num emprego! O que você queria que eu fizesse, ? Que me sentisse humilhado em todas as vezes que precisava pedir dinheiro ao Calebe ou a você? Eu não tive escolha!
- Não teve escolha? – Repeti, incrédula.
- Me perdoa, ...
- Vá embora daqui! – Ordenei sem dó, enfim. – Eu não quero saber aonde você vai se enfiar até o fim das aulas, mas vou comprar as passagens e te quero com a sua avó durante o verão e para sempre se você não for aceito em Cornell. Desapareça, ! Suma daminha vida!
Chorando, o menino se foi, mas largando ali os cacos de meu coração. Antes de efetivamente cumprir minhas ordens, contudo, fez uma denúncia anônima à polícia, e apresentara provas tão contundentes que, na semana seguinte, Brian foi pego.

2011
Debrucei-me sobre a janela do quarto e beberiquei o café contido na xícara. Era terça-feira, por volta do meio-dia, horário em que costumava chegar da escola. Eu quase podia ver o menino acenando para mim ao fim da rua; sabia até por quantos segundos ele, ofegando, se apoiaria nos joelhos antes de finalmente vencer o caminho até nossa casa.
Era de se esperar que eu fosse sentir a falta do não mais tão pequeno , mas nunca teria imaginado que a sensação fosse em demasiado desconfortável e dolorosa.
À princípio, no verão passado, a avó de ligou-me para saber o que havia ocorrido, uma vez que achara muito estranho o comportamento de seu neto. Eu disse a ela que tivemos uma briga, mas garanti-lhe se tratar de uma banalidade e contornei a conversa falando sobre Cornell – , no fim das contas, fora aceito na instituição.
Meses depois, quando minha fragilidade fora tanta que eu sonhava com o menino em quase todas as noites, não contive meus instintos e falei com ele através do Facebook. não ofereceu resistência, agindo comigo como os amigos que sempre fomos. Trocamos fotos, histórias, e ele me contou sobre como eram legais as coisas em Cornell; falou sobre os novos amigos, como estava lidando com o curso de Arquitetura, sobre o dia em que foi picado por uma abelha e parou no hospital por ser alérgico. Eu sempre lia seus relatos com avidez, aconselhando-o e insistindo em mandar algum dinheiro para que ele tivesse a condição de vida que desde pequeno lhe ofereci.
Quando me acertei com o menino, foi mais fácil para mim reorganizar a vida em Newport. Assumi mais algumas classes em St. Luke High School e, no resto do tempo semanal, dedicava-me de corpo e alma aos casos que me eram apresentados na perícia. De repente, até mesmo com Calebe eu já trocava algumas palavras, e passei a sair repetidas vezes com o detetive Connor Wheeler – fazíamos coisas legais juntos, como, por exemplo, sexo no estacionamento do laboratório de criminalística.
Era ótimo me sentir não bem espiritualmente outra vez. No entanto, era ainda um efeito muito novo, e por isso delicado. Então, quando surgiu em minha porta no verão de dois mil e onze, tudo se desmanchou.
O sorriso dele era grande e límpido. havia deixado seu cabelo crescer um pouco, e os fios negros caíam em singelas ondas sobre sua testa e cobrindo suas sobrancelhas. Os olhos azuis, por sua vez, me penetraram de uma maneira surreal, e no mesmo instante descobri neles certo toque de masculinidade que se completava no porte físico de seu dono – o rapaz definitivamente havia ganhado massa corporal, seus ombros descobertos explicitando tal fato.
Meu coração deblaterou dentro do peito, quase abrindo caminho para fora, e quando pulei no pescoço de , foi porque não poderia me conter por nem mais um segundo. Abracei com força o menino que eu havia criado, e ele retribuiu do mesmo modo, seus pés guiando-nos para dentro da casa e a boca juntando-se à minha assim que a porta foi fechada atrás de nós.
- , pare com isso... – Eu pedi num murmúrio rouco e inconvicto.
- Não me recuse, . Eu sei que você sentiu a minha falta... – A voz dele era tão grave e segura em meus ouvidos. As ondas sonoras vibraram e fizeram com que eu repetisse o feito, minhas costas involuntariamente se arqueando. , com uma das mãos espalmada em minha coluna, amparou-me, então juntou nossas bocas outra vez, roçando nossos lábios até prender o meu inferior numa sucção. – Eu amo você, . Está me ouvindo? Amo você.
Quando eu o beijei, foi impetuoso de um modo que eu queria muito poder esclarecer com palavras, mas não pude. Meu corpo inteiro parecia afetado por uma corrente elétrica – vez ou outra meus pelos se arrepiavam com violência, como quando imprensou-me na porta ou quando enlacei as pernas em volta de seu quadril, nossas intimidades apertando-se por sobre as roupas.
O garoto tomou meu corpo ali mesmo, sustentando-o contra a madeira fria e investindo com força até que eu estivesse gritando em seu ouvido e arranhando seus ombros. Eu não pensei em ou em Calebe, em Connor ou na ética que por todo aquele ano eu havia reconstruído e prezado para manter... não. Eu apenas sentia fundido a mim, seus murmúrios contra minha pele suada, seus dedos ásperos me apertando e me fazendo tão sua quanto eu jamais admitiria ser.
Eu o amava também. Amava o agora universitário que havia criado como um filho.

2011-2015
Eu, , fui uma das melhores alunas de Física em Brown. Ainda assim, aos trinta e cinco anos, não era como se eu pudesse calcular a força que o menino exercia sobre mim, mesmo com a noção de que era um número com muitas casas.
Tentei acolhê-lo em minha casa durante o verão de dois mil e onze, cuidar dele ao longo de seus meses de férias, mas não pude. Não da maneira que deveria fazê-lo.
- , isso tem de parar! – Eu disse a ele num dos primeiros dias. Abaixando a cabeça, o rapaz concordou comigo, mas horas depois meu corpo foi atraído pelo seu como se fossem polos magnéticos opostos.
Eu descobri um novo quando enfim cansei de resistir a ele. O universitário me dava segurança, e se tornou meu parceiro para tudo – ajudava desde a estruturação da casa até no alívio à tensão de meu corpo sempre que notava o estresse ocasionado pelo trabalho. Estávamos sempre grudados e rindo, massageando-me o corpo enquanto descrevia as situações inacreditáveis sobre sua vida em Cornell.
- Você se lembra de quando dançamos na minha festa de dezoito anos? – Perguntou-me no dia vinte e dois de junho, na mesa do jantar de aniversário que preparei a ele. Parecia alterado pelo vinho. – Você me tirou do sério com aquela roupa... E depois nós brigamos e eu só conseguia pensar no quanto você estava sexy apontando aquela arma para mim.
- Tenho um nome para isso. – Com o garfo, apontei para o rapaz. – Masoquismo.
riu, seu corpo impulsionando-se para o lado até que seus lábios roçassem em meu pescoço, distribuindo beijos pelo local.
- Amo você. – Para ele era como declarar um segredo, mesmo que há muito não mais o fosse. – Você me fascina.
Passei um braço por trás de seus ombros para que melhor me pendurasse nele.
- E como você espera que eu lide com isso, ? – Estalei a língua.
- Isso é problema seu... – Ele moveu os ombros, zombando de mim.
As consequências negativas de nosso romance, porém – os problemas que me rogou feito praga, mesmo que este não fosse de fato seu intuito – começaram a ocorrer num dos últimos dias do verão, quando o rapaz e eu estávamos sob uma coberta no sofá, fingindo ver um filme. Os lábios dele falavam sujo em meu ouvido ao passo em que seus dedos abriam meu short e se perdiam ali dentro.
E então Connor abriu a porta da sala.
Eu não notei a presença do policial durante o primeiro minuto, já que meus olhos estavam fechados e eu agarrava pelos cabelos, gemendo cada vez mais alto.
- ? – O detetive Wheeler chamou meu nome, seu timbre ligeiramente trepidante. Num impulso, me virei, e trocamos um olhar arregalado. – Meu Deus... – Ele disse boquiaberto, os pés arrastando-se para trás.
- Connor... – murmurei ao erguer-me do sofá.
Um dos meus seios estava para fora da blusa, meus cabelos bagunçados e o rosto quente – ao registrar estes detalhes, Connor Wheeler limitou-se a me lançar um olhar de desprezo antes de deixar a casa.
Corri atrás dele.
- Connor, espera! – Berrei, as mãos arrumando as roupas ao longo do trajeto.
- O que você quer, ? – Ele se virou, já no meio do jardim. – Eu não quero que você me explique nada, se é isso o que pretende fazer! Não sou um idiota!
A repulsa em sua voz e olhar eram quase palpáveis. Respirei fundo, as mãos gesticulando nervosamente.
- Me desculpe. – Fiz a besteira de lhe dizer. – Ia conversar com você, mas...
- A questão não é essa, ! – Ele me interrompeu, balançando a cabeça e rindo. – Não é por minha causa, não. Nós não tínhamos nada de muito especial.
- Então o que é? – Berrei.
- O que é? – Connor riu de novo, colérico. – , olhe em volta! Você fez questão de repelir o próprio Calebe por ter te acusado de transar com esse menino, mas no final ele e todos tinham razão. Isso me dá nojo! É como se fosse seu filho!
- Mas ele não é! – Rebati.
- Isso não te faz menos imunda, ! Olha o quanto você se afastou da ética! Ele é quase uma criança!
- Connor, eu...
- Por favor, não fale mais nada. – Ele negou com uma mão e, após suspirar, a passos rápidos dirigiu-se ao carro.
Naquele dia, depois de eu ter surtado e repelido tanto quanto pude, o rapaz me convenceu de que Connor estava apenas enciumado.
- Você não me ama, ? – Soprou em meu ouvido. Quando assenti, foi como se desse a liberdade para que o rapaz tomasse meus lábios com os seus, beijando-me até que nossos corpos rolassem na briga para saber quem sobrepor-se-ia aquela vez.
- Mas, ... – Minha mente, ainda assim, insistia em protestar. – Isso é só fantasia sua. Eu sou tão velha para você... – Sussurrei.
- ... – Ele suspirou antes de começar. – Independentemente da idade e de tudo o que já passamos juntos nessa vida... – Mesmo à meia voz, emanava tantos sentimentos que nada mais fez-se necessário para que eu percebesse a firmeza deles. Orgulhou-me, cativou-me; eu só queria ouvir mais. – Sei que posso suprir qualquer uma de suas vontades porque estou disposto a isso. Somos parecidos em nossas preferências e isso sempre vai nos favorecer, . Então esqueça tudo e fique comigo... vai dar certo. Nada nunca foi tão certo.
Seus beijos suaves descobriram, então, cada centímetro de minha pele, marcando-a para que, mesmo quando regressasse a Cornell – o que aconteceu na semana seguinte – eu não tivesse a chance de nem por um segundo esquecê-lo.
Nos vimos pouco naquele ano, bem como nos que o seguiram. vinha nos feriados, e vez ou outra aparecia de surpresa aos fins de semana. Ele já tinha vinte e um anos quando fomos ao cinema juntos pela primeira vez como um casal, de mãos dadas, e não demorou para que o boato se espalhasse com vigor por toda a cidade de Newport. Fui moralmente reprimida com igual velocidade – todos me olhavam com desprezo, até mesmo Izzy e Lynn, minhas supostas grandes amigas do laboratório com as quais fez questão de implicar, jogando em minha cara que jamais aceitariam nosso relacionamento. Quando me afastei de ambas, foi como se enfim eu tivesse alcançado a margem da sociedade. Perdi a todos, menos ao filho de .
Todos os dias de manhã, antes de sair para o trabalho, aplicava no pulso o perfume de meu menino. E então, sempre que escondia meu rosto de vergonha, ao menos sentia mais próximo a mim, o que me confortava, já que cria estar perdidamente apaixonada por ele.
Em dado momento, porém, viu como solução me levar para Cornell.
- Ninguém nos conhece por lá, ... – argumentou. – Podemos fugir, e ninguém mais nos julgaria.
- ... – Soltei o ar pelo nariz num riso incrédulo. – Só... Não!
- E por que não? – Ele quis saber, como se fosse um absurdo eu ter negado a possibilidade tão depressa.
- Pensei que você fosse mais maduro do que isso. – Lamentei, exausta.
E então foi embora, e não estabelecemos contato durante dias. Tendo o emocional corrompido, não levou muito tempo até que a falta do menino começasse a interferir até mesmo em meu trabalho. Eu estava cansada, sofria de enxaqueca na maior parte da semana e, para completar, veio a insônia.
- Você está legal? – Calebe questionou em meu ouvido certa vez, em reunião, e eu estava tão distraída que praticamente pulei de susto.
- Me desculpe... – sussurrei a ele, meio exaltada. – Está tudo certo comigo.
Mas não estava, e tenho certeza de que o doutor O’Hara percebeu isto naquele instante. Ele meneou a cabeça, como se assim pudesse me repreender, e no fim da mesma semana fui chamada à sala do chefe.
Calebe estava lá, de pé ao lado da cadeira principal, e foi ele quem pediu para que eu me sentasse no móvel vago.
- Srta. . – Fui cumprimentada.
- Sr. Vollger. – Estendi minha mão para que ele a apertasse. – Doutor O’Hara. Por que, exatamente, fui chamada aqui?
- Tenho... – Calebe limpou a garganta com um pigarro. Direcionou o olhar para o Sr. Vollger, que assentiu como se oferecesse a ele a liberdade necessária para que prosseguisse. – Tenho reparado diferenças significativas na senhorita.
Ergui as sobrancelhas. Era esquisito falar com Calebe de maneira tão formal, mas ele me olhava de um jeito muito diferente, como se de fato estivesse fazendo um diagnóstico.
- Que tipo de diferenças? – Indaguei, curiosa, minhas pernas se cruzando e minhas mãos apoiando-se no joelho mais próximo.
- Você emagreceu... – ele começou devagar.
- Não sabia que era pago para avaliar o físico das peritas, doutor O’Hara, mas muito obrigada pelo elogio. – Alfinetei-o com o tom ácido seguido por um sorriso.
- Por favor, Srta. ... – Calebe pediu. – Somado à sua magreza, temos o fato de que a senhorita anda muito desatenta. Tem olheiras, não pega nos objetos com firmeza, e tínhamos tudo para acreditar que era algum problema pessoal fugaz. Mas então isto começou a interferir na qualidade de sua atuação como perita.
- O que não é aceitável. – Acrescentou Sr. Vollger. – E por isso, , terei de afastá-la do cargo.
Foi como se meu mundo tivesse parado, mas a lei da inércia obrigou-me a continuar indo para a frente. Puxei o ar com força para dentro dos pulmões, e estava tão desnorteada que me ergui da cadeira.
- O senhor não pode fazer isso! – Protestei. – Eu não... eu nunca...
- ... – Calebe venceu os passos até mim e segurou um de meus braços. – , você sabe que é melhor se afastar por um tempo. Convenci o Sr. Vollger a te dar férias, e então você vai poder cuidar de todo esse estresse antes que ele se torne uma falha psicológica grave. Tenho certeza de que a profissional incrível que você é ainda está em algum lugar aí dentro... está tendo a chance de resgatá-la, . Por favor.
- Calebe... – balbuciei, a boca seca. – Por que você fez isso? Eu estou bem!
- Não está, ! E eu tinha de te guiar até a verdade que você precisa ouvir!
- Eu vou deixá-los a sós. – Anunciou Sr. Vollger. – Dê uma água a ela, doutor.
E Calebe o fez.
Enquanto o líquido descia por minha garganta, esforcei-me para compreender, mas era difícil fazê-lo sem culpar a . Sem, num surto, culpar a mim mesma.
- Me desculpe por ter sido assim, ... – O’Hara disse algum tempo depois. – Eu sempre disse a você que era preciso um intenso preparo psicológico antes de decidir viver dessa maneira, não disse?
Sim, ele havia dito, mas eu achava ser forte o bastante. Jamais pensei que chegaria ao ponto de reconhecer a mim mesma como uma mulher insuficiente, fraca... talvez beirando a insanidade.
Ao encontrar-me com , horas mais tarde, na porta de casa, eu soube que precisava finalizar aquela loucura.
O rapaz, da varanda, sorriu para mim, acenando. Quando não retribuí, ele ergueu-se para vir ao meu encontro – aparentava preocupação.
- Há algo errado? – Perguntou, os dedos tomando minhas frias mãos.
- Estou voltando do médico... – Mordi o lábio inferior, a amargura fazendo com que eu balançasse a cabeça, rindo. – Ele disse que eu tenho um problema, , e eu percebi que só podia estar falando de você.
- O... O quê?
- Quero que você vá embora hoje, . – Fiz soar como um pedido calmo, mas era uma ordem determinada e irrevogável. O rapaz comprimiu os olhos, confuso, e afundei-me neles para prosseguir de modo que nunca duvidasse da firmeza com que eu o fazia: – Quero que volte para Cornell, que arrume uma namorada, que desapareça. Essa situação não pode e não vai continuar se eu puder impedi-la.
Passei por ele e segui para dentro de casa. demorou um pouco, mas logo veio ao meu encalço, em desespero.
- Vai ficar quieto, amorzinho? – Perguntei, meio irônica, quando soube que ele estava próximo o suficiente para me ouvir.
bateu a porta com uma força além da necessária, como se estivesse realmente odiando a situação, mas eu não poderia ligar menos para seus acessos de raiva. Ele poderia explodir a casa e nem isso me faria mudar de ideia.
- E o que você quer que eu diga, ? Que tudo isso foi um erro? Que eu não deveria me apaixonar por você e que não sou nada além de um menino mimado? – gritava como se isso tirasse um peso de suas costas. Ele tinha um semblante de puro sofrimento e eu sentia meu coração apertar minimamente por isso, mas o estrago estava feito. Nada poderia consertar a bagunça em que nos metemos. Era hora de colocar um ponto final, de acabar com tudo.
- Não quero ouvir suas desculpas esfarrapadas para toda essa confusão! Suas tentativas de justificar esse relacionamento doentio! Cansei de tudo isso, cansei de você! Consegue entender?
Ele soltou uma gargalhada sarcástica demais para o meu gosto e revirou os olhos, jogando as mãos para cima em sinal de rendição.
- Você adora jogar na minha cara que tem mais experiência, que sabe mais da vida, mas parece exatamente com o tipo de menininha mimada que tanto abomina. Não quer ouvir, não quer discutir o que temos, não quer salvar nosso relacionamento. Estou impressionado, . Pensei que você fosse mais madura do que isso. – Ele citou as mesmas palavras que eu lhe disse semanas atrás, quando tivemos outra discussão. Respirei fundo, massageando as têmporas e tentando me controlar.
- Não quero discutir porque esse relacionamento não existe. Não temos compromisso, não temos nada além de uma relação jurídica, que por sinal acabou faz algum tempo. Uma assinatura em um papel define o que temos, . Não seus sentimentos e fantasias de menino.
- Fantasias que você adorou realizar, não esqueça essa parte.
Minha tentativa de controle foi em vão: bati em seu rosto com toda a força que poderia. Eu já estava perto do limite e ele pressionava cada vez mais. Não queria quebrar, não queria sucumbir a todo esse estresse. Não queria perder a cabeça e a razão, dando motivos para pensar que eu estava apenas com medo e que ele poderia driblar meus pensamentos como fez em todas as outras vezes.
- Chega. Pegue suas coisas e suma da minha vida! Eu nunca mais quero ver sua cara de novo, me entendeu? Meu compromisso era com a sua mãe! Fiz o que fiz por ela, pela amizade que tínhamos. E, graças a Deus, minha responsabilidade com você acabou no segundo em que você fez 18 anos. – Respirei fundo, afastando-me. – O que você acha que ela pensaria disso tudo, ? O que você acha que diria ao saber que eu, a mulher em que ela confiou para criar seu filho depois de sua morte, acabou não por educá-lo, mas por levá-lo para a cama?
- Ela pensaria que nos apaixonamos, como todo e qualquer casal. Minha mãe nunca nos condenaria por isso e você sabe. Ela foi mãe solteira, nunca teve ninguém além de você para ajudar. Ela confiava em você e por isso te designou como minha tutora caso algo acontecesse. Você fez um trabalho maravilhoso, mas não conseguiu evitar com que nos aproximássemos. Essas coisas acontecem, . – se aproximou, pegando minha mão e fazendo aquele carinho que eu tanto gostava. Tentando me acalmar, fazer com que eu mudasse de ideia, mas dessa vez não tinha volta.
- , por favor. Não dá mais. Eu não consigo aguentar. Não quero que entenda ou que concorde. Eu só preciso que respeite e que você vá embora. – As lágrimas corriam soltas e eu já não tentava esconder que aquilo estava me machucando mais do que deveria. Era ali. O filho de , minha melhor amiga. O menino que segurei em meu colo no dia em que nasceu. A criança que caiu em meus braços quando tinha oito anos e eu vinte e três, que cuidei como se fosse meu filho. O garoto que eduquei, que busquei na escola, que levei ao médico, que esteve comigo em todos os momentos. Meu pequeno amiguinho que me consolou quando perdi minha melhor amiga, mesmo que ele tivesse perdido a mãe.
Mas, ao mesmo tempo, era . O garoto extrovertido e companheiro, que sempre me ajudou, que sempre esteve ao meu lado, que fez questão de conhecer cada homem com quem eu saía. O garotinho que cresceu. , agora um homem de 23 anos que estava ao meu lado, acariciando minha mão, pedindo para ficar. Ficar para o resto da vida. O homem que me fazia completa, que me amava, que me aceitava com todos os meus defeitos. Mesmo com meus 38 anos e uma bagagem imensa nas costas. O cara que admirava minha experiência de vida e que lutava comigo quando tínhamos um problema. , o homem que eu amava, mas com quem nunca poderia ficar.
Ele beijou minhas lágrimas cuidadosamente, descendo para os meus lábios em um pedido silencioso e sofrido. Deixei que nossas línguas se cruzassem, misturando amor e saudade. Mas, enquanto o beijo dele tinha gosto de reencontro e esperança, o meu tinha gosto de adeus. Puro e doído adeus. Embrenhei meus dedos em seus cabelos escuros quando puxou meu corpo, moldando-o ao seu próprio.
Lágrimas ainda saltavam dos meus olhos e eu tentava gravar todo e qualquer mínimo detalhe daquele corpo, daquele beijo, daquele homem que roubou meu coração.
- Não quero que isso seja um adeus. Eu amo você. Mais do que deveria, mais do que se pode amar alguém. – Ele roubou um selinho e encostou a testa na minha, misturando nossas respirações ofegantes e sofridas. – Por favor, . Eu sou seu, para sempre. Por favor, esqueça tudo o que está perturbando sua cabeça. Esqueça o que as pessoas pensariam, o que diriam. Deixe que falem. Nenhum deles tem algo a ver com o que apenas nós dois sentimos e entendemos. Por favor, seja minha.
- O problema é exatamente esse. – Falei com pesar, olhando em seus olhos azuis e gravando cada risco em sua íris. – Eu não entendo o que temos. Nunca consegui entender. E é exatamente por isso que precisamos nos separar. Desculpe, mas eu não consigo mais. – Me desvencilhei de seu abraço e corri a mão na linha de seu maxilar uma última vez. deixou que uma lágrima solitária corresse por seu rosto e tentou segurar minha mão, mas eu já estava longe demais para que ele pudesse me alcançar.
- Eu sempre estive tentando medicar você... – ele murmurou pesaroso, os braços em torno de si mesmo no que pude definir apenas como fragilidade.
- Não, meu amor... – Meneei a cabeça e umedeci os lábios. – Você é a erva venenosa da qual eu sou alérgica. E isto é uma terrível crise.
- ...
- Adeus, .
Quando apontei para a porta, meus dedos estavam trêmulos. olhou-me daquela sua característica maneira penetrante, mas seus orbes azuis faiscavam com a iminência das lágrimas.
Então meu menino vestiu suas asas e saiu para o mundo em voo solo.

Meses depois
Depoimento de Victor Morschel

Diante daquele cenário mal focalizado por minhas retinas deficientes, as frequências que antes costumavam determinar a sensação das cores pareciam ter desistido de oscilar entre si. Não havia mais do violeta ao vermelho; eram, somente, o branco – união de todos os nuances – e o preto – sua ausência.
- Não foi uma decisão repentina... – Foi o que o homem sentado à direita disse. – Eu o estudei, porque isto é o que aprendi a fazer, e descobri que seu comportamento indicava um risco. Mas então, quando busquei ajuda... – Ele riu de uma maneira áspera, os fios meio longos de seu cabelo agitando-se. – Digamos que o detetive Wheeler tenha sido negligente por n motivos, inclusive alguns pessoais. Por isso tive de tomar aquela atitude violenta: tinha de salvar o dia. Não é mesmo, ?
Semicerrei meus olhos. Onde estavam os meus óculos? Tudo parecia tão nublado.
- Faça um esforço, ... – Uma voz macia soprou as palavras em meu ouvido. – Você não se lembra desse moleque infeliz? É o Victor... tente imaginá-lo comendo alguma porcaria. Ou com um bastão de lacrosse em punho.
Victor não – Radar.
Eu me lembrava.
E queimava como no ponto mais profundo do inferno.

Minhas mãos estavam frias. Tentei movê-las, mas alguma coisa apertou-se contra meus pulsos, machucando-os. Abri os olhos com força, mas só havia a mórbida e plena escuridão.
- Você sabe, mamãe... – Uma voz cortou o ar para ser pega através de minha percepção auditiva. Seu timbre era calmo, mas de uma mágoa e amargura tão intensas que afetaram negativamente meu interior já tão apavorado. Era . – Não se pode abandonar um filho. Não é sua escolha torná-lo órfão. A não ser, é claro, que esteja se suicidando.
Por algum motivo irracional, tentei gritar, porém algo em minha boca impedia a saída do som. Debati-me.
- Algum dia... – Pausou a fala para que fungasse. – Algum dia vamos nos encontrar, ... e em uma terra que não admite despedidas. – Recitou em tom dramático, sua pele assustando meu corpo em alerta quando o dedilhou. – Vamos passear de mãos dadas novamente... Porque Deus aprova nossos feitos.


- Eu me lembro de uma vez, quando fez dezoito anos... – explicava o menino Radar, gesticulando quase que tão freneticamente quanto as batidas descompassadas de meu coração. – deixou que déssemos uma festa; não ia fiscalizar, nem nada, mas insistiu que ela ficasse e, na manhã seguinte, fotos dos dois dançando vazaram. Foi aí que eu ouvi o termo que estudei a fundo em meus anos de faculdade: O Complexo de Édipo.

- ? – sussurrou quase que ininteligivelmente, e eu o ouvi apenas porque o rapaz se esgueirara para mais próximo de mim, o calor de seu corpo queimando o meu. – Você se lembra quando foi que minha mãe morreu? – E fungou uma vez mais.
Eu não sabia o que estava acontecendo. Tinha noção de estar presa à cama, amordaçada, sem poder contar com grande parte do campo sensorial.
Fodida.
Submissa.
O que não compreendia, no entanto, era o porquê.
- Um, zero... – disse, seus lábios pressionando meu pescoço e rindo contra minha pele exposta. – Zero, quatro – prosseguiu, seus dedos espremendo meus seios como se ali houvesse os números para discagem. – Dois, zero, zero e, finalmente, zero.
Ele estava enlouquecendo?
Num estalo, as coisas começaram a fazer sentido.
Aquela era senha do cofre onde eu guardava minhas armas.


- Não achava que chegaria a esse ponto. Para ser honesto, não acreditaria se me dissessem que de fato permitiu que tivesse um ponto. Mas eu vi com os meus próprios olhos... E era tão esquisito, porque desde sempre eu ouvia falar com devoção sobre . Quando ela o deixou, vi meu velho amigo se afundar nas drogas e tive medo das loucuras que ele ameaçava fazer quando estava sob efeito de alguma coisa. Mas aí passou a não mais precisar de ilícitos... E, torno a dizer, tive de salvar o dia.

Com os olhos arregalados na tentativa de descobrir algo na escuridão, ouvi meu celular tocando várias e várias vezes. Agitei-me na cama, minha garganta trabalhando arduamente para vencer o obstáculo que era estar amordaçada, mas então meus gritos e os de se mesclaram, e foi como um concerto.
Meu menino andava a passos fortes pelo recinto, chorando, esperneando, fazendo pirraça e, então, no apogeu do espetáculo, destravando uma arma.
Ao som do disparo, porém, nada senti.




Fim.



Nota da autora: Assistam ao trailer da história!



Outras Fanfics:
Amplexo Mortífero
02. Problem


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