09. Complicado

Finalizada em: 22/06/2020

CAPÍTULO UM


— Eu desisto, simplesmente desisto! — Amassei outra folha de papel entre os dedos e bufei ao jogá-la na lixeira. Que bela ambientalista — Vou escrever no celular, esse negócio de escrever à mão é ultrapassado demais.
— É romântico, mais íntimo! — Annie defendeu o romantismo como sempre, não esperaria outra coisa de minha melhor amiga.
— Esse negócio de escrever brindes para outras pessoas está me saindo impossível. Como vou escrever os votos de alguém se eu sequer tenho uma vida amorosa saudável? — Annie suspirou e apoiou seu cotovelo na mesa, a lateral da cabeça contra a palma da mão enquanto desenhava linhas invisíveis na superfície de vidro.
mandou mais mensagens? — Balancei a cabeça negativamente. Umedeci os lábios secos e rachados nervosamente — Isso é estranho…
— Pois é, eu sei que é. Não quero imaginar o que ele possa estar aprontando. — Murmurei e voltei a tentar me concentrar no papel posto à minha frente, mas já havia perdido toda a inspiração.
Uma madrinha havia me descoberto na plataforma de oferecimento de serviços online. Disse não saber como escrever o brinde de madrinha sozinha, então me contratou para fazer aquilo por ela. Já era a quinta pessoa naquele mês, o que havia me surpreendido. Tantas pessoas assim estão casando? Olhei para meu dedo anelar direito, a lembrança da aliança pendendo ali fez meu coração acelerar. Será que algum dia me recuperaria?
— Você está pensando nele, não está? Parece que comeu cocô, e só faz essa cara quando esse escroto está na sua mente.
— Eu não posso evitar! Eu quase me casei com aquele monstro, só de pensar nisso sinto vontade de vomitar. — Annie coçou os olhos e suspirou. Estava cansada — E como está o Perez?
— Bem, eu espero. Estou sem falar com ele desde ontem, mas estou cansada demais para sequer mandar uma mensagem.
Annie estava noiva e passara o dia anterior e hoje buscando vestidos, convites, tudo isso sozinha. Eu não havia conseguido pegar uma folga no trabalho, e seu noivo, Perez, estava em outro país. Havia ido buscar sua mãe, que moraria com ele até o dia do casamento. Isso significava que Annie voltaria a morar comigo por alguns meses.
Dividimos o apartamento próximo ao metrô Vila Sônia por três anos durante a faculdade. Há dois anos, quando entrei na Lennox Company, Annie também foi selecionada para fazer parte da multinacional. Na mesma época, Perez havia pedido para que os dois morassem juntos. Então, eu fiquei sozinha em casa. Foi mais ou menos nessa época, dois anos atrás, em que comecei meu relacionamento curto, porém extremamente conturbado, com .
— Você está animada para o casamento?
— Claro. Eu o amo.
— Se quiser alguém para escrever seus votos… — Annie bateu em meu braço com força. Soltei um gritinho e ri em seguida.
— Eu sou capaz de escrever meus votos.
— Nunca neguei isso. — Arqueei a sobrancelha e sorri.
— Posso te contratar para fazer todas as minhas responsabilidades por mim? — Segurou minha mão — Eu te pago.
— Passar por isso é essencial, Annie. É o que vai definir se você está pronta para uma vida de estresse com ou não. — Ela fez uma careta. — Você tem razão. Eu devo ficar bem insuportável nesse período, e ele deve tentar fugir de mim. É bom que eu fique louca no início, aí ele já decide se quer seguir em frente com isso ou não.
— Não era exatamente isso o que eu queria dizer, Annie. — Ela deu de ombros.
— O que eu inferi foi isso. Tarde demais. Tudo culpa sua. — Tentei argumentar, mas ela parecia certa de seu plano — Estou indo dormir, boa noite. Durma em paz. Eu acordo você amanhã para o trabalho.
Annie e eu continuávamos na empresa juntas. Aguentamos períodos conturbados de troca de pessoal — algo muito recorrente, especialmente no mundo das relações públicas e jornalismo — e corte salarial. Eu havia sido promovida um ano antes para líder da Loreal e Annie era sênior no RH. Nunca perguntei se havia dedo dela metido na minha continuação na assessoria, mas duvidava. Annie era extremamente leal e honesta. Eu a invejava por isso. Nunca tinha medo de falar a verdade. Eu? Acreditava que mentiras poderiam ser justificadas, mas nunca havia mentido para Annie. Iria me odiar para sempre caso fizesse isso. Creio que seja o motivo de nossa amizade funcionar tão bem apesar de sermos tão opostas.
Suspirei pesadamente e peguei o papel em minhas mãos. O canto da palma estava completamente sujo de tinta de caneta. Ser canhota era um sofrimento ao escrever. Larguei a caneta contra o vidro e deitei a cabeça contra o encosto da cadeira. O silêncio rondava o apartamento, grande demais para apenas uma pessoa. As paredes brancas clamavam por uma pintura colorida, mas era muita vontade e pouco tempo.
Desisti de tentar continuar aquele trabalho. O relógio já marcava meia-noite e eu teria que estar de pé às sete para ir à Lennox Company. Deitei na cama e tentei ao máximo afastar dos meus pesadelos. Mas lá estava ele novamente. Dessa vez, o final ainda mais assustador do que a realidade.


CAPÍTULO DOIS


— Meu Deus, você dormiu hoje? — Carlyle, meu colega de trabalho, questionou com os olhos arregalados. Cocei os olhos.
— Não, nem um pouco. Não deu tempo de passar maquiagem antes de vir. Não se preocupe, o zumbi já deve sumir. — Sorri e Carlyle apenas assentiu.
— Posso te emprestar uma base, se quiser.
— Acho que seu tom não é o mesmo que o meu, Carl. — Sorri e agradeci — Você é um querido, obrigada. Já volto.
Corri para o banheiro com a cabeça abaixada. Ao me encarar no espelho, segurei a careta. Abri a bolsa de maquiagem e xinguei ao perceber que havia trazido apenas a base que deixava minha pele cinza. Bem, teria que funcionar.
— Licença, mas posso dizer algo? Sua pele é linda. — Virei-me a tempo de ver Amélia parada atrás de mim. Voltei os olhos para o espelho e gaguejei ao respondê-la.
— A-ah, o-obrigada. — Engoli em seco ao vê-la parada com seu esplendor de quase um metro e oitenta ao meu lado. Precisei levantar meu pescoço para encará-la. Havia uma mancha enorme de base em minha bochecha esquerda, mas, se ela percebeu, não havia comentado.
— Com licença. — Ela entrou na cabine do banheiro e voltei a encarar o espelho, a boca levemente aberta e os olhos arregalados. Espalhei rapidamente a base em meu rosto e saí correndo do banheiro antes que ela saísse da cabine. Havia agido como uma estúpida em frente a um dos maiores nomes da música popular brasileira. Corri apressadamente até a copa e terminei minha maquiagem, me observando no reflexo contra o microondas. Algumas pessoas passaram por mim e me encararam como se tivesse algo de errado comigo. Eu não poderia concordar mais.
— Olá, licença. Pode me dizer onde fica o banheiro? — Virei-me rapidamente, o cabelo em frente aos olhos. Balancei os cabelos para o lado.
— Olá. Siga em frente pelo corredor e vire à direita na primeira entrada. — Arrumei o cabelo atrás da orelha e observei o homem parado em minha frente. Tinha os olhos pretos e uma expressão confusa.
— Eu acabei de fazer esse caminho e vim parar aqui. — Ele suspirou e colocou a mão dentro dos bolsos da calça. Sorri e acenei.
— As pessoas costumam se perder aqui, fique tranquilo. Eu te levo lá. — Ofereci-me e guardei o resto da maquiagem no necessáire. Saí primeiro da copa e fui acompanhada pelo homem de pele negra. Indiquei o banheiro com um sorriso — Prontinho. Chegamos ao seu destino.
— Quanto devo pagar pela corrida? — Questionou com um sorriso.
— Ah, essa é por conta da casa. — Ri e dei de ombros.
— Obrigada pela gentileza, senhorita…
— Domeniche. — Ele arregalou os olhos em surpresa agradável.
— Que sobrenome lindo.
— Agradeço. E você é o…
.

— Foi um prazer, senhor . Vou voltar ao trabalho. Boa sorte aí nos seus negócios.
Quase chorei ao virar-me de costas. “Boa sorte aí nos seus negócios”? Senti o rubor subir contra meu peito, pescoço até chegar às bochechas. Eu havia dado boa sorte a alguém que iria usar o banheiro.
— Você está muito vermelha. — Annie comentou quando a encontrei parada em frente à minha mesa.
— Eu acabei de passar vergonha.
— Conte uma novidade. — Ela provocou e sorriu — Bem, vamos ao ponto. Preciso do contrato que você assinou ontem, por favor.
— Claro. — Peguei o papel dentro da pasta rosa e entreguei a ela — Algo mais?
— Você viu que Amélia está aqui? — Ela sussurrou com excitação incontida.
— Eu encontrei com ela no banheiro! Ela me elogiou! — Respondi acompanhando sua animação. Amélia era nossa cantora brasileira favorita. Havíamos ido juntas em três shows dela nos últimos anos — E eu agi igual boba.
— Meu Deus, ! — Ela exclamou — Não acredito.
— Pois é, querida.
— Você é impossível. — Ela comentou e bateu com a pasta em meu braço — Ah, você vai hoje para a pós?
— Sim, infelizmente. Por quê?
— Hm, nada. — Apenas arqueei a sobrancelha e assenti.
Sentei-me em minha mesa e resolvi começar a trabalhar antes que passasse mais vergonha. Minha caixa de e-mail estava cheia ao ponto de me fazer querer chorar, mas hoje não. Sem choro hoje. Levantei o queixo e voltei a trabalhar, os olhos fixos em minhas responsabilidades apesar do cansaço.

*

— Como assim havia um texto para hoje? — Questionei com os olhos arregalados e xinguei em seguida.
— Pois é. Ela enviou agora à tarde. Nem consegui imprimir. — Grunhi e abri meu e-mail rapidamente. A professora havia mandado o e-mail duas horas atrás enquanto eu terminava o fechamento mensal e xingava meu cliente.
— Que merda. — Resmunguei — Obrigada pelo aviso. Vou correr para imprimir.
— Ah, a nossa pró-aluno está com problemas. A da história está funcionando.
O dia estava indo de mal a mortífero. Agradeci com um sorriso triste e me pus a andar pelo campus até chegar no departamento de história.
Controlei as lágrimas de cansaço enquanto caminhava com os fones no ouvido. A noite estava quente e úmida, os alunos passavam rindo alto e conversando animadamente em direção ao restaurante universitário. O início do ano era sempre infernal na Universidade de São Paulo, muita gente e muito tumulto, mas eu havia me habituado ao longo dos anos ali. E sentia falta, por vezes, mas isso apenas até pegar o ônibus em direção à estação.
Observei a praça do relógio ao meu lado e sorri. Gostaria de fazer um piquenique ali algum dia. Decidi sorrir naquele momento, meus últimos dias haviam sido conturbados demais, mas não via sentido em ceder. Ainda tinha minha vida e queria aproveitá-la ao máximo. E nem tiraria aquilo de mim.
? — Tirei o fone e encarei uma mulher que corria em minha direção vindo pelo sentido contrário ao que eu andava. Levei alguns momentos até reconhecer Maria Cristina.
— Meu Deus! Cris! Há quanto tempo. — Abracei minha antiga colega de classe.
— Nem me fala. A pós está sugando minha alma. E você, como está?
Pensei em tudo o que havia acontecido nos últimos meses. As visitas à delegacia da mulher, o estresse psicológico do trabalho, tudo isso somado aos percalços naturais da vida adulta, e apenas sorri.
— Tudo ótimo, mas e você, como anda? — Cris abriu um largo sorriso.
— Eu estou ótima, mas atrasada para uma reunião da pós. Vem cá, hoje eu e o pessoal da pós vamos ao bar em frente à estação. Quer ir com a gente? Aí podemos colocar o papo em dia. E encher a cara. Nossa, preciso muito encher a cara. — Gargalhei e assenti.
— Claro, estou precisando mesmo me distrair. Que horas?
— Hm, sua aula hoje é na editoração ou no laboratório de tradução no prédio da letras?
— Letras.
— Então te busco lá. — Ela me abraçou rapidamente — Passo lá nove horas, é quando acaba, não é?
— Isso! — Gritei minha resposta enquanto ela já praticamente corria na direção contrária.
— Até lá, princesa! — Respondeu e desceu correndo a rampa que eu havia acabado de subir.
Encarei o prédio enorme à minha frente e atravessei a rua rapidamente, apesar do sinal estar aberto. Havia me acostumado muito mal aos hábitos de São Paulo. E isso parecia mais amedrontador do que algo positivo.

*

Havia algum ditado em algum lugar sobre como só damos valor ao que temos quando perdemos. Bem, eu só dei valor às minhas aulas de graduação verdadeiramente quando sentei na cadeira da pós e percebi que não havia aprendido tudo o que deveria ter aprendido. A professora de tradutologia falava e falava, mas uma parte minha apenas queria que ela fechasse a boca e me deixasse absorver o que ela disse. Talvez fosse resultado do estresse. É, com certeza é isso.
— Ela está uma gata hoje, não? — Olhei para meu colega de classe, Bruno, com um sorriso e assenti.
— Ela é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. — Respondi e o encarei de soslaio.
— É, mas nada comparado a você. — Piscou e voltou a batucar a ponta da caneta contra seu caderno de uma matéria. Virei-me novamente para frente e tentei disfarçar um sorriso. Umedeci os lábios e voltei a encará-lo.
— Obrigada pelo elogio.
— Poderia passar a noite te elogiando se você permitisse. — Seus olhos azuis fitaram os meus e meu estômago revirou. Havia meses que não era elogiada daquela maneira por um homem e eu me sentia bem naquele momento.
— Quem sabe? — Sorri e dei de ombros — Estou precisando de alguém para me ajudar a colocar alguns quadros na parede de casa. — Bruno sorriu e colocou sua mão sobre minha coxa.
Naquele momento, meu estômago parou de revirar e começou a doer. Cerrei os punhos discretamente e segurei o nervosismo que surgiu em meu peito.
Tossi levemente para disfarçar, mas acabou virando uma tosse de verdade e Bruno tirou a mão de minha coxa para afagar minhas costas. Desvencilhei-me de seu toque rapidamente ao passo que a professora apenas me encarou rapidamente. Controlei um suspiro nervoso e voltei a encarar a lousa.
A aula havia começado há quinze minutos, mas nenhuma parte minha parecia estar focada ali. Respirei fundo e tentei pensar pelo lado positivo. Eu estava fazendo o que amava, minha carreira apenas crescia, eu tinha uma família que me adorava, tudo deveria estar certo. Mas não estava. Fitei o chão, as lágrimas lutando para irromperem por meus olhos. Meu peito começou a doer, minhas mãos estavam trêmulas e simplesmente larguei a caneta em cima da mesa. Eu estava prestes a colapsar em uma sala com quinze pessoas. Inspirei profundamente e fechei os olhos, as duas primeiras lágrimas escorrendo por minha bochecha. Limpei-as rapidamente e estava pronta para sair da sala quando alguém irrompeu pela porta.
Virei-me em direção à porta amarela e arregalei os olhos ao observar dois homens entrando na sala. Um deles, , o homem que havia trombado comigo hoje na empresa. Ao lado dele, um homem de pele branca e olhos acinzentados usando um moletom da usp amarelo e calça jeans justa ao corpo. Arqueei a sobrancelha quando ele pigarreou e a professora apenas o encarou.
— O senhor está na sala certa? — A voz paciente da professora cortou o silêncio anteriormente instalado. Aproveitei o momento da hesitação dele para me levantar e sair rapidamente pela porta, meu material praticamente caindo quando passei pelas costas de e acabei arrastando a ponta do caderno em sua lombar. Ele voltou para trás com o cenho franzido. Apenas murmurei um pedido de desculpas e andei rapidamente pelo corredor, o ar frio batendo em meu nariz.
Ao chegar no banheiro, desabei nas lágrimas quentes que haviam sido minhas companheiras em todos os momentos nos últimos meses. Um ser humano não deveria ser capaz de chorar da maneira como eu tenho chorado. Encarei o teto e agradeci por não haver ninguém no banheiro. As lágrimas desciam livremente sem que eu sequer me esforçasse a fim de pará-las. Eu não queria que parassem.
O toque de Bruno lembrou de todos os momentos em público em que havia sorriso para mim e ao mesmo tempo apertado a carne de minhas pernas com força.
— Você estava encarando aquele homem, não estava? — Ele rosnou enquanto amassava minha coxa. Lembro-me de ter arquejado de dor, as lágrimas de medo subindo ansiosamente.
— Não, eu juro. Por que você sempre estraga todos os nossos momentos juntos? — Murmurei, a raiva misturada às lágrimas. franziu o cenho.
— Se você não fosse uma vagabunda dada, nada disso estaria acontecendo. Eu tento sair para me divertir com você, mas você não consegue tirar seu olhar dos homens ao nosso redor. Termina logo comigo, aí você pode agir como uma vadia sem que eu te impeça.
também estava prestes a chorar, e eu voltava para ele com um sorriso e um pedido de desculpas. Eu sempre pedia desculpas.
— Eu te amo. — Ele suspirou quando o beijei após pedir desculpas — Só falo essas coisas para o bem da nossa relação, você sabe disso, não é? — Assenti e limpei mais uma lágrima fugitiva — Vamos para casa. Quero seu corpo à noite toda. — Ele beijou minha orelha e sorriu. Eu apenas concordei.
A memória sufocou meu peito e controlei os punhos cerrados contra a pia de mármore. Queria gritar e xingar. Queria ir atrás de e socar seu rosto por tudo o que havia feito com meu psicológico, por todas as lágrimas, por todo o medo que ele me faz passar. Por tudo.
Assoei o nariz e tentei respirar fundo. havia me danificado ao ponto de eu sequer conseguir sentir o toque de um homem. Era exatamente o que ele queria o tempo todo. Que eu ficasse marcada unicamente pelo toque dele, nem que fosse um toque de dor e maus tratos. Respirei fundo e encarei-me no espelho. Olheiras fundas à mostra devido às lágrimas, lábios rachados, cabelo preso em uma bandana preta, o corpo escondido em uma jaqueta jeans e calça preta jeans justa. odiava aquela roupa. Dizia que chamava atenção dos homens ao meu redor e que eu implorava pela atenção deles para causar-lhe ciúmes. Quando discutimos acerca daquilo, foi quando ele me deu o primeiro soco no olho. Foi quando eu terminei tudo. Ele nunca havia chegado a me bater ou me socar, apenas apertões que eram justificados pelo estresse acumulado.
Naquele momento, quando seu punho se chocou com meu olho, eu percebi que estava no olho do furacão. Incapaz de ver o que acontecia ao redor. Adaptada à realidade a qual havia sido submetida sem sequer perceber. E, ao meu redor, apenas escuridão, vento frio e raios que batiam contra o solo cada vez mais perto de mim.
Saí correndo da casa dele naquele dia em direção à delegacia da mulher. havia me alcançado quando eu saía do carro. Puxou-me pelos cabelos e apenas gritei. Eu não sabia por que ele me odiava tanto. Gritei até minhas cordas vocais reclamarem. E foi quando ele me segurou pelo pescoço e bateu minhas costas contra a parede pichada ao lado da delegacia. Filetes de suor escorriam por suas bochechas, os olhos irados vidrados em suas próprias mãos enquanto o ar se esvaía de meus pulmões. Foi quando a policial chegou. Não me lembro perfeitamente do que aconteceu depois daquilo, apenas de uma mão em minhas costas, uma pessoa em minha frente perguntando se conseguia andar.
Chorei o caminho todo até a sala do delegado, eu mal conseguia respirar. Precisava decidir entre inspirar e chorar, entre expirar e me segurar em pé. Então, colapsei. Meu corpo foi ao chão e acordei no hospital.
estava preso, Annie estava ao meu lado com lágrimas enormes rolando por suas bochechas vermelhas. Ela sorriu quando acordei e passou a mão por meus cabelos. Percebi o quanto meu couro cabeludo estava dolorido. E quando arquejei, ela chorou copiosamente, mas não deixou o meu lado. Apenas chorei com ela e deixei que a polícia me explicasse. Fiz diversos exames, prestei depoimento e saiu da cadeia após uma semana ao pagar a fiança.
Tranquei-me em casa por duas semanas. Posso contar nas mãos quantas vezes tomei banho, pois simplesmente entrar no banheiro me causava desespero. E se ele estivesse esperando por mim quando eu saísse? E se ele estivesse sentado na minha cama com o mesmo olhar de quando estava tentando me sufocar? Era demais para que eu suportasse, então eu decidia tomar banho apenas quando Annie estivesse comigo ao meu lado, observando pela porta. Ela cantava para mim enquanto eu tomava banho, a voz melodiosa enchendo o banheiro e disfarçando os soluços enquanto eu chorava desolada dentro do box.
Ir para a psicóloga havia me ajudado muito. Minha família sequer sabia o que estava acontecendo. Apenas Annie. Nem mesmo o pessoal do trabalho, por mais que eu achasse que meus colegas desconfiavam de algo. Annie me garantiu que tudo estava certo com o RH e que eu receberia todo o apoio necessário. E eu havia recebido. Mas apoio algum foi capaz de me livrar do medo ao sair na rua durante os primeiros dois meses após o encontro com .
Ele havia sumido. E continuava sumido. Havia bloqueado todas as suas mídias sociais (Annie havia conferido para mim), tudo! E aquilo era o que me assombrava. Não saber o que ele sentia, sequer ter recebido uma ameaça. Eu havia pedido a Deus para que me ameaçasse, pelo menos eu saberia o que ele pensava. Estar no escuro parecia pior.
Agora aqui estou, depois de seis meses, ainda tentando curar aos poucos o que ele fez comigo. Hoje, a primeira vez em que um homem havia me elogiado e dado em cima de mim, eu me senti pronta para retribuir, mas o toque físico me traiu. Talvez ainda fosse cedo demais. E eu precisava respeitar aquilo.
As lágrimas secaram e sorri aliviada. Foi um alívio saber que não era medo que eu sentia de Bruno, mas uma reação de meu corpo ao que havia feito. Agradeci a Deus pela paz que seguiu ao desespero e lavei o rosto. Tentei colocar um sorriso em meu rosto, mas eu parecia doente. Peguei minha bolsa de maquiagem e me arrumei. Lembrei-me de que havia dito à Cristina que iria com ela para o bar. Eu não cancelaria. Odiava cancelar compromissos, mesmo que me custasse algo. No caso, me custaria uma dor de cabeça pós-choro-compulsivo, mas eu já estava acostumada. Assoei o nariz outra vez e observei meus lábios agora pintados de vermelho, um delineado lindo contornava meus olhos e eu havia re-aplicado o corretivo sob os olhos. Sorri mais uma vez. Agora sim!
Saí do banheiro e observei meu celular em mãos. Cristina deveria estar chegando. Sentei-me em frente à sala, ouvindo ainda a professora falar. Não me senti culpada. Não havia faltado uma aula sequer da matéria dela e eu poderia pegar a gravação da aula mais tarde. Encostei a cabeça contra a parede enquanto esperava. Só queria que Cristina chegasse logo. Iria embora cedo do bar, precisava chegar em casa e contar à Annie acerca do meu progresso. Apenas lágrimas, mas nenhum ataque de ansiedade. E foi com esse sorriso vitorioso que acompanhei Cristina no ônibus até o bar, aproveitando o otimismo que começava a me dizer que talvez o furacão estivesse perdendo sua força.


CAPÍTULO TRÊS




— Você tem certeza disso, cara? — Bernardo me encarou de soslaio do banco do carona, a luz dos carros deixando seu rosto vermelho.
— Tenho, cara, eu tô falando. — Murmurei e batuquei meus dedos contra o volante. Diminui o volume do rock que tocava e apenas o encarei — Ela é a mulher mais linda que eu já vi. — Bernardo revirou os olhos.
— Você já me falou isso pelo menos quatro vezes no último ano.
— Mas é sério dessa vez! — Exclamei indignado.
— Bom, deve ser, já que você está indo até a faculdade em um dia em que não temos aula apenas para esbarrar contra uma mulher com quem você conversou por dois minutos. — Franzi o cenho.
— Seu sarcasmo é uma merda. Enfia ele no seu—
— Para de ser otário, a luz tá verde. — Ele exclamou e passei pelo semáforo atrás de alguns carros, finalmente entrando pelo portão 2 da USP — Eu não sei como você consegue me arrastar para essas merdas…
— Hm, você é meu amigo. E, além disso, eu vou pagar sua bebida. — Bernardo sorriu e assentiu.
— É verdade. O fora que essa garota vai te dar vai ser épico. — Ele provocou e apenas revirei os olhos.
— Você é um babaca.
— Ah, para, . Você nunca fica nervoso com relação a chegar numa garota, vai dizer que agora está? — Não respondi. Estacionei atrás de uma bicicleta parada próxima ao meio-fio.
— Um pouco.
— Ih, qual foi, cara? — Suspirei e o encarei.
— Não sei dizer, só estou nervoso. Gosto dessa sensação. — Bernardo bufou.
— Que merda mais sem noção. Só gente bonita fala esse tipo de coisa. — Arqueei a sobrancelha e dei de ombros.
— Agradeço o elogio.
— Por nada. — Ele respondeu e saiu do carro. Observei pelo retrovisor se havia alguém próximo e saí do carro, batendo a porta atrás de mim enquanto andava até a calçada. Observei o prédio da letras — Nossa, como eles estudam nesse prédio horrível? — Bernardo franziu o cenho.
— Eles não recebem verba direito, eu acho. Um amigo meu comentou isso comigo.
— Claro que não recebem, vivem de greve. — Bernardo argumentou.
— Você sabe que não tem nada a ver uma coisa com a outra, não é?
Caminhamos juntos pela calçada até chegarmos às escadas de cascalhos. Do lado direito, o prédio levantava-se, do lado esquerdo, um jardim cheio de aranhas em suas teias.
Afastei-me rapidamente e torci o nariz. A USP é cheia de aranhas o ano inteiro, como aquilo era possível?
— Você vai me levar para casa chapado hoje, . — Bernardo ralhou — Eu vou beber tanto que o garçom vai perguntar se tenho seguro de vida.
— Quantos anos você tem mesmo? — Perguntei ao adentrarmos no prédio pelo térreo. Olhei a mensagem em meu celular. Dizia que era a sala 220, então no último andar. Senti meu coração bater mais forte, a vontade de desistir surgindo. Também queria fazer cocô. Estava nervoso.
— Que cara é essa, mano? Está parecendo o Roberto Justus. — Gargalhei e relaxei meus ombros — Você está rindo porque sabe que eu estou certo.
— Ok, Bernardo. — Dei-me por vencido. Olhei o relógio. Estávamos dez minutos atrasados. Ela já deveria estar na sala de aula — Acho que isso vai miar, hein.
— Você acha?
— Bernardo, que merda com esse pessimismo todo! — Explodi.
— Não é pessimismo. Eu sempre fui assim, você sabe disso. — Defendeu-se — Você que está emotivo hoje, e está todo sensível. Cruzes. Parece que essa menina é a Virgem Maria ou algo assim.
— Se ela fosse a Virgem Maria, então eu estaria em sérios problemas com o Senhor, porque meu objetivo não é nada puritano. — Bernardo riu e balançou a cabeça.
Chegamos à sala e xinguei baixinho ao perceber a aula havia começado. Procurei pelas cadeiras do fundo e comemorei ao vê-la sentada nas cadeiras. Mas meu sorriso murchou rapidamente ao vê-la limpar uma lágrima de sua bochecha esquerda. O homem sentado ao seu lado parecia preocupado também, mas não disse nada.
— É aquela mina chorando? — Bernardo estava apoiado atrás de mim, seu braço contra meus ombros. Apenas assenti. O peso dele contra minhas costas — Ih, mano, isso me cheira a problema.
— Você está pesando nas minhas costas. — Ralhei e tentei empurrá-lo.
— Qual o plano, cabeçudo? — Ele sussurrou.
— Agora vou ter que esperá-la sair.
— Isso é muito bizarro, ! — Ele exclamou — Vai para casa. Você já tem o instagram dela, por que não pode fazer isso igual gente normal?
— Porque a amiga dela já disse que ela não é muito de rede social.
— E por isso você precisa vir até a faculdade da menina? — Ele parecia embasbacado.
— Ei, estudamos aqui também.
— Sim, na POLI! Aqui é a FFLCH, maluco. — Bufei e virei o pescoço para encará-lo.
— Larga do meu saco.
— É sério, . Se ela está chorando, tem um motivo. Ela claramente não está no ânimo para ser abordada por um maluco no meio do corredor da faculdade. — Ponderei suas palavras. Bernardo estava certo. E foi quando ia me virar para irmos embora, decidido a pelo menos tentar segui-la no instagram, que escorreguei minha mão para a maçaneta e fui empurrado para dentro da sala. Engoli em seco, completamente atordoado.
— O senhor está na sala certa? — A professora de cabelos curtos e ruivos questionou. Bernardo estava travado e parecia que o gato havia comido sua língua. Quando é para falar, nada de bom vem.
— Hã… — Balbuciei e observei de soslaio ela se levantar. Arquejei ao sentir algo arranhar minhas costas. Ela murmurou um pedido de desculpas e foi embora. E ali estava eu, encarando a professora ruiva com a boca aberta — Acho que não. Aqui não seria por acaso a reunião do coletivo negro, não é? — A sala explodiu em risadas. A professora negou.
— Eu estaria no lugar errado se fosse. — Ela argumentou.
— Desculpa. — Murmurei e fechei a porta atrás de mim quando empurrei Bernardo para longe — Por que você não falou nada?! — Exclamei quando estávamos sozinhos no corredor novamente. Meu coração estava acelerado.
— Por que eu deveria? Você que enfiou a gente na sala! — Ele abriu os braços — E a garota foi embora, parabéns, Don Juan.
— Pois é. — Bufei e encarei o teto, as mãos na cintura enquanto pensava.
— Vamos embora, cara. — Bernardo pediu.
— Vamos. Tudo nessa situação já é um grande “não” do universo. — Dei de ombros e seguimos em silêncio pelo caminho por onde viemos. Não deixei de me questionar para onde ela poderia ter ido. Balancei a cabeça — Vamos ao bar ainda, certo?
— Óbvio. Somos gado, mas pelo menos um gado devidamente abastecido.

*

— Desculpe ter te arrastado para cá, cara. — Dei alguns tapinhas nas costas de Bernardo. Ele deu de ombros. Estávamos próximos ao Butantã. Ele voltaria para casa de metrô e eu iria para a minha, próxima dali.
— É para isso que servem os amigos, não é? — Desdenhou com um aceno e deu um gole em sua cerveja — Você faria o mesmo por mim.
— É, faria. — Tomei um gole do refri em minhas mãos — Os caras estão chegando? — Ele assentiu.
— Estão saindo da aula agora.
O bar estava relativamente cheio. Era uma noite quente de verão, mas, mesmo assim, o Butantã conseguia ser frio. Os calouros estavam rindo alto em suas mesas, os estudantes veteranos já pareciam mais calmos e relaxados. Sorri para um conhecido da Biologia e acenei.
Não havia filas grandes, o que era uma droga. Significava que Bernardo poderia beber com muito mais facilidade. Dei outro gole enquanto observava nossos amigos se aproximarem no fim da rua. Cumprimentamo-nos com sorrisos e aguardamos enquanto eles iam pegar cerveja. Estávamos sentados próximos à esquina mais distante, um ambiente mais calmo.
— Fala aí, seus cornos. — Calebe cumprimentou ao se sentar. Gargalhei.
Enquanto conversavam, deixei que minha mente me levasse às lágrimas de . Lembrei-me da conversa que tivemos mais cedo. Havia gargalhado até a barriga doer quando entrei no banheiro. Sua cara de confusão e nervosismo quando percebeu o que havia dito foi impagável. Sorri involuntariamente.
Ela me lembrava alguém, e foi só quando eu estava prestes a ir embora da agência que me recordei. Ela havia estudado comigo por um semestre na faculdade de engenharia. Lembro-me de ela ter dito que era com fins de pesquisa. Havíamos conversado algumas vezes. Eu a havia chamado para sair uma vez, mas ela havia negado porque estava namorando. Lembro-me de vê-la com seu namorado em uma passeata a favor da democracia. Também me lembro de ter dito a Bernardo que eu queria uma namorada para ir comigo em passeatas. Ele riu e disse que eu deveria ir procurar nas filiações ao PSOL. Lembro-me disso porque uma menina que ouvia ao nosso lado jogou um copo d’água na cara de meu amigo.
Ao reconhecer , finalmente, voltei correndo e esperei impacientemente por Annie, do RH, e amiga de , eu lembrava seu nome. Não havia como esquecer. Ela disse que era o nome favorito de sua poeta durante uma aula de Cálculo.
— Olá, posso ajudar? — Ela perguntou enquanto andava até a recepção — Aconteceu algo com sua mãe? — Neguei.
— Não, está tudo certo. Eu vim te perguntar acerca da . Eu vi vocês duas conversando, então creio que sejam amigas. — A mulher arqueou a sobrancelha.
— Não posso divulgar informações dos funcionários. — Revidou.
— Nós já nos conhecemos. Ela fez engenharia comigo por um semestre na USP. — Annie abriu um sorriso.
— Aquele fiasco, sei.
— Ela é realmente inteligente. — Comentei e ela assentiu — De qualquer modo, eu cheguei a chamá-la para sair uma vez, mas ela estava namorando. Pelo menos, foi o que ela disse.
— Hm. — Ela respondeu semicerrando os olhos — Ela já me falou de você. Mas ela não te reconheceu? — Neguei com a cabeça.
— Não, pelo menos não demonstrou lembrar. — Annie assentiu.
— Bom, levando em consideração que o que ela disse foi positivo e, sim, ela estava namorando naquela época, não é mentira, vou te dizer algo. Posso te passar o instagram, mas ela não usa.
— Hm, eu queria muito falar com ela, mas é o ambiente de trabalho dela. Não é meu objetivo deixá-la desconfortável.
— Entendo. Bem, você ainda está na USP?
— Sim. Não dá para fugir. — Ela riu e assentiu.
— Nem me fala. Enfim, ela vai ter aula na pós hoje, acabei de confirmar. Talvez você consiga encontrá-la lá, já que é caminho para você.
Ponderei. Não teria aula hoje.
— Ela está solteira? — Annie riu e assentiu.
— Está. Mas não acho que esteja na vibe de envolvimento romântico, na realidade. — Assenti cabisbaixo — Ai, não sei se vou me arrepender disso, mas acho que poderia pelo menos tentar. Talvez seja bom para se distrair um pouco. — Ela suspirou — Se você agredi-la, levantar o dedo para ela, eu vou te caçar. Você pode ser filho da Madonna, mas eu vou atrás de você. — Arregalei os olhos. Eu havia acabado de ser ameaçado?
— Preciso saber de algo antes de me aproximar dela? — Perguntei curioso.
— Ela passou por maus bocados, mas não é meu direito falar. Se você estiver indo na intenção de machucá-la, ou se quiser simplesmente uma sobremesa para a noite, nã]o tente. Levando em consideração quem você é, devo supor que tem o mínimo de caráter. — Assenti. — Pode ficar tranquila. Eu só quero colocar o papo em dia e, quem sabe, sairmos para comer sushi.
— Hambúrguer. — Ela corrigiu com a sobrancelha arqueada — Ela prefere hambúrguer.
— Então será. — Assegurei com um sorriso. Annie suspirou e cruzou os braços.
— Bem, desejo boa sorte. E reforço meu aviso. — Assenti.
— Muito obrigado, senhorita Annie.
— Por nada. Ah, e a aula dela começa 19h30.
— Qual a sala? — Ela deixou os lábios em uma linha fina.
— Não sei.
— Pega meu número e me avisa caso descubra. — Passei meu número rapidamente e despedi-me com um aceno.
Desci o elevador com um sorriso no rosto ao lembrar de sua fisionomia sorridente. Lembrei-me também do sorriso que ela me deu alguns semestres atrás quando eu fiz uma piada matemática horrível durante a aula. Recordo-me de ter pensado que gostaria muito de beijá-la, mas o infortúnio chamado “namorado” ressoava em minha mente. Ela estava totalmente fora de limites. Desisti dos meus pensamentos e intenções após algumas semanas.
— Ei, você está viajando. — Bernardo me cutucou com o gargalo de sua cerveja. Balancei a cabeça distraidamente.
— Hm?
— Está cansado?
— Não, estava pensando no meu trabalho. — Desconversei. Bernardo assentiu e voltei a conversar com eles.
Bernardo estava contando sobre a vez em que havia sido achado pelado em um jogo universitário, quatro anos atrás. Eu estava presente, não foi nada divertido achar toda sua virilha pintada de azul e glitter rosa. Gargalhei ao relembrar da cena e estava prestes a contar a Bernardo que ele havia pedido para ir nadar em uma piscina de lama, quando tive minha atenção arrebatada para um par de olhos castanhos que agora fitavam os meus do outro lado da rua. Abri um sorriso largo para , que sorrira de volta estendendo sua cerveja em cumprimento.
— Você é um cagado de merda. — Bernardo me encarou estupefato ao acompanhar meu olhar em direção a ela — Não acredito em destino, mas, caramba, você nasceu com o rabo virado para a lua! Vai falar com ela, cara!
— Estou indo. — Resmunguei e me levantei.
Atravessei o mar de pessoas ao meu redor até o outro lado da rua. estava linda, mas não me surpreendia. Ela estava conversando com alguns colegas, um sorriso preenchendo seu rosto. Os lábios vermelhos me atraíram diretamente para eles e quando me aproximei, ela apenas me encarou e balançou a cabeça.
— Eu sabia que te conhecia de algum lugar! — Exclamou com um sorriso. Acenei para as outras pessoas do grupinho e ela se aproximou de mim — Esse aqui é um… — Ela franziu o cenho — cliente da empresa, o . — Ela me apresentou para o grupo e senti uma parte minha murchar quando não fui reconhecido — E também fizemos engenharia por um semestre.
— Você já fez engenharia? — Um moço de cabelos vermelhos e piercing na língua questionou e riu — Como você se meteu nisso?
— Fins científicos. — Ela riu — Licença, gente. — Aproximou-se mais até que estivéssemos próximos e seus amigos um pouco distantes.
— Fico feliz que tenha me reconhecido. — Sorri.
— Reconheci pouco tempo depois que você tropeçou na minha sala. — Comentou com um riso — Você fez isso várias vezes enquanto estudávamos juntos. Acho que lembrei por isso. Você assistiu até o fim da aula? Não sabia que fazia pós comigo. Eu acho que nunca te vi lá.
— Na verdade, não faço. — Cocei a nuca, desconcertado.
— Ué, entrou na sala errada?
— Também não. — Ela franziu o cenho — Eu estava te procurando e acabei tropeçando na sala. — fechou um pouco o semblante confuso — A Annie, sua amiga, me disse que você estaria naquela sala e naquele horário. Eu queria te achar antes da aula. Continuo fazendo pós aqui. Eu que fui atrás dela para saber mais sobre você. Desculpa por ter sido invasivo, mas pensei que seria mais fácil falar com você pessoalmente do que pela internet.
— Bom, você tem razão. Eu não uso rede social nenhuma. Quase não uso o whatsapp também. — Ela deu de ombros. Os olhos curiosos estavam pintados de algo preto que minha irmã costumava usar e eu nunca havia percebido o quão bonito ficava — Já que estou aqui, o que gostaria de falar para mim? — Perguntou.
Eu, como um homem de vinte e seis anos no primeiro ano da pós-graduação, com um bom emprego, acostumado a ser o centro das atenções desde cedo, disse simplesmente o que poderia dizer:
— Caraca, você é muito gata. — gargalhou e senti meu peito explodir. Havia me esquecido de sua risada. Não segurei o sorriso ao ver como ela havia reagido ao elogio.
— Obrigada. Agora eu lembrei de uma cantada que você me fez uma vez, qual que era? — Incitou enquanto bebericava sua garrafa d’água.
— Hm, não sei se quero lembrar daquilo. — Murmurei envergonhado. Senti minhas bochechas ficarem vermelhas. Ela riu e deu de ombros.
— Eu gostei muito dela. — Ela retrucou.
— “Você não é função do primeiro grau, mas quando vi, fiquei afim”. — gargalhou mais uma vez e assentiu. Tomei outro gole de refri e joguei a latinha no lixo.
— Eu nunca recebi uma cantada tão inteligente. — Assumiu.
— Você ficou na engenharia por seis meses e nunca recebeu uma cantada engenheira?
— Não costumo ser exatamente objeto de desejo de engenheiros. — Ela afirmou, mas não pareceu abalada.
— Engenheiros costumam ser bem estúpidos. — Ela concordou e encarou meu rosto. Parecia curiosa.
— Você veio atrás de mim apenas para dizer que sou gata? — Deitou a cabeça para o lado e tomou outro gole de água.
— Acho que planejei tudo, menos o que dizer. — Admiti. sorriu.
— Posso te perguntar algo?
— Lança. — Ela pareceu refletir até que suspirou.
— Desculpa por ser invasiva, mas o que fazia hoje na empresa? Não é nosso cliente, está mudando do ramo da engenharia? — Mordi o lábio e cruzei os braços.
— Minha mãe é cliente de vocês. Ela disse que se encontrou com você hoje. Amélia . — Observei o rosto dela se contorcer em algumas expressões diferentes. Primeiro, espanto, depois reconhecimento, e, em seguida, um sorriso tímido.
— Meu Deus, eu amo sua mãe. — Gargalhei devido sua timidez.
— Eu também amo.
— Meu Deus, vocês são muito parecidos! Como eu não percebi antes? — Questionou com a mão sobre os lábios. As unhas perfeitamente pintadas de vermelho, combinando com seu batom vivo. Imaginei por um instante se seu batom sujaria muito meu rosto.
— Eu só fui à empresa duas vezes para deixá-la. Conheço algumas pessoas de lá apenas de vista em alguns eventos. Já conhecia Annie porque pedi a ela a instrução do banheiro. — assentiu e voltou a encarar-me.
— Você também é. — Ela soltou rapidamente, os ombros altivos e os olhos castanhos fitando os meus.
— O quê?
— Gato. — Ri e balancei a cabeça. Ela continuava incrível.
— Obrigado, isso significa muito vindo de você. — Ela balançou a cabeça e mordeu a pontinha da língua.
— Posso te pagar uma bebida? — Questionou.
— Estou dirigindo, mas obrigada pela oferta.
— Um refri, então, o que acha? Você teve um baita trabalho vindo atrás de mim. E precisamos colocar algum papo em dia, não? — Arqueou a sobrancelha e sorriu largamente. Desejei que pudesse ter me lembrado dela antes, porque, depois daquela noite, achava difícil sequer considerar esquecê-la.


CAPÍTULO QUATRO




— Vocês dois o quê? — Annie pulou em minha cama e me deu vários tapas animados. Estava sorrindo enquanto a argila verde secava em seu rosto. Estávamos largadas no meu quarto assistindo La Reina del Flow, uma novela colombiana que Annie havia achado no Netflix. Eu havia chegado há pouco do bar, e Annie já sabia o que estava acontecendo. Uma verdadeira safada.
— Nós dois nos demos muito bem.
— Tá, mas rolou beijo? — Questionou com os olhos arregalados em minha direção. Terminei de tirar a roupa em frente a ela, joguei no cesto e fui em direção ao banheiro. Liguei o chuveiro e deixei a água fria esquentar. Coloquei a cabeça para fora do banheiro e a encarei.
— Não, óbvio que não. — Dei de ombros e ela assentiu compreensiva. A máscara de argila começava a craquelar em seu rosto, a toalha em sua cabeça estava se desfazendo em seu cabelo.
— Mas ele tentou? — Perguntou mais cautelosa. Deixei a porta encostada e entrei no box, a água relaxando meus músculos cansados.
— Não. — Confirmei enquanto lavava meus cabelos. Annie irrompeu pela porta do banheiro e se sentou no vaso sanitário fechado enquanto lixava as unhas.
— Por quê? Ele não parecia interessado?
— Não, não foi isso. Quer dizer, se ele se dispôs a fazer tudo aquilo, não sei se ele não estava interessado. Ainda mais depois do que você me contou sobre o diálogo de vocês. — Annie mordeu a ponta da unha e suspirou.
— Bem, ele parecia interessado quando falou comigo. Mas que estranho. Será que ele é cristão ou algo do tipo?
— Hm, acho que não. — Respondi. Terminei meu banho rapidamente e me enrolei na toalha. Annie encolheu as pernas no vaso para me deixar passar e me seguiu quando voltei para o quarto.
— Que estranho… — Annie comentou. Troquei minha roupa, arrumei o cabelo e joguei-me na cama com minha amiga. As paredes brancas eram ofuscadas pela única parede de tom rosado sobre a qual ficava a televisão. Embaixo dela, uma escrivaninha que eu havia achado em um bazar, alguns anos atrás. Enfiei-me sob as cobertas — Meu Deus, você é muito friorenta. — Annie ficou por cima do edredom. Estava de regata e shorts.
— Ah, vinte e três graus é calor?
— Sim, você sabe que sim. Inclusive, que estranho, em pleno verão a temperatura ficar tão baixa… O aquecimento global é uma merda. Mas me diz, o que deu com o ?
Enfiei um pedaço enorme de chocolate na boca para ganhar tempo.
havia sido extremamente gentil. Tinha o sorriso mais lindo que eu já vira — e não é brincadeira. O cabelo ralo me fez imaginar como seria seu cabelo crespo em sua majestade. Deveria ser lindo, mas suponho que engenheiros não costumem usar black power. havia me feito rir, até mesmo fizemos piadas acerca de nossas aulas. Quando ele me questionou porque eu estava fazendo engenharia, apenas desconversei, mas ele não pareceu incomodado.
— Você quer uma carona para casa? — Ele questionou quando eu bocejei levemente.
— Desculpa por isso. Só estou cansada. E fica tranquilo, eu vou pegar o ônibus.
— Onde você mora?
— Aqui no Butantã. — franziu o cenho.
— Você está negando uma carona de cinco minutos para pegar trinta minutos de ônibus? — Ele provocou com um sorriso. Tentei contestar, mas ele estava certo.
— Ok, pode ser. — Cedi, mas meu coração não estava em paz. pareceu perceber, porque seu semblante caiu um pouco.
— Ou posso pedir um uber para você, sem problema. — Ele deu de ombros, mas seu semblante havia voltado para um sorridente.
— Desculpa por isso também. É só que… Faz tempo que não nos vemos e eu não sei se você bebeu ou não antes de eu chegar e—
— Está tudo bem, . — Ouvir meu nome comprido sair por seus lábios fez com que meu corpo sentisse algo novo. Seria ansiedade? Eu não teria uma crise ali no meio, teria? — Você está certa. Não estou magoado. — Ele sorriu — Mas insisto em pagar o uber…
— Para com isso, . — Empurrei levemente seu ombro, mas o sorriso não deixou meu rosto.
— É sério, é o mínimo. Afinal de contas, eu não queria te levar para beber algo no Beco da USP, mas em algum lugar digno. — Cruzei os braços em reflexo. Minha psicóloga havia dito que fazíamos isso em sinal de defesa. Do que estou tentando me defender aqui?
— Então, na realidade, o que você queria fazer era me encontrar para me chamar para beber? — Questionei. pareceu sem palavras quando descobri sua verdadeira intenção.
— Bem… Sim? Talvez. — Ele riu e passou a mão pela nuca. Achei o movimento adorável.
— Eu aceito. Não quero te fazer perder um dia de viagem. — Pisquei e joguei minha garrafa d’água no lixo ao nosso lado.
Quando se aproximou, lembrei-me de quem ele era verdadeiramente. Saber que ele também era filho de fora uma novidade. Eu sequer me lembrava de seu sobrenome na época da faculdade. Mas ele era tão bonito quanto a mãe.
A pele de era do tom negro mais bonito que eu já vira, os lábios cheios que se abriam em um sorriso fizeram meu sangue gelar, os ombros largos davam harmonia à sua altura e seu corpo inteiro parecia um monumento diante de mim. Imaginei como seria beijá-lo, será que eu ficaria com torcicolo?
— Você sequer está me ouvindo? — Annie chamou minha atenção.
— Acho que sim. — Ela revirou os olhos.
— Posso liberar a novela?
— Claro, manda bala. — Aconcheguei-me nos lençóis.
Enquanto assistia, deixei minha mente voltar para mais uma vez. Para como ele riu quando eu o chamei para ir a um restaurante indiano.
— Eu nunca comi comida indiana. Tenho medo de como meu corpo vai reagir. — Ele fez uma careta.
— Garanto, nada bem. — Assegurei e ri quando ele pôs a mão sobre a barriga em impulso — Mas é uma experiência divertida. Prometo não te julgar. Só se você arregar facilmente, aí você praticamente está pedindo. — deu de ombros.
— Eu vou comer tanta comida indiana que o Habbib’s vai me patrocinar. — Gargalhei e assenti.
— Esse é o espírito. Quando podemos ir? — Questionei.
— Quando você estiver disponível, princesa. — Controlei o sorrisinho que ameaçava escapar por meus lábios. Eu odiava ser chamada de princesa, boneca, gata, qualquer que fosse o nome, mas não fez parecer forçado. Mas ele não saberia disso. Ainda parecia qualquer carinha que queria comer uma mulher no final da noite.
Eu estava nervosa por ter concordado com o encontro, mas hoje havia sido um dia de vitórias. Estava me sentindo confiante, incrível e uma verdadeira gostosa. Poderia ultrapassar toda aquela situação com e ainda conseguir me divertir com alguns carinhas. Não sou a vagabunda que pensou que fosse, mas, se eu precisasse, eu seria.
Esse pensamento me assombrou durante a volta para casa no uber. não havia pagado o uber, eu não deixara, mas disse que o deixaria pagar nossa sobremesa no jantar. se despediu com um aceno. Que tipo de brasileiro se despede com um aceno? Mas agradeci. Agradeci muito internamente. havia respeitado meu espaço, e aquilo foi mais importante para mim do que qualquer sorriso que ele pudesse dar, não importando o quão bonito fosse.
— Meu Deus, ele morreu! — Annie gritou e acompanhei com o olhar chocado para a televisão. Assustei-me quando ouvi meu celular vibrar na mesinha de cabeceira ao lado da cama. Peguei o aparelho rapidamente e controlei um sorriso ao ver a mensagem de brilhando na tela.
“Chegou bem?”
— Ele está te mandando mensagem? — Annie praticamente pulou em cima de mim, seu pescoço esticado para ler a mensagem. Assenti e deixei que ela apoiasse o queixo em meu ombro.
“Sim, cheguei. Obrigada pela companhia hoje.”
Enviei a mensagem e senti Annie me cutucar na barriga, soltei um gritinho fino e comecei a rir.
— Garota, você é uma safada! — Ela exclamou.
— Sou, e daí? — Retruquei enquanto ela continuava a me dar beliscões leves — Ele respondeu!
“Eu que agradeço. Você está ainda mais linda, se é que isso é possível.”
— Caramba, que clichê. — Murmurei. Annie revirou os olhos.
— Homens não têm nada original para dizer? — Dei de ombros.
— Não se pode ter tudo na vida.
“Inclusive, eu tive bons resultados nos meus negócios hoje de manhã ;)”
Gargalhei até minha barriga doer. Annie me acompanhou.
— Como você vai responder a isso? — Questionou me encarando.
— Eu não sei… Mas foi horrível, Annie. O que eu digo?
“Mais um deal fechado com sucesso!”
Annie enviou em meu lugar e gargalhei junto com ela. Abri a foto de perfil de e sorri ao vê-lo em uma foto com um homem que parecia claramente seu pai. A beleza vinha dos dois lados da família.
— Será que ele sabe cantar tão bem quanto a mãe? — Annie ponderou — Ouvi dizer que ela foi uma mãe ausente e que eles dois só começaram a se dar bem quando ele veio para São Paulo.
— Ele morava em outro lugar? — Perguntei. A curiosidade, uma vez atiçada, facilmente iria embora.
— No Rio de Janeiro. — Toquei-me então de que o chiado ao final de algumas palavras eram, na verdade, seu sotaque carioca. Sequer havia prestado atenção nisso — O pai dele vive lá com a esposa.
— E ele cresceu com o pai, é isso? — Annie assentiu — Nossa, deve ter sido difícil ter uma mãe famosa e sequer poder vê-la.
— Acho que ela não queria vê-lo, na verdade.
— Como assim?
— O pessoal na empresa estava comentando que ele mal a chama de mãe, apenas de Amélia. — Arqueei a sobrancelha — Mas algumas pessoas chamam seus pais pelo nome, então não estranhei. Contudo, só há fotos dele com ela após seu crescimento. A imprensa nem sabia que ela tinha um filho.
— Hm, isso é estranho. — Concordei — Droga, agora estou curiosa de verdade. Que merda, hein. — Resmunguei e tirei o cobertor de minhas pernas. Comi mais um pedaço de chocolate.
— Ei, você está comendo bem ultimamente. — Annie comentou.
— Pois é. Finalmente estou ganhando os quilos que perdi naqueles meses.
— Eu odeio tanto o . — Annie começou a xingá-lo e apenas a deixei fazer o que queria. Eu sequer tinha força para xingá-lo.
— Só quero esquecer dele, Annie. — Balbuciei. Annie me encarou e suspirou.
— Tem razão, desculpa. É só que… Te ver machucada me matou por dentro. — Ela confessou — E eu mataria ele por você.
— Eu também mataria seu noivo por você.
— Awn, sério? — Ela pegou minha mão e rimos.
— Sim, muito sério. — Assegurei e enfiei outro pedaço de chocolate na boca — Bem, vou responder . — Peguei o celular.
E, durante o restante da noite, conversei com ele por horas. Praticamente conversamos por figurinhas, eu mandei a ele vídeos engraçados que costumava ver, ao passo que ele me ensinou a baixar filmes online pelo Torrent. Eu nunca havia conseguido. Fora uma noite produtiva. E, quando acordei no dia seguinte, percebi que aquela fora a primeira noite em que não havia cruzado minha mente antes de dormir.

*

— Você quer dizer que você passou a pasta nos lábios e está inchada? Olha, senhorita Boca Rosa, deve ser alergia a algum componente e não ao produto em si. — Annie parou ao lado de minha mesa e indicou para a copa. Fiz que não com a cabeça e apontei para o telefone — Não, ninguém mais enviou reclamações acerca do produto. Sim, tenho certeza. Controlo pessoalmente cada reclamação. — Annie assentiu e foi em direção à copa sozinha. Meus colegas já haviam ido embora e quando a Boca Rosa, influencer famosa, ligou para meu telefone, atendi na esperança de ser algo rápido. Ledo engano — A senhorita está passando pomada? Ah, sim, pode ser isso. Mas essa é uma questão a ser resolvida com seu dermatologista. Sim. Sim, sim. Obrigada. Tenha uma boa noite você também. — Desliguei a ligação e bufei, escorregando na cadeira.
A maioria das baias estavam vazias. O relógio marcava sete e quarenta. chegaria em cinco minutos e eu havia perdido pelo menos dez ao telefone com o projeto de lipoaspiração. Levantei-me correndo e fui desastradamente até o banheiro. Tropecei contra o porta guarda-chuva. A recepcionista me encarou com um sorriso contido.
— Está tudo bem? — Perguntou.
— Sim, sim. A pressão caiu, sabe como é… — Ela assentiu e voltou a mexer no computador. Entrei no banheiro com minha bolsa e troquei de roupa rapidamente. Estava cheia de tralha devido ao dia corrido. Havia ido para a academia no horário do almoço, já que à noite iria para o restaurante indiano com . Coloquei minha pantacourt com stripes em arco-íris, permaneci com meu all star e uma blusa preta lisa por cima. Observei-me no espelho e prendi meus cabelos cacheados em um rabo de cavalo com alguns fios soltos próximos ao rosto. Retoquei o batom marrom e chequei o delineado feito em vermelho similar à faixa do all star e uma das cores da calça. Annie ficaria orgulhosa da minha produção, com certeza. Questionei-me se não estava arrumada demais, mas percebi que queria me sentir bonita para mim mesma. E só aquilo importava. apenas teria a chance de reafirmar o que eu já sabia: que eu estava linda.
Franzi o cenho em surpresa agradável quando percebi o quão facilmente aquele pensamento veio. Teria que contar à minha psicóloga. Percebi que aos poucos voltava a um peso aceitável. Eu havia emagrecido quinze quilos em apenas três meses com . Eu não comia devido ao estresse e, em seguida, devido ao medo e nervosismo com relação a tudo o que se sucedeu. Agora, havia ganhado cinco quilos e planejava estabelecer meu peso normalmente. Mas os olhares das pessoas dizendo “você está bem mais bonita agora” ainda eram cortantes. Mesmo quando eu explicava brevemente o que havia se passado com , elas diziam “mas pelo menos você emagreceu”. Fiz uma careta ao lembrar de pelo menos quatro diálogos que sucederam daquela maneira. O ser humano era doente.
— Licença, , mas o pessoal da recepção ligou dizendo que tem alguém te esperando lá embaixo. — Encarei a recepcionista pelo espelho e agradeci.
— Já estou indo.
Enfiei minhas roupas em uma sacola e deixei no armário dos funcionários. Minhas roupas de treino passariam a noite ali, mas resolveria tudo no dia seguinte, não iria treinar devido à pós.
Arrumei meu cabelo, apliquei mais perfume e coloquei um brinco em formato de melancia. Gostava de cores. Creio que viver entre influenciadores escandalosos atingiu meu gosto levemente.
— Já está indo? — Annie apareceu ao meu lado com um sorriso quando cheguei à recepção.
— Sim. Você está indo embora também? — Ela assentiu e ambas acenamos para a recepcionista na saída.
— Vou me encontrar com meu sogro. — Ela parecia levemente tensa — Ele disse que queria jantar só comigo. Acabou de me chamar. Então, eu vou.
— Boa sorte. — Desejei sinceramente. Descemos pelo caminho do elevador e andamos juntas até as catracas. Observei parado conversando com as duas recepcionistas animadamente. Os três pareciam estar se divertindo.
— Ah, ela chegou! — Ele comemorou com um sorriso quando me viu passar pela catraca. Acenei para Annie.
— Te vejo em casa. — Despedi-me. Annie sorriu e cumprimentou de longe. Aproximei-me dele ao passo que ele também andava em minha direção. Ele parou a um passo de distância e agradeci seu respeito, mais uma vez. Será que ele também tinha motivos para não querer me cumprimentar com um beijo?
— Oi. — Sorri. Ele me fitou e sorriu de volta.
— Você está deslumbrante. E oi. — Ri fracamente e apontei para a rua.
— Obrigada. Vamos? — Caminhamos juntos ao lado um do outro. O vento quente atingiu meu rosto quando saímos do ar condicionado e agradeci imensamente. O verão é a melhor estação do ano, sem sombra de dúvida — Você está igualmente deslumbrante. — Respondi quando nos colocamos a andar pelo caminho entre os prédios empresariais. me encarou. Estava usando um terno cinza chumbo e sapatos sociais. Parecia muito diferente do que eu havia visto na sexta passada. passou a mão pela nuca mais uma vez e sorriu.
— Vida de engenheiro.
— Eu gosto. — Ele me encarou por alguns momentos e continuou sorrindo — Está animado para comer o tempero mais forte da sua vida?
— Não sei. — Admitiu e suspirou — Mas você desafiou meu orgulho para uma batalha.
— Você é tão orgulhoso assim? — Provoquei.
— Com comida? Óbvio! — Abriu o braço — Que tipo de pessoa não se sente provocada quando tem sua capacidade de comer igual a um boi questionada? — Arqueou a sobrancelha.
— Você está certíssimo. — Ele riu e chegamos ao restaurante rapidamente. Trabalhar em um centro empresarial chique tinha suas regalias. Uma delas: restaurantes baratos com aparência chique.
Eu e havíamos nos visto há quase uma semana. Passamos todo o tempo conversando por mensagem. Àquele ponto, já sabia que ele era canceriano (ainda tentava decifrar o que aquilo significava), que ele havia se formado dentro do período ideal (o que invejei sem tentar esconder), e que ele também gostava muito de rock e axé (combinamos de fazer uma disputa de músicas bregas algum dia). Ele falava muito da mãe. E isso fez com que eu questionasse a veracidade do que Annie havia me dito. Profissionais de jornalismo eram ainda mais fofoqueiros do que pessoas comuns.
— O que vai querer? — Ele questionou. A pele negra ainda mais bela sob a luz alaranjada. Sentamos de frente um para o outro em poltronas que formavam certo cubículo ao nosso redor. Mais privacidade. O pensamento de estar em um local sozinha com criou certa expectativa.
Eu havia pensado em desistir pelo menos cinco vezes por dia desde que começamos a conversar. Eu estava prestes a desmarcar, mas Annie me lembrou mais uma vez de que eu nunca cancelava compromissos e que deveria tratar como se fosse mais um e aproveitar. Ela tinha razão. Mas era a primeira vez que saía com um cara em mais de seis meses sem ser . Aquilo me assustava, levando em consideração o ocorrido nos últimos dias.
— O menu do chefe parece bom. — Retruquei e ele assentiu.
— É isso. — Chamou o garçom e fez nossos pedidos.
Continuei a encará-lo quando o garçom saiu. me encarou de volta, sem demonstrar a menor vergonha mediante meu olhar inquisitivo.
— Você fica ainda mais linda com esse olhar. — Ele comentou após um momento. Sem deixar de encará-lo, sorri.
— O que a Annie contou sobre mim? — Soltei na lata. Não queria falar por mensagem, sabia que ele poderia sumir sem falar nada, ou mentir facilmente. Cara a cara é mais difícil. É verdadeiro.
— Acerca do que exatamente? — Perguntou após o garçom colocar o pão sírio em nossa frente e nossos refrigerantes.
— Você não me cumprimentou com um beijo, não se despediu com um abraço. Nada disso. — Arqueei a sobrancelha — E só gringos fazem isso.
— Alguns brasileiros são mais reservados. — Ele retrucou.
— Você não parece nada reservado. — Argumentei.
— Você tem um ponto. — Riu e balançou a cabeça, encarando as mãos sob a mesa — Ela só me contou que você havia passado por maus bocados. Nada mais. Eu imaginei que envolvia o campo amoroso, só isso. — Deu de ombros como se não fosse nada e voltou a sorrir — Você percebeu?
— Achei que você não estivesse interessado, por alguns momentos. — Fui honesta.
— Só por causa do toque físico? — Questionou.
— É, acho que é superestimado.
— Não acho que seja, mas em alguns momentos, sim, pode ser.
— Ok, agora tenho uma pergunta! — Exclamei animada. Observei o garçom chegar com nossa comida após algum tempo — Você sabe cantar tão bem quanto sua amada mãe? — Ele alternou o olhar entre o meu e a bandeja do garçom quando colocou nosso jantar em nossa frente.
— Depende do que você considera “cantar tão bem” — Provocou — Eu consigo me virar caso seja colocado em um karaokê, se é o que quer saber.
— Hm, — murmurei enquanto colocava um pedaço de comida na boca. Suspirei devido ao sabor e fui acompanhada por quando ele provou o molho — Saber cantar no karaokê é o maior nível de magnitude musical. Você deve ser bom. — Apontei para ele com o pedaço de pão sírio e ele riu.
Observei com uma gargalhada quando ele sujou o terno cinza com molho apimentado. Ele resmungou e apontou o dedo para mim com uma gargalhada. Olhei para baixo e vi que estava suja de molho no exato mesmo ponto que ele.
— Que merda! — Exclamei.
— Está um charme.
— Sim, sua mancha parece cocô de bebê.
Meu Deus, por que eu insistia em trazer assuntos sanitários quando ele estava envolvido? Mas apenas gargalhou mais alto e concordou.
— E o seu parece vômito de bebê.
Aquele, sem sombra de dúvidas, era um dos jantares mais divertidos que havia tido em meses.
me contou sobre seu trabalho, sobre como mexia com diferentes componentes matemáticos, mas preferia muito mais a parte teórica do que a prática. Disse que queria ser professor. Foi uma surpresa agradável. Quando saímos do restaurante, eu já sentia que minha noite estava perfeita. era realmente divertido e tínhamos muito em comum.
— Posso te deixar em casa hoje? — Questionou quando chegamos próximos ao estacionamento em que ele havia parado seu carro, próximo à estação de trem. Encarei-o rapidamente e voltei meu olhar para meu celular em mãos.
— Pode ser. — Comentei com a voz um pouco mais baixa.
— Só se você quiser, .
— Gostei.
— Do quê?
. Ninguém tinha me chamado assim antes. — Ele franziu o cenho.
— Sério?
— Na verdade, eu nunca deixei me chamarem assim antes. — Corrigi e um sorriso enorme surgiu em seu rosto — Sim, aceito sua carona. — andou comigo pelos cascalhos do chão pedregoso e abriu dramaticamente a porta do carro para mim — Sua presença ilustre em um carro tão humilde deve ser comemorada. — Gargalhei ao entrar e o encarei quando ele entrou no lado do motorista.
— Obrigada pela carona. Pegar o metrô a essa hora é cansativo.
— Fica tranquila. Sempre que precisar, só dizer. — Piscou e agradeci. Ouvimos axé durante todo o caminho da Marginal, que, sem surpresa, estava com trânsito. Ao chegarmos em frente ao meu prédio, fui tomada pelo impulso de dizer que não morava ali e que poderia parar mais à frente. Velhos hábitos não sumiriam facilmente.
— Obrigada pela noite. — Agradeci quando estacionou o carro. Encarei minhas próprias mãos — Foi muito divertido.
— Obrigada por ter aceitado. — Ele virou-se para me encarar. Deitei a lateral da cabeça contra o banco.
— Você é fofo, eu gostei disso. — Comentei honestamente.
— Fofo? Eu não tinha recebido essa antes.
— Sério? O que costumam dizer?
— Me chamam de hiperativo, animado demais, agitado e por aí.
— Isso também! — Exclamei. deu de ombros.
— É um charme.
— Sim, é. — Concordei e um silêncio confortável se instalou entre nós dois. Apenas Calcinha Preta era ouvido no carro. Senti saudades de casa por alguns instantes.
— Está tudo bem? — Sua voz saiu mais baixa.
— Senti saudades de casa. — Encarei o rádio de soslaio e ele segurou a risada.
— Ouvir Calcinha Preta te lembra a sua casa? — Arqueou a sobrancelha. Ri e assenti.
— Todo final de semana, essa é a trilha sonora. — Ele gargalhou e se aproximou um pouco mais em seu banco. Controlei meu ímpeto de me afastar. Ele não havia feito nada que eu não quisesse. Não faria agora, faria? — Eu preciso subir. — Falei e ele assentiu.
— Boa noite.
— Boa noite. — Respondi, mas sem parar de encará-lo. Aproximei-me e beijei sua bochecha rapidamente. abriu um sorriso largo e encostou a cabeça contra o estofado.
— Boa noite. — Sorri e abri a porta do carro, saindo rapidamente.
Meu coração travou no peito quando observei um homem parado no final da rua. Cerrei meu punho. ? Uma onda súbita de desespero subiu por meu corpo quando o homem saiu andando para o outro lado da rua, mas o material do relógio refletiu na luz do poste. Meu peito começou a subir a descer rapidamente, minhas mãos tremiam e tudo ao meu redor parecia virar uma paisagem desconexa. Soltei um arquejo de dor quando senti que algo esmagava meu corpo contra o chão. As lágrimas começaram a descer desesperadamente junto com a ânsia de vômito. Apoiei-me no muro e apenas observei indistintamente quando apareceu em minha frente, os olhos assustados.
? — Sua voz parecia distante conforme o ar começava a faltar. Gesticulei como se tentasse respirar, mas tudo misturava às lágrimas e ao desespero. Ele não tentou me tocar, mas não foi necessário para que o mundo se fechasse ao meu redor.
— Eu quero ir para casa. — Chorei e me encolhi sobre meus joelho, desmoronando. As lágrimas caíam desesperadas e apenas consegui virar o rosto o suficiente antes de vomitar.
havia sumido quando levantei o olhar. Chorei mais alto, e, quando sentia minha vista embaçar, senti as mãos de ao meu redor, levantando-me no colo. E a partir daí, só me lembro da mão de contra minha garganta, tirando o ar dos meus pulmões na mesma intensidade como fizera da última vez.

*

— Se eu não te matei ainda, é porque você não merece. — gritou contra meu rosto. Bati em meu peito várias vezes.
— Mata, anda, mata! — Berrei com os olhos cheios de lágrimas — Você não tem coragem, você não me mataria! Então por que continua dizendo que quer me matar? Vai logo! Você é um merda, você não tem coragem. — Desafiei. Fui até a cozinha e peguei uma faca enorme, completamente cegada pelo ódio, e a coloquei nas mãos de — Anda logo, mata! — Berrei uma última vez quando sua mão se dirigiu até meu pulso, apertando-o fortemente. Arquejei de dor e ele apenas apertou mais forte.
— Quando eu te matar, vai ser em algum momento propício para uma vagabunda como você. — E cuspiu em meu rosto. Passei o pulso pela minha bochecha e as lágrimas continuavam a descer.
— Eu vou te denunciar. — Ameacei com um sorriso quase sádico. Havia perdido toda a noção do perigo ao meu redor.
— Ah, vai? — Ele largou a faca no chão e puxou minha cintura contra a sua — Mas você me ama demais para isso. — Sorriu e, por um segundo, parecia arrependido — E eu te amo demais para deixar que faça isso. Olha isso, olha a bagunça que você fez! — Ele olhou ao redor, parando o olhar na faca — Você pediu que eu te matasse, mas eu não matei, sabe por quê? — Fechei os olhos quando sua mão arrumou o cabelo atrás de minha orelha — Porque você é minha. Até seu último suspiro você é minha. E não te quero morta, não…
— Me deixa ir embora. — Implorei com o asco escorrendo por minha voz.
— Pode ir. — Ele me largou e apontou para a porta — Amanhã conversamos, você está uma bagunça.
Peguei minha bolsa e fui embora, as pernas trêmulas e meu corpo inteiro implorando por uma pausa. Foi quando senti algo ser jogado contra minhas costas. Gritei de dor quando senti algo rasgar minha coluna da nuca até a lombar.
— Nunca me dê as costas. — Ele rosnou e se aproximou devagar. Tentei me esquivar de seu toque, e foi só quando senti meus olhos abrirem e um grito desesperado sair por meus lábios que entendi que estava sonhando.
Coloquei a mão contra meu peito suado e as lágrimas voltaram a descer.
? — Abri os olhos ao observar irromper pela porta.
— O que você está fazendo aqui? — Questionei assustada ao vê-lo parado apenas com sua camisa social e a calça social preta. Ele tinha um pano de prato em seu ombro e uma panela nas mãos.
— Eu estava te esperando acordar antes de ir. Tentei procurar alguma forma de contatar Annie, mas seu celular tem senha e não tem mais ninguém na empresa que possa me informar o contato dela. — Assenti e limpei o resquício de lágrimas em meus olhos. Observei meu corpo. Ainda estava com as mesmas roupas. Minha cabeça estava dolorida, como se houvessem batido com a panela contra minhas têmporas.
— Obrigada. — Agradeci e respirei fundo, os efeitos do ataque de ansiedade preenchendo meu corpo — Desculpa por você estar passando por isso. Ainda mais depois de um primeiro encontro. — O peso da culpa se instalou em meus ombros. Continuei olhando para minhas mãos. Todo o progresso dos últimos dias parecia ter evaporado. Eu estava de volta à estaca zero, mas dessa vez havia alguém além de Annie para observar. Nunca me senti tão suja.
— Você quer conversar sobre o que aconteceu? — Ele perguntou em tom brando. Encarei-o e neguei — Tudo bem. Eu vi que vocês tinham algumas coisas na geladeira, então estou fazendo algo para você comer. Desculpa por ter mexido na sua geladeira.
— Você cozinhou? — Arqueei a sobrancelha — Lembro de você ter dito que odiava cozinhar. — deu de ombros.
— Eu consigo me virar.
— Eu vou tomar banho e já vou. — Murmurei com a voz rouca e ele apenas fechou a porta.
Entrei no banho com toda a certeza do mundo de que havia espantado . Ele não precisava ter passado por aquilo. Na verdade, ninguém precisava. Eu também não. Nada daquilo era justo, não era justo eu sofrer pelo que havia feito comigo. Nada daquilo era justo!
Já pensava em alguma maneira de expulsar sem que ele se sentisse desconfortável. Afinal de contas, ou acha que sou maluca ou que sou estragada por dentro. Sei que não sou nenhum dos dois, mas me deu um aperto ao pensar que ele era um cara legal e que poderia se afastar depois disso. Sequei meus cabelos na toalha enquanto me lembrava de que ninguém era obrigado a gostar de mim, ainda mais na situação em que eu estava. Não podia pedir a ninguém para carregar algo tão grande quanto aquilo comigo.
Enrolei para trocar de roupa, ainda refletindo sobre como poderia me desculpar devidamente. Mandei uma mensagem para Annie falando que estava indo dormir. Não queria preocupá-la mais uma vez.
— Nossa, que cheiro bom. — Murmurei quando saí do quarto e senti o cheiro de tapioca com queijo e orégano. Cheguei à cozinha e observei colocando a segunda tapioca no prato. Minha pia estava limpa, tudo estava organizado. Como se ele sequer houvesse mexido — Você é organizado? — Questionei tentando levantar um tom brincalhão. Agradeci a por seguir a onda e sorrir.
— Sim. É um dom e uma maldição. — Ri e assenti. Cruzei as pernas e não me aproximei.
— Obrigada. Você pode ir agora, se quiser. Estou de pé, bem, vou tomar um remédio agora e dormir a noite toda. — arqueou a sobrancelha e começou a lavar a frigideira, colocando-a no escorredor em seguida.
— Vou assim que você comer. — Afirmou e apoiou-se contra a pia, os braços cruzados — Eu levei um baita susto lá embaixo, você deve ter ficado mais ainda. — Assenti e aproximei-me pegando um dos pratos — Ah, fiz suco de laranja. Vitamina C é importante. Além disso, deixei uma papa de aveia na geladeira. Vai ajudar o seu corpo.
— Obrigada.
— Você já disse isso. — Comentou com um sorriso. Fiquei de frente para ele, apoiada contra a mesa de jantar. Comecei a comer minha tapioca e tomei alguns goles do suco natural.
— Eu nem lembrava de que tínhamos laranja.
— Isso me preocupa. — Ele riu e mordeu mais um pedaço de tapioca. Encarei-o curiosa.
— Por quê você ficou? Não precisava ficar. Não precisava mesmo.
— Eu não ia te deixar aqui sozinha. Ainda mais naquela situação. — Mordi meu lanche para criar tempo enquanto absorvia. Ele parecia ser um cara decente.
— Obrigada.
— Não precisa mais dizer isso, .
— Mas eu vou! — Exclamei — Você viu o que eu não desejaria que tivesse visto. Foi nosso primeiro encontro e eu já te afugentei daquela maneira. Eu não estou feliz com isso. As pessoas começam a ver o pior umas das outras quando, no sétimo, oitavo encontro? — Mordi raivosamente minha tapioca. A coitada não tinha culpa — E eu fui fazer isso logo no primeiro?! — esperou pacientemente. Parecia estar me analisando.
— Você só acelerou o que eu já pretendia ver.
— Hm?
— Acho que podemos mudar apenas a ordem das coisas, sabe? O que eu vi pertencia ao oitavo encontro, então, no oitavo encontro, podemos fazer algo diferente. — Arfei.
— Você ainda está pensando em um oitavo encontro comigo depois daquilo? — Questionei com surpresa.
— Ué, por que não estaria? — Tomou um gole de suco — Você teve uma crise de ansiedade pesada, mas você tem seus motivos, não tem?
— Você não conhece os motivos, . — Argumentei.
— Você matou alguém? — Torci o nariz.
— Não.
— Você é uma criminosa?
— Achei que ser assassina configura como crime — arqueou a sobrancelha — Não.
— Você está fazendo mal a alguma pessoa e isso está consumindo a sua consciência?
— Não. — Respondi prontamente. abriu os braços, o que consumiu quase todo o espaço da cozinha minúscula, e sorriu.
— Então é só isso o que preciso saber por agora. Quando você estiver pronta para me contar, conte. Quem sabe no oitavo encontro? — Piscou para mim e colocou o braço próximo ao meu para pegar meu prato agora vazio. Sua mão tocou a minha e, quando ele colocou o prato na pia e virou-se para fazer provavelmente uma piada, segurei seu antebraço.
me encarou seriamente, os olhos fitando os meus.
— Está tudo bem? — Perguntou preocupado. Apenas assenti e aproximei-me um pouco mais.
Segurei seu pescoço e o beijei. Suas mãos se apoiaram em minha cintura, puxando-me para mais perto. Fiquei na ponta dos pés, meu corpo envergando para alcançar plenamente o dele. Sorri entre o beijo, as mãos de me puxando para mais perto. Eu conseguia apenas ouvir nossos suspiros ecoando pelo apartamento, meu corpo tenso, mas ainda mais relaxado do que eu havia estado em muito tempo. Acariciei sua bochecha durante o beijo e ele sorriu, afastando nossos rostos rapidamente.
— Você é linda pra caramba. — Ele murmurou e dirigiu seus beijos para meu pescoço. Assenti e senti meus olhos revirarem quando ele puxou levemente o lóbulo de minha orelha entre os dentes — Eu preciso ir, princesa. — Arfei quando sua mão soltou minhas coxas. Estávamos quase um em cima do outro e eu sequer havia percebido. Olhei-o atordoada. Queria mais. Eu havia começado aquilo e não queria parar no momento.
— Você precisa?
— Eu não vou fazer nada com você, ainda mais depois de uma crise de ansiedade.
— Mas eu quero. Não vai estar se aproveitando de mim se eu que comecei! — Argumentei e percebi o quão ridícula eu soava. Eu realmente queria tanto beijá-lo? pegou uma mecha de meus cabelos na mão e voltou a me encarar.
— Eu esperei por bastante tempo para te beijar, vou esperar mais um pouco. — Minha cara de surpresa o fez rir — O que foi?
— Explica isso aí, essa frase. — Exigi com o cenho franzido.
— Eu passei o semestre inteiro gostando de você, querida. — Deu de ombros — Sabe? Quando você gosta de alguém e quer muito estar próximo àquela pessoa? Esse tipo.
— Eu não tinha ideia. — Murmurei estupefacta. E eu estava.
Lembrei-me de quando estudávamos juntos. Fora aquela cantada, quando eu informei que tinha namorado, ele não havia tentado mais nada. Continuávamos conversando durante as aulas, às vezes fora delas também. Já havíamos bandejado juntos, até mesmo já havia ido a uma festa com ele e os amigos, eu recordava. Ele nunca havia dado bandeira de que estava interessado em mim.
— Você tinha namorado na época. — Deu de ombros. Recordei-me de Kayo. Arregalei os olhos. Eu havia namorado com aquele menino por apenas um mês, mas ele conseguiu uma chance de intercâmbio em Londres e decidimos ser apenas amigos.
— Eu só namorei por um mês. — Recordei.
— Eu achei que estivesse namorando por todo aquele período de seis meses que fez engenharia. — Neguei com a cabeça — Que merda. Perdi uma chance anos atrás, então? — Ri e maneei com a cabeça.
— Pelo visto, sim. Mas tudo bem, a daquela época não estava pronta para se envolver com alguém.
— É, o também não. — Comentou — Bem, agora que sei que deixei passar a chance de beijar sua boca linda antes, vou pensar nisso a noite toda.
— Gaste sua energia para outra coisa. — Desdenhei e ele arqueou a sobrancelha — Hã… Eu não sei como isso soou, mas, quer dizer, você usa o seu tempo como quiser e— começou a gargalhar e balançou a cabeça.
— Fica tranquila. Entendi o que quis dizer. Estou indo, princesa. Boa noite. Se precisar de algo, por favor, me avise. — Assenti e o acompanhei até a porta. Ele pegou seu terno sobre o sofá — Está bem mesmo?
— Estou. Você teve grande ajuda nisso. Obrigada, de novo. — abaixou-se rapidamente e me beijou. Permaneci com um sorriso quando fechei a porta.

Quando deitei a cabeça no travesseiro, fechei os olhos por alguns segundos. tomou rapidamente minha memória. Toquei meus lábios e abri um sorriso. Estava me sentindo uma boba. Na realidade, uma mistura de nervosismo com loucura e insanidade tomavam meus pensamentos. Eu estava me abrindo rápido demais, sem pesar que poderia ser exatamente como . Aquilo fez com que meu corpo se enrijecesse. Eu não havia sopesado aquela possibilidade. Pensei nos sinais que demonstrara no início. Não havia nada de suspeito, mas o tempo disse.
Sentei-me na cama, peguei o celular e pensei em ligar para Annie, mas ela devia ter ficado na casa do noivo para dormir. Percebi que não havia com quem conversar naquele momento sobre minhas dúvidas porque implicaria em falar sobre , e somente Annie sabia sobre todo aquele rolo. Deitei a cabeça nos joelhos e suspirei. Estava me desesperando por nada.
“Ei, está tudo bem?”
A mensagem de apitou na minha tela, iluminando o quarto.
“Sim, tudo certo. Chegou bem?”
“Sim, sim. Está tudo certo. Você recebeu seu presente?” Franzi o cenho.
“Que presente?”
“Ah, eu encontrei um homem na saída. O nome dele é . Ele pediu para te dar um aviso… Eu não o conheço, mas ele disse que não queria incomodar porque achou que você estivesse dormindo e seu celular estava sem bateria. Ele pediu para dizer que te daria um presente, mas não me disse data ou nada disso. Só me pediu para te avisar isso.”
Larguei meu celular na cama ao passo que meu coração acelerava. O som da campainha me assustou e, quando levantei da cama, percebi que minhas pernas tremiam. Annie finalmente devia ter chegado. Corri para abrir a porta e poder pedir para ela que me levasse à polícia. Quando observei quem estava do outro lado, desejei que não tivesse ido embora, que eu tivesse contado a ele mais cedo que estava solteira. Se eu o tivesse aceitado antes, talvez não estivesse parado em frente à mim com uma arma em mãos apontada para minha cabeça.

“Eu acho que ele subiu logo após eu ir embora. Você já deve ter recebido então, não é?”

Se presenciar algum caso de violência contra mulher, disque 180.



Fim.



Nota da autora: Oi, pessoal. Eu não costumo escrever histórias pesadas assim, mas eu senti que precisava dessa. Fanfics nem sempre relatam a realidade de muitas mulheres, e quis que essa revelasse. Não sei o que aconteceu com , não me permiti pensar além do que escrevi. Mas quero torcer para que ela tenha sobrevivido. Essa não é a realidade de muitas mulheres brasileiras, infelizmente. Não permaneçam caladas, denunciem!


Outras Fanfics:
05. Fancy
Nine Years Missing Us
Zoo

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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