Finalizada em: Set/2021

what if i had been that PUMA

Seul, 2024


Acredita-se que tudo começou no natal.
Em uma noite gelada e monótona, o real e o imaginário sentaram-se lado a lado em uma grande mesa farta.
Choi Yeonjun era a coisa real. Ou, pelo menos, tinha sido.
As conversas paralelas não eram de seu interesse. Grande parte das perguntas eram sobre um futuro que ele não sabia se queria (ou se o teria, de fato), misturadas com sugestões prepotentemente disfarçadas e escondidas sob relatos de glória dos outros membros da família. A receita de bolo do sucesso que era servido junto com o jantar, todos os anos, tornando a comida ainda menos apetitosa.
Era a reunião de sempre. A confraternização familiar que causava o asco permanente no garoto, e em todos aqueles que notassem o padrão detestável de falsas regalias distribuídas todos os anos. Nada, afinal, havia mudado. As coisas nunca mudavam.
A não ser a quantidade de segredos obscuros e sujos de todos aqueles que encenam uma falsa felicidade.
Yeonjun estava acostumado a presenciar todo aquele espetáculo. Começando por sua mãe, lançando desesperadamente toda a poeira para debaixo do tapete, selando todas as brechas o bastante para que não transbordasse. O sorriso ensaiado parecia mais difícil de ser ofertado naquele ano; a postura hesitante dela, curvada ao lado do marido, era um sinal claro a quem reparasse demais.
O indício de um casamento destruído.
Só uma pessoa tomada por tristeza era capaz de sorrir tanto.
Mas a retribuição de felicidade e aparente gentileza vinda de todos os lados significava que o sorriso falso estava caindo como uma luva. Nenhuma daquelas pessoas sabia realmente o que acontecia quando a porta da rua Garosu-Gil se fechava ao fim do dia. Os gritos começavam, as lágrimas caíam sobre o balcão da pia e duas ou três louças – que, ironicamente, seriam presentes daquela mesma celebração – estariam quebradas em menos de 24 horas. Era um fato desagradável que Yeonjun não estava disposto a se acostumar. Aos 17 anos, ele achava que não tinha nenhum desejo específico na vida, mas, quando se esforçava a olhar um pouco mais para dentro de si, ele descobriria a verdade. Que, de fato, ele tinha dois desejos, dispostos em uma bifurcação, levando a resultados compensatórios, independentemente de qual escolhesse – ou qual se realizasse primeiro: a separação dos pais ou a separação dele mesmo com a casa de número 19 da rua Garosu-Gil.
Em seu mais profundo interior, ele desejava os dias felizes e imperfeitos da infância, quando sua mãe ainda era capaz de sorrir de verdade.
Isso é o que o fazia ser a coisa real. Profundamente, a única coisa real daquele cômodo.
No meio de tudo isso, Choi Yeonjun ganhou um presente.
Foi um entre vários, na verdade. Apesar de não ter nenhuma reputação significativa na escola particular, suas notas medianas demais conseguiam alcançar o restante da família, que começavam cedo com as propostas de otimização e conselhos furtivos de um futuro promissor. As pessoas que diziam tais coisas não importavam o suficiente para que ele considerasse suas questões. Yeonjun não poderia dizer que as brigas explosivas de seus pais não o deixavam se concentrar nas fórmulas matemáticas, e que ninguém em sã consciência conseguiria ler os clássicos de Soseki Natsume com o barulho de socos e abajures caindo ao chão. Isso poderia chocá-los, mas ele acreditava que a reação mais provável seria o ataque de risos, como se tivesse contado a melhor piada do evento.
A piada maior era o grande estima que recebia dos familiares por ser simplesmente um grande potencial. Potenciais eram expectativas, e expectativas eram pressões, e Yeonjun odiava que esperassem alguma coisa dele quando nem ele mesmo fazia isso.
Mas jamais recusaria os presentes. Algumas vezes, as brigas em casa respingavam sobre ele, mesmo sem nenhuma participação direta no assunto. A raiva de seu pai o deixava com danos dolorosos sobre o corpo. E não aceitar as gentilezas dos familiares, por mais que não servissem de nada, seria um desses motivos que o deixariam com raiva. Portanto, ele apenas assentiu e agradeceu educadamente o pacote pesado que recebeu de sua tia Sue, fazendo sua parte na encenação: sorrir.
— Fiquei sabendo como você gosta de jogos — disse ela ao entregá-lo o presente — Parece que esse está bem popular ultimamente. Pelo menos em alguma parte do ocidente. Consegui por um preço bem acessível no mercado do subúrbio.
Ela disse isso com um belo sorriso e postura confiante.
Mas é claro.
Falsa gentileza, como Yeonjun sempre soube. Não existia melhor forma de desdenhar de outra pessoa como demonstrar sutilmente o quanto não se importa com os interesses dela.
Aquele pacote ficou parado e enterrado em poeira e escuridão no fundo de seu armário por pelo menos duas semanas, esperando pacientemente por seu novo dono.

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Antes que todos os acontecimentos surpreendentes acontecessem, Choi Yeonjun gastava seu tempo com jogos.
Sua coleção era fruto de um trabalho independente que consistia em esconder as coisas muito bem. Ele era ótimo em esconder coisas. Também era bom em mentir, assim como seus pais, mesmo que estivesse há anos-luz da experiência de ambos. Ele não era tão bom assim nessa parte. Conseguia inventar histórias sobre o destino de sua mesada, mas não sabia disfarçar o quanto achava sua vida real uma tremenda merda sem sentido.
Era aí que a fuga da realidade nos eletrônicos caía como uma luva.
Em 2024, as opções de realidade aumentada ainda eram poucas em comparação às promessas que foram feitas há 20 anos atrás. Yeonjun não se importava muito com elas, no entanto. Seu cérebro era treinado para matar monstros em 2D, ou simplesmente construir cidades e liderar exércitos em batalhas cronometradas. Seus jogos eram essa mistura de estouros e estratégias, e se estivesse vivo na época dos fliperamas arcade, seu nome seria o primeiro na máquina de recordes. Ele se considerava bom, mas era bem mais do que isso. Era ótimo. Talentoso.
Mas ser ótimo em jogos online não lhe trazia nenhum atributo especial no mundo de escolas e pagamentos de aluguel.
Logo depois do ano novo, ele lia a carta de recomendação preenchida e comprada por seu pai de algum professor universitário – igualmente comprado –, que o garantiria a entrada no curso de Direito da Universidade de Seul, independentemente de suas notas. Seus dedos apertaram o papel com força, e os dentes trincaram pela petulância e intromissão descarada, mesmo depois de pedir por tanto tempo para que o pai não interferisse no que quer que ele queria fazer depois que o colegial terminasse. A briga resultante o deixou com um roxo ao lado do rosto, que combinava com o de sua mãe da noite passada, e depois os gritos do lado de fora do quarto o deixaram totalmente alheio às imagens coloridas da TV, e sua mente era um escarlate de fúria para qualquer estratégia que pudesse ajudá-lo a subir de nível. Quando se deu por vencido, largou o joystick sobre a cama e se afundou na mesma, abafando os soluços raivosos por debaixo do travesseiro no rosto, deixando-se passar pelos momentos de autopiedade que jamais deixaria que outra pessoa visse.
Não se sabe exatamente quanto tempo se passou até que Yeonjun levantasse e se deparasse com o silêncio do fim da noite, quando um dos dois do lado de fora já havia dormido. Ao abrir a porta para o corredor, ele ouviu o ronco do pai enquanto tinha a cabeça tombada no sofá e o rosto brilhando pela TV ligada em algum canal de esportes. Sorrateiramente, o garoto olhou para o porta chaves ao lado da entrada e passou a mão rapidamente pela grande e adornada, abrindo a porta da frente e saindo para a escuridão de inverno, sem se preocupar com a neve fina que infestava o asfalto.
Um sentimento claro de alívio o tomava por completo sempre que passava por aquele batente.
Quando girou a chave na ignição, deslizou os pneus sobre o chão úmido e partiu pelo primeiro quarteirão, largando os pés tensos sobre o acelerador e puxando o celular de um dos bolsos, discando o primeiro número da lista.
— O que é? — a voz de Dalton veio do outro lado, grogue de sono ou de outra coisa mais pesada.
— Estou indo — Yeonjun respondeu. Levou um tempo até que o outro soltasse uma risada abafada e entrecortada.
— Estou no mesmo lugar.

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Dalton afundou no vazio.
O barulho do impacto das rodas no gesso liso reverberou pela madrugada, e seu corpo sumiu por alguns instantes até reaparecer do outro lado, ascendendo pela rampa, girando o skate debaixo dos pés até voltar e mergulhar novamente, pousando ao lado de um Yeonjun que focava o absoluto nada, deixando que a fumaça do cigarro queimasse entre os dedos até o ponto de se apagar por conta própria.
— Ei, Choi — Dalton ofegou, sentando-se ao seu lado por cima da prancha. Esticou as mãos até pegar a vodka dentro do saco marrom, a qual tinham literalmente roubado da loja de conveniência há alguns quilômetros dali, quando a ideia de Dalton de parecer um garoto de mais de 17 anos falhou miseravelmente — Qual é o problema? Não vai tentar?
Yeonjun apenas piscou os olhos, encarando a rampa íngreme logo abaixo, na qual seu calcanhar batia preguiçosamente. Tragou o cigarro com uma careta, cuspindo a fumaça com desgosto, odiando a sensação sufocante que tinha ao fazer aquilo, mas que insistia em fazer mesmo assim. Era uma das tantas formas que encontrou de ir contra os princípios familiares que o tentavam transformar em um filho perfeito.
Filhinhos perfeitos não pegavam o carro dos pais escondido de madrugada ou fumavam cigarros, muito menos tomavam vodkas roubadas e de procedência duvidosa.
— Não tô muito afim hoje — resmungou, tomando a bebida das mãos de Dalton e deixando o líquido quente correr por sua garganta.
O amigo puxou seu próprio cigarro, acendendo-o com as mãos trêmulas pelo vento gelado. Yeonjun não parecia se importar com o clima.
— O seu velho fez de novo, né? — murmurou ele, encarando o roxo na bochecha de Yeonjun — Está melhor do que das outras vezes. Doeu muito? — ele ergueu uma mão para tocar no machucado, que Yeonjun repeliu bruscamente com um tapa.
— Sai fora — disse, raivoso. Dalton deu uma gargalhada — Aquele merda…
— O que? Ele decidiu pra onde você vai agora?
— Ele não tem que decidir coisa nenhuma — Yeonjun se virou, os dentes trincados de frustração — Ele não tinha que fazer nada, mas mesmo assim… Arrumou uma carta de repente e me passou o maldito cronograma do futuro dele.
— Uh, pesado — Dalton grunhiu — E o que você vai fazer?
— Não sei. Não parei pra pensar nisso — ele enfiou o cigarro entre os dentes e se pôs de pé, puxando o skate gasto debaixo do corpo e posicionando-o lentamente no topo da rampa.
— Vamos ao cyber café? Fiquei sabendo que aquele idiota do Stanley continua tentando bater o seu recorde — perguntou Dalton, tomando mais um gole da bebida.
Yeonjun deu de ombros, sem olhar pra ele.
— Depois que eu quebrar uma perna.

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Yeonjun cambaleou para dentro da casa.
O pai continuava no mesmo lugar, sem ter movido um músculo sequer. A visão turva captou uma mudança apenas no conteúdo que passava na TV; agora a reprise de um programa de variedades estava no volume mínimo, com risadas de público e tortas sendo jogadas no rosto das pessoas. A mesma besteira que o homem berrava com a mãe por estar perdendo tempo com coisas supérfluas.
Ele largou a chave de qualquer jeito da onde havia pegado, não se importando em posicioná-la do mesmo jeito de antes e seguiu trotando para a porta do quarto, fechando-a um pouco alto demais antes de desabar na cama.
Um objeto duro e gelado fez força contra o seu quadril assim que deitou. Ele xingou, sentando-se rapidamente enquanto tirava o pacote dos bolsos de trás, mostrando a garrafa de soju que era mais um presente das artimanhas de Dalton. Bufando, Yeonjun se levantou, sabendo que seu cansaço não poderia impedi-lo de esconder mais uma de suas provas de rebeldia discreta da família. Ou, se não, ganharia mais do que apenas um roxo na bochecha.
Primeiro, ele tirou a camisa, afundando-a até o fundo do cesto de roupas, torcendo para que o cheiro do cigarro desaparecesse ou se dissipasse o bastante para que sua mãe não sentisse. Trocou por um moletom qualquer e abriu um pouco a janela. Ele não se importava com o frio terrível de janeiro que fazia do lado de fora. Por fim, agarrou o pacote e abriu a porta lateral de seu armário, designada como esconderijo geral, buscando algum espaço para enfiar mais uma proeza quando viu que um grande pacote já tomava lugar demais no cubículo.
Ele juntou as sobrancelhas, puxando a embalagem empoeirada, esquecendo-se por um instante da onde ela havia surgido.
Quando puxou-a para a luz da lua que entrava, ele reconheceu o papel de presente estampado em vermelho fosco, sem se preocupar em parecer bonito ou chamativo. O presente de natal que ele nunca abriu. O jogo novo que ele nunca pretendeu jogar.
Encarou a garrafa e ponderou entre os dois, mas não era necessário. Era infinitas vezes melhor que sua mãe encontrasse mais um jogo estúpido em sua mesa do que uma garrafa de soju adquirida pelos meios mais ilícitos possíveis.
Ele fechou o armário, agora balançando o presente com curiosidade repentina. Faltavam algumas horas para amanhecer e ele poderia dar uma olhada antes de deitar e fingir estar dormindo. Desse modo, deu de ombros, abrindo o presente preguiçosamente, puxando para fora uma caixa mediana e pesada.
No início, não tinha nada de surpreendente.
Yeonjun não se considerava uma pessoa que julga um livro pela capa – a não ser que o assunto fosse realmente livros. Dessa forma, em se tratando de jogos, ele era curioso e astuto. Coisas novas o interessavam, mesmo que viessem em uma embalagem mequetrefe com o desenho de um tanque sob quatro patas metálicas e um canhão no dorso. Não era algo que o chamaria a atenção em uma prateleira qualquer.
A caixa era muito leve. Ao abri-la, ele se deparou com uma menor ainda, ocupada com apenas um óculos quadrado, de cor preta filme e um pouco grandes demais para serem usados no dia-a-dia. Confuso, ele buscou por mais itens ou um manual de instrução, mas não havia nada. O objeto era mais pesado quando pego, e um pequeno botão ornava a lateral da lente esquerda, mas era apenas isso. Um velho óculos em uma caixa.
Ele deu um longo suspiro e pensou em não perder seu tempo. No entanto, Yeonjun era um observador, e seus olhos captaram algo curioso, mesmo que logo depois pensou estar imaginando tal coisa. O quarto estava bem iluminado pela luz do lado de fora, mas as lentes, viradas para baixo e espremidas contra seus dedos, não captavam imagem alguma do outro lado. Elas eram tão límpidas e transparentes como um óculos de grau, mas refletiam um mundo neutro e sem cores.
Isso era algo para atiçar sua curiosidade.
A cadeira da escrivaninha foi arrastada e Yeonjun sentou-se nela, colocando o apetrecho ultrapassado. Como esperado, havia um grande nada à sua frente, e ele levou os dedos levemente até o botão na lateral.
E foi então que Choi Yeonjun foi sugado para o imaginário que havia sentado ao seu lado na ceia de natal.

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No começo, ele viu grama.
Era verde e alta até os calcanhares, mudando para amarelo-palha a depender da perspectiva, assim como a noite ao redor, que transmutava-se de tons frios para um céu completamente negro e sem estrelas. As montanhas ao longe não passavam de sombras obscuras e as árvores ao redor eram como uma pintura imóvel e sem cor, como um cenário falso de filme noir. O aroma de orvalho entrava pelas narinas em um zunir de realidade, assim como o vento pacato que rugia em seus ouvidos. Yeonjun podia jurar que estava quente.
Isso foi o mais surpreendente de tudo. O cheiro. O clima.
Ele coçou os olhos, mas a paisagem continuou no mesmo lugar.
Não podia ser real…
Ele ouviu alguém se aproximando.
Quando viu, não era exatamente alguém.
Devagar, o som metálico chegou primeiro do que a coisa em si. Uma lataria enferrujada caminhava sobre quatro patas, ligadas por um compartimento retangular de pintura lascada, como uma aranha gigante com um canhão repousado no topo. A mesma da imagem na caixa. A fumaça da armadura saía em tufos pesados das costas, e o animal-máquina ficava maior a cada passo. Yeonjun sentiu um arrepio atravessar a espinha.
Um brilho azulado surgiu acima da cabeça da besta. O nome PUMA brilhou solenemente, legível e perigoso.
Em um estalo, as outras palavras apareceram na frente de seus olhos. Elas brilhavam como PUMA, tão urgentes quanto.
Você chegou, guerreiro! Seja bem vindo à prisão dos medos! Você precisa pensar rápido e avançar para o próximo nível. Para isso, deve começar destruindo seus inimigos. Qual será sua primeira escolha? A.
Calico M960. B.
Mendoza HM-3.
Ele olhou de uma arma para outra, tentando colocar o cérebro desesperadamente para funcionar, para entender. A questão parecia exigir rapidez na resposta, já que a coisa continuava se aproximando sem parar. Yeonjun grunhiu, erguendo o dedo no ar e levando-o até a opção A, sentindo o peso da metralhadora sob suas mãos praticamente no mesmo instante. O ranger da máquina ao virar o canhão em sua direção foi alto e tenebroso. Ele estava completamente na mira e ainda não sabia o que fazer.
Tá legal, pensa, pensa, é como todos os outros jogos de RPG, você só precisa pensar…
A luz amarela de fogo surgiu e sumiu tão depressa que o garoto pôde jurar que foi quase instantânea. Ele se jogou para o lado de uma vez só, rolando pela grama dezenas de vezes e sentindo o calor da explosão que estremeceu logo ao seu lado. O calor, os sons, cheiros, toda a fumaça negra, tudo isso era sentido até o fundo de seus ossos. Quando viu o canhão se preparar para virar novamente e repetir a dose, ele cambaleou para cima, ofegante, sentindo um latejar nos cotovelos, uma dor imaginária, porém que parecia tão real quanto a vodka roubada da loja de conveniência.
Sem tempo para ponderar sobre tais coisas, ele apontou a arma escolhida para o monstro, lembrando-se de sua boa pontuação e mira, e puxou o gatilho pela primeira vez. A metralhadora tremeu e o fez se apoiar em um pé para trás, tamanha a vibração que a força das balas tiveram ao serem lançadas consecutivamente para fora. Ele trincou os dentes, mirando no dispositivo-aranha, mas os tiros não causaram grande efeito. PUMA continuava se virando para ele, preparando-se para atirar com a intenção palpável de matar. As chamas ainda consumiam a relva no lugar do primeiro tiro.
E o segundo não demorou a vir. Yeonjun desviou novamente, mas desta vez, um choque se espalhou na perna por debaixo dos jeans, que se rasgaram com o impacto no chão. Uma dor tremenda tomou conta da região. Ao observar o corte profundo por debaixo dos retalhos, ele não sabia mais se estava gostando de jogar aquilo. No entanto, ao mesmo tempo, era de certa forma emocionante. Ele levantou-se novamente, notando a luz vermelha na lateral dos olhos pela primeira vez, como se sua panorâmica fosse a própria tela da TV. Seu nome estava escrito temporariamente no ar, no canto superior esquerdo, mostrando a barra longa e estreita de vida restante. Com pesar, notou que os danos sofridos de dois tiros já o tiraram grande parte da faixa. As balas que lançou não tiveram efeito significante no inimigo. A pontuação desapareceu logo então.
O robô deu mais um giro para encará-lo e se preparar para mais um golpe mortal. Ele bufou e balançou a cabeça, decidindo lançar todos os questionamentos sobre o que estava acontecendo para o inferno, incluindo a pergunta que mais lhe atormentava: tudo isso é mesmo real?
Não havia tempo. O pensamento foi dispersado o bastante para que ele se concentrasse 100% na batalha e poder usar a mente estratégica para o que importava. A dor do corte era insana, e poderia virar um enorme empecilho em sua locomoção, mas ele se mantinha firme. Precisava pensar…
A coisa era devagar demais. Levava um tempo considerável para que se recuperasse depois de um disparo, e o peso não a deixava se mover com rapidez. Ele teve uma ideia suicida e maluca, mas não importava. Não era como se fosse morrer de verdade, mesmo com a dor sendo bastante real. O jogador esperou o canhão ser apontado em sua direção novamente, e caiu para o lado bem antes do projétil vir. Ele segurou o grito de dor pelo deslocamento rápido da perna e fez uma anotação mental enquanto se levantava trêmulo: se fosse jogar esse jogo de novo, precisava cuidar para não se machucar.
Em um segundo, o garoto correu com todas as forças para o lado do bicho, confiando na intuição de que suas pernas eram mais rápidas do que a máquina. Tal coisa estava certa, e a aranha não pareceu notar de imediato o sumiço do garoto por entre a fumaça da explosão. Chegando pelas costas do inimigo, Yeonjun examinou rapidamente o amontoado de metal enquanto tentava não respirar tanta fuligem, tossindo três vezes antes de perceber algum padrão de adornos pelo qual pudesse agarrar. Quando viu que o animal se moveu o mais rápido que pode ao constatar sua presença, ele não tinha mais como pensar. Xingando, pulou alto até uma das patas finas e metálicas, segurando-se na base traseira do canhão com uma só mão, agarrando-se com toda a força que podia contra os movimentos do bicho. A carcaça agora se balançava freneticamente, com intenções claras de derrubar o garoto de cima de si. Yeonjun resmungou, com raiva, sentindo o dorso quente pelas bombas sob a palma da mão que se agarrava à traseira da máquina, e o fogo queimando em seus joelhos, mas ele já estava ali. Tinha outra intuição, mas esta era igualmente mortal e perigosa, e Deus, como deveria ser morrer nesse jogo caótico? Ele sentiria tanta dor quanto a que estava sentindo em todo o corpo nesse momento?
Não podia pensar nisso agora. Sôfrego, ele se arrastou para o topo, firmando as mãos no canhão quente, tentando chegar a sua boca sem despencar no chão e morrer pisoteado pelas patas da aranha gigante. Sua língua e dentes eram tomadas pela sujeira do gás e ele quase perdeu a metralhadora duas vezes com o balançar raivoso do bicho, chegando a deixar uma das pernas escorregarem para fora, mas puxando-a logo em seguida. Por fim, alcançou o cano do canhão assassino, tendo plena consciência do plano tolo e autodestrutivo, mas sabendo que não existia outro jeito.
Ele grunhiu, erguendo o cano da metralhadora para dentro da boca escura do canhão, torcendo para que a força das balas anteriores fizessem todo o trabalho voraz que precisavam fazer para que o dessem a chance de sair vivo.
Ele puxou o gatilho e atirou.
A força quase o levou para trás, o que o fez firmar os joelhos na carcaça enferrujada logo abaixo, na cabeça do bicho. Não se sabe quantos tiros foram disparados pela Calico M-960, mas de repente toda a máquina parou em um tranco e começou a estremecer. Os joelhos de Yeonjun começaram a esquentar mais do que antes, e todo o barulho de curto circuito surgiu em seus ouvidos. Ele entendeu o que iria acontecer em meio segundo e, assustado, mergulhou para o chão, batendo os joelhos contra a grama e pondo-se a correr imediatamente antes da máquina estourar completamente, com um barulho apocalíptico e peças voando por todos os lados. Ele se encolheu no chão, há metros seguros, levando as mãos até a cabeça para se proteger do que quer que pudesse atingi-lo, sentindo o calor irradiar por todo o ambiente.
Puta merda, isso foi equivalente a um ataque de pânico.
Depois de um tempo, parecia ser prudente erguer os olhos e avaliar a situação. Além da respiração alta do garoto, o único som era do fogo crepitando no metal e grama sendo devorada por chamas ardentes. As labaredas se alastravam por todos os cantos, queimando pacificamente enquanto consumia a velha máquina carniceira. Fumaça negra se convergia sobre o corpo morto da besta e subia para o céu escuro, tornando a relva amarelada por um momento e esmagada pelo seu peso. Yeonjun respirou fundo, sentindo o ar mais puro, mesmo que sentisse dores terríveis pelos machucados e seu moletom empapava seu peito de suor. Ele olhava o cenário apreensivo, sem ver de verdade, como um espectador. Como se literalmente tivesse feito tudo aquilo do conforto de sua casa, com os movimentos rápidos de seus dedos no joystick. Aquilo tudo era incrível demais, impossível demais. Ia contra tudo que já tinha vivenciado um dia. Era a maior loucura de todas.
No entanto, era excitante e atraente, como uma boa loucura geralmente era.
Ele soltou uma risada seca, perguntando-se se sua garganta estava tão arruinada lá fora como quanto estava ali dentro, e então se levantou lentamente do chão, puxando a arma consigo. Um ponto redondo e dançante estivera no canto de sua visão desde o começo, e ele pincelou o ar até que uma tela brilhante informasse o que ele previa: seu nome, logo acima da barra de vida, que estava caótica, mas melhor do que ele pensara. A barrinha do inimigo havia desaparecido. A vitória era de Yeonjun.
A confirmação surgiu em um grande balão de luz azul, a mesma de anteriormente, piscando para os seus olhos doloridos pela fumaça:
Parabéns! Você avançou para a Fase 2!
Ele suspirou em alívio. E então, tudo aconteceu em um piscar de olhos.
O fogo desapareceu. A grama agora era branca por salpicos de neve, e o céu era de um cinza escuro e gelado acima de sua cabeça. Os pontos flutuantes de fogo no ar se transformaram em uma neve fina que caía, e então ele sentiu frio. Tão frio quanto estava em Seul naquele momento, o frio que ele não sentia como as outras pessoas.
Mas seus machucados sentiram. Eles não haviam desaparecido, muito menos as dores e a roupa destruída. Yeonjun gemeu com o vento gélido entrando pela calça rasgada, raspando em seu corte, e entendeu que a intenção de tudo aquilo era claramente complicar a sua vida. Ele ergueu os olhos e viu a estrutura da máquina em negro de morte e cheirando a enxofre, um esqueleto robótico que não podia mais se mexer.
Mas, afinal, ela se mexeu.
Yeonjun sentiu os músculos trincarem e todos os seus sentidos entrarem em alerta, mas a coisa não se levantou de novo. Em vez disso, algo, ou alguém – parecia muito alguém – se esgueirou para fora, agarrando tufos de grama soterrados e rastejando pelo chão frio até se colocar de pé, mexendo os ombros para cima e para baixo até ficar estático no lugar.
Uma armadura. Ou alguém em uma armadura. Não havia som vindo dela, e parecia menor do que as armaduras normais, mas Yeonjun não teve muito tempo para pensar. A próxima pergunta vinha logo em seguida:
Para passar da Fase 2, derrote o inimigo. Como será desta vez? A.
Besta com 6 flechas. B.
Katana.
Desta vez, ele pensou mais rápido. Bestas eram eficientes em ataques de longa distância, mas ter um número limitado de flechas não ajudava em nada. Sem entender as propostas do jogo, ele não podia desperdiçá-las sem ter certeza se as teria de volta. No entanto, uma katana não era um elemento muito familiar em suas escolhas de combate, mas apunhalar outra pessoa era o que mais fazia nas outras aventuras. Por fim, ele selecionou a opção B e sentiu os dedos se fecharem em volta do punho encouraçado da espada onde antes havia a metralhadora.
Antes de sumir, mais uma frase apareceu.
Lembre-se: você teve sua chance de morrer. Agora sobreviva a todo custo.
As palavras se misturaram ao vento.
A armadura começou a andar.
Yeonjun notou que agora ela também carregava uma espada, do tipo medieval e perigosa. Ele quis rir com a combinação do NPC, mas não teve tempo para isso. Este adversário do jogo parecia ser muito mais rápido do que o robô de antes; ele não teve nem tempo de notar a que horas ela havia se aproximado e desferido o primeiro golpe, que tocou o ombro dele de raspão antes que desviasse por instinto.
Xingando, colocou as mãos no ferimento e viu o meio dos dedos vermelhos pelo sangue. O moletom ganhara um corte limpo e profundo. Ele trincou os dentes, lembrando-se do plano de não se machucar, de não receber mais danos. As palavras “você teve sua chance de morrer” repercutiam em sua mente, mostrando-o que a fase 1 era apenas uma brincadeira. O jogo começava agora de fato.
Preciso acabar com isso logo.
Ele avançou, correndo com todas as forças de encontro ao cavaleiro, descendo a espada sobre ele e encontrando a lâmina da outra em um movimento rápido e fugaz de defesa. Ele tentou de novo, e mais uma vez, e a intervenção continuava firme e forte enquanto Yeonjun a empurrava para trás com seu deslocamento veloz e preciso. Quando ergueu as mãos mais uma vez para uma descida mais eficaz, viu a armadura deslizar para baixo de seus braços e ir de encontro ao abdômen. Assustado, ele pulou para trás, afastando-se há vários metros, vendo o outro se aproximar com rapidez. Ele vinha com confiança e a espada apontada para seu peito. Com a katana em prontidão, ele defendeu o golpe vindo de frente, dando um passo, recebendo as investidas vindas de todas as direções, mais fortes e mais rápidas do que as suas.
Merda…
Ao deter uma nova ofensiva da espada inimiga, ele ergueu um dos pés e tentou atingir alguma parte da armadura. O NPC parecia bem programado e desviou do ataque, que deixou Yeonjun em desespero por novas ideias. As investidas não o deixavam pensar direito e o movimento da espada era um borrão, a lâmina chocando-se com a sua repetidas vezes enquanto ele tentava apenas não morrer. Em uma dessas, a espada inimiga desceu com tanta força que ele viu seu reflexo no metal reluzente, que desceu até quase tocar em seu nariz, e a empurrou com todas as forças para tirar o cavaleiro de cima de si. Os dois se afastaram há vários passos.
Ofegante, Yeonjun sabia que precisava acabar com aquilo. O esforço físico era real, tornando também o cansaço palpável e verdadeiro. Ele estava exausto depois da batalha anterior, e precisava de uma brecha do inimigo para infringir uma última retaliação. Precisava pensar, nem que fosse por um segundo…
— Droga… — murmurou, e o cavaleiro levantou a cabeça. Ao fazer isso, ele examinou todo o personagem como um todo. O revestimento em ferro batido tinha falhas em várias partes do corpo, parecendo ser reforçada com afinco apenas no pescoço e no capacete. A área baixa do quadril parecia exposta, deixando à vista os ligamentos da parte inferior com a superior do corpo, e Yeonjun só teve tempo de observar isso antes que os passos pesados da coisa começassem novamente, correndo até ele mais rápido do que antes, como se também estivesse ansioso para que tudo aquilo acabasse.
Ele não se sentia pronto, mas avançou mesmo assim. Ergueu a katana para cima, soltando um grunhido de ataque intencional, fazendo com que a armadura içasse a sua para se defender, e o garoto pulou com tudo e baixou a espada.
Mas ele não pretendia atacar no lugar proposto. Sua katana girou em suas mãos e raspou com violência na área exposta do quadril do NPC, pegando-o de surpresa repentina e fazendo-o cambalear até cair de joelhos, fechando o punho na espada acima da grama. Yeonjun bufou, encarando o sangue que escorria na neve e na sua lâmina, juntando as sobrancelhas pelo tom realista da coisa. Ele sentiu o cheiro de ferro no ar, e parabenizou os criadores daquela maluquice pelo teor de realidade absurda.
Mas era sua chance. Ele precisava acabar com aquilo de uma vez.
Avançou novamente, e o cavaleiro arrastou o corpo para trás, a espada erguida, as mãos trêmulas enquanto o sangue escorria ao lado. Yeonjun podia ouvir sua respiração ofegante, o corpo fazendo esforço para se afastar, como se sentisse o medo exalando dele. O sujeito balançou a espada debilmente para cima, apoiando-se em um dos joelhos para se levantar e lutar de novo, mas Yeonjun não cometeria o erro absurdo de subestimar sua capacidade de dar a volta por cima. O NPC era forte e bem programado, e Yeonjun estava exausto. Não podia dar mais chances. Ele correu e, com um chute violento, lançou a espada medieval para longe, arrancando-a das mãos do inimigo com brutalidade.
Sem piscar um olho, ele levou os pés para o peito do cavaleiro, lançando-o finalmente ao chão gelado, erguendo a katana para finalizar o jogo.
O corpo abaixo de seus pés tremia em espasmos. A armadura se balançava enquanto tentava fugir do peso acima de si, e um barulho estranho vinha de dentro da couraça, um som sufocado e constante. Parecia um soluço. Yeonjun juntou as sobrancelhas e pisou com mais força, tentando mantê-la parada, mas ela era insistente. O barulho ficava mais alto e isso o irritava cada vez mais. Em um movimento, ele se agachou o bastante para puxar a viseira da armadura para cima, tirando todo o capacete de uma única vez e jogando-o para longe.
Em um sobressalto, o garoto apontou a katana para o pescoço da coisa antes que o que quer que estivesse lá dentro atacasse, mas o que viu foi tão ou mais assustador do que tudo isso. Aquilo era…
Uma garota?
Ele pensou que estava louco. Os cabelos dela eram negros e se espalhavam pela neve, os lábios avermelhados tremiam de pavor e seus olhos eram puro terror, molhados pelas lágrimas que caíam na lateral do rosto. Ela tremia da cabeça aos pés, e não parecia mais ter forças para lutar.
Mas o que era isso?!
— Por favor… — ela murmurou, a voz fraca e apavorada — Não me mata. Por favor, não… — engoliu em seco, a garganta encostando na lâmina do garoto..
E foi então que ele acordou.

🕹️


Parecia ter sido um sonho.
Yeonjun se sentia mais do que estranho. A palavra certa não chegava em sua cabeça de jeito nenhum. Era como se estivesse anestesiado, alheio ao mundo e às conversas das pessoas, uma peça de fora do quebra-cabeça.
Depois de despertar na mesma cadeira em frente a escrivaninha com o coração esmurrando o peito e jogar os óculos malucos para longe enquanto via o quarto já inundado pela luz do sol, era a única forma que ele se via capaz de se sentir. Adicionado a isto, o garoto se viu por pelo menos dez minutos tateando o corpo inteiro enquanto buscava os ferimentos ou as dores, os cortes, qualquer coisa fora do normal que denunciasse o que havia vivido.
Nada. Não havia nada. Apenas as lembranças rodeando sua cabeça, tão vivas quanto seu coração palpitante no peito.
Uma loucura.
Por isso, não foi fácil se concentrar no restante do dia. O telefone andou em suas mãos o tempo inteiro, mais especificamente aberto no contato de sua tia Sue. Ele pensou em perguntar onde exatamente ela havia adquirido aquela maluquice de jogo, e se sabia do que se tratava antes de passá-lo para frente. Bem, se ela não sabia, certamente o dono sabia, pois vendê-lo por uma pechincha parecia ser a única forma de se livrar dele. Também tentou a internet e as páginas de comunidades, buscando por um jogo sem nome, conhecido apenas como a prisão dos medos. Ninguém parecia ter ideia do que ele falava, e isso só aumentava sua frustração.
Mas nada era tão frustrante quanto o olhar apavorado da garota combatida na neve.
A tecnologia de NCPs era avançada, e as produções de AU não descansavam enquanto não atingirem a perfeição de montar um bom personagem fixo que tivesse tamanha destreza e habilidades quanto uma pessoa real – sendo específico, mais do que uma pessoa real. Mas eles ainda não tinham alcançado um patamar tão real assim. Aquilo não parecia um NPC, um simples comando robótico e automatizado por circuitos digitais, aquilo parecia…
Yeonjun nem queria pensar nisso.
No entanto, quando a noite caiu e sua cabeça repousada no travesseiro parecia mais pesada que o normal, ele não se via mais em posição de ficar parado. Todos os seus instintos o diziam para voltar àquele ponto que deixou para trás; a dúvida que ele não poderia conviver. Alguma coisa tinha acontecido e ele não podia mais fugir dela.
Com um solavanco, sentou-se na cama, encarando fixamente o objeto empoleirado na escrivaninha, levemente limpo pela arrumação de sua mãe de mais cedo, com os óculos repousando suavemente em cima da caixa, como se o chamasse, implorando para que ele saciasse todas as perguntas e a sede de novidades.
Não era como se lhe oferecesse alguma escolha.
Ele se pôs de pé, caminhou até a mesa e pôs os óculos novamente, apertando o botão que o levaria de volta ao mundo magnífico e assustador de PUMA.

🕹️


Ao se materializar novamente sobre a grama, ele viu o sol raiar.
Agora era possível notar as florestas densas ao longe, abelhas circundando flores, pedregulhos organizados em trilhas e o cheiro de relva forte pelo sol. Além disso, havia outro cheiro no ar. Um que ele não reconheceria se não tivesse participado da balbúrdia. Um cheiro que já estava quase que totalmente dissipado pelo ar.
Enxofre.
Foi então que notou o buraco negro no meio de todo o verde do gramado. Coincidentemente, o lugar da explosão de PUMA, onde a relva estava negra e morta, caída, esmagada. Os traços da batalha de ontem. A prova de que tudo foi real.
Ou tão real quanto um jogo poderia ser.
O círculo piscante na panorâmica dançou novamente. Yeonjun levou os dedos até ele, recebendo novamente a frase dançante em sua frente, o aviso claro que já esperava receber:
Parabéns, você derrotou o Cavaleiro PUMA! Bem vindo à Fase 3!
A frase rebobinou e desapareceu, dando lugar a uma nova, desta vez logo acima de sua barra de vida.
Parece que você anda bem perto de morrer, não é mesmo? Colete os itens a seguir para curar os ferimentos e recolher energia para recuperar suas forças. E ah, cuidado com os monstros na floresta!
A sentença soou como sarcasmo. Ele imaginou uma plateia assistindo seus movimentos com taças de cristal nas mãos, como a burguesia de The Purge.
Uma grande seta em azul piscou e brilhou, apontada para a direção logo à frente. Yeonjun juntou as sobrancelhas, ainda analisando suas informações de jogador. A barra de vida estava exatamente do mesmo jeito que a deixara no dia anterior e, apesar de não ter mais ferimentos visíveis, ele sentia um leve incômodo nas articulações e nos demais pontos de impacto. Sua energia não era automaticamente recuperada; ela dependia de itens de sobrevivência humana, como comida e artefatos de cura; era um jogo de vida real.
Ele não acreditava em coincidências, mas aquilo parecia um tanto radical demais.
Seguindo pela seta, ele se embrenhou em mata alta e selvagem, tomando o cuidado de fazer seus olhos pertencerem a todo lugar, buscando qualquer informação ou perigo novo. Ele voltou às configurações, analisando os itens pedidos. As propostas eram simples, porém o cenário não parecia que facilitaria na obtenção de nenhum deles. Ele soltou uma risada seca, sentindo a excitação do desafio. “O que acha disso, titia?”, ele resmungou para si mesmo, em escárnio. Talvez ela tivesse pensado que o jogo se tratava sobre a busca de qualquer Santo Graal, mas isso parecia tão ridículo agora que Yeonjun não conseguia levar a ideia a sério.
Ele sentia que não estava nem perto de entender o propósito daquele mundo.
Mas o fato era que Yeonjun havia passado muitos anos de sua vida se envolvendo com eletrônicos para não acreditar em evidências ínfimas de que suas criações tinham uma base verdadeira – vindas de um mundo verdadeiro. E aquele em que estava era todo o incentivo de que ele precisava para tornar suas teorias em fatos.
Seus 18 anos logo chegariam, e com ele viriam os vestígios muito precisos de toda a sua experiência naquele universo da prisão dos medos. Esse era o verdadeiro propósito: descobrir o que o esperava ao longo desse caminho.
Ele continuou caminhando, atento ao que podia e o que não podia ver. Os itens eram peculiares e desconhecidos. Havia um risco enorme de perdê-los no meio de todo aquele verde, que escurecia cada vez mais à medida que ele avançava. Lembrou-se do aviso sobre os perigos da área, mas tudo parecia limpo, invisível.
A não ser pelo barulho de água corrente não muito longe dali.
Yeonjun não levou em consideração sobre os ruídos serem hipotéticos. O jogo estava ali para enganá-lo a todo custo, mas se desconfiasse de tudo, não sairia do lugar. Em 17 anos de vida, ele havia conseguido muitas coisas por arriscar no que as pessoas não conseguiam arriscar, e tencionava agora a dizer que aquele jogo era um deles, o qual pretendia adicioná-lo à lista de itens de conquista assim que o zerasse por completo.
Já o disseram que ele tinha um jeito extraordinário para descobrir esquisitices, mas aquela que via agora ultrapassava todas as possibilidades.
Um pequeno riacho se abria no meio de uma clareira, como uma visão deslocada e sem sentido daquele mundo. O barulho não era mais apenas de água corrente; agora era alto, agitado. Ele viu a superfície se mexer até uma cabeça irromper para cima, e então mergulhar de novo. Ele olhou para o lado e viu a sucata que era a armadura do dia anterior, totalmente jogada no gramado. Yeonjun engoliu em seco; a cabeça emergiu novamente, puxando o cabelo grudado para os ombros, revelando as costas nuas e úmidas.
Ele sentiu a garganta secar. Um turbilhão de coisas se passaram por sua mente. Seus pés se moveram por conta própria, devagar, até pisarem em um dos montes de restos de folhas secas e cadáveres de gravetos e causar barulho suficiente para que a pessoa virasse para trás como um jato e o encarasse assustada.
Antes que ele se mexesse, ela já estava fora da água, correndo até a armadura e sacando uma pistola Astra de modelo antigo, não se importando em estar semi-nua.
Yeonjun deu um passo para trás com a rapidez da garota, e podia jurar que via medo naqueles olhos, debaixo de toda raiva. O corpo dela era tomado por cicatrizes.
— Ei, você… — ele tentou começar, e ela se aproximou a um passo.
— Se acha esperto? — ela grunhiu, e sua voz era firme e real — Veio para me matar?
— Quê? Não…
— Mostra o que tem.
— O que…
— Anda logo! Mostra o que tem nos bolsos!
Yeonjun achou que era parte do jogo. A NPC era muito real, com as gotículas de água escorrendo pela pele e a feição amedrontada, mas ainda devia ter seu papel como jogadora. Tudo o remetia à batalha do dia anterior.
Ele levou uma das mãos aos bolsos e puxou de lá o tecido vazio. No outro haviam apenas algumas moedas.
Ela revirou os olhos.
— Não esses bolsos, idiota — ela deu mais um passo à frente — Os itens! Quero ver os itens!
Ele umedeceu os lábios e baixou os ombros.
— Ainda não tenho nenhum — respondeu.
— Como não tem nenhum?
— Estou procurando por eles agora mesmo.
A mão dela fraquejou um pouco, mas sem baixar a guarda. Ela não pretendia acreditar nele tão fácil, mas fazia tanto tempo que não via um desses que podia acreditar que ele não tivesse relação alguma com o último.
Isso não significava que ele era parte de algo maior, como ela esperava.
Quando baixou a arma, Yeonjun engoliu em seco e viu que, talvez, ela o considerara merecedor de continuar vivo. Ou só tivesse tido pena mesmo.
Ela se voltou para a armadura e começou a se vestir novamente, juntando suas poucas coisas. Yeonjun se agitou por um momento com a ideia de perdê-la de vista.
— Ei, espera — disse ele, quando a viu começar a se afastar — Qual é o seu nome?
Ela parou. A questão do nome era algo complicado.
— TXT-0212 — respondeu. — É o que eu lembro.
Ele juntou as sobrancelhas. Ela começou a se afastar de novo.
— Meu nome é Yeonjun — disse rápido — Choi Yeonjun se quiser ser formal. Pode me ajudar?
Ela parou novamente e se virou, impaciente. O que esse garoto pensava que estava fazendo?
— Te ajudar em quê?
— A encontrar os itens. Ou me ensinar sobre essas trilhas e sobre monstros, e essas coisas… — ele tentou formular as palavras rapidamente, no intuito de que ela não fosse embora.
A garota parou por um instante antes de desviar os olhos e virar as costas novamente.
— Você parece ter uma habilidade especial para encontrar coisas — disse ela. — Não precisa de mim.
— Você é uma das coisas que eu deveria encontrar? — perguntou ele.
Ela diminuiu a velocidade, olhando-o por sobre o ombro de forma excessivamente curiosa.
Yeonjun tinha que concordar: ela era real. Uma pessoa de carne e osso, como ele. Nenhum NPC seria capaz de transmitir uma expressão tão humana daquele jeito.
— Não tem nada de especial comigo — respondeu ela. — Mas chegar até aqui sem nenhum item de sobrevivência não é muito inteligente.
— Por isso preciso de ajuda — disparou ele, se aproximando ainda mais. Desta vez, ela não se mexeu — Normalmente consigo me virar sozinho. Mas… O que rolou ontem…
Ele parou quando ia se referir à PUMA e a toda loucura de explosões, e a mesma garota saindo de dentro da carcaça com a espada nas mãos. Mesmo assim, seu silêncio soou como um pedido de esclarecimento. Ela entendeu isso, mas balançou a cabeça com desdém. TXT-0212 desprezava todas as perguntas difíceis, inclusive as suas próprias.
Por fim, disse:
— Pode me seguir, se quiser. Mas não vou lutar por você.

🕹️


Diferentemente do que se esperava, Yeonjun passou a chamá-la de .
No início, ter um nome era estranho e até desconfortável. Ela sabia que, provavelmente, tivera um nome um dia, e que ele não devia se parecer em nada com aquele, mas depois de um tempo, passou a aceitá-lo – e a gostar dele, por assim dizer. Talvez passou a gostar de mais do que só daquele nome.
O rapaz era alto e magro, tinha o cabelo escuro e bagunçado e o rosto bem formado e pálido. Ele era como uma fotografia antiga, em preto e branco, mesmo que seus gestos e forma de falar indicassem totalmente o contrário. Na verdade, ela se sentia ultrapassada em relação a ele.
— Que bom! — disse ele em um dia ensolarado enquanto emergia da água morna do riacho e balançava os cabelos molhados como um cachorro — Você vai, não é?
— Eu fui convidada? — às vezes era peculiarmente educada. Quando ela não tinha certeza sobre algo, um sotaque carregado em tom ocidental sempre aparecia, e agora estava em evidência.
Mas já fazia um tempo que não precisava de convite. Desde que deixou que o invasor a seguisse naquele dia, a relação havia se estreitado ao ponto de atender pelo nome que ele lhe dera. E ao ponto de apresentá-lo à PUMA, sua barraca e seus lugares secretos com itens escondidos. A numeração de seu nível era desconhecida, e a dele aumentava cada vez mais à medida que lutavam juntos contra monstros e desbravavam ainda mais o mapa da prisão dos medos. Mesmo que houvesse outra coisa que Yeonjun claramente gostaria mais de desbravar: a história da jogadora.
E por isso a pergunta do convite veio. Os dois haviam brigado, de novo. Como sempre. Por causa de perguntas invasivas e ansiosas. não brigava com outro ser humano há um bom tempo, mas apenas pela grande falta deles no ambiente.
Ele suspirou e se sentou ao seu lado na relva verde-escura.
— Não seja assim — respondeu Yeonjun, e gentilmente tocou o ombro dela com o seu, numa tentativa de trazer algum sorriso no rosto, que se tornava cada vez menos raro para ela — Não vou conseguir sem você.
— Você sabe que vai — ela virou a cabeça — Estamos em níveis diferentes, não vou estar sempre…
— Isso é uma ameaça? — ele interrompeu — Quer dizer que sabe como sair daqui?
Ela abriu a boca para responder, mas não completou. Encará-lo se tornava mais difícil a cada dia. Encarar suas perguntas, também. Yeonjun era carregado de necessidades práticas em relação à – porque não se sentia pronto a demonstrar o que realmente vinha nascendo dentro de si.
Com um pigarro, ela se levantou e andou alguns passos para longe do rio. De costas, abriu suas próprias configurações bagunçadas e antigas e deslizou os dedos na confirmação que já queria fazer, mas a autossabotagem não permitia.
Yeonjun viu a notificação que avisava que sua parceira de aventuras tinha topado mais uma.
— Obrigado — disse ele, verdadeiramente feliz.
— Foi pela raíz de cogumelo — disse . — É um dos itens mais raros do jogo. Você morreria sem ela.
Yeonjun assentiu, sem perder o sorriso. Em questão de gratidão, era rápida em designar o crédito para outra pessoa ou coisa.
Ela se virou e viu o garoto recostado no gramado, sem a camisa e com os pingos da água curativa ainda rolando por seu corpo. A mesma água na qual se conheceram pela primeira vez. Ele estava de olhos fechados e com a expressão exalando uma completa paz que a deixava admirada em grande parte do dia, mesmo que não deixasse que nada daquilo afetasse sua forma de agir.
Até quando ficaria sem entender qual era o propósito de tudo aquilo? Qual era o propósito dele...

🕹️


O céu estava manchado pelo rastro de aurora boreal e enxames de vagalumes.
A mata aqui era tão alta que quase batia em seus ombros. A katana escolhida desde a batalha fatídica do primeiro nível serviu para abrir caminho para os dois até o centro da enorme clareira, abraçando a grande árvore gigante composta por três cogumelos-rei banhados em luz verde e brilhante.
Yeonjun se deixou perder o fôlego por alguns instantes. não tinha expressão significativa, mas sentiu o coração aquecido de alguma forma.
— É lindo — suspirou o garoto — Não vai me dizer que passou batido por aqui?
Puxando a pistola das costas, zombou:
— Desculpa, esqueci de tirar uma foto.
— Do jeito que sua memória funciona, isso seria necessário — respondeu ele, agachando-se atrás de um amontoado de moitas, que se balançavam mesmo sem vento algum. Abriu suas configurações e começou a retirar os itens necessários que precisariam: mais uma arma, máscara de gás venenoso para abelhas descaradas daquele mundo, o recipiente para a coleta da raiz e uma porção de energia. fez a mesma coisa, observando mais do que agindo, mas de forma com que fazia o processo todo parecer banal.
às vezes tentava esconder o tempo em que estava presa naquele universo, mas tal fato aparecia nos menores gestos. Ela mal olhava ao redor para se mover e tinha respostas na ponta da língua sobre localizações e informações importantes sobre monstros e aplicação de armas. Era uma especialista.
E reconhecer isso era mais triste do que legal.
Apesar disso, Yeonjun aprendia muito. Observá-la resolver as situações fazia um calor se espalhar por todo seu corpo, a excitação pelo aprendizado o tomando por completo. Ele abria um largo sorriso sem perceber.
— Então, vamos ao teste, sr. Choi — ela engatilhou a pistola e se levantou — O que você vê de suspeito ao redor que possamos pegar antes que nos pegue?
Ele olhou para os lados, apurando os olhos e ouvidos.
— Quimeras — respondeu ele, indulgentemente. — Representações de Apófis… Anões… Garms…
Balor — acrescentou , tenaz.
Yeonjun parou de falar, sentindo a garganta seca. Ele ainda não havia enfrentado um monstro tão forte.
— Claro, e fantasmas também. Agora precisamos ir logo.
Os dois ficaram ali, iluminados pela luz verde e escondidos sob a sombra da moita enquanto terminavam de organizar os apetrechos de batalha até se levantarem e seguirem para perto da árvore. A lista de possíveis criaturas citadas por Yeonjun não chegava perto das reais possibilidades que poderiam aparecer. , como sempre, pensava no pior: Balor. A criatura celta que matava com o único olho. Se ele a assustava tanto, Yeonjun não estava disposto a subestimá-lo.
O silêncio era quase absoluto. Há alguns metros dali, perto das montanhas invisíveis, um animal guinchou fracamente, sendo o bastante para que os dois se virassem para lados opostos com as armas levantadas. A respiração dele era forte e pesada. A dela era presa, controlada. Os dois sentiam o mesmo medo.
Yeonjun bufou e apertou o passo em direção à árvore, e ouviu dizer seu nome por suas costas. Ele esperava não estar sendo muito tolo, mas sentar e esperar não era algo que estava disposto a aprender ainda. Antes que chegasse ao destino, ele sentiu a presença da garota por suas costas, pegando em sua mão com um puxão, fazendo-o parar e olhar. Ela revirou os olhos e recomeçou a caminhada, ainda segurando suas mãos, o que deixou a face dele avermelhada.
Aquela poderia ser qualquer missão que realizavam juntos há dois meses. Yeonjun começaria atacando caso algum monstro aparecesse, ficaria com raiva e o daria cobertura, eles discutiriam quando ele interferisse enquanto gritava “esse era meu!” e ela responderia com “você é muito afobado, imbecil” enquanto cortava a cabeça da criatura e a transformava em pó. No fim de tudo, os dois ganhariam seus pontos e subiriam seus níveis, recuperariam sua energia no riacho e Yeonjun desapareceria por várias horas até retornar novamente, sem nenhuma história da vida no outro lado. Às vezes ficava bem claro que Choi Yeonjun se sentia melhor no imaginário do que no real. Às vezes ele mesmo não se sentia real o suficiente.
Eles chegaram à base do tronco grosso e bruto, olhando em cada detalhe de forma minuciosa.
— Tente ser rápido, Yeonjun.
Ela virou-se na direção do mesmo caminho que vieram, com armas em prontidão. Ele se ajoelhou e agarrou a bússola e a lanterna dos “bolsos” de jogador, buscando a raiz preciosa que completaria seu nível.
não deixou a guarda aberta, mas ela olhava para a direção errada. Quando faixas grossas de cipó brotaram da terra logo ao lado dos joelhos de Yeonjun, elas agarraram seu pulso e puxaram-no de encontro ao solo, fazendo-o soltar um grito de surpresa e a garota se virar no ato.
— Droga! — ela grunhiu, apontando a arma e dando o primeiro tiro, que atingiu as raízes grossas, porém sem surtir grande efeito. As serpentes amadeiradas já tomavam grande parte de seu braço. Ao fundo, o barulho se assemelhava a uma garganta que engolia seu alimento. — Solta ele, imbecil! — ela atirava novamente, mas a besta não parecia estar sentindo alguma coisa.
… Não… — Yeonjun tentou dizer, mas as raízes agora caminhavam com fervor até seu pescoço. A garota não parecia estar ouvindo. As balas ricocheteavam contra o tronco com vontade, até que não sobrasse mais nenhuma. Ela apertou o gatilho com raiva, buscando outra arma rapidamente.
Foi quando uma das cordas ferozes do monstro atingiram e se enroscaram em seu calcanhar, puxando-a com força para o chão. Sua cabeça bateu contra a grama, fazendo-a soltar um gemido. Yeonjun gritou, os pelos de seu braço se arrepiando em pânico ao ouvir o som da garota. Algo dentro dele se remexeu, forte e desesperadamente. O inconsciente gritou, e ele conseguiu puxar a katana com o outro braço que ainda não foi tomado e desferir um golpe brutal nas raízes assassinas, livrando-se de grande parte delas.
As criaturas pareciam vivas o suficiente para sentirem dor. Rangidos agudos ecoaram em seus ouvidos quando ele as cortou de seu pescoço, e depois do resto de seus braços e se afastou aos trotes até , ofegante e assustado. A katana desceu mais uma vez até cortar o emaranhado que tomava as pernas de pela metade, que guincharam e recuaram imediatamente.
— Vamos lá, vamos lá! — rosnou Yeonjun, puxando a garota desacordada pelos ombros, rastejando para longe da árvore.
Algo buzinou em seus ouvidos enquanto ele se afastava. Um brilho azulado e forte brilhou diante de seus olhos, envolto pelos chicotes da árvore. Ele piscou duas vezes e desapareceu por detrás dos outros, mas deixando o aviso claro que fez o coração de Yeonjun acelerar.
Era o Santo Graal.
Ele girou o botão das configurações, mantendo os olhos fixos para não perder o brilho. Puxou uma espécie de vara metálica, que emitia uma linha por um impulso, do tipo que se usava em escaladas. Ele se assegurou que o corpo de estivesse seguro e bem escondido pelo véu que ele coletara há algumas missões anteriores e partiu para a luz azulada, mirando nos arredores para destruir as garras da árvore. A arma balançou e fez um barulho esganiçado antes de se soltar e voar de encontro ao brilho, cravando-se nele com um tiro certeiro.
As serpentes de cipó não pareceram gostar nada disso, mas Yeonjun já esperava. Quando elas se esticaram com fervor na direção dele, o botão do gatilho da vara esquisita fez seu serviço. Uma explosão o fez dar um passo para trás, o calor chamuscando os braços da árvore, que gritavam em desespero, na luta para viver mais um dia.
Ele puxou a corda de fibra com força, trazendo para si o item que havia pegado um pouco das chamas, mas que se apagou rapidamente com a força do vento. Ele viu o mesmo acontecer com as demais raízes, mas elas já estavam fracas o bastante. Ele encarou o item azulado no chão, uma raiz pálida e lisa, como marfim. Ele a encarou por um tempo longo e desconhecido. Tão longo que não reparou o cipó furtivo e mortal que voou com velocidade em sua direção.
Tudo aconteceu muito rápido. Antes que o monstro o atingisse, ele foi barrado por uma espada grossa e medieval, cravejada de rubis e que soava como ferro pesado de outras terras longínquas. A cabeça de estava tombada pelo esforço, e o sangue escapava de sua testa, mas ainda assim, suas mãos rápidas puxaram o instrumento para trás com rapidez e cortaram com afinco a última parte do monstro. Pó.
Meus parabéns, você alcançou mais um nível!"
Em um instante, os tentáculos sumiram. O silêncio voltou. A árvore de cogumelos estava plena, como se nunca tivesse se mexido.
Ele experimentou encará-la mais uma vez. A expressão de era fria quando se virou, a boca entreaberta e os olhos pesados.
Ele juntou as sobrancelhas e falou:
— Disse que não lutaria por mim.
Ela engoliu em seco, ou foi apenas um movimento involuntário antes que dissesse:
— Pelo menos funcionou — deu uma risada nasalada, e seus olhos perderam o foco — Acho que tem algo errado…
E então ela desabou no chão.

🕹️


Quando abriu os olhos de novo, o sol brilhava forte fora da tenda.
Ela ouviu o som do riacho ao fundo, na base do desfiladeiro, e o cheiro característico de casa. Sua casa. A visão turva foi se estabilizando aos poucos até que ela notasse o mesmo teto e a mesma cama de retalhos. Se sentou devagar, sentindo-se surpreendentemente bem. Ao se lembrar de toda a missão do dia anterior, levou as mãos à testa imediatamente e não encontrou ferida alguma, muito menos um curativo.
Alguma coisa estava errada.
Ela ouviu os passos antes que ele chegasse. Yeonjun irrompeu para dentro, trazendo uma bandeja de frutas variadas e pacotes de energia, que logo foram armazenados em suas configurações. Ele a encarou e abriu um grande sorriso.
— Ah, você acordou — disse ele, se aproximando — Como você está?
— Ótima — respondeu ela, se levantando — O que é estranho, Yeonjun. Como eu estou ótima? Aquele monstro quase rachou a minha cabeça.
— Mas não aconteceu. Eu jamais deixaria que acontecesse — respondeu ele, ignorando o pulsar intenso do coração ao vê-la de pé e pronta para uma nova discussão.
Ela deu de ombros, esperando o restante da explicação.
— E aí? — ela fez sinal para que ele continuasse.
Yeonjun colocou a mão no bolso e lhe estendeu a raíz esbranquiçada e rara.
— O que é isso? — perguntou , estudando o objeto — Não me diga que você…
— Sim. Usei em você — ele a interrompeu — Você não estava respondendo, estava sangrando demais e suas configurações entraram em colapso. Você ia...
Ele parou. Não era como se tivesse pensado no próximo passo depois daquilo. A expressão de era nula, mas seu maxilar estava trincado. Ela não parecia querer considerar o assunto.
— Eu ia morrer, é isso? — ela disse em um fio de voz, escondendo o quanto suas mãos tremeram com a ideia.
, não… — ele colocou uma das mãos em seu ombros, mas ela o repeliu bruscamente.
— Não importa. Não importa, Yeonjun! O item era seu, e apenas seu! Você é a pessoa que está destinada a grandes coisas, você é o jogador que precisa me vencer, você não tem que fazer coisa nenhuma pra mim, eu nem sou…
— Humana? Vai ter coragem de me dizer isso? — ele levantou a voz, dando um passo para a frente — Depois de como sangrou ontem, ainda vai ficar nesse papo de que não é humana? Que não é uma pessoa de verdade? E quem se importa com grandes coisas?! Eu quero alcançar UMA coisa nesse jogo, apenas uma! — ele bufou, encarando seus olhos estáticos — A única coisa que eu quero que seja verdadeira em toda essa loucura.
respirou fundo, ignorando o bater forte de coração. Ela apertou a raíz entre os dedos, tentando não pensar no assunto de novo, o assunto que já havia brigado várias vezes com o garoto e que sempre tentava despistá-lo.
— Você sabe que não existem pistas — disse ela. — Não existe nada que diga quem eu sou, ou da onde eu vim, ou até mesmo há quanto tempo estou aqui. A única lembrança que tenho do mundo exterior é de uma tela pequena de um fliperama e do cheiro de cigarro e cerveja num bar escuro que nem me lembro da onde é. Naquela época, James Earl Carter Jr. era presidente dos Estados Unidos e a Coreia só fazia parte de uma história recente de guerra. Eu não sei que idade tinha, ou quantos anos tenho agora, e os outros semelhantes a você que surgiram foram mortos ou desapareceram. Você é dotado de compaixão, mas ela é desnecessária pra mim, Yeonjun. Nada está diferente, por mais que você tente.
Yeonjun a encarou com um olhar duro. Era difícil para dizer aquelas palavras, sempre foi. Evitar as perguntas dele não foram o suficiente para tirar a ideia da cabeça do garoto, e isso a frustrava mais do que irritava.
— Tudo bem — concordou ele, cruzando os braços — Eu entendo o seu ponto. Mas não quer dizer que vou mudar o meu plano. Eu vou te tirar daqui, . E vou destruir esse jogo. Vou levar você lá pra fora e vou te mostrar um mundo novo.
Ele pontuou, virando-se na direção da porta, arrancando a camisa e jogando-a em qualquer canto.
— Vou estar no rio. Acho que você precisa dele também.
E então saiu para fora.
sentiu um formigamento no estômago. Ela sentiu as palavras de Yeonjun serem gravadas dentro de si, junto com os olhos. Tinha alguma coisa terrivelmente verdadeira naquele olhar, naquela forma de falar. Ela trocou o peso de uma perna a outra, pensando, tentando ignorar as ideias malucas que a acometiam de vez em quando, mas que havia decidido não dar atenção a nenhuma delas porque eram impossíveis e inviáveis.
Mas sua vontade era óbvia. E ela precisava descobrir se, caso desse permissão, aquilo seria possível.
Lá fora, Yeonjun era apenas metade de um corpo parado no meio da água, agora começando a ser pintada pela luz alaranjada do fim do dia. O tempo na prisão dos medos eram eventos temíveis e confusos. O dia e a noite aconteciam várias vezes durante o tempo de 24 horas, e o céu sofria metamorfoses sinistras e incríveis. Depois de um tempo, era possível notar um certo padrão nas cores, mas suas ocorrências ainda eram atropeladas e abruptas. No entanto, ainda eram paisagens lindas em cima de paisagens lindas.
E havia Yeonjun no meio de todas aquelas cores. Vê-lo ali agora a deixava mais intuitiva em relação ao que sentia.
caminhou até a beira do rio em silêncio, os pés ainda descalços do repouso, sentindo a grama roçar nos calcanhares. Ao chegar ao destino, ela se despiu lentamente e entrou na água, ainda quente, se aproximando do garoto. Yeonjun virou-se ao ouvir a agitação na superfície, os cabelos molhados e jogados para cima. Ela se colocou à frente dele, se sentindo segura sobre sua nudez, como sempre se sentiu na frente de Yeonjun.
Ele engoliu em seco, sentindo o coração triplicar de tamanho, tentando disfarçar o desejo que salpicava seus olhos.
Sem dizer uma palavra, se aproximou e pegou o rosto do garoto entre suas mãos. Aproximando-se lentamente, ela o beijou de forma sutil, calma e receosa. A atitude de quem não fazia isso há muito tempo, se é que lembrava de ter feito algum dia. Sua pele inteira ardeu em chamas e ela sentiu o corpo amolecer, entregando-se totalmente ao momento. Os braços dele passaram por sua cintura apressadamente, e ela cravou as pernas em seu quadril de forma intuitiva. O beijo aprofundado e faminto de Yeonjun a deixava com medo do próximo passo, mas ir com ele era tudo que ela desejava.
Durante o beijo, ela chamou seu nome. Yeonjun se sentia incapaz de responder. Ela se afastou de forma lenta, ainda mantendo sua testa na dele:
— Yeonjun… — ela arfou, a voz falha — Não sei o que fazer…
Nós vamos fazer — ele interrompeu, a voz abafada, ainda imerso no beijo e na presença dela — E vamos conseguir. Vai dar certo. Eu faria de tudo, — ele acariciou seu rosto, falando com toda a verdade de sua alma: — Eu trocaria de lugar com você, se pudesse.
Ele a beijou de novo, sabendo que nada no mundo lá fora poderia se comparar com a felicidade que estava sentindo naquele momento, no imaginário. E nada era tão real quanto ele e seus sentimentos.
Suas palavras vieram de dentro, do fundo. E ficaram gravadas no universo.

🕹️


No dia seguinte, Yeonjun acordou sozinho.
Era estranho não ver parada em qualquer lugar da cabana, afiando facas ou remendando roupas com aquela expressão séria e focada, pronta para corrigi-lo por qualquer besteira que fizesse logo pela manhã. Ele não havia presenciado grandes manhãs desde que entrara no jogo, e agora não fazia ideia de quantas horas haviam se passado.
Duas semanas antes, ele havia passado a noite na prisão dos medos, o que gerou algumas horas de discussão com sua mãe no outro mundo por ele ter simplesmente “desmaiado” na cama, a ponto de quase causá-la um sentimento forte e desnecessário de pavor. Já devia ser noite em Seul naquele momento, então ele ainda tinha algumas horas para encontrar e se certificar que tudo que fizeram antes não era parte de um sonho.
Mas não estava em lugar nenhum. Lá fora, o rio descansava serenamente no sol forte, e as armas e os demais objetos estavam depositados no mesmo lugar na beira. Os cristais de energia não estavam polidos. As árvores frutíferas ao redor não tinham marcações verticais feitas à faca. O barulho de flechas nos troncos mortos não eram ouvidos. PUMA estava estacionada ao lado, empoeirada. Tudo era um silêncio absoluto. Onde estava, não existia espaço para silêncio algum.
Um pavor o tomou de repente. Ele pensou imediatamente: Balor.
? — ele disse, a voz trêmula, encarando todos os lados — !
Nada. Não houve resposta nem pelo vento. Pensamentos desagradáveis começaram a tomá-lo de verdade, e ele partiu para as configurações, procurando o artefato mágico que compartilhavam que cedia-lhe a localização de ambos, de parceiros.
E o que viu ali lhe pegou de surpresa de forma tão assustadora que ele perdeu a força nas pernas.
Sua boca ficou seca. Ele tentou mexer os dedos de novo e não conseguiu. Toda a lógica se esvaiu de sua mente.
Sua primeira reação foi tentar voltar. Era o que ele precisava fazer: voltar. Visualizar seu quarto, sua cidade, seu país e apertar o botão, mas ele havia sumido. Não existia mais botão de voltar. Não existia mais . Não existia mais sentido algum na prisão dos medos.
Ele olhou para PUMA, que piscava em vermelho, pedindo por combustível. Era um sinal que o contava que existia, mas ele nunca vira antes. Porque apenas os donos de PUMA eram capazes de ver e cuidar de suas necessidades.
Apenas os que a guiariam para as batalhas.
As configurações de PUMA estavam detalhadas em suas próprias.
Ele não era mais Choi Yeonjun, o real, o humano, o garoto.
Agora ele era PUMA. Ele era o próximo TXT-0212.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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