Finalizada em: 20/04/2021

Capítulo Único

Era março e chovia como nunca. Talvez tivessem acertado quando falaram que março trazia diversas águas, assim como lembranças.
As crianças corriam pela casa imitando algum personagem de desenho que elas gostavam que eu nem ousava lembrar o nome, porque eram tantos, enquanto arrumava a estante da sala. Ali tinham coisas que eu não tocava havia anos, livros, CDs, cadernetas, e no alto dela, uma caixa pequena. Sorri assim que coloquei as mãos nela, era a caixeta de lembranças da época da faculdade, 10 anos atrás.
Abri e parecia que a chuva tinha feito transbordar de lembranças na minha cabeça. A foto que estava logo em cima era de um casal. Uma menina sorrindo, usava um vestido azul marinho, colado, cabelo solto e batom vermelho, minha melhor amiga, , e ao seu lado, o rapaz usava uma blusa vermelha de manga curta, calça jeans, Vans, o cabelo meio bagunçado e a barba por fazer.

~*~

Março de 2012

- Você é uma egoísta, . É exaustivo pra porra amar você, porque eu não acho que você saiba amar alguma coisa. - saiu do apartamento, batendo a porta com uma força desnecessária.
queria ir atrás dele. Queria dizer tudo o que estava preso em sua garganta, mas o corpo da negra parecia não obedecer aos seus próprios pedidos. Ela tinha passado a impressão totalmente errada para .
Trovões e raios invadiram os céus avisando que a chuva forte se iniciava, enquanto ela apenas sentou no chão e chorou.
tinha certeza que o tinha perdido. Tinha perdido o único cara que se importava com ela. O único homem que a amava com todo seu coração e mente. Tudo porque nunca conseguia dizer aquelas três palavras, por ter medo dele quebrar seu coração e ir embora assim que ela proferisse.
Mas realmente tinha ido embora, mesmo sem nunca ter escutado um "eu te amo" da parte de . A negra escutou o soar da campainha e levantou, apressada, ele tinha voltado.
- ... ?
- Que porra aconteceu com você? - não precisou responder, jogou-se nos braços do seu melhor amigo, com as lágrimas tomando conta de si.
- Ele foi embora, .
- ?
- Ele bateu a porta e não voltou.

~*~

era minha melhor amiga desde que tínhamos 15 anos e em todos aqueles anos de companheirismo e irmandade, vi todas as fases de . E aquela fase da foto foi a que mais mudou.
antes de ser metida a durona e desapegada, era doce e apaixonada. Chegava a me preocupar certas vezes com toda aquela paixão que ela tinha pelos caras que se metia, parecia um desespero para ser amada e desejada que acabava sempre deixando-a machucada. E até que um dia, ela não aguentou. Um mau caráter cruzou seu caminho, prometendo oceanos e mundos até conseguir o que queria, levá-la para cama. foi abandonada um dia depois que transou com ele e desde aquele momento, se transformou. passou de doce e apaixonada para uma pessoa que não se importava com quem estava, queria suprir seus desejos e só. Era uma verdadeira quebradora de corações.
Até que chegou com seu ar de estudante de Direito e conseguiu despertar em muito mais do que a vontade de ter só mais um cara no final da noite em sua cama. Ele mexeu com a cabeça da minha melhor amiga mais do que aquelas fórmulas horrendas que o curso de Engenharia Mecânica tinha. Foi a primeira vez que vi me pedir conselhos sobre um cara. Foi a primeira vez, depois de anos, que a vi sorrir com uma mensagem e ficar puta da vida com a falta dela. Foi a primeira vez que a vi trocar uma balada por uma ida ao cinema, um barzinho no final da aula para comer em algum restaurante. Foi a primeira vez que a vi amar alguém, mesmo nem ela sendo capaz de perceber isso.
Ela ainda era a mesma que só queria ser amada de verdade, mas nunca iria demonstrar.
Porque amar era fraqueza.

~*~

- Você pode respirar um pouco, por favor? - pediu pela décima vez, tentando acalmar a melhor amiga que ainda estava em prantos.
Então desistiu de fazê-la parar de chorar e só a abraçou. Talvez fosse aquilo que ela precisava após tudo o que estava acumulando dentro de si durante os anos.
E então, o choro cessou. o deixou na sala da sua casa sozinho e trancou-se no quarto, ficando ali por mais de meia hora. Não ousou perturbá-la, a conhecia muito bem para saber que deveria estar pensando em alguma coisa para tentar resolver a situação em que tinha se metido. Ela amava , mesmo não sabendo como dizer aquilo a ele.
- Eu não vou mais esperar, . - Decretou assim que saiu do quarto com um papel na mão. não esperou que o amigo falasse algo, apenas saiu.
saiu de casa sem um tostão então teve que andar cinco quadras embaixo da chuva monstruosa, até chegar em frente ao prédio de lajotinhas vermelhas que conhecia muito bem. Ivan, o porteiro, nem se incomodou em anunciar sua subida, ele já a conhecia de tanto que frequentava o apartamento de .
entrou no elevador e apertou o doze e em menos de um minuto já estava na porta do apartamento 1012, com a porcaria daquela maldita dúvida martelando em sua cabeça, "será que devo entrar ou não?". Mas seu impulso foi mais forte e o dedo indicador começou a apertar freneticamente o pequeno botão branco. Em segundos, abriu a porta com uma expressão de raiva, mas, assim que a viu, sua expressão ficou confusa. Era como se ele fosse um mistério que conseguia decifrar.
- O que você está fazendo aqui? Aliás, por que a tua maquiagem tá toda borrada, teu cabelo tá um negócio estranho... Você estava na chuva, ?
- Estava.
- Você é doente, porra? Você não sabe que tem problemas respiratórios? Esqueceu do dia que fomos para a praia à noite?
- Não. Eu fiquei espirrando a noite toda.
- Você não me deixou dormir. - Lembrou e riu, sendo acompanhado pela menina, mas logo ficaram em silêncio. - Enfim, o que você está fazendo aqui?
- Quer a verdade?
- Por favor.
- Eu não sei. - Respondeu e ele fechou a cara.
- Imaginei que não soubesse. Vai querer que eu chame um táxi para você voltar?
- Por que você está me tratando assim?
- Isso não é nem o terço que você fez comigo. Aliás, nós acabamos.
- Nós não acabamos. - respondeu firme e rápido, e ele deu uma risada irônica. - Isso é para você. - Falou e estendeu o papel que estava no fundo do seu bolso, por sorte não estava tão molhado.
- Uma carta?
- Só lê, por favor?

"Meu anjo.

Chega até ser agoniante ter que te escrever algumas palavras para conseguir, ao menos, dizer o que eu realmente sinto por ti. Me desculpa, mas eu não sei. Não sei por onde começar, como continuar ou até mesmo como finalizar isso daqui. Mas uma certa pessoa disse que quando queremos uma coisa, devemos insistir até o último instante e é isso que estou tentando fazer. Insistindo mesmo quando parece que eu vou falhar. E eu estou querendo que você insista no seu erro também.
. Por que você apareceu? Por que você insistiu em mim? Por que você me quis mesmo sabendo que eu era uma filha da puta e nunca seria merecedora do que tens para me dar? Por que você não foi capaz de só transar comigo naquela noite e me deixar desaparecer na manhã seguinte? Volto a perguntar, por que você insistiu em mim?
Eu ‘tô acostumada a ter pouco, . Não que isso seja uma desculpa para os meus atos, mas eu já amei alguém. E eu me machuquei por isso e me prometi que jamais iria deixar alguém fazer aquilo de novo comigo. Eu me acostumei a não ter ninguém para dormir junto todas as noites, a acordar sem um rosto ao meu lado, me acostumei a ser sozinha. Só que você apareceu e fez com que tudo que eu estava acostumada, desaparecesse.
Você chegou e fez, o que eu jurei nunca mais fazer, acontecer. Você fez eu gostar de estar com alguém, você fez eu começar a escutar Indie, você fez com que eu trocasse o bar por um restaurante de comida japonesa, você fez com que eu saísse da balada e fosse para uma sala de cinema. Você fez com que uma garota com mágoas do passado, voltasse a acreditar, a ter fé no amor.
Sim, é isso mesmo. Amor. É esse negócio complicado que, às vezes, dói e, no instante seguinte, te faz querer beijar a pessoa e não sair de perto dela nunca. Você conseguiu trazer de volta aquelas malditas borboletas no estômago, você conseguiu me deixar sem fala, você conseguiu fazer com que eu te amasse. Eu te amo mais do que um dia eu sonhei que poderia amar alguém. E a cada dia que passa, esse sentimento só cresce, porque dentre todos os meus erros, você foi o meu único acerto."

- Só me responde uma coisa. - quebrou o silêncio depois de longos minutos, que pareceram horas.
- O quê?
- Isso tudo é verdade?
- Cada palavra.
- Então diz. - Se aproximou da mulher e os dois não se atreviam nem a piscar. As respirações descompassadas de ambos eram audíveis. - Diz, . Nós dois somos adultos, porra. Podemos mostrar como nos sentimos.
- . - Fez uma pausa que pareceu ser uma eternidade para o futuro advogado. - Eu não quero dar a impressão errada, não quero parecer desesperada. Eu… eu preciso de amor e carinho. - Respirou fundo e então, tudo saiu de uma forma que ela nunca nem imaginou. - Eu preciso de você. Pensei que pudesse ficar sem você, que tudo seria só sexo, que nada do nosso relacionamento iria me afetar e eu já estava planejando ir embora, simplesmente, porque pensei que nada iria durar. Mas você fez questão de mudar tudo. Você fez com que não fosse só sexo, você fez com que eu me sentisse uma pessoa melhor com sua presença. Caralho, você leu Romeu e Julieta para mim. Você foi a única pessoa que eu tive a paciência de ensinar a fórmula que estava escrito na minha apostila. Você é a única pessoa que entende meu fascínio por carros.
- ...
- Você foi o único que me desejou do jeito que eu sou. O único que fez questão de me ter ao seu lado e é o único que eu realmente quis ter bem mais que uma transa.
sorriu de canto, e a puxou fortemente pela cintura, fazendo com que seus corpos se juntassem, segurou sua nuca e ela passou seus braços pelo seu pescoço. E então seus lábios estavam em perfeita sintonia.
- Eu só vou te perguntar mais uma vez. - Wilian disse ao interromper o beijo.
- O quê?
- Você aceita namorar comigo?
- ... Eu sou toda errada.
- Você aceita ou não aceita?
- Aceito. - Respondeu e pôde ver seu rosto se iluminar.
puxou seu lábio inferior e, em segundos, estavam entregues a outro beijo. Suas mãos percorriam por todo o corpo da negra e as dela faziam o mesmo percurso pelo seu. Em poucos instantes as roupas já estavam jogadas em qualquer canto da sala de estar e, como se já fosse a sina dos dois, eles eram um do outro.

- ? - perguntou enquanto a mulher se aninhava em seu corpo no sofá.
- O quê?
- Você é o melhor acerto que eu já cometi.

~*~

e podiam não ser um exemplo de casal para um monte de gente. Não eram do tipo de textos enormes e declarações em público, os dois eram loucos. Cometiam tantas loucuras que chegavam a fazer inveja para aqueles que se dizem sãos. Eles se completavam mesmo com todas as diferenças que existiam entre eles. e podiam até não ser um exemplo de casal, mas eram um exemplo de amor.
Aquele amor que enfrenta tudo e que nunca desiste, independente da circunstância. O cara que tinha medo que só quebrasse o coração da menina que não tinha medo de nada, tornou-se seu marido. Eles estavam juntos há nove anos.
casou em uma igrejinha, com poucos convidados, a cerimônia foi linda, a lua de mel dos dois foi um mochilão pela Europa, que durou cinco meses. tornou-se um advogado respeitado e professor de História do Direito na Universidade de São Paulo, conseguiu realizar seu sonho de ser uma engenheira mecânica conhecida, trabalhava em uma grande marca de carros (e era dona de um de dar inveja). Eles tinham conseguido realizar todos seus desejos profissionais e pessoais, que nem cogitava anos atrás.
Ela era mãe. Eles tiveram uma menina linda chamada Alice e os três estavam a caminho da minha casa para buscar João e Fernanda.
Levantei do sofá ao escutar a campainha tocar acompanhada do grito de felicidade das crianças, que sabiam que iam passar, e assim que abri, e estavam lá com Alice no colo. Entraram sem cerimônia, afinal, eles eram de casa.
- Cadê os dois, ?
- Devem estar se arrumando ou brigando.
- Papai, eu quero brincar com meus primos! - Alice ordenou e a colocou no chão. Ao mesmo tempo em que se parecia fisicamente com o pai, era geniosa tal qual a mãe.
- , se essa menina cair, você vai juntar, entendeu?
- Eu tenho culpa dela ser igual a você e tropeçar na sombra? A filha é sua.
- Ah, é. Eu fiz sozinha, com o dedo, né, palhaço? - perguntou e riu alto, roubando um beijo. Ri ao presenciar a pequena cena, mesmo depois de tanto tempo eles ainda eram os mesmos.
- Olhem o que eu achei. - Dei a fotografia para .
- Meu Deus, isso faz muito tempo.
- Faz mesmo. - concordou, pegando a foto da mão do marido. - Mas parece que algumas coisas não mudaram em nada.
E ela tinha razão. Tem coisas que não mudavam nunca e nós éramos a prova viva daquilo. Minha amizade com só cresceu, assim como o amor dos dois também. Mas o cabelo bagunçado de junto de sua barba por fazer continuaram, assim como o batom vermelho inseparável dela. Tal qual na fotografia de nove anos atrás.





FIM.



Nota da autora: Sem nota.

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