Finalizada em: 25/10/2018

Parte I

poderia ser facilmente considerada uma mulher que tomava decisões bastante fora do convencional.
Durante seu tempo de escola, tinha escolhido como esporte a luta, pulando entre judô, muay thai, boxe e taekwondo. Na adolescência, tinha escolhido como presente de formatura uma viagem até uma praia distante só para ter a chance de saltar de paraquedas. Tinha calçado coturnos em sua colação de grau, recusando-se a colocar um sapato de salto alto. Escolhera viajar para o Peru em vez de acompanhar suas amigas em um tour pela Europa - ou a típica viagem para o Walt Disney World da Flórida. Isso não a fazia melhor ou pior do que ninguém. Dizia respeito tão somente sobre a forma um tanto não usual que ela escolhia levar a vida.
Mas existia uma coisa sobre a qual ela reagia exatamente da maneira considerada esperada. era clichê o suficiente para encher a cara no momento em que não conseguia pensar em outra opção do que fazer durante a fossa.
Em cima da pedra do balcão, sua cerveja estava pela metade. Seu humor pouco agradável enxergava o copo sob a perspectiva do “meio vazio”, cego à opção diretamente contrária. Quando disseram que o maior mito do mundo era o de que o álcool levava ao esquecimento, eles estavam certos. Todas as memórias e lembranças de uma vida continuavam percorrendo sua mente, indo e voltando como um ioiô lançado com deboche. Parecia uma enorme piada de mau gosto que retornava para atormentá-la e martelar a decepção profunda que ela sentia. Como as coisas tinham chegado àquele ponto?
— Você não parece nada bem - comentou a mulher que cuidava do bar, arrancando de seus angustiantes devaneios.
— Acho que é bem óbvio, não? - A outra soltou aquilo de maneira quase retórica, sabendo que até a balança e as bolsas embaixo de seus olhos assinalavam para quem quisesse ver que algo não estava bem.
Antes que a quase conversa pudesse prosseguir, as duas foram pegas de surpresa por um grito misto de decepção e reclamação proferido por um grupo de homens que ocupava uma mesa logo de frente à televisão.
— O futebol faz isso com as pessoas - a atendente do bar comentou, rindo de leve como se pedisse desculpas pelo transtorno com o qual ela, infelizmente, já estava bem acostumada.
— Você não faz ideia - concordou pesarosamente e virou de uma só vez o resto de cerveja que tinha em seu copo.
Tudo o que ela queria era, assim como aquela moça, não fazer a mínima ideia de tudo que tinha acontecido.


Parte II

O grande álbum estava aberto sobre a cama. Era como uma linha do tempo decorada com lembranças além das fotografias. não conseguia parar de sorrir feito boba para o presente tão especial que acabara de receber pelo seu aniversário compartilhado com a comemoração dos três anos de namoro - não coincidentemente simultâneos. Tudo o que conseguia pensar naquele momento era em como era possível amar tanto uma pessoa como ela o amava. Era imensurável o tamanho de sua sorte por tê-lo ao seu lado por todos aqueles anos.
— Você se lembra desse dia? - perguntou enquanto apontava para uma foto de ambos ainda muito pequenos e completamente sujos.
— Perfeitamente - respondeu com um largo sorriso ao recuperar a lembrança entre seu apanhado de boas memórias. — Sua mãe tinha acabado de fazer o recheio do bolo para sua festa de quatro anos.
— Era de brigadeiro com pedaços de chocolate - ela acrescentou. — E eu fiquei completamente chocada com o fato de que você nunca tinha comido brigadeiro.
— Não era minha culpa! Você sabe bem como meus pais estavam sempre tentando alguma dieta nova louca. A maioria das sobremesas que eu tinha comido, antes de estar sempre na sua casa, resumia-se a salada de frutas.
— Acho que eu nunca fui tão capaz de mudar a sua vida como naquele dia. Não precisa me agradecer por te apresentar às maravilhas açucaradas desse mundo. Nem por praticamente virar a panela na sua cabeça e proporcionar essa fotografia memorável. Nós parecemos aquele menino que é forçado a comer um bolo de chocolate inteirinho no filme Matilda.
riu alto pela referência. Tinha assistido tantas vezes àquele filme quando pequeno que tinha pegado total aversão. Achava mesmo ser a única pessoa a desgostar mais do filme do que a própria Mara Wilson.
O rapaz tomou a liberdade de virar a página do álbum que tinha feito com tanto cuidado nas últimas semanas. Sabia exatamente o que vinha a seguir.
— Eu tinha que colocar um aniversário meu em seguida - comentou.
Naquela página, havia uma foto dos dois aos seis anos. mostrava a língua e fazia “chifrinhos” atrás da cabeça do aniversariante. Ela usava uma fantasia do Batman e ele estava vestido de Superman.
— Nunca vou me esquecer do que você fez por mim nesse dia - ela disse, sentindo os olhos ficando mais úmidos. — Brigou com todos os seus amigos que não queriam deixar que eu jogasse bola com vocês só porque eu era uma garota. Na época, eu nem entendia exatamente o que era machismo e, mesmo assim, já sentia um orgulho enorme por você dizer que éramos iguais.
passou o braço ao redor da namorada, beijando levemente sua cabeça.
— Não fiz nada além da minha obrigação. Desde aquela época, isso já me parecia muito óbvio. Tão óbvio quanto você ser o Batman antes de pensar em ser a Bela. Se eu gostava de brincar com as suas panelinhas, por que você não poderia jogar bola comigo?
— Tanto poderia que joguei e você ainda fez questão de me derrubar naquele dia. Meu joelho ficou tão destruído que eu andei arrastando a perna por não conseguir dobrá-la. Ardia feito o inferno.
— Ossos do ofício - o rapaz respondeu, erguendo a bermuda para mostrar a grande quantidade de hematomas e cortes em processo de cicatrização que o futebol lhe concedera. — Se já é assim em um campo oficial, imagina quando jogávamos na rua e na terra cheia de pequenos pedregulhos.
Nas páginas seguintes, havia ainda imagens das festas e eventos escolares, das típicas comemorações de dia das mães no colégio e dos jantares de natal em que as famílias tipicamente se reuniam para comer pratos levemente fora do rotineiro e trocar presentes em amigos secretos que quase nunca davam completamente certo.
Era que estava lá quando trocou as faixas do judô e precisou de muito gelo para tratar o primeiro olho roxo. Ela, por sua vez, era a torcedora número um em arquibancadas descascadas e quase caindo aos pedaços. Era para ela que ele dedicava todos os gols que fazia no campo de terra ou no futebol improvisado no meio da rua. Fora ela quem recebera a dedicatória do primeiro gol dele como atleta do clube municipal e dos conseguintes que moldaram sua escalada até o campeonato estadual sub-15. Era que tinha ignorado a própria torção no tornozelo e as ordens de repouso para assistir à final estadual em que carregaria, além da responsabilidade de um bom jogo, a braçadeira de capitão da equipe.
Foi ele que dividiu um pote de sorvete napolitano com ela quando o primeiro quase-namorado-adolescente se provou um grandioso babaca. Foi ela quem planejou o primeiro encontro deprimente e fracassado do amigo - do qual ririam eternamente. sempre fora o primeiro nome a passar por sua cabeça quando precisava de alguém para conversar, brincar, tomar um porre ou simplesmente trocar um longo e apertado abraço em silêncio. Fora com ele que ela percebera que, às vezes, dizer nada era o melhor jeito de dizer tudo desde que fosse com a pessoa certa. Olhando em retrospecto, chegava a ser quase inocente o tempo que levaram para perceber que tinham a seu lado muito mais que um melhor amigo para todos os momentos. Encontraram o amor que parecia voar despercebido entre eles, como um minúsculo insetinho que sempre esteve por ali, mas esperava minuciosamente o momento exato para poder atacar. O que sentiam era tão natural e inerente àquela vivência que sequer sabiam mais se conheciam um mundo sem o outro. Talvez fosse essa naturalidade que atrasara a conclusão óbvia de que tinham encontrado um amor muito além do fraterno. Mas o estalo veio, como uma lâmpada que acende sobre a cabeça de um personagem de animação. Era ele. Era ela. E queriam ter o outro ao lado para o que desse e viesse, pelo resto de suas vidas.
— Você não faz ideia do quanto eu te amo - ela comentou com um sorriso enorme no rosto e lágrimas que se acumulavam pelas pálpebras e bochechas.
— Claro que faço. Sou eu quem ama mais - respondeu antes de agilmente roubar um selinho da namorada.
— Você tem a obrigação de me deixar ganhar pelo menos no meu aniversário. Apesar de ambos sabermos bem que essa é a verdade óbvia.
O rapaz riu alto, enquanto usava seus braços para trazer a namorada para mais perto de si. Pôde aspirar o aroma adocicado do perfume que ela sempre passava delicadamente em pontos estratégicos da nuca e do pescoço. Era quase como se a fragrância daqueles químicos bem escolhidos e precisamente misturados já fizesse parte de uma conexão imediata de seus sentidos. Era território incrivelmente bem conhecido, bem como tudo que fazia parte dela. A sensação que todos seus corpúsculos táteis e terminações livres tinham ao perceber a pressão do corpo dela contra o seu era a maior noção de conforto e pertencimento que ele poderia encontrar em qualquer canto de todo o mundo. Por mais que vasculhasse cada esquina até os confins do universo, sabia muito bem que nunca na vida teria alto tão incrível e especial como aquela mulher que ele amava com todas as suas forças. E era por ter essa certeza tão concretizada em sua mente que sabia muito bem que precisava respirar tão fundo quanto conseguisse para prosseguir com aquilo que estava prestes a fazer.
— Não existem palavras nesse mundo que sejam grandiosas ou precisas o suficiente para lhe descrever o que eu sinto por você. , você vem sendo a minha melhor amiga desde que eu me reconheço como gente nesse mundo meio virado do avesso. Foi a garota que dividiu comigo todos os momentos bons e ruins e, hoje, digo com toda a certeza que é a mulher da minha vida. Esse álbum foi confeccionado com todo o carinho possível na tentativa de chegar o mais perto possível de tudo o que você foi, é e do que espero que continue sendo em minha vida. Eu espero que você seja tão absurdamente feliz quanto eu sou ao seu lado. Feliz aniversário, . Eu te amo com todo o meu coração.
— Minha maquiagem está muito bem feita para você me fazer chorar - ela reclamou, enquanto abanava os olhos inutilmente depois de já ter desabado com todas aquelas incríveis lembranças. — Isso não é justo. Você não pode ser tão maravilhoso assim. Eu fico parecendo uma idiota com esse tipo de coisa.
sorriu enquanto erguia os próprios dedos para massagear as bochechas úmidas da namorada. O único absurdo que ele enxergava ali era o fato de ela realmente se preocupar com o aspecto que tomavam os produtos que usava para preparar a pele quando ela era absurdamente maravilhosa com ou sem eles.
O abraço que se sucedeu era tão acolhedor e tão perfeitamente encaixado e confortável que a vontade de ambos era que o mundo ao redor simplesmente explodisse para que pudessem permanecer daquela forma para sempre. O coração de esmurrou seu peito como um lutador de boxe na final do campeonato enquanto ele se afastava gentilmente daquele toque. O nervosismo que zumbia em suas orelhas poderia simplesmente estourar seus tímpanos antes que ele pudesse sequer fazer o que precisava fazer.
— Bom, ainda tem uma coisa no fim do álbum.
— Não, - ela respondeu, parecendo confusa de repente. — Eu olhei todas as fotos em todas as páginas.
O jogador respirou fundo antes de prosseguir. Tentava de qualquer forma driblar seu próprio funcionamento fisiológico ao buscar o equilíbrio da frequência respiratória que já perdera por completo. Não adiantava em nada no fim das contas. Sua adrenalina era inconscientemente esperta demais para se deixar ser enganada por ele.
— É porque não é uma foto. Está na contracapa.
A mulher franziu o cenho, exibindo verdadeiro estranhamento perante a situação. Mesmo confusa, decidiu acatar ao comentário e procurar pelos duros versos das capas decoradas com arabescos em tons de azul e prata.
Ao alcançar o último trecho livre do álbum, encontrou um pequeno pacote verde escuro, selado com um pequeno adesivo redondo em um tom de vermelho metálico. Correu as pontas dos dedos pelo volume da embalagem, perguntando-se como poderia realmente não ter percebido nada na primeira olhada pelo presente mais incrível que poderia sonhar em receber.
puxou o adesivo com todo o cuidado possível, contradizendo sua ansiedade inegável em descobrir o que o pequeno pacote escondia. Quando seu tato reconheceu o formato do objeto, ela pôde sentir seu coração parar por algum tempo, quase como se tivesse se esquecido por alguns instantes de que sua primária função era continuar batendo e bombeando sangue.
… - ela murmurou de forma quase inaudível ao retirar o fino aro prateado, decorado com pequenas pedras brilhantes. Sequer conseguia formular uma oração completa de forma coerente. Era como se a área de seu cérebro responsável pela fala tivesse recebido uma passagem para a China e a deixado para trás.
— Não é o que você pensa - ele tentou esclarecer. — Quer dizer, de certa forma é, sim. Mas não exatamente.
— E eu pensei que não tinha como eu ficar mais confusa.
respirou fundo algumas vezes, tentando construir uma explicação coesa e coerente o suficiente em sua mente antes de verbalizá-la.
— Eu recebi uma proposta irrecusável - explicou. — O meu rendimento chamou a atenção de alguns times do exterior. Um deles foi a Inter de Milão. É um grande passo para a minha carreira como jogador e um passo que eu realmente preciso dar agora se quiser ter alguma chance de continuar crescendo no futebol mundial.
deixou que seu queixo caísse em completa surpresa enquanto começava a saltitar pelo quarto em comemoração. Seu peito queria explodir de tanta animação e orgulho pela conquista gigantesca que aquela proposta representava. Estava tão, mas tão feliz por que levou alguns minutos para finalmente ligar os pontos e entender o que viria depois. Sua expressão murchou simultaneamente ao empalidecer de seu rosto.
— Você vai para a Itália - sussurrou o fato óbvio, sentindo o coração apertar no peito.
— Vou. Mas a última coisa que eu quero nesse mundo é ir sozinho. Você sabe muito bem que jogar no exterior sempre foi meu sonho, . A questão é que o meu sonho só estará completo se você estiver ao meu lado para vivê-lo comigo. Eu sei que é egoísta eu pedir para que você deixe para trás tudo o que conquistou por aqui e todas as pessoas que você tanto ama. E de uma coisa você pode ter certeza: eu nunca faria esse pedido se não tivesse completa convicção de que é você quem eu quero comigo.
engoliu em seco, mantendo seu olhar completamente perdido. Ainda tentava absorver tudo aquilo. Era muita coisa para digerir de uma só vez e de forma tão inesperada.
— Sei também que você tem a sua própria carreira em construção e eu jamais, sob hipótese alguma, menosprezaria o seu esforço. A questão é que a Universidade Politécnica de Milão é excelente, em especial para a sua área de design. Pode ser uma boa experiência, sabe? Expandir seu currículo a nível europeu, mudar um pouco os ares. Você terá seu lugar lá.
“Mesmo assim, eu não quero que você se sinta pressionada a aceitar. Quero que pondere acerca de todos os possíveis prós e contras e tome a decisão que acreditar ser a melhor para você. Também quero que mantenha em mente que a sua decisão não afeta o nosso status de relacionamento. Não é como se eu fosse simplesmente desistir da mulher mais incrível do universo por causa de um oceano idiota nos separando. Basicamente, esse anel é um convite para um outro momento de nossas vidas, mas eu não quero que você pense por um segundo sequer que é sua obrigação aceitar.”
A mulher engoliu mais uma vez, tentando pegar as informações recebidas e dar algum sentido e conexão para elas.
com a camisa da Inter. indo embora para viver na Itália. Ela podendo ir com ele. Ela tendo a oportunidade de amadurecer em um outro continente. Ela tendo a chance incrível de aprimorar seu próprio estudo.
Por outro lado, seus pais ficariam para trás. Sua irmã. Seus amigos. Sua língua nativa. Seu país.
— Eu preciso falar com os meus pais - ela disse como se acabasse de se lembrar disso.
— Eu recebi a autorização deles para fazer isso. Eles disseram que a decisão seria totalmente sua e não iriam interferir por um segundo sequer em suas escolhas. Assim como eu também não irei.
mordeu o canto do lábio inferior. Sabia que seus pais seriam os primeiros a incentivá-la a correr o risco e a viver novas experiências - se não tivessem optado pelo completo voto de silêncio anti-influência-paterna. Talvez uma chacoalhada fosse exatamente o que ela tanto precisava.
— Bom, acho que já era hora de eu usar minha cidadania italiana para alguma coisa - ela respondeu, captando exatamente o momento em que os olhos dele se encheram de um brilho inexplicavelmente maravilhoso.
se aproveitou da força de seus braços para girar a namorada no ar, enquanto a beijava com toda a felicidade que aquele momento poderia representar. Ela jamais saberia como, naquele momento, ela tinha feito dele o ser humano mais feliz de todo o mundo.


+++



A visão do Duomo di Milano era uma das mais magnânimas e esplêndidas que teria em toda a sua vida e sabia muito bem disso. Mesmo não sendo uma seguidora tão ferrenha das tradições cristãs, a visão da Igreja era capaz de arrepiar todos os pelos de seu corpo e lhe roubar por completo o ar dos pulmões. Era solene. Elegante. Sublime. E ela não achava que se acostumaria com toda aquela monumentalidade nunca.
— Acho que a gente devia se casar em uma dessas - sussurrou enquanto passava o braço pelas costas da mulher e a girava para perto de si.
— Ah, claro! Uma das maiores igrejas cristãs do mundo vai abrir as portas calorosamente para o casamento de dois meros mortais. E claro que será por um preço que não nos fará passar fome pelo resto das nossas vidas.
O rapaz riu alto da forma um tanto sarcástica e sarrista que a namorada sempre tinha para lidar com as coisas. Era uma das características que ele mais amava nela.
— Pelo menos o seu motivo para discordar é esse. Meu medo é você surgir com um “Não podemos nos casar, Giampaolo Pazzini arrebatou o meu coração.”.
Foi a vez de rir da possibilidade absurda.
— Claro, . Eu vou abandonar o meu relacionamento com o meu melhor amigo para ficar com o seu.
— Só seria uma situação muito estranha. Nada demais.
e continuaram a caminhar pelas ruas de Milão, enquanto se empurravam e ameaçavam passar o pé para que o outro caísse. Nesse meio tempo, às vezes paravam para tirar foto com algum conterrâneo ou turista que reconhecia o jogador e o congratulava pela temporada. mantinha o largo sorriso na face, ignorando todo o cansaço físico e mental dos últimos intensivos treinos. também sorria, orgulhosa do sucesso do namorado. Várias adolescentes que passavam por eles faziam questão de lembrá-la do quanto era sortuda por ter alguém tão incrível quanto aquele homem ao seu lado. Ele, por sua vez, era sempre o primeiro a retrucar automaticamente que a sorte era toda dele de ter uma mulher tão espetacular com quem compartilhasse os trancos e barrancos, mas também as intensas felicidades daquela vida.
E era naqueles olhares bobos e completamente perdidos que ambos percebiam que o que sentiam pelo outro era imenso e especial demais para que qualquer um tentasse explicar, não importava o quão pedante ou preciosista esse louco fosse.
— Vamos parar para almoçar? - perguntou, entrelaçando os seus dedos aos dela.
— Realmente me impressiona que você ainda me pergunte isso depois de tantos anos. Eu nunca negaria comida e muito menos um almoço.
— Estou quase alucinando com um Risotto alla milanese e um ossobuco para acompanhar.
roubou um beijo dos lábios de , esboçando uma feição de emoção chorosa quase teatral.
— É por isso que eu te amo.
Almoçaram entre murmúrios de apreciação aos iluminados deuses da culinária italiana e conversas fiadas. Palavras sem sentido, gracejos para um lado e outro e o silêncio do tipo que só é capaz de ser absolutamente confortável quando se tem ao lado alguém tão próximo que praticamente faz parte do seu ser.
Com os estômagos acariciados pelos carboidratos e proteínas delicadamente cozidos com o tempero do vinho e açafrão locais, seguiram o passeio que tinham previsto para aquela rara tarde de folga dos treinos e dos compromissos futebolísticos.
Os últimos meses tinham sido absolutamente intensos. A adaptação de a Milão fora boa, mas teve seus momentos difíceis. Viveram dias em que as saudades de casa tinham trazido lágrimas aos olhos. Dias em que o coração se apertava até parecer um pequenino botãozinho dentro do peito. Dias em que o paladar pedia por uma pausa e um almoço recém-preparado pelas mãos maternas. Dias em que a língua local parecia mais difícil de ser compreendida e ainda mais proferida. Dias em que o inverno conseguira ser tão frio ao ponto de machucar a pele como se houvesse uma dúzia de finas espículas perfurando-a. Dias em que o cérebro se negava a se adaptar com tantas diferenças. Dias em que o corpo queria se recusar a levantar da cama e seguir rumo ao desconhecido. Mas esses sentimentos foram perdendo força aos poucos, sorrateiramente, sem fazer um grande alarde em suas sensações. De repente, as saudades de casa estavam ali, mas não doíam tanto. A falta que a família fazia permanecia pesada no peito, mas o peso já não era mais um fardo. Milão, com o tempo, começava a quase parecer uma segunda casa. E a culinária à milanesa era, na verdade, algo bem simples de acostumar ao paladar.
O dia parecia propositalmente agradável, desde o clima do ambiente até o clima que existia entre os dois. sentia a brisa levar delicadamente a barra de seu vestido floral e aquilo lhe causava risos que ela mal entendia. Estava tão feliz que quase se esquecia de sentir medo por esse futuro desconhecido. As aulas na universidade foram deslumbrantes desde o primeiro dia. Seu amor pelo curso que escolhera tinha conseguido ser potencializado a um ponto que ela sequer imaginava ser possível. Aquilo estava muito além do que ela poderia sonhar para a sua carreira. Seu currículo seria muito mais atrativo para qualquer emprego do que seria se ela tivesse decidido ceder ao medo de estourar a própria bolha e dar um mísero passo para o lado de fora. Até no italiano ela já tinha perdido o medo de se arriscar. A Itália realmente tinha mudado muitas coisas para ela. Mas uma conquista, em especial, ainda era uma surpresa que ela sequer poderia imaginar. Ele, por sua vez, tinha sido o primeiro a receber a notícia para planejar tudo aquilo.
— Eu não me lembro de já ter andado por esses cantos da cidade - ela confessou, olhando confusa para o caminho que seguiam.
estava longe de ser uma das pessoas com maior consciência geográfica de localização, mas tinha certeza de que aquela região era nova para ela.
— É porque essa área é realmente nova para você - ele respondeu, enigmático. — Mas isso não significa que seja menos importante e, nem de longe, menos marcante.
— Que papo esquisito é esse, ? Você sabe que é péssimo tentando esconder as coisas de mim.
— Credo, ! Quem foi que te disse que eu estou escondendo algo? - Mas ele realmente era péssimo com qualquer mentira, mesmo que fosse por uma boa - ou ótima - causa. Logo, ele já estava fazendo uma careta estranha e contorcendo os lábios, prestes a se morder, para evitar o riso.
desferiu um tapa forte no braço do namorado, que logo reclamou de seu costumeiro uso exagerado da força. Odiava sentir que estava sendo feita de idiota, mesmo sabendo que havia algo por trás daquilo tudo.
— Eu odeio surpresas.
— Quem disse que tem surpresa? - Ele se fez de desentendido.
— Seus olhos disseram, . Que merda você está aprontando? Eu juro que te largo e volto para o Brasil.
O rapaz riu alto da ameaça que sabia ser completamente impossível de ser concretizada.
— Você não viraria as costas para Milão e muito menos para a sua nova faculdade agora que os professores decidiram que você é um dos maiores talentos natos que eles já tiveram.
— Eles só dizem isso porque não têm noção das noites que meu perfeccionismo virou para entregar o trabalho de uma forma que eu julgasse ao menos aceitável. Mas você tem razão. Eu não abandonaria isso aqui - ela disse. — Assim que retornarmos ao apartamento, eu arrumo as suas malas e te coloco em um avião de volta para o Rio de Janeiro. Ainda dou um jeito de você ser acolhido por um time da Série B do Brasileirão. Ninguém liga se você é e deveria disputar a droga da Liga dos Campeões.
— Eu prometo que você não vai querer me chutar de casa. Quer dizer, só se você realmente for muito cruel.
— Você viveu tantos anos ao meu lado… Já deveria saber que eu com certeza sou capaz disso.
Aquela discussão boba tinha sido o artifício perfeito para distrair do caminho, fazendo com que ela seguisse o namorado quase que automaticamente, sem dar a devida atenção ao percurso ou aos objetos que compunham sua paisagem. Logo ela, que sempre prezara pela observação dos pequenos detalhes.
— Aonde você está me levando afinal?
— Nós já chegamos - ele disse antes de finalmente parar de andar. — Você fala tanto que nem reparou em algo que praticamente só falta saltar na sua cara e implorar por atenção.
— Do que você está falando? , eu não estou gostando nada dessa brincadeira.
— Não tem brincadeira nenhuma, amor. Basta olhar para cima.
Com um revirar de olhos e os braços cruzados em frente ao peito, totalmente a contragosto, ela se rendeu e ergueu o olhar. Estava preparada para gritar e permitir que seu ódio se materializasse em um soco no braço do namorado quando finalmente viu o que era aquilo a que ele se referia.
— Isso… Isso é....
, em uma das primeiras vezes de toda a vida, estava sem palavras. tinha quase certeza de que nunca tinha presenciado um gaguejar sequer por parte dela. Foi exatamente essa a razão do sorriso dele ter se ampliado ainda mais, parecendo prestes a rasgar sua face.
— O outdoor que você preparou na atividade da faculdade. Sim, . Seu professor ligou lá em casa para pedir autorização para enviá-lo como sugestão à empresa que você escolheu. Eu acabei permitindo e pedindo silêncio para que isso pudesse ser uma surpresa.
ainda estava boquiaberta, fitando todas as imagens, as fontes e as cores que se encaixavam perfeitamente. Aquele era o seu trabalho. Exposto. Evidente para quem quisesse ver.
— Eu já sabia que assim que eles vissem, aprovariam o projeto. Foi questão de tempo até que seu trabalho maravilhoso fosse devidamente reconhecido como merece. Você não faz ideia de como eu estou orgulhoso por você.
A mulher passou as palmas das mãos pelas maçãs do rosto, secando as lágrimas que tinham decidido se estacionar por ali. Seu coração ainda não tinha se acostumado com o novo ritmo. Ela ainda odiaria qualquer outro tipo de surpresa que lhe aparecesse, mas aquela, naquele instante, ela simplesmente amava. Era a coisa mais linda e incrível que poderia lhe acontecer no âmbito profissional.
Ainda sem encontrar as palavras que julgava corretas para representar todos aqueles sentimentos e sensações misturadas que enchiam o seu peito e a sua cabeça, correu para os braços de . Abraçou-o com toda a sua força, esperando que aquele gesto pudesse expressar tudo o que ela não conseguia externalizar naquele momento tão especial em sua vida.
— Obrigada - murmurou ao afastar o rosto do peito dele. Passou a mão em sua camisa, percebendo que a encharcara com suas lágrimas.
— É só água e é só uma camisa. Deixa disso. E sou eu que tenho que agradecer por você ter decidido embarcar nessa aventura louca comigo. Fico feliz e aliviado de que esteja dando certo para ti.
— Está dando certo para nós - ela respondeu, sorrindo ainda com os olhos inchados. — Nada disso teria acontecido se não fosse por você.
— Não, não. Esse mérito é todo seu. Poderia levar mais ou menos tempo para se realizar, é claro. Mas isso não aconteceria se não fosse por você e todo o seu esforço incansável. Eu vi as suas noites em claro. Eu ouvi as suas explicações teóricas antes das provas porque você sente que essa é a melhor forma de te fazer decorar a matéria. Eu observei várias etapas de vários trabalhos seus. Você tem, sim, muito talento. Mas tem o dobro de esforço e o triplo de vontade. Você é o símbolo da força e da persistência que eu sempre quis ter. Você me encheu de orgulho todos os dias de todos esses anos. E esse orgulho aumenta diariamente.
— Eu já pareço uma louca com o rosto inchado desse jeito. Se encontrarmos algum médico, ele vai querer me colocar sob medicamentos intensos imediatamente por alguma alergia horrível. Como se não bastasse, você ainda fica sendo fofo e me fazendo chorar mais. Será que você pode ser menos… Sei lá… Menos você? Eu estou passando vergonha no meio da rua.
— Eu sinto muito, . Mas esse é só o começo - ele disse, sorrindo de uma forma que soava quase cômica e debochada para ela. A verdade é que ele estava tentando não parecer prestes a explodir com todo o seu nervosismo.
— Agora, você definitivamente está zombando de mim - respondeu enquanto fungava e esfregava os olhos avermelhados pelo pranto.
— Não tem brincadeira alguma nisso. Na verdade, isso não poderia ser mais sério.
, eu vou embora. Eu juro que estou falando sério.
— Você não sabe o caminho.
— Eu peço um táxi. Ele tem a obrigação de saber.
— Você tem noção de que o táxi não chega instantaneamente, não tem? E que, consequentemente, eu ainda tenho tempo para fazer o que pretendo.
respirou fundo, percebendo que não tinha resposta para aquilo. estava certo. Ela precisava atormentar a engenharia da universidade para acelerar na criação de um teletransportador instantâneo. Essa história de ter que aguardar pelas coisas não estava funcionando muito bem para os seus nervos.
— Será que eu posso falar? Ou você quer mesmo fugir? Porque se quiser, eu não vou te impedir. Você tem esse direito.
— Sabe qual é a única coisa que eu odeio mais do que surpresas? - Ele negou. — Curiosidade.
Ele sorriu, assentindo levemente pela afirmação.
— Esse é o momento mais importante da sua vida profissional até hoje. Digo até hoje, pois sei bem que todo o sucesso do universo está só aguardando por você. Enfim, estamos os dois nos auges até então de nossas carreiras e tudo isso só aconteceu porque nos arriscamos a viver algo novo, mesmo que essa amizade já seja um tanto velha. Eu nunca poderei agradecer o suficiente por você ter corrido esse risco comigo.
— E como eu poderia não vir? É como você disse, tenho a convicção de que é você quem eu quero comigo.
concordou com um movimento de cabeça, levando as mãos aos bolsos da calça jeans clara.
— É exatamente esse o meu ponto, . É você quem eu quero do meu lado. Hoje, amanhã, na próxima semana, no próximo ano e por toda a vida. Eu tenho certeza disso. A mais plena certeza que alguém pode ter nessa vida.
A mão direita saiu do bolso da calça lentamente, trazendo presa entre os dedos uma caixinha que fez a respiração de se anular por alguns instantes. O jogador não tirou o sorriso do rosto por um segundo sequer enquanto abaixava o corpo para se apoiar sobre o joelho. Estendeu os braços e abriu a caixinha, mostrando um novo anel cujas pedras brilhavam à luz do sol.
, meu anjo, meu amor, minha vida - começou. — Você aceita se casar comigo e oficializar aquilo que sempre soubemos? Confirmar perante Deus e todos os convidados que você quiser que nosso amor foi uma semente que mal percebemos que estava florescendo e, de repente, criou raízes para toda uma vida. Algo lindo como uma flor, firme como um rígido caule.
— Botânica realmente era a única aula de biologia à qual você prestava atenção - ela brincou, sentindo os olhos sendo novamente preenchidos por lágrimas.
— Sério, ? Eu te peço em casamento e o seu comentário é um deboche pelo meu pouco gosto por ciências naturais? Por que eu não estou surpreso? - Ele ria, percebendo que sequer conseguia fingir incredulidade.
— Porque você sabe que a resposta é sim - respondeu simplesmente. — Será sempre sim, independentemente do dia, da hora ou das circunstâncias. Eu o amo com todo o meu coração, corpo e alma. Como poderia dizer não?
sorriu e se levantou rapidamente, girando a - agora - noiva nos braços e juntando seus lábios apaixonadamente. Estavam selando o acordo de um futuro que eles já tinham delineado há muito tempo.
— Só para avisar, eu não vou trocar uma pela outra - disse, apontando para a nova aliança. — Eu vou usar as duas.
E, naquele momento, não existia nada ao redor deles. Não existiam turistas. Não existiam prédios. Não existia nem aquele outdoor que havia sido o pontapé inicial. Não existia câmera fotográfica para capturar aquele instante, nem testemunhas conhecidas para compartilhar aquela felicidade. Mas nada disso importava. Algo tão bonito, tão intenso, tão puro e tão completo como aquilo só pedia por uma coisa: ser vivido por inteiro.


+++



'— Eu conheço esse cheiro - disse ao entrar apressadamente na cozinha, quase como se tivesse sido atraído por algum tipo de magnetismo aromático.
— Claro que conhece - ela respondeu, enquanto colocava as luvas térmicas e checava o relógio para ter certeza de que o tempo de cocção seria precisamente cumprido.
— Não precisava fazer isso para mim, amor - ele comentou, tentando se aproximar para alcançar a panela que ainda continha o resto da calda de caramelo.
— Não é para você. - avisou entre dentes, dando um tapa na mão do noivo. — É para o evento. E a intenção é que esse pudim chegue inteiro lá.
— Mas, amor, um pudim não é o suficiente para todo o time principal da Inter. Se não vai ser suficiente de qualquer forma, por que eu não posso comer um pedaço agora?
revirou os olhos, soltando uma lufada de ar em desaprovação àquela postura.
, o foco do evento é a boa ação que faremos ao promover a adoção daqueles cachorrinhos lindos. Eu organizei a divulgação com todo o meu talento e você e os rapazes vêm como atrativo para que as pessoas se convençam a aparecer. Sabe como funciona, não sabe? A pessoa pensa “Uau, os jogadores da Inter! E que cachorrinho fofo!” e pronto! Vocês acabam de impulsionar a adoção de um bichinho. O pudim é só para não permitir que vocês tenham um acesso hipoglicêmico sob o sol forte. Espero que vocês não ajam como trogloditas esfomeados.
— Eu não acredito que você admite na cara dura que está nos usando assim.
— É pelos cachorrinhos, . Eu definitivamente usaria até a Rainha Elizabeth por eles. Sem nenhuma vergonha ou mesmo um mísero sentimento de culpa sequer.
Ele passou os braços ao redor do corpo da namorada, abraçando-a por trás, de forma a encaixar sua própria cabeça no espaço entre o ombro e o pescoço da mulher. Ele sabia bem como ela tinha se dedicado para planejar aquele evento e torcia realmente para que tudo saísse como ela esperava - ou até melhor. Silenciosa e intimamente, também torcia para que a notícia que ele tinha se preparado a semana inteira para dar não destruísse o que tinha absolutamente tudo para ser um ótimo dia. Mas, se tinha uma coisa que ele não tinha aprendido bem ao longo dos anos, era como deixar de se preocupar com a possibilidade de machucar as pessoas que ele mais amava.
se desvencilhou dos braços do noivo, virando-se para encará-lo no fundo de seus olhos. Respirou fundo repetidamente, usando a face tão conhecida para lembrá-la de que tudo estava bem.
— Você está agitada - analisou .
— Nervosismo.
— Eu sei - ele confirmou, enquanto ela se aproximava e repousava a cabeça em seu peito, quase que em busca por uma garantia de proteção. — E também sei que nada que eu diga pode tirar essa angústia sua. O que posso te dizer é que nós dois, no fundo, sabemos que esse evento será um sucesso. E que você ficará o dia todo com os olhos lacrimejando a cada cãozinho que for adotado.
— Cala a boca! - Ela reclamou entre risos. — Não é como se eu tivesse o único coração de manteiga derretida nesse cômodo.
— Meu coração é mais duro que um diamante. Agora, pegue seu pudim e vamos antes que nos atrasemos.
estava tão ansiosa que passou o caminho inteiro em um embate pessoal entre bater os pés no chão sem parar e ficar quieta para não correr o risco de chacoalhar e destruir a sobremesa em seu colo. De repente, aquela parecia uma das decisões mais impossíveis de se tomar em toda a sua vida.
Quando chegaram ao local planejado, Samuel, Diego Milito e Giampaolo já estavam arrumando o recinto. Carregavam caixotes pesados e arrastavam os balcões para ampliar o espaço disponível para uma circulação mais facilitada dos visitantes.
Os rapazes interromperam o trabalho assim que perceberam a chegada dos dois principais responsáveis pela organização da feira. Giampaolo foi o primeiro a correr até a mulher para cumprimentá-la. A amizade que o italiano tinha criado com o casal fora tão rápida e intensa que ele já havia sido convidado para ser o padrinho de casamento deles antes mesmo de sequer cogitarem começar a planejar a data da cerimônia.
, amore mio , por favor, diga que não deixará os bichinhos presos naquelas gaiolas estranhas.
— Jamais - ela respondeu prontamente. — Eu nunca seria capaz de deixá-los presos assim. Por isso, trouxemos uns cercadinhos ajustáveis para construir espaços maiores para que eles fiquem mais à vontade. Inclusive, vocês quatro podem começar a arrumar isso enquanto eu posiciono os banners.
Na hora que se seguiu, os outros jogadores foram chegando aos poucos e se juntando ao processo de organização da feira. Logo, tudo estava pronto. Os finos latidos e o som das unhas raspando no chão eram como música para os ouvidos de . Todo o seu nervosismo, de repente, parecia ter decidido dar uma volta. Cada focinho úmido e cada ganido traziam uma paz que ela mal conseguia descrever. Como era possível que em meio a esse mundo virado do avesso tivéssemos animais tão puros e maravilhosos? Esperava do fundo do coração que aquele fosse o dia no qual eles conseguiriam encontrar um lar capaz de lhes dar todo o amor que mereciam.
Sua tática de trazer o time da Inter tinha se provado incrivelmente correta e eficaz. Uma considerável quantidade de pessoas já tinham aparecido usando a camisa com listras azuis e pretas do time. Vários traziam produtos com o escudo bordado ou impresso, torcendo para conseguir um autógrafo dos responsáveis por suas emoções mais extremas, que iam da mais intensa euforia de uma vitória importante até a mais profunda tristeza de uma eliminação. Enquanto aguardavam algum contato com os atletas, um pequeno cão vinha e começava a se embrenhar entre suas pernas. E era simples assim. O cão escolhia o seu dono e este não tinha como dizer não ao olhar para aqueles olhos pretos e brilhantes e aquela língua que mal ficava dentro da própria boca por não conseguir conter sua excitação.
admirava tudo em um canto, observando as últimas crianças sentadas no chão no meio dos cercadinhos. Filhotes se encaixavam em seus colos, empurravam seus braços em busca de um afago e lambiam suas bochechas, arrancando altas risadas. Era quase como a imagem distante de um futuro que ela desejava mais do que qualquer coisa ter.
Ao fim do horário programado para o encerramento da feira, havia restado apenas um pequeno filhote de maltês, que praticamente cabia na palma de uma mão.
— Não acredito que você ficou para trás, Lorenzo - a mulher lamentou, enquanto acariciava a barriga do cão.
— Na verdade, eu posso ter separado o Lorenzo dos outros cachorros porque eu decidi adotá-lo e estava com medo de que uma daquelas crianças acabasse tendo a mesma ideia - Giampaolo disse, arrancando risos dos colegas e um suspiro de intenso alívio da mulher.
— Então, podemos admitir sucesso completo e um rendimento total - comentou, aproveitando-se da analogia futebolística.
— Um rendimento incrivelmente superior ao seu - caçoou Diego Milito. — Até filhotes minúsculos e ainda desengonçados são capazes de te superar.
mostrou o dedo do meio para o companheiro de time, sabendo que aquele tipo de brincadeira tinha se tornado muito comum na amizade deles e também nas relações que envolviam os outros jogadores. Em pouco tempo, tinha se sentido acolhido como em uma enorme família. Era por isso que a notícia que estava prestes a dar se tornava ainda mais complicada. Sua boca, de repente, parecia seca ao extremo, como se ele tivesse se esquecido de que poderia beber um copo d’água sequer ao longo do dia todo. Perguntava-se se era possível sentir o peso das palavras, mas a sensação que tinha lhe conferia a resposta buscada. A possibilidade era real e machucava.
Em um súbito ímpeto de coragem, chamou a atenção do grupo que restara após o fim do evento. Quando capturou para si todos os olhares do recinto, começou a falar:
— Eu tenho uma notícia para dar a todos vocês.
— Ah, não - reclamou, sentindo o próprio batimento cardíaco se acelerando. — Eu passei a semana inteira esperando para dar uma notícia hoje. Você não pode roubar o meu momento!
— Nós vamos ser tios! - Giampaolo berrou e partiu para um abraço coletivo, seguido por todos os outros jogadores que quase sufocaram .
— Eu não estou grávida! Parem de ser tão esquisitos! Por que vocês sempre acham isso? Eu juro que estou pegando leve nas pizzas.
— Pode contar primeiro - sugeriu. Estava ainda mais ansioso para saber qual era a notícia dela e para ter alguns segundos a mais para preparar sua própria novidade.
— Não vou recusar essa oferta. Bom, eu recebi uma proposta incrível na faculdade. Se ter vindo para Milão deu uma guinada absurda no meu currículo, esse próximo passo potencializaria tudo isso de uma forma quase imbatível. Dói dizer isso, mas…
— Eu não acredito que você vai me abandonar - Giampaolo reclamou. — Só me diz que não é tão longe assim.
— Teoricamente, a viagem é rápida. Principalmente porque existe uma invenção incrível chamada avião.
— Para onde você vai? - perguntou, sentindo o coração apertado até ficar minúsculo dentro do peito. Mal conseguia lidar com a possibilidade de imaginar uma longa distância os separando pela primeira vez em toda a sua vida. Aquela, sim, seria uma novidade com a qual ele não estava nem um pouco disposto a lidar.
— A proposta que recebi é para completar a minha graduação com um acompanhamento individual já alinhado a um estágio em Barcelona. Não é tão longe, amor. Vai dar tudo certo.
respirou tão fundo que parecia ter absorvido para si todo o oxigênio disponível no ambiente que os rodeava. Sequer tinha certeza de realmente ter ouvido algo ser dito por alguém depois de escutar a palavra “Barcelona” saindo de seus lábios.
— Acho que é a sua vez de contar - disse, tirando-o de seu devaneio.
— A Inter vem negociando minha venda há algum tempo e, ontem, conseguiram um acordo definitivo. Eu serei transferido em questão de algumas semanas.
— Quem foi o retardado que quis você no time? - Milito perguntou. — Não é possível que alguém realmente esteja disposto a pagar por você.
olhou diretamente para a noiva, percebendo em sua face os traços do nervosismo da espera. Sorriu docemente para ela, antes de responder a pergunta de seu colega.
— O Barcelona.
sentiu o queixo cair, enquanto impulsionava seu corpo para pular diretamente para os braços dele. Se existia uma coisa pela qual ela não esperava, era essa. Não poderia existir notícia melhor no mundo do que aquela. A transferência simultânea só poderia ser uma jogada do destino, lembrando-os de que seu lugar era e sempre seria exatamente ao lado do outro.
— Não acredito que vocês dois vão me abandonar ao mesmo tempo - Giampaolo reclamou, ainda descrente apesar de feliz pelo sucesso dos amigos. — Eu detesto vocês. De verdade.
e abraçaram o amigo, permitindo que as emoções aflorassem naquele momento tão importante para o resto de suas vidas.
— Acho bom vocês fecharem um avião para comparecer ao nosso casamento. Não aceitarei uma ausência sequer - a mulher avisou, enquanto secava uma lágrima que decidira escorrer por suas bochechas sem ser convidada.
Naquele momento, mais uma vez, as coisas pareciam perfeitamente alinhadas rumo à enorme felicidade que parecia os aguardar em um futuro próximo.

Loving you was young and wild and free
Loving you was cool and hot and sweet
Loving you was sunshine, safe and sound
A steady place to let down my defenses
But loving you had consequences.


+++



Os primeiros meses em terras catalãs tinham sido preenchidos por uma enxurrada de novidades. estava vivendo quase como exemplo da expressão “ligada no 220”. O estágio estava sugando praticamente todas as suas energias e o seu dinheiro, constantemente revertido em cafeína e energéticos. , por sua vez, tinha cada vez mais treinos e jogos, perpassando pela La Liga, Supercopa, Copa del Rey e a tão sonhada Liga dos Campeões. A maior parte de seu suposto tempo livre acabava se tornando tempo útil em exercícios de fortalecimento muscular na tentativa de seguir o padrão dos grandes jogadores do time.
Mesmo sendo uma das maiores apostas dentre as contratações da equipe catalã, continuava sentindo diariamente o peso da auto-cobrança e da camisa que carregava. Queria estar entre os melhores. Queria se sentir merecedor de todo o reconhecimento que sempre almejou com tanto afinco e esforço. Queria tanto fazer por merecer, que tinha praticamente se esquecido de que existia uma vida do lado de fora do centro de treinamento.
Quando recebeu a notícia de um período de férias do estágio, quase chorou de tanta emoção. Praticamente já podia começar a sentir seu sistema sendo lentamente desintoxicado de todos aqueles químicos estimulantes com os quais tinha se envenenado nos últimos meses. Só conseguia pensar em como usaria seu tempo disponível nas próximas semanas para finalmente poder parar e planejar todos os detalhes para o seu casamento. Tinha tanta coisa para fazer que já se cansava só de imaginar.
Naquele fim de tarde, tinha os óculos de grau sobre o nariz e o notebook aberto à sua frente, expondo uma quantidade tão grande de guias e páginas que fazia com que seus olhos ardessem. O caderno ao seu lado estava tão rabiscado que ela nem sabia se entenderia as próprias anotações depois. Tinha tentado separar as principais buscas em páginas diferentes: vestido de noiva, modelos de convite, decorações de mesa, salão para alugar, lista de convidados, bolo, DJ ou banda, festa… Cada coisa que ela escrevia no papel fazia com que ela se lembrasse de mais dez. Parecia uma busca incansável e infinita.
Um barulho destoante do som monótono e constante do funcionamento do computador fez com que ela levantasse seu olhar da tela, encontrando à sua frente a paz que, naquele momento, tinha certeza de que precisava.
— Oi, amor - cumprimentou, observando deixando a bolsa em cima do sofá da sala. — Como foi o treino?
— Cansativo - respondeu simplesmente, enquanto se livrava das chuteiras.
— Entendi. Estou vendo algumas coisas para o nosso casamento. Achei um convite em um tom de verde-água maravilhoso, mas também encontrei um dourado lindo. O que você acha?
— Eu vou subir para tomar um banho e me deitar um pouco. Estou realmente exausto. Verde, dourado, tanto faz. Eu concordo com a sua escolha.
sentiu na boca do estômago a sensação de ter tomado um soco certeiro que lhe tomara o ar de uma só vez. Ela também estava completamente drenada por todo o trabalho dos últimos tempos e compreendia o cansaço dele. A questão era: não era possível demonstrar um pingo de animação sequer? Ou ao menos não parecer mostrar completo descaso com um evento que supostamente deveria ter um brutal significado para as suas vidas?
Respirou fundo algumas vezes, tentando repetir - quase como um mantra - que ele se importava, só estava realmente exausto demais para ter qualquer emoção além da completa inexpressividade perante qualquer acontecimento da vida.
— Tudo bem - respondeu simplesmente, estampando um sorriso murcho e forçado, tentando fazer com que aquelas palavras convencessem a si mesma. — Eu fiz lasanha. Não quer jantar antes de subir?
— Não estou com fome.
— Nossa, então deve estar mesmo exausto - brincou, percebendo não encontrar graça alguma naquilo. — Quer que eu esquente uma bolsa de água quente?
— Não. Eu só preciso descansar.
Tendo dito isso, subiu as escadas, deixando a noiva para trás e sustentando uma expressão de confusão completa. Sabia perfeitamente que os últimos tempos não tinham sido fáceis para nenhum deles. Estavam obtendo sucesso em suas funções e trabalhos, mas tudo em troca de um gigantesco esforço que tinha custado noites mal dormidas, tempos livres aos fins de semana e desencontros nas poucas refeições que ainda poderiam tentar fazer juntos.
O que ela sentia por ele não tinha mudado uma vírgula sequer e sabia que, se dependesse dela, jamais mudaria. A única diferença era o tempo que parecia diminuir cada vez mais, afunilado pelo vão de uma ampulheta. Já não conversavam como antes, já não se divertiam como antes, já não aproveitavam a presença do outro por si só como antes. E não era por mal. Não era por raiva, por mágoa, por frieza ou por falta de comprometimento. , até então, tinha atribuído todos esses problemas tão somente à falta de tempo. Mas, agora, via que não era só esse o empecilho. Alguma coisa tinha mudado em uma instância além do seu alcance à primeira vista.
Tentou voltar a passar imagens de modelos de vestidos que pareciam não ter fim, mas uma sensação de embrulhamento no estômago fez com que ela abandonasse tal esforço. De repente, ela também tinha perdido o apetite e aquela droga de lasanha não parecia mais tão saborosa quanto antes. Devia ter comido antes. Devia ter comido sozinha. Agora, já era tarde demais.
Retirou a manta vermelha que decorava o sofá e se enrolou nela, como se o tecido fosse um casulo protetor, capaz de isolá-la de todas as frustrações e sentimentos ruins do mundo. Era quase como voltar à infância e acreditar que o cobertor a salvaria de todos os monstros e males noturnos. Dessa vez, ela queria mesmo acreditar que as coisas ruins ficariam do lado de fora e não a atingiriam.
Ligou a televisão e escolheu um episódio aleatório de F.R.I.E.N.D.S. na Netflix. Olhando fixamente para a tela, notou as cenas passando sem absorvê-las. A única coisa que conseguia sentir era a umidade da pequena lágrima que escorria pelo canto de seu olho.


+++



e jantavam em silêncio. Nenhum dos assuntos que ela tentava iniciar conseguia gerar mais de duas palavras amarradas em uma resposta monossilábica. O nó que estrangulava sua garganta sem nenhum tipo de piedade estava lá há dias e parecia apertar cada vez mais. Sentia seu peito como uma bomba relógio. Suas férias, que deveriam ser um período de descanso e relaxamento, tinham se transformado em uma eterna sequência de desespero e choros antes de dormir. Ele estava sempre cansado demais para conversar, exausto demais para ajudar a escolher sequer a cor do próprio terno. Desinteressado demais para existir fora dos treinos.
Ela tinha tentado ser compreensiva durante todo o tempo. Tinha dado espaço, mostrado estar aberta a ouvir seja lá o que estivesse acontecendo, feito tudo o que estava ao seu alcance para demonstrar que se importava e queria ajudar. Quando cogitou o fato de ele estar sobrecarregado, recebeu a seca resposta de que era óbvio que sim. Ao sugerir que talvez a pressão estivesse tomando conta dele e que um tratamento psicoterapêutico poderia ser bom para ajudá-lo a gerenciar melhor isso, ouviu que ele não tinha tempo.
O fato de que precisava de ajuda era tão óbvio quanto a noção de que o céu era azul ou a água molhada. Era inegável e, mesmo assim, ele insistia em negar qualquer auxílio ou aproximação. Foi por isso que ela, em uma última tentativa de agir, tinha tomado uma decisão que sabia bem que poderia colocar tudo a perder.
— Por que você procurou o meu técnico? - Perguntou ao juntar os talheres, terminando seu jantar. — Quantas vezes eu vou precisar repetir que estou bem?
— Procurei-o na tentativa de encontrar alguém que pudesse dar um conselho para o qual você daria ouvidos de fato. Você não está bem, . Isso é óbvio todos os dias. Eu só quero ajudar, mas você não me deixa entrar nessa bolha que você criou entre si mesmo e sua autocobrança insana.
— Eu não preciso da sua ajuda e nem de ninguém. Eu pensei que você soubesse respeitar as vontades dos outros, já que está sempre pagando de bem intencionada.
Aquela alfinetada tinha acertado em cheio o último resquício de paciência e compreensão que ela tinha dentro de si. Ela não era de ferro e também não era saco de pancadas para as frustrações de ninguém. Se tinha tanto amor e respeito pelos sentimentos dos outros, tinha também amor e respeito próprios.
— Eu estou planejando todo o casamento sozinha, . Pode parecer idiota para você, agora que está tão ocupado tentando se destruir com horários extras na academia, mas eu sempre pensei que fôssemos viver esse momento juntos já que era o nosso sonho. Quer dizer, eu achava que era o seu sonho. Até virmos para essa maldita cidade. É óbvio que nós dois fomos sobrecarregados com o esforço constante pelas nossas carreiras, mas você se afastou. Cada passo que eu dou na sua direção, você dá três para trás. Você não fala mais comigo. Você não me diz o que está acontecendo e não me deixa participar da sua vida. Puta merda, , você tem noção de que nós sempre dividimos todas as angústias com o outro por quase vinte anos?
— Não tenho nada para te dizer. Nada, . É só isso. Eu estou ocupado, droga. Você não tem noção da quantidade infinita de coisas que eu tenho que fazer e repetir todos os dias.
— Tenho. Você é jogador profissional há anos e eu estive lá a cada passo seu, fosse uma conquista nova ou uma derrota. Eu estive lá até na sua primeira torção de tornozelo. Você simplesmente perdeu o controle sobre a sua própria vida. A pressão tirou o que existia de melhor em você. Mas você não é uma máquina, . Você continua sendo a droga de um ser humano e todo ser humano precisa de ajuda às vezes. E precisa admitir que precisa. Eu só quis te ajudar durante todo esse tempo e agora você me empurra.
— Eu não pedi a sua ajuda. Eu sinto muito se não tenho tempo para as suas discussões de convite ou arranjo de mesa.
— Não, . Eu engoli seu descaso sobre os convites e arranjos de mesa. O problema é que você não tem mais tempo para mim. O problema é que você age como se estivesse me fazendo algum tipo de favor ao se casar comigo. Você continua falando como se estivesse sendo forçado. Eu não preciso da sua pena, seja lá por qual motivo estúpido você decidiu tê-la. Não preciso das suas migalhas. Não me interessa que nós passamos nossas vidas juntos. Eu não sou obrigada a me contentar com pouco.
levou as mãos às têmporas, esfregando os olhos e a testa em sequência.
— Você não está pensando racionalmente. Não é nada disso. Você está distorcendo tudo para me colocar como vilão da história.
soltou uma risada irônica, que parecia ter sido produzida no fundo de sua garganta. Não podia acreditar que estava ouvindo aquilo. Depois de tudo que fizera para encontrar um jeito de lidar com aquela situação, ouvir que estava distorcendo tudo propositalmente era demais para sua paciência.
— É o seguinte, : eu não quero e não vou viver assim. Você precisa parar de achar que eu estarei aqui para sempre, independentemente do que você faça. Eu larguei a vida que eu tinha por você, mas eu construí uma nova e não vou aceitar tudo que você faz de boca fechada.
— Eu vou dormir em um hotel - ele anunciou simplesmente, desvencilhando dos rumos indesejados daquela discussão. — Quando você tiver esfriado a cabeça, conversamos.
A mulher teve de contar até dez repetidas vezes para tentar aliviar aquela sensação horrorosa de que algo estava prestes a explodir. Queria gritar. Queria jogar a louça de porcelana no chão com toda a sua força. Queria se trancar no banheiro e abraçar os joelhos até que tudo passasse como mágica.
O problema é que ela já estava velha demais para acreditar em fantasias e finais felizes. Observou em completo silêncio o noivo sair pela porta da casa que tinham escolhido juntos na época em que ainda acreditavam que tudo poderia dar certo. O bater da porta foi o gatilho para que o choro mudo finalmente começasse. Ela se odiava por estar sofrendo mais uma vez. Odiava-o por ter causado aquilo tudo. Odiava o universo por ter feito com que a vida perfeita que tinham ruísse de repente.
Ao mesmo tempo, queria ter esperanças. Queria poder se sentar ao sofá e acreditar que as coisas poderiam dar certo no dia seguinte ou talvez no próximo. Mas não conseguia mais. Alguma coisa dentro de si tinha se partido em pedaços pequenos demais para que ela pudesse reorganizá-los tão rápido. Foi essa fratura inexplicável que a moveu, mesmo que de forma hesitante, para a frente do closet, de onde ela começou a retirar as próprias roupas para, mecanicamante, posicioná-las em uma mala.

Hesitation, awkward conversation
Running on low expectation
Every siren that I was ignoring
I’m paying for it




Parte III

— Como é que você erra esse gol? - jogou um punhado de pipocas na televisão, enquanto xingava a finalização horrorosa. — Home run só vale para beisebol.
— Posso saber desde quando você se tornou madridista? - Giampaolo perguntou ao retornar com um pote próprio de pipoca da cozinha e um Lorenzo babão correndo sobre as curtas perninhas no seu encalço.
A mulher deu um longo gole em seu copo de chá gelado sabor pêssego. Aquele maldito líquido tinha sido seu melhor amigo nos últimos dias e uma das poucas coisas que ela tinha conseguido colocar para dentro do próprio corpo sem sentir uma vontade absurda de colocar para fora. Aquele balde de pipoca era mais uma demonstração de revolta do que um lanche de verdade. Lorenzo tinha simplesmente adorado isso.
— Eu me tornei madridista no exato momento em que eles precisam destruir o time do Barcelona. Não gosto deles. Só odeio um pouco mais os outros. Talvez mais que um pouco. Quanto você acha que eu preciso oferecer para que um desses zagueiros enormes tentem quebrar o meia rival?
Lorenzo riu alto, enquanto jogava um punhado de pipoca para o alto e tentava agarrar com a boca. Assim que ficou sabendo da discussão acalorada e sem um final feliz dos amigos, tinha entrado no primeiro avião que encontrou. Não por ele, uma vez que assumia a existência de toda uma equipe que o apoiasse. Tinha viajado por ela, pela amiga que sempre esteve ao seu lado e precisava de apoio naquele momento difícil.
— Você não quer que ele se machuque. Sabe muito bem disso. Eu sou só a voz óbvia da sua consciência tomando vida e esfregando isso na sua cara.
— Quero. Ele me machucou e agiu como se nada o atingisse. Ele foi completamente impassível quando tudo o que eu queria era ajudá-lo, Giam. Eu sei melhor do que ninguém como esse sentimento é amargo e doloroso de se sentir por alguém que você amou por toda a vida, mas eu continuo sendo um ser humano. Não sou tão sentimental e espiritualmente evoluída quanto eu gostaria de ser. Deve ser algum tipo de reflexo da falta de alimentação dos últimos tempos.
— Você está bem mais magra mesmo - ele disse o óbvio. — Mas fico feliz que esteja voltando a comer aos poucos, mesmo que seja algo tão nutritivo quanto pipoca. Posso até fazer a receita de pizza caseira de minha família que você tanto adorava. Prometo nem reclamar da quantidade que você conseguir colocar para dentro. Qualquer coisa vale.
— Vou ser obrigada a aceitar a sua proposta. - sorriu enquanto inclinou a cabeça para encaixá-la no ombro do amigo. — Já te agradeci hoje por estar aqui?
— Hoje não. Mas eu vou assumir que você está tão animada que simplesmente se esqueceu.
— Não quero mais. Pode ir embora com a sua arrogância.
— Eu só estou brincando.
Giampaolo pretendia continuar com algum tipo de discurso clichê sobre amizade e estar lá por quem você se importa, mas foi interrompido pelo grito descontrolado do narrador que anunciava o gol que acabava de ser contabilizado para o placar. E era do Barcelona. Mais do que isso, o gol era dele .
Enquanto todos os companheiros de time o abraçavam e comemoravam entre gritos, pulos e empurrões animados, simplesmente sorria em agradecimento, parecendo quase triste mesmo que tivesse acabado de abrir o placar para o clássico mais importante do ano. Aquele com certeza não era o que Giampaolo tinha conhecido em Milão. Ao olhar para a mulher ao seu lado e para o homem desanimado em um dos momentos mais memoráveis de toda a sua vida, ele soube, definitivamente, o que já imaginava há tempos: ambos estavam despedaçados.
— Ele não está nada bem - disse, esperando alguma reação de .
Ao encarar a amiga, percebeu uma lágrima solitária escorrendo por sua face.
— Bom, eu também não estou. Sem contar que foi ele quem recusou completamente a minha tentativa de ajuda. Eu fiz tudo o que eu podia. Na verdade, eu fiz muito mais do que eu devia ter feito. Você não tem noção de como foram os últimos dias naquela.
— Não tenho. Não posso e não vou nunca julgar as suas decisões exatamente por isso, Eu não sei o que você sentiu. Só você pode saber. Mas eu estou aqui caso você queira colocar isso para fora e desabafar, sabe? Tentar tirar parte desse peso que fere os seus ombros.
A mulher pressionou os próprios olhos, permitindo que suas lágrimas finalmente descessem sem qualquer tipo de vergonha ou impedimento. Tinha perdido a noção do tempo que tinha passado completamente entalada com toda aquela sensação pesada e excruciante. Tinha simplesmente passado mais tempo tentando agir como se estivesse bem ou inatingível do que, de fato, permitindo-se sentir. Tinha demorado muito mais do que teoricamente devia para perceber que era um ser humano e tinha o direito de ter sentimentos, dores e angústias. Tinha o direito de estar decepcionada. Tinha o direito de estar magoada e, mais do que tudo, tinha o direito de desejar, mesmo que baixinho à noite, para que tudo fosse apenas um sonho terrível. Não importava o tamanho de seu orgulho, ainda sentia aquela pontada no peito e aquela coceira que revirava sua mente e fazia com que ela se perguntasse como seriam as coisas se tudo tivesse sido diferente.
— Nós não nos falávamos direito mais, Giam. Depois de tantos anos convivendo juntos, nós passamos por tanta coisa ao lado do outro que era praticamente uma regra geral confiar e se agarrar ao diálogo e ao apoio do outro. Foi tudo o que tivemos quando nos mudamos, entende? Aprendemos a encontrar no outro o ombro amigo para os momentos difíceis. Além disso, ele continuava a se mostrar completamente desinteressado a qualquer coisa ligada ao casamento. Doía, sabe? Eu não pedi que ele abrisse mão de nada para dar atenção às decisões sobre a cerimônia. Eu ia usar as minhas férias para isso. Tudo o que eu queria era cinco minutos pós-treino para confirmar qual a caligrafia que ele preferia no convite. Não pensei que fosse pedir muito.
— Não é. Vocês sempre fizeram tudo juntos. Nada mais justo do que fazer o mesmo agora. Ainda mais por ser algo tão importante quanto o casamento de vocês. Alguma coisa com certeza estava errada, . Esse não é o que eu conheci.
— Não é sequer o que eu conheci durante literalmente toda a vida. Ele estava diariamente exausto, Giam. Desde então, eu mal o via sorrir. Sempre tive a impressão de que ele se sobrecarregou tanto que acabou se destruindo psicologicamente. Perdi as contas de quantas vezes sugeri que ele procurasse um psicoterapeuta para ajudá-lo a lidar com essa nova fase. Ele se negou todas elas. E eu não queria desistir, então só o irritei mais.
, eu sei que você não vai gostar do que eu vou dizer, mas você já pensou em tentar conversar com ele agora que as coisas esfriaram um pouco?
A mulher respirou fundo algumas vezes.

Loving you was dumb and dark and cheap
Loving you still takes shots at me
Loving you was sunshine, but then it poured
And I’ve lost so much more than my senses
‘Cause loving you had consequences

— Eu não estou pronta para lidar com aquele tipo de conversa de novo. Não estou preparada para renovar meu potinho de decepção. Eu ainda estou tentando aprender a digerir isso tudo. Não é justo com a minha própria saúde mental ficar voltando ao que me fez chegar a esse ponto, entende? Eu preciso me respeitar, pelo menos uma vez.
“Eu fiz tudo por ele, Giam. Absolutamente tudo. Larguei minha família, minha faculdade, minhas amizades, meu país… Larguei tudo que tinha no Brasil para poder continuar vivendo o sonho dele ao seu lado. Eu fiz tanto e, de repente, ele não podia sequer me deixar ajudá-lo. Não existe explicação além de que ele realmente não me queria mais. Só resta a minha cabeça aceitar e decidir que também não o quer.
, eu não acredito nisso. Eu acredito que vocês dois estavam com a cabeça fervendo e disseram coisas que não queriam realmente ter dito. Eu entendo o seu lado e não sei se teria insistido por tanto tempo. Você lutou por quem você ama o quanto pôde. Tem, sim, o direito de se proteger agora. Ninguém pode saber melhor do que você o que é possível de aguentar. Respeite o seu momento. Respeite o seu tempo. Respeite sua saúde e seus sentimentos.
concordou, enquanto secou novamente as bochechas e se abaixou para pegar Lorenzo e colocá-lo no próprio colo. Tudo o que parecia precisar - além de desabafar - era fazer um afago naqueles pelos macios e sentir aquele carinho que só um cão poderia mostrar a um ser humano.
— Não vou deixar você voltar com o Lorenzo para Milão. Ele vai ficar aqui comigo. Ele disse que quer passar uns meses comigo.
— Ei, ei, ei! Nada disso! Encontre um para você. Essa bola de pelos já é minha.
Estavam tão concentrados em discutir a guarda do maltês que praticamente se esqueceram do jogo que se aproximava do apito final. Só retomaram a atenção para a tela da televisão quando os comentaristas começaram a falar mais alto, atestando a vitória importantíssima do Barcelona e se preparando para tentar conseguir rápidas entrevistas com os jogadores antes que os mesmos retornassem ao vestiário.

— Vamos agora falar com o homem da partida: .
sentiu o coração retomar o ritmo acelerado de antes ao ouvir aquele nome ser pronunciado com tanta naturalidade, como se não fosse o motivo exato de seu completo desespero e oscilação neurológica e endócrina.
Giampaolo rapidamente buscou a mão livre da amiga, na intenção de demonstrar seu apoio. Queria que ela soubesse que ele estava ali, independentemente do que acontecesse.
, como você se sente sendo peça tão fundamental em um jogo tão importante quanto esse?
— Sinto que, de alguma forma, meus esforços não foram em vão. Todos os treinos incansáveis começam a dar sinais de resultado e eu não poderia estar mais satisfeito e agradecido pelo reconhecimento.
— Nós estamos extasiados com o seu talento em campo, mas você não parece tão animado assim.
— Não é pelo futebol. Na verdade, acho que o futebol é a única coisa que ainda está dentro dos eixos na minha vida à essa altura. Eu passei por momentos ruins nos últimos tempos e me recusei a aceitar ajuda, mesmo quando era óbvio que eu precisava. Eu fui orgulhoso e teimoso e, provavelmente, tive medo de admitir para mim mesmo que eu tinha um problema. E isso fez com que eu perdesse a única pessoa que esteve, literal e metaforicamente, ao meu lado esse tempo todo. Eu tinha tudo e destruí as coisas por simplesmente não aceitar ajuda. Uma ajuda que eu precisava. Uma ajuda que eu busquei.

franziu a testa, estreitando os olhos. Não tinha sido capaz de assimilar completamente o que acabara de ouvir. Não conseguia acreditar que ele tinha finalmente cedido e buscado ajuda. De alguma forma, em algum pedacinho dentro de si, sentia orgulho por aquele passo tão difícil e crucial de ser dado. Foi, então, que teve que admitir para si mesma o que já sabia há tempos: não era imune ao que acontecia com ele. Não sabia se seria algum dia.
— Assuntos do coração, então. Quem diria que nosso mais novo craque teria problemas com as garotas?
riu fraco, meneando a cabeça levemente.
— Não é um problema com garotas. É um problema com a mulher da minha vida. Eu a decepcionei profundamente e decepcionei a mim mesmo também. Não sei se ela está assistindo a isso ou verá essa entrevista de alguma forma. Mas, caso veja, tudo que eu posso pedir, mesmo sabendo que não mereço, é a chance de me explicar. A última coisa que eu quis nessa vida foi afastá-la. Espero que ela possa me dar uma chance para que eu ao menos peça perdão pelo que fiz ou deixei de fazer.
— Então, todos torceremos por vocês também.

quase voou no sofá para alcançar o controle remoto. Desligou a televisão rapidamente, incapaz de ouvir mais uma palavra sequer daquilo. De repente, toda a náusea dos últimos dias parecia ter voltado de uma só vez. Queria vomitar toda aquela pilha incompreensível e avassaladora de emoções e sensações com as quais ela não sabia lidar. Queria voltar no tempo e apagar tudo o que tinha acontecido no meio tempo. Queria não ter passado por tudo aquilo. Queria não ter que remoer por um bom tempo a decisão de
— E agora? - Giampaolo perguntou, enquanto Lorenzo chorava pela interrupção do carinho que a mulher lhe fazia até então.
— Agora, eu vou matar esse desgraçado por cagar a minha cabeça em rede nacional.


+++



estava varrendo a casa enquanto ouvia uma playlist do Drake que tinha encontrado aleatoriamente no Spotify. Estava finalmente conseguindo conviver de uma forma razoável com a sua própria mente. A única coisa que continuava lhe impedindo de estar em completa plenitude quanto à sua sanidade era aquela culpa que continuava pesando no peito. A culpa e a dor da expectativa de algo que, a cada dia que passava, ele tinha mais dúvidas se chegaria de fato.
Tinha passado os últimos tempos com o álbum que tinha feito de presente de aniversário para aberto em cima de seu criado-mudo. Era a única coisa que ocupava parcialmente o espaço vazio que tinha se estabelecido naquele quarto sem as coisas e a presença dela.
Cada página, cada foto, cada lembrança… Tudo fazia com que ele sentisse a dor repetida de ter jogado tudo o que tinha fora por teimosia e por se achar imune e impassível de passar por algo como aquilo. Pagou o preço da descoberta de sua fraqueza e da perda para perceber seu erro.
, você definitivamente é um idiota - disse para si mesmo.
A campainha da casa tocou, ecoando por todo o ambiente e tirando o jogador de seus devaneios auto-destrutivos. Largou a vassoura no canto da parede da sala e limpou as mãos no grosso tecido da bermuda, enquanto caminhava até a porta.
não percebia naquele instante, mas sua mão suava ao rodar a maçaneta. Era como se seus sentidos todos já reconhecessem aquele passo.
— Você veio - disse, tentando disfarçar um sorriso que misturava seu alívio com uma sensação de completo nervosismo.
meneou a cabeça em concordância, agarrada à alça da própria bolsa. Sua cabeça queria acreditar que aquele gesto ansioso seria de alguma forma capaz de protegê-la de fosse lá o que estava prestes a acontecer.
— Acho que você, melhor do que ninguém, sabe muito bem que eu sempre apoiei que todos tivessem uma segunda chance. Nem que seja, como você mesmo disse, para pedir perdão.
Ele sorriu, concordando. Deu dois passos para trás e abriu espaço para indicar o convite para que ela entrasse.
— Entre - pediu. — Fique à vontade. Afinal, essa casa ainda é sua.
— Espero que esteja claro que eu só estou aqui para conversarmos. E que seja de uma forma madura e educada, sem ataques ou palavras duras. Eu estou fazendo isso em respeito à nossa história e em respeito à minha própria saúde que não consegue conviver com assuntos inacabados.
— Eu jamais desejaria que fosse diferente - respondeu.
Assim que entrou naquele lar que conhecia tão bem, fechou a porta atrás das suas costas para o que estava prestes a ser uma longa conversa.


FIM... Ou não.



Nota da autora: Esse ficstape acabou ficando muito mais longo do que eu esperava, o que demandou uma abertura para uma possível continuação. NÃO ME ODEIEM!
Por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo







Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Stitches
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
04. Someone New
04. Warning
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06. If I Could Fly
08. No Goodbyes
10. Is it Me
10. Simple Song
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. Part of Me
13. See Me Now
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A Million Dreams
4th of the July
Dark Moon
Not Over
Side by Side


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