Capítulo Único
Woke up on the floor
Oh, this plastic bed don't blow up no more
In this broken home
Everyone becomes predictable
─ Tem carta para você, Frogurt ─ Donald Bernard chama, a mão espalmada com força na parede de metal da cabine. Me levanto em um salto, espero por essa merda tem tanto tempo agora que parece até uma piada.
Eles me chamam assim desde que cheguei, por causa do cheiro do xampu que trouxe na mala mal improvisada. Não tenho nem mesmo certeza de onde veio, provavelmente era da minha mãe ou da minha irmã. Não lembrava nem de ter trazido a merda comigo, tamanha irresponsabilidade.
Por um segundo, tenho certeza de que é bem provável que seja mesmo uma piada, mais uma que esses soldados babacas pretendem jogar em cima de mim. Ainda assim, alimento a esperança, aquela que coça de forma insuportável no mais profundo lugar em meu âmago, de que talvez alguém tenha mesmo se dignado a me escrever.
Meu pensamento voa direto para , para todas as palavras que trocamos e todas promessas que não pude cumprir. Também penso em minha mãe, é impossível não enxergar o seu cenho franzido e cansado ao me ver fechar o zíper da mala. Afasto o pensamento, ficou bem claro que ela desistiu de mim no exato momento onde deixei meu lar para trás, minha família e todas as responsabilidades que vinham no pacote.
As duas desistiram.
Não as culpo, se fosse elas, eu provavelmente teria desistido de mim também. Ninguém precisa de um rebelde sem causa em sua vida. Um alguém cujo único objetivo de vida é, aparentemente, fugir. De tudo, de todos.
─ O Almirante deu alguma nova instrução? – questiono, o coração de repente acelerado. Donald dá um aceno negativo em resposta, contudo capto com o canto dos olhos as laterais dos seus lábios subirem um misero milímetro. Aguardo a piadinha infame que sei que vem a seguir.
─ Parece que o Capitão de Fragata responsável pelo USS West Virginia tem expectativas de mandar os japoneses à merda hoje ─ ele dá de ombros, um movimento quase juvenil demais para um homem de 40 anos. ─ Eles não deviam ter começado a lamber as botas do bastardo nazista tão cedo, isso ainda vai dar uma merda grande, escute o que estou dizendo...
─ Besteira. Roosevelt não é idiota a ponto de abrir fogo agora, com metade da Europa em ruinas... ─ argumento, mas Donald me encara, incrédulo, e nega de novo com um aceno de cabeça, uma risada baixa escapa por sua garganta.
─ Quantos anos você tem mesmo, Frogurt ?
─ Dezenove.
─ Hmm , está explicado então... ─ diz entre mais risos. É a minha vez de encará-lo, sem entender. Ajusto minha postura, como se isso me fizesse parece mais maduro, ou menos, um pouco mais velho do que agora.
─ O que está explicado, senhor?
─ Que você é só um fedelho que não sabe de nada ─ ele resmunga, abaixo meu olhar para os sapatos e mordo os lábios com raiva. Quem caralhos é esse velho para abrir a boca e falar da minha vida? ─ Olha só, ─ ele diz ao me parar no corredor. Espera que alguns soldados passem por nós, então toca meu ombro em um aperto firme, porém gentil, e me encara nos olhos enquanto diz: ─ Escute o que estou te dizendo, estamos nos preparando para essa merda há muito tempo, desde que o Hitler botou o pau para fora das calças, e não acho mesmo que o senhor presidente vai seguir no mesmo papinho furado que o Woodrow discursou na primeira guerra de “estamos orgulhosos por lutar, mas vamos guardar as armas amiguinhos” ─ resmunga, chegando até mesmo a fazer as aspas com os dedos. ─ Isso aqui tá fedendo a carne podre tem um tempo, e daqui uns dias os ossos começam a boiar...
Seu olhar é tão sinistro e obscuro que engulo em seco, a saliva desce igual ácido correndo pela garganta. Mais uns soldados passam por nós, rindo até que nos encaram, o que faz Donald soltar meu ombro. O velho se vira para o outro lado e volta a caminhar, eu o sigo. Não sei se acredito em suas palavras, mas meu estômago começa a roncar, e não é de fome.
─ Tudo bem, Don... mas talvez o cheiro seja apenas de peixe... ─ ele gargalha alto, mas não diz mais nada enquanto caminha até a barraca comum, onde uma caralhada de soldado parece agir como se estivesse em uma colônia de férias.
Não dá para negar que essa coisa de guerra vai muito além daquilo que contam através da história, além daquilo que ouvimos na escola. E o clima é ainda mais pesado do que na primeira guerra, pelo que ouvi. Tem veteranos aqui no complexo de Pearl Harbor, caras que seguraram fuzis na primeira vez e agora tem que fazer o mesmo. Tem soldado que perdeu o pai, o irmão ou o avô, tem uns que perderam até a porra do parceiro.
Quando você se alista, tem que assinar que está ciente de qualquer merda que possa acontecer, e não é como se eu não soubesse de tudo isso quando botei o nome no papel. Na verdade, eu acho que já tinha ideia de como funcionava, uma ideia mais próxima da realidade, só não esperava que fosse me sentir assim tão inútil como agora.
─ Eeeeei frogurt , belezinha de carta ein... ─ Erikssen segura o papel entre os dedos engordurados de quem acabou de comer qualquer porcaria para matar a fome. Pulo em um só salto até sua frente e arranco o envelope de suas mãos. ─ E aí, vai contar para a gente quem é a cheirosa? ─ ele questiona com a boca cheia de batatinha frita, quase cuspindo o conteúdo na minha cara.
─ Me deixa em paz, panaca ─ respondo, lhe acotovelando no braço para que se afaste. Ele dá apenas um passo para o lado, mas derruba seu salgadinho, o que o faz ficar chateado o suficiente para se afastar. Bom, muito bom.
Assim que deixo a sala, seguro a carta com as duas mãos, como se o papel amarelado pudesse pesar duas toneladas. Aspiro profundamente o aroma que sai do envelope, talco e jasmim, que parece atravessar minha mente e correr por minhas veias, direto até o centro do meu coração.
Oh, sometimes you're angry
Sometimes you're hurting
Sometimes you're all alone
Sometimes I'm anxious
Sometimes it makes me
Feel like there's only now
Se eu fechar bem os olhos, consigo enxergar cada detalhe do seu rosto, cada uma de suas sardinhas acobreadas na pele tão clara que parecia nunca ter visto o sol. Consigo sentir a maciez do seu cabelo se umedecendo ao se espalhar pela neve dura. Seus dedos firmes, porém, gentis, correndo como longas notas em um piano sobre meu corpo. Consigo vê-la, sentada do outro lado da igreja, enquanto seus lábios se movimentam concentrados enquanto canta um dos hinos cafonas que o pastou inventou.
Sei de cor quantas respirações dei desde quando deixei tudo para trás. Quantos sustos levei ao ouvir sua voz no escuro, sussurrando meu nome. Mesmo que soubesse que ela nem sequer estava ali.
Abro a carta com as mãos trêmulas, a caligrafia perfeita me faz ficar com o coração apertado, o seguro um pouco mais no peito e me apoio contra uma parede para começar a ler:
“Querido ,
Pensei incontáveis vezes em como deveria começar a lhe redigir esta carta, mas não há palavras suficiente para suprir o quanto sinto sua falta... Alguns dias, chego a olhar para fora e acredito que o sol não voltará a subir no céu, não o suficiente para aquecer o meu corpo como seus abraços amorosos faziam.
Sinto falta da sua presença nos mínimos detalhes do meu dia, mesmo que enquanto estivéssemos juntos, tudo não passasse de um grande segredo. Um que tive o prazer em guardar até o momento que decidiu partir...
Não sei se um dia...”
─ Frogurt , o almirante pediu para todos seguirem até o convés... ─ chama um dos soldados, que não consigo nem me lembrar do nome, tão jovem quanto eu. Ele me interrompe, mas antes que eu possa voltar meus olhos para a carta, ele dá um tapa na parede, chamando minha atenção. Dobro o papel e guardo no bolso da camisa.
Seguimos em passos rápidos até uma das salas de comunhão, onde vários outros soldados de menor patamar, como eu, estão. Muitos ali são novatos, sei disso porque não os reconheço de nenhum treinamento. Claro que também só estou aqui há cinco meses, mas quando se está a serviço de uma guerra em proporções mundiais, ainda que nem mesmo estejamos participando ativamente da guerrilharia, cada dia parece a porra de um ano.
─ Faz ideia do que ele quer? ─ questiono, mas todo e qualquer aceno de cabeça é negativo. E para falar a verdade, parece que todo dia é uma incerteza atrás da outra. Como se só estivéssemos esperamos a bomba estourar no nosso casco. Literalmente.
Enquanto aguardamos as novidades, aproveito para ler mais um pedaço da carta da minha garota:
“... se algum dia poderei te perdoar de verdade, mas eu tento, todos os dias, me lembrar de quanto todo momento que compartilhamos juntos foram os mais especiais da minha vida, e de quão especiais eles ainda podem ser. “
I've been living in my lowest, it's safe to say
Hope my little bit of hope don't fade away
I've been living on an island made from fate
“Sonho com você, e conosco, quase todas as noites. Sinto-me perdida logo em seguida e perco o sono, durante todo o restante da noite. Como se o brilho das estrelas no céu límpido nos fizessem mais próximos. Também pego-me a pensar, será que você olha para as estrelas e me vê, me sente mais próxima, assim como eu vejo a ti? ”.
Ela não faz a menor ideia do que sinto de verdade, de tudo que sempre quis viver ao seu lado. Se ao menos soubesse que não foi uma escolha não dizer adeus, que não foi algo que eu decidi sozinho. Queria poder lhe dizer que foi para o bem dela, queria que pudesse fazer isso de forma que ela acreditasse em mim. Mas sei que qualquer palavra que colocasse no papel, chegaria distorcida ao seu conhecimento, que seu pai, o pastor a faria me odiar um pouco mais.
Não consigo deixar de pensar em como as coisas seriam agora se o pastor nunca tivesse nos flagrado aos beijos, minha boca sobre o seu colo nu, acariciando sua pele alva sem muitos pudores. Ah, se o pastor ao menos soubesse que nada daquilo tinha haver com luxúria, que nenhuma de nossas carícias eram lascivas, mas sim afáveis, amorosas.
Talvez se o pastor não tivesse nos proibido qualquer contato, nunca teria cortejado de todas as maneiras erradas que fiz. Se não tivesse feito-nos prometer que nunca mais encostaríamos sequer um sopro de nossas palavras um para o outro, não teríamos consumado nosso amor mais carnal de forma escondida e proibida.
A verdade é que, se o pastor não fosse um meio cristão filho de uma puta e cruel, eu teria levado sua filha para o altar, e não a fodido nos fundos da sessão reservada da biblioteca.
Afasto as memórias e observo ao redor, os demais soldados ainda engajam em conversas animadas e cheias de piadas escrotas, pois suas gargalhadas são altas e quase vis, como se nada do que saísse de suas bocas fossem para o bem de qualquer outra pessoa. Volto a concentrar meus olhos no papel:
“Sei que a última vez em nos falamos, posso ter passado a pior das impressões a você. Espero que não tenha me levado tão a sério, não quis dizer metade do que posso ter dito. Não queria que tivesse ido embora, . Nem mesmo que fosse para mostrar ao papai que é um homem de verdade. Você sempre foi um homem bom e honesto, não precisava dessas porcarias de farda e armas para provar sua honra...”.
Não acho que ela entenda, de verdade, como essas coisas funcionam. Sua família me jurou de morte, quanto descobriram o que fizemos juntos, mais de uma vez. Seus irmãos me desafiaram para um duelo, como se ainda fosse algo comum, e seu pai me fez prometer que iria limpar sua honra, ou que ele lhe jogaria na sarjeta logo depois de me matar.
Eu não ligaria muito caso me matasse de verdade, mas que diabos, eu não poderia viver nenhum outro dia, nem nessa vida nem no mundo além, se soubesse que ele havia lhe deixado sem nada, sem um futuro. Posso não ser um bom homem como acredita, mas eu não permitiria que simplesmente não tivesse um futuro feliz.
Porque de todas as coisas do mundo que sempre lhe desejei, desde que a vi pela primeira vez, correndo com seu vestido cor de abóbora esvoaçante para dentro daquela maldita igreja, foi pura e plena felicidade. Uma alma boa não merece nada menos do que isso.
Às vezes me pego pensando, se eu pudesse voltar atrás, se faria qualquer coisa diferente, . Se tivesse me ajoelhado em frente à sua mãe e lhe levado buquês de flores da estação, se teria pedido permissão a cada um dos seus irmãos ao invés de ter roubado o primeiro beijo.
Mas não me arrependo de quase nada, o único arrependimento está em não ter tido um pouco mais de coragem, um mísero minuto a mais de paciência e coragem para ter dito não ao seu pai, o suficiente para pegar sua mão e correr pelo mundo. Eu e você, nossa família, contra o mundo.
Can't go running back to home, I can't face her face (oh)
Oh, finally grown, ain't nothing like I hoped it would be
Out on my own, I'm floating in an ocean-less sea
Could I be wrong? Was everybody right about me?
Scary things in my head, I can't dream and I just
Eu sou um grande, grande idiota.
─ Soldados! ─ o primeiro Capitão de Mar e Guerra adentra a sala, sua voz ribomba nas paredes metálicas, chamando nossa atenção. Eu amasso a carta de qualquer forma e enfio o papel no bolso da camisa.
─ Senhor! ─ respondo, assim como todos os demais, que saltam para manter a postura de sentido até que o Capitão nos libere da posição. Assim que ele o faz, vejo os homens relaxarem um pouco os ombros. Mas seu olhar duro e escurecido me faz correr um arrepio desde a nuca até a ponta dos pés.
─ Jovens, fomos informados por Washington que uma mensagem de quatorze partes chegou aos correspondentes da Embaixada do Império do Japão na capital... Já começaram os procedimentos de tradução, senhores, mas fui orientado a informá-los que se preparem... Não sabemos se é uma declaração formal, mas nenhum acordo foi firmado... ─ ele murmura a frase final, quase como se fosse obrigado a engolir a decepção, mas seus olhos o entregam. De repente, temo por minha vida e pela dos meus colegas.
Ainda que não sejamos amigos próximos, não desejo a morte de nenhum deles, muito menos a dor de suas famílias. Quando nos alistamos, estamos cientes do contrato de morte que assinamos. Mas não esperava que talvez ela fosse chegar tão rápido assim. O Capitão deixa algumas instruções para que a equipe comece sua movimentação, designando para equipes de soldados que prossigam com as preparações, que cada um esteja pronto para o que puder acontecer.
─ 07h42, Frogurt – Donald diz, se aproximando ao meu lado. Ele toca meu ombro ao notar o quão nervoso estou. ─ Tudo certo, rapaz... são só os peixes, por enquanto ─ ele argumenta, com um sorriso triste dançando nos lábios enrugados. Ele dá um tapinha em meu ombro e segue para suas atividades. Eu corro no encalço de outros soldados, seguindo para o paiol de munição, como sou designado, para auxiliar a equipe de armamento a recarregar os canhões e preparar os próximos ataques.
Nos rádios de comando, espalhados por todos os cantos da embarcação, ouço a mensagem do comando Asa Dois “Ataque Aéreo a Pearl Harbour, isso não é um exercício ”. Meu coração, de repente, está preso em minha garganta. Tudo acontece tão subitamente, que nem o melhor soldado veterano poderia estar preparado. Ao longo, ouvimos bombas caírem com fortes “splash ” no mar, até então, tão calmo.
Seguro o bolso da camisa com firmeza, quase como se pudesse absorver o conteúdo da carta sem nem mesmo tê-la terminado de ler. Não posso morrer sem terminar de saber o que tinha para me contar, por que tinha me escrito e se me perdoava. Não poderia morrer sem saber o tamanho do estrago que causei, e como poderia resolver tudo isso quando estivesse mais uma vez em seus braços. Agora, eu nem mesmo sabia se ainda voltaria para casa.
─ , contagem da fuzilaria, deixe as armas preparadas e a postos para os atiradores de elite ─ diz um terceiro soldado, outro que não sei o nome, mas imagino que seja capitão de outra guarda, já que sua farda tem mais distintivos que a dos demais.
Me aproximo do armamento e começo a enfiar as balas nas câmaras de tambor e coloco a arma de lado, já pulando para deixar a próxima engatilhada. Não sou um atirador de elite, na verdade, acho que nem mesmo sou um bom atirador, mas quando se está no exército, é preciso saber de tudo um pouco. Inclusive matar.
Ao longe, mais barulhos pesados de bombas parecem atingir a água. Nas rádios dos corredores ouvimos as mensagens repassadas, os japoneses nem mesmo esperaram que a tradução de Washington chegasse. Não tínhamos nem como saber que nos declararam guerra e nos preparamos. São uns bastardos de merda.
Arma após arma, deixo o metal posicionado para que os soldados os retirem um a um, levando as carabinas e fuzis para desempenhar o seu papel em suas mãos habilidosas. Mãos essas firmes, prontas para matar todo e qualquer soldado japonês que apareça por terra.
─ Por baixo, os filhos da puta estão atacando por baixo! – ouço o que dizem, indo em contrapartida ao que pensei segundos atrás. Os desgraçados estão atacando por submarinos. ─ Se mexam, porra! ─ grita o mesmo soldado. Aperto o papel contra o peito e começo a correr, acelerando o que fazia há poucos segundos.
Tudo que vivi até então começa a pesar em minhas costas, tudo que fiz ou deixei de fazer. Um embrulho em meu estômago e aperto em meu peito me faz fechar os olhos, onde um filme passa, lentamente, por trás das pálpebras. Me permito, por um segundo, a pensar se teria feito as coisas diferentes, se poderia ter agido de outra forma. Não apenas com relação à , mas também em minha casa.
Nunca foi fácil para mamãe, sei que ela deu o seu melhor até agora. Depois de apanhar por anos do bêbado desgraçado que foi meu pai, quando se viu livre dele sofreu todas as consequências de ser uma mãe solteira. Até que encontrou Vernon. Ele não é um cara maravilhoso, eu acho, mas pelo menos não encosta a mão nela para feri-la, pelo contrário, ele lhe dá tudo que precisa e lhe faz feliz.
Gostaria de ter feito o mesmo por , de ter feito as coisas da forma certa, mesmo não me arrependendo de tê-la feito se apaixonar por mim tão perdidamente quanto me apaixonei por ela. Eu gostaria de ter lhe dado um anel, mas meu trabalho de ferreiro antes do alistamento nunca me pagou bem o suficiente para ter a certeza de um futuro de qualidade.
─ Frogurt , Don disse que precisa da sua ajuda na outra sala, agora ─ avisa Erikssen, aparecendo na porta da sala repentinamente. Seguro meu bolso com força enquanto corro até que o colega soldado informou, do outro lado do convés.
Don está sentado no chão, segurando seu peito na região do coração, como se estivesse prestes a enfartar.
─ Ah não, agora não seu caipira velho, pode levantar dessa porra de chão e movimentar sua bunda para salvar os Estados Unidos ─ eu rosno, enquanto o ajudo a se levantar. Don solta uma risada baixa, mas seus olhos tristes me deixam com o coração devastado. Ele se esforça, mas depois de um minuto a mais de descanso, ele volta a reorganizar as armas e munições um pouco vagaroso.
A carta pesa em meu bolso mais um pouco, no fundo das tripas retorcidas sinto como se nunca mais fosse ter a oportunidade de terminá-la. Lágrimas atingem meus olhos, mas as seguro, ao menos fingindo ser forte para aguentar as pontas agora. Don parece notar, então se aproxima e dá um de seus tapinhas reconfortantes e idiotas de gente velha no meu ombro.
─ Vai lá, filho, pode tirar dois segundos de descanso... a guerra não vai ser mais longa por isso ─ ele diz, tentando parecer confiante. Quero esmurrar sua cara e gritar que não há tempo, mas talvez ele só esteja certo, talvez eu só precise mesmo terminar isso e então partir para a luta de uma vez.
Não sei quanto tempo os japoneses vão levar para atingir o USS Arizona, por isso precisamos estar preparados para qualquer coisa, afinal de contas, a maior parte da artilharia está aqui, as munições estão aqui. Pela rádio, ouço avisarem que o USS West Virginia foi fortemente atingido, assim como o USS Nevada, que começou a se movimentar para não ficar atracado no porto enquanto afunda. Sinceramente, não sei se teremos chances contra o seu ataque, minha única certeza é que preciso sabe que estou totalmente perdoado, que ainda tenho chances de uma vida plena e feliz, mesmo que esse seja o meu último dia na Terra.
Dou um aceno de despedida para Donald e sigo para o lado de fora, em busca de chegar à proa, a movimentação dos soldados é rápida, homens correm para dentro e fora do navio cumprindo suas funções. Não consigo chegar a porta, tanto o entra e sai, então me apoio no batente de uma das salas adjacentes à saída e tiro a carta do bolso, a desdobrando com cuidado e procuro onde parei.
“, confio toda minha vida à você, e tenho certeza que nada faria para me prejudicar, nos prejudicar. Sempre soube que sua alma brilha tanto quanto a minha, e que à luz das estrelas, nossos brilhos sempre se encontrariam. Quem sabe a ponto de causar uma supernova. É quase engraçado, mas sempre acreditei que juntos somos invencíveis. E acho que estou certa... , meu querido, mamãe está convencida que nada é mais forte do que nosso amor. Visitei Donna há poucos dias, e consegui que sua mãe conversasse com a minha, elas estão do nosso lado, meu amor, e agora, não há nada que proíba nosso amor, nem mesmo as besteiras de papai sobre dólares e um futuro convencional. Mamãe sabe, Donna sabe... nós só precisamos estar juntos, nós e nossa família, nós e nosso pequeno bebê...”
Aperto meus olhos ardentes, dessa vez não há como esconder as lágrimas quentes que correm bochecha abaixo. Em minha mente, imagino com sua barriga lisa e redonda, sentada em frente à sua casa de paredes brancas me esperando, que eu chegue do meu trabalho idiota que não rende dinheiro algum, mas com um sorriso no rosto, tão apaixonada quanto sempre esteve. Eu a olho da mesma forma, e acaricio nosso filho em seu ventre por cima do vestido macio, e o lembro de quanto é amado. Prometo para que serei um marido melhor do meu pai foi para minha mãe, prometo para o meu fruto que serei um pai melhor que o meu. Prometo aos dois um futuro cheio de amor, pois isso teria certeza que poderia lhes dar de sobra.
“Volte para casa , volte e vamos construir nosso lar e nossa família, não importa o que digam os outros, eles não sabem de nada. Você é um homem bom e honroso, meu querido, sempre será e todos terão orgulho de você. Eu sei que já sinto, assim como todo o amor do mundo.
Estou te esperando, todos os dias em nosso lugar secreto, e te esperarei para todo o sempre, pois sei que irá voltar para nós. Eu e nosso pequeno amado.
Eu te amo, sempre e para todo o sempre.
Esperançosa,
”.
No final do papel, logo após seu sobrenome está escrito, com um risco em cima “”, o meu próprio sobrenome, como se e eu tivéssemos nos casado de verdade, como se tivéssemos selado nosso futuro antes que eu decidisse que precisava provar ao seu pai e irmãos que poderia ser mais do que só um ferreiro órfão de merda.
Meu coração está dolorido, minha cabeça parece pulsar e eu não consigo enxergar direito. Não sinto apenas arrependimento de ter vindo até aqui como sinto também que não há uma boa saída. Já tive todas as sensações no mundo desde que cheguei a Pearl Harbour. Às vezes senti raiva, as vezes me senti dolorido e as vezes achei que estivesse completamente sozinho. Às vezes senti ansiedade e muitas dessas vezes achei que fosse apenas isso, apenas o agora.
Talvez eu estivesse certo, e muito provavelmente não tenha aproveitado agora. Penso mais uma vez em casa, com o peito pesaroso. Quase consigo sentir o cheiro do lar, e me lembro de quando era criança, não tanto tempo atrás assim, mas me recordo de cada detalhe, inclusive dos ruins, quando meu pai chegava tão transtornado que nos escondíamos embaixo da mesa para não correr o risco de deixa-lo nos ver ali e, bem provável, descontar todas as suas frustrações. Um lar quebrado. Foi isso que me fez deixar minha casa para trás, a garota que eu amo para trás.
Woke up on the floor
Oh, this plastic bed don't blow up no more (oh)
In this broken home
Everyone becomes predictable
Aspiro o perfume na carta de antes de dobrar o papel com cuidado. Guardo sua carta mais afável no bolso da camisa mais uma vez, aperto o conteúdo sobre meu coração, como se talvez o gesto fosse o suficiente para resolver todas as coisas, para me fazer voltar no tempo e, quem sabe, ter outras oportunidades de fazer tudo certo.
Talvez eu ainda tenha uma chance, talvez eu ainda possa ver o sol nascer e se pôr ao lado de , segurando sua mão macia enquanto observamos as crianças brincarem em nosso jardim em um dia quente de verão. Talvez eu ainda veja seus cabelos umedecerem com a neve dura e seu sorriso doce em minha direção, o nariz congelado e vermelho.
Talvez a gente ainda se apaixone todos os dias, nos olhando um de cada lado da igreja enquanto hinos cafonas são entoados por toda a população da nossa pequena cidade. E quem sabe eu também aperte a mão do pastor antes de pedi-la em casamento, quando ele tiver a certeza de que sou bom o suficiente para me honrar com a mão da sua filha, a mulher mais linda de todo o universo.
Talvez a gente viva em um mundo onde o homem não enxerga primeiro a maldade antes do amor, e não se importe em praticar o bem tanto quanto almeja ter poder. Talvez ninguém precise mais perder um irmão ou pai, nem mesmo o avô ou seu parceiro.
Quem sabe eu viva mais um dia para que todos os meus sonhos se tornem realidade, e talvez eu nunca mais precise ver a infelicidade nos olhos da minha mãe ao fechar a mala. Quem sabe a vida não seja só um conto sobre a vida onde precisemos nos alimentar de esperança, mas sim nos preencha de amor e felicidade.
De repente, tenho a certeza de que as coisas vão dar certo, seja como for, e sigo vivendo em uma ilha feita do destino que escrevi para mim, que ainda escreverei.
Feel like there's only now
I've been living in my lowest, it's safe to say
Hope my little bit of hope, don't fade away
I've been living on an island made from fate
Eu sorrio.
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Em 07 de Dezembro de 1941, pouco antes das 08h da manhã, a base naval de Pearl Harbour, no Havaí, foi ataca pelo Serviço Aéreo Imperial da Marinha Japonesa, fazendo com que os Estados Unidos, na época um país neutro, declarasse guerra formalmente contra o Japão. Todos os oito navios de guerra da Marinha dos Estados Unidos foram danificados, quatro deles afundados. Com exceção do USS Arizona, que nunca pode ser recuperado, todos os demais foram e seis desses devolvidos aos serviços de guerra. Além disso, 188 aviões do serviço americano foram destruídos. 2403 americanos foram mortos, 1178 outros feridos. Mais de 1100 homens morreram apenas a bordo do USS Arizona, quando uma bomba penetrou o paio de munição localizado nas torres de artilharia da proa. Muitos corpos foram recuperados, mas os restos mortais de 900 tripulantes jamais foram recuperados, jazendo sob o mar.
FIM
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Nota da Scripter: Essa fanfic é de total responsabilidade da autora, apenas faço o script. Qualquer erro, somente no e-mail.