Última atualização: 04/11/2019

Liberdade

Fogo. Era de conhecimento geral de que qualquer criatura em um filme de terror poderia morrer queimada. E o fogo haveria de levar a criatura que a aterrorizava também. E se aquilo fosse a cena de um filme noir, ela acenderia um cigarro nas chamas que crepitavam e luziam irregularmente, alongando sua sombra na grama, mas ela não fumava. Sequer sabia como tragar e tampouco levava jeito para ser a morena misteriosa que tentava matar o protagonista.

A madeira estalando enquanto queimava e o clarão das chamas que lambiam a casa na qual viveu pelos últimos vinte anos deviam deixá-la apreensiva. Estranhamente, estava finalmente liberta. A maldição que a prendia naquela casa tinha sido quebrada com fogo. O calor até fazia a sua pele suar, mas como tinha ansiado por ver aquela casa queimando…

E o engraçado é que sempre sonhou com uma casa daquelas. Para si, de qualquer forma. Madeira branca do lado de fora, janelas altas, uma varanda na parte de trás. O sonho tinha virado pesadelo. Ao longe, a sirene do corpo de bombeiros a acordou. A cena do crime foi deixada para trás. Ela nunca olhou por cima do ombro, para o seu antigo lar que se incendiava irremediavelmente. Tinha matado alguém naquela noite: ela mesma.

Ou a sua antiga versão, de qualquer forma. apertou o passo, passando despercebida por entre os curiosos que começavam a sair na rua, tentando ver o que acontecia ali. O seu passado estava ali: enterrado entre os destroços, convertido em cinzas.


Conflito

Torcer as mãos era um sinal de nervosismo. Eu sabia disso e a terapeuta também. me atende há um ano, mas nunca conseguiu tirar nada muito significativo de mim. Você sabe como é: anos se portando como uma boneca sem personalidade e você aprende a guardar alguns segredos.

Durante muito tempo, achei que não tinha uma personalidade. Ou, melhor dizendo: que não tinha apenas uma personalidade. Sempre fui várias, tinha uma facilidade enorme de adaptação e carisma para dar e vender. Para cada situação e momento, eu tinha uma maneira de agir. Não era de propósito e eu não tinha me atentado a isso por muitos anos. Até que ela me mostrou isso.

Ela não estava mais em minha vida, mas eu via sombras dela em todos com quem me relacionava. É estranho, algo que deveria ser discutido com a minha terapeuta, mas ainda não estou pronta para contar a ela sobre . Receio que, ao abrir essa porta, eu não consiga fechá-la depois. Acho que, em algum ponto da minha mente, eu acho que ela ainda está lá fora ou que ela poderia me achar aqui, se quisesse. O Canadá não é tão longe assim da nossa antiga casa, eu sei. O absurdo disso é que eu ainda penso nele como alguém vivo, ainda mais quando a vi morta.

deveria desistir de mim. Simplesmente desistir. Desistir de mim seria apenas temporário. Eu me reinventaria, mudaria de aparência, escolheria uma nova personalidade. Sempre fui uma mestra em me reinventar, mas eu realmente queria tentar.

Não gosto de ficar sozinha. Antes de Pierre, meu último casinho do Tinder, diversos outros homens passaram pela minha cama. Acabei afastando todos eles da mesma forma: quando não era carente ou grudenta, era fria demais e eles acabavam percebendo isso como desinteresse. Eles vem e vão todos os dias e eu não sinto falta deles, eu só não gosto de ficar sozinha.

Posso agradecer por isso, por ter me quebrado dessa forma. Eu não me importava muito com isso antes, mas não consigo voltar a ser quem eu era antes de tudo. Talvez minha terapeuta conseguisse me ajudar, mas não sou honesta o bastante com para esperar que ela performe esse pequeno milagre.

Sete anos desde que toquei fogo à nossa casa. Sete países onde me reinventei a todo custo. Sete tentativas para uma vida normal. Sete fracassos. Sendo justa comigo mesma, não é de todo culpa minha. A culpa é dela por ter me quebrado. Eu tenho culpa por me segurar ao passado, por mais que eu sempre tente seguir em frente, é verdade. Tenho culpa em não conseguir varrer para longe da minha mente. Às vezes, quando faço algo errado, como derramar café ou derrubar algo no chão, posso ouvir a voz dela.

Tão sem jeito, . Foi assim que te ensinei?


Eu costumava rir. Costumava agradecer por ter em minha vida. Ela era, pra mim, a pessoa mais importante, o ponto alto de todos os meus dias, pra quem eu corria para contar qualquer coisa. Amei com todo o meu coração. De alguma maneira doentia e obscura, ainda amo. Sei que o meu sentimento por ela não vai embora. Eu já tentei, mas parece tão cruel me desfazer disso.

— Você está mais quieta do que o normal, .

é paciente. Se eu não falar nada, ela não me pressiona. Ela sabe que eu eventualmente acabo cedendo. Mesmo que não conte a ela sobre meu problema principal, conto anedotas do dia a dia para mantê-la ocupada. Era assim que fazia comigo. Ela se sentava e me encarava até que eu começasse a falar o que quer que ela queria saber.

Eu falei sobre algo que aconteceu no meu trabalho. Sobre como meu chefe me elogiou e como eu achava que ele tinha uma quedinha por mim. Ela ouviu em um silêncio polido, seus pequenos olhos escuros me analisando com fervor. Ela tem um ar maternal. Deve beirar os sessenta anos, mas ainda é uma mulher bonita. Seus cabelos grisalhos sempre estão presos em um rabo de cavalo desleixado e ela veste roupas sem forma. Acho que abandonou a própria vaidade há muito, mas não considero isso algo ruim. Acho corajoso da parte dela. Eu nunca consegui me desligar da minha rotina de beleza, do que sempre foi esperado de mim.

Sempre vestida com esmero, cabelos sempre limpos e penteados, maquiagem sempre feita, mas nunca demais. Unhas sempre pintadas. Sapatos? Sempre de salto.

— É só disso que quer falar?

Ela interrompe a minha narrativa, uma que acabei de inventar sobre uma colega de trabalho. Eu subo os olhos para ela, curiosa para ver sua expressão.

, você não me paga para falar sobre pessoas e situações que não tem nada a ver com você. Estamos nisso há um ano, sei que deve ter me procurado por um motivo.

Tento parar o movimento involuntário de torcer minhas mãos no colo.

— Eu tenho um motivo.
— Então fale sobre ele.
— Ainda não estou pronta. — As sobrancelhas grisalhas se erguem além da borda dos óculos quadrados. É uma desculpa esfarrapada e nós duas sabemos disso.
— Eu vou te dar alta. — Ela diz depois de refletir por alguns segundos. — Não faz sentido você continuar vindo aqui se acha que não tem nada para falar comigo.

Meu coração se acelera quase dolorosamente. Eu não quero ir embora, mas também não quero contar a ela sobre ainda. Por mais que eu saiba que eu não tenho culpa, sei que isso vai fazer com que eu pareça fraca, e eu lutei demais para não ser mais fraca.

— Tudo bem.

balança a cabeça, suspirando discretamente, mas eu noto mesmo assim. É o mesmo ar de decepção que ela exibia quando eu fazia algo errado. Senti como se tivessem enchido meu estômago com pedras geladas. Eu não queria decepcioná-la também.

Ela se levanta para me levar até a porta do consultório, mas eu simplesmente continuo sentada ali.

. — O nome dela deixa minha boca de forma estranha. Lenta e quase ininteligível, como se estivesse com a boca cheia de areia. — O nome dela era .

Dizer o nome dela em voz alta soava grotesco. Passei sete anos sem dizer o nome dela e poderia ter passado outros quinhentos, mas eu não queria que me mandasse embora. Felizmente, o que eu disse chamou a sua atenção. Ela se virou para mim. E eu comecei a falar.

Não seja uma linguaruda, .


— Mesmo sete anos depois, ainda é difícil falar.

era paciente. Se ela esperou por um ano inteiro até que eu dissesse qualquer coisa com algum sentido, então acho que ela consegue esperar por alguns minutos. Eu precisava tomar coragem e organizar meus pensamentos. A casa queimando me veio à mente.

— Eu tenho um sonho recorrente onde vejo a nossa casa queimar. — Decido começar por aqui. Pelos sonhos que me atormentam todas as noites. — A casa que nós morávamos.
— É uma memória ou um sonho?
— Uma memória. — Ponho o dedão na boca, apertando meus dentes na unha longa e perfeitamente pintada.

Ninguém deveria roer as unhas, é nojento.


?

?


— Sim? — Eu balanço a cabeça, tentando me focar.
— Conte mais sobre o sonho.

Ainda consigo sentir o calor das chamas no meu rosto, mesmo de longe. Se eu fechar os olhos, consigo sentir o cheiro da madeira queimando e ouvir os estalos que ela fazia. Consigo sentir exatamente o que eu sentia enquanto via minha casa queimar porque é o mesmo sentimento que tenho agora: insegurança, medo, nervosismo. E alívio.

— No sonho, eu estou dentro da casa enquanto ela queima. Não há portas e nem janelas. Eu corro e não consigo sair. E quando o fogo começa a invadir todos os cantos, eu acordo.
— Qual era a sua relação com aquela casa?

Qual era a minha relação com aquela casa? Eu preciso pensar antes de responder. Não é fácil.

— Pelo sonho, deduzo que você se sentia presa lá.

Eu concordo. Realmente me sentia presa na casa da minha infância, mas não conseguia deixá-la para trás. gostava dela. Na verdade, ela amava aquela casa, talvez mais do que algum dia me amou.

— Ela gostava da casa. Nós nunca nos mudamos.
— Você quer dizer… ?
— Sim. Ela gostava da casa e não me ouvia quando eu insistia para nos mudarmos.
— Como era a sua relação com ela?

Eu te amo, .


— Complicada. — Soltei um suspiro demorado. — Eu preciso que você não me interrompa quando eu começar a falar. Não sei se vou fazer muito sentido.
, esse é um local seguro onde você pode falar sobre qualquer problema seu.
— Eu só não quero ser interrompida.

Não me interrompa!


A voz dela ainda ecoava na minha mente. Acho que esse era o principal problema, o motivo de não conseguir desabafar dessa forma. Eu nunca contei sobre isso a ninguém, a nenhum dos caras rápidos que passam pela minha vida, a nenhum colega de trabalho, a nenhum outro terapeuta antes de . E eu estava cansada de preservar . Muito cansada. Foi então que comecei a falar.


Hoje em dia, há muitos alertas sobre relacionamentos abusivos. Eu vejo isso em todo canto, agora, e me sinto feliz em saber que é um assunto a ser debatido e combatido, sabe? Na minha época, não havia tanto assunto acerca disso. Eu não sabia o quanto me controlava até começar a ver o mundo. E, ainda assim, eu não sabia até onde ia o controle dela sobre mim.

Eu não entrei em um relacionamento abusivo porque quis, ninguém entra. Eu nem mesmo sabia o que era um relacionamento abusivo, eu só fazia o que ela mandava. Se ela me mandasse pôr as louças na mesa, então eu fazia isso. Se ela não gostava de uma das minhas amigas, ela me proibia de andar junto dela. Quando isso não adiantava, lentamente me afastava da pessoa problemática. Eu não percebia bem essas coisas.

Lembro de uma vez, tinha essa festa que eu realmente queria ir. O nome da garota era Mia e ela era superlegal, ela tinha me convidado para ir na festa de aniversário dela. Não era uma festona e nem nada, só uma coisa casual com algumas bebidas, a casa dos pais dela na beira da praia e som alto. Um bando de adolescentes apenas… Sendo adolescentes.

Ela não é uma boa companhia para você, .


não queria que eu fosse à festa. Ela pediu para que eu não fosse. Eu disse que não iria, mas, secretamente, planejava ir. Tinha um plano para enganá-la e achava que ela nunca saberia desse pequeno ato de rebeldia. Ela ficou feliz. Satisfeita. Não parecia que havia alguma coisa errada… Até que cheguei em casa na sexta-feira, pronta para me trocar e lá estava ela, em seu carro, sorrindo para mim.

Por que não vamos até aquela praia que você gosta nesse fim de semana?


Eu não consegui negar. Eu nunca conseguia negar. As minhas poucas amigas eventualmente me deixaram para trás porque eu nunca podia almoçar com elas ou ir ao shopping com elas, sequer pegar carona com elas. me deixava na escola e me buscava. Ela era a única pessoa que eu precisava para qualquer coisa porque tinha se encarregado disso. Se eu precisasse de um abraço, era o dela. Um ombro para chorar? O dela. Alguém para conversar? .

.

.

.

Tudo girava em torno de . Ela era tudo o que eu tinha. Mesmo em seus piores momentos, não permitia que eu me afastasse dela. Eu tinha que ficar ao seu lado a todo tempo. Se eu fizesse algo que ela não gostava, ela chorava e eu me sentia mal. Ela não fazia aquilo por mal, eu achava. apenas me amava muito.

Bem, doutora, eu realmente achava que me amava. Essa é uma história sobre esse amor, mas não é uma história de amor.

Não se fala muito sobre relacionamentos abusivos entre duas mulheres. Eu já li vários livros sobre isso. Já leu Entre Quatro Paredes? É um ótimo livro. Não sofri nada tão drástico nas mãos de , eu já adianto, mas ainda assim… Me identifico com Grace. Eu entendo o que ela passou. O medo que ela passou.

Acho um pouco de machismo quando não consideram que mulheres possam ser tão tóxicas quanto homens. Mulheres também conseguem ser mesquinhas, cruéis, manipuladoras. Mulheres também são capazes de ser más. É uma perversão diferente da masculina porque sabemos que não é só a violência que consegue quebrar o espírito.

Se tivesse usado violência comigo, as coisas seriam diferentes. Não melhores e nem piores, eu não tenho como saber, mas sei que eu teria um pouco menos de dificuldade de aceitar que ela não me amava. Como nunca ergueu a mão para mim, como ela sempre dizia que me amava, eu sempre aceitei sem questionar as atitudes que ela tomava.

Ela não poderia me bater nem se quisesse. sempre teve a saúde frágil, era menor que eu, mais magra, não conseguia se virar muito bem. Eu tinha que ajudá-la com qualquer coisa que requirisse força física. Às vezes, ela ficava doente e eu tinha que cuidar dela. Ela precisava de mim. Era nisso que eu pensava cada vez que um pensamento aleatório me urgia a ir embora. Como viveria sem mim?

O que eu seria sem você, ? Minha querida .


Como eu disse, não falavam muito sobre relacionamentos abusivos na minha época. Eu só achava que ela não fazia por mal ou que me amava tanto que ela não via o que fazia de errado. Eu não sabia que fazer com que eu me sentisse culpada por toda e qualquer coisa também era um tipo de abuso. Eu só achava que era uma péssima pessoa quando ela começava a chorar.

E ela chorava por tudo. sabia exatamente o quanto as suas lágrimas me compeliam a fazer o que ela queria. Suas chantagens emocionais e o quanto ela tinha o que queria de mim sem nem levantar a mão… Porque ela dizia que me amava.

Não há ninguém nesse mundo inteiro que eu ame mais do que você. Você me ama também, ?


Só podia ser amor. Eu achava que o amor era daquele jeito. Eu não sabia que podia ser diferente. Eu não tinha ninguém para perguntar sobre amor. Eu não tinha nem amigas, ela afastou todas.

Eu sou a única pessoa de quem você precisa, .


Minhas relações com as pessoas sempre tinham sido superficiais. Eu não precisava procurar ninguém, não precisava da afeição de mais ninguém.

Ninguém vai te amar como eu te amo, .


Eu não precisava de ninguém porque eu tinha , mas isso sempre me incomodou. Eu sabia que algo não estava certo. Eu sabia que algo no amor dela era, se é possível dizer, desequilibrado. Ela era desequilibrada.

Por que você precisa delas? Eu estou aqui por você, .


Quero deixar claro que eu a amava. Muito. Eu a amava tanto que doía. Era por isso que eu me sujeitava a tudo aquilo. Eu deixei que ela me fizesse de gato e sapato porque a amava.

Você quer me deixar doente de preocupação? Ainda mais doente?


Ela sabia por onde me atingir: usando a doença dela. Ela dizia que tinha o coração fraco, então não sei bem o que ela tinha, realmente, ou se isso sequer era verdade. E, claro, sempre que ela acordava mal demais para levantar, era culpa minha de alguma forma.

Você quer que eu morra, ? É isso que quer?


Não era justo e eu nunca conseguia ganhar com ela. Era sempre minha culpa. Era sempre algo que eu fiz. Era porque eu a afastava, ela achava, ou porque eu queria ter um pouco de privacidade, que ela também não permitia. E conforme eu fui amadurecendo, eu percebi o quanto isso era errado. Eu percebi que não precisava ter medo de e que uma relação saudável não era assim. Eu comecei a perceber o quanto me controlava e que ela não precisava me intimidar fisicamente para isso, entende? Eu não sabia que isso era possível.

Quando ela estava particularmente mal humorada, às vezes ela me provocava por diversão. Quase me fazia chorar para, então, me aninhar em seus braços e dizer que eu era uma boa garota.

Eu te amo, , você me desculpa?


Eu sempre a desculpava. Eu sempre voltava para ela. Com todos os abusos, com os arroubos de mau humor, o isolamento, com seu ciúme desenfreado… ainda era tudo que eu tinha.

Você é o meu lar e eu sou o seu. Não precisamos de mais ninguém.


Eu não sei porque ela era assim. Não sei porque ela achava que precisava me controlar dessa forma, mas acho que entendo o que deflagrou esse tipo de comportamento. Ainda assim… Ainda assim acho que não justifica. Esse é o problema, doutora: eu sei que o que ela fez comigo foi o errado, mas eu não consigo me desfazer da ideia de que ela realmente, do fundo do coração doente dela, me amou. Mais do que tudo. Mais do que a própria vida. Talvez tenha sido isso que a matou, sabe? Pode não ter sido o coração.



Verdade

me encarou longamente. Lá fora, a noite já tinha caído e eu não sei por quanto tempo fiquei falando como uma louca. Sei que não fiz muito sentido e não sei se me expressei bem, mas falar tudo isso tirou a sensação de pesar do meu peito. Eu me sentia muito melhor confessando tudo aquilo. Foi difícil e doloroso, mas acho que vomitar todas essas palavras foi a melhor coisa que fiz por mim mesma desde que queimei aquela casa.

— Nós… Temos muito pra falar sobre tudo isso. — Ela tirou os óculos, colocando-os na mesa.

Eu ficava admirada com o quanto parecia não se importar com a sua aparência. sempre exigia que eu estivesse perfeita. Ela martelou isso na minha cabeça por tanto tempo que até hoje sigo todos os rituais de beleza que ela me ensinou.

— Eu só preciso te perguntar uma coisa que não ficou muito clara… Quem era , exatamente?
— Ah, eu não disse?

Mas eu estava só ganhando tempo. Eu nunca mencionava o relacionamento entre e eu ou o que ela era pra mim. Demorei alguns instantes pensando se devia mentir ou não, mas desabafar tinha sido bom. Eu podia contar toda a verdade agora.

era minha mãe.

Não se fala muito entre relacionamentos abusivos entre duas mulheres, mas falam muito menos sobre como mães e pais também podem ser abusivos. A minha mãe foi assim. Era por isso que eu tinha tanta dificuldade de deixá-la ir.

— Entendo. Você também disse que ela morreu. Como ela morreu?
— O coração dela falhou.

Eu ainda me lembrava de como esperei horas e horas por ela, sentada na mesa da cozinha, esperando que ela descesse as escadas. Eu não era autorizada a entrar no quarto dela sem permissão. Eu tinha chamado por ela, mas não consegui chamá-la.

Eu nunca quis matá-la.

— E a casa pegando fogo? Você disse que era uma memória.
— Eu toquei fogo na casa depois do funeral dela. Só tinha eu e o padre lá. Ela não tinha ninguém além de mim.
— E depois?
— Eu fui embora. Isso foi sete anos atrás. Eu nunca voltei lá. Não sei o que aconteceu com a casa, não sei se conseguiram apagar o fogo ou se ela queimou por inteiro.

Ela me avaliou por um momento silencioso.

— Você pôs fogo na casa?
— Sim, eu disse.

Eu não tinha matado ninguém. Pelo menos, não de propósito. Não foi isso que aconteceu.

— Por quê?

Não era óbvio? devia saber o porquê. Ou, talvez, ela apenas quer que eu fale. Eu já falei o bastante. Sei que nossa hora acabou há tempos, mas ela ainda está aqui. Ela ainda quer me ajudar.

— Aquela casa era… Uma prisão. me mantinha lá dentro sem expectativas de sair. Depois que ela morreu, parecia que eu ainda conseguia sentir a presença dela ali…

Não acredito em fantasmas. Não é disso que estou falando, mas parece que… De alguma forma, aquela casa fazia parte dela também.

— Eu nasci ali, eu cresci ali e as coisas apenas… Eu só queria ir embora. Não havia mais ninguém para me prender.
— Por que incendiar a casa?

Ah… Isso. Bem, é embaraçoso. Eu não respondi de imediato e não me apressou.

— Eu achei que destruindo a casa eu poderia… Achei que fosse me libertar. Como se fosse um filme de terror e aquilo tivesse que queimar para morrer.
— O seu relacionamento disfuncional com a sua mãe não pode ser apagado assim. — Ela enunciou calmamente. — Você não pôs fogo à casa, exatamente, não é? Você pôs fogo em tudo o que você viveu ali, tentou destruir os seus sentimentos e usou a casa como uma alegoria pra isso porque você não teve um encerramento com a sua mãe. Estou errada?

Eu não tive nada perto de um fechamento com a minha mãe. Ela morreu durante a noite e eu só fui descobrir na hora do almoço. Eu a achei na cama, com uma careta de dor, caída da cama como se tivesse tentado buscar por ajuda. Ela provavelmente me chamou durante a noite e eu não ouvi. Eu sei que foi isso o que aconteceu. Eu liguei para a emergência e eles confirmaram que ela teve um infarto fulminante ou, em termos técnicos: enfarte agudo do miocárdio. Eles fizeram questão de me dizer que mesmo que eu tivesse acordado durante a noite, salvá-la teria sido quase impossível.

Quase. Eu chorei tanto naquele dia que até mesmo sugeriram me sedar.

Pobre … Sozinha no mundo.


Não chorei de tristeza e nem de dor, mas chorei de alívio. E quando eu percebi porque eu estava chorando, acabei chorando mais ainda porque me sentia péssima por isso. Mas eu estava livre. Meu martírio tinha acabado. Eu podia ser alguém normal, não podia? Eu podia tentar.

— Certo.
— Eu fico feliz por você ter confiado em mim, . Agora nós finalmente podemos começar a fazer progresso. Estou orgulhosa de você.

Eu nunca ouvi isso, nem mesmo de quem dizia que me amava mais que tudo no mundo. Eu sorri, verdadeiramente, a primeira vez que isso acontecia naquele consultório.

— Te vejo semana que vem?

Ela concordou e, quando eu saí do consultório, as coisas pareciam diferentes. Mas, talvez, fosse apenas eu.


Encerramento

Encarei a lápide, me sentindo ridícula. insistiu que eu fizesse isso e que eu tentasse obter um fechamento de ciclo, mesmo que ela não me respondesse de volta. Ela tentou me fazer falar com uma boneca, mas… Era ridículo. Falar com uma lápide me parece a opção menos humilhante do cardápio.

… Mãe. Sou eu.

O cemitério estava quase vazio, tirando um pequeno enterro que ocorria mais ao leste. Eles não estavam prestando atenção em mim e nem eu neles. Eu encarei a lápide novamente. Uma mãe carinhosa.

— Isso é ridículo. Uma mãe carinhosa implica que você foi uma boa mãe ou que você me amou, mas isso é mentira. — Senti as lágrimas encherem os meus olhos, minha voz ficando embargada. — Mas você não me amava. Você só me controlou e fez com que eu agisse exatamente como você queria.

Eu observei minhas unhas roídas, uma pontada de orgulho pelo ato de rebeldia bem-sucedido.

— Você só queria que eu fosse o seu ideal de uma filha perfeita, mas nunca me amou. Quem ama, não aprisiona. Você só… Me adoeceu, eu acho. Todos os dias. Eu achava que você sabia o que era melhor pra mim, mas acho que você só pensava em você. Minha terapeuta e eu ainda estamos tentando descobrir isso.

Seis meses tinham se passado desde que eu finalmente tinha me aberto com . Seis meses desde que eu tinha mandado Pierre embora e excluído o Tinder do meu celular. me disse que enquanto eu não conseguir entender como um relacionamento saudável deve ocorrer, não deveria procurar abrigo nos braços de ninguém porque eu não saberia o que esperar. Ela perguntou como eu me sentia sobre mim, porque me achava bastante vaidosa, e ficou chocada quando descobriu que eu me detestava, quando eu finalmente vomitei todos aqueles pensamentos autodepreciativos que eu tinha. Ela disse que eu deveria focar em aprender a me amar primeiro.

— Isso é culpa sua. Eu me odiar é culpa sua. Agora, nem tanto. Sei que meu pai foi embora e você ficou perdida, mas você não tinha o direito de fazer o que fez comigo. Eu estou aprendendo, aos poucos, como a vida pode ser diferente. Como as pessoas podem me tratar diferente. Como eu sou digna de amor e respeito como qualquer um, mas, por enquanto, eu estou aprendendo a gostar da minha própria companhia e a confiar na minha solidão. Eu não ouço mais a sua voz a todo momento. Eu não vejo você em outras pessoas com tanta frequência.

Eu, finalmente, estou bem. Melhor do que nunca. Eu finalmente estou pronta para recomeçar. As coisas serão diferentes a partir de agora. Agora que eu aprendi que eu não tenho que me validar pelas opiniões dos outros, agora que eu aprendi que eu só preciso me importar com a minha felicidade, eu estou bem. Eu aprendi a confiar na minha própria companhia, na minha solidão.

E isso me basta.




Fim



Nota da autora: (04/11/2019) Quis fazer algo diferente, dessa vez. Eu já tenho uma fanfic publicada sobre um relacionamento abusivo entre amantes e como foi difícil para uma das partes se reerguer e ser feliz novamente. A música em questão se foca nisso, nessa redenção após um relacionamento tóxico. Não quis fazer o que eu fiz em 11. Not Coming Home, então pensei em outro tipo de relacionamento tóxico que poderia abordar. Nessa leva, notei que não havia muita coisa sobre como pais e mães podem ser, também, tóxicos e abusivos. Quis expor isso, mas de forma mais leve, ainda que levada pelo ponto de vista da vítima. Não é a minha intenção ativar o gatilho de nenhum leitor com a minha fanfic, por isso escrevi dessa forma. Ainda assim, creio que consegui passar o meu ponto e a evolução da personagem. O escasseamento da "voz" da mãe dela, aliás, foi a ferramenta que usei para mostrar como agora ela estava mais saudável. No geral, eu gostei demais de escrever isso aqui. E se alguém mais gostar, então eu agradeço também.
Comentários, cobranças ou reclamações, meu twitter é @seastarzinha. Beijos!




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