Finalizada em: Jul/2021

reflection

Mundo é outro nome para desespero
Eu sou minha própria felicidade e ansiedade

Isso se repete todos os dias, o amor e ódio dirigidos à mim
Hey, amigo que está olhando para o rio Han
Se esbarrarmos um no outro, poderia ser destino?


Ele escutou o som da água batendo nas pedras.
Debaixo da ponte, existia apenas um tapete negro e denso, estendendo-se até as luzes do outro lado, demarcando o fim ou, para os que pensavam como ele, o início da imensidão do breu. Um pensamento pessimista para os que queriam viver. Ele já não sabia mais disso.
Inclinou a garrafa verde goela abaixo, apoiando os cotovelos no metal frio que delimitava o caos de cima para a imensidão de baixo. Deixou que o vidro vazio escapasse de suas mãos e se afogasse lá embaixo, como um teste prévio de profundidade. A garrafa não emitiu som algum ao imergir, culpa atribuída ao caos do tráfego passando pelas costas dele. Maldito trânsito, maldita vida.
Será que seu corpo faria mais barulho? Ou os malditos automóveis também calariam sua última demonstração de descontentamento com este mundo? Ele não sabia e, sinceramente, também não se importava. Só queria que todas as luzes se apagassem e a escuridão tomasse conta, nem que tivesse de buscá-la sozinho.
Devia estar quase na hora. Ele encarou os ponteiros do relógio velho e constatou os últimos vinte minutos para a virada de um novo dia. Seria perfeito, quase místico. Por um segundo, considerou acreditar na reencarnação e de que poderia acontecer com ele caso tivesse uma ida digna e poética. Prontamente, já se censurou por isso. O estigma sobre os suicidas não os permitiriam renascer como pessoas mais felizes.
Posicionou a ponta dos pés por entre as grades, verificando sua firmeza para quando fosse de fato passar para o outro lado. Ele observava com calma e atenção. Aquela não era uma atitude tomada no calor do momento, era o resultado final de um planejamento muito bem estruturado que vinha de meses atrás, talvez anos. Desde que a morte bateu na sua porta em massa, na forma de dois homens encapuzados que levou os pais para algum lugar melhor. Pelo menos foi isso que o policial disse a ele.
Existia também um lugar melhor no fundo daquele abismo de trevas?
Ao pensar sobre isso, ele ouviu um pigarro à sua esquerda. Não se deu ao trabalho de virar e correr o risco de deixar evidente o seu plano pessoal. As pessoas comuns tinham o péssimo hábito de se meter na vida e na morte de quem não dá a mínima pra isso.
O vento contrário repentinamente direcionou-se até seu rosto, acompanhado de uma voz clara e estranhamente gelada:
— Não vai fazer barulho.
Ele virou a cabeça automaticamente para a esquerda, agora vendo a pessoa parada há alguns metros, encarando a noite como se enxergasse um arco-íris escondido.
Namjoon, que seguiu o olhar e nada viu, franziu o cenho em espera, como se tentasse descobrir se era com ele mesmo que falava.
O rosto virou-se para o seu, puxando uma linha nos lábios para um sorriso singelo.
— Quando pular, não vai fazer barulho. Ninguém vai ouvir nada.
A imagem tremulou por alguns instantes, mas Namjoon preferiu acreditar que foi apenas um erro de perspectiva. A pessoa ainda o encarava, não esperando uma resposta; parecia estar cedendo-lhe apenas um conselho mascarado.
— Quem é você? — perguntou ele quando finalmente teve certeza de que era o outro sujeito da conversa.
Ela estendeu os dedos até a grade divisória, desenhando círculos na poeira do metal.
— Só o destino.
Namjoon inclinou os ouvidos, esperando ouvir algo mais claro e melhor do que aquilo. Mas o silêncio mostrou que esta seria a única resposta que ele teria.
Ele trincou o maxilar, sentindo uma onda espessa de um medo irracional que abrangeu o pequeno espaço entre os dois. Não era como o medo que sentia sozinho, em meio a tantas outras reflexões enquanto espiava a vida acontecer de sua janela. Era um outro tipo de sentimento, um que ainda não havia se alojado em sua cabeça. Desconhecido.
Ele sentiu que deveria sair dali agora mesmo. Não apenas sair, como também começar a planejar um outro lugar para a execução de seu plano, um que não fosse tão público, mas que ainda mantivesse um certo impacto visual.
Mas ele não se mexeu. Os dedos da garota moveram-se novamente no ar da maresia, agora como se desenhasse os mesmo círculos no escuro à frente.
— Sinto o peso dessas palavras sobre os meus próprios ombros — ela disse, e Namjoon só sabia disso porque os lábios se moveram. O resto estava tão parado e imóvel quanto uma escultura de mármore.
Ele manteve a expressão confusa, esperando por mais.
— Seus pensamentos — ela respondeu, torcendo o pescoço o bastante para encará-lo — Suas idéias, seus planos. Você os atribui um valor alto demais. Deveria se desprender de tudo isso e mudar sua visão do mundo.
Inesperadamente, ele sufocou uma risada.
— É isso que o destino tem a me dizer? Um slogan de outdoor?
A garota soltou uma risadinha fraca, quase inaudível e deixou que seus olhos pousassem em Namjoon mais uma vez, observando a expressão um tanto quanto sem vida e o olhar fosco que estampava seu rosto. — Você podia dizer algo mais reflexivo, já que está assim a maior parte do tempo.
Ele franziu os lábios, não sabendo o que responder de imediato. A frase foi tomada como provocação e ele teve certeza de que deveria ir embora. E de que poderia adiar sua ida por mais um dia.
Ele, então, colocou as duas mãos nos bolsos do casaco, girou os pés para dar meia volta e seguiu para enfrentar o barulho do tráfego, limpo àquela altura. Sentiu os olhos estranhos e frios em suas costas, observando cada passo que dava para frente, parecendo literalmente atravessar seu corpo por inteiro e ler todas as palavras atribuladas que dançavam em sua mente.
O que era aquilo? Quem era aquilo?
— Nos veremos de novo, Namjoon.
A voz soou como uma brisa gélida em seus ouvidos, tão perto que o fez parar e se virar novamente. O sopro frígido e paralisante percorreu o resto de sua espinha quando notou que não havia mais corpo algum parado há alguns metros, nem quaisquer dedos riscando esferas no céu noturno, ou qualquer resquício de que, em alguma hora, o carbono humano havia sido expelido naquele lugar.
Ele piscou os olhos algumas vezes, pensando que talvez tivesse se despedido do álcool de forma exagerada. A voz falou diretamente em sua cabeça, ele tinha certeza, e desta vez havia calado as outras demais que moravam em domicílio no mesmo lugar. Um formigamento no estômago o dizia para ficar com medo, que ele deveria continuar e esquecer tudo que acontecera. E ele poderia facilmente fazer isso. De novo, virou as costas e começou a caminhar, sabendo que manteria o episódio na memória por um dia ou dois, mas iria facilmente mantê-lo longe.
Ele reviveria seu plano. E nunca mais a veria de novo.

Mas, você sabe, às vezes eu realmente me odeio
Sinceramente, com muita frequência eu realmente me odeio
Quando eu realmente me odeio, eu venho à Ttukseom
Eu apenas fico aqui, com a familiar escuridão
Com as pessoas que estão rindo, a cerveja que me faz rir

O medo que suavemente retorna e pega a minha mão

Nada mudou.
Não que Namjoon realmente esperasse por isso. Toda noite, ao pousar a cabeça no travesseiro, sabia que o próximo dia seria exatamente o mesmo. Também sabia que se deitar era apenas uma ação mecânica, praticamente involuntária, porque seus olhos não se fechavam. A posição horizontal o fazia se imaginar dentro de uma caixa escura jogada ao centro do planeta, onde ouvia os sons de fora e via a luz do sol que entrava por entre as poucas frestas do cubículo, mas não participava de nada além daquele silêncio.
Mesmo quando andava rente às pessoas, quando permitia que seus olhos vagassem pela vivacidade humana e prestasse atenção às formas diversas que as relações interpessoais poderiam ter, era como um programa de TV. Ele era apenas um telespectador. Para o insone, nada parecia real o suficiente.
Ao sair do que chamava de trabalho temporário no fim daquele dia, ele arrastou os pés pela calçada na mesma direção habitual, que consistia em atravessar três faixas de pedestres até o restaurante de kimchi, comer bulgogi com quantas garrafas de soju as gorjetas permitissem e se deslocar por mais duas faixas até a ponte. A ponte escura com rastro de sangue invisível, o palco derradeiro da própria morte. Era o tablado de teatros da idade média, onde os espíritos das pessoas que se jogaram formavam um coro que cantava o chamado para seu próximo membro.
Pelo menos era assim que Namjoon via o lugar. Conseguia imaginar perfeitamente seus companheiros anteriores sentados à uma grande mesa redonda, compartilhando bebidas e histórias da vida, agora engraçadas já que estavam livres, finalmente livres do tormento de ter um coração batendo, livres da liberdade.
Era para onde queria se juntar.
No entanto, ele freou os pés pouco antes da terceira e última faixa. As colunas de metal desgastadas já eram visíveis logo à frente, e o fluxo de carros entrava e saía como de costume, mas de repente a ponte não pareceu ser o destino certo daquele dia. Ele não queria admitir, mas a ponte não parecia mais ser a escolha certa de nada. Ele não via mais a mesa, o palco, não conseguia sentir o primórdio de soberania que tanto o aliciava diante da imensidão negra. Hoje ela estava… vazia. Parecia como ele por dentro. E ele odiava seu próprio interior mais do que qualquer outra coisa.
Tentou não pensar que tais coisas tinham algo a ver com a experiência anterior que o obrigou a viver mais um dia. Ele sentiu raiva disso também. Fazia tempo que não sentia aquela queimação no peito, o fogo que desviava seus pensamentos para o mundo real, que o fazia querer gritar.


Todas elas sabem onde deveriam estar
Somente eu estou andando sem rumo
Mesmo assim, é mais confortável estar aqui, misturado com outros
Ttukseom engolido pela noite

Me oferece um mundo completamente diferente
Eu quero ser livre
Eu quero ser livre de liberdade


Fazia um tempo, incalculável, que não sentia coisa alguma, não que ele soubesse disso na hora.
Também não percebeu quando os pés se moveram na direção oposta, e nem o número exato de quilômetros que percorreu até ser atingido por uma criança em sua coxa, que gritou um pedido de desculpas enquanto corria atrás de um balão de ar que escapou acima de seu ombro. A cor vermelha o puxou de volta e desentupiu seus ouvidos. As risadas estavam altas, assim como a temperatura localizada pelas dezenas de corpos que compartilhavam a mesma extensão de espaço. Ele encarou a grande estrutura espessa e circular da plataforma que rodeava o espaço acima, delimitando a massa humana sob um gramado baixo, perfeito para receber toalhas quadriculadas cheias de famílias e casais apaixonados. Ele desatou uma risada engasgada. Com vocês, mais um episódio da série Felicidade Na Vida Real, estrelando as pessoas comuns e um cenário fora da caixa.
O novo palco em potencial ficava em Ttukseom.
Ele se afastou para a periferia do espaço, bem longe do centro e da aglomeração, achando um banco de madeira vazio e uma garrafa de cerveja quente escondida sob a mochila. Olhou para as margens do arco acima de novo, lembrando-se repentinamente do dia anterior, dos dedos desconhecidos que rabiscavam os mesmos anéis no céu noturno, no metal frio da grade, e de como sua voz soava quase tão fria quanto o vento.
Voz essa que se materializou em seus ouvidos novamente, calando novamente os outros sons ao redor:
— Quer se juntar a eles, Namjoon?
O susto foi momentâneo, assim como a expressão surpresa. Namjoon deixou o rosto virar para o lado, conseguindo ver a feição da garota que milagrosamente agora estava com seu corpo bem próximo ao do rapaz. Não entendeu e nem mesmo queria entender o porquê de sua presença ser tão estranha, mas de certa forma, reconfortante para Namjoon.
A única coisa que ainda relutava dentro de sua mente era o porquê, ou melhor, qual o objetivo de quem quer se ela fosse, para estar ali pela segunda vez. — Eu não entendo.
— O que?
Namjoon respirou fundo e virou o rosto para frente, onde podia ver e ouvir claramente as risadas e os traços animados de todos ao redor. Com um pequeno aceno, mais para si mesmo, o rapaz virou o rosto em direção à ela.
— O que você quer? — indagou, sem mudar sua expressão. — Quem é você? Ao menos é real? Ela pressionou seus lábios, se questionando o que é que deveria estar passando na mente de Namjoon naquele momento. Observou seu olhar fosco, os olhos sem propósito algum e as marcas do cansaço e de como parecia estar esgotado consigo mesmo.
— Digamos que, teoricamente, eu sou.
O rapaz franziu o cenho, como se não entendesse nada do que ela estava falando. Arqueou as sobrancelhas e com um gole da cerveja que tinha em mãos, realmente não tentou achar que fosse lógico de alguma forma.
— Então está morta, não está?
Ela sorriu, fazendo uma pequena careta com o questionamento do rapaz.
— O que você acha? Quer tentar acertar? — deu uma piscadela, o fazendo voltar sua atenção na garota, como se aquilo não tivesse um pingo de diversão.
— Se estiver, acho que é uma baita sortuda.
— A morte é o fim da linha, como isso pode ser considerado sorte? — ela levantou uma sobrancelha — Não consegue raciocinar dessa maneira?
Ela estava testando-o. Ele percebeu de cara. Algo na aura gelada a sua volta demonstrava com certeza que não se passava de uma alucinação, mas isso surpreendentemente não o amedrontava.
Ele não tinha coisa alguma a perder.
Namjoon bebericou um pouco mais do restante que faltava da bebida, analisando a garrafa, tentando começar de alguma forma e até mesmo organizar todos os pensamentos que rondavam sua mente. Tinha certeza de que já não estava em seu tino perfeito e vê-la ali só havia constatado o fato que estava vendo coisas além do normal, mas sentia como se a presença da garota o fizesse, de alguma forma, querer dizer tudo o que sentia em voz alta.
Pelo menos uma vez.
— Não acha que tudo isso pode ser extremamente — ergueu o olhar, observando a paisagem. — Superficial? Os sentimentos, objetivos e ambições. O fato de sabermos que existe um fim da linha não faz com que todas as coisas se tornem mínimas, fúteis?
— As coisas mínimas e fúteis também podem ser importantes, Namjoon — ela encarou a multidão massiva com certo brilho nos olhos — Pense em todas as coisas que elas querem conquistar. E tem apenas uma vida para isso. O fim da linha inevitável deveria servir de motivação, não de medo.
— Não acha que o medo te protege de certas frustrações? — ele riu, dando um gole na cerveja.
— Acha que vai viver plenamente sem sofrer nenhuma frustração?
Ele a olhou impassível, disfarçando os dentes trincados que demonstrava que a frustração já estava muito bem instalada dentro dele por todo o rumo daquela conversa.
— Não me importo com vida nenhuma, achei que já havia deixado claro.
— Por isso mesmo que estou aqui.
— Ficaria mais satisfeito se me contasse como é a morte.
Ela piscou os olhos algumas vezes, como se estivesse retendo o pedido. Ela se identificava com ele de várias formas, mas ainda não estava livre de surpresas.
— A morte é o nada, Namjoon — sibilou, desviando os olhos para a multidão novamente — O que há para contar sobre uma imensidão de vazio?
— Consegue entender como eu me sinto agora?
— Consigo. Acho que te entendo mais do que pensa — ela suspirou, agora encarando os pés escondidos pelo escuro do banco — E é exatamente por isso que estou tentando te trazer para fora. Que a vida não existe nesse casulo em que se enfiou de forma tão drástica.
— Acha que fiz isso por que quis?
— Eu sei que quis. Sei mais do que pensa, Namjoon — ela o encarou — Você passou por um momento difícil e achou que assim estaria protegido, mas viu por si mesmo que estava errado. Por isso começou a planejar. A fugir…
Ele riu, não se atrevendo a olhar para os olhos que seriam facilmente capazes de roubar toda e qualquer sinceridade demais dele. Por mais que nunca tivesse problemas em admitir a si mesmo que ansiava a fuga da realidade mais do que qualquer outra coisa, ouvi-la dizer a constatação foi estranhamente desagradável.
Assim, ele não soube o que responder de imediato. Era capaz de enxergar a confiança em cada palavra dita por ela, mas não conseguia desvendar sua origem. Ela era uma conhecida que ele havia apagado da memória, como tantas outras antes? Era uma pessoa que o havia tomado como alvo de uma pesquisa fajuta universitária qualquer? Era algum anjo da guarda que insistia em sua salvação?
Ela parecia conhecê-lo. Mais do que isso, aqueles olhos estranhos enxergavam bem dentro de sua alma, se é que existisse alguma. E um calor misturado com frio se misturou em seu peito, tirando toda a sua vontade de correr ou afastá-la.
Ele não sabia como poderia estar certo.
A garota se aproximou dele no banco e os dois olharam para a frente, observando o mundo em várias facetas diferentes. Um mundo cotidiano e normal para Namjoon; banal, porém contagiante para ela.
Ela, que já havia visto várias outras versões do mesmo ciclo.
Ela, que era o próprio estopim da sequência de pensamentos sombrios e inquietantes. Namjoon não sabia com certeza na hora, mas já havia encontrado-a dentro de sua escuridão por mais vezes que pudesse contar.
Olhar para o rapaz, de alguma forma, parecia diferente, quase como nostálgico. De forma imperceptível, deixou que seus olhos mirassem os traços do homem ao seu lado, fazendo com que ela se lembrasse gradativamente de algumas recordações que começaram a invadir sua mente, sobre como tudo havia sido um dia para ela. Ao ver a expressão pensativa que estampava o rosto dele, enxergava seu reflexo. Ela sabia o que Namjoon estava passando, conseguia compreender plenamente os sentimentos que ele demonstrava, as palavras duras e pesadas que saíam de sua boca e percebia que, de fato, tudo o que estava acontecendo com ele, também havia acontecido com ela.
Ela captava as emoções de Namjoon e notava o quão dolorosas eram porque havia passado por aquilo. Tinha se afundado nos mesmo sentimentos e feito os mesmos planos, idealizado o mesmo fim que o rapaz tinha em mente. E de fato, por mais que fosse triste e melancólico, ela havia concluído seu objetivo.
Já havia se passado muito tempo desde que a garota estava tentando fazer com que tudo desse certo, de uma vez por todas. Não era a primeira vez que ela se deparava com uma cena daquela, nem mesmo era a primeira que sabia como tudo poderia acabar, mas de alguma forma, sentia que Namjoon era mais profundo do que aparentava ser. Não era como os outros que haviam passado por ela depois de todos aqueles anos, não parecia ser decifrável, nem mesmo ao ponto de que fosse fácil desvendar para que ela não falhasse.
E aquilo a fez ter certeza de que não poderia falhar. Não daquela vez.

Cada vida é um filme
Nós temos diferentes estrelas e histórias
Nós temos diferentes noites
E manhãs
Nossos cenários não são chatos
Eu gostaria de poder me amar


Ttukseom estava mais escaldante no decorrer dos dias.
A grama era aparada com mais frequência à medida que a primavera se aproximava e, concomitantemente, as multidões se aglomeravam aos fins de semana sob o sol no centro do aro. Pés de cerejeira rodeavam a estação, concedendo uma bela visão sazonal que era vista e apreciada há gerações.
Desde a geração dela. Talvez bem antes disso.
Desta vez, ela chegou primeiro do que ele. Sentou-se no mesmo banco de sempre, que já havia se acostumado a receber as mesmas pessoas diariamente, mesmo que, visualmente, apenas um homem solitário repousava ali, sempre com uma cerveja na mão, murmurando sozinho enquanto encarava o gramado à frente.
Ninguém havia percebido que, agora, Namjoon tinha feito um amigo.
Amigo. A palavra ainda o causava estranheza, mas não mais espanto. Todos os dias a partir do primeiro, os dois se sentavam e conversavam, observando o entardecer cinzento do fim do inverno até o sol alaranjado da primavera, falando de tudo ou falando de nada, rindo quando necessário e debatendo na maior parte massiva do tempo.
O debate não vinha mais com o tom indignado de Namjoon toda vez que ela insistia em fazê-lo desistir da ideia de morte. Antes raivoso, depois passou a ser cômico e, ainda mais depois, sorrateiro e convincente. Não era o bastante para que ele mudasse de ideia, mas gostava da companhia. Nem mesmo era como se Namjoon continuasse achando loucura toda aquela situação, naquele ponto não era relevante para que se preocupasse.
Mas o tempo corria e já começava a desgastar sua permanência naquele plano. Enquanto tentava trazer a mente do rapaz ao eixo, ela tinha cada vez mais pressa. Pressa essa que não podia ser demonstrada, e em hipótese alguma revelada. Lançaria seus planos para o mais fundo do poço.
Ele chegou tranquilamente, daquela vez trazendo mais de uma cerveja nas mãos. A noite se aproximava rapidamente naquele dia em específico, adiantando o que estava por vir. Uma brisa gelada remanescente da estação anterior soprava e, propositalmente, afastava os demais habitantes do centro do arco. Eles não precisavam fazer parte do ciclo real que estava acontecendo naquele momento.
O final de mais um, de tantos outros anteriores.
Ele sentou e nada disse. Abriu as duas garrafas e ofereceu uma a ela, como havia feito antes. Ela negou com a cabeça, como de costume. Ele riu e tentou pegar em sua mão, que se retirou de imediato. Ela o encarou em repreensão, mas fraquejou ao ver o olhar curioso de Namjoon. Ele sabia, mais do que ninguém – ela não era exatamente feita de matéria. Mas isso não o tirou a vontade e o interesse de explorar o seu toque.
Ela ergueu uma das sobrancelhas ao pensar em uma ideia. Não era nada propício – na verdade, era algo impossível e até um tanto proibido de se pensar. Mas, se aquele ciclo estava fadado a terminar do mesmo jeito de antes, ela precisava tentar algo diferente para tentar quebrar a rodada interminável de escuridão.
— Ainda não? — ele perguntou em voz baixa e abafada, escondendo a urgência que tomava seu peito. Havia algo em que estava interessado, que tomava seus pensamentos em revezamento com a tristeza e a melancolia, e esse algo estava naquelas mãos bem ao seu lado.
Ela não o respondeu. Trincou os dentes por um momento, sabendo que não tinha mais nada a perder, mas sentindo certo receio ao lidar com aquela versão que parecia diferente das outras. Era mais profunda, mais enigmática, impiedosa.
— No que está pensando? — ela sibilou, agora encarando suas mãos semi estendidas no meio do caminho, sentindo um impulso de tocá-las.
— No mesmo de sempre — ele deu de ombros — Com uma ideia a mais, talvez.
Ela continuou imóvel, não se atrevendo a encará-lo. Sabia o que encontraria naqueles olhos e a proibição explícita que eles continham.
— Ainda não se livrou dessas reflexões?
— Parece que não vou.
— Por que não se esforça mais um pouco?
— Porque não vale a pena — ele soou firme e decidido, sem a voz arrastada de sempre. A cada dia, sua voz ficava mais confiante. Ele repelia toda a influência dela alimentando ainda mais os próprios pensamentos sombrios e mortais, como uma atitude de teimosia extrema. Era enlouquecedor — Não vai valer a pena se eu não confirmar que tudo isso é real.
Ela ergueu a cabeça de imediato, surpreendida pelas palavras. Se ela lhe mostrasse – se ela pudesse – que era real, que tudo aquilo era de verdade, então talvez estivesse no caminho certo. Ele rebobinaria à felicidade original, até mesmo infantil, e construiria um novo futuro. Quebraria o ciclo infernal de morte a que foi acometido por causa dela.
Havia um jeito. Impopular, impensado, jamais tentado antes.
— Vai dar uma chance à mudança se eu te mostrar que é real?
Ele ponderou a questão por alguns segundos, imaginando se seria capaz de cumprir a sentença. Os planos de deixar aquele mundo continuavam ativos em sua mente, mas não martelavam mais como antes. Algo na superfície da vida real havia chamado sua atenção e testado seus interesses, mas ainda assim, ele temia que desistiria logo quando experimentasse. A ansiedade começava a atacar de novo, fazendo-o pensar que não adiantaria constatar a realidade da garota. Ele saciaria uma dúvida que logo iria embora e, assim, nada mais sobraria. Ele seria deixado sozinho novamente com os mesmos pensamentos e planos, que descobriria estarem apenas pausados por todo esse tempo. Aquilo realmente valeria a pena?
O silêncio dele foi a resposta para ela. Ele não tem certeza de como agir, pensou ela. Não podia ler seus pensamentos com precisão, mas achava que sabia de cor o que estava pensando. Pelas experiências anteriores, por suas vidas anteriores.
— Sinto que devo ser honesto com você — respondeu, passando os dedos pelas gotículas da garrafa de vidro — Mas não tenho muita vontade de me arriscar desse jeito.
Ela repuxou os lábios. Já esperava a resposta negativa, e isso a causou um frio no estômago.
— Prometo que vai dar certo — ela sussurrou — Você vai ficar bem. Vai ser mais feliz. Vai conseguir tudo que quer.
Ele cerrou os olhos.
— Tudo o que eu quero?
Ela se aproximou dele lentamente no banco, sabendo que havia começado. E não poderia voltar atrás.
— O que você quer, Namjoon?
Ele umedeceu os lábios, olhando nos olhos cinzentos e frios do que parecia ser a alucinação mais longa e insana de toda a sua vida, mas que, naquele momento, estava tão real que ele conseguia até sentir seu cheiro. Um aperto no peito o fez se sentir um maluco. Um maluco completo por querer o que estava pensando que queria.
— Eu queria… poder amar — ele cravou os olhos fixos no rosto próximo ao seu, podendo sentir sua respiração — Me amar.
Ela deu um sorriso de canto, baixando os olhos para os ombros e o peito do rapaz, sendo capaz de ouvir o coração dele bater mais rápido. Um misto de esperança e alívio a tomou de imediato. Um coração, antes tão desamparado e murcho, agora parecia estar finalmente acordando. Um fio de luz que atravessava uma parede espessa e pesada, mostrando um enorme potencial de volta à vida. Mesmo que ele não soubesse disso, mesmo que as incertezas ainda conduzissem seus passos.
Sem pensar, ela pegou em sua mão livre jogada ao lado do banco. Ele ficou surpreso, e não soube descrever o que sentiu. A mão dela era quente, macia, encaixava-se perfeitamente com a sua. Ele sentia os ossos sob a pele, as linhas do tempo elevadas e as unhas bem cuidadas. Uma mão normal, uma pessoa real.
— Você já está fazendo isso — ela deixou que ele acariciasse suas palmas, ainda absorto com sua consistência — Está se amando.
Ele juntou as sobrancelhas em pura confusão, voltando a olhá-la com certa descrença. Como se tivesse sido enganado esse tempo todo, mas não sabia se aquela palavra estava correta. Não sabia se era certo pensar que os mortos vagavam por aí com tantas características humanas.
— Quem é você? — ele se ouviu sussurrar, ainda encarando a mão sobre a sua, como se fosse um objeto estranho e ao mesmo tempo valioso.
Ela inclinou a cabeça para o lado, chamando o olhar dele para si. Subiu os cantos da boca em um lindo sorriso antes de responder:
— Eu sou você.
E então, tomando o rosto dele entre suas mãos, aproximou seus narizes e falou:
— E vou mudar o meu destino.
Ela se aproximou até encostar seus lábios no dele suavemente, como uma pena que cai no solo árido do deserto. Um cataclisma de consciências e passagens temporais pareceram entrar em um vórtice. As flores de cerejeira sofreram uma lufada de vento sutil. O tempo parou por um minuto inteiro. O universo não se moveu. Os círculos desenhados no céu noturno foram quebrados, assim como o verdadeiro ciclo que regia a vida da garota, a primeira vida. Uma vida atormentada de escuridão e sombras que a fez completar o plano que Namjoon tanto planejou, tantos anos atrás. E suas próximas vidas depois disso, fadadas ao mesmo sentimento, foram projetos totalmente falhos no encontro à felicidade. Era o plano do destino que ela se encontrasse com todos eles depois e tentasse convencê-los a quebrar a corrente amaldiçoada da tristeza e da morte, mas palavras não eram o bastante. Nunca foram.
Com Namjoon não foi diferente. Precisava de muito mais do que palavras, e a ação foi sua última tentativa.
Um sopro forte o acordou do banco. A garrafa estava no chão, agora quebrada e jorrando o resto do líquido para fora. Ele virou a cabeça devagar, reconhecendo o lugar familiar, agora mais vazio do que o normal, e o cheiro do restaurante de tteokbokki logo à esquerda. Ele se levantou rapidamente, trôpego, arregalando os olhos pelos ares. O cheiro o trouxe a realidade, e de repente sentiu frio, e gargalhou logo em seguida. Ele sentia!
Quanto tempo faz desde a última vez que sentiu o cheiro de carne? Da grama, da bituca de um cigarro, do próprio vento? Por quanto tempo estivera vagando sem rumo até se encontrar com seu próximo eu e seus pensamentos desastrosos?
Ela havia conseguido. Agora como ele, seguiu em frente a passos largos pelo gramado, indo para bem longe do grande círculo acima de sua cabeça do parque Ttukseom, correndo em direção à felicidade de um restante de vida e à morte certa e inevitável.
Ela correu para o fim.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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