Finalizada em: 15/10/2021

Alerta gatilho: A fanfic aborda o tema sobre saúde mental, se você tem sensibilidade ao tema, favor não ler.


Capítulo Único

Já ouviu falar que saúde mental não escolhe classe social, cor, religião, altura, peso, gênero, orientação sexual, idade ou nada característico que possa classificar: somente aquele grupo de pessoas é afetado?
Eu não acreditava muito nisso, mas sabe, a gente só acredita fielmente nas coisas quando acontece com a gente, tipo, dá valor a algo quando não temos mais ou algum vírus devastador que aparece e mata pessoas pelo mundo todo, mas é porque na minha família eu sempre ouvi "você tem tudo, não tem motivo de se sentir assim", "isso é para chamar a atenção, nunca faltou nada para você dentro de casa", "tanta gente que não tem um terço do que você tem e não fica com essa frescura". Pois é, a mente pequena dos nossos ancestrais respinga na gente, eu já pensei isso, quando via notícias de pessoas da minha bolha social ou até os famosos que sucumbiram para isso.
E para uma criança de 12 anos, que teve sua primeira crise de ansiedade diminuída a uma mera birra e falta de comprometimento com a escola, porque não conseguia respirar quando foi apresentar um trabalho na frente de praticamente todo o colégio, esse estigma de que eu não tinha direito de sentir essas coisas, porque tinha absolutamente tudo na vida me fez prisioneira e eu tive que usar armaduras, artifícios e máscaras para que eu fingisse, até para mim mesma, que minha vida, auto estima e saúde mental eram perfeitas.
A gente não percebe que é gatilho na vida das outras pessoas, até começar a receber que tem um problema, que ele existe, que querendo ou não, faz parte de você, e que se você não der a atenção que ele merece, ele vai te consumir até o fim.
Eu percebi quando ela chegou, quando ela apontou o dedo na minha cara, quando mesmo com tanta coisa cobrindo, ela captou meu pedido de socorro, escutou o grito que eu estava dando desde os meus 12 anos. Foi no último ano do ensino médio, e minha escola extremamente elitista e cara, finalmente ganhou uma gestão com o mínimo de consciência de classe e abriu vagas para bolsistas.

Para situar, se não ficou claro nessa narrativa, a visão de um bolsista sobre a bolha em que eu estava inserida - se isso soou grosseiro ou preconceituoso eu peço desculpas desde já, mas não consigo imaginar uma outra forma de me expressar, sei que talvez tenha um outro modo de fazer enxergar as coisas, mas no momento eu só consigo pensar nessa - é totalmente diferente, e muito mais realista da visão que eu tinha e, às vezes, ainda tenho. Em resumo, ela me fez cavar mais fundo, ir além da superficialidade que eu vivi todos esses anos.

— Essa diretora deve ter enlouquecido! — Aquela manhã, depois de passar a noite em claro com aquele maldito aperto no coração e a agitação nos meus nervos, eu estava azeda, como dizia minha babá, sempre que eu reclamava das marias chiquinhas super apertadas que ela fazia em mim quando eu era criança, mas realmente não estrava na minha mente que eles abririam as portas da nossa escola daquela maneira para qualquer um.
— Você tem toda razão, , olha só esse tipinho, mesmo com esse uniforme, eles conseguem ser cafonas. — Minha amiga, que sempre concordava com tudo o que eu dizia, entrou no embalo e soltou o veneno previsível para aquela situação.
— Eu teria vergonha de me prestar a um papel desses, recebendo esmola desse jeito! — Adrian disse chegando até nós duas e me abraçando por trás.
— Cadê o babaca do Brian? — Bethany perguntou irritada.
Claro que os “mais mais” do colégio namoravam, mas todo mundo sabia também que ele não podia ver ninguém e eu repito, NINGUÉM, novo no pedaço que a boca ou o pau dele descarregavam pela pessoa instantaneamente. Beth sabia disso e por isso estava tão irritada aquela manhã, sabia que toda aquela "carne nova" acarretaria em: levar um chifre, ser o comentário do colégio por no mínimo duas semanas e depois mais contribuições para a sua fama de idiota, ela estava cansada daquilo, eu sabia, mas ela não conseguia não amar aquele babaca, se é que a gente pode chamar isso de amor, não é? Não que meu caso com o Adrian fosse diferente, mas depois do meu primeiro deslize, decidimos abrir a relação, coisas monogâmicas nunca são 100% verdadeiras.
— A última vez que eu o vi, estava apresentando a escola para os novatos, esse cargo de representante das turmas requer muito tempo do meu amigo. — Adrian disse em um tom debochado, todos nós sabíamos que Brian só tinha se candidatado e vencido a concorrência, porque, como eu já disse antes, ele não podia ver carne fresca, e ele adorava recepcionar e ver de perto, quais as opções do cardápio!
— Eu vou atrás dele, se não...
E ela foi, batendo seus saltos caríssimos no chão, atrás do namorado, eu quis rir, mas estava focada demais em não surtar naquele primeiro dia de aula que não consegui esboçar nenhuma emoção. Primeiros dias de aula era os mais estressantes para mim, o fato de eu detestar a escola ajudava naquela fobia, mas também tinham os calouros, novos funcionários, novas matérias e eu absolutamente detestava novidades, eram tão indecifráveis e não sabia o que ia acontecer dali para frente. Claro que nenhuma das pessoas que andavam comigo sabia que minhas mãos suavam, meu corpo todo tremia e minha garganta ficava seca, só de pensar em mudanças drásticas ou novidades exuberantes. Eu sempre gostei de viver na minha zona de conforto, e isso bastava para mim.
— Eu acho que o Brian já deve estar comendo alguma dessas pé-rapadas, desesperadas pela nossa atenção e nosso dinheiro! — Adrian disse, tocando seu corpo ao meu e eu não estava no clima para ele.
— É, deve ser! — Falei, tentando me desvencilhar daqueles braços que me sufocavam ainda mais aquela manhã.
— O que foi? Acordou de mau humor de novo? — O tom ríspido na voz dele me fez ficar em alerta, sabia que ele não mediria palavras para me atingir e eu cederia ao que quer que fosse o que ele estava querendo com aquela esfregação toda. — Eu já te disse, homem nenhum gosta de mulher com muita frescura, depois você não chora, quando eu me esfregar em uma dessas putinhas que você chama de amiga e elas forem mais receptivas que você!
A convicção era tanta na voz dele que eu sempre acreditava naquelas palavras, como eu disse, não curtia muito esse lance monogâmico, mas eu gostava de ser "quem dormia as noites com ele" sabe, aquela que ele "sempre voltava no final das contas", minha cabeça sempre foi meio fodida, então, pode parecer estranho ceder às chantagens de alguém, em um relacionamento aberto, mas eu realmente tinha medo de perder o que tínhamos ou, pelo menos, acho que de perder a fama de casal mais no top de todos do colégio.
Felizmente o sinal tocou, antes que eu pudesse ceder ou responder algo para ele, mesmo detestando a escola, eu não gostava de perder as aulas, minhas notas eram impecáveis e, todos que andavam comigo, sabiam que eu nunca me atrasava para nenhuma matéria! Notei que alguém que observava durante aquele papo com o Adrian, mas todo mundo notava a gente, então, não esquentei a cabeça. O Adrian por outro lado, não deixou passar despercebido.
— Ei, o que está olhando, hein?! Sua zé ninguém! — O tom dele era ríspido, autoritário, eu, estando ao seu lado, senti um frio percorrer minha espinha, não era um tom agradável, mas ela pareceu não se importar.
— Está falando comigo, neném? — O tom de deboche na voz dela, me fez ver que não seria um papo interessante e eu só queria sair correndo dali.
— Que outra pessoa com falta de recursos você está vendo aqui? — Ele continuou provocando e, quando eu tentei sair, ele me segurou forte pela cintura. Ela se aproximou de nós, e olhou bem para os dedos dele me apertando.
— Além de você, com essa sua falta de noção, e um belíssimo caráter que não existe, eu não sei do que você está falando. — Ela ficou a centímetros de distância dele, a tensão pairava no ar, de longe podiam achar que estavam flertando, mas eu ali bem de pertinho, sabia que estavam a um passo de se matar.
— Você, sua… — Ele cerrou os dentes, e me apertou com um pouco mais de força. Soltei um gemidinho de dor involuntário, todo aquele tempo de relacionamento com ele, me fizeram segurar meus sons de dor só para mim, mas ele estava apertando forte demais.
— Você está machucando-a! — Ela disse alto, agarrando o pulso dele e arrancando a mão dele de mim, assim que seus dedos saíram da minha pele, ela estava num tom de vermelho, quase roxo, com certeza ficaria com algum hematoma.
— Como ousa colocar essas mãos imundas em mim? — Ele disse mais alto que ela, puxando seu braço da mão e o segurava com força.
— O que o cristalzinho vai fazer, me bater? Tenta a sorte, grandão. — Ela o desafiava sem medo aparente.
Quando ele cerrou o punho eu sabia que ele teria coragem, dinheiro e advogados o suficiente para bater nela, então eu não consegui ficar calada naquele momento, tinha coisa demais acontecendo ao mesmo tempo, parecia que minha mente ia explodir.
— JÁ CHEGA! — Falei mais alto do que pensei em falar e os dois olharam em minha direção.
Agarrei o pulso dela e saí correndo, arrastando pelos corredores, indo até os banheiros que estavam do outro lado do longo corredor, Adrian ficou com cara de quem não estava entendendo nada, bem como ela, que me acompanhou, mas não tinha cara de muitos amigos. Chegamos no banheiro, larguei seu braço e me enfiei em uma das cabines. Estava hiperventilando e não estava mais conseguindo respirar direito, nem pensar, nem segurar o choro.
— Por que você me trouxe para cá? — Escutei a voz dela ao fundo de toda aquela crise que eu estava tendo, naquela cabine claustrofóbica. — Eu sei me defender sozinha e se acha que eu vou te deixar me bater, para defender aquele poço de escrotidão, está muito enganada. — Eu puxava o ar tão forte, que um barulho estranho começou a sair da minha garganta, eu não queria um auê maior, não queria uma cena, eu só queria que ela fosse embora naquele momento, mas parece que o barulho que eu fazia tentando respirar ficou realmente alto demais. — Ei, você está bem? — Seu tom era preocupado e eu estava quase desmaiando, minha cabeça girou e minha visão ficou turva. Eu não conseguia responder, nem respirar eu conseguia. — Aqui, toma… — Ela passou um saco de papel por baixo da porta. — Respira dentro desse saco, parece que você está hiperventilando, e eu não sei se está tomando seus remédios corretamente, mas acho que devia conversar com seu médico sobre essas crises, mudar a dose, ou…
Antes que ela terminasse de falar, eu abri a porta e a puxei para dentro junto comigo, não estava entendendo o que ela estava falando, mas não queria que as pessoas achassem que eu era doida ou sei lá o que ela estava insinuando.
— Do que você está falando? — Imprensei o corpo dela contra a porta e olhei bem no fundo de seus olhos.
— Essa crise que você estava tendo, é o que? Ansiedade, ataque de pânico, alto estresse? — Eu ainda não entendia do que ela estava falando — Acho que é ansiedade e um pouco de depressão… — Ela continuou quando eu não respondi nada. — Tudo bem! — Me mostrou a tatuagem em seu pulso, que tinha um ponto e uma vírgula, todo mundo sabia o que aquilo significava. — Lutei por muitos anos contra uma depressão severa. — Riu, e eu me afastei um pouco, se sentando sobre a privada fechada. — Muito tempo frequentando grupos de apoio e consultórios psiquiátricos, a gente passa a perceber quando outra pessoa também está passando pelo mesmo, claro que eu não tenho nenhum tipo de competência para ditar um diagnóstico certeiro, mas pelo que me parece, você tem uma dessas coisas.
— Eu não sou louca…
— Gata, isso não é sobre ser louca, é sobre saúde mental e emocional, quem te disse que isso é ser louca? — O tom dela não era ríspido, mas ela estava incrédula, com certeza estava.
— Todo mundo sabe que é isso! — Eu não estava sendo teimosa, mas era o que me falavam mesmo, e depois de um tempo, eu passei a acreditar nisso.
— Puta merda, então você não faz nenhum tratamento. — O tom agora era um pouco preocupado. — Toda patricinha, com condições de frequentar os melhores médicos e tratamentos, como assim? — A incredulidade tinha voltado a seu rosto — Com que frequência você se sente como estava se sentindo agora?
— Algumas vezes! — Não sei se eu podia confiar nela, nem seu nome eu sabia, como ia falar dessas coisas, nem com a minha melhor amiga eu conversava sobre esses sentimentos.
— Você não precisa mentir para mim, eu já te contei que já passei por isso também, eu não seria babaca o suficiente de sair espalhando isso para geral se você não se sente confortável que as pessoas saibam. — O tom confortável e confiante na voz dela, me deixaram com vontade de me abrir, mas ainda assim, tinha minhas ressalvas.
— Porque você quer saber, então? — Entrei na defensiva e já estava ficando tonta.
— Às vezes eu consigo te ajudar, queria que alguém tivesse me ajudado antes de… — Não terminou de falar e me mostrou o pulso sem tatuagem, que tinha uma cicatriz enorme que ia praticamente do fim da palma da mão até o início do antebraço.
— Por que você quer me ajudar? A gente nem se conhece. — Eu estava mesmo curiosa.
— Quero te ajudar por uma questão de empatia e o lance de nos conhecermos é fácil de resolver, eu sou a Gia… — Estendeu a mão abrindo um sorriso. — Muito prazer!
— Eu sou a .

Apertei a mão dela e ficamos ali conversando até a hora do intervalo, e eu não me importei nenhum pouco em perder as aulas naquela manhã, ela me deixou tão confortável que eu nunca tinha me sentido assim com ninguém mais na minha vida, era um sentimento muito bom. Ela me abriu os olhos para muita coisa só naquelas poucas horas que estivemos juntas. Claro que muita coisa que já sabia, mas não queria enxergar, mas eu confiei nela o suficiente para aceitar para mim mesma que havia coisas erradas na forma em que as pessoas me tratavam e nas que eu tratava as pessoas, na forma em que os relacionamentos a minha volta eram errados e destrutivos e de como eu precisava de ajuda profissional para ajudar na minha saúde mental.

Depois que eu terminei com Adrian, meio que fui jogada de escanteio por aqueles que eu jurei que eram meus melhores amigos, nós nos “conhecíamos” desde sempre, então julguei que eles não escolheriam um lado, tudo bem se eles mantivesse a amizade com nós dois, afinal, não éramos mais crianças, mas eles vieram com a desculpa de que eu estava metida com a ralé, porque passei a tratar as pessoas melhor e, claro, minha amizade com a Gia estava cada vez mais forte mesmo, ela me ajudou nos primeiros meses com meu diagnóstico e com o uso dos remédios, dos efeitos colaterais e na terapia. Eles tinham razão, eu estava muito metida com a “ralé”, eles eram pessoas que me faziam bem, me fizeram ver que eu estava me tornando um ser humano desprezível, amargo, sem expectativas na vida. Gia me fez cavar mais fundo em mim mesma, me reconhecer e conhecer todo meu potencial, meu merecimento e as coisas que aos poucos foram me fazendo sentir completa. Eu era completamente vazia antes daquela pessoa estranha ficar me observando no corredor, naquele dia.




Fim.



Nota da autora: Olá, Jiniers, como estamos? Olha, eu gostei, essa PP é um pouco estranha, mas ela viveu a vida toda dentro de uma bolha e isso fode com a nossa mente de verdade, espero que gostem de ler tanto quanto eu gostei de escrever!

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