Finalizada em: 04/05/2021

Capítulo Único

A névoa escondia as últimas velas do navio no distante horizonte. O silêncio era a única companhia, nem a lua queria ser testemunha daquele momento amaldiçoado. Uma silhueta baixa arrastava-se cambaleante para fora do mar gelado. Era o primeiro dia do inverno de 1962. A bandeira preta marcada pela caveira sumia no limiar entre céu e mar.

•••

O amanhecer no Porto de Cartagena era movimentado. Navios eram carregados e descarregados sem parar no quarto maior porto da Espanha. O barulho era ensurdecedor, gritos, xingamentos, risadas... Martín estava acostumada a desviar da movimentação insana, mesmo com os fardos de flores presos aos braços. Cumprimentava a todos com um sorriso, sua presença já era usual ali.
Tudo era muito dinâmico. Pessoas iam e vinham o tempo todo, poucas eram as coisas que eram permanentes, mas ver os vasos repletos de flores na beira do cais era de lei. Incomum e totalmente inesperado, no entanto, era encontrar alguém sentado na mureta observando o nada, totalmente alheio ao mundo, mesmo com tanto ruído e bagunça ao redor.
— Com licença, senhor. Poderia chegar um pouco para o lado? Preciso arrumar a barraca. — pediu.
Silêncio. Ele sequer se virou.
— Senhor? — Insistiu. — Moço?
Não era possível que alguém fosse mal educado a esse ponto. Até o mais bruto dos marinheiros que encontrava durante a jornada de trabalho sabia responder com cordialidade.
Redistribuiu os fardos entre os braços, para poder tocá-lo e chamar sua atenção.
— Ei, estou falando com vo-
Era frio. O pesado sobretudo que o cobria estava gelado e ensopado. Como ele não estava tremendo?
O homem olhou para trás e encarou-a. Olhos oblíquos e curiosos. Traços finos, elegantes. O cabelo estranhamente claro para alguém que parecia vir da Ásia.
A cabeça inclinou-se ligeiramente, ele a observava com atenção.
— Senhor, me dê licença, por favor.
Os dedos indicadores se cruzaram sobre os lábios descorados.
— Você é mudo? Não fala espanhol? — Disse ligeiramente mais alto e pausadamente.
— Espanhol… não. — Repetiu com cuidado.
Bem, mudo ele não era. O sotaque era diferente de tudo que ela já tinha ouvido no tempo em que trabalhava no porto. De onde teria vindo o homem? Ele entendia o que ela falava, aparentemente, e repetia com um mínimo de qualidade.
— Saia daí. — Acenou com a cabeça. As flores começavam a pesar. — Trabalho. — Ergueu os braços, mostrando a carga presa a eles.
A moça de pele oliva admirou-se com as vestes do desconhecido, quando ele desceu da mureta, colocando-se de frente a ela. Eram roupas antigas, como se ele viesse diretamente de uma festa a fantasia. Tecidos finos, ornados com botões bonitos, o sobretudo escuro tinha detalhes em bordado de alta qualidade. Se sua mãe fosse viva, certamente ficaria fascinada com a riqueza da costura.
Ele se inclinou sutilmente, em mesura, e deu as costas. Passos lentos e leves o afastaram alguns metros do local. Ele iria embora.
— Espere! — A vendedora chamou.
Aquela era uma aparição suficientemente curiosa para que a mente agitada de deixasse escapar por entre as mãos.
O homem apontou para si mesmo, questionando se era a ele a quem ela se referia.
— Não precisa ir embora. — A morena acenou para que voltasse. — O resto está livre. — Indicou o murado que separava o cais do porto do Mar Mediterrâneo. — Volte!
A florista parou em frente ao homem que, de pé, tinha a mesma altura que ela, antes que ele se acomodasse outra vez em sua singular meditação.
— Eu sou . — Pôs a mão no peito, indicando estar falando de si. — . Quem é você?
. — Ele repetiu.
— Sim, meu nome é . Qual o seu nome? — Pontuou cada palavra. — Seu nome!
. — Respondeu de maneira clara. — . — Imitou-a.
… Legal, um nome diferente.

Enquanto arrumava as flores nos cilindros de ferro chumbado, que um dia foram utilizados para prender barcos e âncoras, teve a silenciosa companhia daquele estrangeiro. Ele permaneceu da mesma forma, observando as ondas e o movimento do porto, absorto em seus próprios pensamentos. Em momento algum ele pareceu se incomodar com o frio, e, por mais que ventasse, suas vestes não aparentavam estar mais secas.
Os primeiros clientes chegaram e levaram consigo flores para suas amadas e grandes sorrisos da senhorita Martín. apenas observava. Ele não tinha o que fazer, não tinha certeza de que região da Espanha estava, apenas esperaria o dia passar. Um dia após o outro, até que o inverno chegasse ao fim. Até que pudesse voltar à sua infeliz existência reclusa por outros vinte anos, vagando pelos mares sem que ninguém lembrasse de si.
— Está esperando seu navio?
— Hum? — O homem se surpreendeu com a intromissão da florista.
— Você é marinheiro, não é? — Indicou as muitas embarcações paradas no porto.
Ele acenou em concordância, mas seu rosto tendia à melancolia. "Pirata", ele pensou.
era bonito, parecia bem cuidado, de traços finos, o rosto sem marcas ou cicatrizes deformando-o, ele não era como os marujos que ela costumava encontrar por aí, em geral brutos, grandes e musculosos. O estranho era engraçadamente baixo para ser um homem do mar. A forma como ele observava o bater das ondas, contudo, deixava claro que pertencia às águas profundas.
Pirata.
— Então, está sozinho aqui? Cadê seu navio?
— Sozinho. Não tem navio. — Respondeu com simplicidade, voltando a encarar o Mediterrâneo.
A moça de pele cor de oliva respirou fundo, pôs a mão na cintura e inclinou-se para se aproximar dele.
— Muito bem, vai ficar aí parado o dia todo? Se não tem para onde ir, tenho trabalho para você. Trabalho.
se perguntou se tinha compreendido corretamente o que ela disse. Primeiro, a personalidade expansiva dela o assustou um pouco. Havia convivido com mulheres ao longo de sua curta vida humana, mas nenhuma se aproximaria assim de um desconhecido. Ela o lembrava de uma pessoa querida que há muito se foi e levou consigo o sangue que mantinha vivo o corpo do pirata. Tão parecida, que era incômodo. A história tendia a se repetir. O frio subiu-lhe a espinha.
— Esses são lírios, ali tem rosas, aqui estão os gerânios. Lá no outro lado ficam as lantanas, que são venenosas, então não as coma; e as gazânias. Entendeu tudo? Lírio, rosa, gerânio, lantana, gazânia. — Repetiu, indicando uma a uma as flores. — Não estão muito grandes, mas vendem bem. Não precisa conversar com os clientes, deixa que eu faço isso. Você bem deve saber que as esposas ficam tristes esperando seus maridos voltarem do mar, flores são um excelente presente para devolver a alegria. — Suspirou. — Está conseguindo acompanhar?
— Lírio, rosa, gerânio, lantana, gazânia. — Repetiu.
— Maravilha!
O estômago de apertou, emitindo um barulho alto. Ele estava faminto. Há quanto tempo não provava das dores da carne?
— Meu Deus, você está com fome! — Surpreendeu-se com o som. — Vou te pagar pelo trabalho no fim do dia, não é muito, porque ganho pouco aqui. Deve dar para comprar o que comer. Enquanto isso, vou te arranjar um pedaço de pão para manter a boca distraída. Que bom que aceitou me ajudar hoje, ! — Sorriu abertamente.
Ele não havia aceitado, porém, não disse nada a ela. Já era um esforço tentar entender o que falava sem parar, não queria nem pensar no trabalho que daria explicar a ela que não estava interessado. Só queria que os dias passassem e ele seguisse despercebido. Sozinho como nos últimos cem anos.

Desde que chegou em terra firme, não se afastou mais de cinquenta metros da barraca improvisada onde vendia suas flores e isso era distância mais que suficiente para perceber que o mundo era outro, totalmente diferente do que conheceu. Seu corpo, temporariamente vivo, tinha necessidades e em terreno desconhecido e adverso como via ao seu redor, não seria fácil dar cabo delas. Por isso, e apenas por isso, aceitou permanecer ao lado da vendedora durante aquele dia.
Quando o sol se pôs, ajudou-a a recolher a mercadoria que sobrou e recebeu um pedaço de papel — uma nota — e algumas moedas pela ajuda prestada. Não sabia o que aquele dinheiro era capaz de comprar, imaginava ser pouco ou quase nada. Tinha fome, tinha sede, as pernas doíam, precisava aliviar a bexiga. Enjoado. Não se sentia confortável com a ideia de sujar-se de urina, menos ainda de fezes.
Ele não era humano. Bem, agora era. Até o fim do inverno, era tão humano quanto .
Seu corpo parecia duas vezes mais pesado, como se carregasse uma enorme carga sobre os ombros. Dentro de pouco tempo, precisaria dormir. Há vinte anos não tinha a gostosa sensação do adormecer. Adormecer, ver tudo escurecer. Sem sonhos, sem lembranças. Eram as horas de paz que poderia ter.
Ainda precisava de comida, mas daria um jeito. O pão ressecado com uma fina fatia de carne que arranjou para ele tranquilizou um pouco seu estômago mais cedo, agora a fome tinha voltado. Fome, sono, cansaço, podia ter novamente todas essas sensações. Elas eram reais, tão materiais quanto o corpo que as abrigava.
— Acabamos por hoje. Foi um prazer ter você como ajudante. — Ela estendeu a mão para que ele apertasse.
achou interessante a delicadeza com que ele aceitou o toque de sua mão, abrigando-a entre as suas. O corpo esguio e pequeno inclinou-se numa curta reverência. Sem jeito, a florista repetiu o movimento. A pele dele era inusitadamente fina e gelada para um marinheiro.
— Obrigada, . — Disse com seriedade. — Espero que encontre um navio. Cuidado com essas roupas molhadas, pode acabar pegando um resfriado.
O pirata assistiu a moça se afastar e ir embora.
Era noite. O movimento no porto diminuiu um pouco, mesmo assim era intenso. Sentia-se perdido. As estrelas indicavam suas coordenadas físicas, entretanto, o que buscava ia além do chão onde seus pés firmavam. Precisava de um lugar para passar a noite. As docas eram a melhor opção, só precisava descobrir como chegar até lá.
Voltou-se a sentar na mureta, enquanto o tempo passava devagar, prestava atenção ao navegar dos barcos, compreendendo seus padrões, buscando enxergá-los pelos olhos treinados de quem estava acostumado a estar atrás do timão. Os mais debilitados, cujo deslocamento sobre a água era lento e custoso, tendiam a virar à esquerda após passarem pelo farol que iluminava a noite. As docas provavelmente ficariam por ali, rodeadas pelo cais. Era lá que os navios iam para serem reparados e seria o abrigo de aquela noite. Sempre havia um canto para se esconder em meio aos cascos e peças.
Os barcos de grande porte, em sua maioria, não usavam mais velas como na época em que cruzava os mares, mas as diferenças não eram tão gritantes em termos de anatomia. Um bom pirata conhece um navio como a palma da própria mão. Poderia encontrar esconderijo e se distrair consertando embarcações nas docas até o fim do inverno, contanto que não entrasse no mar. Ninguém perguntaria seu nome, ninguém perguntaria de onde viera, era apenas trabalho braçal. Ninguém abriria um enorme sorriso para um desconhecido e o convidaria para passar o dia ao seu lado. Ninguém seria Martín. Tão cheia de vida, que causava incômodo àquele que foi condenado a vagar pelo oceano eternamente, devendo habitar entre os vivos por três meses a cada vinte anos para sentir as dores da carne.
Estar vivo fazia desejar cada vez mais estar morto por completo. Precisava de descanso. Sua alma não suportava mais.
Lágrimas quentes contrastaram com a pele gélida de seu rosto. O vento salino rapidamente as secou. Estava exausto e mal havia começado. Talvez ela o tivesse enfraquecido, fazendo-o desenterrar memórias que preferia que o tempo apagasse. Não cabia mais a ele qualquer sentimento que não fosse o pesar e a melancolia. Sua maldição era o sofrimento eterno.
Podia suportar a fome que amarrava o estômago, a dor lancinante na bexiga cheia, o frio congelante, porque suas roupas jamais secariam. Era a quinta vez que passava por isso, chega o momento em que se aprende a lidar. Mas não estava preparado para ela. Ele já tinha visto aquele sorriso em outro rosto. Foi a última coisa que contemplou, antes que seus olhos se fechassem no centro de um círculo traçado com seu próprio sangue.
— Deve ter caído por aqui, Gabe. Só me dei conta quando cheguei em casa.
Já estava delirando? A falta de comida devia estar afetando seu cérebro. Podia jurar ter escutado a voz dela. Tudo bem, a vista já estava embaçando. Não demoraria muito até apagar. Desde que não caísse no mar, se recuperaria, caso fosse parar desmaiado nas pedras no porto.
— Anda logo, não é hora de estarmos fora de casa.
Tinha outra pessoa com ela. De onde saíram essas vozes?
, você ainda está aqui? Meu Deus!
Passos apressados. Como o conheciam? Por que chamavam por ele? Um toque no ombro. O mesmo de mais cedo.
— Gabe, corre! Me ajuda aqui!
Escuro.

•••

Quente e confortável, como há tempos não se sentia. Às vezes escutava alguém se aproximar, mexer em seu cabelo, colocar algo em seu rosto e sair. Então tudo ficava calmo novamente. A consciência ia embora, o sono o embalava e voltava ao limbo.
Aos poucos, foi buscando compreender melhor o que acontecia ao redor, mesmo sem ter controle de seu corpo. Não sentia o peso das roupas, tampouco o toque gélido delas. Algo levemente pesado estava sobre si, era aconchegante.
Não sabia quanto tempo se passou, se estava ainda vivo, se a misericórdia divina finalmente o alcançou, se estava livre. Naquele momento, naquele espaço-tempo que poderia se estender infinitamente, estava em paz.
O sol atingiu seus olhos, parecia a primeira vez que via a luz. Ardeu. Vagarosamente foi tendo controle de seus movimentos. Os braços pareciam firmes, feitos de carne. Sentou-se com certa dificuldade e tocou o restante do corpo, do rosto aos pés. Tudo no lugar, tudo vivo. Um cobertor lhe tapava o corpo, estava nu sobre um colchão fino. Ao redor, a penumbra projetava sombras nas paredes de madeira. Não fazia ideia de onde estava. Um porão, provavelmente, a julgar pela pouca luminosidade que adentrava pela janela estreita de frente para si.
Definitivamente estava em terra firme, não sentia o característico balanço das ondas que sacudiriam o porão de um navio.
A civilização e as tecnologias tinham avançado muito desde que foi exilado do mundo dos vivos e quando voltava a cada duas décadas, tinha mais certeza de que não pertencia e tampouco se adaptaria ao mundo cinza que estava sendo construído. O porão, porém, era visivelmente antigo. Estruturado em madeira, não em concreto. Muito similar àquele onde seu coração parou de bater cem anos antes.
Olhou ao redor, procurando algo que cobrisse sua nudez. Nada à vista, apenas o cobertor. Tinha de sair dali ou, ao menos, descobrir onde estava.
No fundo na mente, a última lembrança era a voz de chamando seu nome.
.
A porta se abriu. apoiou o pé direito no chão, de modo que, se precisasse levantar, teria base para fazê-lo rapidamente. Permaneceu alerta. A cabeça de um homem apareceu.
— Calma, capitão. Você está seguro aqui. — Falou tranquila e pausadamente.
Claro, se estava sem suas roupas, certamente haviam revistado seus pertences e descoberto suas insígnias de patente na face interna do sobretudo.
— Posso entrar? — Perguntou. — Sou Gabriel Martín, irmão da . Você está aqui há três dias.
acenou em concordância, embora continuasse tenso. Três dias desacordado… não era um bom sinal.
— Imagino que não fale bem espanhol, por isso, serei paciente. — Sentou-se em uma cadeira apoiada em uma estante velha. — Vou trazer roupas para você. Primeiro, diga seu nome e de onde vem.
. — Respondeu.
— Só ?
— Só . — repetiu.
— Vamos lá, capitão. Ninguém tem um nome só.
O pirata ponderou por alguns instantes. Estava nu, sozinho em uma época e lugar que não conhecia, era melhor colaborar. De qualquer maneira, aquele homem sabia com quem falava.
.
— Bem melhor agora. Coreia?
— Sim.
Gabriel levantou-se e saiu do cômodo. Rapidamente retornou com uma muda de roupas nas mãos, a qual entregou a .
— Vista-se. em breve virá te ver. Não diga a ela sobre nossa conversa ou a polícia ficará sabendo sobre você. Piratas não são bem-vindos nesse país.
Assim que Gabriel deixou o porão, levantou-se, esticou o corpo dolorido e pôs as roupas. Ficaram grandes, provavelmente pertenciam ao irmão de . Nada que dobras nos punhos da camisa e na barra da calça não resolvessem. Estar vestido já era um ganho, poderia sair dali o quanto antes.
! — A moça abriu a porta com um estrondo, correndo para perto do homem baixo. — Graças a Deus você acordou. Você está bem? Desculpa termos tirado suas roupas, estava tudo molhado. Eu não vi nada, juro! — A pele cor de oliva corou. — Pedi para o meu irmão fazer isso por mim. Ele me avisou que você estava acordado e desci correndo. Caramba, que alegria ver que você está bem! Não te vestimos antes, porque você ficava fazendo xixi mesmo dormindo, desculpa. Ai, que coisa horrível de dizer! A gente não sabia o que você tinha, não podíamos nem chamar um médico. Fui no cais procurar um dos meus brincos que tinha sumido e te encontrei desmaiado. Por que você ainda estava ali? Era quase meia-noite. Na verdade, você desmaiou praticamente em cima de mim, sabe? — Riu sem graça. — Te trouxemos para casa, porque não é seguro deixar um cara como você na rua, podiam te confundir com um comunista ou alguma coisa assim, por você ser asiático. Você ia acabar preso e eu ia me sentir muito mal por isso e-
. — Ele a chamou de volta à realidade.
Ela mal respirava, apenas falava muito mais rápido do que era capaz de compreender. Estava visivelmente preocupada e desconcertada.
— Fiquei tão assustada! — A florista envolveu o pirata em um abraço apertado, deixando-o sem reação.
Os braços dela ao redor do pescoço pálido levavam os corpos ao encontro um do outro. Era quente e confortável. A mesma sensação que teve ao acordar. Os lábios dela tocaram seu rosto repetitivamente, cobrindo as bochechas, a testa e o nariz com beijos.
— As roupas do Gabe ficaram boas, mesmo você sendo tão baixinho. — Os dedos calorosos adentraram os fios claros, acariciando-os.
Era ela quem mexia em seu cabelo, enquanto vagava pelo limbo da consciência, o toque era o mesmo. Intensa. Enérgica. Ardente. o olhava com carinho. Ele não estava preparado para se sentir humano dessa maneira.
… — encostou suavemente nos ombros dela, afastando-a.
— Desculpa! — Cedeu espaço a ele. — Eu não pensei direito, só fiquei muito feliz por te ver melhor. Não quis ser invasiva.
Envergonhada. A forma como o olhar voltou-se para o chão não deixava dúvidas.
— Não foi. Estou bem.
— Tem certeza? Você está sempre gelado. — Tocou o braço do homem. — Vim várias vezes botar panos quentes na sua testa para tentar te manter aquecido. Você não deve se lembrar, mas te demos sopa e água da melhor forma que pudemos. À noite, eu vinha ver se você estava bem e te encontrava resmungando e se contorcendo. O colchão amanhecia molhado, não precisa se sentir mal por isso. Era um bom sinal, seu organismo estava funcionando mesmo sem você acordar. Por isso não te vestimos.
— Obrigado.
— Não tem pelo que agradecer. — Sorriu. — Suas roupas foram lavadas e estão secando. O Gabe ficou muito interessado nos broches que você carrega, disse que são marcas de patente. Meu irmão era da marinha, mas depois que a mamãe morreu, ele preferiu sair para cuidar de mim. Não que eu precise de cuidados, trabalho muito para ter meu sustento. Enfim, você parece ser um cara importante. Espero que não se importe com a simplicidade da nossa casa. Fique conosco por um tempo, você pode passar mal de novo e o país não está num momento fácil para estrangeiros. Dizem que o Regime Franco não perdoa.
Antes que pudesse recusar a oferta, ela o abraçou novamente. O desconforto foi ligeiramente menor.
— Venha trabalhar comigo no porto amanhã, assim você não precisa ficar longe do mar e eu fico de olho na sua saúde. Te damos cama e comida e, em troca, você me ajuda a vender minhas flores. Gabe também acha que é uma boa ideia. É só até você se recuperar. — Depositou um beijo na testa coberta por fios claros.
Claro que Gabriel achou uma boa ideia, ele sabia que era um pirata e ficaria na cola dele por um tempo. O melhor lugar para manter uma ameaça é à altura dos olhos.
— Vou parar com isso, prometo! É que você é tão bonitinho. — Riu antes de se despedir. — Descanse mais um pouco. O jantar está quase pronto.

•••

Todos os dias eram claros perto de , a despeito do frio crescente e das reduzidas horas de luminosidade com o decorrer do inverno. seguia ocupando o porão da casa dos Martín. Cada vez que buscava uma forma de se afastar de e seu irmão, a moça o convencia a ficar mais um tempo.
Os sonhos tornaram-se mais vívidos, recordações indesejáveis eram lançadas contra si, enquanto estava mais fragilizado pelo sono. Estava falhando com a maldição que carregava. Deveria voltar à terra para sofrer as dores da carne, no entanto, estava tendo suas necessidades supridas pela incansável generosidade de . Por isso, a mulher que o desgraçou retornava em seu sono para torturá-lo. Quanto mais se permitia aceitar o apreço da espanhola, mais a mulher rasgava a carne de , mais dor ele sentia, mais o desespero o preenchia, pois, na ilusão em que estava preso noite após noite, jogada no chão à sua frente estava . Os longos cabelos negros encharcados de sangue. O sorriso para sempre apagado.
Acordar com a florista abraçada a si tentando, em vão, fazê-lo não gritar enquanto dormia, tornou-se usual. Todas as noites ela saía do quarto para descer até o porão e atender aos gritos de socorro do corsário. Ele pediria desculpas tão logo quanto recobrasse a consciência, ela diria que não tinha problema, que sempre estaria ali por ele. Ela procuraria um espaço no colchão para se aconchegar e passaria o restante da madrugada dividindo espaço com o homem.
Naqueles momentos de troca com , quase se permitia esquecer que não pertencia ao mesmo lugar que ela. Há um século não sentia o calor de outro corpo junto ao seu, tão frio.
Frequentes também eram as discussões entre os irmãos Martín. Embora se fingisse de distraído, ouvia os desentendimentos da reclusão do porão. Gabriel acusava a irmã de estar se deitando com o desconhecido que ela abrigava de favor. Ele sabia que ela dormia na quietude do quarto no andar de cima e mais de uma vez a flagrou amanhecer agarrada ao homem que ele sabia ser um pirata, um criminoso dos sete mares. O motivo de Gabriel nunca ter revelado o segredo de era um mistério, mas o coreano era grato por isso.
Era difícil não se sentir atraído por . Por mais força que ele fizesse para convencer-se que permitir isso era loucura, passar o dia e a noite ao lado da moça de pele oliva estava amolecendo-o. não continha suas demonstrações de afeto, entrelaçava distraidamente seus dedos aos de , enquanto carregavam flores até o cais, acariciava o cabelo claro do corsário no romper da alvorada até que o galo cantasse e eles precisassem levantar para mais um dia de trabalho, mexia com os múltiplos brincos nas orelhas pálidas.
Era insanidade consentir. Era impossível negar.
Ao contrário do que supunha Gabriel, o mais longe que tais carícias alcançaram foram um ou dois beijos no canto da boca roubados na meia-luz da madrugada. O pirata não dava esperanças à moça, todavia, não a impedia. o fazia sentir-se vivo.
Obviamente quis tomar os lábios dela nas vezes que ela timidamente aproximou suas bocas. Obviamente quis aceitar os sentimentos que ela não hesitava em demonstrar. Ela o lembrava daquela mulher, o sorriso e o jeito expansivo eram idênticos. Aquela que surgia furiosa em seus sonhos, o feria e o matava repetidas vezes.
Praguejava sua existência maldita. Derramava seu sangue como a água que desce de uma cachoeira. Criava miragens onde matava , mostrava a a espanhola sendo violentada, devorada viva, agonizando em dor. Ele acordaria com as sensações presas à pele, com a dor de cada corte latejando, a agonia tomando seu peito. E ao lado dele estariam os olhos brilhantes de , a voz tranquila repetindo seu nome e pedindo que acordasse. Era uma faca de dois gumes.
Assim, os dias passaram e o inverno anunciou sua despedida. Era hora de dar adeus.
Nos dias que antecederam o equinócio de primavera, a linha que separava os vivos do mundo dos mortos se tornava mais tênue. sentia o tempo se esgotar. Aos poucos, foi voltando a usar suas próprias roupas, dispensando as que emprestava de Gabriel. Passou a dormir com um pano na boca para abafar seus gritos, de modo a não acordar . Tinha de desintoxicar-se dela.
Na última noite que voltaram do porto caminhando pelas ruas escuras de Cartagena, cedeu ao desejo de beijá-la. Era a derradeira oportunidade. Abafados pelo som dos carros que iam e vinham, estavam os estalos dos lábios que finalmente se encontravam em um beijo doloroso. Não teve coragem de contar à que iria deixá-la naquela madrugada. Não teve coragem de encará-la.
Doía.
Egoísta.
Covarde.
Indigno.
O término.

Cada palavra escrita no papel doía como ser atravessado por uma bala.
Se perdeu ao insistir em uma batalha perdida.
Não queria abandoná-la. Como a adorava.
Mas nunca seria suficiente para ela.
Naquela carta, a libertava de toda e qualquer amarra. Que fosse feliz com outro que pudesse dar a ela a alegria que ela merecia. Família, filhos, sonhos. Ao lado de encontraria apenas a tristeza, a solidão e o sofrimento de uma alma que não pode descansar.
Pela estreita janela do porão, viu a lua se aproximar no meio do céu. Sobre o colchão no chão, o envelope tão abatido quanto o homem que vestia o pesado sobretudo escuro. Quando ela descesse para fazer companhia a ele, encontraria sua despedida.
— Estava esperando o dia em que você faria isso. — Gabriel Martín abordou-o na cozinha, enquanto bebia o último copo d’água. — Está fugindo, pirata?
— Não se incomode, Gabriel. Obrigado pela gentileza de não contar à polícia sobre mim.
— Foi pela minha irmã. Espero nunca mais vê-lo.
Em silêncio, o corsário calçou as botas e seguiu de portão afora, sem olhar para trás.
— Não verá. — Completou, quando não havia mais quem o ouvisse.

Caminhava novamente pela mesma curta faixa de areia em que pisou quando chegou.
O vento o chamava.
À beira-mar, os primeiros toques da água salgada em seus pés cobertos ardiam.
Sentia as pernas fraquejarem, era a despedida da carne. Não podia parar. Estava molhado até os joelhos.
As ondas o puxavam para a vastidão do oceano. Morrer doía. Nada próximo ao excruciante aperto que tomava conta de seu peito. Estava rasgando no meio.
O mar escorria por seus olhos, salgado, pungente. A visão estava embaçada pelas lágrimas, mas tinha certeza de que a lua estava no exato meio do céu.
A água cobria-lhe o pescoço.
No porão da casa dos Martín, o pranto de podia ser ouvido rasgando a noite.
O corpo pequeno e esguio desmaterializou-se como papel molhado. Era o fim de mais um ciclo.
O filho do mar condenado a retornar à terra firme para recordar-se do sofrimento da carne despediu-se com a maior das dores que já experimentara: a do amor.
No limiar entre céu e mar, um grande navio de velas pretas surgia.



FIM!



Nota da autora: Sem nota.

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O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer.
Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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