Finalizada em: Mai/2021

rainy romance

O tiro veio de lugar nenhum.
Um impacto no ombro esquerdo retumbou nos ouvidos de , como se tivesse acertado-a com uma bomba. A dor foi incômoda, e ela gritou de frustração enquanto corria a toda velocidade para trás de uma das pilastras espalhadas, abaixando-se a fim de escutar os próximos passos do inimigo.
O movimento era inexistente de ambos os lados, mas ela sabia que ele estava se aproximando, que não perderia a oportunidade de devolver a bala que havia recebido bem acima da área do joelho, impossibilitando sua mobilidade em direção à vitória. trincou os dentes enquanto verificava novamente sua munição. Se ele a pegasse agora, seria fatal. Não era apenas em carga que se encontrava quase completamente desfalcada, mas nos companheiros de batalha, que ou estavam mortos ou haviam desertado.
Ela respirou fundo e se preparou para levantar e lançar seu contra-ataque. Sabia que ele provavelmente estava sozinho e sua situação não era lá muito diferente da sua. Se tratava de um embate de habilidades. Ela só precisava…
Um gemido alto e prolongado a fez se encolher ainda mais. Uma espiada sutil e discreta de trás do esconderijo mostrou um rapaz caído no chão, por cima de um dos braços, parecendo seriamente ferido. Ela automaticamente pensou se preocupou com a possibilidade de quaisquer acidentes fora do planejado, porém encarou a cor que ele vestia. E aquelas cores pertenciam ao inimigo.
Sem perceber, ela se deixou mais à vista. O inimigo estava abatido no chão, detido por um ataque que não partiu dela, portanto ela não estava mais sozinha. Algum companheiro estava vivo, alguém havia retornado para a batalha.
Ela se aproximou rapidamente do corpo caído no chão, a fim de confirmar a morte e finalmente declarar a gloriosa vitória. Quando se ajoelhou desengonçada ao lado de sua cabeça e puxou os ombros para cima, encarou o cano da arma escondida sob o braço soterrado e um sorriso satisfeito por trás.
— Aí está você! — O sorriso disse na mesma hora. Antes que qualquer pensamento lógico ou estratégico passasse pela mente da garota, o baque explodiu em seu peito, derramando-se por todo o seu tronco e anunciando o veredicto nada agradável: ela estava morta.
A risada do adversário foi alta e debochada, apesar de não durar muito. Quando começou a se levantar e dar as costas, sentiu a raiva espumando no mesmo lugar onde havia sido atingida, e finalmente conseguiu se colocar de pé, só para erguer a pistola para a frente e apertar o gatilho em direção às costas do oponente.
O ataque foi tão inesperado que os joelhos dele quase cederam e levaram-no ao chão. Ele virou-se novamente para ela, com os olhos arregalados pelo susto.
— Você é maluca?! — arfou, uma recente raiva cintilando os olhos — Não percebeu que ‘tá morta?!
— Você jogou sujo, imbecil.
— Sua péssima habilidade em achar um esconderijo decente agora é culpa minha? Francamente…
— Você dizimou todo o meu pelotão e os esconderijos possíveis. Acha que estamos em algum jogo online pra usar manobras tão deselegantes e sujas como essa?
— Você é cega? Não vê que você fez o mesmo com o meu time? — ele apontou para o campo em volta — Não tem nada mais justo do que o combate dois a dois, no fim das contas. E ele chegou ao fim, se ainda não percebeu. Portanto, pode atirar em mim o quanto quiser…
Uma explosão amarela acertou em cheio a parte superior de seu capacete, a gosma descendo lentamente pelos seus olhos à medida que se aproximava.
— Posso atirar o quanto eu quiser? — mais um tiro no ombro — Pois bem, então que tal isso? — ela o atingiu na altura do quadril, o que o fez dar um passo pra trás.
— Ah, sua… — ele trincou os dentes, erguendo o cano novamente para ela e direcionando a mira quando ouviu um grito atrás de si.
— Ei, Jaemin! — o grito o fez bufar e abaixar a arma — O que tá fazendo? A partida acabou! Pega a bandeira!
Ele levantou as sobrancelhas para ela, que repuxou ainda mais os lábios pela raiva de ter sido enganada de forma tão estúpida e amadora. Ele deu de ombros, retornando com o sorriso cafajeste enquanto passava ao lado dela, pegando a bandeira fincada no pequeno monte não muito longe do esconderijo de trás da pilastra usado anteriormente por ela.
— Foi um prazer, sobrevivente — ele murmurou próximo de seu rosto em uma fração de segundo antes de voltar a caminhar para junto dos amigos, sem perder o sorriso nem por um momento.
era capaz de queimá-lo vivo só com a raiva ardendo nos olhos.
Ele se aproximou calmamente dos rapazes, que vibraram em uníssono enquanto davam tapas desengonçados nas costas do garoto.
— Não queria dizer, mas você foi um tremendo filho da puta fazendo aquilo com a garota — disse Jeno quando começaram a caminhar de volta para a base.
— Se ele não tivesse feito isso, ela teria matado ele. Esqueceu quem te deu um tiro quase no meio das pernas? — comentou Renjun, balançando a cabeça.
— Ei, eu não morri por causa disso.
— Claro que não, foi pelo tiro na testa que ela te deu logo depois.
— A mira dela é mesmo terrivelmente boa — Jaemin bufou, destravando o capacete e se livrando da visão amarelada pelo impacto na cabeça.
— ‘Tô dizendo, se Jaemin não tivesse aquela jogada inteligente, ele não estaria com essa bandeira agora — completou Renjun — E não existem regras contra um melhor uso do cérebro no paintball, não é?
Um ronco atravessou o céu naquele momento, fazendo os três garotos erguerem a cabeça para cima imediatamente. Nenhum deles havia notado as nuvens carregadas chegando.
— Vai chover de novo… — resmungou Jeno, desanimado.
— Ainda bem que você finalizou antes de ter que lutar contra a lama também — Renjun tateou os bolsos da calça cáqui verde.
— Mas vocês não acham que ela parecia um pouco familiar? — perguntou Jeno quando entraram sob o toldo da base, indo direto aos armários onde haviam guardado os pertences e as respectivas roupas. Renjun praticamente correu em busca do celular.
— Familiar? — Jaemin olhou para trás, mas já estavam longe o bastante e a esta altura a garota já devia ter corrido para se salvar da chuva que começava a cair — Com aquele capacete? Tenho certeza que nunca a vi na vida.
Jeno estalou a língua, revirando os olhos.
— Você com certeza não se lembraria mesmo — ele se virou para Renjun, que se encontrava concentrado demais enquanto digitava no celular — Renjun! A garota não parecia familiar? — Nenhuma resposta — Renjun!
— O que é?! — ele levantou os olhos rapidamente.
— Ela é mesmo familiar. — Uma voz grogue e preguiçosa veio do canto do quadrado, fazendo Jeno quase pular de susto.
— Cruzes! — ele gritou, pondo as mãos no peito — Mark, o que ainda ‘tá fazendo aqui? Achei que tivesse ido embora. E como você pode dormir nessa posição?
— Seu doido… — Jaemin murmurou, retirando os adornos pesados do uniforme.
— ‘Tô de carona com vocês, esqueceram disso? — Mark respondeu, soltando um bocejo alto enquanto se sentava no banco largo de madeira — Vocês foram mais lerdos do que eu esperava desta vez. Quase peguei o ônibus.
— Você é muito mão de vaca pra não se aproveitar de uma carona grátis — Renjun guardou o celular e começou também a retirada de toda a roupa de guerra — Se apressem porque eu tenho um compromisso mais tarde.
— Eu tenho que chegar na cafeteria — Jaemin olhou o relógio, frustrado pela constatação do que Mark havia acabado de falar: a partida havia demorado mais do que o esperado e agora ele mal teria tempo de limpar toda a tinta desferida contra ele.
— Espera aí… Mark, você disse que conhece ela? — Jeno perguntou depois de um tempo, encarando o amigo ainda sentado do outro lado.
— Disse que ela é familiar, conhecer ‘tá bem longe disso — respondeu ele, e Jeno revirou os olhos — Como é mesmo o nome? Acho que é … Alguma coisa assim, com certeza. Ela é amiga da Lorraine. Vocês não tem instagram?
Jaemin e Renjun viraram o rosto ao mesmo tempo, tão rápidos quanto os projéteis lançados no campo nas horas passadas. Recuperaram-se um segundo depois, disfarçando a ansiedade que a menção do nome da garota causava em ambos.
— Amiga da Lorraine? Como eu nunca vi ela antes? — Jeno murmurou para si mesmo, em voz alta.
— Não sei, mas com a Jennifer por perto, duvido que você enxergaria até sua própria mãe.
— Idiota…
— ‘Tá legal, continuem sua investigação da nossa rival maluca no carro, pode ser? Jeno, pega as chaves — disse Jaemin, interrompendo o garoto antes que ele começasse a enxurrada do discurso defensivo sempre que tocavam no assunto Jennifer — Se eu chegar atrasado de novo, a sra. Bodnick vai ter um troço.
— É só você fazer aquele aegyo ridículo pra ela como da última vez — comentou Mark, colocando a mochila nos ombros como os outros, enquanto começavam a caminhar para a entrada.
— Ela tem cinquenta anos, pelo amor de Deus! — Renjun resmungou, puxando o capuz para o topo da cabeça — Vamos, Jeno! Corre na frente pra abrir a porta!
Jeno bufou e olhou para o céu antes de correr:
— Maldita chuva de outono.

“Mergulhe nesta cidade novamente
[...]
O lugar que você chega é o palco”

A chuva era apenas uma das surpresas que a abertura do novo semestre da Universidade de Seul trazia naquele ano.
A outra surpresa era Čas.
Era esperado que os veteranos do departamento de Línguas já estivessem familiarizados com todos os estudantes de sua seção. Afinal, agora era a vez de seus pupilos receberem a nova leva de calouros naquele outono. No entanto, a chegada da garota que foi apresentada como uma aparente veterana estava sendo motivo o bastante de confusão.
“Ela estava em um intercâmbio na Europa nesse último ano, mas passou na prova junto com a gente, isso não conta?”, era um dos argumentos usados por sua melhor amiga, Lorraine, ao receber o olhar apavorado de ao ouvir que teria de ser submetida à recepção de calouros como, bem… uma caloura.
Não pareceu adiantar de alguma coisa.
— Não dá pra falar com eles de novo? — perguntou , com os olhos pedintes.
Foi então que surgiu a proposta da partida de paintball.
Veio a calhar para o espírito competitivo da garota. Se conseguisse alcançar a vitória na batalha, poderia se livrar não apenas do título temporário de recém chegada, como também de seu lugar no banco dos novatos na famosa festa de integração. Afinal, não havia apenas Lorraine como conhecida na turma de Literatura Coreana-Inglesa, como também alguns outros colegas longínquos do segundo grau. Ela claramente não era uma desconhecida. Entretanto, o senso hierárquico da Universidade não parecia querer levar isso em conta.
Infelizmente, seus planos foram por água abaixo pela derrota desonrosa no campo aberto do dia anterior.
— E ele simplesmente atirou em mim. Quando eu pensei que ele estava morrendo! — Ela bufou, puxando uma das cadeiras da mesa longa e retangular do refeitório no primeiro almoço do semestre — Ele foi um aproveitador sacana que jogou sujo, não serve como um argumento de recurso?
— O que é isso agora? Estamos em um julgamento? — Lorraine perguntou, sorrindo com sarcasmo enquanto remexia sua sopa.
— Você faz parte dos representantes do departamento, se você…
, é só por uma noite. Ninguém ‘tá realmente interessado se a sua matrícula é datada pelo carbono 16, eles se importam mais com ver a sua cara na mesma sala de aula que a deles. E isso não vai acontecer — ela deu de ombros, bebendo um gole do suco avermelhado — Você conseguiu uma ótima oportunidade de encher seu currículo com o seu intercâmbio, mas não foi o suficiente para completar o primeiro ano aqui.
— Não é com isso que eu ‘tô preocupada — brincou com o arroz na bandeja, mantendo um olhar cabisbaixo.
— Eu sei, você ‘tá querendo fugir de uma festa bem divertida e é isso que não ‘tô conseguindo entender.
— Você entendeu quando pedi da primeira vez.
— Sim, era compreensível, a parte do divertida pode se limitar apenas aos veteranos, mas ei, pensa comigo: é uma ótima oportunidade pra interagir e conhecer os calouros de verdade, assim como os nossos veteranos. Fora que é uma das únicas oportunidades de reunião com todos os departamentos juntos. Já cheguei a te mostrar o time de basquete?
— Não — respirou fundo, dando-se por vencida ao engolir um pedaço de frango. Os possíveis argumentos contra toda aquela empreitada enchiam sua cabeça, mas não tinham força o suficiente para se manterem por muito tempo — Maldito verme dissimulado.
Lorraine encarou a garota trincando os dentes enquanto parecia segurar o hashi com mais força que o necessário. Ela riu, parecendo enxergar a própria raiva que deveria estar sentindo, como se ainda pudesse ver o sorriso patife do adversário quando apertou o gatilho em sua direção.
— Não fica assim, . Ninguém iria imaginar que você encontraria alguém tão ou mais competitivo do que você.
— Pelo menos eu me contenho em jogar limpo — ela respondeu com um sorriso forçado, enchendo uma grande colher de arroz logo em seguida. Apreciar a comida local era a única coisa que ela poderia fazer no momento para se distrair de preocupações por coisas que nem aconteceram ainda.
Lorraine riu mais uma vez, achando graça em toda a situação. Pela primeira vez, percebeu o quanto sentiu falta da amiga.
— Mas e então, como foram suas primeiras aulas?
Enquanto isso, um grupo de garotos parecia travar uma discussão silenciosa sobre quem merecia o último pedaço de porco agridoce que repousava tranquilamente em um dos recipientes da bancada. Jeno e Renjun já estavam há pelo menos dez minutos em uma troca de argumentos que incluía o número de vezes que cada um havia lavado as louças naquele mês, e estendido as roupas também. Por fim, Jaemin passou na frente da dupla, se apossando da comida enquanto ouviu as reclamações quase imediatamente dos amigos.
— Eu ganhei a partida ontem — ele deu de ombros, sorrindo de canto enquanto seguia na fileira de pratos.
— Babaca — murmurou Jeno.
O pico do horário de almoço abarrotava o refeitório de forma desordenada, enchendo as mesas em todos os pontos do quadrado. Jeno, sendo o primeiro a se servir, olhou para todos os lados com precisão até enxergar as últimas cadeiras vazias de uma longa mesa bem perto da grande janela de vidro, que os concedia a visão do pé de cerejeira que começava a perder suas folhas.
Ele cutucou Renjun assim que o amigo se prostrou ao lado dele, começando a andar sem dar grandes explicações. Renjun seguiu os passos dele, olhando para trás enquanto inclinava a cabeça para avisar Jaemin da rota que estavam tomando, vendo o último membro se apressar em escolher sua sobremesa e acompanhar os outros.
Quando viu quem ocupava a mesa, Renjun sentiu uma queimação na boca do estômago.
— Ei, isso é um castanho claro? — disse Jeno assim que se aproximaram o bastante das duas garotas. Lorraine virou-se rapidamente para o garoto que havia chegado em suas costas, não escondendo o susto da repentina voz alta. Jeno gargalhou com a reação — Ah, não, com certeza é aquela cor chocolate, não é? Puxa, você não se decide nos tons de cabelo mesmo… — ele ainda ria enquanto puxava uma cadeira ao seu lado, olhando por sobre o ombro — Não vai sentar?
Renjun engoliu em seco, olhando por tempo demais nos olhos de Lorraine enquanto lhe lançava um sorriso breve e ia em direção ao outro lado da mesa, reparando na segunda pessoa em questão.
— Seu maluco — Lorraine resmungou, revirando os olhos — Oi pra você também, Jeno! Achei que passaria um dia inteiro sem o seu rosto na minha panorâmica, mas esqueci que desacredito em milagres — ela deu um sorriso forçado — Essa é minha amiga, , caso vocês estejam se perguntando. Estes são Jeno e Renjun, do departamento de Arquitetura — ela inclinou a cabeça para a garota, que havia se ocupado em beber o restante do suco ao notar a aproximação dos dois desconhecidos. Renjun fez um breve cumprimento formal de cabeça enquanto sentava-se ao seu lado, olhando disfarçadamente para a amiga à sua frente.
— Cadê o resto da sua matilha? — perguntou Lorraine, olhando de um garoto para outro.
— Eles estão vin… Espera, matilha? — Jeno juntou as sobrancelhas, vendo a amiga finalmente abrir um sorriso — Semestre passado éramos uma colônia, por que… Ah, que seja. Oi, , você é nova por aqui? Espera aí… — ele juntou as sobrancelhas, uma lembrança súbita tomando seu inconsciente — Você não me é estranha.
— Pessoal, alguém vai ter que urgentemente comer essas azeitonas que colocaram na so… — A voz de Jaemin se deteve ao finalmente chegar à mesa, assim que fixou o olhar em um rosto específico.
O cabelo dela estava diferente do que no semestre passado. Parecia mais claro, mais curto, ainda exalando o verão. Ela sorriu ao vê-lo se aproximar e Jaemin teve de controlar o rubor no rosto e o coração acelerado.
— Ah… Oi, Lorraine.
— Esses panacas te deixaram pra trás de novo, não é? — Lorraine riu, lançando um olhar rápido para a cadeira vaga do seu outro lado — Vem, pode sentar aqui. , esse é o Jamin...
— Lembrei! — gritou Jeno, pegando todos de surpresa — Lembrei da onde eu te conheço! Você é a garota do paintball!
Todos os olhares se moveram para . A garota levou ainda alguns segundos para registrar a situação, olhando para o rosto de todos da mesa, perguntando-se como eles sabiam de tal informação.
— É ela, é a última sobrevivente do time rival — continuou Jeno, batendo uma palma pela descoberta.
— Espera, eu não… — riu de nervoso, desviando os olhos para o último garoto a chegar, ainda de pé. E de repente a silhueta do canto de seus lábios não lhe era estranha. E quando se lembrou do dia anterior, seu sorriso sumiu instantaneamente — Você… Você é o cara que pegou a bandeira?!
— Não acredito — Jaemin riu de ironia, finalmente puxando a outra cadeira vaga ao lado de Lorraine, bem em frente à Renjun. Observou a faísca raivosa que piscou nos olhos da garota e imaginou o que viria em seguida.
— Você jogou contra eles ontem? — Lorraine perguntou para a amiga, segurando uma risada pela ironia da situação.
— Não, ela acabou com a gente ontem — respondeu Jeno — Jaemin foi o único remanescente da matança.
— Como se ele não tivesse oferecido o serviço de dizimar o meu time também — grunhiu.
— Desculpa, achei que era assim que se ganhava uma partida de paintball — ele respondeu, dando de ombros.
— Pegar a bandeira é o objetivo final, não o extermínio do meio do caminho — ela largou o hashi, bufando — Mas não se preocupe, seu espírito genocida não foi a pior parte de todas, e sim a vitória suja e desonesta do final.
Renjun e Jeno se entreolharam, fazendo movimentos estranhos com as mãos para sinalizar um tremendo “o que está acontecendo aqui?”
— Você é sempre tão péssima perdedora? — Jaemin levantou as sobrancelhas, não se deixando intimidar um minuto sequer pelas acusações.
trincou os dentes, desejando de imediato que algum tremor de terra repentino acometesse a região específica da cadeira do garoto e o engolisse solo abaixo.
— Tá legal, tá legal — Renjun levantou as mãos em sinal de rendição, observando o rosto da garota começar a ficar vermelho — Foi só uma partida amistosa de domingo, pessoal, não precisa…
— Fale por você — disse , remexendo na comida de forma desordenada.
Um ringtone soou poucos minutos depois, quebrando o silêncio pesado e repleto de fagulhas que os olhares furtivos de Jaemin e deixavam no ar. A garota agarrou o celular virado em cima da mesa e, ao ver o nome no visor, tratou logo de começar a se levantar.
— Vou encontrar a Jennifer, ela vai me ajudar com os documentos de aproveitamento — murmurou para Lorraine antes que ela abrisse a boca para perguntar — Com licença — ela chiou para os demais quando agarrou a bandeja e seguiu para fora.
Renjun lançou um olhar confuso para Lorraine, que mordeu o lábio inferior ao pensar nas próximas palavras a serem ditas.
— Sua amiga leva as coisas um pouco a sério demais, não acha? — disse Jaemin, sem tirar os olhos da comida.
Lorraine revirou os olhos.
— Eu não fazia ideia de que ela tinha jogado contra vocês — suspirou — Esse jogo não era apenas um amistoso — ela olhou para Renjun.
— Tinha alguma grana na jogada? Porque garanto que nada chegou às nossas mãos, não é, gente? — ele apontou para os outros dois amigos.
— E como eu nunca vi ela por aqui antes? Ela parecia familiar ontem, mas acho que era por causa de uma foto sua e da Jennifer — Jeno falou enquanto mastigava.
— Ela ficou na Europa por um ano, praticamente acabou de voltar. Passou na prova no ano passado junto com a gente, mas recebeu a proposta logo depois. Trancou antes mesmo de começar.
— Irado, é como se ela fosse uma caloura — Jeno riu, pelo menos o máximo que conseguiu com a quantidade de arroz na boca.
— É exatamente por isso que ela ‘tá desse jeito — Lorraine cerrou os olhos, respirando fundo. Em seguida, virou-se para Jaemin — O que raios você aprontou ontem, afinal?
O garoto levantou os olhos para ela, puxando os cantos da boca em uma expressão de desdém.
— Não entendi.
— Ah, você com certeza irritou ela com o tudo ou nada que vocês usam pra ganhar qualquer coisa. E juro que ela estaria mais em paz se não fosse na situação atual — ela suspirou e Renjun inclinou a cabeça para que ela continuasse — Os veteranos e os outros representantes do departamento querem que ela vá a recepção da semana que vem. Como caloura.
A sincronia de risadas de Renjun e Jeno encheram a mesa. Até mesmo Jaemin tirou a expressão séria do rosto, abrindo um sorriso sem mostrar os dentes.
Lorraine revirou os olhos para os garotos.
— Quero muito entender o que acham que é tão engraçado.
— Entendo totalmente o sentimento dela — Renjun respondeu, balançando a cabeça — Ganhar a partida foi a exigência do seu pessoal para que ela participasse da integração virando shots e servindo mesas ou algo do tipo?
— Basicamente — ela deu de ombros, agora também abrindo um pequeno sorriso. Não podia sorrir demais ao olhar para ele, pelo menos não na frente de todos — Eu não sei muito bem o que os veteranos mais antigos estão preparando pra integração desse ano.
— Eu só sei da parte do beber até cair — disse Jeno — Meus calouros vão ser muito bem tratados nessa parte.
— Quero só ver se você for o primeiro a cair — Lorraine levantou as sobrancelhas, arrancando mais uma risada de Renjun. Ela voltou-se para Jaemin — Ainda ‘tá com a ideia de não ir? Vai perder esse espetáculo?
Ele tossiu de leve ao perceber a voz dela tão perto de si. Renjun se remexeu na cadeira.
— Acredito que a sra. Bodnick não vai perder a oportunidade de me fazer trabalhar horas extras no fim de semana — respondeu ele, depois de se certificar que a voz sairia de forma mais branda.
— Corta essa, Jaemin. Todo mundo sabe que você pediu as horas extras — Jeno estalou a língua.
— Achei que já tivesse o bastante pro seu carro — Renjun falou, dando de ombros.
— Não é isso, é só… — ele olhou para os três amigos ao mesmo tempo, tentando pensar em uma resposta. Por fim, suspirou antes de responder — Talvez eu possa tentar chegar um pouco atrasado.
— Isso é ótimo! — Lorraine bateu palminhas animadas com a resposta, fazendo-o sorrir automaticamente — Tenho certeza que vai ser uma noite divertida pra todo mundo.
— Principalmente pro Jaemin e a caloura especial — Jeno encostou-se na cadeira.
Lorraine cerrou os olhos para o garoto, mas Jaemin apenas continuou sorrindo. A ideia de cruzar com de novo não passava pela sua cabeça, muito mens se divertir às custas dela, mas o semestre estava apenas começando.

🌧


A claridade de um segundo raio atravessou o céu, bem em cima de sua cabeça.
As poças recém formadas pela chuva torrencial ainda estavam pequenas. Não era o bastante para soterrarem seus pés quando se corria por cima delas, assim como fazia no momento. O temporal havia aparecido tão subitamente que ela não era a única que se apressava, em busca de um abrigo.
As luzes amareladas de um estabelecimento baixo pareceram ser a solução. Ela sentia seu cabelo pingar enquanto escondia a bolsa no peito, preocupando-se a cada momento com a possibilidade de encontrar seu diário encharcado. Atravessou a faixa de pedestres em uma velocidade que ela sabia ser guiada pelo desespero, e empurrou a porta de vidro com os ombros, sendo abraçada pelo ar quente e aconchegante de dentro.
Ela afastou os cabelos molhados enquanto observava o lugar. O cheiro de café encheu suas narinas, e ela já tinha visto um ladrilho hidráulico tão bonito daqueles? E as vitrines que estampavam os mais lindos bolos que ela já havia visto, como os que costumava comer com seu pai na infância.
Ela olhou para as horas no celular. A chuva lá fora não parecia disposta a parar de cair naquele momento e, agora pensando em seu pai, ela não o pediria para deixar a empresa tão cedo e enfrentar o trânsito caótico que viria posteriormente, devido à junção de chuva com horário de pico.
Olhou ao redor mais uma vez. Ela tinha de dar continuidade aos primeiros trabalhos já atribuídos naquela primeira semana de aula e, de quebra, terminar o projeto textual que planejava enviar para a GQ Korea ou qualquer outra revista local que estivesse disposta a aceitar colunas românticas e bregas que fariam com que algum cidadão apaixonado se identificasse.
Caminhou até a bancada de vidro responsável por mostrar aquele verdadeiro porn food e se sentou em uma das banquetas, puxando a bolsa para uma outra vizinha. Suspirou antes de dizer:
— Com licença — ela chamou para as costas de um rapaz alto que se encontrava concentrado em algum ritual de limpeza de uma moderna máquina de café.
Ele não pareceu lhe ouvir de imediato. Ela torceu o pescoço procurando algum fone de ouvido que ele pudesse estar usando, mas nada.
— Com lice...
— Só um minuto — ele respondeu enquanto finalizava o processo, virando de frente para ela e sorrindo de forma gentil — Me desculpa, a gerente tem um toc terrível com a limpez…
O sorriso dele deu uma leve diminuída ao encarar a garota do outro lado que ainda parecia torcer os cabelos. A reação dela não foi muito diferente. Sem perceber, ela pode ter explicitamente revirado os olhos até as órbitas, deixando as mãos caírem sobre o colo. Ele apenas levantou as sobrancelhas.
— E dizem que Seul é um lugar grande — ela murmurou, sorrindo em linha fina.
— Também disseram que não choveria tanto no outono, mas os sensos geográficos e meteorológicos não são o forte da internet — o canto dos lábios dele se curvaram para baixo, em uma insolente zombaria.
Ela cerrou os olhos, claramente sufocando uma pontadinha ínfima de raiva.
— Você se acha engraçado?
— Nem um pouco. Inclusive, é uma das maiores reclamações que recebo dos meus amigos.
— Duvido que seja só isso — ela grunhiu, encarando o sorriso desdenhoso do garoto. Não era ruim - só era debochado — Vai me tratar como uma cliente agora ou vou ter que pedir pra outro funcionário?
— Se tivesse chegado há dez minutos atrás, provavelmente estaria sendo atendida por outro cara alto e bonito o bastante pra se preocupar em te oferecer algo bem quente depois de ter pegado essa chuva. Mas sinto te dizer que agora só tem eu — ele pendeu a cabeça teatralmente para o lado, suspirando — Achei que iria começar a acreditar em coincidências e que você parou aqui só pra fugir da chuva — Ele endireitou os ombros, fazendo uma curta reverência com a cabeça — Em que posso lhe servir, jovem senhorita?
Ela revirou os olhos e se endireitou na cadeira antes de voltar a vasculhar os bolos, sem vê-los realmente. Porque Jaemin levantar a cabeça e lhe lançar um sorriso simpático de canto não poderia causar aquele efeito esquisito.
— Um caramel macchiato — ela enfim respondeu, olhando para ele e novamente para os bolos — E…
Ele percebeu sua indecisão. Já trabalhava a tempo demais com clientes como aquele e merecia os elogios da sra. Bodnick sobre seu trabalho.
Mesmo que aquela não fosse exatamente uma cliente esperada.
— Peça um red velvet — ele falou, começando a pegar as xícaras de baixo da bancada — Você olhou pra ele cinco vezes a mais do que os outros.
Ela ergueu a cabeça rápido, claramente surpresa com a constatação. Sem dizer nada, ela apenas concordou com a cabeça e o viu dar as costas de novo para a máquina grande, começando a preparar o seu pedido.
O banco acolchoado ao lado da janela de vidro parecia convidativo para deixar as banquetas e se sentar enquanto olhava a chuva. Ela encarou o relógio de novo após a mudança de lugar e aceitou novamente que o aguaceiro não pararia tão cedo. Decidiu tornar o tempo um pouco mais útil e tirou o notebook da mochila, abrindo já no documento pendente do texto baseado no poema de algum artista oriental do século dezessete que trazia inspiração de sobra para todas as suas criações amorosas que ninguém tinha lido.
Pelo menos, ninguém que a conhecesse.
Ela começou a digitar à medida que encarava o lado de fora. A calçava havia virado um mar de guarda-chuvas e algumas mãos se entrelaçaram por debaixo deles, escondendo casais que se protegiam mutuamente do temporal e, mesmo que ela não visse, sabia que eles estavam sorrindo, e completamente imersos na bolha romântica que circundava aquele universo particular.
Universo esse chamado amor. Esse que parecia ganhar um significado completamente novo e estimulante diante daquela ocorrência da natureza, elevando o coração da garota a um nível acima do patamar romântico que sempre esteve inserida. Čas era assim: apaixonada, arrebatada, poética. Não que demonstrasse isso abertamente.
Contudo, olhando para o cenário atual, um fio quente de expectativa queimava em seu peito com a vontade ardente de um desejo antigo: ela queria demonstrar tais características para alguém. Uma pessoa em específico surgia em sua mente, um certo rapaz da mesma universidade, com rosto já conhecido por anos de escola secundária, e que manteve-o vivo em sua temporada inteira no outro continente, um certo estudante de Administração…
O barulho da cerâmica pousando ao seu lado lhe tirou dos devaneios subitamente ambiciosos por dar vida às palavras que escrevia. A fatia de bolo red velvet parecia ainda mais bonita vista tão de perto, e Jaemin pareceu destilar um extremo cuidado ao posicionar os dois pedidos um ao lado do outro. Um pequeno sorriso pareceu brotar dos lábios dela ao encarar a fatia.
— Mais alguma coisa? — ele perguntou, tentando não reparar na expressão admirada dela.
— Ah… Não, é o bastante, obrigada — ela ergueu os olhos para ele e deu um sorriso de canto. O clima aconchegante, a beleza daquela sobremesa e a chuva que caía lá fora repentinamente tiveram um efeito direto sobre seu humor. Ele se deteve em apenas balançar a cabeça devagar e começar a se mover para trás do balcão novamente, perguntando-se o que ela deveria estar fazendo naquele computador para uma mudança tão significativa em seu semblante.
Pelas próximas duas horas, não houve um grande movimento no estabelecimento e a noite chegava como mais uma dentre tantas, com a absoluta normalidade de sempre. Jaemin sorria e acenava, servia mesas e fazia café. Recebia gorjetas pela gentileza e limpava a bancada. Não havia nada de incomum.
Exceto pelo fato de que aquela garota ainda estava ali.
E que ela voltaria pontualmente nos próximos dias.
Ele estava sinceramente curioso. O contato entre os dois era reduzido a troca de olhares e acenos de nucas quando se cruzavam pela universidade na parte da manhã, e Jaemin podia jurar que ela revirava os olhos logo em seguida, cedendo os cumprimentos calorosos apenas para Lorraine e os demais garotos do grupo. Mas não parecia mais magoada pela derrota na batalha, muito pelo contrário. Estampava um enorme sorriso na frente daquele computador dia após dia, como se viajasse para um mundo paralelo e estacionasse lá por umas boas horas. Um universo onde nada a perturbava.
Qual é, o bolo nem era tão bom assim. Ele sabia disso. Era Johnny quem fazia, e ele só servia para atrair a clientela feminina com seus flertes bregas e aquele sorriso idiota.
O café também não era lá grande coisa. A sra. Bodnick era muito mão de vaca para permitir um upgrade nos produtos, e acreditava fielmente que a decoração bem estruturada e moderna seria o suficiente para atrair as pessoas. Ela nem sequer pensava no fato de fazê-los permanecer, e que para isso era essencial um bom produto, mas Jaemin preferia se manter calado diante da cabeça confusa da velha senhora.
Entretanto, havia de fato se tornado uma cliente regular. Até dava um perfeito cumprimento a ele todo fim de tarde, sempre em num tom um tanto constrangido, corrido, como se tivesse pressa para chegar ao seu lugar de sempre ao lado da janela. E ele havia se habituado a não mais perguntar o que ela queria, já levando o caramel macchiato com a fatia de red velvet e pousando-os ao seu lado na mesa.
Chegou a comentar com os amigos sobre as vindas assíduas da garota em um dos horários de almoço da próxima semana, usando seu tom habitual calmo e despreocupado, como se trabalhasse em uma funerária.
— Meu deus, Jaemin! — Jeno foi o primeiro a responder, ainda de boca cheia — Será que ela ‘tá apaixonada por você?
— Quê? — Jaemin juntou as sobrancelhas, olhando o amigo como se ele tivesse repentinamente falado em alguma língua estrangeira — Claro que não, nada a ver.
— Então ela ‘tá apaixonada pelo Johnny — Mark disse casualmente.
— Impossível, ela chegaria mais cedo se quisesse vê-lo tanto assim.
— Como sabe que ela não encontra ele antes do seu turno?
— Por que ela frequenta as aulas aqui (?) — Jaemin inclinou a cabeça para o lado, como se falasse com uma criança de quatro anos — Olha, não faz sentido colocar o Johnny na história…
— Ela pode ‘tá tramando alguma coisa pra se livrar da integração — Jeno falou, levantando as sobrancelhas — Não acha, Renjun? Ou até mesmo planejando algo pra se vingar da gente, ou melhor, de você… Ei, Renjun! — o garoto levantou os olhos cravados do celular em um susto, olhando para os outros amigos — Você de novo ignorando a gente por causa desse celular. Estamos falando de um assunto sério aqui!
— O que foi desta vez? — Renjun encarou os rostos dos rapazes — Se for sobre o delírio de ela estar apaixonada pelo Jaemin só porque curtiu o bolo do Johnny, acordem agora mesmo.
— Não falei? — Mark ergueu um dos braços, enquanto Renjun retornava sua atenção ao aparelho — Ela ‘tá apaixonada por aquele clichê de hippie pacifista dos anos 70. Deve estar frequentando a cafeteria esse tempo todo esperando ser notada por ele, escreve o que eu ‘tô dizendo.
— Não. Não pode ser isso — Jaemin insistiu, olhando para a comida sem vê-la realmente. A situação não lhe parecia tão simples assim. Čas não parecia ser uma garota que rondasse a pessoa cobiçada daquela maneira, e ele não sabia explicar porquê pensava tal coisa.
— Não precisa pensar demais nisso, Nana — Mark, sentado ao lado do garoto, desferiu pequenos tapinhas nos ombros dele — O Johnny pode não ter terminado o ensino médio e com certeza jamais fará uma faculdade, mas ele é bonito demais pra essas coisas, entende? Com certeza vai achar uma namorada primeiro que a gente.
Uma tosse incontrolável tomou conta da garganta de Renjun enquanto ele tentava engolir o restante de um suco de laranja, causando um mini caos por cima de seus jeans e na região do antebraço esquerdo. Jeno cruzou as sobrancelhas enquanto lhe entregava guardanapos dispostos em cima da mesa.
— Falei pra comer mais devagar, seu maluco — Ele murmurou, observando enquanto Renjun fazia o trabalho de se limpar e mexia os olhos vagarosamente na direção de Jaemin e Mark, como se tivesse sido pego em flagrante por algum crime.
— Valeu — Renjun limpou a garganta, aceitando a água oferecida por Jaemin do outro lado da mesa — Mas então… Acho que o Johnny não é exatamente o tipo da .
— Como você sabe uma coisa dessas? — perguntou Mark.
— Sei lá, fiquei sabendo que ela teve um namoradinho na Europa. Um francês, eu acho. Acho que não durou, mas ela parece ‘tá gostando de alguém, não acham? Talvez não tenha esquecido esse cara — ele deu de ombros.
Os burburinhos sobre a recente hipótese apresentada por Renjun começaram imediatamente, mas Jaemin se manteve calado. Ele sempre era calado, mas naquele momento parecia estar sinceramente pensando naquela lógica. E, novamente, não entendeu porque estava se dando ao trabalho de tentar adivinhar quem era o alvo da paixão de Čas. Isso teria algum efeito significativo em sua vida?
Claramente não.
Entretanto, ele se encontrava calculando as variáveis da situação. Se ela parasse repentinamente de frequentar a loja, isso poderia significar um avanço em sua vida amorosa? Se é que tivesse uma. Ele estava apenas baseando-se na conversa à mesa e, novamente, perguntou-se quanto tempo livre estava tendo para tornar aquilo possível.

🌧

“Por todas as ruas que passamos
Você e eu estamos pingando”

Na Jaemin sonhava com o Ford Mustang 1987 conversível desde que o viu exposto em uma feira de carros antigos de Incheon quando fazia uma de suas visitas semestrais à sua avó.
Não foi premeditado, assim como nenhum amor jamais é. Mas quando viu, ele estava sinceramente apaixonado e ambicioso por aquela lataria que certamente iria parar nas mãos de algum colecionador rico o bastante para pagar sem pressa o preço sugerido pela placa retangular na frente do para-choque. E, por alguns segundos, apenas por alguns segundos, ele pensou que talvez fosse melhor desistir da ideia descabida de colocar as mãos em uma iguaria daquelas. Que poderia comprar um Ford qualquer como o que Jeno havia adquirido naquele ano por ter passado no vestibular, e que carros são carros. Não havia necessidade de todo aquele desejo por um em específico.
Mas a ideia não deixou sua mente um momento sequer. E ah, Jaemin sabia bem que quando uma ideia não deixava sua mente de forma voluntária, era porque estava sendo tomada por uma avidez maior do que ele. Que não sossegaria enquanto não traçasse um plano para enfim alcançar a mira que o deixava naquela excitação contida, aquela vontade incontrolável por alguma coisa. Havia sido assim desde que se entendia por gente, e com base nisso, considerava-se um bom cultivador de seus próprios sonhos e um delineador de metas incomparável. Sua família não tinha lá muito dinheiro e bens, mas ele era um garoto inteligente, bastante inteligente, porque teve sorte de perceber desde o início que não alcançaria suas ambições sem isso. Lamentações sem sentido não impulsionaram ninguém a lugar algum.
E, por mais que fosse um exímio planejador de conquistas, ele não tivera muitas na vida. Não tinha o olho grande, como as pessoas diziam, e não se deixava aventurar por aspirações fora de sua realidade, mesmo que soubesse que, se assim quisesse, tudo faria parte da realidade que criasse. Mas ele era simples, sempre foi. Gostava de pensar que nada era complicado demais, e que tudo tinha um tempo certo para acontecer.
Até para deixar que Lorraine soubesse de seus verdadeiros sentimentos.
A vida do garoto era repleta de atitudes práticas e tenazes. Se queria uma bike aos doze anos, entregaria os jornais da mercearia do sr. Prowse ou faria meio período na padaria próxima do bairro. Se queria trabalhar profissionalmente com carros, estudaria o bastante para entrar na melhor universidade contemplado com uma bolsa 100%. E, é claro, se quisesse seu próprio carro, trabalharia em uma grande cafeteria no centro da cidade onde receberia gorjetas além do salário. Era simples, uma linha reta de pensamento eficiente onde os fins justificavam os meios.
Porém, quando se tratava da amiga de infância, ele ainda não fazia ideia do timing correto. De como deveria levar o progresso adiante, ou até mesmo de como começá-lo. E afinal, o que alcançaria? Seu coração, seu sim, um beijo, uma noite? A lista foi aumentando conforme ele cresceu e amadureceu, e à medida que descobria o que realmente poderia fazer com outra garota.
Desde que ajudou a aluna nova com cálculos muito difíceis para uma criança de onze anos que era muito boa em História Coreana e gostava de falar sobre edifícios antigos, ele sabia que havia entrado naquela fase brega que os adultos chamam de “pré-adolescência”. Ou que ele estava virando um homem e qualquer um desses discursos arcaicos que se propagavam em massa conforme ele crescia. Não importava. Ele só sabia que não estava louco quando seu coração batia mais rápido quando a via cruzar a esquina do parque regional, e em todas as esquinas que já a esperou durante a vida.
Jaemin estaria mentindo se dissesse que não tinha um plano. Por muito tempo, ele realmente não teve. Mas, como uma daquelas ideias ditas anteriormente que não largava sua mente de jeito nenhum, ele sabia que precisava fazer algo sobre isso. E entendeu desde o começo que lidar com esse tipo de coisa, as coisas que envolviam outras pessoas além dele próprio, poderiam ser mais complicadas do que esperava. E que não podia simplesmente fazer o que desse na telha. Que confessar a ela de forma crua e desengonçada daquela forma poderia acarretar em mais malefícios do que benefícios. Era uma balança com um resultado bem claro: ele poderia afastá-la de vez.
A solução era bem fácil: de nada adiantaria os sentimentos imaturos de um garoto de doze anos. Lorraine era nova na cidade, filha de pais advogados que tinham uma casa na ilha de Jeju. Ele só dividia a sala de aula com ela, e com tantos outros filhos de outros advogados, doutores ou seja lá quais profissionais que podiam pagar aquela escola por causa de sua proeminente bolsa de estudos, a qual mantinha com excelência com suas boas notas. E não é que pensava que não fosse bom o suficiente pra ela.
É que ele ainda não era bom o suficiente.
E assim, traçou mais uma meta. Ele continuaria sendo seu amigo e cresceriam juntos enquanto ficavam mais próximos. Até quando Lorraine teve de ser transferida para outra escola no extremo norte da cidade no começo do segundo grau, não foi o suficiente para abalar os planos dele. Ele continuava pensando nela da mesma forma e intensidade, com o mesmo carinho e paixão do garoto de doze anos.
Ele não tinha nada a oferecer no momento, mas no futuro teria. Ah, Na Jaemin com certeza tinha um futuro brilhante pela frente. A formação honorária do ensino médio se repetiria certamente na universidade, e sairia da mesma com tantas propostas de emprego que mal poderia contar, e seria tão bem sucedido confeccionando automóveis para marcas estrangeiras que poderia ter todos os carros que quisesse, até mesmo uma garagem inteira para guardar todos eles, junto com uma casa enorme em Gangnam, sem contar com a casa de verão em Jeju.
Daí então, ele se confessaria. Era o momento certo, o fim do caminho. Quando ele finalmente poderia se considerar pronto a assumir os riscos de perdê-la.
Pelo menos era assim que pensava até aquela tarde de sexta-feira, anterior à todo o rebuliço que o fim de semana guardava para todos.
— Sabia que te encontraria aqui — ele ouviu a voz dela sibilando por trás de suas orelhas, causando-o um tremor imediato — Assustado como sempre. Como andam seus cálculos?
— Bons, eu acho — ele respondeu, pousando o lápis ao lado do livro aberto no tampo da mesa de vidro da silenciosa biblioteca — O que faz aqui? Achei que tivesse aula.
— Meus colegas estão mais interessados com os preparativos de amanhã do que gramática de caracteres — ela deu de ombros, puxando uma das cadeiras confortáveis do outro lado — Mas eu imaginei que você estaria aqui na primeira oportunidade de tempo livre. Acho que preciso conversar sobre uma coisa.
Jaemin a encarou com um olhar assertivo, recostando-se no banco com um falso relaxamento. Ele não fazia ideia do que poderia ser, mas os últimos tons baixos da voz de Lorraine já o faziam prever todo tipo de coisas.
— Pode começar — ele fez um gesto com as mãos parecido com o de um apresentador de TV ao apresentar um convidado, e a garota riu brevemente.
— Você sabe que nos conhecemos há muito tempo — “sim”, ele murmurou — E que somos amigos há muito tempo — ele repetiu a mesma resposta — E que sempre te conto as coisas mais relevantes, como quando dei meu primeiro beijo, ou briguei na aula de natação com aquela tal de Heidi na sétima série, ou até quando menstruei pela primeira vez…
— Isso foi muito estranho — ele a interrompeu, levando os dois a darem risadas, as mais baixas possíveis, ao relembrar o ocorrido — Mas sim, entendo meu papel de confidente. O que aconteceu desta vez?
Ela mordeu o lábio inferior, desviando os olhos por um segundo. Olhar para os lados fez com que o embrulho no estômago de Jaemin ganhasse ainda mais força. Ela parecia tensa, e isso nem sempre era um bom sinal.
Por fim, ela apoiou os antebraços na mesa e levantou o tronco até se aproximar o bastante de Jaemin do outro lado, chegando até os primórdios de seu nariz quando disse:
— Acho que estou apaixonada.
Ela falou e voltou ao seu lugar tão rápido que Jaemin claramente poderia pedir para repeti-la, mas ele havia escutado tudo. E havia entendido, por mais que a frase causou-lhe um belo tumulto dentro da mente que agora parecia voar em sua mente como um disco arranhado, piscando em setas e gritos, fazendo o garoto levar um tempo para enfim conseguir dizer:
— Como é?
Lorraine levou as mãos à boca, parecendo radiantemente feliz. Como se um peso do tamanho do World Trade Center finalmente tivesse se desintegrado e deixado suas costas em paz.
— É isso mesmo que você ouviu — ela falou baixo, não mais se importando em encarar os lados — Não é demais? Eu tenho um namorado.
— V-você… — ele tentou dizer, apertando os nós dos dedos por debaixo da mesa sem qualquer controle. Um mundo de questões pareciam querer invadi-lo, a ansiedade que ele nunca tivera chegando em seu peito como uma avalanche — O que ‘tá dizendo… Como assim…
— Eu sei, eu sei, é inesperado. Mas eu ‘tô falando sério, Nana. Acho que finalmente achei o meu Sam Wheat, sabe? Daquele filme que assistimos, Ghost
O relatório de memórias que foi dito em seguida foi parcialmente capturado pela mente conturbada de Jaemin. Uma recapitulação de sua vida inteira se passava bem diante de seus olhos, e o seu eu consciente pareceu divagar em uma linha do tempo extensa como um tapete vermelho em cima daquela mesa.
Primeiro: como jamais havia considerado que uma coisa daquelas pudesse acontecer? Ele não era idiota, e nenhum tipo de pessoa totalmente fora da realidade que esperava que seu primeiro amor fosse seguir a vida completamente imaculada de ser atingida por outras paixões. Afinal, ela não pertencia a ele e nem nada parecido. Não havia um trato e nem coisas assim para que as pessoas temessem se aproximar. E como poderia culpá-las, meu deus do céu! Lorraine era uma garota completamente incrível. Ele tinha total conhecimento disso, e sempre reforçava tal coisa sempre que se pegava olhando para ela. Se apaixonar por aquele sorriso não chegava a ser uma opção.
Mas como pode ser tão mesquinho ao imaginar que ela fosse esperar mais? Não que fosse por ele, é claro. Ela não tinha a menor ideia de nada que acontecia dentro daquele coração, nem antes e nem agora. Mas esperar mais um pouco para dizer coisas como aquela, coisas como Sam Wheat e malditas almas gêmeas, céus, como isso era possível? Ele não estava ouvindo, mas ela sorria e sorria tanto, seus olhos brilhavam a uma intensidade alarmante e pessoa alguma seria louca de dizer que ela não estava falando sério.
Jaemin viu seu plano se deteriorar bem diante de seus olhos. Era inegável o quanto ela parecia feliz. Mas e ele, e suas metas, e tudo que havia planejado para enfim se declarar? Sabia que levaria tempo, mas era a coisa certa a se fazer, ele se preparava para finalmente ser bom o bastante, cada passo até ali foi pensado para isso, até mesmo aqueles cálculos idiotas rabiscados na folha de papel abaixo de seu nariz.
De repente, nem aquilo parecia ter tanta importância assim.
— Ele até me levou pra comer naquela barraca na beira do rio Han, e também jogamos boliche na gale…
— Quem é o cara? — Ele perguntou quando voltou a se concentrar, sem um pingo de arrependimento por ter perdido grande parte do monólogo — Digo, eu o conheço?
O sorriso de Lorraine diminuiu um pouco, sem sumir completamente. Ela limpou a garganta e colocou uma mecha de cabelo atrás das orelhas.
— Acho que não posso te contar agora.
— Por que não?
— Porque tudo está muito novo e recente, entende? Quer dizer, eu acho melhor você saber na hora certa, assim como todo mundo, mas só você sabe dessa primeira informação que acabei de contar, não disse pra mais ninguém. Então eu prometo te contar o resto depois.
— Como assim, Lorraine? Por que não…
O toque explosivo do celular dela fez com que todos os olhares presentes na biblioteca se voltassem para os dois com expressões raivosas. Ela tateou a mochila com mãos rápidas, olhando para trás em sussurros de desculpas antes de desligar a chamada.
— Os veteranos querem uma reunião agora mesmo — ela bufou, começando a se levantar. — Juro que vamos conversar melhor sobre isso. Não pode só me dar os parabéns por hoje, Nana?
Ele assentiu com a cabeça de forma relutante, recebendo um pequeno abraço da garota antes de se retirar do lugar.

🌧


Jaemin sabia que teria de pagar uma xícara ou outra até o fim do dia.
Estava chovendo, de novo. Desta vez, não passava de uma leve garoa, acompanhada de nuvens cinzentas que haviam tomado o céu na metade da tarde, e que agora traziam o anoitecer mais rápido naquela parte da cidade.
A visão normalmente seria apreciada por ele. Gostava de dias chuvosos como aquele, e a calma que tomava sua mente, mas naquele dia específico, não conseguia fornecer o foco necessário para a singela estima do fim da tarde através da fachada de vidro. Não conseguia focar em absolutamente nada, e nunca havia recebido tantas advertências da sra. Bodnick em um dia só, um número total equivalente há pelo menos um ano de trabalho. Afinal, Na Jaemin nunca na vida havia dado motivo para sequer um olhar esticado da velha proprietária.
Mas ele não conseguia evitar as palavras de Lorraine dançando em sua frente, como se um teatro fajuto de fantoches fizesse questão de relembrá-lo a cada minuto. E assim foi fácil trocar pedidos, manchar o avental e ouvir perguntas arranhadas até mesmo de Johnny, que foi o primeiro a perceber a perturbação do garoto.
Não estava sendo fácil aceitar a situação. Tudo bem Lorraine ter um namorado - ela já tivera outros antes, aquilo não tinha sido novidade. Mas estar apaixonada? Não, aquilo definitivamente não tinha acontecido em nenhuma outra situação que ele poderia se lembrar. Ele sabia que aquela circunstância ultrapassava o normal da coisa. O normal era ouvi-la contar duas, até três semanas depois que não havia dado certo. Que ela não estava apaixonada por ele, e assim a vida seguia. Ele acreditava fielmente que poderia ser um sinal do avanço de seus planos.
Mas o jeito como ela o olhou hoje, ah… Não, aquilo não parecia ser um namoro que terminaria nas próximas duas semanas.
Na verdade, ele tinha certeza que ele já estava durando há um tempo, um tempo bastante considerável, bem antes das férias de verão.
E ela nunca havia escondido tal coisa assim antes dele. Por tanto tempo. Isso só servia para reforçar a teoria de que ela poderia estar realmente entregue na relação desta vez.
Esses e outros pensamentos martelavam a cabeça de Jaemin de tal forma a ponto de deixá-lo à beira de uma cólera silenciosa que o paralisaria ali mesmo onde estava. Ele não era uma pessoa que se desesperava com facilidade, resultado de uma personalidade sistemática e organizada, mas no momento ele se sentia sinceramente frustrado. E até agora, não sabia como contornar a situação. Sabia que deveria fazer algo, ou ele rasgaria o primeiro mapa de metas de sua vida.
Ainda tão absorto em suas reflexões, ele nem percebeu quando a cliente regular batia seu ponto do dia e ultrapassava a entrada do local. Ela o viu parado bem atrás do balcão, como sempre estava, esfregando demais uma xícara de cerâmica e com os olhos perdidos enquanto observava o processo, sem olhar realmente. Como se fosse um robô ou algo parecido. Ela juntou as sobrancelhas com a cena, olhando-a mais de uma vez enquanto ocupava seu lugar de sempre.
O clima parecia especialmente bom para naquele dia. Não chovia tanto, assim como não fazia frio, mas o fio de uma pequena neblina começava a passear do lado de fora, e o céu começava a tomar tons de roxo e rosa à medida que as nuvens pesadas se afastavam. Um dia bom, ela pensou. Nada estragaria esse dia.
Abriu o notebook, dando uma última olhada para fora a fim de reunir sua última torrente de inspiração antes de recomeçar seu processo literário. Desta vez, ela tinha certeza que terminaria a última estrofe do poema, e que os dias passados ao lado daquele cenário urbano e cotidiano haviam sido cruciais para uma melhora significativa da qualidade de sua escrita. Tudo ali a inspirava fortemente. A luz amarelada e acolhedora, o ladrilho hidráulico em cores vivas e diversas, o material confortável do estofado do assento que a deixava repousar ali por horas a fio sem sentir qualquer tipo de incômodo, o saboroso caramel macchiato preparado na hora, com a espuma estampando a superfície como uma bela volta de lembranças para sua infância, e a bebida acompanhada pela fatia…
Ela olhou repentinamente para o lado. Costumava mergulhar tanto em suas palavras na tela que não se atentava direito no momento exato em que Jaemin trazia seu pedido padrão. Ela não sabe quanto tempo se passou até que se tocasse que a mesa ainda estava vazia, e de que o garoto continuava parado exatamente no mesmo lugar, perdido em algum ponto da xícara em mãos, parecendo um cão abandonado.
Ela pensou consigo mesma se faria alguma coisa para chamar sua atenção. O outro garoto loiro que exercia aquela função já devia ter ido embora há muito, então não havia outra pessoa a quem ela pudesse fazer seu pedido. Talvez deixasse de tomar café hoje, não era lá grande coisa. Poderia acreditar que a repetição de padrões que estavam acontecendo nas últimas semanas, que incluíam atravessar a porta de entrada pontualmente, sentar-se no mesmo lugar e pedir a mesma coisa estavam sendo cruciais para sua produtividade e que quebrar esse ciclo poderia trazer uma catástrofe na mesma, mas o que ela poderia fazer? Ele parecia realmente um cidadão despejado na sarjeta. Os ombros caídos não a deixavam mentir.
Decidiu fazer uma última tentativa. Ela limpou a garganta, alto o suficiente para reverberar pelo lugar que recebia apenas a melodia baixa de uma música instrumental ambiente. Não tivera muitos resultados. Tentou uma segunda vez, mais alto do que na primeira. Ele empinou a cabeça como uma águia, olhando primeiro para a porta e em seguida para a mesa da janela, onde se encontrava.
— Ah, você chegou — ele murmurou, em tom tão baixo que ela não foi capaz de ouvir além de meros sussurros. Ele a lançou um leve cumprimento de cabeça e voltou-se para a máquina de café atrás de si, tentando juntar todo e qualquer resquício de foco para fazer pelo menos aquela tarefa bem.
Ao depositar a bebida juntamente com a fatia ao lado do cotovelo dela, ele se conteve em apenas fazer uma breve reverência com a cabeça e voltar a caminhar para seu posto.
— Jaemin— ela chamou, e ele se virou imediatamente. Um suspiro escapou de seus lábios sem intenção. Ele provavelmente havia feito algo errado de novo — Você está bem?
Ele piscou os olhos algumas vezes até notar que ela falava com ele.
— Estou sim — respondeu.
— Ah — ela desviou os olhos rapidamente, um tanto constrangida por ter feito tal pergunta baseada em seu fraco senso observador — É que você parecia, bem…
Ela não terminou a frase, não que precisasse. Jaemin sabia exatamente como estava parecendo naquele dia, e sinceramente não queria iniciar um papo sobre o motivo. Ele nem saberia o que dizer.
— Bom apetite — ele falou e, por fim, voltou pro balcão.
olhou novamente para a tela, mas desta vez não conseguia pensar nas próximas palavras. Ela tinha tudo que precisava, tudo que tinha aflorado sua imaginação nos últimos dias, mas havia algo diferente. O atendente não estava com aquela expressão em nenhum momento dos dias anteriores, e tudo bem que ela automaticamente pensou “que diferença o bem estar de Na Jaemin pode ter sobre o meu trabalho?”, mas então por que aquela expressão cabisbaixa e perturbada há alguns metros a seu lado pareciam ter um efeito direto sobre ela? Não fazia sentido, ela não poderia ser tão metódica.
Pensar nele levou a garota a se lembrar de agora que estava evitando até então: o dia de amanhã. O sábado de integração. A tal reunião pavorosa que convocaria todos os veteranos de todos os departamentos e gincanas e bebedeiras malucas para os calouros, onde ela estaria incluída por livre e espontânea pressão. E queria, como desejava poder se livrar de tal situação vergonhosa que com certeza seria, e teria conseguido tal feito se não fosse a jogada inescrupulosa do garoto de camisa branca dividindo o mesmo local que ela agora.
Ponderando sobre isso, era fácil simplesmente bufar e esquecer que, por alguns segundos atrás, ela havia sinceramente se interessado se ele estava bem. Besteira. Ele com toda certeza estaria no meio da corja de amanhã que a fariam virar dezenas de shots de soju, e desafiariam seu senso competitivo em jogos alcoólicos até que ela levantasse a bandeira branca. Um fiasco atrás do outro era o que eles esperavam, é claro, mas não o que teriam, não se dependesse dela.
Ela não poderia perder a chance de se mostrar uma ótima ganhadora amanhã, não quando ele certamente estaria assistindo.
Infelizmente, essas previsões somadas à mudança intrínseca no ar por causa de um garoto tristonho tiraram qualquer verso bonito que poderia nascer de sua criatividade. Ela sentia como se eles estivessem presos à terra, entalados, e que talvez fosse melhor deixar assim por hoje. Era fácil florescer palavras bonitas quando seu coração e mente estavam em sintonia, em paz com a própria realidade para que fugisse dela por algumas horinhas, mas não parecia ser o caso hoje. O dia de amanhã guardava surpresas, mesmo ela não imaginando o quanto.
O celular vibrou em seu bolso na hora certa, revelando uma mensagem de Lorraine no grupo do Kakao que dividiam com Jennifer. A garota mandou um SOS bem acima do último recado que dizia @ 🧚‍♀️ quer um spoiler do que terá amanhã pra já ir preparada?”
arfou, digitando com os dedos velozes enquanto guardava suas coisas desordenadas, rápidas, sem deixar de olhar o celular. Uma onda de alívio perpassou por toda sua coluna. Era tudo que ela precisava, exatamente tudo: ter uma vantagem. Quanto mais rápido terminasse sua parte naquela festa, mais cedo poderia ir embora e se ver livre de obrigações impostas por jovens descarados.
O barulho do salto das botas contra o piso fizeram com que Jaemin voltasse ao mundo real a tempo de vê-la deixando o estabelecimento em uma corrida ávida. Ela nem ao menos o deu boa noite. Ele suspirou e caminhou até a mesa, encontrando o bolo intocado e o café pela metade, junto de algumas notas lançadas em revolta por cima do tampo. Estava se perguntando o que diabos pode ter acontecido para que ela encerrasse seu expediente mais cedo e ainda mais daquele jeito, quando sentiu algo sob seus pés.
A princípio, não parecia grande coisa. Era um papel de carta cor-de-rosa, dobrado várias vezes até se reduzir em um pequeno quadrado do tamanho da palma da mão e - pelo amor de deus - aquilo era perfume?
Ele juntou as sobrancelhas ao pegá-lo. A marca de seus tênis havia danificado o exterior da carta, e por um momento ele se preocupou em vê-la de volta dali há alguns instantes para pegar o tal pedaço de papel de volta, mas olhando naquele momento, não parecia grande coisa. Ele estava ciente de que ela se sentava no mesmo lugar e de que digitava sem parar naquele computador, assim como anotava sempre algo em um pequeno caderno grosso e cheio de colagens desconexas. Portanto, aquela deveria ser uma anotação de aula ou lista de compras, quem sabe. Ela não se importaria tanto de topar com a sujeira proferida pelos pés dele de forma totalmente não intencional.
Porém, ao abrir e verificar o conteúdo do papel, ele se tocou de que talvez estivesse totalmente enganado sobre a importância do que tinha em mãos.
Porque não era uma lista de compras. Céus, não era nem uma lista! E muito menos anotações de alguma aula qualquer. Porque o “meu coração poderia ser seu lar” estampando a primeira linha de um enorme poema o deixaram ciente de que ele com certeza estava lendo algo que não devia.
Ele arregalou os olhos, olhando para trás automaticamente, como se tivesse trombado com um segredo de Estado. A caligrafia perfeita demonstrava um capricho excelente, e a escolha de palavras eram as mais tocantes e profundas que Jaemin já tivesse lido. Se gostasse de ler, com certeza encontraria tal coisa nos textos de Shakespeare, mas ele tinha total certeza que a que segurava no momento tinha nascido única e exclusivamente da cabeça de Čas. E que ela havia confeccionado tal coisa recentemente, visto a tinta que ainda brilhava da caneta colorida e o perfume que invadia as narinas dele. Era uma confissão planejada e estruturada com afinco, tudo isso demonstrado pela dedicação do texto.
Um assobio o fez esconder o papel no bolso da calça pelo susto. Um dos clientes do outro lado da loja chamava sua atenção enquanto erguia as mãos para cima em um sinal de pedido da conta. Ele coçou a garganta enquanto arrastava os pés apressados até o lugar, recolhendo o dinheiro enquanto via-os se retirar porta afora.
Ele pegou novamente o papel dobrado quando voltou para trás do balcão, agora drasticamente amassado pela velocidade com que o guardou da primeira vez. Algo o dizia que certamente voltaria para buscá-lo e, se não fizesse isso hoje, ele poderia ser abordado no primeiro horário da segunda-feira pela garota em busca de sua confissão. Ou talvez estivesse tão constrangida com o conteúdo da carta que simplesmente fingiria que ela jamais existiu…
Ah, céus. Não. Ele não havia pensado nessa possibilidade. A hipótese apresentada por Jeno naquele dia do almoço, uma alternativa tão descabida que nem havia sido mencionada de novo, a remota chance que a faria largar o papel dobrado ali de propósito, acompanhado de um motivo claro para fingir que nunca havia escrito.
Porque a carta havia sido deixada no lugar correto. Porque era realmente para que Jaemin pisasse em cima dela ou enxergasse o ponto rosa bem ao lado da mesa. Porque ela havia saído correndo daquela maneira descabida para não ser pega em flagrante. Porque ela sabia que ele leria…
Porque as palavras eram para ele. Porque - não, Deus queira que não - Čas poderia estar apaixonada por ele.
O mundo parecia estar desabando.

🌧

Eu não percebi, mas agora estou percebendo que
Somos muito parecidos, estamos nos tornando iguais”

Haechan desferiu o copo sobre a mesa de madeira com tamanha força que os pés tremeram na base.
Ele engoliu o líquido com força, sem desviar os olhos da garota por um minuto sequer, mesmo que a garganta queimasse o bastante para que ele não conseguisse segurar uma careta. levantou as sobrancelhas do outro lado da mesa, ouvindo os gritos eufóricos ao redor, a torcida declarada berrando seu nome ao fim de mais uma disputa do famoso ping pong alcoólico.
— Mais uma! — ele falou, um tanto grogue pelo quinto copo de 500ml que havia virado em um tempo recorde naquela noite, cambaleando até a pequena raquete no chão.
— Ainda não desistiu? — ela riu, cruzando os braços, parecendo decidida a não se mover.
— Garanto que na próxima você vai beber — ele havia resgatado a raquete com certa dificuldade, levantando-se com a ajuda de dois rapazes da multidão. Ela revirou os olhos, o tédio começando a tomar seu rosto — Eu juro, desta vez eu vou… Vou… — os olhos do garoto pareceram perder o foco por um instante, até que de repente seu corpo inteiro tremesse antes que virasse a cabeça para o lado e simplesmente colocasse para fora toda a bebida que havia consumido naquela noite e mais umas coisas que não fez questão de observar. O grunhido da ânsia foi emitido em uníssono, e ela simplesmente deu de ombros enquanto largava a raquete em cima da mesa azul, sumindo pelo lado contrário.
Ela pensou em pegar o telefone e começar a procurar por alguma das amigas, quando alguém tocou em seu braço repentinamente, puxando-a para algum espaço fora da aglomeração, especificamente no gramado do lado de fora.
— Achei você! — Jennifer gritou, e precisou ir aumentar gradativamente o tom de voz pela música ficando mais próxima a elas — Preciso admitir que a Lorraine ‘tava certa quando disse que você não seria uma caloura muito fácil. Conseguiu driblar até mesmo um beberrão como o Haechan.
— Eu não sou caloura — repetiu, porém abrindo um sorriso. Ela não havia conseguido ficar totalmente alheia à consumação do álcool, e já perdera a noção de quanto tempo estava ali, e de quantos jogos havia ganhado — Mas você pode me chamar assim, é claro — ela riu, caminhando até a mesa de bebidas, esbarrando em ombros alheios.
— Vou chamar sim, pode ter certeza!
Ela riu enquanto procurava uma garrafa de água no balde de gelo. Estava quente, tão quente que ela podia jurar que estava no verão francês. O rabo de cavalo havia sido uma solução assim que se viu encurralada pela massa de pessoas logo no início do evento, mas agora ela podia sentir o suor descendo por sua nuca, parando em suas costas e deixando a camisa larga do curso de Línguas ainda mais abafada. Os shorts haviam sido uma jogada inteligente, mas ela queria desesperadamente tirar aqueles tênis apertados e andar descalça por todo aquele gramado pelo bem de sua sanidade.
— ‘Tô procurando a Lorraine, você viu ela? — Jennifer perguntou quando finalmente conseguiram achar água gelada o suficiente no meio do caos da mesa — Ela sumiu um pouco antes da sua vitória, e acho que perdi meu celular…
— Eu iria tentar ligar para ela, mas eu não sei onde ela pode ter ido.
— Sinceramente, acho que ela tem um peguete.
— O quê? — riu com a fala da amiga, engasgando-se em seguida em consequência de falar enquanto ainda bebia a água — Lorraine com um peguete? Sem chance, ela falaria sobre isso.
— A Lorraine não fala muito sobre essas coisas com a gente, não percebeu? — Jennifer levantou as sobrancelhas, como se dissesse algo mais do que óbvio — Ela conta sobre as vacinações anuais dos cachorros dela, mas de jeito nenhum fala sobre garotos. É bem provável que ela tenha um namorado ou coisa parecida e esteja escondendo ele em alguma caverna.
— Que exagero — balançou a cabeça, começando a caminhar para longe da mesa e da maior aglomeração do lado de fora. A piscina olímpica ficava há alguns metros a frente, e um frescos palpável já era sentido nessa região — Eu acho que ela só ‘tá conversando com os veteranos por aí.
— Com certeza, mas não vamos descartar a especulação de que ela simplesmente tem uma trava quando o assunto é garotos. Não percebeu? Durante todo o seu tempo na Europa, ela nem mencionou que tinha reencontrado o melhor amigo de infância aqui na universidade, e eles eram totalmente unha e carne.
— Melhor amigo de infância? ‘Tá falando do…
— Isso, do Jaemin! Ela nunca te contou isso? Ela foi transferida pra nossa escola no ensino médio, mas estudou com ele antes disso. E olha só, nem naquela época ela falou sobre isso. Eu só descobri quando ela entrou em êxtase ao vê-lo nessa mesma integração no ano passado.
— Ah… Eu não fazia ideia disso — ela murmurou, um tom de surpresa estampado na voz. Ela tinha conhecimento da amizade entre Lorraine e Jaemin, mas não fazia ideia do tempo específico que fazia. E realmente chegou à conclusão de que a amiga não falava muito sobre garotos, ou sobre coisa alguma de sua vida particular — Mas você acha que ela...
Em um instante, Jennifer sumiu do lado de . Ela não percebeu na hora, com seu olhar fixo nas ondulações transparentes da água conturbada pelas pessoas pulando ou dançando ou fazendo qualquer outra coisa lá dentro, mas de repente virou para o lado e viu as costas da garota, e mãos desconhecidas passando pela cintura dela enquanto travavam um beijo intenso e totalmente não apropriado para uma multidão, mesmo que essa multidão estivesse quase que totalmente alucinada.
ficou imóvel até que a amiga finalmente se desse conta e afastasse bruscamente o rapaz, que mordeu o lábio inferior de forma lasciva enquanto não tirou as mãos de sua cintura.
, desculpa, é que o...
— Oi, ! — o cara finalmente a notou, parecendo levemente embriagado mas duvidava muito que fosse por causa da bebida — Lembra de mim? Sou o Jeno, amigo da Lorraine, e do Ren…
— Eu lembro de você — ela o interrompeu, ainda olhando para Jennifer com uma expressão que certamente pedia por uma explicação plausível para a cena que acabara de ver, mas não teve muito tempo para ponderar sobre o assunto, muito menos para receber alguma resposta, pois percebeu que mais gente se juntaria ao semi círculo.
— Jeno, tive de pegar seu celular de dentro de um copo vazio que fedia à coisas estranhas e duvidosas — Mark apontou para o garoto ainda apoiado em Jennifer, e logo encarou o cenário que havia interrompido — Ah, vocês dois estão… — ele olhou para o lado — Ah, e aí, ! Puxa, você tá uma gata!
Ele sim estava claramente embriagado.
— Oi, Mark — ela sorriu em resposta, olhando para o rapaz que o acompanhava logo atrás — Oi, Jaemin.
Jaemin demorou alguns segundos para enfim retribuir o cumprimento, desviando os olhos do rosto dela logo em seguida enquanto tomava um grande gole da cerveja que trazia em mãos.
— Fiquei sabendo que você deixou os veteranos comendo poeira nos jogos de mesa — Mark cruzou os braços, ainda encarando a garota com uma certa fascinação… Alcoólica.
— E nas disputas de resistência também — pontuou Jennifer, sorrindo.
— Deus do céu, você realmente não entra pra perder, não é mesmo? — Mark estalou a língua — A não ser quando o Nana resolve entrar no jogo, daí realmente é uma batalha de grandes mentes.
Mark riu abertamente, puxando um coro com Jeno e Jennifer, mas não passou disso. deu um risada forçada, tirando alguns poucos fios rebeldes da testa e Jaemin se conteve em apenas lançar um olhar tedioso para Mark.
Em seguida, Jeno sussurrou algumas palavras no ouvido de Jennifer, fazendo com que ela desse risadinhas discretas na palma das mãos enquanto ele começava a puxá-la para alguma outra direção que se afastava do grupo.
, eu vou… Lá… Talvez eu encontre a Lorraine — ela tentava dizer alto enquanto se deixava ser levada pelo garoto — Eu já volto, eu só vou… Enfim, eu já volto! — e simplesmente sumiu no meio do povo.
Mark encarou o casal se embrenhando no meio dos corpos e ficou estático no mesmo lugar ao perceber que dois haviam virado quatro, e depois seis e em seguida retornando ao quatro. A sensação não era muito boa e ele sentiu sua cabeça girar em 360 graus, até conseguir virar novamente para os amigos.
— Eles não são adoráveis? — ele disse, e se arrependeu no mesmo segundo ao sentir o bolo na garganta, um bolo que desejava desesperadamente sair — Sempre shippei os dois… Onde está mesmo o Renjun… Eu...
— Ah, merda! — Jaemin praguejou enquanto largava a cerveja em algum canto do chão, pegando em um dos braços de Mark, que começava a ficar mais verde a cada segundo que passava — Por Deus, Mark, seu infeliz, não vomita agora, não aqui…
— Ele ‘tá bem? — perguntou, sentindo-se repentinamente agitada com a pressa de Jaemin em segurar o garoto.
— Com certeza não — ele respondeu ao passo que os pés de Mark pareceram perder metade da força e Jaemin o ancorar bem na hora de um terrível passo em falso que o levaria ao chão, e o resultado disso não seria nada bom. automaticamente pegou em seu outro braço, sendo de grande ajuda para que ele também não desabasse — Vamos levá-lo até aquela árvore grande onde ele pode ceder bastante material orgânico para as plantas. Não confio que conseguiremos uma privada vazia a essa hora.
torceu o rosto em repugnância, mas apenas assentiu e passou o braço de Mark sobre seus ombros, conduzindo-o ao local indicado por Jaemin, que era afastado o bastante para a música não soar mais do que um background e o cheiro do que poderia surgir dali sumir rapidamente com o vento.
Eles nem precisaram concluir o percurso. Há vinte metros da árvore, Mark pareceu ser tomado por um desespero evidente e soltar-se voluntariamente dos amigos, correndo para trás do tronco grosso que escondia quase seu corpo inteiro e despejar tudo que precisava ali mesmo. não conseguiu controlar novamente a expressão de náusea, e Jaemin apenas suspirou pela cena já familiar.
— Espera um pouco aqui — ele murmurou para ela, dando as costas enquanto voltava para a área da piscina. encarou as costas agachadas de Mark, procurando por quaisquer dificuldades que ele pudesse estar tendo para se levantar ou simplesmente terminar de soltar tudo até que Jaemin voltasse carregando uma pequena espreguiçadeira branca, posicionando-a logo ao lado da árvore — ‘Tá tudo bem aí, amigão? — ele perguntou, recebendo um barulho grotesco da garganta de Mark em resposta.
— Ele ‘tá realmente bem? — ela perguntou de novo, começando a se preocupar de ter que levar o rapaz até um hospital ou coisa parecida.
— Ele ‘tá sim. ‘Tá colocando para fora exatamente dentro do tempo padrão: cinco garrafas de soju. Me preocuparia se ele tivesse ultrapassado isso — ele deu de ombros, observando as últimas gorfadas de Mark — Pronto, pronto, agora vem aqui — ele puxou o garoto para cima delicadamente e o colocou na espreguiçadeira, onde Mark fechou os olhos imediatamente e permaneceu assim.
Jaemin terminava de ajeitar os pés e os braços desengonçados do amigo quando perguntou:
— O que a gente faz agora?
Jaemin suspirou.
— Por enquanto só deixamos ele dormir um pouco — ele respondeu, colocando as mãos no bolso e puxando o celular — 30 minutos devem bastar. É o tempo que ele leva pra acordar e voltar a si.
— E se ele não acordar? — ela perguntou apressada, olhando para o peito de Mark que subia e descia tranquilamente em um sono profundo.
— Daí podemos encher um grande copo de água e jogar no rosto dele. É tiro e queda — ele deu de ombros.
Ela forçou uma risada, imaginando que no dia seguinte com certeza riria de tudo aquilo, apesar de no momento achar que Mark certamente já concedera vários sustos nos amigos para chegar ao ponto de ter padrões. Observou Jaemin digitar algo no celular e revezar seu olhar em Mark e na árvore atrás, claramente comunicando o ocorrido aos outros amigos.
Ele guardou o celular e finalmente encontrou os olhos da garota.
— Então… — ela começou a falar, um tanto apreensiva — Eu acho que já vou então…
, espera — ele respondeu em ímpeto, antes mesmo que ela desse qualquer outro passo. Andou até ficar de frente para ela — Eu queria mesmo falar com você.
Ela olhou confusa. Se estivesse totalmente sóbria - totalmente -, ela usaria seu senso observador para reparar no quanto ele parecia nervoso com a intimação. E ela, mesmo sem perceber, sentiu uma estranha queimação no peito, como um tipo de presságio.
E algo a dizia que não seria nada bom.
— Quer falar comigo? — ela deu de ombros, ainda duvidosa. Não imaginava quaisquer assuntos que poderia ter com Na Jaemin.
Ele comprimiu os lábios, de repente se questionando se o que pretendia era de fato a coisa certa a se fazer. Se ali era o lugar certo, se a abordagem era certa, tudo. Também não estava em total estado de sobriedade, e duvidava muito que adiantaria alguma coisa, mas fazer aquilo sóbrio poderia ser mil vezes pior.
Ele agarrou o pedaço de papel cor-de-rosa do bolso de trás do jeans e ergueu bem na altura do peito, não em um gesto de devolução, mas como se mostrasse um objeto furtado ao próprio responsável pelo roubo.
— Eu achei isso ontem na cafeteria — ele disse devagar, encarando fixamente seus olhos.
Levou quase um minuto para que enquadrasse a peça em sua panorâmica e finalmente se tocasse do que se tratava. Em questão de segundo, seus olhos se esbugalharam de terror enquanto suas mãos voaram de forma inconsciente em direção ao ponto rosa nas mãos de Jaemin, o coração batendo tão rápido que era possível escutá-lo pulsando nas orelhas.
O garoto previu isso. Mais rápido do que ela, ele levantou o braço detentor do objeto e deu um passo para trás, olhando-a como se fosse um bicho raivoso.
— O que você ‘tá fazendo com a minha carta? Devolve ela agora! — grunhiu, jogando-se para cima do garoto de forma quase cega, focando apenas no papel entre os dedos do garoto que o mantinha alto, irritantemente alto, pelo menos 18 centímetros a mais do que ela.
— Dá pra você se acalmar?!
— Me acalmar uma ova! Me devolve isso agora, Jaemin, ou se não eu juro que…
— Se você me escutar, eu te devolvo! Agora vai pra lá, por favor?! — ele ergueu as sobrancelhas, tentando não demonstrar que não conseguiria lutar por muito mais tempo com as investidas violentas da garota — Eu prometo que te devolvo.
Ela rosnou algum palavrão antes de soltar a camisa dele, afastando-se o bastante para que ele descesse o braço em segurança e ajeitasse a camisa quase arruinada.
— Meu deus do céu, Čas, achei que teria de ligar pro centro de zoonose — ele gemeu ao balançar os pés que ela havia detonado com seus passos errantes — Você sempre foi violenta desse jeito?
— Corta essa, Jaemin! O que você ‘tá fazendo com a minha carta?! Você leu ela?! Aposto que sim, seu miserável. Por que não…
— Ei, ei, a parte do me escutar, se lembra? — ele levantou as mãos em rendição, encarando o rosto vermelho da garota — Preciso te perguntar uma coisa importante sobre essa carta — ela levantou as sobrancelhas e esperou, o coração ainda batendo forte no peito. Será que ele sabia? — Você deixou isso lá pra mim?
Ela piscou os olhos, claramente confusa com a pergunta. Ele respirou fundo, tentando juntar toda a firmeza possível na voz.
— ‘Tá legal, olha, o que eu quero dizer é… Você ‘tá apaixonada por mim?
absorveu a pergunta por quase um minuto inteiro antes de explodir em risadas. O coração ainda batia de forma desgovernada, mas agora tomado de um alívio intenso. Não dava nem pra sentir raiva do garoto, ou de sua intromissão à sua vida particular.
Ele revirou os olhos com a reação dela, permanecendo com o rosto sério e, agora, o maxilar trincando.
— Você… — ela começou a dizer, ainda rindo — Você pensou mesmo que eu estaria apaixonada por você? É sério isso?
— É totalmente compreensível pensar uma coisa dessas naquela situação, se quer saber — ele trincou os dentes, sentindo uma irritação subir por seu peito proveniente da grande pergunta idiota que havia se atrevido a fazer — Mas que bom, fico feliz. Seria a primeira vez que eu teria de rejeitar uma garota.
— Ah, pode ficar despreocupado com isso — ela riu, agora de forma irônica, estendendo as mãos para ele — Agora, se não importa…
— Espera — ele deu mais um passo para trás — Mas essa carta é realmente uma confissão, não é? Pela sua reação, ela não é só um rascunho dos seus devaneios poéticos. Então você pretendia entregá-la…
— Na Jaemin…
— … Ao Johnny?
Desta vez ela não riu, mas pela cara que fez, pareceu literalmente que Mark havia vomitado em cima de seus sapatos.
— Johnny? O seu colega que flerta com a clientela? ‘Tá de brincadeira comigo?
— Eu pensei que…
— Ah, pensou! Você andou pensando demais na minha vida privada, seu sem noção! Acha mesmo que caras altos e bonitos são o tipo ideal de todas as garotas? Me poupe! — ela deu um passo a frente, erguendo as mãos para pegar o papel, mas viu Jaemin se afastando mais uma vez — Agora já chega, devolve a minha carta, Jaemin.
— Espera, espera, preciso fazer mais uma pergunta — ele falou rápido, vendo a veia em sua têmpora inchar de irritação — Você não negou quando eu disse que essa é realmente uma confissão. Posso saber para quem você estava pretendendo entregar isso?
As bochechas dela tomaram uma cor avermelhada intensa, e ela sentiu as orelhas ficando vermelhas com a pergunta.
— Você… Não te interessa! — ela respondeu, indignada — Por que eu contaria uma coisa dessas a você?
— É o Jaehyun, o veterano bonitão que cursa Direito e faz parte do time de basquete? — ele tentou, vendo-a cruzar as sobrancelhas — Ou aquele outro cara que as meninas gostam, o Kun que faz artes plásticas…
— Do que você ‘tá falando…
— Ou se não pode ser o Yuta que faz designer gráfico! A Lorraine e a Jennifer viviam falando dele ano passado.
— Você está…
Um berro viajou da entrada do portão até onde os dois conversavam perto da árvore. Jaemin virou o rosto na direção de onde seu nome foi chamado e deu um sorriso forçado para o garoto saltitante que se aproximava da dupla com um sorriso imenso, tropeçando pelo menos duas vezes até enfim alcançar o garoto, pegando-o em um abraço de urso que o fez ser erguido do chão.
— Na Jaemin! Nem acredito que você veio! — o garoto gritou literalmente no ouvido de Jaemin, que se afastou com uma expressão incômoda no rosto — Onde estão aqueles seus outros amigos engraçados, como o Renjun, o Jeno e… Aquele ali é o Mark? — ele olhou para trás dos ombros de Jaemin, encarando o garoto inconsciente em cima da espreguiçadeira — Puta que pariu! Esse é o Mark! — gargalhou, dando tapas fortes nas costas de Jaemin — Se eu soubesse que o Mark pretendia chegar nesse ponto, eu teria chegado mais cedo! Infelizmente, tive que ajudar meu pai na empresa hoje, sabe como é? Ele diz que quer me preparar para a presidência, mas hello, já olhou pra mim? Consegue me imaginar de terno e gravata? Na verdade, consigo sim! Te peguei! — ele riu mais uma vez, sacudindo Jaemin com mais um abraço pelos ombros, fazendo o garoto forçar uma risada até o último limite — É óbvio que vou ficar ótimo em roupas sociais, como daquela última vez que apareci no jogo da liga com terno e gravata, pode apostar, eu estava arrasando… Opa, boa noite, moça! — o rapaz virou-se para ao notá-la, fazendo uma reverência exagerada com as costas — Muito prazer, mademoiselle. Sou o Hendery. Como você se chama?
Jaemin encarou a garota de cima a baixo. O monólogo cansativo e sem noção do colega havia tirado a atenção dele por alguns segundos, e agora ele parecia estar olhando para outra pessoa. Ele sabia que estava com o rosto avermelhado pela fúria de ver sua carta exposta nas mãos dele, mas agora ela parecia sinceramente que iria vomitar. Estava pálida como um fantasma e com os olhos fixos e arregalados em Hendery, o suficiente para Jaemin se perguntar se ele era alguma assombração. E quando este fez um gesto brega de pegar em uma de suas mãos para desferir um beijo na mesma como uma cena da idade média, o rosto dela mudou automaticamente para um vermelho tão vivo e tão intenso que parecia estar em chamas. As pálpebras tremeram de forma abrupta em um segundo e ela perdeu a fala por mais tempo que isso.
— E-e-eu… Meu n-nome é Čas… ! Čas! — ela respondeu, totalmente desconcertada — E-eu…
— Ei! Lucas! — Hendery virou a cabeça como um jato para algum ponto da multidão, berrando mais uma vez o nome da outra pessoa — Você ‘tá atrasado, seu sacana! Trouxe o que eu pedi? Ei! — ele começou a correr como um boneco de madeira em direção ao montante, virando-se repentinamente no meio do caminho para a dupla de novo — Foi bom te ver, Jaemin! Vamos nos encontrar mais tarde lá na cobertura! Bonito nome, ! Preciso ir! — e saltitou novamente para o meio das pessoas.
Jaemin bufou, revirando os olhos para o que era considerado o cara mais chato de toda Universidade de Seul, isso se não estendesse o título para a própria Seul. Hendery Wong conseguia registrar uma imensa popularidade por fazer as pessoas correrem ou inventarem uma doença no estômago em tempo recorde, tudo para não terem de ser submetidas a mais de cinco minutos de conversa. E com um cara que se mostrava ser mais burro que uma porta, aquela parecia ser a única opção viável para uma média convivência.
Ele ajeitou a camisa puxada pelos abraços desajeitados a que foi sujeitado pelo mais velho quando estacou o olhar novamente em , que permanecia em algum tipo de estado de transe olhando o caminho por onde Hendery havia saído.
E de repente ele entendeu tudo.
A confirmação veio como um grande estalar de dedos em sua testa. A forma como ela parecia outra pessoa quando o garoto chegou perto, e o jeito admirado com que olhava o vazio agora, e massageava uma das mãos, e por Deus, a forma como aqueles olhos brilhavam como duas enormes estrelas da manhã…
— Sem chance. — ele disse, balançando a cabeça, olhando dela para o caminho — Você… Não. — ele sufocou uma risada, enquanto ela acordava do que quer que estava acontecendo a partir do momento que Hendery chegou — Não vai me dizer que a anta do Hendery é o alvo da sua carta de amor?
— O-o q-que?! — ela tentou formular, e conseguiria negar se um grande nó não se formasse em sua garganta naquele exato momento, impedindo as próximas palavras — Eu n-não sei do que…
Ele riu. Riu de verdade. Riu tanto a ponto de curvar as costas e se apoiar em seus joelhos, tamanho o status cômico que a situação havia se tornado. ouviu as risadas e afogou o rosto em suas mãos, desejando como nunca que fosse abduzida por alguma força extraterrestre que a tirasse daquele lugar agora, que a levasse embora para sempre, que nunca mais tivesse de encarar Na Jaemin na vida.
— Já acabou? — ela cerrou os dentes, sentindo o rubor tomar conta de seu rosto novamente.
— Desculpa, é que é simplesmente hilário você gostar daquele protótipo de idol — ele riu mais uma vez, tentando recuperar o fôlego de antes — E agora o papel rosa faz todo o sentido, era pra combinar com a cor do cabelo dele?
— Já chega, devolve a minha carta! Já não basta ele ter me visto com essa roupa ridícula, e esse calor que me fez suar, e meu cabelo, meu Deus do céu, meu cabelo deve estar um desastre! — ela arfou, levando mãos desesperadas à cabeça, os olhos indo de lá pra cá — E ele não se lembra de mim, mas é claro que não se lembraria, eu nunca falei com ele na escola, ou na formatura do ensino médio, ou até mesmo quando fazíamos parte do clube de atletismo, céus, ele nem sabia que eu existia… — ela tropeçou nas palavras desconexas até enfim se dar conta de que havia soltado a língua demais. Olhou para Jaemin, que observava a torrente de palavras da garota com uma sobrancelha levantada. Ela trincou os dentes mais uma vez, tentando esconder todo o nervosismo e constrangimento com um olhar raivoso — Enfim, agora que sabe pra quem eu escrevi, devolva minha carta!
— Claro, senhorita — ele deu de ombros, levando o papel até a palma de suas mãos, puxando de volta logo em seguida — Assim que você aceitar a proposta que vou te fazer.
— Que diabo você ‘tá falando agora?
— É muito simples, Čas. Você pode me ajudar com uma coisa importante, e em troca posso ceder um pouco do meu precioso tempo para sacrificar meus ouvidos perto daquele inepto para introduzir realmente quem é Čas naquele cérebro de azeitona.
Ela abriu a boca em um choque, não durando o bastante até que ela voltasse a colocar os pés no chão.
— Não! Você ‘tá sonhando se pensa que vou te ajudar depois de tudo isso, Jaemin. Agora você… — ela avançou novamente pra ele, que se afastou imediatamente.
— Tem certeza que não vai ajudar? Tudo bem então, posso realmente considerar a reunião aleatória que ele me convocou pra cobertura, só não confio demais no que posso contar a ele na primeira brecha…
— Jaemin! — ela levou as mãos à boca, arregalando os olhos mais uma vez — Seu… Babaca desonesto, traiçoeiro! Até onde vão seus jogos sujos contra mim?
— Até que você escute minha proposta. E então, o que vai ser? — ele levantou uma sobrancelha e respirou pesado, indicando com as mãos para que ele continuasse — ‘Tá legal, é o seguinte: preciso que você escreva uma carta dessas pra mim.
— Como é que é?
— Olha só, eu nunca curti essas coisas complexas de poesias e palavras difíceis, mas as coisas que você escreveu são extremamente bonitas e cativantes. É profundo de uma forma natural, me entende? Acho que as pessoas podem chamar isso de talento — Jaemin respondeu de forma tão autêntica e firme que fez um novo rubor nascer das bochechas da garota, desta vez de forma verdadeiramente envergonhada pelas palavras — Pode existir um risco sério daquele palerma não entender uma palavra sequer do que você colocou aqui, mas garanto que isso não vai ser culpa sua.
— Ok, ok — ela respondeu rápido, baixando os olhos enquanto colocava duas mechas fugitivas para detrás das orelhas. Nunca ninguém havia dito coisas tão… singelas a respeito daquela habilidade que ela tanto escondia — O que minha aparente aptidão com palavras difíceis podem ser úteis pra você?
— E daí que eu quero… Na verdade, preciso me declarar para alguém também — ele colocou uma mão na cintura, desajeitado. Agora a vez de ruborizar foi a dele, percebendo como jamais havia dito aquilo em voz alta.
— Você quer que eu escreva uma confissão pra você?
— Basicamente.
— E você acha que é simples assim? Vou sentar uma noite na minha escrivaninha e puf, consegui externar todos os seus sentimentos? — ela esticou o braço num piscar de olhos, agarrando o papel rosa das mãos do garoto de forma ligeira, deixando-o chocado por um instante — Isso aqui não são partes picadas de uma música romântica ou trechos incoerentes baseados em algum livro velho da biblioteca. Esses são meus sentimentos reais, e só pareceu tão bom porque oras, são meus. Como você quer que eu faça algo tão puro e real baseado nos sentimentos de outras pessoas? Não tem como, Jaemin.
— Espera, eu sei que parece loucura, mas eu juro que você é a pessoa certa pra isso. Sei que pode parecer difícil, mas e que tal se escrevêssemos juntos? — ela juntou as sobrancelhas — É isso, como se eu mesmo estivesse produzindo o conteúdo. Eu posso te contar mais sobre mim, sobre ela, sobre toda a porra de sentimentos que…
— ‘Tá legal, tá legal… — ela ergueu as mãos, fazendo-o se calar — Tá me dizendo que quer mesmo passar um tempo comigo pra escrevermos uma carta pra sua garota?
— É — ele deu de ombros, suspirando pesado, como se tivesse ficado sem respirar em algum momento do processo — E então? Você me ajuda a escrever uma carta de amor e eu te ajudo a entregar a sua. Que tal?
ponderou a proposta diante de si, sabendo que teria de dizer não, definitivamente não, que passar mais tempo ao lado de Na Jaemin com certeza não fazia parte de nenhum dos seus planos, mas então foi pega pela seguinte pergunta isolada: por que não?
Ele poderia não ser sua pessoa favorita no mundo, mas oras, era uma romântica incurável. Amava escrever cartas de amor, amava a paixão incontrolável e fantasiosa que ganhava vida com suas palavras, o ardor forte no coração de quem estava pensando em outra pessoa, amava a beleza do amor platônico…
Portanto, Jaemin não estava apenas chamando-a para presenciar em primeira mão o nascimento de um belo romance da vida real, mas também convidando-a a finalmente encarar a realidade de seus próprios sentimentos e dispôr a não mais sonhar com ele, mas vivê-lo. Como se ele a puxasse para a beira de um precipício e a encorajasse a finalmente abrir as asas que nem sabia que tinha e simplesmente voar.
Era um precipício profundo e escuro, mas ela se sentiu corajosa de repente. Não sabia se o álcool tinha algo a ver com isso, ou sua mente embaralhada insistindo em não pensar direito, mas quando viu estava respirando profundamente, ainda agarrando o pequeno pedaço de papel em uma das mãos e estendendo a outra para o garoto, que sorriu ao mesmo tempo que selava o acordo.
Um estrondo indicador de mais um aguaceiro atravessou o céu naquele momento, ao mesmo tempo em que os grunhidos de Mark anunciavam seu retorno à consciência.


truly romance

“Caindo em uma cidade úmida e romântica
[...]
Não me importo se nos destacarmos um pouco
[...]
Eu não consigo me mexer, às vezes eu não consigo lidar
Você se torna a chuva que cai”

Ela correu pela calçada, sentindo a chuva atingir seus braços em gotas fortes e grossas, como se tivessem acumulado toda a sua tirania durante o último mês de sol e frescor.
Agora as árvores já estavam despidas e a chuva vinha carregada de sombras e um frio intenso. Às portas do inverno, era o que se podia esperar. No fim daquele outono, as últimas semanas pareceram ser realmente perfeitas. E surpreendentes, principalmente isso, de uma forma que jamais imaginou.
No mais tardar, a chuva seria substituída pela neve, o caramel macchiato pelo chocolate quente e os tênis por botas pesadas e casacos sobrepostos. Ela passaria por mais um aniversário de morte da mãe e comemoraria o natal e o ano novo em Jeju com seu pai, como mandava a tradição, mesmo que ele tivesse de voltar mais cedo por causa de exigências dos negócios e todo aquele papo executivo e chato que detestava. Poderia aproveitar o tempo e visitar sua tia naquela mesma região, ou sua avó em Paju, ou passar alguns dias na casa de Lorraine, mas nunca, jamais, em hipótese alguma pensou em ficar em Seul. Não até aquele outono.
Ela com certeza o convidaria para aproveitar nem que fosse um final de semana despreocupado em Jeju. Mesmo que fosse apenas um dia, pois o trabalho na cafeteria não poderia parar e ele teria de comparecer. Mesmo que já exibisse seu Mustang 1987, o qual ela havia visto na última vez, que acabara de ver novamente, mesmo que fosse na pior das circunstâncias.
O outono perfeito havia acabado desastroso, cinza, terrível como aquela última chuva da estação.
Ela não conseguia ver para onde ia. Tinha consciência dos carros em alta velocidade no asfalto ao lado, e da imensidão do rio Han passando logo abaixo no outro, e das hastes espessas de metal que passavam por cima de sua cabeça, mas ela agora parecia desligada. Uma buzina ou outra soava de raspão em seus ouvidos, e alguém com certeza deve ter gritado para que a garota saísse daquela tempestade ou poderia pegar uma pneumonia, mas ela não se importava. Só conseguia se lembrar da frustração descabida que havia sido aquele dia, e de como ele serviu para lhe revelar toda a enganação que havia sido submetida por todo o último mês. Que ela havia se deixado magoar, se iludido com algo que parecia real ou com um extenso potencial para ser, e viu tudo desmoronar bem diante dos seus olhos.
Porque, de todas as possibilidades imaginárias na vida de Čas, nenhuma delas envolvia se apaixonar por Na Jaemin.
Não apenas isso; nenhuma delas sequer a avisou de que ela se apaixonaria por puro infortúnio. Por pura teimosia de seu coração. Porque não era pra ser, ela via agora claramente. Não podia ser parte de plano astrológico nenhum se apaixonar por um cara que ama outra garota. Não, nem em seus mais terríveis pesadelos ela pensaria que isso fosse possível. Era loucura demais.
E ela mesma já não era apaixonada por Hendery? Claro que era, não conseguia se lembrar de momento algum em que não fosse. Lembrava-se de selecionar cuidadosamente as roupas para sair de casa quando sabia que iria vê-lo, mesmo que ele não soubesse quem ela era, mesmo que fosse um tanto atrapalhado para ter conhecimento até de seu próprio nome, mas ela o amava. Não amava? Pelo menos ela tinha certeza disso até que Jaemin estragasse tudo e a beijasse em uma maldita brincadeira de festa universitária que se provou o maior mal entendido do mundo.
Ela ouviu novamente a buzina, desta vez mais alta, mais presente. A luz do farol atingiu suas costas, mas não passou de imediato. Estava estática, e o barulho da porta não demorou a vir, juntamente com a voz:
! — A voz de Jaemin a alcançou antes mesmo de suas mãos pegarem em seu pulso, virando a garota para si — Você precisa me escutar, não é nada disso…
— Escutar você — ela riu com ironia — Acho que fiz isso o bastante ultimamente. E pensei que tivesse te conhecido, ou que me considerasse sua amiga, ou… — ela soltou o ar, controlando a queimação absurda no nariz.
, não, você não está entendendo…
— Estou muito curiosa pra saber, Jaemin: achou mesmo que eu nunca descobriria que era a Lorraine? Que todo aquele tempo e troca de confidências que aconteceram aqui não me levariam direto até ela em algum momento? Me responde, achou mesmo que isso aconteceria?
— Não, eu não… — ele bufou, os olhos desesperados e agitados, como se buscassem uma saída — Deixa eu te tirar da chuva primeiro, por favor? Aqui não é o lugar certo pra isso, eu prometo que…
— Não diga que me promete alguma coisa, por favor — ela cerrou os dentes, encarando-o com firmeza — Preciso ir pra casa agora… — ela se soltou levemente e começou a se virar para seguir o caminho que havia tomado.
Jaemin apertou os punhos em uma indignação palpável. Tantas palavras se amontoavam em sua garganta, tantas frases longas e explicações extensas que ele nem sabia por onde começar. Talvez por isso não começou de fato, e pelo medo aterrador de piorar ainda mais as coisas. Mas como isso poderia ser possível? estava daquele jeito por causa dele, e sua expressão era dolorosa, o machucava, aqueles olhos magoados pareciam abrir um rombo no seu peito.
Ele sabia o que aquilo significava. Nunca teve tanta certeza sobre algo na vida. E, mesmo assim, havia conseguido estragar tudo.
— Eu não entreguei a carta pra ela! — Ele gritou, mais uma vez. Foi exatamente o que havia gritado antes de ela sair correndo, mas agora ele parecia realmente desesperado para que ela acreditasse — Você precisa acreditar em mim. Essa carta não foi entregue por mim, assim como não pretendia fazer isso há um bom tempo. Não desde aquele dia, desde o beijo e de tudo que acontecia comigo sempre que eu te via, será que dá pra me entender? Suspeito que eu não queria entregá-la até mesmo antes disso…
— Para com isso…
— Tudo bem, você pode pensar que essa é a resposta previsível que eu daria depois de ela deixar bem claro que não sente nada. Depois de ter dito sobre o namoro dela com o Renjun e de levar quase meia hora pra explicar porque esconderam tudo, mas isso não importa, , e eu falo sério! Não ligo pra quem a Lorraine namora, ou do conteúdo daquela carta que me fez pensar quem raios eu estava querendo enganar. Você é a pessoa pra quem eu deveria ter escrito uma confissão. — Ele caminhou em direção à garota, que tremeu os lábios enquanto tentava dar um passo pra trás.
— Não… — Ela balançou a cabeça, tirando os cabelos encharcados da testa — Você não pode dizer essas coisas agora que sabe de tudo, que sabe como eu me sinto, como eu fiquei…
— Como tem tanta certeza que eu não sinto a mesma coisa?
— Você me beijou e depois fez parecer que era um erro, o que queria que eu pensasse?
— Eu não sabia o que estava acontecendo, . Você embaralhou totalmente a minha cabeça e me fez perder o sono enquanto eu me perguntava quem diabos era Na Jaemin e por que eu parecia estar repensando a minha vida toda, inclusive todos os meus planos — Ele grunhiu, se aproximando mais dela — Te contei as minhas metas, todas elas. Na verdade, te contei mais coisas do que jamais contei a ninguém, e à medida que fiz isso, que externei todas essas coisas, algumas delas pareceram tão chulas e sem importância que me perturbaram como nunca, sério. E te ver se abrindo comigo também não ajudou muito a te afastar da minha cabeça, , te garanto. Imagine alguém que jurou estar certo sobre 100% das coisas sobre sua vida, inclusive que amaria uma só pessoa pra sempre, se ver totalmente desestabilizado por outra, de uma forma que nunca nem sequer imaginou ficar.
— Jaemin…
— Você precisa entender que não importa como aquela carta chegou nas mãos da Lorraine, nem mesmo sobre o que diz, porque o conteúdo dela não faz sentido algum. É a mistura mais louca de palavras que alguém pode ler. Ela é dividida entre dois momentos malucos, o começo que fala sobre um amor idealizado que eu pensava que sentia, e no fim… Sobre um amor nítido e real que você tanto me falou. Porque eu já sentia, já me referi a você nessa parte, já pensava que você era a garota que eu queria que lesse, é recheada de você. E por não perceber isso mais cedo, posso ser considerado o maior imbecil do mundo de novo, um babaca desonesto como você sempre diz, porque pensei que poderia jogar com meu próprio coração. Que venceria qualquer influência contrária que ele pudesse me impor, qualquer ideia descabida que fosse contra os malditos planos, mas eu perdi. Eu realmente perdi, .
A respiração dela escapava em silvo. Ela queria que seu coração parasse de bater tão rápido para que pudesse escutar as palavras de Jaemin com mais clareza, que ele se aproximasse mais, mesmo que estivesse a centímetros dela, que a olhasse com tanta confiança e desespero através da chuva, que a chamasse claramente para se aproximar também.
Mas parecia ser informação demais para sua cabeça. As verdades daquele dia haviam oscilado muito em um recorde de tempo, e agora ela parecia ainda mais confusa.
Uma confusão que desejava ser verdade, deseja isso alucinadamente.
— Eu… Eu pensei que… — Ela respirou fundo, erguendo os olhos para ele, soltando uma risada nervosa — Não pode usar referências de jogos em um momento como esse...
A mínima risada dela era tudo que ele precisava. Se arriscando a levar um tapa ou coisa pior, ele diminuiu o espaço entre eles, tomando-a nos braços e matando o desejo que sentia desde que acordou naquela manhã. Ou bem, bem antes disso.
Ela não se viu corajosa o suficiente para quebrar o beijo. Ou negar, seja por qualquer forma, que estava sentindo a mesma coisa. De jeito nenhum. Passou os braços por trás de sua nuca e levantou um pouco os pés a fim de ficar ainda mais perto dele. Como tinha visto num filme antigo uma vez, como sempre imaginava que faria quando estivesse frente a frente com a pessoa que faria seu coração se comportar de forma avassaladora. Não existia a opção de deixar aquele momento passar.
E ela sentiu verdadeiramente o que era viver o amor que tanto descrevia. Sentia isso emanando dele também, sentia até o fundo de seu coração. E não esperaria mais para vivê-lo.
Ao abrir os olhos novamente, Jaemin teve certeza de que estar vivo no presente era o melhor plano que pudesse ter feito.
— É verdade que você bateu no Hendery? — Ela perguntou repentinamente, um segundo antes do garoto se inclinar mais uma vez para repetir o beijo.
Ele levantou as sobrancelhas, enquanto ela sufocava um sorriso.
— Ah… Não foi bem isso, eu só joguei a bola de basquete com um pouco mais de força… — Ele respondeu, desconcertado, rolando os olhos de forma atrapalhada — E talvez tenha ido parar no olho dele, e ele tenha ficado desacordado por mais de meia hora e… Calma, como você ficou sabendo de uma coisa dessas?
— Isso importa? — Ela deu de ombros — Quero saber porquê Na Jaemin se tornou um cara violento do dia pra noite.
— Acho melhor sairmos da chuva…
— Jaemin.
— Porque ele riu da sua carta. — Ele suspirou, deslizando os dedos pela nuca dela, da onde não tinham saído — E por mais que talvez ele não tenha rido por mal e sim por simplesmente ser tão burro que não entendeu uma palavra sequer, na hora eu só quis sei lá, matar ele.
Ela gargalhou, mais alto do que esperava, enquanto afogava a cabeça no peito dele, tentando imaginar a cena cômica da situação. Ele acompanhou a risada dela, mesmo ainda parecendo um pouco constrangido pela atitude atípica que tomou com o colega.
— Tá legal, agora eu realmente preciso tirar você daqui — Ele pegou na mão dela, puxando-a para o carro estacionado no meio fio, aliviado por ninguém ter chamado um guincho nesse meio tempo.
Talvez tenham se compadecido por um garoto que confessava seus sentimentos.
— Mas pra onde nós vamos? — Ela perguntou quando ele abriu a porta do carona.
Ele sorriu para ela antes de dizer:
— Vamos finalmente viver um romance de verdade.


FIM



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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