Finalizada em: 21/10/2021

Capítulo Único

Jacksonville, Flórida. 2023.
Chaves do carro, peguei.
Carteira com meus documentos, dentro da mala.
Mala, dentro do carro.
Tanque do carro, cheio.
Janelas dos quartos, fechadas.
Comida suficiente para Vênus, com certeza deixei.
Chave escondida para que Makayla consiga entrar quando chegar, isso com certeza está no lugar em que deve estar, já que é ela quem mesmo esconde – e o faz tão bem que eu nunca sei onde está.
E, por último, mas o mais importante: a caixinha de veludo roxa.
Isso com toda certeza do mundo eu não iria esquecer, pelo menos não dessa vez.
– Vênus! Estou indo… – chamei alto, colocando a caixinha em minha mão de volta ao bolso da minha jaqueta de couro. Olhei em direção a escada logo ao meu lado e estranhei a demora. – Vênus, não é hora de fazer drama. Passei meses só com você… E com .
Respirei fundo ao ver apenas a cabeça do labrador preto surgir na ponta da escada. Poderia ser somente o cansaço pela idade do meu grande e fiel escudeiro de quatro patas. Era difícil me despedir dele, sabendo que demoraria mais do que poderia parecer para voltar, mas era hora de trabalhar e, infelizmente para sua compreensão, estar fora de órbita exigia um tempo a mais longe de casa.
Passei a alça da bolsa transversal em meu corpo e fiquei de frente para Vênus, vendo-o se manter sentado na ponta de cima da escada.
– Ok, temos degraus nos separando, é isso o que você quer? – coloquei as mãos na cintura, franzindo o cenho. – Sabe que pode ser a última vez que vamos nos ver, não sabe?
– Credo, Mark! – desviei o olhar ao ouvir , vendo-a sair da porta da cozinha e se juntar a mim no final da escada. – É por isso que ele te ignora. Tchau, garotão! – Ela me repreendeu e se virou para Vênus, abrindo um enorme sorriso na direção dele.
– Eu continuo achando que vocês dois usam os momentos a sós para cominar contra mim – fiz o meu melhor tom de análise, vendo Vênus descer depois da fala de .
– E o que te faz acreditar que gastamos nossos preciosos momentos a sós para planejar uma revolta contra você? – se ajoelhou para fazer carinho em Vênus, recebendo lambidas e o mesmo afeto com um focinho roçando em sua pele.
Ouch – levei a mão até o peito. – Tudo bem, consigo sobreviver após essa traição.
– E depois você quem é dramático, Vênus.
disse olhando para o cachorro, ainda com as mãos fazendo carinho nele. Vênus se virou para mim e ficou me encarando por um tempo, e os anos que vivemos juntos me deixaram preparados para toda e qualquer feição dele, então poderia dizer facilmente que ele estava me encarando com tédio. Não era nada novo, muito menos os dois se darem tão bem e muitas vezes me excluírem da contagem; era bom, inclusive, seria ruim minha namorada não se dar bem com Vênus – mas pela ordem, ele chegou depois, então naturalmente seria um tanto impossível não gostarem um do outro, até porquê, me ajudou e convenceu a adotá-lo.
Só não dizíamos que era nosso filho porque tem horror a essa palavra e afirma veementemente que não teria capacidade para isso, o que eu discordo na mesma proporção.
Enquanto estava perdido na feição de tédio de Vênus e divagando na imagem dos dois seres mais importantes da minha vida, senti meu celular vibrar no bolso, me trazendo de volta para a realidade. Desbloqueei a tela para ler melhor a mensagem de Taeyong e suspirei.
– Estamos atrasados, .
– O que foi? Taeyong já chegou lá? – Ela se levantou, me perguntando.
– Sim. Lisa e Jaehyun já chegaram. – A encarei, esperando por sua feição.
– Ah! Eles pegaram a melhor vaga… Droga! – fez seu tão marcante bico de quando entra em frustração, deixando seu cenho franzido.
– Sem problemas, se sairmos agora dá tempo de pegar a vaga de Hopkins.
– Uhhh, essa é melhor. Coberta e a poucos metros da entrada.
– Já está calculando o cansaço de quando voltarmos?
– Claro! Quanto menos eu precisar andar até o carro a partir do momento que receber liberação para mais alguns belos meses de férias, melhor. – Ela sorriu e eu tive a certeza de que estava ilustrando na própria cabeça o futuro.
E enquanto ela se iluminava com os próprios pensamentos, eu me iluminava de seu sorriso.

– Da última vez, voltamos com Lisa e Jaehyun assumindo sentimentos um ao outro. O que será que esse isolamento vai causar desta vez?
Fechei meu armário, segurando o riso pela pergunta de Hopkins. Não sabia sobre os outros, mas eu tinha meus próprios planos.
– Talvez você ou Taeyong-
– Cuidado com o que vai falar, Cafrey. – O tom ameaçador de Taeyong foi recebido com mais comédia do que uma ameaça de fato, quando ele cortou . Todos riram, claro.
– Fica tranquilo, chefe. Eu não ia dizer que você e Hopkins irão ter filhos. – respondeu com a mão no ombro dele. – Embora eu acredite que os dois façam um exímio casal.
– Não me faça desistir de te enviar para essa missão, Cafrey. – Taeyong respondeu dentro da brincadeira.
– E quem você colocaria para a extra-veiculares?
– Yuta. Ele está a uma chamada de distância.
Por um momento o ambiente ficou todo quieto, enquanto os dois se encaravam.
– Mas aí você quer o fim do meu relacionamento, não é? Yuta e Mark lá em cima, quer me deixar sem namorado. – disse com tom de indignação e as mãos na cintura.
– Ei! – reclamei.
– Ela não está falando nenhuma mentira. – Lisa disse rindo.
– Para sua sorte, Cafrey, eu confio mais na química que o Lee tem com você do que com Yuta. E estou falando da profissional.
– Acho que podemos encerrar esse assunto antes que fiquemos sem a nova ISS. – Hopkins aconselhou, também em meio aos risos.
– Sim, está na nossa hora. – Taeyong assumiu sua posição de comandante, fechando seu macacão e sendo o primeiro a sair.
Lisa e Jaehyun saíram sendo acompanhados por Hopkins, deixando eu e sozinhos. Ela estava concentrada em amarrar seu cabelo e eu em admirá-la. Embora me sentisse seguro o suficiente em meu trabalho, sempre tinha essa ponta do “e se” sobre voltar para casa bem – e tendo como minha parceira eu me sentia um tanto mais confortável e crente sobre o retorno. Ela era meu ponto de paz.
– O que foi?
Fui pego em meu momento distante, ouvindo sua voz suave, e então notei que ela já estava mais próxima.
– Nada, estava só pensando em como me sinto seguro ao seu lado – disse baixo, com as mãos dentro dos meus bolsos.
– Por que você tem sempre que começar com essas coisas melosas quando estamos prestes a entrar no ônibus? – Suas mãos foram espalmadas em meu peito e eu umedeci os lábios antes de aproximar mais meu rosto e selar sua testa.
– Porque é legal, me sinto naquelas histórias clichês, só falta uma melodia romântica do Ed Sheeran.
– Bobo. – Ela riu nasalado, segurando meu rosto com uma mão para me dar um beijo rápido. – Vamos, estamos atrasados. E eu tenho certeza absoluta que Taeyong liga para Yuta facilmente.
se afastou e eu respirei fundo, mexendo na caixinha em meu bolso com certa ansiedade. Segui seu caminho com o olhar, tomando coragem para fazer o mesmo.
Com meu peito cheio de ar, assumi minha postura profissional, sendo o último a sair.
Era divertido estar em um ambiente descontraído como no nosso vestiário antes de toda partida, nunca parecia que estávamos indo para um trabalho tão perigoso e com uma demanda de coragem maior do que a necessidade de capacidade. Eu estava prestes a entrar no que seria o maior dos momentos em minha vida profissional, mas naquele instante, andando por aquela passarela acima de muitos civis atentos a cada passo que era dado por nossa equipe em direção ao ônibus espacial, só conseguia sentir meu corpo tremer por toda sua extensão.
Não era o Rocket-127 que me deixava nervoso, mas sim a ideia de ficar com outra vez por um tempo fora da relatividade comum no espaço. Já havíamos feito isso outras vezes; crescemos juntos com esse sonho de trabalhar entre as estrelas e ver de lá de cima como somos tão mínimos aqui embaixo, mas dessa vez seria diferente. A teoria do vácuo seria testada pessoalmente por mim, pois com toda certeza do mundo eu me tornaria um fogo de artifício humano quando meus planos fossem colocados em prática fora de órbita.
Pedir em casamento estava sendo muito mais importante naquela viagem do que o teste a ser feito de fato.

É necessário toda uma preparação e paciência até sair de terra firme e finalmente “estacionar” o ônibus espacial no espaço. Mesmo acostumado com isso, por dessa vez ser diferente, eu estava muito ansioso e não via a hora de ser autorizado a sair com para fazermos os reparos na estrutura da ISS WAYV23 que seria repaginada com uma nova tecnologia.
Aproveitei enquanto estava um pouco distraída com Lisa para ir até nossas roupas e colocar no primeiro compartimento fechado que encontrei a caixinha de veludo que eu tanto estava protegendo desde o dia em que saí da joalheria. Pensei na minha melhor estratégia para não acabar em uma tragédia e a caixinha sair flutuando – apesar de eu saber que era muito esperta e que não abriria ela do lado de fora do ônibus; eu pelo menos estava esperando por isso fielmente.
, Mark. Estão prontos? – Hopkins perguntou, mexendo algo em seu painel de pilotagem.
– Não se percam no tempo, quanto mais ágil formos, principalmente na troca de dupla com Lisa e Jaehyun, mais rápido será nosso retorno pra casa. – Taehyung se levantou, espreguiçando-se.
Olhei para minha namorada e parceira, vendo seu sorriso de confirmação.
E então seguimos os protocolos. Passo a passo até estarmos fora daquele ônibus em segurança, tanto nossa quanto dos tripulantes que ficaram dentro.
– Uau.
Pelo nosso rádio auricular compartilhado com a equipe toda, pude ouvir o suspiro de . Estávamos flutuando, fora da gravidade, e com uma visão fora do comum – ou nem tanto para nós – sob nossos olhos.
– Eu não me canso desse lugar, mas também não trocaria lá embaixo para ficar aqui para sempre. – Sua voz era melódica.
Não respondi, me concentrando para não me perder em meus planos. Se eu ficasse nervoso demais com toda certeza do mundo faria tudo em desordem e, neste caso, a ordem dos fatores trocaria o resultado. Porém, o meu tempo em silêncio acabou por causar a primeira tragédia.
– Vamos começar? Eu acho que Taeyong colocou alguma coisa no meu macacão só porque eu-
– Não!
Engoli a seco, parado no exato lugar em que estava. começou a falar caçando algo em sua própria roupa e eu não tive tempo, não tinha como sair correndo e cortar nossa distância para a impedir de fazer o que fez. Só senti meu coração acelerado enquanto ouvia a risada em meu ponto que, com certeza, era de Taeyong.
– Eu ganhei, está me devendo cem pratas, Hopkins. – Taeyong disse cessando seu riso.
me encarava confusa e eu só conseguia olhar para o reflexo no vidro de seu capacete, a caixinha indo com o vácuo para qualquer canto daquele espaço, com a tampa se abrindo e a aliança tomando um rumo próprio. Enquanto desejava aproveitar essa dádiva do vácuo do espaço para gritar, mas se eu tirasse o meu, morreria imediatamente.
Ordem dos fatores alterando o resultado, pois é.
– O que… Mark? – A ouvi me chamar uma vez. – Mark? – Mais outra. – Mark? – Mais alto agora.
– Desculpa – resmunguei, tentando chegar mais perto e segurar sua mão por cima da luva grossa. – Eu tinha planos…
– Ok. Respira fundo e vamos começar de novo. – disse me dando uma pausa e eu senti sua mão apertar a minha. – Aquilo era uma caixinha e uma aliança…
Movimentei minha cabeça, ainda parado e sem saber como reagir.
– Eu não tive uma ideia melhor, me desculpa. – Finalmente consegui dizer. Limpei a garganta, suspirando.
– Está brincando? Essa é a melhor ideia que eu já vi!
– Se tivesse dado certo não seria você, Lee. – Taeyong brincou em nossos ouvidos, rindo.
– Quieto, Taeyong! – pudemos ouvir Lisa ralhando.
– Mark… – apertou outra vez a minha mão.
– Eu queria saber exatamente o que dizer e como fazer, mas quando essa ideia vem à minha mente eu só consigo pensar em ser direto e te fazer a tão grandiosa pergunta. Mas você merece muito mais do que isso, . – Depois de uma certa lufada de coragem, iniciei. – Me lembro quando terminamos a escola e descobrimos que realmente iríamos seguir por mais anos na mesma turma, já que fomos aprovados na mesma universidade. Meu alívio foi de saber que eu poderia passar mais tempo com você, além de dividir a mesma calçada – ri fraco. – E quando nos formamos, pensei: bom, agora acabou. Mas somos tão ligados que eu não poderia estar dividindo esse palco com outra pessoa. Não existe ninguém lá ou aqui para ser minha parceira da forma como você é. E não importa se a gravidade está nos trazendo longe ou para perto, nada disso aqui faria qualquer sentido se não pudesse ser compartilhado com você.
Fiz uma breve pausa, respirando fundo.
– Tenho certeza de que se pudessem, lá embaixo, veriam a gente brilhar como fogos do quatro de julho. Mas eu não me importo que não possam testemunhar isso, porque as estrelas estão aqui para isso – tentei o meu melhor para ficar o mais próximo possível de ajoelhado. – Cafrey, aceita se casar comigo? – perguntei o mais rápido que pude para não perder a posição, já sendo movimentado.
– Ficaria feio para você eu dizer não, tem esse infinito brilhante como testemunha. – Ela disse sussurrado e eu podia jurar que estava sorrindo somente pelo tom de sua voz.
– Obrigado pela consideração.
Senti o dedo de tocar o meu, nossas mãos não estavam mais juntas, mas estávamos com as pontas de nossos indicadores colados, forçando o máximo possível para entrelaçar os dedos e não nos separarmos.
– Posso tomar isso como um sim? – perguntei, sendo a primeira vez que conseguia encara-la.
– Eu não vou vestir branco ou casar na igreja, como você me conhece há tempo suficiente pra saber disso, devo presumir que posso dizer sim – sorriu, apertando minha mão. – Acho que estou literalmente flutuando.
– Um trabalho completo, o que acha?
– O que eu acho? Bem, senhor Lee, eu acho que a de 8 anos conhecendo o novo vizinho nerd e desastrado, não acreditaria se eu a dissesse que estaria hoje ao lado dele se realizando por completo. Você sempre me deixou fora de órbita. E eu consigo ouvir perfeitamente o vácuo sedento para a nossa... pirotecnia de quatro de julho.
Ri fraco, apertando a mão de , meus olhos encaravam o horizonte, pensando na aliança que deveria ser colocada ali, que eu tanto cuidei com extremo carinho para que não se perdesse.
– Nem essa infinidade de estrelas são suficientes para marcar o testemunho de como eu te amo – disse baixo.
– Nós não precisamos dela, meu bem. Somos suficientes.
– Tão suficientes que estão atrasando nosso trabalho. – Taeyong ecoou em nossos ouvidos.
– Estou mudando de ideia, acho que você e Hopkins se merecem, chefe.




FIM



Nota da autora: Sem nota.



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