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Capítulo Único



Pesadelo?

Eu a vi se sentar ao meu lado quando os passageiros, naturalmente, entraram no avião. Mas isso é o máximo de atenção que presto nela até estarmos no ar. Há muita coisa em minha mente agora. Penso sobre há quantos anos “lar” passou a significar um lugar diferente daquele em que cresci. E que voltar para “casa” era sempre estranho por esse motivo. Mas agora, sozinho, parecia fazer sentido que eu estivesse voltando para o lugar que sempre foi o meu lar de verdade.

Eu sempre odiei as decolagens. Saber que você não pode desafivelar o seu cinto ou se pôr de pé pelos incontáveis minutos que levam até que o avião se estabilize no ar me causava ansiedade. E se eu precisasse muito ir ao banheiro? E se eu tivesse alguma câimbra super rara e bem dolorida no meio da minha coxa?

Ali, acima das nuvens o sol parecia brilhar mais forte. Eu fecho meus olhos sensíveis à luz por um momento, arrependido por ter deixado meus óculos escuros no bagageiro sobre a minha cabeça. “O tempo de voo até Bridgeport está estimado em duas horas e dez minutos.”, a voz da comissária de voo que sai pelos autofalantes me faz abrir os olhos. Sinto-os arder. Aquele era o sinal de que era tarde demais para resgatar minha mala e, consequentemente, quaisquer objetos lá dentro.

O botão luminoso acima da minha cabeça se apaga. Outro sinal, o qual indica que já estamos estáveis no ar e que eu posso finalmente desafivelar o cinto; mas por algum motivo não o faço, por algum motivo eu não me mexo.

Mesmo acima das nuvens vendo pela pequena janela o azul límpido do céu, parece que o calor do sol não pode chegar até mim, não pode me atravessar. O ambiente à minha volta em nada reflete como eu me sinto por dentro; aquele ar gélido não poderia estar vindo de nenhum outro lugar, senão de dentro de mim mesmo. E reverberava pelo meu assento, causando-me arrepios.

Do meu lado esquerdo, ouço uma mãe repreendendo o choro de uma criança. A mulher sentada ao meu lado sequer parece ouvir o som. Fico incomodado. Não pelo choro, que não era nem de longe alto o bastante para tal.

Fecho os olhos novamente e é quase como se eu pudesse sentir Saori ao meu lado, afinal, fizemos essa viagem mais juntos do que fiz separado. Sem me esforçar, consigo imaginar a sensação da sua perna constantemente encostada na minha. Calcanhares entrelaçados durante todo o voo.

Com um pouco mais de concentração, eu ouço sua voz incomodada; também não pelo choro da criança, mas sim pela forma que a mãe a repreendia. “Quando tivermos filhos, jamais faremos isso.”, ela diria.

Tudo o que eu vejo agora é o rosto de Saori. Ela está entrando no bar e caminha sorridente em minha direção. As memórias voltam aos poucos à minha mente. Mesmo vinte anos depois da primeira vez, eu ainda conseguia sentir o cheiro do perfume que ela usava e que, mesmo depois de casados, eu reconheceria em todos os lugares; fosse quando eu passasse em frente à loja que ela costumava o comprar e que ainda permanecia no mesmo lugar, com a fachada, hoje restaurada, a qual eu via todos os dias quando virava a esquina da rua de onde agora trabalho.

Ou o pior, que era sentir seu perfume em outras pessoas e, como se perdesse o controle físico dos meus músculos, minha boca se abria para confirmar o nome. E era o momento em que ora recebia olhares admirados ou muito confusos e assustados das pessoas não se sentindo confortáveis com a ideia de que eu poderia estar as cheirando. Eu explicava sorrindo que era o mesmo que minha esposa usava. Hoje, apenas peço desculpas.

Então Saori se senta à minha frente na mesa do bar. E a primeira coisa que sinto é seu perfume, o mesmo que senti no trem anos antes. A primeira coisa que vejo são os olhos brilhantes, que me encaram sem vacilar. Eu sempre fui um pouco tímido, mas por algum motivo que ainda desconheço naquele dia eu disse oi primeiro. Ela sorriu, antes de responder o oi seguido do meu nome.

Eu tenho um nome, é claro. Como todo mundo. E você provavelmente deve estar curioso para saber quem eu sou. E eu sou um daqueles que tem um nome comum, para ser honesto. Porque eu sou como você, apenas mais um João ou apenas uma Maria, com uma história de vida que começa comum.

A questão é que Todo Mundo acha que as coisas são como tem que ser. Tudo acontece por um motivo. O destino, dizem. É tudo pré-determinado; minha sina, sua sorte, o nosso acaso. E eu tento ter a mente aberta quanto a isso. Porque assim é simples. Ou algo acontece ou não acontece. Não foi sua culpa. Eu não podia fazer nada, estava escrito assim. Ou é mau ou bom, eu quero ou não quero, ou é dia ou é noite. Ou é preto ou é branco.

Houve um tempo em que isso realmente fazia sentido. Destino ou não, acaso ou não, eu não sei explicar como nossas vidas, minha e de Saori, se tornaram uma só.

Agora o choro da criança fica mais longe e eu não consigo distinguir se ainda há o barulho ou se eu apenas o bloqueio. Meus olhos pesam, mesmo já fechados.

Então eu estou em casa.

Anos atrás, eu havia me mudado para Boston para fazer faculdade. Mas a memória que me vem à mente é a da primeira vez que eu volto para Bridgeport depois dessa mudança. Lembro-me mais especificamente do emprego de meio período em que eu trabalhava todos os verões, porque era o que os jovens faziam quando voltavam para casa nas férias da faculdade. Lembro-me do emprego e do trem que precisei pegar durante oito semanas.

Eu gostaria de ser o tipo de romântico que se lembra o dia exato em que conheceu o amor da sua vida, mas eu não sabia se eu era algum tipo de romântico, afinal. Eu sabia, no entanto, que mais da metade do verão já havia se passado. Por algum motivo que poderia ser a presença do destino, eu sempre me sentava no banco em frente à porta de qualquer que fosse o vagão em que eu entrasse.

Eu não era bom em matemática, mas sabia que a probabilidade de conhecer a mulher que eu me casaria no trem era, no mínimo, improvável. Mas, de repente, lá estava ela: correndo até a porta do meu vagão, depois que todos já haviam entrado, a segundos de perder o trem. Saori caminhou até os fundos do vagão, como sempre fez em todas as vezes em que a vi depois disso; acho que aquele era o seu lugar, assim como o banco em frente à porta era o meu. Com seus cabelos molhados balançando às suas costas, deixou um rastro do perfume que eu senti pela primeira vez e do qual nunca me esquecerei. Ali, eu não sabia que ela seria tudo, mas eu soube que era algo.

Depois desse dia passei a viajar sempre no mesmo vagão onde tinha visão bem para a escada no final do corredor, era de lá que ela vinha quando estava atrasada. E mesmo que ela não entrasse no mesmo vagão que eu, eu ainda conseguia vê-la entrando no trem. E eu sabia que ela estava ali em algum lugar, indo para algum outro lugar que eu desconhecia.

Demoraram alguns dias para que nos encontrássemos dentro do vagão de novo, não que tivesse feito alguma diferença, já que a minha timidez impedia uma aproximação concreta. E não que ela tivesse conversado comigo também, de qualquer forma. E não que eu não tivesse ensaiado um milhão de vezes o que dizer. Mas para ser sincero, tê-la no mesmo vagão me deixava nervoso.

No entanto, era bom observá-la ali. Meu Deus! Isso soou assustador. Eu não era nenhum stalker ou algo do tipo, mas Saori tinha um perfil bem comum para a idade e época, não muito difícil de se delinear: taciturna, não parecia ser de muita conversa, sempre de fones de ouvido e um livro diferente cada vez em que eu a via.

Faltava só alguns poucos dias para o fim do verão quando ela se atrasou além do costume. O vagão estava lotado quando ela chegou ofegante e só tinha um lugar; que era ao meu lado. Como obra do destino, minha cabeça gritava.

Ela sequer me olhou ao se sentar e abrir o livro. Eu ensaiei vários assuntos que eu poderia iniciar, mas não tive coragem de dizer nenhum. Por Deus! Eu já era um adulto que já estava na faculdade. Eu precisava saber conversar com garotas.

Porém, assim foi como eu perdi a primeira oportunidade de conversar com Saori.

De qualquer forma, parecia óbvio que nada sairia como eu havia planejado. Afinal, como meus amigos diziam: já há um plano para cada um de nós. E o meu e de Saori era não nos encontrarmos mais pelo resto das minhas contadas oito semanas. Cada vez em que eu peguei o trem naquele verão, contava as paradas até chegar na sua; ela entrava no trem sempre duas estações depois da minha. Eu sempre tinha aquele frio na barriga e a expectativa de que aquele seria o dia em que a veria de novo, mas quanto mais perto do dia da minha partida eu me aproximava, mais desesperançoso eu ficava.

Engraçado como a memória funciona, pois quando voltei à Boston para um novo semestre na faculdade, eu praticamente me esqueci de Saori. Eu havia pensado tanto nela nas minhas últimas semanas na casa dos meus pais que me é até estranho lembrar, ou melhor, não me lembrar de ter pensado nela depois. Aliás, não era tão estranho, considerando que eu não era esse tipo de romântico.

Foram só nas férias de verão do ano seguinte em que eu me lembrei de que algum dia ela existiu. A ver entrando no trem logo nas primeiras semanas no meu trabalho temporário de todos os anos não me fez relembrar apenas de sua existência, mas também da forma que me senti quando a vi pela primeira vez. O questionamento que me fiz todos os dias depois desse foi: como eu pude não me lembrar dela? Eu nunca pensei que depois disso jamais a esqueceria.

Nesse dia, ela parou atrás das portas fechadas para recuperar o fôlego, exatamente como eu me lembrava que fazia, antes de olhar em volta e, ao parecer me reconhecer, caminhar em minha direção para se sentar ao meu lado. Ela parecia um pouco mais aborrecida do que de costume. Não demorou para tirar um livro da bolsa e retomar de onde estava lendo.

- O que você está lendo? - Lembro-me de ter perguntado isso em um momento súbito de coragem.

Todo mundo odeia ter a leitura interrompida por estranhos fazendo exatamente essa pergunta. Então me arrependo instantaneamente. De todas as coisas que eu poderia ter perguntado, eu escolhi a mais idiota de todas.

Saori desviou o olhar das páginas lentamente para me encarar, antes de fechar o livro e me mostrar a capa. Nervoso demais para realmente ler o título, eu provavelmente murmurei algo como “legal”. Então eu me calei depois disso. Não era possível que eu perderia outra oportunidade de conversar com ela. Você é um homem ou um saco de batatas?

- Eu sempre te vejo aqui no trem e sempre tive curiosidade de perguntar o que você está lendo. Não que eu fique te observando, é claro. - Eu disparo a falar. - Eu te observo aqui no trem de um modo não sinistro, sabe?

- Não tem a menor possibilidade de você dizer isso sem parecer muito sinistro. - Ela rebateu em um tom de riso para a minha surpresa.

- Desculpe. Eu não quero te assustar. Só estava curioso.

- Tudo bem.

- Você parece aborrecida hoje. Eu observei. De um jeito não sinistro, quero dizer.

Ela dá uma risada seguida de um suspiro.

- Só não estou num bom dia.

- Claro. Desculpe se fui indelicado.

- Tudo bem. É porque eu tinha esse projeto na universidade que fiquei o semestre inteiro fazendo e adiaram para o semestre que vem no último minuto.

Eu gosto de seu tom que oscila entre o jovial e o taciturno. Também posso observá-lo constantemente em sua expressão. É difícil de dizer se ela está realmente aborrecida ou só impaciente.

- Sinto muito. Isso é péssimo. Você ficou sabendo disso agora?

- Há algumas semanas. É só porque eu guardo rancor por muito tempo. - O tom usado em sua resposta foi para me fazer rir.

Seu comportamento combina com as roupas: all star, calças jeans e uma camisa de flanela vermelha aberta por cima de uma camiseta preta.

- Saori. - Ela sorri ao me encarar de lado.

- O-o quê?

- Meu nome. Saori.



Eu desperto assustado. Onde está Saori? Minha desorientação não dura mais que segundos, olho para o lado e como um lampejo me lembro de onde estou, lembro-me das coisas que perdi. Meu movimento brusco e inesperado faz com que a mulher sentada ao meu lado me olhe de testa franzida. Eu finjo não ter percebido enquanto aperto o botão para chamar a comissária.

- Pois não, senhor?

Eu precisava sair dali. Eu precisava descer. Alguém pode pousar esse avião, por favor?

- Vo-você pode me trazer uma água? - Eu falo com dificuldade, percebendo o quanto minha garganta está seca.

A comissária acena com a cabeça e sai sutilmente enquanto eu acredito murmurar um “obrigado”.

- Pesadelo?

Eu demoro alguns segundos para notar que a mulher ao meu lado fala comigo.

- O-o quê? - Ela solta um riso abafado e balança a cabeça diante da minha confusão.

- Eu sempre fico nervosa em aviões também. Quero dizer, como essas coisas voam? - Ela brinca. - Mas te admiro por conseguir dormir assim, porque eu não conseguiria mesmo se o voo fosse longo.

Eu balanço a cabeça instintivamente, não muito certo de que realmente ouvi o que ela disse.

- Por que você não toma algum remédio para dormir? - Eu pergunto por fim.

- Porque...

Eu não vejo a aproximação da comissária que parece ter surgido do nada ao me estender uma pequena garrafa de água.

- Obrigado.

Imediatamente destampo a garrafa e tento não parecer um selvagem ao beber quase toda a água como se eu estivesse andando no deserto há dias. Eu solto um suspiro e abro os olhos ao me sentir saciado. A mulher que divide o assento comigo está me olhando pacientemente.

- Desculpe. O que você dizia? - Eu tento de alguma forma reatar o fio quebrado da conversa.

- Eu dizia que se for para morrer no avião, que pelo menos eu esteja consciente e saiba o que está acontecendo.

Seu comentário é sério e sincero, e apesar disso, ou por causa disso, eu solto uma gargalhada. Percebo que esse comportamento talvez seja mais indelicado ainda, então volto a pedir desculpas. No entanto, sua risada me detém no meio do caminho. Fico um pouco desconcertado e, sem saber como agir, desvio o olhar para janela. O céu permanece azul, ainda estávamos acima das nuvens, o calor não me atinge.

- Está indo à Connecticut à negócios? - Ela pergunta após parecer ter me dado alguns minutos de silêncio para que eu pudesse me recompor.

Eu gosto de seu comportamento, leve e informal. Lembra-me imediatamente o de Saori. Seu olhar, que me encara de cima a baixo, é um pouco intimidador.

- Oh, não! - Eu respondo ao olhar para as minhas próprias roupas. - Estou indo visitar meus pais.

Explico-me, dizendo que apenas fui direto do trabalho para o aeroporto, enquanto, ainda envergonhado, afrouxo a minha gravata para tirá-la.

- E você? - Eu pergunto, por fim.

- Mesma coisa.

- Bem, você está muito mais com cara de quem está de férias do que eu. - Eu brinco e ela sorri.

Ficamos em silêncio imediatamente depois disso, eu imaginei que a conversa teria fim ali, afinal, éramos dois estranhos em um voo relativamente curto.

- E você está bem? - A mulher estranha me pergunta após ouvir o suspiro melancólico que deixo escapar.

- Sim. Não é nada demais. Acho que estou na crise da meia idade.

- Você não parece tão velho assim.

- Obrigado? Eu acho.

- Não, quero dizer, não parece estar na meia idade, sabe? Para estar em crise por tal. - Ela se explica rapidamente.

- Você me lembra alguém que conheci. - Falo sem conseguir me conter, observando suas expressões faciais confusas logo se amenizarem em um sorriso.

- Alguém de quem você gostava?

Sua pergunta desafiadora me deixa sem fôlego.

- Alguém que ainda amo.

Eu resolvo responder tão desafiador quanto, porque não há nada mais desafiador do que dizer a verdade para uma completa estranha.

- Então eu fico lisonjeada pelo elogio. - Ela me agradece como se não tivesse percebido a honestidade em meu olhar, embora eu soubesse que ali a minha alma fora despida.


🚂


Demorou outro verão para que aquele encontro com Saori no bar acontecesse.

Mesmo hoje, mais de dez anos depois, ainda sou capaz de relembrar nitidamente sua imagem naquele dia. Tenho dificuldades para me lembrar do bar, no entanto. Claro que, com esforço, consigo trazer o aspecto do local à minha mente; a madeira rústica da mesa que dava um ar sofisticado e intimista, onde Saori depositou delicadamente sua pequena bolsa ao se sentar, é a primeira coisa que ilustra minha memória. Com tempo suficiente relembro dos sons, do movimento e do agito, principalmente o do meu coração.

Também me recordo do sorriso de Saori, provavelmente porque ela estava sentada de frente para mim e seu rosto foi o que eu mais prestei atenção em toda a noite. Depois, lembro-me de ter observado cada detalhe. O momento se ganhou em detalhes. Suas mãos com dedos finos e compridos adornados de anéis em prata, o casaco jeans que sobrepunha uma camiseta branca e o batom cor-de-rosa que eu passei a detestar nos anos seguintes.

Tento me lembrar do que falamos a seguir. Eu provavelmente soltei algum elogio vazio como “você está linda.”, ela provavelmente sorriu e me agradeceu. O hábito de jogar para trás o cabelo em seu pescoço provavelmente estava presente. Seu perfume exalava toda vez que ela repetia esse gesto. Brega, eu sei. Mas eu não disse que o tempo havia me ensinado a não ser brega.

As pessoas passavam pela nossa mesa como sombras em um beco escuro. Um lampejo que tão rápido quanto aparecia, sumia, deixando-nos com os corações acelerados e sozinhos mais uma vez.

Naquela noite jogamos dardos em um pequeno alvo pregado na parede, cantamos juntos as músicas que tocavam. Depois, enquanto comíamos, brincávamos tentando adivinhar coisas sobre as pessoas nas mesas ao nosso redor.

- E aquele cara ali de blusa preta e o bigode esquisito? - Saori apontou sutilmente com a cabeça.

- Ele é policial. O bigode condena. - Eu respondo sem hesitar. - E a mulher com ele? - Pergunto. - Namorada? Ou são só amigos?

Saori os observa por alguns segundos. Ela era muito boa nesse jogo.

- Acho que estão em um encontro. Eles não parecem se conhecer muito bem e o cara está nervoso.

- Como a gente.

- Você está nervoso?

- Não mais. Sinto como se te conhecesse há anos.

- Mas estamos em um encontro. - Ela concluiu, como se soubesse exatamente o que eu queria dizer.

Naquela noite percebi o quanto nossa conversa era divertida e como nos dávamos bem. E como eu não me sentia um completo deslocado em sua presença. Aquele sentimento de estar no lugar certo na hora certa.

- Posso te perguntar uma coisa?

- Uh-hum. - Saori murmurou com a boca cheia.

- Qual é a do seu nome? - A pergunta a faz rir. - Quero dizer, você claramente não é asiática. Seus pais? Avós? - Ela negou com a cabeça.

- Minha mãe escolheu meu nome num desses sites famosos de nomes de bebês. - Saori gargalha antes de continuar. - Foi por causa do significado.

- E o que significa?

- Saori, a renovação da juventude.

- Soa bonito.

- Meu pai costumava dizer que estar perto da minha mãe era como ter a juventude renovada. Como quando você tem um dia difícil e sente como se tivesse envelhecido anos por causa daquilo... E chegar em casa para encontrar a minha mãe era como se, de repente, ele pudesse parar o tempo e viver de novo os dias em que eles se conheceram, sem muitas preocupações, sem muita responsabilidade. Minha mãe queria que eu significasse isso para eles.

Eu aposto que a mãe de Saori não sabia quão certa ela estaria em alguns anos. E que a filha significaria isso e muito mais para outras pessoas.

- Acho que foi por isso que entrei na faculdade de jornalismo. Cada história que você pode contar é um modo de renovar seu dia, cada história é algo novo, como quando somos jovens. Posso viver mais de uma história a cada dia.

- Saori, a jornalista.

Era por isso que ela era tão boa em dizer quem as pessoas pareciam ser. Ou como ela podia ver se estavam nervosos ou não apenas pelo comportamento. Ela apresentava informações. Ela ouvia as pessoas e transformava seus relatos em histórias.

- Bem, eu queria mesmo ser piloto de fórmula 1, mas jornalismo esportivo era, você sabe, a próxima melhor coisa.

Eu começo a rir.

- E você? O que queria ser quando era criança? - Ela me perguntou.

- Eu queria ser... um pássaro.

- Um pássaro? - Saori quase cospiu refrigerante em mim.

- Sim. Eu tive essa apresentação na escola, terceira série. Vesti amarelo, penas e tudo mais.

- Fofo. - Ela riu. - E o que aconteceu?

- Você quer saber o que aconteceu, por que eu não virei um pássaro?

- Isso é exatamente o que eu quero saber, sim.

- Bem, eu ainda estou tentando descobrir.



Lembro-me de quando Saori e eu viajamos de carro até o Canadá para assistir à uma das corridas de Fórmula 1, o ano era 2010.

- Vamos logo! Se não vamos perder o início da corrida!

Eu nunca soube muita coisa sobre Fórmula 1, mas eu corria pelo estacionamento até a entrada do Circuito Gilles Villeneuve como se a minha felicidade dependesse daquele momento. Como se, de repente, ver a corrida fosse tão importante para mim quanto eu sabia ser para Saori. Eu me lembro de tatear nos bolsos os ingressos que ela havia ganhado no trabalho enquanto pensava nisso.

Quando chegamos nos nossos lugares eu estava ofegante, mas Saori parecia ter apenas andado por todo o trajeto. A sua euforia, no entanto, era perceptível. Ela estava nas nuvens.

- Essa é a oitava ronda da temporada. É o mais próximo que o campeonato vai passar dos Estados Unidos! Eles deram 58 voltas no circuito anterior. Eu aposto que dessa vez passa de 60.

- E quem ficou em primeiro lugar?

- Hamilton. Ele começou a temporada bem, mas foi péssimo na Espanha, terminou em décimo quarto; mesmo assim conseguiu se classificar. Então depois deu uma recuperada na França, ficando em quinto e na última corrida foi vencedor. Se ele continuar assim, eu aposto que ganha a temporada.

- E ele é da Ferrari? - Pergunto incerto.

- Não, amor! O Hamilton é da McLaren e eles usam motor Mercedes! - Saori sequer me olhava ao falar, vidrada demais nos carros em movimento no circuito.

- Mas os motores Ferrari não são os melhores?

- Não necessariamente. Nesse ano, por mais incrível que pareça, os construtores da Renault estão à frente na competição.

Eu gostava de ouvi-la falando sobre isso, mesmo que fosse tudo muito confuso para mim. Acho que era apenas um dos efeitos de se estar apaixonado. Como quando você anda de encontro a pessoa e ela parece reluzir, bem ali na sua frente.

- Vou comprar cerveja. Você quer?

- Uh-hum. - Saori murmurou ainda sem me olhar e eu sorri. - Mas não compra nada de comer. As comidas desses lugares são horríveis.

Eu a encaro por alguns segundos absorvendo sua advertência, um sorriso de lado preenche meu rosto.

- Você deveria se casar comigo.

Eu me lembro de como isso soou insano quando eu disse em voz alta, mas era tudo o que eu conseguia pensar naquele momento. Eu não planejava a pedir em casamento ali, daquela forma, mas foi como aconteceu.

- O quê? - Ela me lançou um olhar arregalado.

- Você. - Aponto para ela. - Deveria se casar comigo. - Repeti pausadamente, um pouco mais sério dessa vez enquanto apontava para mim.

- Para de graça! - Ela deu um empurrão em um dos meus ombros.

- Estou falando sério. Estamos juntos há quanto tempo? Três anos?

- Quase quatro.

- Quase quatro. - Repeti. - Eu te amo, Saori. Eu quero te ouvir falar de jornalismo esportivo e te ver tentando me explicar sobre Fórmula 1 pelo resto da minha vida. Eu quero ver esse brilho no seu olhar que encara com intensidade as coisas que ama. Quero ver esse sorriso no seu rosto enquanto fala sobre essas mesmas coisas. Eu quero ter zero da sua atenção enquanto você a direciona para essas coisas, porque eu te admiro mais quando você não percebe.

- Você está mesmo falando sério... - Saori estava perplexa.

- Não era assim que eu queria te pedir em casamento, eu não planejei nada disso. Eu te peço desculpas, porque você merece muito mais do que média dúzia de palavras numa arquibancada de um circuito. Mas eu só não posso mais guardar para mim o quanto eu desejo isso do fundo do meu coração. Você quer se casar comigo?

- Você está brincando? - Seus olhos marejaram enquanto ela falava. - Eu não poderia sonhar com nada mais perfeito do que um pedido de casamento aqui.

- Isso é um sim?

- Sim. - Seu sorriso me fez sorrir também. - É claro que sim.

Eu a envolvi em um abraço choroso. Meu estômago se revirava como se tivesse mil borboletas dançando dentro. Meu coração batia tão forte que chegava a doer no meu peito. Eu senti uma gama vasta e intensa de emoções, as quais não consigo descrever com precisão. Eu só sei que é a melhor escolha que eu fiz na minha vida.


🚂


Foi estranho sair da casa dos meus pais. Achamos saber sobre tudo quando se é jovem, queremos crescer e voar para longe, seguir nosso próprio caminho... Até realmente ver que não tem ninguém mais para guiar seus passos. Quando me vi em uma cidade completamente diferente, longe dos meus pais e com uma mulher que eu ainda estava conhecendo - porque nunca conhecemos completamente ninguém, mesmo depois que nos casamos com aquela pessoa -, eu percebi como eu não sabia absolutamente nada da vida e como eu estava assustado por não “poder” contar com meus pais para confirmar as minhas grandes decisões.

- Você está ansioso para ver seus pais?

A pergunta da mulher estranha sentada ao meu lado no voo me faz sair de uma espécie de transe.

- Eu sempre tenho bons momentos quando volto para casa. O meu aniversário é em alguns dias, eu acho que estão planejando uma festa surpresa, como se eu tivesse dez anos de novo. Mas é aquilo que dizem, a vida começa mesmo aos quarenta. Então acho que a diversão vai finalmente começar. - Brinco, mas sei que minha voz soa mais melancólica do que divertida.

- Okay. Você definitivamente está em algum tipo de crise de meia idade precoce. - A mulher diz assustada, o que me faz rir.

- Eu era muito bom em ser jovem. - Começo a dizer, um pouco mais sério dessa vez. - Agora nem isso sou mais. Cometi muitos erros. E agora, para ser honesto, tenho medo de ficar velho. Tenho medo de perder mais pessoas que amo. Meus pais, por exemplo.

- Isso faz sentido. Quanto mais o tempo passa, mais perdemos pessoas a quem amamos. - Ela responde também séria.

- Você fala como se soubesse bem do que está falando. - Minha resposta faz com que ela abaixe a cabeça, mas eu não peço desculpas dessa vez. Sinto que já passamos por essa barreira.

- Eu perdi o meu pai no ano passado. É a primeira vez que vou para casa para só encontrar minha mãe lá.

- Sinto muito. Eu estou aqui me queixando de coisas sem perceber o quão sortudo sou pelo que ainda tenho.

- Tudo bem. Eu entendo. Quando somos jovens isso nunca passa pela nossa cabeça, não é? E um dia você acorda e está lá: esse medo de perder tudo.

Eu fico surpreso com o quanto parecemos nos identificar. Como o quão parecidos são nossos sentimentos... Nossos anseios.

- E cada vez que você volta para casa é quase como voltar no tempo, como se você pudesse ser jovem e viver tudo aquilo de novo. - Eu completo. - Todos aqueles sentimentos inconsequentes, todas as coisas idiotas que fazemos e nos arrependemos, porque éramos jovens e não sabíamos de nada.

Agora eu sei um pouco mais. Por mais que queiramos fazer o tempo parar, por mais que queiramos descer desse trem que está em constante movimento, eu sei que ele não vai parar, nunca vai parar... Só quando for o fim.

- Eu não me arrependo de nada do que fiz quando era jovem. - Sua resposta me surpreende.

- Jura?

- Sim. Qual é o sentido de me arrepender do que eu já fiz? Não podemos voltar atrás. Então eu aceito tudo como um aprendizado, em vez de ficar desejando ter feito algo diferente.

- Mas você faria algo diferente? Digo, se realmente pudesse voltar atrás? - Eu faço essa pergunta para ela, mas a resposta que busco está dentro do meu coração.



A esse ponto, eu tenho medo de reviver as lembranças baseadas apenas na minha memória. Isso porque imagino que talvez acabe esquecendo detalhes por causa de uma mente falha. Não quero ser injusto à Saori. Mas preciso relatar a minha verdade.

- Saori, você não está entendendo a situação.

- Eu não quero saber! Nós tínhamos um compromisso.

- EU SEI!

Eu posso não confiar 100% na minha memória, mas eu nunca vou me esquecer da forma que gritei com Saori naquele dia.

- Mas enquanto você brinca de detetive para descobrir quem é o novo solteiro do basquete, EU trabalho de verdade. Então me desculpe se eu furei o nosso compromisso porque eu estava tentando nos sustentar!

A expressão de choque no rosto de Saori é outra coisa da qual nunca me esquecerei.

- Eu tenho tarefas a cumprir! Clientes para atender. Eu te liguei para avisar que a cliente pediu para remarcar o horário da visita técnica! Eu não tenho culpa se você não atendeu!

- E por que você não me atendeu quando retornei?

- Eu estava ocupado! Eu não poderia simplesmente largar tudo e ir embora só porque combinamos de jantar e você não atende o telefone.

E também me lembro de como falei e joguei coisas na cara de Saori implacavelmente.

- Não só combinamos de jantar! - Saori replicou furiosa. - É o nosso aniversário de casamento! Como você quer ter filhos se não consegue cumprir um simples compromisso? E quando você precisar buscá-los na escola? Levá-los ao médico? Vai me dizer que não poderia largar suas tarefas também?

- Ah, não! Não tente reverter a situação, Saori! Você é quem sempre disse que queria ter filhos e agora mudou de ideia!

- Eu não mudei de ideia! Só claramente não é o melhor momento.

- Porque você só pensa no seu trabalho!

- Agora eu tenho um trabalho? - A gargalhada irônica de Saori me deixou assustado. - Foi você quem não estava aqui por causa de trabalho, você!

- Saori, eu já expliquei! Eu não posso perder a venda dessa casa! Nós temos contas a pagar e o que você faz é muito instável.

- Você sempre soube o que eu queria fazer! Se casou comigo sabendo disso.

- Bem, eu-eu...

- Por que se casou comigo então?

Quando você vive bons momentos e eles acabam, pode se sentir triste por isso. É normal. No entanto, se você não os aproveita como deveria, pode carregar uma sensação de arrependimento pelo tempo que passou e não voltará mais, pelos momentos que experimentou e nunca poderá vivê-los daquela forma novamente. Eu vivi intensamente todos esses anos com Saori. Os bons momentos e também os ruins. Mas ainda pior do que se arrepender por não dar valor àquele momento que não é eterno, é se arrepender por ter feito e dito coisas que você sabia que não deveria.

A questão é que Todo Mundo diz que faria o passado diferente se soubesse das coisas que sabem naquele momento. Mas será que realmente mudaríamos alguma coisa?

Eu sabia o porquê eu havia me casado com Saori, mas não pude responder quando estávamos ali, cara a cara, na prova de fogo. Eu havia me casado com Saori porque eu a amava. Mas a pergunta que rondava a minha mente desde a nossa discussão era: Por que eu a amava? Perceber que eu precisava refletir sobre as coisas que me levaram a amá-la me deixaram muito mal comigo mesmo. Eu estava ferido ao ponto de precisar resgatar todas as coisas boas que eu havia visto nela? Era um trabalho árduo recuperar tudo aquilo que parecíamos ter perdido.

Alguns dias depois dessa discussão eu cheguei em casa relativamente dentro do horário e foi o mais cedo que eu havia chegado nos últimos dias.

- Oi. - Eu falei assim que passei pela porta.

- Oi. - Saori desviou o olhar rapidamente do computador. - Como foi o trabalho?

- Tudo bem. E o seu? Ainda está trabalhando?

- Sim.

- Vou fazer algo para comermos.

- Ok.

Eu fiquei parado por alguns segundos em frente à mesa em que Saori estava sentada, à espera de uma resposta que passasse além de um murmurado “ok”. O que eu queria? Que ela me recebesse com alegria e abraços? Como quando éramos recém casados?




Eu passei pela porta e encontrei Saori no computador, onde era comum encontrá-la no horário em que eu chegava em casa. Saori sorriu antes de fechar a tampa da tela e se levantar para me dar um abraço.

- Oi, amor! - Seus braços envolveram meu pescoço e eu inalei o cheiro já mais do que reconfortante de seu perfume.

- Oi, amor! - Eu repeti enquanto afagava seus cabelos.

- Tudo bem?

- Você está bem? - Devolvo a pergunta.

- Sim, claro. Por quê? Está tudo bem? - Ela repetiu a pergunta anterior, soando mais apreensiva.

Fiquei calado por alguns segundos, segurando um suspense. Eu havia acabado de me formar em vendas e havia começado no novo trabalho há algumas semanas. Eu havia sido designado para ser corretor em uma imobiliária.

- Eu vendi a minha primeira casa! - Eu quase gritei no ouvido de Saori ao revelar a informação.

- Mentira! - Eu comecei a rir quando ela gritou de volta.

- Verdade! - Rebati diante da sua descrença.

- Meu Deus, isso é ótimo! Eu estou tão orgulhosa de você! Eu sabia que você não ia demorar a se dar bem no novo emprego. Você merece muito! Sabia que ia conseguir!

- Nós conseguimos! Obrigado. Eu não sei o que faria sem você. - Minha resposta a fez sorrir ainda mais.

- Precisamos comemorar! Vamos jantar! O que você acha que podemos cozinhar?

- Esqueça cozinhar! Vamos jantar fora, Saori. Você escolhe.




Eu me perguntava em que ponto deixamos isso para trás. Essa felicidade simplista. Esse carinho e admiração um pelo outro. Eu me perguntava até quando agiríamos apenas como uma sombra de quem fomos um dia. Será que algum dia seríamos capazes de voltar a ser quem éramos?

Naquela noite, enquanto fazíamos a refeição em silêncio como dois estranhos, eu me recordava de mais momentos felizes como aquele.

- E você fez muitas visitas hoje? - Saori quebrou o silêncio como se pudesse ler a minha mente.

- Só duas. - Deixei o garfo no prato por um momento enquanto encarava Saori. - Gastei a maior parte do dia fechando um outro contrato.

- Com aquela mulher que alterou o horário da visita? - Ela também me encarou ao perguntar.

- Não.

- Espero que tenha valido a pena perder nosso jantar de aniversário pela visita dela.

Eu desviei o olhar para o meu braço e respirei fundo, engasgado com palavras que eu não deveria dizer. Eu era orgulhoso demais para perceber o quão terrivelmente errado eu estava.

- Mas eu acho que essa semana fechamos negócio. - Limitei-me a dizer.

Quando deitei a cabeça no travesseiro ao lado de Saori naquela noite, eu não consegui dormir, fiquei encarando o teto enquanto listava as coisas pelas quais eu amava Saori.

Eu fui trabalhar no outro dia e no dia seguinte e no outro também com a mesma lista mental. A esse ponto já estava arrependido pelo que havia dito, mas simplesmente não sabia como me reaproximar, eu tinha vergonha. Tudo isso só nos afastou ainda mais, enquanto nos levávamos à uma série de discussões sem fim. Sempre que conversávamos, acabávamos discutindo.

- Você pode abaixar o som da TV, por favor? Estou tentando trabalhar.

Eram quase dez da noite quando escutei Saori reclamar. Era sempre assim.

“Será que você pode apagar a luz quando passar?”
“O que custa para você jogar sua roupa suja no cesto?”
“Não deixe a toalha molhada na cama”

De repente parecia que não sabíamos mais conviver sob o mesmo teto. E eu não fazia nada para melhorar isso. Hoje reconheço que tudo poderia ser evitado se naquela época eu soubesse que os nossos problemas não eram realmente problemas.

- Não precisa desligar. Eu só pedi para abaixar. - Saori gritou de novo quando eu desliguei a TV e joguei o controle com força de volta no sofá.

- Eu só queria descansar um pouco em frente à TV. Eu trabalhei o dia inteiro!

- Eu também estou trabalhando.

- Isso nem são horas de trabalhar mais. - Eu rebati só pelo gosto de ir contra.

- Irônico vindo de você.

- Eu vou dormir. - Dei as costas e estava prestes a sair andando.

- Ótimo, boa noite.

- Boa noite. - Respondi entredentes.

E de repente eu estava tão bravo com Saori... Como se ela fosse a pessoa mais insuportável do mundo e toda a lista que eu havia mentalizado durante dias simplesmente se esvaia.

Depois de me revirar na cama por não sei quanto tempo, decidi me levantar, apenas para encontrar Saori ainda em frente ao computador. Eu estava tão cansado de brigar. Era muito difícil admitir estar errado.

Eu me sentei ao seu lado e dei uma espiada na tela.

- Me conta o que você está fazendo? - Eu quase sorri com seu olhar assustado.

- Tem certeza que quer saber do caso amoroso da nova celebridade do basquete? - Apesar da cutucada, eu senti que era brincadeira.

- Quero. - Acenei com a cabeça. - Eu sei que isso não é o que você realmente faz. - Eu puxei a cadeira para mais perto de Saori e tomei seu rosto entre minhas mãos. - Me perdoe por ter dito isso. Eu estava nervoso. Eu não quero que fiquemos assim. Eu amo te ouvir falar sobre seu trabalho, eu não sei em que momento eu me esqueci disso.

Eu me assusto com o abraço inesperado de Saori.

- Obrigada.

- Me perdoe.

Eu queria ter conseguido manter a promessa tácita que fizemos ali. Queria que só minha força de vontade tivesse bastado para isso. Eu queria realmente que não tivesse havido um motivo maior para nos unir novamente.

- Vem, vamos para a cama! - Eu chamei Saori estendendo a mão para ela, que a pegou um pouco hesitante.

Nos deitamos na cama de frente um para o outro e conversamos por horas. Como se não tivéssemos nos visto durante todo esse tempo.

- ...E por isso eu acho que poderíamos ir para San Francisco para um dos jogos de NBA, o que você acha?

- Umm. Eu só preciso acertar tudo antes no meu trabalho. - Eu bocejei.

- Desculpe. Você está com sono e eu aqui falando sem parar.

- Não! - Sentei-me na cama. - Eu estou ouvindo. Vamos para San Francisco, sim. Você já tem a data? Só me avise com um pouco de antecedência para não termos imprevistos.

Saori rolou na cama, se aproximando o bastante para colocar uma perna em cima das minhas.

- Senti falta do meu marido.

Saori acariciou levemente minha bochecha e queixo e eu fechei os olhos desfrutando do seu toque. Então senti seus lábios tocando os meus, para um beijo doce e cheio de carinho. Eu a abracei e nos girei na cama, ficando por cima dela enquanto ainda nos beijávamos. Naquela noite nos amamos e eu tinha mais um item para acrescentar na lista de tudo o que eu amava em Saori.



Saori e eu fomos para San Francisco em um fim de semana, foi quase como ter uma segunda lua de mel. Eu achei que realmente conseguiríamos nos manter bem daquela forma.

Lembro-me do sábado pela manhã enquanto estávamos no quarto do hotel nos arrumando para descer para o café da manhã.

- Eu fiz uma programação de lugares que poderíamos visitar. - Saori disse e me entregou um papel. - Dê uma olhada.

- Museu do Caple Car. - Li um dos destinos em voz alta. - Parece divertido.

- Vamos andar de bondinho! - Eu sorri com a excitação de Saori.

Tomamos café enquanto conversávamos sobre o nosso roteiro de passeios. Eu estava bastante animado para visitar todos os lugares que Saori havia escolhido.

- Você é muito boa em fazer roteiros de viagens. - Elogiei.

- Obrigada. Então vamos?

Concordei com a cabeça e, de mãos dadas, saímos caminhando pelas ruas.

Decidimos não pegar o Caple Car nos pontos inicial ou final porque havíamos recebido a dica de um amigo de que esses pontos sempre tinham filas, então o pegamos na rua Lombard enquanto subia pela sinuosa ladeira.

Dizem que é impossível ir até San Francisco e não andar de Caple Car; os bondinhos são famosos por aparecer em cenários de vários filmes. O museu em si era bem pequeno, com ajuda de um guia que contava os principais fatos históricos do lugar, tivemos uma aula sobre os primeiros modelos de bonde, o funcionamento manual de cada um e como esses bondes serviram bem a população que precisava subir e descer as gigantes ladeiras de San Francisco.

- Em 1906, antes do grande incêndio, haviam tantos bondes que até mesmo foram coloridos em diversos tons para demarcar as linhas. - O guia falava. - O terremoto nos atingiu antes do nascer do sol, mas ainda pela manhã os funcionários da época já sabiam que o fogo causado pelo terremoto poderia chegar até o bairro. Houve uma grande mobilização para levar todos os bondes para a linha final.

- Quão incrível é estarmos aqui ouvindo essa história mais de cem anos depois? - Saori sussurrou para mim.

- Eventualmente, nem mesmo o lugar mais distante foi poupado pelo incêndio, o qual durou dias e queimou todas as instalações de trânsito ao norte. A cidade ficou marcada pelos efeitos duradouros desse desastre. - O guia continuou falando.

- Eu acho que seu espírito jornalístico não te deixaria vir até San Francisco sem visitar pontos históricos relacionados ao esporte. - Respondi e dei uma olhada no relógio. - Acha que já devemos ir?

Saori concordou com a cabeça. Como já estávamos ao lado do Chinatown, caminhamos pela rua principal vendo as lojas e tirando fotos.

Quando chegamos na primeira esquina olhei por cima do meu ombro, observando as coisas que deixamos para trás. O que mais ressalta aos olhos são as muitas lanternas em formatos de bolas vermelhas com detalhes dourados penduradas em fios ligados de uma construção a outra. Bem acima das nossas cabeças, há um prédio com estátuas de chineses, no qual as paredes estavam decoradas com pinturas de pessoas e animais. Lembro-me de ficar curioso se aquilo tudo se tratava de um retrato de algum imperador.

Volto a olhar para frente, mais do mesmo; mas de alguma forma, diferente. Dou alguns passos e toco o poste que está na minha lateral. Com uma rápida olhada em volta, percebo que os postes não são como os que costumamos ver em outros bairros; são decorados, assim como o resto das ruas. Observo o verde-água recém pintado na extensão do poste. Nele, há uma placa indicando que há um estacionamento na conversão à direita. Há também uma pequena pichação nessa placa. Pergunto-me o que aquilo pode significar e por que alguém escreveria aquilo bem ali.

- Aqui, faça uma pose em frente ao poste! - Saori pediu, tirando-me daquele devaneio em um segundo.

Eu me viro de costas para o poste e abaixo os meus braços na lateral do corpo, enquanto sinto meu olhar se perder na direção da câmera do celular de Saori.

- Agora vamos tirar uma selfie. - Ela se aproximou de mim e me entregou o celular.

- Ah, não, Saori! Somos muito velhos para esse negócio de selfie.

Lembro-me de quando estava na universidade e tínhamos celulares minúsculos e cheios de botões que serviam unicamente para fazer ligações. De como o computador de meu pai ocupava uma mesa e a tela era tão gorda que não cabia nos meus braços de adolescente. Fiquei perturbado ao constatar que tudo aquilo havia ficado a quase uma década atrás.

- Fale por si próprio. - Saori rebateu rindo. - Eu sou jovem. E moderna. - Piscou para mim. - Agora vai, tira essa foto logo.

Eu sorri também, levantei o celular antes de dar um beijo na bochecha de Saori e registrar aquele momento.

- Aww! Ficou tão fofo! - Ela comentou quando eu lhe entreguei o celular e eu fiz uma careta ao observar os até então poucos fios brancos na minha barba.

- Você está linda. - Eu a abracei de lado e depositei um beijo em sua têmpora.

Saori encostou o queixo na altura do meu tórax e sorriu.

- Eu amo você.

- Deus sabe como eu te amo mais do que tudo.

- Vamos? - Saori pediu sorrindo depois de me soltar. - Eu estou começando a ficar com fome.

Eu concordei com a cabeça enquanto tirava meu próprio celular do bolso para chamar um uber. Dali, fomos até o parque Golden Gate procurar por algum lugar para almoçar.

- Procurar? - Saori questionou quando descemos na entrada do parque. - Eu selecionei alguns lugares temáticos e só precisamos escolher.

- Você pensa em tudo, não é mesmo? - Eu respondi dando-lhe um suave beijo na bochecha.

Eu particularmente amei conhecer a arquitetura do Chinatown, mas eu tenho certeza que a melhor parte para Saori foi o restaurante temático esportivo que conhecemos.

- ‘Tá afim de uma comida mexicana? - Ela perguntou enquanto olhava em um papel os nomes com endereços dos lugares que ela havia selecionado.

- Claro. - Dei de ombros, não me importando muito com onde ou o que comeríamos.

Demos a volta no quarteirão e andamos alguns metros até chegar ao lugar. O restaurante não passava de uma pequena loja com uma fachada desbotada.

- Tem certeza que quer comer aqui? - Eu perguntei. - Não quer ir para algum lugar que seja referência turística?

Saori me olhou com uma expressão engraçada e me estendeu a mão, a qual peguei e me deixei se puxado para dentro daquele mundo.


🚂


“Mas você faria algo diferente? Digo, se realmente pudesse voltar atrás?”

“Por quê? Você faria algo diferente se pudesse?”


- Bom dia, amor! - Eu cumprimentei Saori quando ela apareceu na sala de jantar. - Eu fiz café. - Eu me sentei à mesa e servi uma xícara para ela e em seguida uma para mim.

Eu observei Saori por alguns segundos, enquanto ela se sentava na cadeira ao meu lado e tomava a xícara em mãos.

- Que cara é essa? - Eu pergunto por fim.

Ela finalmente me olha nos olhos e eu tento detectar o problema. Na noite anterior havíamos ido dormir sem nenhum problema, mas mesmo assim me peguei pensando se eu tinha feito algo que pudesse a chatear.

Depois de um longo suspiro, ela respondeu:

- Minha menstruação desceu hoje.

Eu fiquei sem reação por um momento.

- Oh!

- Oh? Eu parei com o remédio já faz meses. Isso não está certo.

- Saori... Isso deve-isso deve ser normal. Afinal, não tem tanto tempo que você está tentando engravidar.

- Harper me disse que parou de tomar o remédio e engravidou no mês seguinte.

Eu me calei, sem saber como argumentar contra isso.

- Ta-talvez eu tenha algum problema. - Saori hesitou ao verbalizar seus pensamentos.

- Você tem que parar de escutar suas amigas.

- E você quer que eu faça o quê? Isso é minha culpa! Se tivéssemos tido filhos quando nos casamos, como todo mundo...

- Concordamos que você estabeleceria sua carreira primeiro.

- E nem isso eu consegui ainda.

- Então! - Afirmei. - Talvez ainda não seja a hora.

- Eu já tenho cabelos brancos! - Saori aumentou o tom de voz.

- Onde? - Eu tentei segurar o riso.

- Aqui! - Saori se levantou da cadeira e aproximou a cabeça bem próximo do meu rosto, apontando com o dedo alguns fios brancos no topo da sua cabeça. - Olha!

- Sua mãe também teve cabelos brancos aos trinta e poucos.

- O que você quer dizer com isso?

- Que talvez seja hereditário ter cabelos brancos. - Saori torceu o rosto em uma careta. - Quero dizer que você ainda é jovem! Ou vai ver eu sou o problema.

- Como você poderia ser o problema?

- Talvez você não possa engravidar por minha causa.

- Do que você está falando? Isso não faz o menor sentido!

- Faz sim, Saori. Faz todo o sentido. Se realmente há algum problema que não te faça engravidar, então há 50% de chances de ser minha culpa.

Enquanto eu falava, Saori balançava a cabeça, negando calada, como se o que eu dissesse fosse o maior absurdo que ela já tinha ouvido.

Eu não achava que eu tinha algum problema de fertilidade, tampouco achava que ela tinha. Eu só estava achando tudo aquilo uma grande tempestade em copo d’água e queria que ela parasse de se preocupar com isso.

- Olha, eu posso marcar um médico para ver se está tudo bem comigo. - Eu sugeri.

- Não... - Saori tentou me interromper.

- ...Porque se for culpa minha nós já saberemos.

- Não! - Gritou. - Quer parar com isso? - Saori se levantou da mesa, irritadiça.

- O-o quê? - Eu perguntei confuso e Saori suspirou.

- Quer parar de fazer tudo ser sobre você?

Estupefato, encarei Saori com a boca entreaberta, como se todo o meu conhecimento linguístico tivesse se esvaído do meu cérebro.

- Olha... Precisamos conversar. - Saori voltou a se sentar ao meu lado.

Eu fiquei a encarando enquanto esperava que ela criasse coragem para continuar.

- Eu acho que... Eu quero! - Se corrigiu. - O divórcio.

“O QUÊ?”, era o que eu queria ter gritado. De onde aquilo havia surgido? Como ela simplesmente dizia que queria se separar assim?

Eu não podia... Não! Eu não conseguia acreditar nisso.

Eu me levantei da mesa bruscamente, agarrei meu casaco que estava no braço de outra cadeira e busquei pela chave do carro no porta-chaves.

- Eu vou sair. - Anunciei antes de bater a porta.

No caminho até o carro ainda pude ouvir Saori me gritando, me perguntando aonde eu iria. Mas eu não respondi. Eu não sabia.

Eu não conseguia raciocinar direito! Tudo o que eu não queria era que voltássemos a brigar pelos mesmos motivos de sempre. Eu só queria parar de fazer ser tudo sobre mim. Eu só queria que pudéssemos conversar sem pensar nessas possibilidades absurdas. Divórcio? Eu não podia acreditar.

Eu só queria espairecer, por isso apenas sai dirigindo sem saber muito bem para onde eu iria. Eu estava em uma estrada não muito longe de casa, mas que rumava para tão longe quanto eu poderia me lembrar. Eu não sabia que horas eram, mas o sol refletia tão forte contra o para-brisas que era capaz de me cegar.

Eu não queria encarar Saori, não queria ter que lidar com o nosso casamento que desmoronava. Não queria lidar com o fato de que sabia que não seriam filhos que nos fariam voltar a ser o que éramos antes. Não queria acreditar que talvez nada nunca nos faria voltar a ser quem éramos, mesmo com todos os esforços dos últimos meses. Não queria aceitar que o divórcio poderia ser a solução. Não! Não era uma possibilidade.

Eu abri um pouco a janela do meu lado, em uma falha tentativa de respirar ar puro, pois estava com a sensação de quase me sentir sufocado. Mas o que me sufocava era o meu pensamento acelerado, era a ideia de ter seguido por um caminho sem voltas, era a ideia de ter feito uma escolha errada, era a ideia de não ter como parar... Eu só queria descer. Alguém pode parar esse carro, por favor? E então eu... eu escutei um barulho altíssimo seguido de um impacto.

- Merda! - Murmurei para mim mesmo vendo o estrago que eu havia feito no carro da frente.

O semáforo havia fechado e eu não percebi.

- Era só isso o que me faltava. Exatamente isso. - Esbravejei enquanto manobrava o carro até o acostamento.

Eu não estava com nem um pouco de paciência para lidar com aquela merda. E eu senti que poderia explodir a qualquer momento. A motorista que estava na minha frente caminhou até a minha janela e eu já havia me preparado para uma briga.

- Olha... - Eu comecei. - Eu vou te passar o cartão do meu seguro para resolver isso, ok? - Eu tinha um tom passivo-agressivo e sequer havia levantado o olhar para ver melhor o rosto da pessoa.

- Dia ruim? - Seu tom de voz foi simpático e me desarmou.

- Desculpe. Eu não estou em um bom dia. - Com o rosto entre as mãos, suspirei.

- Tudo bem. Acontece com todo mundo.

Eu fico tão surpreendido com a compreensão em sua voz, que levanto a cabeça para olhá-la pela primeira vez.

- Obrigado. E me desculpe mais uma vez por bater em seu carro.

Como num filme de Harry Potter, eu sinto minha cabeça ser violentamente puxada para fora do líquido que Dumbledore usa para acessar memórias, e então eu estou de volta ao momento real, no qual estou sentado em uma poltrona de um avião no ar.

Mas é claro!!! Como não percebi antes?!

- Eu te conheço! - Eu falo com a voz esganiçada enquanto aponto para a mulher sentada ao meu lado naquele interminável voo. - O seu tom de voz amigável não mudou nada em todos esses anos! Eu deveria ter reconhecido.

A mulher, que agora já não me era tão entranha, sorri antes de responder:

- Eu também me lembro de você.

- Eu bati no seu carro.

- Bateu. - Confirma.

- Me desculpe!

- Tudo bem. - Ela balança a mão como se não fosse nada. - Eu nem tenho mais aquele carro mesmo.

- Me desculpe por não te reconhecer. - Repito.

- Tudo bem. - O mesmo tom de voz de quando eu pedi desculpas por bater em seu carro, tantos anos antes. - Já faz tantos anos.

Eu estava pensando a mesma coisa.

- Agora que já não somos mais tão estranhos, você pode me contar quem é a pessoa que você ainda ama?

Eu a encarei por alguns segundos sem reação. Ela realmente tinha prestado atenção no que eu havia falado!

- Você parece arrependido por algo. É por isso que você ainda a ama com uma melancolia em seu olhar?

Tinha algo em seu tom de voz... Algo que não me deixava sentir como se ela estivesse sendo invasiva, por mais que parecesse exatamente isso. Algo que fazia com que parecesse que ela era a pessoa mais legal do universo e você seria um otário se não respondesse exatamente o que ela queria saber.

E por isso eu mergulhei, mergulhei e mergulhei bem fundo nas minhas memórias, tão fundo que sequer percebi quando comecei a contar em voz alta.

- Eu não me lembro que horas cheguei em casa naquele dia do acidente, eu sei que já era bem tarde, porque gastamos muitas horas resolvendo todas as burocracias de quando se bate um carro nos Estados Unidos: chamar a polícia, fazer o registro da ocorrência, acionar o seguro, trocar contatos e documentos...

“Eu até mesmo fui capaz de me esquecer de tudo o que havia acontecido comigo e Saori naquele dia. Eu me esqueci da discussão idiota, da minha raiva desnecessária, da minha falta de paciência. Eu me esqueci de tudo quando abri a porta e a encontrei caída no chão.”

- Saori! Meu amor! - Eu corri caindo ajoelhado ao seu lado. - Saori? - Eu gritava enquanto tentava tirar os fios de cabelo de seu rosto.

Em completo desespero tentei sentir seu pulso, não muito certo de que sabia como fazer aquilo, por mais que houvesse visto milhares de vezes nos filmes. Eu a peguei no colo e corri de volta para o carro batido e corri mais ainda até o hospital.

Eu gritava na recepção, gritei tanto até perder a voz, e ver a quantidade de médicos e enfermeiros que apareceram para acudir-nos me deixou ainda mais desesperado.

- Tragam uma maca! - Eu ouvi alguém gritar.

- Senhor, por favor, fique calmo. - Outra pessoa falava comigo.

Todas as vozes faziam ecos na minha cabeça, como se eu as estivesse ouvindo bem de longe, em segundo plano.

- O que aconteceu? Você pode nos dizer o que aconteceu? - Eu ouvia alguém repetindo isso enquanto me sentavam em uma cadeira.

- E-e-eu che-cheguei e ela estava-estava caída no chão. - Eu balbuciava as palavras, sem conseguir realmente focar no que eu estava dizendo. - Eu não se-sei o que aconteceu.

- Tudo bem, senhor. Se acalme. Já estamos cuidando dela.

- Ela está viva? - Eu encarei o homem de branco a minha frente com um olhar quase doentio. - Me diz que ela está bem, por favor!

Na minha cabeça só se passava a cena repetida de mim saindo de casa enquanto Saori me gritava ao fundo. Eu nunca desejei tanto ser capaz de voltar atrás e não ter a deixado sozinha naquele dia. Era tudo minha culpa, se eu estivesse em casa nada daquilo teria acontecido... E lá estava eu de novo fazendo TUDO ser sobre mim!

Por quanto tempo ela ficou deitada inconsciente naquele chão frio?

- Estamos cuidando dela, senhor. Você é o que dela, pode me dizer? Ela é sua esposa?

Eu balancei a cabeça confirmando.

- Certo. Você pode nos dar algum documento de identificação?

Confirmei novamente com a cabeça.

Eu realmente não me lembro de ter dado os meus documentos ou os de Saori, mas isso é algo que eu provavelmente fiz, porque quando o médico foi falar comigo algum tempo depois ele me chamou pelo meu nome.

Mas eu não me importei com aquilo na hora, eu só queria saber se estava tudo bem com a mulher que eu amava.

- Sim. - Foi o que o médico respondeu. - Ela está estável.

- O que aconteceu com ela? - Eu perguntei quando consegui reunir as palavras.

- Bem, eu posso te fazer algumas perguntas? - O médico se levantou de trás da sua mesa e foi checar se a porta do local em que estávamos estava mesmo fechada.

Eu sequer havia percebido que não estava mais na sala de espera.

- Isso já havia acontecido antes?

- Não. - Eu neguei imediatamente.

- A enfermeira Thompson me informou que o senhor disse que a encontrou caída quando chegou em casa mais cedo.

Afirmei com a cabeça.

- Sim, eu havia saído para... - Hesitei. - Eu bati meu carro e acabei ficando na rua o dia inteiro resolvendo, quando cheguei eu a encontrei caída no chão.

- A sua esposa toma algum remédio?

- Não.

- Ela tem alguma doença... Alguma coisa de que não sabemos?

- Jesus! Não! Minha esposa sempre foi uma mulher saudável, doutor. Divertida, ativa, animada. Eu não faço ideia do porquê isso aconteceu. Ela nunca havia desmaiado antes.

- Uh-hum. - O médico murmurou, deixando-me ainda mais aflito.

- O que foi? O que ela tem? - Implorei.

- Eu não sei. - Respondeu sincero. - Vão levá-la para fazer alguns exames em dez minutos, mas você quer falar com ela enquanto isso?

- Ela está acordada? - Eu quase gritei.

- Está sim. - O médico sorriu. - Por favor, me acompanhe.

No quarto, Saori tinha um oxímetro no dedo indicador da mão direita e estava muito pálida.

- Meu amor, você está bem?

- Eu estou bem, não se preocupe. - Ela respondeu com a voz fraca.

- Você quase me matou do coração! O que aconteceu?

- Eu me senti mal logo depois que você saiu e então tudo ficou preto. O médico me disse que eu cheguei aqui quase sem pulso algum.

“Logo depois que eu sai”, senti um aperto no peito ao ouvir isso.

- Saori, me perdoe. Eu não deveria ter a deixado sozinha.

- Eu fico sozinha sempre. - Ela me deu um sorriso branco, fraco. - Não tem como você estar comigo todo o tempo. Nós temos que trabalhar e fazer coisas, lembra?

- Mas se eu não tivesse saído...

- Se isso não tivesse acontecido hoje, aconteceria em outro dia.

- Desculpe.

- Não foi sua culpa!

- Desculpe por estar fazendo isso sobre mim de novo. - Eu sussurrei enquanto abaixava o olhar para o chão.

- Oh, meu amor! - Saori levantou um dos braços e eu me inclinei para lhe dar um abraço.



Descobrimos o que Saori tinha relativamente bem rápido. A má notícia era que o diagnóstico não era nada bom.

No dia que saímos do hospital eu estava desesperado imaginando quando Saori me mandaria embora, afinal, eu não havia me esquecido de que ela queria se separar.

- Eu posso fazer algo por você? - Eu a perguntei quando a ajudei a se deitar na cama. Não que ela precisasse de ajuda naquele momento, mas eu só estava com muito medo de tudo. - Você quer uma sopa? Ou um chá?

- Não, eu estou bem. - Ela tentou me acalmar. - Eu estou tão bem quanto antes. O médico disse que eu só vou começar a me sentir mal quando começarmos a quimioterapia. - Agora sinto como se não tivesse absolutamente nada de errado comigo.

A viagem para San Francisco foi um dos últimos momentos realmente normais que Saori e eu tivemos.

O tratamento de Saori foi um pesadelo. Havia dias em que ela acordava completamente animada e disposta e trabalhava até tarde, enquanto outros ela mal saía da cama; nestes dias eu também não ia trabalhar.

Houve um dia desses bons em que eu havia fechado um contrato muito favorável e ia receber muito bem por ele. Então cheguei em casa determinado a fazer como eu fazia quando havíamos acabado de nos casar.

- Saori? - Eu a chamei logo depois de fechar a porta.

- No quarto! - Eu a ouvi gritar.

Eu a encontrei com o notebook no colo, concentrada escrevendo algo que eu não precisava perguntar o que era para saber.

- Você está muito ocupada?

- Eu já estou acabando, por quê?

- Ótimo! Queria te levar para jantar fora.

- Alguma ocasião especial? - Saori perguntou animada.

- Mimar a minha esposa? - Ela me deu uma olhadela desconfiada e eu acabei rindo. - Tudo bem, tudo bem! Eu fechei um novo contrato. - Admiti.

- Eu sabia! Você saiu de manhã bem animado. Eu sabia que algo estava por vir. - Ela rebateu gargalhando e eu dei de ombros.

- Vamos?

- Sim!

Por mais que Saori e eu estivéssemos vivendo muito bem como um casal depois de tudo o que aconteceu, eu não deixava de temer se realmente ela ainda queria estar comigo. Eu não conseguia mais viver naquele limbo. Será que Saori ainda me ama? Será que ela ainda quer estar comigo?

- Saori... - Eu peguei sua mão por cima da mesa quando já acabávamos o jantar.

- O que foi? - Ela respondeu confusa.

- Eu... preciso te perguntar algo.

- Claro.

- Vo-você ainda quer se separar?

- De onde surgiu isso? - Ela rebateu desconfortável.

- Eu-eu não consigo parar de pensar que talvez você não queira realmente estar comigo e eu odiaria que você fizesse algo contra sua vontade. - Senti meus olhos arderem. Era difícil falar sobre aquilo. - Eu te amo, Saori. E eu acho que a maior parte de amar alguém é a deixar livre para decidir aonde ela quer ficar. Você ainda quer estar comigo? Eu sei que nunca mais tocamos naquele assunto e provavelmente é por culpa da minha péssima reação, mas eu pensei muito sobre isso e eu cheguei à conclusão de que eu odiaria te forçar a ficar. Eu prefiro aceitar que você talvez se sinta melhor longe de mim. E se você for ficar feliz assim, então eu vou fazer conforme você queira. - Eu falei tudo tão rápido que estava sem fôlego quando terminei.

- Eu quero ficar. - Saori disse simplesmente.

- Tudo bem, eu entendo e... o quê?

Eu me preparei tanto para aquele momento que eu não tinha certeza se havia ouvido direito.

- Eu não quis dizer o que eu disse... naquele dia. - Saori explicou. - Eu só estava machucada e, puxa, eu não sei como poderia me separar de você, meu amor.

- Então casa comigo... de novo. - Propus impulsivamente e Saori começou a rir. - Estou falando sério! Vamos fugir para Las Vegas, ou algo do tipo.

- Ok.

- Ok?

- É. Tudo bem. Vamos fazer isso.



- A doença de Saori salvou nosso casamento. - Eu conclui com o tom sarcástico e a mulher de quem eu não lembrava o nome me deu um sorriso triste.

- Você realmente a ama muito. - A mulher não mais tão estranha concordou sem desviar o olhar do meu.

Era quase como se estivéssemos sentados frente a frente em uma mesa de bar, em vez de lado a lado em uma fileira de avião.

- E onde está Saori agora? - Ela me perguntou.

Eu olhei pela minúscula janela do avião o céu azul com nuvens brancas. O mesmo céu. O mesmo sol. E ainda o mesmo frio.

“Por mais que eu tivesse toda a fé e esperança do mundo, alguma coisa no fundo do meu peito me dizia que eu a perderia. Eu sempre soube que a perderia, de uma forma ou de outra.”

- Eu não quero falar sobre isso, Saori!

Naquele dia Saori estava no hospital, muito debilitada na cama.

- Amor, temos que encarar a verdade. Eu vou morrer.

- Não. Você vai melhorar. Acabamos de nos casar de novo. É só o começo.

- Eu não quero que você fique sozinho, sabe? Depois de mim. Eu quero que você se apaixone de novo, viva um novo começo com um novo alguém.

- Não! O único recomeço que eu viverei é esse nosso. Como quando nos casamos pela primeira vez e éramos jovens. Você é a minha renovação da juventude, você se esqueceu? Nos casamos de novo, é como se estivéssemos voltando no tempo.

- Eu sei que você não é cego assim...

- Não! - Eu negava incontrolavelmente. - Eu não posso ir embora com você me dizendo isso.

- Me prometa que você não vai parar por minha causa.

- Eu só quero ir para casa e te encontrar sentada na mesa de pijamas e uma caneca de café manchando o pano, um sorriso no rosto ao me perguntar como foi o meu trabalho.

- Me prometa! Você vai continuar vivendo sua vida.

Eu somente percebi que estava chorando quando Saori passou um dedo pela minha bochecha.

- Por favor, meu amor. Só... sinta como se eu ainda estivesse por perto em todos os momentos bons que você ainda viverá.

- Como você não está brava? Você precisa lutar contra isso! Você não pode aceitar assim tão fácil! Eu imploro!

- Eu estou cansada. - Ela sorriu ao responder. - Fizemos o que pudemos.

Eu negava furiosamente com a cabeça.

- Mas estou feliz que isso foi capaz de nos reaproximar e que vivemos esses últimos meses perfeitos.

- Não, Saori, por favor, não diz que isso aconteceu por um motivo.

- Você preferia ter vivido o resto da sua vida em um casamento cheio de brigas e decepções? Eu estou feliz que o resto dos meus dias foram cheios de amor. Mas não são os seus últimos dias, então não mude o seu curso. Faça do meu fim o seu novo começo, até ser o seu fim também. Mas continue até lá.



- Então, é... Todo mundo fica com essa merda de que não dá para voltar atrás e tudo mais, mas e daí? Eu me arrependo do mesmo jeito.

“Por favor, afivelem os cintos. Vamos pousar em cinco minutos.”

- Mas e então, você ainda faria algo diferente se pudesse?

Dessa vez, depois de reviver toda a minha história com Saori, eu percebo que...

- Nem mesmo um segundo.


🚂


- Obrigado pela companhia no voo. - Eu digo ao ajustar a alça da minha mochila no ombro.

- Sabe, sua esposa estava certa. Assim como aceitamos a vida, temos que aceitar a morte. Porque a morte é uma parte intrínseca da vida e não podemos viver sem morrer.

Eu concordo com a cabeça, sem saber muito bem como responder àquilo.

- Você quer dividir um uber?

Eu faço uma careta.

- Ah, qual é? Você me contou toda a sua vida e agora eu sou estranha o bastante para você não entrar no mesmo carro que eu? Pensa pelo lado bom, pelo menos não é você quem vai dirigir, então estamos seguros.

Eu começo a rir quando ela me lança uma piscadela.

- Vamos lá! Você tem que começar a apreciar a sua vida e parar de desejar ter feito algo diferente. Não podemos voltar atrás!

Eu me lembro da promessa que fiz a Saori.

Eu não quero que nada pare. E eu sei que isso não seria possível, mesmo se eu quisesse.

- Desculpe, mas eu não me lembro do seu nome.

- Mary.

Eu penso por um segundo. Ouço a voz de meu pai no fundo da minha cabeça, “Não mude o caminho que você está seguindo.”

- Eu sou o John.

“John, honestamente, esse trem nunca vai parar”

Ela sorri antes de responder:

- Eu sei.

Porque eu sou como você.




FIM



Nota da autora:Oi! Essa história foi inspirada na música 'stop this train' do John Mayer! E isso é algo bem diferente do que costumo escrever.
Me diz aí nos comentários o que você achou! Espero que gostem :)

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