Última atualização: 03/06/2020

Capítulo Único

Eu estava impaciente, ficar sentada naquela poltrona me causava um desconforto imenso. Ninguém vinha me visitar, ninguém mesmo, já fazia mais ou menos dois meses. Hoje era aquele dia do mês, eu sabia que o ele viria, embora no mês passado não tivesse vindo, era meu aniversário, e isso, eu tenho certeza, ele não perderia por nada desse mundo.
O dia foi passando lentamente. A enfermeira veio, tomou as anotações dela, sorriu e suspirou, e depois foi embora. Eu já estava quase perdendo as esperanças, quando, mais no fim da tarde, a porta se abriu e ele entrou. Sorrindo, colocou um cupcake na mesinha ao lado da cama, de dentro de uma sacola tirou sanduiches de queijo e se acomodou ao meu lado.

- Eu consegui, Liv. Eu fiz tudo aquilo que você tinha dito que era pra gente fazer - eu olhei pra ele sem entender. Eu tinha dito que ia fazer coisas demais pra eu me lembrar exatamente do que ele estava falando. – Aquela lista, lembra? 10 loucuras pra fazer antes de morrer.

Eu ri, ri muito. Não podia deixar de fazer isso, ele riu também.

- Sei que agora você está rindo, mas espera só eu contar como foi – ele deu uma mordida no sanduiche de queijo e respirou fundo. – Foi a maior adrenalina da minha vida. A primeira coisa na lista era vestir roupa curta e passar uma noite dispensando programas na esquina – meu Deus, eu ri tanto que senti que ia explodir. – Engraçado, né. Pode rir mesmo. Mas antes me diz o que a gente tinha na cabeça, hein? Isso lá é coisa pra se colocar numa lista de coisas pra fazer antes de morrer? Liv, você era problemática naquela época, viu, e isso não é coisa que se orgulhe. Mas eu fiz amizade com uma garota que estava numa despedida de solteiro procurando diversão. Ela foi super legal quando expliquei o que eu estava fazendo ali.
- A segunda coisa na lista era pixar o muro do colégio – arregalei os olhos me lembrando de quando coloquei aquilo na lista. – Sim Liv, eu pixei o muro da escola antiga – coloquei as mãos na boca e segurei um gritinho admirada. – Você precisava de ver a cara do zelador quando me viu, um homem de 26 anos, pixando o muro da escola onde estudou na adolescência. Claro que isso virou notícia no jornal local – ele riu e eu não pude deixar de acompanhar. – Minha mãe me ligou pra dar a maior bronca. Imagina, um homem feito, recebendo sermão da mãe porque pixou o muro do colégio.

Eu só podia imaginar mesmo. Aquilo aquecia o meu coração de uma forma que eu nem podia descrever.

- A terceira coisa, lembra? – assenti devagar enquanto ele dava uma mordida no sanduiche. – Nadar pelado na piscina do condômino da casa da minha mãe bem cedo de manhã – eu gargalhei alto, ele rolou os olhos, mas riu também. – Fiquei doente por duas semanas e meia, acredita? Parecia que eu ia morrer e a minha mãe não me ajudou porque disse que eu tinha feito ela passar uma vergonha sem tamanho. Vou ter que pagar uma multa de 400,00, sabe de onde vou tirar isso? Porque eu não. Também fui proibido de chegar perto da área da piscina quando for visitar a minha mãe. Mas isso é um detalhe. Não gosto mais daquele lugar mesmo.

E eu sabia bem que eu era o motivo de ele não querer mais ir lá. Respirei fundo enquanto eu pude ver os olhos dele marejarem. Ele enxugou os olhos depressa, antes de morder outra vez o sanduíche.

- A quarta coisa era difícil de se fazer; dormir num colchão de ar dentro de um lago. Eu juro pra você que foi a noite mais fria que eu já tive nessa vida, e eu juro pra você que tinha um jacaré me perseguindo a noite inteira, eu fiquei morrendo de medo de ele morder o colchão e eu cair dentro do lago. Porra, não dava pra ver o fundo e você sabe o quanto eu tenho pavor de água e do que pode ter dentro dela...

Respirei fundo. E assenti, ele só sabia nadar porque o pai o obrigara em uma das férias de verão, preciso comentar que ele tinha 10 anos quando isso aconteceu... E eu nem vou mencionar o fato de que não existiam jacarés naquele lago, ou seja, ele estava com tanto medo que alucinou, tadinho do meu menino.

- A quinta coisa era fazer uma tatuagem de borboleta, puta, como dói – ele esfregou o braço direito e levantou a manga da camisa que vestia. - Mas diga se não é a borboleta mais linda que existe?

E era, verde azulada, cheia de detalhes, maravilhosa. Toquei de leve a pele já cicatrizada, ele era tão mole, que eu ainda não conseguia entender como ele tinha tido coragem. A medida que eu ia descendo a mão pelo desenho, pude ver a pele dele ficar arrepiada. Ele finalmente terminou o sanduíche.

- A sexta coisa, a mais louca de todas, saltar de bungee jump – ele estremeceu todo e eu ri dele. – Nunca mais, viu? Quase que me borro todo. Quase que mijo nas calças também, quando eu digo que você tem um parafuso solto...

Dei de ombros e respirei fundo, enquanto ele abria a sacola que carregava e pegava uma lata de refrigerante. Tomou um gole longo e depois mordeu outro sanduiche. Queria saber que fome era aquela que ele estava sentindo.

- A sétima coisa, eu acho que era a mais tosca de todas. Comer 4 pizzas gigantes de quatro queijos – ele fez uma careta super dolorida enquanto passou as mãos na barriga. – Acho que nunca mais vou comer pizza de quatro queijos na minha vida.

Até parecia que ele ia fazer isso mesmo. Conhecendo ele como eu conhecia, ele comeria mais umas cem, era a preferida dele.

- A oitava coisa era experimentar maconha – ele riu por um bom tempo, chegou até deixar algumas lágrimas caírem. – Vou ter que te contar que foi uma das melhores sensações que eu já tive, pra não falar que foi a pior delas também – ele riu mais um pouco. – É uma coisa que eu não vou repetir, com toda certeza.

Sempre certinho demais. Me admira muito você ter conseguido completar essa lista.

- A nona coisa eu gostei de fazer... – ele abriu um sorrisinho tímido à medida que as bochechas ficaram vermelhas. – Sair num encontro piegas. Lembra que eu falei de uma garota na primeira tarefa da lista? – assenti devagar. – Eu fiz tudo como você disse que faria, cozinhei, coloquei velas em todo o apartamento, comprei flores e chocolates... foi bem romântico. Nós nos beijamos.
– Meu avó uma vez me disse que tudo se concertava com amor, que curava qualquer coisa, ele dizia que concertou a minha vó quando ela tinha traumas da época em que o pai dela maltratava a família, pura e simplesmente com amor – ele fungou, enxugando algumas lágrimas. Limpou as migalhas de pão que caíram em cima de mim na cama e se levantou. Chegou mais perto ainda e colocou os lábios na minha testa.
- Infelizmente o meu amor não foi o suficiente pra te curar – mais algumas fungadas e eu coloquei as minhas mãos em seus ombros, ele pareceu estremecer outra vez. - E aí vem a décima coisa. Quando um de nós morrer, deixar o outro partir em paz, sem culpas, sem se sentir mal – ele recomeçou a chorar, eu só podia observar de lado, ele observar o meu rosto calmo e pálido. – Eu juro que eu não queria, mas eu vou deixar, pelo meu bem, pelo seu bem. Caso você resolva puxar meu pé debaixo da cama, saiba que te deixei ir – ele riu em meio às lágrimas e eu acompanhei. – Eu te amo, Liv. E eu sinto muito ter deixado pra fazer tudo isso agora que eu não posso mais te ter por perto. Me espera aí do outro lado.

O que ele não sabia era que o amor tinha curado sim, mas tinha curado a ferida que ele carregava. Com toda certeza do mundo agora ele estava bem e eu poderia partir em paz.
Então, depois de mais uma olhada em mim, ele foi embora. Eu queria poder ir atrás dele e dizer que estava tudo bem. Que eu estava feliz por ele ter saído daquela bolha. Que eu estava feliz pela moça que o esperava do lado de fora do quarto, mas eu não conseguia.
Pouco depois os meus pais entraram no quarto, se despediram e depois os médicos entraram. Com mais uma olhadela na porta, eu pude ver ele abraçado a moça do encontro, chorava como eu nunca tinha visto e eu jamais quis que isso acontecesse. Mas não foi escolha minha. A moça olhou pra mim – não para o corpo em coma numa cama de hospital – para onde eu estava em pé ao lado dos meus pais, e abriu um sorriso. E naquele momento eu sabia que tudo ficaria bem com ele. Então finalmente eu pude descansar.




Fim.



Nota da autora: Simplesmente adorei escrever essa short e espero que vocês gostem também. Ela não é interativa por motivos de "penso em dar um continuidade" e contar a história de como esse pp passou pelo "luto".





Outras Fanfics:
Roteiro de Viagem: Brasil - [Originais]

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus