Última atualização: 31/12/2020

Capítulo Único

Ele segurava em suas mãos com firmeza, como se jamais fosse soltá-las. As lágrimas brincavam dentro dos olhos, como se fizessem uma aposta silenciosa; cairiam no próximo segundo ou morreriam no canto dos olhos?
Ele não conseguia acreditar que as coisas tinham chegado naquele ponto. Não conseguia se perdoar por não ter vistos os sinais, muito menos por não ter chegado a tempo de convencê-la do contrário.
Por que as coisas tinham que ser daquele jeito?
Por que as pessoas tinham que agir de forma tão cruel?
O mundo era um bom lugar, mas as pessoas simplesmente o destruíam com suas formas egoístas de habitá-lo. Não estavam nem aí para o outro, nem para nada que não fosse o próprio umbigo. Ele sempre soube disso e nunca duvidou da capacidade humana em se superar no quesito crueldade. Ele não acreditava que a humanidade ainda tinha jeito, mas nunca deixou de fazer nada que considerasse plausível, direito, o mínimo para uma boa convivência.
“Deus nunca precisou existir para que você faça o que é certo”, ele dizia para os mais próximos e para si mesmo, toda vez que estava diante de uma situação que o fizesse refletir.
Não acreditava em religiões, não acreditava em forças divinas e de vez em quando ria sem humor ao sentir-se reprovado, quando assumia seu ateísmo em voz alta. Como se houvesse uma linha lógica entre ser ateu e ser ruim ou estar condenado à danação — como diriam seus vizinhos.
Aquilo só mostrava o quanto as pessoas poderiam ser podres, julgando as outras sem sequer conversar ou se colocar no lugar do outro. Céus, o mínimo era o respeito! Mas, de novo, ele ria sem humor. Falava de humanos, esperava mais o quê?
O silêncio de sua mente o fez encarar o rosto pálido e imóvel.
Ele não esperava nada de bom. Mas não imaginava que algo de ruim pudesse atravessar tão profundamente as poucas pessoas que amava. Na verdade, a pessoa que mais amava.
Sim, era isso. Enfim admitiu para si mesmo?
Riu de novo, sentindo as lágrimas descerem pelo nariz.
O cabeça-dura amava alguém.
A dona das mãos frias, que ele se negava a soltar; a dona de um olhar mal-humorado e por vezes sarcástico, o sorriso torto que sempre o animou a seguir. A última raspa de esperança da caixa escancarada de Pandora.
O mundo valia a pena só por ela. E agora, deitada em uma cama de hospital, ele não via mais nada de bom no mundo.
Fungou ao sentir o soluço habitar a garganta. Apertou a mão dela novamente, buscando algum sinal... qualquer sinal!
Por que ela fez isso?
Não, que merda! Que merda de pergunta era essa?
Ele sabia exatamente o porquê!
Sabia por que ela estava ali, respirando com dificuldade, com os olhos fechados de forma tão assustadora, que ele temia que nunca mais os visse abertos novamente!
— Você poderia acordar, ... Está uma merda sem você. — Sua voz saiu falha e triste, e ele não conseguiu dizer mais nada. Apenas chorou no colo da garota que amava e, desolado, adormeceu assim.

— Você não pode fingir que não aconteceu, diretor Kieff!
— Ninguém está menosprezando os fatos, senhorita .
— Nitidamente que sim, diretor! Isso é inadmissível! Olhe bem para isso! — A jovem apontou para , que se abraçava, enquanto prendia os lábios, encarando o chão.
Estava ensopada de água da privada, devido à uma “brincadeira” das garotas do terceiro ano que implicavam com ela.
— Eu já afirmei que vou tomar as medidas necessárias, senhorita . Vamos investigar o ocorrido, analisar as câmeras de segurança e ver quem fez isso.
— Mas já dizemos quem fez! E como conseguirão algo pelas câmeras, se tudo ocorreu no banheiro?
— Você tem que entender que apenas a sua afirmativa e a da senhorita não são o suficiente.
— Então você vai deixar Sharon Wassermann se safar novamente? É sério isso, diretor? Há poucos dias teve aquele absurdo do armário, hoje é esse, amanhã é o quê? Como posso garantir que minha amiga estará a salvo nessa escola? — A garota gesticulava com a veia saltando de sua testa.
O diretor respirou fundo, ajeitou os óculos na base do nariz e cruzou as mãos em cima da mesa.
— Senhorita , sugiro que manere seu tom e se acalme. Ao que tudo indica, você não é a responsável legal por , então ressalto que minhas ações perante ao caso só dizem respeito à e sua representante. Você está aqui, porque ainda acredito na possibilidade de dialogarmos como pessoas sensatas e educadas. Mais uma fala alterada e vou solicitar que se retire da minha sala. Fui claro?
— Como água, diretor. — Ela respondeu, cruzando os braços. — Poderia responder à minha pergunta?
— Não, não vou deixar que o responsável saia impune. Mas precisa confiar nos meus métodos. Não posso assumir uma postura radical e julgar a Senhorita Wassermann antes de ter provas concretas.
— Diretor, você sabe que ela persegue desde que chegou! Você conhece Sharon, sabe do que ela é capaz quando se sente ameaçada!
— Concordo que a senhorita Wasserman demonstra dificuldades em aceitar situações que fogem de seu controle ou não fluam conforme seu gosto. Mas, repito, é cedo demais realizar um julgamento sem provas. Até que provem o contrário, são as palavras de vocês contra as dela e em todas as situações temos álibis e testemunhas que favorecem a senhorita Wassermann.
— É claro, nenhuma das amigas dela diriam a verdade! Inventam coisas para dizer que ela não estava no momento ou que não foi a responsável! Mas nós estávamos lá, nós vimos, sofremos com seus atos, diretor! Por favor, tem que acreditar em nós!
Kieff respirou fundo, retirando os óculos do rosto e fechando os olhos com força. Umedeceu os lábios e encarou as jovens diante de si. sequer se moveu durante o tempo todo.
— Gostaria de acrescentar algo ao relato da Senhorita , senhorita ? — Ele perguntou formalmente e a garota permaneceu como estava.
Ele suspirou ao sentir o olhar incisivo de .
— Certo, vou considerar os pontos de nossa conversa no relato que você realizou, senhorita . Peço que não tome nenhuma atitude precipitada diante do ocorrido e acredite: tomaremos as providências necessárias. Esse caso está sendo analisado com minuciosidade e cautela.
— Tô vendo, diretor! Cautela para não perder a matrícula da Wassermann e todos os benefícios que aquela família de magnata dá para essa escola!
— O que está insinuando, senhorita ? Que absurdos são estes?! — O diretor bradou, com a face indignada.
— O óbvio, diretor! E quer saber? Não preciso de convite para me retirar! Eu não fico mais um segundo nessa sala que fede a corrupção e hipocrisia! Vamos, ! — A jovem pegou a amiga pelos braços, que mal correspondeu; foi praticamente arrastada para fora da sala, enquanto Kieff bradava palavras de sua mesa, que foram ignoradas pelas duas. — Esse filho da puta vai pagar por tudo isso, amiga. Não se preocupe, vamos dar um jeito nisso. Quer dormir lá em casa? Podemos fazer um cinema improvisado, ver uns filmes de comédia romântica, comer guloseimas! O que acha?
encarava o chão com o olhar fundo e sem vida. respirou pesadamente do seu lado.
? — Ela perguntou novamente, com o olhar preocupado.
— Eu quero ir para casa. — A jovem respondeu automaticamente e suspirou.
— Tem certeza?
— Sim.
— Então eu vou com voc-
— Não precisa, vou caminhando. Está tudo bem. — E saiu andando com a mochila ensopada nas costas. — Até mais, .
— Até... .

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O dia estava ensolarado, lindo, mas por dentro, ela se sentia vazia. Por quê? Eram tantas coisas que vinham como resposta que ela não sabia nem por onde começar. Estava a passos da escola, quando encontrou sua dupla do projeto de história.
— Bom dia, Ravena! — Ele disse com a voz animada, aproximando-se da jovem, que respondeu seca.
— Lefebvre.
— Vejo que hoje você está de bom humor...
— Sendo a Ravena que você mesmo chama. — Um sorriso sarcástico surgiu na jovem e ele riu, dando de ombros.
— Você tem um ponto.
Uhul. — Ela disse, sem sequer ter olhado para o rapaz uma única vez.
Ele tentava parecer tranquilo, mas por dentro estava ansioso. Sempre ficava assim ao falar com .
— Então... você está muito chateada por eu ter perdido nosso encontro na biblioteca? — Ele perguntou ao dar uma corridinha e virar de frente pra ela.
Como ela não parou de andar, o rapaz foi obrigado a andar de costas, enquanto ela mantinha a boca fechada.
— Vou considerar isso como um sim... — ele falou mais baixo, com uma careta de dor. — E se eu te pagar uma casquinha, será que você fica mais animada? — Ela rolou os olhos e moveu seu corpo para desviar do dele, mas o rapaz foi mais rápido. — Tá, tá bem, me desculpa! Mas foi por uma boa causa, . Eu sei que combinamos, mas eu acabei me perdendo em outros projetos e quando vi...
— Você quer sair da minha frente, Lefebvre? Eu vou me atrasar mais uma vez para a aula de química e não tô a fim de ouvir esporro de manhã cedo.
Ele suspirou com os olhos levemente arregalados. Não estava acostumado com aquele tipo de tratamento da jovem e sentiu o coração dar uma pequena apertada ao sentir que ela realmente ficou chateada com ele.
A verdade era que, por causa do não-comparecimento dele, ficou muito tempo na biblioteca e quando desistiu de esperar, dirigiu-se para o banheiro, encontrando as meninas que vinha evitando nas últimas semanas. Sharon Wassermann estava com saudades de realizar seu bullying e o resto é história. Não era culpa do garoto, mas não estava bem com aquilo. Ele sequer deu sinal de vida no dia anterior e, pelo visto, não fazia ideia do que tinha acontecido. Aquilo a irritou.
— Espera aí, . Eu... É sério que você tá tão chateada assim comigo? — Ele perguntou retoricamente e foi a primeira vez que ergueu a cabeça para olhá-lo.
Viu o receio no olhar do rapaz e suspirou, rindo sem humor.
— Às vezes, Lefebvre... Só às vezes, o mundo não gira em torno de você. Eu não estou tendo dias bons e você é só mais uma das pessoas que não facilita meu lado. Você sequer mandou uma mensagem! Você sequer me procurou! E agora age como se estivesse tudo normal? Que tal simplesmente fazer como ontem e sumir? Me deixar em paz?! — Ela perguntou irritada e ele arfou.
— Cara, calma! E-Eu não...
— O trabalho era para ser entregue hoje. Não se preocupe, você vai tirar dez, porque a otária aqui dá conta de tudo. — Ela deu um passo a frente e ele a impediu.
— Espera!
— Me erra! — Ela berrou, dando uma trombada com o ombro em seu peito; ele foi para trás, olhando assustado a garota que seguia seu caminho a passos firmes.

Não sabe quanto tempo ficou assim, mas tomou um susto quando ouviu a voz ao seu lado.
— Você é um idiota. — comentou, olhando se afastar.
— Eu? Por quê? Ela esperou tanto tempo assim?
— Você não faz ideia do que aconteceu, não é? — Ela perguntou com a cara óbvia e ele franziu a testa.
Ela rolou os olhos e pegou o celular.
— Isso aqui aconteceu ontem. foi encurralada depois de ter esperado horas por você na biblioteca. Ela foi ao banheiro e bang, Sharon Wassermann ataca novamente.
O rapaz viu inúmeras fotos de com a cabeça afundada na privada e legendas como “Lugar de lixo é no lixo!”, “Coitada da privada!”, “Vadias tem o que merecem!” pairavam em letras garrafais.
O jovem respirou fundo, fechando os olhos e estapeando a própria cabeça.
— Entendeu agora? — perguntou, pegando o celular de volta.
— Que... merda! — Ele bradou e suspirou. — Já falaram com o diretor? Ela não pode sair dessa sem nenh-
— Já tomamos todas as medidas... E, mais uma vez, a sensação é de que nada será feito. não tá legal, Seb.
— E eu só piorei as coisas com esse discursinho idiota meu.
— O que você fez? — A amiga perguntou com uma cara pensativa e ele bufou.
— Ofereci uma casquinha de sorvete em troca do perdão dela.
— Você é um idiota. — repetiu e Sébastien teve que concordar.
— Pois é.
— Acho melhor você pensar numa saída... Antes que perca sua garota. — Ela disse e saiu andando a passos lentos.
— C-Como assim? Minha garota? — Ela se virou com a sobrancelha arqueada e riu.
— Vai fingir que não é assim que quer chamá-la, Seb? Você já foi melhor nisso, amigo. — E deu um tchau, seguindo seu rumo.
Sébastien fechou os olhos com força, xingando-se mentalmente. Ele tinha feito uma merda inicial e por causa disso, sentia-se culpado pelo que Sharon aprontou com . Pra fechar com chave de ouro, sequer conseguiu estabelecer um diálogo com sua amiga e agora, sentia-se a pior pessoa do mundo. Ele odiava ficar mal com seus amigos, mas com era diferente. Ele sentia-se inseguro, ansioso, preocupado...
Ao pensar nisso, lembrou da fala final de e riu sozinho. Não gostava de , só... só achava ela interessante. E bonita. E inteligente. E legal. E decidida. Com gostos musicais maravilhosos e um senso de humor impecável... E, ah, era cheia de opiniões que o deixavam pensativo e que o ensinavam muitas coisas. Mas era só isso! Que ideia era essa de “minha garota”?
estava completamente doida.

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Uma semana havia se passado; ignorava Sébastien e aturava a escola a base da amizade de , a única que a mantinha firme e forte no propósito.
— Nós poderíamos jogar twister, comer pipoca, cantar no karaokê... Precisamos decidir!
— Eu sinceramente prefiro ler e dormir, . — respondeu, entrando na sala de física e sentando-se em sua cadeira.
— Você está chata! Vamos, vai ser divertido!
— A noite do baile não me diz nada, cara. Não sei por que tenho que me esforçar a fazer algo diferente no sábado, só porque não vamos ao baile. Nem que eu fosse convidada eu iria. Então é muito esforço para fingir que não se importa de verdade, não acha?
— Você precisa parar de ler Nietzsche, é sério.
riu e deixou seu corpo descansar sobre a mesa.
— Você tem descansado, amiga?
— Mais ou menos. Tenho estudado para o vestibular. — mentiu, suspirando.
Tinha pesadelos com a água da privada e a insônia se tornava cada vez mais presente. Os dizeres pichados no armário também não a deixavam em paz. Pareciam tomar forma e a perseguiam, e muitas vezes sonhou que uma multidão a perseguia, enquanto berravam coisas absurdas como “Você é uma porca, vadia!”, “Nunca vai conseguir!”, “Você deveria ter sido abortada!” dentre outras frases que foram estampadas em seu armário. Toda a escola viu.
Desde que decidiu entrar na equipe de handeball, sofria com o bullying de Sharon Wassermann por ter ficado com o lugar que a garota ocupava — o de pivô. Ela seguia invicta há quase três anos, com jogos maravilhosos, mas foi substituída com a chegada de . Desde então, a vida tornou-se infernal.
— Você não precisa correr, sabe disso, né? Se não conseguir uma faculdade agora, pode tentar depois.
— É claro, eu... Relaxa, . Tudo sob controle, só fazendo minha parte.
— Certo... Não pegue pesado. — respondeu e se calou com a chegada do professor, que iniciou sua aula com um “bom dia” audível.

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Quicava a bolada com rapidez, driblou a pivô, a meia direita e estava pulando junto com a ponta direita, quando recebeu um tranco tão forte que foi arremessada para o chão.
O apito soou em alto e bom tom, e respirou com dificuldades, antes de se colocar de pé. Ao fazê-lo, percebeu o cumprimento discreto entre a garota que a acertou e a Wassermann, que encarava com um sorriso debochado.
— Kyra, o que foi isso? Está maluca? Se fizer isso de novo vai pro chuveiro, está me entendendo? — A treinadora berrou para a “culpada”, que acenou com a cabeça e levantou a mão com uma joinha, sem sequer falar alguma coisa.
respirou fundo, sentindo dor no braço que a amparou na queda.
, está tudo bem? Consegue continuar?
apenas acenou e respirou fundo, encarando Sharon com cara de poucos amigos. A garota era do seu próprio time, mas a vontade de estrangulá-la era real.
O apito trouxe a novata de volta e o jogo retornou de onde parou. Batia a bola no chão, sem conseguir tirar o sorrisinho cínico de Wassermann da cabeça. Tentou manter sua calma, mas levou outros dois encontrões com diferentes meninas e ela sabia que estava sendo perseguida.
Bufou com aquilo, pois estava realmente machucada na altura da costela; a última queda lhe rendeu uma dor considerável.
— Está tudo bem, querida? Parece que a marcação está acirrada! Não deixem te pegar! — A treinadora disse, segurando pelos ombros, que encarava Sharon com um olhar matador. — ? ? — A treinadora chamou, mas era tarde.
Em passos rápidos, pegou a bola, seguiu como se estivesse em jogo e saltou como se fosse fazer um gol.
E fez.
Só que na cara de Sharon Wassermann, que não teve para onde correr; apenas recebeu com o rosto, a bola em cheio.
O apito soou, a treinadora esbravejou e foi intimada a sair da quadra, seguindo para o chuveiro. Meia hora mais tarde, foi liberada da escola, com uma suspensão de três dias por seu ato “impensado e agressivo”, que “não condizia com as políticas da escola”.
Recebeu várias mensagens das redes sociais que mostravam o nariz sangrento de Sharon Wassermann e comentários sugerindo uma rinoplastia para acertar o rosto da garota.
O sorriso que carregava no rosto valia a pena qualquer suspensão. Seriam os três melhores dias da vida.

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Tocou a campainha, sentiu a mão suando frio. Estava realmente tão nervoso? Não teve tempo de responder a si mesmo, pois a porta foi logo aberta e por ela, uma de blusa de banda larga, que cobria o meio das pernas, pairava diante de si.
Ele achava que seria recebido pela senhora , mas aquela cena o deixou desconcertado. Não esperava ver de um jeito tão... à vontade. E ela parecia não se importar, pela cara de tédio que lançava para o amigo.
— Não estamos aceitando biscoitos, escoteiro. Volte mais tarde. — Ela disse com sarcasmo e estava prestes a fechar a porta, quando Lefebvre colocou o pé na porta e a impediu.
— Não, não, não, não! Espera! E-Eu venho em missão de paz, eu juro! Me dá cinco minutos para falar com você?
A garota lançou o olhar irritado para o jovem, que engoliu a seco.
— Cinco minutos. — Ela disse, abrindo a porta.
Ele sorriu de maneira patética, segundo , mas era fofinho de alguma forma.
— E então? — Ela perguntou com os braços cruzados.
Ele olhou em volta e parecia que sua mãe não estava em casa.
— Aquilo é... um vibrador? — Ele pensou alto, falando mais consigo mesmo do que com a menina, mas ela ouviu e sentiu a cara esquentar ao ver para onde ele apontava.
Saiu correndo para o sofá, que tinha um edredom e um dildo bem no meio, e envolveu o objeto com o pano, ouvindo as gargalhadas do amigo.
— O que você quer, Lefebvre?! Você tem quatro minutos e meio! — Ela exclamou com um misto de vergonha e raiva, enquanto guardava as coisas em seu quarto.
Com dificuldade, ele parou de rir e a seguiu, enquanto sorria com uma cara sem graça.
— Não me leve a mal, eu... Acho legal que se conheça, sabe? De verdade. — Ele falou de um jeito engraçado, mas ainda estava chateada e não iria facilitar as coisas.
— Quatro minutos e vinte segundos...
— Ok, ok! Olha, eu vim aqui para me desculpar. E para saber como você está. Eu sei que os últimos tempos não tem sido um dos melhores e que em parte, a culpa é minha sobre o dia da biblioteca e eu... Só queria que você não me ignorasse tanto. Eu sinto sua falta, . — Sébastien nunca havia sido tão sincero em tão pouco tempo, mas o desespero movia montanhas, além da fé, para a completa contrariedade do ditado.
o encarou com o olhar mais relaxado, sentindo-se abalada pela frase final do amigo.
“Eu sinto a sua falta” era algo que ela não esperava ouvir.
Principalmente, porque nutria uma queda pelo cara em questão, mas fingia exatamente o contrário, como se ambos fossem só bons amigos que se implicavam, desde que a amizade começou com a dupla na aula de história. Ela sabia que ele nunca a olharia daquela forma, então decidiu apenas afundar aquele sentimento até que não existisse mais nada. Faltava pouco menos de um mês para as aulas acabarem — estava se formando no terceiro ano do ensino médio e não precisaria mais conviver com Sébastien. Conheceria outras pessoas e não precisaria sofrer por uma pessoa que não lhe retribuía os sentimentos.
Faz parte, ela pensava consigo. Às vezes, ou quase sempre, essas coisas aconteciam. Algumas pessoas davam sorte na reciprocidade, mas era claro que não seria o caso de .
“Sorte” era simplesmente algo que não existia em sua vida.
— Por favor, me perdoa. Eu não sabia que tanta coisa tinha acontecido e se eu soubesse, teria tentado de tudo para revertê-las. Se quiser, podemos prestar queixas oficiais na delegacia contra Sharon Wassermann. Eu pesquisei e isso é possível, e aí forçaria a escola a pelo menos se pronunciar com mais responsabilidade diante do caso. Kieff é um belo de um filho da p-
— Eu não quero nada, Seb. Eu só quero paz. Só não quero doer mais, entende? São os xingamentos, as perseguições, o armário, a privada, o handeball...
— É, eu fiquei sabendo desse último. Wassermann não apareceu ainda na escola, dizem que ela realmente está pensando na rinoplastia.
— Sério? — perguntou com uma cara engraçada e Sebastien riu.
— Sim! Quero dizer, eu não sou muito adepto à violência, mas você deixou seu recado. Acho que ela vai pensar duas vezes antes de encher seu saco novamente.
— Infelizmente, eu acho que ela vai atazanar a minha vida. Mas vou garantir que ela faça de uma maneira que eu consiga provar. E então, não terá como negar que ela pratica bullying e me persegue, de fato... Gente mimada e rica é a pior espécie. — riu.
— Não é? — Sébastien concordou, sorrindo.
Os dois ficaram se olhando por um tempo e respirou fundo, quebrando o contato. Às vezes se sentia nua pela forma como o amigo a olhava, mas ela sabia que aquilo tinha mais a ver como se sentia em relação a ele do que de fato significar algo mais.
— Então... Já passaram os cinco minutos. Vendo que você não me expulsou, eu pensei se você não estava a fim de fazer alguma coisa... — ele perguntou bem envergonhado e sorriu com aquilo.
Se ela soubesse o que se passava na mente dele, veria o quanto o rapaz estava atravessado pelo que havia lhe dito. A ideia de “minha garota” passou de um absurdo total para “não tão ruim assim” em apenas vinte e quatro horas — e a mudança seguia.
Antes de mais nada, Sébastien precisava admitir que talvez, apenas talvez, ele se sentia atraído por . Por todas as qualidades já explicadas e pelas que ainda descobria com a convivência, ele não poderia negar que a jovem era uma pessoa interessante. Muito interessante. Interessante por inúmeros motivos. E aquilo era raro.
Sébastien era conhecido pelo geek mal-humorado que nunca se apegava a ninguém, que vez ou outra se envolvia com garotas, mas não estabelecia relacionamentos por sentir que era uma entrega grande demais para um compromisso pouco produtivo. Não era menosprezando as pessoas com as quais se envolvia, ele só não queria namorar uma pessoa que ele de fato admirasse como um todo e que as qualidades fossem tão brilhantes, que qualquer defeito seria facilmente ignorado ou suportado.
Como nunca maldou a relação com , chegou a comentar sobre seus parâmetros para um namoro com a amiga. E como a mulher grandiosa que era, deu uma bela de uma voadora ao sugerir que ele fizesse uma autocrítica, pensando se o rapaz estava a altura da mulher que considerava ideal. Desde então, Sébastien parou de falar sobre isso e a refletir, pensando que todas as pessoas são incríveis e insuportáveis à sua própria maneira, e encaixes existem como peças de tetris: o que talvez seja maravilhoso para uns, seja normal para outros ou péssimo para terceiros e por aí vai.
Então, ele entendeu por A+B que não eram as pessoas que lhes pareciam “rasas demais” ou não demonstravam tudo aquilo que ele buscava em uma parceira. Ele simplesmente não havia encontrado quem lhe encaixasse tão bem. Não até ouvir falar “sua garota”. Aquilo bateu tão forte em si, que Sébastien mal dormiu; manteve dentro do peito a sensação das palavras e as repetiu mentalmente, imaginando como seria se fosse, de fato, sua garota.
E ele gostou do que viu em sua mente.
não estava completamente doida, afinal.
— Aquela casquinha ainda está de pé? — interrompeu o pequeno devaneio de Sébastien, que a encarava como um homem perdido no deserto a procura de um oásis.
— Claro. Posso te pagar um sundae até. — Ele comentou e ela riu.
— Eu vou trocar de roupa. Espera um minuto. — A garota pegou uma blusa, uma calça jeans e seguiu para o banheiro.
Sébastien não conseguiu evitar o olhar sobre a calcinha e o sutiã que ela deixara em cima da cama, e antes que pudesse dizer qualquer coisa, entrou correndo no quarto.
— Esqueci disso! — Falou como se fosse a coisa mais natural do mundo e o sutiã preto com rendas vermelhas foi saculejado quase na cara do garoto.
Ela logo sumiu pela porta e ele soltou o ar preso nos pulmões.
Aquilo renderia boas doses de pensamentos e talvez, homenagens matinais à amiga .

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Duas semanas se passaram; havia retornado a escola depois dos três dias, falsificando a assinatura de sua mãe, sem necessidades de comparecer com a mesma à instituição. Desde então, certa paz poderia ser vivenciada, porque, sim, Sharon Wassermann fez a rinoplastia. A recuperação era algo sensível, então para evitar questões, a rival não apareceu na escola.
Não queria dizer que as ameaças pararam totalmente, mas pelo menos nada de novo havia surgido; sem águas de privada, sem armários pichados, sem encontrões nos treinos de handeball. estava quase vivendo uma boa vida, isso é, se não pensasse no inferno que era ao sentir-se sozinha quando voltava para casa.
Desde a morte de seu pai, a mãe precisava trabalhar o dobro para garantir as contas pagas e a família por parte de pai nunca quis saber delas, já que eram “frutos” de uma relação extraconjugal do homem. O pai tinha duas famílias, mas elas não eram “a principal”, o que gerou heranças apenas para a outra, que sequer quis saber de e sua mãe. Descobriram através da morte, que as viagens a trabalho, na verdade, coincidiam com a vida dupla que o homem levava e o luto pela sua morte teve boas doses de raiva e frustração também.
Desde que o pai se foi, mudaram-se para aquela cidade estranha, na qual e sua mãe não conheciam ninguém, mas não poderiam negar a oferta de trabalho e vida nova, principalmente com a mãe enferrujada no seu ramo. Precisou voltar a treinar os desenhos em plantas para os projetos de arquitetura e, por fim, não parava de trabalhar — quando não estava vivendo para a empresa, enfurnava-se em cursos de reciclagem para retomar o ritmo de mercado.
E não sobrava nenhum tempo para ; não mais do que conversas de cinco minutos e beijos furtivos na cabeça, com um leve “Vá com Deus, qualquer coisa me ligue.”.
não ligaria. Ela sabia que estava só, sabia do sacrifício da mãe e não a importunaria se pudesse. Se sua mãe se esforçava tanto, o mínimo que ela poderia fazer era segurar o tranco nas situações escolares. E isso significava lidar com Sharon wassermann da melhor forma possível, sem envolver sua mãe ou qualquer coisa do tipo.
aguentava. Era forte, destemida, guerreira. Já havia passado por situações piores...
Então, a vida era difícil? Nada novo sob o sol, desce mais um desafio que é só matar no peito. Era o que ela pensava.
O sinal bateu, anunciando o fim das aulas. A jovem despertou com o som e começou a guardar as coisas na mochila, quando percebeu nervosa ao seu lado; a amiga estava com pressa e deixou suas coisas caírem no chão — o estojo aberto espalhou lapiseira, caneta, borracha, apontador e demais materiais semelhantes.
— Merda! — bradou ao ajoelhar no chão e se abaixou para ajudá-la.
— Calma , eu te-
— Não! V-Você tem que ir, tem que ir agora. — disse de uma só vez e franzu o cenho.
— Como assim, ir?
a olhou apreensiva e suspirou.
— Apenas... saia da sala e entenderá.
continuou com a feição desconfiada e insistiu.
— Confie em mim. É algo bom.
— Jura?
— Para variar um pouco, sim. — sorriu com um brilho no olhar. — Vai te fazer bem.
— E você não vai me contar o que é?
— Só mete o pé, por favor!
— Ok, senhorita mistério! — disse, despedindo-se da amiga com um aceno de mão e saiu da sala.
Caminhou para fora do prédio e quando estava próxima a saída do colégio, sentiu alguém lhe chamar.
Hey, ?
Ela se virou em surpresa.
Hey... Seb. Tudo bom? — Sorriu amarelo ao vê-lo.
— Tudo! O que vai fazer agora?
piscou duas vezes mais rápido e encarou o amigo. Ele estava visivelmente nervoso.
— Hm... Isso vai parecer esquisito, mas eu estou esperando uma coisa boa acontecer, segundo . — Ela deu de ombros, sentindo-se estranha.
Sébastien sorriu abertamente e afirmou com a cabeça.
— Se a disse, eu acredito. Podemos almoçar juntos? Precisava trocar uma ideia com você.
— Hm... tá bem. Não sei se virá...
— Com certeza não. — Ele respondeu sorrindo e deu o braço para a amiga, que aceitou incerta e seguiu consigo.
Conforme caminhavam para o restaurante de sempre, Sébastien tornava-se cada vez mais ansioso.
Desde que tomaram aquele fatídico sorvete, o garoto se viu caindo numa teia sem fim; estava apaixonado por e não sabia o que fazer. E na última semana, estavam sozinhos na casa dela — a mãe ausente devido ao novo curso de formação e o rapaz decidiu fazer companhia para a jovem. Vocês sabem, apenas... porque era legal estar por perto de .
Lá pro meio de uma noite tediosa em que ambos dividiam uma cama e os sonhos, as conversas e as músicas que ele tocava no violão, Sébastien se viu largando o instrumento e dando um beijo em , após aqueles momentos em que o contato visual torna-se o que antecede o encontro dos lábios.

assustou-se de começo, mas retribuiu após alguns segundos de choque e sentiu seu interior vibrar, quando a língua do rapaz tocou a sua, ao mesmo tempo que ele apertou sua cintura com uma pressão agradável.
Quando deram por si, ela estava em cima dele, aproveitando o momento e sentindo o coração bater tão forte, que parecia que explodiria dentro de si.
Aquilo era real?
Não houve tempo para resposta. Enquanto sentia Sébastien beijando seu pescoço, começou a ter questionamentos inseguros: estava bonita? Havia se depilado? Transaria ali com ele? Era só tesão? Ele gostava de si?
A última pergunta a pegou em cheio e as imagens dos pesadelos a atacaram de uma só vez. poderia jurar que ouvia os xingamentos, o gosto da água da privada e até mesmo as porradas do handeball.
Afastou-se num só impeto, respirando com dificuldades. Sébastien a olhou confuso e antes que pudesse perguntar o que havia acontecido, a garota correu para o banheiro e vomitou. Vomitou horrores e Sébastien se apressou em ajudá-la, segurando seu cabelo e fazendo carinho em suas costas, pedindo para que a garota lembrasse de respirar.
Após os espamos musculares, ela foi até a pia e lavou o rosto com água abundante, passando por detrás de sua nuca, buscando alívio. Ergueu a cabeça e viu seu rosto com olhos fundos no espelho e uma cara de preocupação de Sébastien logo atrás. Ela sorriu fraco e deu de ombros.
— Acho que comi algo que não caiu bem.
— É... — ele disse receoso, aproximando-se. — Você tá bem? Precisa de alguma coisa? Eu poss-
— Eu acho que preciso descansar, Seb. Se não se importa... — Ela falou com a voz rouca e triste, abraçando-se.
Ele franzu o cenho e depois suspirou, frustrado.
— Tem certeza?
— Sim. Fiquei cansada, preciso me deitar.
— Você quer que eu fique com você até sua mãe chegar?
Ela o olhou por um momento e sentiu as vozes voltando. Negou com veemência e mordeu o lábio inferior.
— Não precisa, sério. Vou ficar bem.
Ele apenas assentiu e momentos depois, saiu da casa dela com o coração pesado. Será que ela se arrependia do que fizeram? Será que não gostava dele? Será que havia feito algo errado? Será que o gosto da sua boca estava ruim?

Sébastien mal esperou o outro dia e ligou para , relatando tudo o que sentia. A amiga o ouviu com paciência e sugeriu que conversasse com , a fim de que tudo fosse explicado, colocado em pratos limpos. E foi então onde surgiu a ideia do almoço.
Estavam sentados um de frente para o outro, fugia do olhar dele com visível timidez. Estavam naquele clima desde que tudo aconteceu e desde então, Sébastien decidiu admitir pra si que estava de quatro pela garota e que precisava pelo menos assumir isso para ela. Independente de qualquer coisa, a amizade deles era algo que gostaria de manter, desde que tudo ficasse bem.
. — Ele a chamou e a menina respirou fundo, virando-se pra si.
— Sim?
— Eu refleti sobre o que você me disse há algum tempo.
— Sobre? — Ela indagou, curiosa.
— Sobre ser o cara à altura da garota que eu acho ideal para namorar. — Ele disse de uma só vez e a menina impertigou na cadeira, engolindo a seco.
— Hm, e aí? — Perguntou nervosa, tentando disfarçar ao brincar com os ovos de codorna em seu prato.
Sébastien riu daquilo.
— Descobri que não estou à altura. Você é incrível demais e eu sou só um cara que te admira. Não sei nada sobre o mundo, mas finjo que sei, escrevo umas letras e toco guitarra. Sou revoltado com a humanidade, mas você é a porcentagem que me faz acreditar no último segundo, que ela vale a pena. Eu não sou um cara à sua altura, mas queria tentar ser. Se você quiser...
piscou rapidamente e arfou sem disfarçar. Não acreditava no que tinha ouvido e riu nervosa.
— O que está dizendo, Seb?
— Estou dizendo que eu não consigo parar de pensar em você desde que a gente se beijou. E o quão bom seria se eu pudesse te beijar mais vezes...
— Seb... — ela falou com a boca aberta e ele sentiu-se nervoso, coçando a nuca.
— Eu amo a nossa amizade, , de verdade. Mas queria fazer tudo o que a gente já faz, só que como pessoas que se curtem e demonstram isso, sabe? Tipo, abraçando, beijando, ficando... junto. E-Eu... merda. — Suspirou, ficando mais nervoso. A coragem estava se esvaindo, precisava ser breve. — Eu gosto de você. Assim, é uma coisa muito louca, porque eu nunca tinha me tocado disso e só depois que parei para pensar. Depois que disse “sua garota” eu...
? — indagou com a sobrancelha arqueada e ele suspirou novamente.
— É! Quer dizer, estávamos conversando um dia, quando você não queria falar comigo, e eu fiquei na merda, então ela me disse para correr atrás para não perder a “minha garota” e porra! Eu fiquei doido com essa ideia. Eu me amarrei, real, . E-Eu não sei como você se sente, mas eu precisava ser sincero. Eu tô de quatro por você e tudo só se tornou mais forte quando você me beijou de volta. E ok, você vomitou depois, então eu fiquei noiado, mas aí-
— Seb?
— O quê? — Ele parou de gesticular e a olhou alarmado.
Ela se levantou do seu lugar e sentou ao seu lado, sorrindo.
— Cala a boca e me beija.
Ele sorriu sem acreditar e foi a jovem que o puxou para o encontro esperado. Ela beijou os lábios com força, sentiu o coração acelerar quando foi retribuído pelo rapaz.

Passaram a tarde se curtindo, comentando sobre coisas bobas e coisas mais sérias, e como se sentiam em relação ao outro. Não estabeleceram o namoro em si, mas era certo que isso se desenvolveria mais cedo ou mais tarde.
O problema é o que mais tarde, às vezes pode ser tarde demais.

🤾🏽 🤾🏽 🤾🏽

— Você precisa relaxar, garota.
— Você não entende, ! São as finais! Tá ligada no que pode acontecer? E se eu perder agora, os olheiros não vão me oferecer uma bolsa na Universidade de Ottawa!
— Cara, relaxa... Você vai se sair bem!
— Eu preciso seguir treinando! — afirmou, batendo a bola no chão da quadra, enquanto suspirava.
— Te espero para irmos embora juntas, então? — A amiga perguntou por último e a outra fez uma careta de dor.
— Acho que não, . Vou ficar devendo essa.
— Você vai com o Seb?
— Não, ele está ensaiando com a banda. Está trabalhando numa música aí há uns três dias, mas não consegue tirá-la do papel.
— Hm, entendi. Então você vai sozinha pra casa?
— É, mas de boa. — sorriu sem mostrar os dentes e rolou os olhos.
— Tá certo, mas não fica até muito tarde! Já vai dar cinco horas e você tá aí treinando há tempos. Precisa descansar para amanhã! — Ela ralhou de braços cruzados e segurou uma risada.
— Eu juro que vou praticar mais uma rodada e vou pro chuveiro, chefe.
— É bom que você sabe quem manda aqui! — respondeu com uma cara de sabichona e riu.
A amiga se despediu com um aceno e então estava sozinha na quadra.
Quicou a bola três vezes quando sentiu-se tontear. Aquelas sensações estavam voltando novamente, e precisou respirar fundo para que o olhar focasse novamente no gol. O suor escorrendo da testa soou frio na pele de . Inspirou o ar pelo nariz e soltou pela boca, tentando se acalmar.
Estava nervosa com a possibilidade de não conseguir a vaga na Universade e se sentia pressionada com aquilo. Nos últimos dias, teve casos de tonteira, de falta de ar e achava que era apenas cansaço. Mas quando as vozes voltaram, sabia que seu psicológico estava abalado diante da situação estressante. Precisava segurar a onda mais um dia, apenas mais um dia, e aquele maldito jogo aconteceria e ela poderia respirar em paz.
Respirou novamente e foi em direção ao gol, marcando um gol com um estrondoso barulho da bola rebatendo na parede de fundo.
— Só mais um dia, garota. — Disse a si mesma, correndo atrás da bola.

🤾🏽 🤾🏽 🤾🏽

— E se eu falhar? E se der merda?
— Calma, mulher. Vai ficar tudo bem, você vai arrasar como sempre. — Sébastien dizia ao acariciar a bochecha da jovem, que suspirou aflita.
— Eu tô com medo.
— Eu sei e faz parte. Vai com ele mesmo assim. Eu tô aqui com você, não tenho dúvidas de que já deu tudo certo. Até o Kieff está mais animadinho! — Seb respondeu apontando para o diretor, que sorridente, cumprimentava as pessoas importantes.
bufou.
— Até parece.
Hey, temos que admitir que foi muito legal da parte dele não ter colocado a bolada da Wassermann no seu currículo, né?
— Isso foi um cala-boca, Seb. É só para não entrarmos na justiça sobre o bullying que aquela escrota faz com a . — respondeu ao lado do casal com a cara entendiada.
fez uma cara óbvia e Sébastien suspirou, concordando com a cabeça.
— Podemos esquecer esse assunto? Eu tô pirando nessa merda.
— Calma, linda. Vai dar tudo certo. Você treinou duro, você estudou bastante, sabe muito bem o que fazer.
— Escuta o boy, amiga. Vai que é tua, Taffarel.
O casal encarou com o cenho franzido e a amiga simplesmente rolou os olhos, dando de ombros.
— Esqueçam. Seus sem-culturas.
— Já conversamos sobre isso, aa!
— Tá, tá. Que seja.
O apito da treinadora chamou o time para se reunir antes do jogo, se despediu de Seb com um selinho e deu tchau para , que gesticulava em torcida de sua amiga. Antes que chegasse na rodinha do time, viu Sharon Wassermann da arquibancada, com um curativo/adesivo no nariz e notou que, mesmo com a distância, a garota sorria debochadamente para si, acenando com a mão de maneira soberba.
Aquilo causou um calafrio em , que buscou ignorar o que viu e simplesmente seguiu seu caminho. Ao encontrar o grupo, cumprimentaram-se e se uniram a fim de ouvir a treinadora, que repassou algumas estratégias para as meninas, sendo ouvida antentamente pelas meninas. Depois disso, fez seu discurso de motivação, mas nada daquilo tocou . Ela estava a ponto de bala e muito tinha a ver com a figura de Sharon na aruibancada.
O que será que aquela garota estava aprontando? Estaria ali apenas para ver o jogo?
— 1, 2, 3 e vai, redpanthers! — Ouviu o time gritar e mal acompanhou o grito de guerra, forçando a se focar no que importava.
A partida logo se iniciou e entrou no modo jogadora, não vendo nada além da bola. Sentia o corpo enrijecido, mas não parava de dar o seu melhor, fez pontos incríveis para seu time, mas a marcação em si estava acirrada. Já tinha levado três “encontrões” que a fizeram voar longe. O corpo reclamava de dor, mas ela não desistiria, estavam empatados com o time adversário e não podia ceder agora!

, eu quero você se movimentando, entendeu bem? Kyra, dê cobertura! — Ouviu a treinadora berrando.
Faltavam quarenta segundos e a bola quicava na mão de , aceleradamente.
Parecia que o tempo desacelerava brutalmente.
Olhou ao redor. Viu a arquibancada, viu pessoas que jurava que eram olheiros. Viu Sharon com a cara indecifrável. Respirou fundo e viu o olhar dele.
Viu Seb a encarando com aflição, torcendo por si, jogando as mãos para cima. Quando o rapaz percebeu que ela o olhava, ele berrou bem alto.
— VOCÊ CONSEGUE!
E então, ela não precisava de mais nada.
Quinze segundos, quicou a bola mais uma vez. Deu seus passos, driblou uma, duas, Kyra realmente lhe deu cobertura?
Cinco segundos.
Deixou a pergunta no canto da cabeça e jogou seu corpo em direção ao gol. Optou pelo lado esquerdo e a goleira até foi na bola, mas sua mão não alcançou.
Zero segundos.
O apito soou, o sinal do tempo vibrou. Seu time era campeão e o corpo de era jogado para cima, em meio a comemoração do time. Foi abraçada por pessoas que sequer trocava um “oi” direito, mas foda-se.
Assim funcionavam os humanos, diria Sébastien.

Após a comemoração do time, ela correu para a arquibancada e Sébastien foi ao seu encontro, segurando-a no ar e beijando seus lábios. O casal recebeu aplausos e coros de animação, e ela estava em estado de felicidade.
Céus, então aquela era a sensação de quando tudo dava certo? definitivamente poderia se acostumar com aquilo.
Estava nos braços do cara que gostava, tendo feito o gol da vitoria, concluindo o ensino médio naquele lugar infernal, livrando-se de toda a gente que sequer significava algo para si.
Sorria ao abraçar a única amiga, que torcia por si e sempre estivera ao seu lado em todas as situações. Responsável também pela mais atual alegria — o cupido era real, senhoras e senhores.
— Eu nem acredito que estou vivendo isso! — disse, sentindo sua voz embargar e os olhos marejarem.
Seb e a olharam com um sorriso cúmplice e os três se abraçaram num momento afetuoso.
— Você merece, amiga!
— Nunca duvidei de sua capacidade... minha garota.
olhava para os dois, sorrindo grande, sentindo o coração pulsar. Apesar de todos os pesares, gostaria que seu pai estivesse ali. Gostara que sua mãe visse a vitória, para segurá-la nos braços e dizer que agora, as coisas poderiam ser mais fáceis, porque ela conseguiu fazer sua parte; poderia trabalhar e ajudar a mãe com as contas.
! Parabéns pelo jogo, você foi incrível! — Kieff chegou de repente, interrompendo seus pensamentos.
respirou fundo, sorrindo educada.
— Obrigada, diretor Kieff.
— Oh, não me agradeça. Estou apenas sendo sincero. E, ah, este é senhor Henderson. Ele também achou o jogo incrível. Não é, meu amigo? — Ele se virou para o homem, que tinha um sorriso perfeitamente alinhado e vestia paletó e gravata.
Ofereceu a mão à e se apresentou formalmente.
, certo? Aquele gol final foi simplesmente de tirar o fôlego!
— O-Obrigada, senhor Henderson. — respondeu com a voz falha, olhando para o homem incerta, enquanto apertava a sua mão.
— Espero que tenha um tempo para um café. Trabalho na UOttawa e acredito que possamos dialogar mais sobre seu talento. O que acha?
— S-Sério? — Ela olhou com a boca aberta e o homem engravatado sorriu.
— Mas é claro! Me ligue quando puder. Estou na cidade até semana que vem, então se tiver interessada, podemos marcar uma conversa. — E entregou um cartão para a jovem, que o pegou com a mão trêmula.
— Obrigada, senhor Henderson. — Ela disse de forma mecânica, impactada com o que acontecia.
— Eu que agradeço! Tenham uma boa noite. — E antes de sair, falou para o diretor. — Preciso fazer uma ligação, mas te encontro na saída, certo? — E se retirou depois da confirmação dele.
— Bom, senhorita . Espero que faça bom proveito desta oportunidade. Será muito bom vê-la alçando novos voos.
— Claro, diretor Kieff! Você por acaso... chegou a falar com o senhor Henderson sobre mim?
— Eu só faço o meu trabalho, senhorita . — Ele sorriu e o imitou, feliz.
— Ou quaaaase, né. — comentou com os braços cruzados e Kieff franziu o cenho.
— Alguma coisa a dizer, Senhorita ?
— Nada, diretor. Humanos falham, né? — E deu de ombros, enquanto suspirava e o diretor pigarreava.
— Hoje não é dia disso. Segunda-feira pode me procurar para resolver qualquer questão, senhorita . Você sabe que estou sempre aberto ao diálogo e além disso, é imprescindível que... — a fala do diretor foi interrompida por um som agudo de microfonia.
Todos procuraram pela origem do barulho, até que viram ninguém mais ninguém menos que Sharon Wassermann no microfone, no meio da quadra.
— Alô, som? Estão me ouvindo bem? Sim? Ótimo! Bom, apesar de não ser surpresa para ninguém, sou Sharon Wassermann, ex-pivô do Red panthers e gostaria de parabenizar o time pela vitória! Vocês foram incríveis!
As salvas de palmas puderam ser ouvidas, mas manteve-se imóvel. O sorriso em seu rosto já havia murchado e ela estava apreensiva. Sua intuição berrava dizendo que algo de muito ruim estava a caminho.
— E, é claro, mas não menos importante! Precisava destacar a atuação impecável da nossa querida ! Por favor, vamos ovacionar essa atleta de mão cheia! — E com um aceno, Wassermann mandou o time buscar , que logo foi buscada por mãos e braços, sendo arremessada para cima, em comemoração.
Ela estava receosa, mas não queria interromper o momento. Talvez não devesse cortar o clima, mesmo que estranhasse a atitude de Sharon.
— Ela é tão incrível, tão maravilhosa e não só dentro da quadra, galera! Fora também! Vamos lá, produção? — Sharon apontou para a enorme parede na qual o retro projetor reproduzia um vídeo com imagens de jogando, correndo, pulando e fazendo gols.
havia colocado o pé no chão quando o vídeo mudou completamente. A música de rock que entoava a radicalidade do esporte agora era trocada por uma trilha sonora sedutora e imagens de uma tomando banho no vestiário feminino da escola surgiram para todos verem.
sentiu dor na boca do estômago. Sua boca abriu em choque e ela não acreditava no que via. Aquilo havia sido feito no dia anterior, quando estava sozinha treinando.
Como não ouviu ou não percebeu que lhe filmavam? Não havia ninguém lá! Como isso era possível? E como estava sendo transformado em vídeo, passando na final de handeball do ano?
Eram tantos questionamentos! Sentia-se exposta, ridícula, vazia. A cada parte de seu corpo que aparecia no vídeo, memes e frases de mau gosto pairavam na tela e como se não bastasse, Sharon continuou seu show de horrores.
— Como vocês podem ver, ela é uma pessoa inesquecível! Haja vista todos os momentos que passamos juntas, não é, querida?
E o vídeo começou a mostrar imagens e gravações das outras humilhações que sofreu: a do banheiro, a da quadra, a do armário... Logo voltando ao momento do banho íntimo.
— Desliguem isso, agora! Onde está Donovan? Eu quero o controle do data show agora! — Kieff começou a berrar, correndo para a sala de controle de mídias. — Coordenadora, pegue o microfone daquela jovem, já! — Berrou para a mulher de meia idade, que foi com tudo para cima de Sharon, que começou a correr pela quadra, enquanto terminava seu showzinho.
— Esperamos que faça muito sucesso em Ottawa, querida! Vamos sentir falta de você. Mas que bom que temos esses registros, não é? Podemos matar a saudade! — Ela correu mais um pouco, mas foi alcançada por Sébastien, que retirou o microfone com força das mãos dela.
Só naquele momento, percebeu que o rapaz saíra de seu lugar.
Só naquele momento percebeu que prendia a respiração.
Só naquele momento percebeu que se juntou à Sébastien e foi em direção à Sharon, dando-lhe um tapa na cara, enquanto as duas se descabelavam numa briga.
A multidão se dividia entre risadas, apontamentos, olhares tímidos e todos em cima de , que sentiu o mundo girar ao seu redor novamente. As risadas foram se tornando mais altas, as frases do vídeo tomando força dentro de si. E então, começou a andar e após três passos, correu.
Correu como nunca na vida. Correu enquanto chorava, enquanto sentia o peito dolorido, o corpo cansado, mas não deixara de correr. Correu até perder a noção de tudo ao seu redor; era tudo dor, não é mesmo?
Correu até o ar faltar. E nem assim parou. Só o fez quando estava diante da porta de sua casa.
Entrou na mesma, chutando a mesa, o armário, berrou, descabelou-se, tirou as roupas suadas. Correu para o banheiro, entrou debaixo de água fria e se encolheu no canto até a respiração acalmar.
Levantou-se, fechando o chuveiro e saindo do box com movimentos letárgicos.
Andar doía. Respirar doía.
Ficou diante do espelho, viu-se nua e analisou seu reflexo.
Ouvindo as frases novamente, começou recitá-las em voz alta, xingando a si mesma, maltratando seu corpo com socos, arranhões.
Respirou fundo após um tempo, encarando seu corpo machucado.
Não era o bastante.
Com as lágrimas secas no rosto, ainda ouvindo todas aquelas vozes, como se estivessem gritando dentro da sua cabeça, ela quebrou o espelho com um só soco, sem dó nem piedade. Com o impacto, a porta espelhada do armário abriu, mostrando algo que chamou a atenção de : o pequeno vidro estava ali, com o nome de sua mãe e a indicação de uma vez antes de dormir.
Estava exausta de ouvir aquelas coisas, de sentir tanta dor. Ela não queria saber mais. Só queria parar a dor.
E, momentos mais tarde, Sébastien encontraria seu corpo inerte ao lado de um frasco de remédio de tarja preta vazio.

🤾🏽 🤾🏽 🤾🏽

Caminhou a passos pesados com o ar preso nos pulmões. A determinação em seu olhar fazia com que todos saíssem do seu caminho.
Segurava a guitarra em mãos e sequer olhava as pessoas ao redor, apenas andava em direção ao palco. O DJ não percebeu de início sua presença, mas quando o garoto desplugou a saída de som, o profissional o encarou com o cenho franzido.
— Ei, qual é a sua, cara?
Sébastien ignorou o homem e plugou a guitarra no amplificador. Chamou os rapazes da banda, que o seguiram, subindo no palco e expulsando o DJ.
Não eram a banda da noite a princípio, mas seriam.
Uma vez prontos, Sébastien se aproximou do microfone, encarou a todos e simplesmente disse:
— Vocês me dão nojo. — Olhou ao redor, engoliu a seco ao reparar no choro silencioso de ao longe.
A amiga só compareceu por muita insistência e lá estava ela no seu conjunto de moletom, com a cara vermelha de tanto chorar. Apenas a garota sabia de seu plano.
— Senhor Lefebvre, pode nos dar licença? Esse não é o momento de sarau musical! — O diretor interviu ao lado do palco e Sébastien olhou pro rosto do homem, com puro ódio.
— Vá a merda.
Três batidas na baqueta, um diretor boquiaberto e um jovem furioso iniciando os acordes na guitarra.
E assim, começava o protesto pessoal de Sébastien Lefebvre.

Tell me what's wrong with society;
Me diga o que há de errado com a sociedade;
When everywhere I look I see;
Quando em todos lugares que eu olho eu vejo;
Young girls dying to be on TV;
Garotas morrendo para estar na TV;
They won't stop til they've reached their dreams.
Elas não pararão até terem alcançado seus sonhos.

Diet pills, surgery;
Pílulas para emagrecer, cirurgias;
Photoshopped pictures in magazines;
Fotos editadas para as revistas;
Telling them how they should be;
Dizendo a elas como elas devem ser;
It doesn't make sense to me!
Isso não faz sentido para mim!

Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?
Is anybody gonna save me?
Alguém pode me salvar?
Can anybody tell me what's going on?
Alguém pode me dizer o que está acontecendo?
Tell me what's going on!
Me diga o que está acontecendo!
If you open your eyes you'll see;
Se você abrir seus olhos você verá;
That something is wrong.
Que alguma coisa está errada.

As pessoas se entreolhavam, algumas acompanhavam o som com pequenos movimentos da cabeça, prestando atenção na letra. Sharon Wassermann havia sido expulsa pelo que fez não somente no dia da final de handeball, como também nos atos anteriores. Mas Sébastien sabia que ela estava ali presente, com Kieff fazendo vista grossa, após receber uma chantagem básica do pai dela.
— Sharon Wassermann, a estudante que teoricamente foi expulsa, mas tem o privilégio de estar presente no baile... tem algo de muito errado com você, garota. — Sébastien disse no intervalo entre o refrão e a próxima estrofe, e a jovem o olhou assustada, recebendo olhares de todos.

I guess things are not how they used to be;
Eu acho que as coisas não são como costumavam ser;
There's no more normal families;
Não há mais famílias normais;
Parents act like enemies;
Os pais agem como inimigos;
Making kids feel like it's World War III;
Fazendo as crianças se sentirem como se fosse a 3ª Guerra Mundial;
No one cares, no one's there;
Ninguém se preocupa, ninguém está aqui;
I guess we're all just too damn busy;
Eu acho que todos nós estamos muito ocupados;
Money's our first priority;
Dinheiro é a nossa prioridade;
It doesn't make sense to me!
Isso não faz sentido pra mim!

Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?
Is anybody gonna save me?
Alguém pode me salvar?
Can anybody tell me what's going on?
Alguém pode me dizer o que está acontecendo?
Tell me what's going on!
Me diga o que está acontecendo!
If you open your eyes you'll see;
Se você abrir seus olhos você verá;
That something is wrong.
Que alguma coisa está errada.

Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?
Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?

— E quem acha graça ou ajuda em tudo aquilo que Sharon faz e representa, é tão podre e vazio quanto ela. — Sébastien disse com raiva, enquanto segurava o braço da guitarra e cantava a próxima estrofe.

Tell me what's wrong with society;
Me diga o que há de errado com a sociedade;
When everywhere I look I see;
Quando em todos lugares que eu olho eu vejo;
Rich guys driving big SUV's;
Garotos ricos dirigindo grandes carros;
While kids are starving in the streets;
Enquanto crianças estão passando fome nas ruas;
No one cares, no one's there;
Ninguém se preocupa, ninguém está aqui;
I guess life's unfair.
Eu acho a vida injusta.

Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?
Is anybody gonna save me?
Alguém pode me salvar?
Can anybody tell me what's going on?
Alguém pode me dizer o que está acontecendo?
Tell me what's going on!
Me diga o que está acontecendo!
If you open your eyes you'll see;
Se você abrir seus olhos você verá;
That something, something is wrong.
Que alguma coisa, alguma coisa está errada.

Is everybody going crazy?
Todos estão ficando loucos?
Can anybody tell me what's going on?
Alguém pode me dizer o que está acontecendo?
Tell me what's going on!
Me diga o que está acontecendo!
If you open your eyes you'll see;
Se você abrir seus olhos você verá;
That something, something is wrong.
Que alguma coisa, alguma coisa está errada.

A música chegou ao final, as pessoas se entreolhavam. O diretor Kieff estava ao lado do palco, respirando com dificuldades, olhando Sébastien com toda sua coragem e frustração, cantando uma verdade que nem ele mesmo assumia. Sentia-se parte do problema também. Era parte do motivo pelo qual não estava ali, curtindo uma etapa da sua vida que deveria ser alegre, animadora, excitante.
O mínimo que ele poderia fazer era calar a boca e ouvir o jovem — coisa que deveria ter feito anteriormente com , com Sébastien Lefebvre e, principalmente, com . Kieff se arrependia, ao tempo que se questionava o porquê de ter ido tão longe de seus princípios.
O pigarro de Sébastien no microfone despertou todos daquele transe reflexivo que o rapaz induziu com a música. Todos se atentaram quando o garoto começou a falar.
— Eu não ligo se isso for parar no meu currículo e sinceramente não poderia me importar menos com o que qualquer um possa pensar disso. Eu só estou aqui, porque quero dar um recado importante para todos vocês, seus merdas. Existe uma pessoa maravilhosa em cima de uma cama de hospital agora e a culpa não é apenas de Sharon Wassermann, mas de todos que se mantiveram em seus lugares confortáveis, rindo, caçoando, ajudando o bullying se tornar uma rotina na vida de . Subestimamos o poder que as atitudes ruins têm e eu nunca pensei que diria isso, mas... eu juro que se não abrir os olhos e levantar daquela cama... o remorso será o mínimo dos problemas de vocês. Deveriam todos olhar para suas vidas ocas e pensar o que diabos deu errado, para ver graça ao empurrar uma pessoa até o limite do penhasco... E fazer com que ela se jogue de lá. — Seb olhou em volta e percebeu alguns olhares chorosos, outros culpados habitando os rostos da plateia.
Suspirou com a voz embargada, pensando na garota que amava.
— Se habitar um caixão à sete palmos do chão, leva um pouco de todos nós nisso. E não adianta, nossas mãos estarão sujas até os cotovelos. Sim, as minhas também, porque não estive lá o tanto que ela precisava. E agora, eu, que sequer entendia alguma coisa sobre amor, vou perder a única pessoa que me fez sentir especial na vida. — O choro de Sébastien era a única coisa que poderia ser ouvida em todo auditório.
Todos pararam para ouví-lo e agora que acabou de falar, sentiam que nada era melhor que o silêncio.
O rapaz saiu dali a passos rápidos, retirando-se junto com sua banda e em seu encalço. Eles nunca mais voltaram para aquela escola.

🤾🏽 🤾🏽 🤾🏽

Seis anos depois...

O gramado era bem verde e o dia estava quente, apesar de levemente nublado. Caminhava a passos curtos, incertos. O silêncio, sepulcral. Algumas aves riscavam o céu e outras pairavam nos troncos das árvores, descansando da vida.
Sentiu que poderia ser uma ave, de vez em quando... faria-lhe bem.
Ajoelhou no gramado, depositou as flores. Passou os dedos pela lápide, pelo nome em letras garrafais e alguns bem-dizeres. Suspirou e sentiu a garganta apertar, e o choro logo fez presença.
— Faz um tempo que não venho, não é? — Perguntou retoricamente, dando um sorriso nervoso. — Eu trouxe lírios, porque de alguma forma sempre soube que odiava rosas...
Mais silêncio. Enxugou o rosto, fungou, enquanto encarava a lápide.
— Eu não sei por que as coisas terminaram desse jeito e nem por que os caminhos da vida tiraram você de mim. Sem ao menos uma explicação devida ou sequer um adeus, sabe? Mas acho que são questões que jamais saberemos as respostas, não é? — Engoliu a seco, sentindo o aperto no peito aumentar, ao lembrar das memórias vívidas em sua mente.
Sentia como se fosse ontem que as viveu e não conseguia acreditar, mesmo depois de tanto tempo, que aquela ferida doía como se fosse a primeira vez.
— Eu acho que nunca vim depois do enterro e não me sinto culpada. Você fez merda, pai. Muita merda. Mas a verdade, é que cansei de lidar com isso de uma forma pesada, tomando meu tempo e minha energia por ter medo do que quer que fosse acontecer se eu viesse visitar seu túmulo. Então, é isso. Mesmo depois de suas atitudes tão impensadas, eu ainda sinto sua falta e ainda amo você. Eu não sei se... perdoo. Mas vim conversar e acho que já é algo muito bom. — Olhou para trás, avistou o sorriso que sempre a trazia paz e o chamou com a mão.
Ele veio ao seu encontro e segurou em seu ombro com um afago carinhoso.
— Esse é Sébastien, meu marido. E este é Simon... nosso filho. — Passou a mão pela barriga, sentindo o esposo fazer o mesmo, como se a motivasse a continuar. — Eu quase morri há seis anos, por querer acabar com a dor, pai. E agora, depois de anos de tratamento e discutindo saúde mental como prioridade na vida, decidi lidar com o que machuca de uma forma saudável, com diálogos, então... Se você estiver ouvindo, eu quero que saiba que... que talvez ainda não esteja tudo bem. Mas estou me esforçando para que fique. Porque definitivamente está melhor do que antes. Então em algum momento, eu chego lá, não é? — Perguntou retoricamente, deixando mais lágrimas caírem.
As mesmas foram enxugadas pelos dedos do esposo, que se ajoelhou ao seu lado. Eles se olharam profundamente e ela o abraçou forte, sendo retribuída na mesma proporção.
— Um dia de cada vez. — Sébastien disse, com um sorriso ameno.
— Um dia... de cada vez. — repetiu, afundando o rosto no pescoço do homem e sentindo-se finalmente... bem.
Bem pelo recomeço.



Fim!



Nota da autora: Olá, pessoal, tudo bom? Então, primeira vez que faço parte de uma ficstape e fico muito animada por isso!

Primeiro de tudo: special thanks to Ana Ammon, mais conhecida como a lindeza, super fã de Simple Plan, que leu "Crazy" com o maior carinho. Fico muto feliz pelo seu apoio de sempre e pelas trocas que realizamos, mana! Obrigada por existir! ♥
Obrigada também à equipe que tá organizando esse ficstapes perdidos #4! Vocês são incríveis!

Bom, em relação à fic: eu adorei escrever "Crazy", porque o plot estava praticamente pronto na minha cabeça, desde que a confirmei. Eu sei que se trata de um assunto delicado e deveras importante, e espero ter conseguido tratar sobre isso de uma forma responsável e que tenha aquecido os corações de vocês. Não sou uma profissional da saúde, muito menos da saúde mental, então meu lugar de fala aqui é de alguém que reconhece seu valor e busca trazer isso nas histórias que escreve. Procurei ter máximo cuidado para não tratar com leviandade os assuntos abordados, mas sou falha, e de antemão, peço desculpas caso algo tenha escapado.
Eu realmente acho que "Crazy" veio de uma forma tão natural e forte, porque em tempos de pandemia, o que mais vemos é a necessidade de estar bem apra além da parte física, né? Bem... Eu espero que você esteja bem, na medida do possível, lidando com as dores de forma honesta, sem ignorá-la e nem sucumbir à ela.
Como diz o casal principal da fic, um dia de cada vez, não é?
Não dá pra ser forte o tempo todo. Mas é importante que nos fortaleçamos sempre que possível.
Que você encontre pontos de luz e de força no seu caminho, e em si.

Beijos, e qualquer coisa, grita lá no twitter!



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