Finalizada em: 08/05/2021

Capítulo Único

Doía. Por mais que meus olhos não abrissem ou meus dedos não se movessem, doía. O corte no pescoço ardia. Não sabia quão profundo tinha sido ou o tamanho do estrago, mas a recordação do sangue quente descendo por meu peito era vívida.
Vez ou outra, ouvia a voz de pessoas ao meu redor. Eu estava num hospital. Equipamentos ligados a mim faziam barulho, apitavam a menor mudança nos meus parâmetros fisiológicos. Nesses mínimos momentos de consciência, apurava os ouvidos em busca do nome certo: .
Doía. Amá-lo daquela forma doía. Se capaz de fazer tudo para salvá-lo me trouxe até aqui, presa no éter, mergulhada no breu de minhas memórias. Pelo menos aqui, circundada apenas pelos fantasmas de mim mesma, podia vê-lo em minha mente, lembrar do quanto era impossível não se encantar por ele.

Três anos antes...

Eu via aquele menino todos os dias parado no cruzamento da Malet Street, em frente à Universidade de Londres, cantando com um violão desde cedo. Quando saía da aula, no final da tarde, ele também estava indo embora. Eu ficava do outro lado da rua, esperando para atravessá-la, enquanto olhava-o enfiar numa sacola os trocados amassados recebidos no dia. De longe, seguíamos pelo mesmo caminho até a estação de metrô. Cuidadosamente, eu mantinha uma distância segura entre nós dois. Ele era visivelmente fechado, não queria que pensasse que eu era uma stalker ou coisa do tipo.
Era apenas curiosidade.
A voz doce e levemente rouca que ecoava durante horas a fio, o cabelo levemente desgrenhado pelo vento, as roupas que pareciam sempre maiores do que ele, todo dia era uma nova característica que eu observava.
Costumávamos pegar linhas distintas, até o dia em que ele entrou no mesmo vagão que eu e se sentou no banco quase à minha frente. Apoiou a case do violão entre as pernas, colocou fones nos ouvidos e puxou do bolso um aparelho de MP3 gasto, com a cor desbotada. Peguei meu livro e abri-o, era melhor focar minha atenção na leitura do que sucumbir à vontade de ficar encarando fixamente aquele rapaz. Mesmo assim, de tempos em tempos, meu olhar corria até ele e eu tinha a oportunidade de perceber mais alguns detalhes para compor o personagem que eu criava na minha mente. Só me restava imaginar como era sua personalidade, porque eu nunca havia trocado uma sílaba que fosse com aquele cara para embasar meus devaneios.
Os minutos que compartilhamos no vagão me permitiram ver o pequeno alargador na orelha esquerda e o piercing no nariz. Talvez aquela fosse a única oportunidade que eu viria a ter de estar tão próxima a ele, de enxergar tantos pedacinhos.
De supetão, ele se levantou. Em reflexo, levantei-me também. Os passos eram rápidos em direção à porta do vagão. Busquei rapidamente ver qual estação estava se aproximando e constatei que ainda estava longe de casa. Porém, se fosse ali que ele iria descer, eu iria também.
Novamente, mantive-me distante, acompanhando-o de longe para fora da estação. O sol já tinha se posto, as ruas daquele bairro simples que eu praticamente só conhecia de nome estavam iluminadas apenas pelas fachadas e vitrines de bares e lojas. Por um segundo de distração tentando assimilar o caminho que faria de volta ao metrô, perdi-o de vista. Continuei seguindo a rua até o final, na esperança de encontrá-lo em algum lugar, quando um pouco antes do último letreiro luminoso fui puxada para um canto, arremessada contra a parede.
Um beco.
Minha garganta foi pressionada.
Estava escuro e, com o susto, tudo ao meu redor era o mais completo breu.
— Por que está me seguindo? — A figura à minha frente sussurrou.
Agarrei o braço que forçava minha traqueia na tentativa de reduzir a pressão que me sufocava. Empurrei-o com a força que podia, precisava me soltar.
A cada segundo sem respondê-lo, mais forte era o enforcamento.
— Falar... com você! — Foi tudo que consegui dizer com o ar que começava a fazer falta aos meus pulmões.
— Tudo tem um limite, riquinha, até pra sua obsessão. Aqui não é lugar pra você. — O aperto foi afrouxado e pude respirar melhor. — Se quiser falar comigo, me dê uma bela nota de cinquenta euros. Tenho certeza que não vai te fazer falta.
— Do que está falando? — Perguntei e ele riu soprado.
— Eu te vejo me seguindo todos os dias, garota. Não sei como é com a gente da sua laia, mas por aqui não pega bem ficar andando atrás de quem você não conhece.
Eu mal podia ver a expressão dele pela escuridão que nos cercava e o tom de voz não denunciava o que se passava pela mente dele, ele seguia totalmente neutro. O braço que ainda tocava minha garganta me mantinha presa à parede áspera, porém, não mais me atrapalhava a respirar.
O que fazer? Eu estava perdida.
— Vou te soltar. Você tem trinta segundos pra abrir o bico e falar o que você quer comigo. Nada mais que isso.
, pense rápido.
Tic-tac… tic-tac...
Assim que me vi livre, joguei a mochila para frente do meu corpo, abri-a e puxei de lá a pilha de panfletos que tinha pego com meu irmão antes de sair de casa.
— Aqui! Toma, pode ser bom pra você. — Praticamente joguei os papéis nele.
— O que é isso? Uma vaga de panfleteiro? — Vi seu vulto se afastar de mim. — Incrível como vocês, ricos, acham que um cara pobre atura qualquer coisa que vocês julgam bom. Caridade, né?
Deus, não era possível. Eu tinha percorrido todo esse caminho pela oportunidade de falar com ele para isso?
— Cara, o quê? Lê o que tá escrito, idiota. — Saí em direção à rua, buscando a luz dos postes. — “Audições: canto, dança, atuação. A Mont Blanc Entertainment busca jovens artistas para casting. Prêmio em dinheiro para finalistas. Entre em contato para mais informações.” — Li em voz alta.
Ele também veio para a rua, mantendo-se bastante distante de mim, parado sob o poste.
— Pois bem, então a boa samaritana quer que eu faça audições? Que piada. Você não me conhece, garota.
— Não conheço mesmo não, mas agora você vai saber quem sou eu. Me chamo e não tô aqui pra aturar desaforo. Queria te ajudar a ter uma oportunidade melhor do que passar o dia tocando por trocados na frente da universidade, não por “caridade” como você diz, porque não vou aceitar essa sua “caridade” irônica, mas por interesse.
Ele ergueu as sobrancelhas pego de surpresa. Uma oportunidade para virar o jogo.
— Presta bem a atenção, você vai estar entre os finalistas dessa audição. Seu talento é absurdo, você é bonito, bastante charmoso e o que te falta, dinheiro, você vai ter. Viver de migalhas deve ser cansativo.
— A troco de quê?
— Do número do seu telefone. E não seja um babaca comigo. Você chega à final, ganha a oportunidade de ter sua carreira fora das ruas e eu ganho minha liberdade. Você é minha aposta.
— Também tenho condições: não fale comigo além do necessário, não se meta na minha vida, não aja como se fôssemos alguma coisa.
— Fechado. Agora me fale seu nome e seu número.
— Sou . — Estendeu um papel de aparência gasta com seu número de telefone impresso.
Um cartão de visitas velho.
— Prazer, . Me chamo . . — Estendi a mão. — Vamos nos ver muitas vezes, então é um prazer tê-lo como cúmplice. Ops, como colaborador. Falha minha. — Sorri.

!”
!”

Alguém me chamava. Esse mesmo alguém cantava de tempos em tempos para mim, para meu corpo inerte, mortificado por sedativos. Era .
Queria abrir os olhos, mostrar para ele que havíamos conseguido vencer a primeira batalha da enorme guerra que nos aguardava. Mostrar para ele que eu estava ali, ciente da sua presença e do seu jeito estranho de demonstrar preocupação.
Tudo que eu queria era quebrar as muralhas que cercavam seu coração, . Pelo visto, me machuquei no processo.
Faria tudo de novo.
Espere por mim, vou voltar para você. Agora, preciso dormir outra vez. O breu está se tornando mais denso, devem ter me dado mais remédios.
Por favor, peça para que desliguem a TV ou o rádio, seja lá o que for essa coisa barulhenta do meu lado direito, não aguento mais o chiado baixo que dura o dia inteiro.
Até já.



FIM!



Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui! Emma e Lancelot voltaram para conhecermos um pouco do passado. Espero que tenha gostado, eles têm tanto a viver... Nos vemos em breve!
Qualquer coisa, só me procurar através dos links das redes sociais.

Do meu coração pro seu,
Nimuë



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