Última atualização: 14/02/2018

Capítulo Único

- Será que dá para você andar mais devagar, pelo amor de Deus? – A mulher reclamava sentindo que o tornozelo já voltava a latejar. – , eu estou falando sério. O mundo não vai acabar se você usar mais cinco minutos para andar com um pingo de calma!
revirou os olhos, sabendo que era pelo menos a quinta vez que ele recebia a mesma bronca naquele dia. Arrependeu-se logo em seguida, lembrando que ela tinha motivos para reclamar.
fora, por bons anos, uma bailarina profissional de altíssima qualidade. Dançara para vários cantores e grupos musicais de vendas e turnês mundiais esgotadas em poucas horas. havia tido o prazer de vê-la em ação em algumas apresentações em Nova York, tanto como dançarina de terceiros como em uma turnê própria que ela teve a grandiosidade de estrelar pela incrível carreira que construiu.
Infelizmente, no entanto, sua história na dança havia sido interrompida bruscamente por um infortúnio. Em um de seus ensaios, teve uma lesão grave, rompendo dois ligamentos do tornozelo. A recuperação, apesar de ter sido um sucesso, trazia muitos riscos futuros, levando-a a largar a dança.
Foi assim que conheceu de forma mais profunda. Até o momento da lesão, eram apenas um rolinho, um caso que aflorava junto com o desejo e passava tão rápido quanto o mesmo. Ele assistia a algumas de suas performances, levava bombons caros com algum logotipo belga e acabavam parando em um quarto de hotel qualquer para passar a noite. A relação era tão impessoal que sequer sabiam ao certo onde o outro realmente residia.
Por um acaso do destino, porém, esbarraram-se na fisioterapia: ela pelo tornozelo, ele com uma cirurgia que o fez colocar pinos no punho após uma queda feia no MotoCross. Suas sessões eram aos mesmos horários, três vezes por semana, no mesmo estúdio. Enquanto o fisioterapeuta observava seus alongamentos, eles passaram a conversar decentemente até se conhecerem, como pessoas normais faziam. Foi só assim que soube de verdade como ganhava a vida. O homem tinha assumido a empresa mundialmente bem sucedida da família aos vinte e seis anos, tendo a vida totalmente ganha e coordenada por algumas assinaturas e telefonemas já que o pai ainda administrava a maior parte das finanças e das coisas que ele dizia que “só mexeria após enterrá-lo”. Parecia inclusive um tanto injusto que alguém já nascesse com tudo tão perfeitamente alinhado para um futuro gigantesco daqueles sem um pingo de esforço próprio. Mas, com o tempo, ela acabou engolindo a sensação, tentando avaliar unicamente a personalidade dele, uma das poucas coisas pela qual ele era totalmente responsável nessa vida. E ela bem que gostava dele e com o tempo passou a gostar ainda mais.
Ele era bom de papo, era divertido e gostava de assistir às corridas de Fórmula 1 aos fins de semana. Vivia dizendo que ainda participaria de algum tipo de corrida, mesmo que se limitasse a um Stock Car. A paixão de sua infância e de sua eterna juventude havia sido a automobilística – o que só aumentava sua frustração na indústria farmacêutica familiar – e a possibilidade de sentir plenamente a velocidade atingir seu rosto e seus ossos. Era como se a vida parecesse ainda mais efêmera e fugaz e, apesar da morbidez disso tudo, a poesia que existia naquela aceleração enchia seus olhos de prazer.
Ela, por outro lado, ria das histórias dele, dizendo que morria de medo de carros e os evitava a todo custo em longas distâncias. Algo como um trauma de infância por ouvir sobre a morte dolorosa de um primo distante que sequer chegou a conhecer. Se ele estivesse vivo, tinha certeza de que mesmo assim não se lembraria do nome dele. A família Dunhill era percursora da noção de independência de seus membros desde jovens, o que mais parecia uma desculpa para que não ligassem uns para os outros. Em algum momento, alguém gritara que seria “cada um por si” e assim ficaram sem questionarem se a família poderia ser útil na vida deles. Mas ela sentia falta, sempre sentira. Crescera com as amigas contando sobre as viagens com os primos à praia nos fins de semana e os bolos deliciosos que as avós faziam para o café da tarde. Ela só havia viajado como dançarina, começando já no fim de sua adolescência e os únicos bolos que recebera eram ou da cozinheira que os pais pagavam ou de uma confeitaria próxima. Alguns anos foram mais difíceis que os outros. Quando teve sua menarca, o primeiro beijo, o primeiro fim conturbado de relacionamento, queria contar para alguém que a apoiasse como as mães das amigas faziam. Mas não havia alguém ao seu redor para isso. Até os amigos imaginários passaram a soar ridículos com o passar dos tempos. Nem eles se importavam. Ninguém se importava. Sua psicóloga dizia que isso a tinha feito fria, com medo de sentir algo verdadeiro por alguém. Mas ela gostava tanto daquele homem que forçava as mãos em elásticos na sala de fisioterapia que só conseguia pensar que talvez o diploma de psicologia fosse uma farsa. Ela não podia saber nada tão sério afinal. Não seria uma terapeuta que definiria quem ela era, como se fosse uma verdade incontestável e imutável.
De um jeito bem torto e um tanto estranho para muitos, apesar das diferenças gritantes, e simplesmente passaram a dar certo em outros lugares que não fossem uma cama da suíte presidencial de um hotel cinco estrelas. De repente, perceberam que aquela relação preenchia uma parte considerável do vazio que sentiam e decidiram que poderiam levá-la ao próximo patamar. Completariam quatro anos de namoro em alguns dias. Parecia bem mais do que qualquer um deles acreditava que um dia poderia viver.
Com a aposentadoria precoce e as gordas reservas financeiras dela e o fato de que ele simplesmente precisava de uma hora diária ao telefone para definir e resolver tudo que a empresa precisava, decidiram ao longo dos próximos meses aproveitar um pouco do que o dinheiro poderia lhes oferecer – fosse ele fruto do esforço ou de sorte.
Estavam subindo o 230 Fifth, primeira parada de sua aventura. A iluminação noturna era tão forte e colorida que quase poderia cegar alguém. Ao chegar ao rooftop do lugar, soltaram um longo suspiro. A vista que dava para Midtown era espetacular e a imagem do Empire State Building logo à frente era simplesmente fascinante.
- Parece mais alto lá debaixo – comentou. – Mas mais imponente daqui de cima.
concordou, pedindo dois Cosmopolitan’s para eles. Rapidamente, uma garçonete trouxe as duas taças completas com o coquetel vermelho e decoradas com raspas de cascas de limão nas bordas do vidro.
Ela fez uma careta ao sentir a vodka descer queimando sua garganta, causando risadas da parte dele. Não era nenhuma novata no universo das bebidas alcoólicas, mas simplesmente não se acostumava com a sensação mesmo adorando-a. Era engraçado como o costume não mudava algumas manias nem com o tempo.
Sentaram-se em bancos por ali, apreciando e bebida enquanto a brisa gelada eriçava seus pelos. tinha o braço passado pelos ombros dela, acariciando a região descoberta de seus ombros de forma delicada e cuidadosa, como se fizesse pequenos desenhos na areia. Ela sorria com o aconchego daquele abraço e a beleza da cena. Aquela definitivamente era a melhor e mais louca ideia que já haviam tido.
- Amor – ele começou, aproximando o rosto do dela ao beijar seus lábios calmamente -, acho que podemos usar a semana antes da América do Sul para conhecer mais um lugar.
- Qual? Sabe que eu já rodei o Canadá inteiro, já lhe disse que não vou gastar com algo que eu recordo tão bem como a própria palma da minha mão.
- Fica tranquila. Esse eu tenho certeza de que você nunca chegou a pensar em visitar.

*****


- Vamos, ! Não está tão frio assim. Se você colocar mais um casaco nesses braços vai ficar parecendo um boneco de posto sem se mexer.
já tinha dado a vigésima volta na sala do quarto de hotel que tinham reservado. Devia ter feito um buraco no chão ao longo do caminho pelo qual passava insistentemente. Se fechasse os olhos, poderia descrever perfeitamente o grande quadro pendurado na parede. Tinha umas árvores avermelhadas de outono, um riacho com cores que o faziam parecer lodoso e um jogo de luz e sombras impressionista que até impactava a vista.
- Como você tem coragem de me dizer que quatorze graus Celsius negativos não é frio? Você tem algum problema grave de metabolismo? Eu estou com calças, blusa, meias e luvas térmicas, além de duas calças de forro e cobertura grossa, duas camisas de lã, um moletom comum e um casaco de neve. Eu até estou usando minhas botas Uggs, então me respeite.
teve que se apoiar na parede enquanto ria da mulher andando com dificuldades, parecendo um boneco palito com toda aquela distância sem sentido entre braços e pernas. o fuzilava com os olhos, tentando levantar as mãos o suficiente para mostrar os dedos médios.
Por insistência do homem, ela acabou deixando um dos casacos no sofá, sentindo-se mais leve e livre – apesar de saber que jamais admitiria isso a ele, nem por cima do próprio cadáver. Pegaram um táxi até o Parque Nacional dos Fiordes do Kenai, ou pelo menos até onde o veículo pudesse chegar. Com a cobertura de neve adequada, chegariam até as geleiras por meio de motos de neve (os famosos snowmobiles ). Ela estava incrivelmente animada e ansiosa com a ideia de participar desse passeio, mas não poderia simplesmente fingir que não sentia um frio na espinha dizendo “Será que esse radicalismo todo é uma boa ideia? Você já se machucou por muito menos.”.
Por sorte, o passeio na neve durara bem menos do que ela esperava. Por azar, no entanto, o próximo passo seria no mar e não parecia muito mais acolhedor. Apesar de o barco aparentar muito mais seguro, só conseguia ouvir Celine Dion cantando “My Heart Will Go On” em sua cabeça enquanto aquela embarcação afundava como o Titanic. Suas apreensões eram mesmo um pouco complicadas de se lidar.
Os fiordes eram maravilhosos, em tons de branco e azul tão ofuscantes que uma das primeiras recomendações do passeio era o uso de óculos de sol e chapéus que protegessem os rostos. A radiação glacial realmente era capaz de fazer estragos absurdos, principalmente nos olhos. Parecia um tanto irônico reclamar de sol em um dos lugares mais frios do mundo, mas era exatamente esse pensamento que fazia com que muitos pensassem que era uma brincadeira e acabassem prejudicando a visão de maneiras catastróficas.
agarrou a mão dela como pôde, em um contato um tanto esquisito pela presença de grossas luvas entre eles. se aconchegou ao seu lado, aproveitando que a diferença de altura permitia que ela recostasse a cabeça perfeitamente sobre seu peito. Era em momentos como aquele que ela quase sentia uma vontade louca de interromper todo o turismo dos outros só para berrar para o mundo que o amava.
Um grito de espanto misturado com excitação acabou interrompendo o momento do casal para uma memória impagável. Uma baleia passava por ali, como se quisesse se mostrar para o grupo. Uma garotinha por volta dos seis anos de idade gritava “baleia, baleia” batendo palmas freneticamente. Seus olhos brilhavam com a surpresa ao avistar o animal. Independente da idade e do nível de desencantamento do mundo que haviam atingido, todos estavam chocados e boquiabertos.
- Focas – o guia turístico anunciou alegremente, apontando para uma das geleiras.
O choque se repetiu novamente. O deslumbramento de uma criança que nos lembrava de que o mundo ainda conseguia ser surpreendente à sua forma para qualquer um.
tinha lágrimas nos olhos. De repente, parecia que ele iria explodir de alegria. Abraçou a mulher com força, fazendo com que ela soltasse um “Ai, bruto!” entre risadinhas.
- Obrigado por estar aqui. Obrigado por tudo.

*****


Foi no Salar de Uyuni, na Bolívia, algumas semanas depois – em parte do tour pela América do Sul – que eles tiveram a primeira briga da viagem. Essa visita duraria mais de um dia pela vasta gama de coisas a se ver e paisagens a se apreciar por aquela área.
Entre lagos de águas cristalinas, grandiosos gêiseres – que assustaram tanto ao entrarem em funcionamento que a mulher arriscou dizer que havia quase entrado em um estágio de ataque cardíaco -, montanhas, pedras esculpidas pelo vento e águas avermelhadas, o passeio era longo, cansativo, mas encantador.
Ver o maior e mais alto deserto de sal do mundo, como se fosse um gigantesco mar branco que preenche todo o espaço que a visão humana pode alcançar era realmente fascinante. Essa era uma das graças em visitar esses locais tão esplêndidos e monumentais: levava apenas alguns instantes para você se sentir minúsculo perante o mundo e, ao mesmo tempo em que isso dava um tanto de medo, era um pouco reconfortante também.
O problema, de fato, veio durante a noite. De tanto caminhar sob o sol forte, havia desmaiado por uma queda brusca de pressão. Outros turistas acabaram ajudando a carregá-la até o alojamento coletivo, preocupando-se em oferecer água e algum alimento para que ela se recuperasse da melhor forma dentro das limitações do local. O tornozelo da mulher estava extremamente inchado e o namorado tirou seus sapatos assim que percebeu isso, apertando levemente a região para tentar ativar a circulação local.
Ao voltar a si, ela percebeu a grande quantidade de pessoas em seu alojamento. Estranhou ver tantas faces diferentes e desconhecidas. Alguns já roncavam, aproveitando um sono aparentemente muito profundo. Um menino pequeno murmurava durante o sono coisas um tanto sem sentido para – provavelmente porque a única coisa que ela sabia dizer em espanhol era “Hola” e apostava que a pronúncia ainda estava completamente equivocada.
Ela chorava de dor no local da lesão. Os ligamentos, operados após o rompimento, latejavam da forma mais dolorida possível. Havia tempo demais que não sentia uma dor tão excruciante como aquela. - Eu preciso colocar o pé para o alto – disse, entre as lágrimas, com a respiração totalmente entrecortada. – E de um analgésico ou ao menos um relaxante muscular.
saiu em disparada até a mala deles, procurando desesperadamente pela pequena nécessaire azul clara de bolinhas brancas que trazia todos os remédios que acreditavam que poderiam precisar ao longo da aventura da vez. Buscou entre as roupas comuns, entre as roupas íntimas, revirou os bolsos da mala mesmo sabendo que ali havia apenas caixas de óculos de sol e carregadores de eletrônicos. Nada. A maldita bolsa simplesmente não estava ali.
- Acho que esquecemos os remédios no Alasca – disse, por fim, com um peso tão grande sobre os ombros que era como se estivesse admitindo uma derrota de um jogo que tinha ganhado por uma diferença grande.
- Como assim? – Ela gritava e era impossível saber se era pela raiva ou pela dor. – Você pegou o remédio para enxaqueca no Alasca!
passava as mãos pelos cabelos rapidamente, bufando com o próprio esquecimento.
- Eu sei, eu sei. Devo ter deixado tudo em cima da pia do banheiro. Nós revistamos o quarto para ver se não havia algo para trás, nenhum dos dois retornou ao banheiro.
- Você devia ter voltado – ela gritava, entre xingamentos pela dor. – Você sabia que eu precisava daquela droga de nécessaire. Como você pode ser tão despreocupado? Tão displicente com uma coisa tão importante? Pelo amor de Deus, , será que você não tem bom senso na sua cabeça?
- Para de gritar, por favor – pediu ao ver que algumas pessoas já os encaravam, além dos poucos que ainda estavam tentando dar um jeito de ajudá-la. – Você não precisa falar assim comigo. Não é como se eu tivesse nos sabotado de propósito. Eu errei, ‘tá legal? Não precisa continuar me deixando ainda pior com a situação.
- Eu não vou falar com você. Nem sobre isso, nem sobre qualquer outra coisa. Não aqui, não agora. Só me arranja uns travesseiros altos para não parecer que eu peguei elefantíase por ter viajado aos trópicos. Se esse inchaço aumentar, eu não consigo nem cogitar andar amanhã.
procurou por todos os pertences deles e os objetos fornecidos a eles para a estadia. Tudo o que tinham era uma almofada tão fina que cabia nos vãos dos dedos. Aquilo seria tão útil quanto absolutamente nada.
- Levanta os pés – ele pediu para a mulher. Quando ela o fez, ele deitou no espaço liberado, colocando a fina almofada por cima de suas costas. – Apoia em mim. Pode abaixar.
- Eu não vou fazer isso. Sai já daí.
- Não é a melhor coisa, mas é nossa melhor opção. Por favor, . Eu só quero ajudar.
A contragosto, ela acabou descendo os pés nas costas dele, tomando cuidado para não apertar muito os calcanhares contra sua coluna. Queria agradecer, mas seu orgulho gigantesco tinha colocado um nó tão apertado em sua garganta que qualquer palavra endereçada a ele simplesmente não sairia.

*****


- A última hospedagem foi péssima, mas essa aqui compensa tudo – disse, sentindo a hidromassagem do spa do hotel pegar exatamente no ponto da sua lombar que praticamente gritava por um pouco de descanso. O local, perfeitamente posicionado entre os picos nevados de El Chaltén, tinha uma vista incrível da varanda, além de uma decoração invejável na suíte. Era quase um sonho poder respirar tranquilamente em uma banheira após os últimos acontecimentos. A viagem era ótima, mas ele já não tinha mais a disposição de um adolescente.
- Isso aqui é um sonho, mas a segunda cabeça que saiu no meu tornozelo se nega a concordar com a parte de que uma coisa seria capaz de compensar a outra. A dor foi inesquecível.
- Dormir com seu chulé no meu pescoço também não foi lá muito bacana – o homem disse, cutucando na cintura. – Brincadeira. Era o mínimo que eu merecia por ter abandonado os remédios logo no começo da viagem.
- Na verdade, acho que da próxima vez vou deixar de lavar os pés só para potencializar o chulé. Você merece.
Ele revirou os olhos, fazendo cócegas por todo o corpo da namorada, enquanto ela soltava gritinhos e tentava jogar água em seu rosto, sem obter muito sucesso. a puxava, prendendo seus braços até que conseguiu encaixá-la perfeitamente em seu colo, passando os braços por suas costas e dando início a um beijo profundo e intenso.
respondeu passando os braços pelo pescoço do homem, deixando que suas mãos bagunçassem e puxassem um pouco os cabelos molhados dele, intercalando com alguns arranhões em suas costas e ombros.
Os hábeis dedos de apertavam a cintura dela, enquanto desciam vagarosamente para o quadril e, consequentemente, para as coxas, arrancando suspiros da mulher. Não importava quantos anos se passassem, era como se eles fossem eternamente e totalmente hipnotizados pelo toque do outro. Bastava que as peles se encontrassem para que um choque elétrico corresse por seus corpos como num impulso incontrolável.
- Eu amo você – disse entre os beijos.
- Eu também te amo – respondeu, mordiscando de leve o lóbulo de sua orelha. – Agora, cala a boca.
Em questão de segundos, as roupas de banho já estavam do outro lado do banheiro, enquanto a diversão se iniciava exatamente ali.

*****


- Eu viajei o mundo todo em turnê – começou -, eu inclusive passei pelo Brasil, mas é absurdo o quanto esse lugar é incrível. É, com certeza, um dos locais mais lindos que eu vi em toda a minha vida.
A pousada em que estavam ficava um pouco mais alta do que a praia e em um local um tanto afastado. A água era incrivelmente limpa, com um azul brilhante e transparente, que parecia se encaixar perfeitamente com o azul do céu, decorado apenas por algumas pequenas nuvens, mais brancas que o algodão.
- Eu quero muito estrear esse biquíni – anunciou, puxando o namorado pela mão. – Vamos!
Realmente, o biquíni era lindo. A peça superior era de um roxo intenso, com as alças decoradas em pedraria dourada, enquanto a inferior era franzida na lateral, em listras roxas e douradas, em diferentes tons.
E ela, bom, ela parecia jovem de novo. Até largara as mãos dele no meio do caminho só para correr mais rápido até o mar gelado, que praticamente congelara as pontas de seus dedos do pé. Parecia uma criança indo à praia pela primeira vez, sentindo a areia clara grudar entre seus dedos e a água bater em suas panturrilhas e soltando gritinhos enquanto isso. O sorriso em seu rosto era tão gigante que poderia iluminar Fernando de Noronha inteira de uma só vez. sorria, observando-a de longe, tão fascinada daquele jeito. Era ainda mais linda.
- Vem logo, amor – ela gritou, puxando-o para a água com ela. – Não vai ficar aí parado, não é?
- Com certeza não – respondeu, enquanto, em um movimento rápido, passava o braço por trás dos joelhos dela, erguendo-a e correndo em disparada até chegar a uma maior profundidade do mar e arremessá-la.
- Ridículo! – não parava de socar seu tórax, enquanto ele fingia não sentir absolutamente nada conforme a ardência começava a ser percebida.
Arriscaram algumas disputas de natação em trechos curtos, com a mulher puxando o pé dele para se impulsionar sempre que percebia estar sendo ultrapassada. Era injusto; uma braçada dele dava umas cinco da dela.
Acabou desistindo quando viu que era inútil, decidindo deixar que seu corpo flutuasse sobre as ondas salgadas. Boiar era como anular o próprio peso. Sabia que tinha algo a ver com tensão superficial e aquela chatice de empuxo, mas preferia acreditar que era mágica. Nada pesava no mar; nem um corpo, nem uma preocupação, nem um problema. A paz era tão bonita que a fez rir.
- Do que você tanto ri? – Ele a abraçara.
- Não é maravilhoso poder ver a Lua e o Sol juntos em um céu tão claro? Dividindo o universo assim, harmonicamente. Como se simplesmente não se importassem com seus horários.
- Adoro isso. Você se impressiona com umas coisas que parecem tão pequenas – comentou, beijando sua bochecha e sentindo o gosto do sal em seus próprios lábios.
- Não é sobre isso que a vida é, afinal? Apreciar as pequenas coisas? Nós ganhamos um pouco de altura, um monte de peso, algum conhecimento, mas continuamos as mesmas crianças fascinadas de antes. “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso.”.
- Você está citando O Pequeno Príncipe para mim?
- Talvez eu esteja.

*****


Korčula definitivamente tinha motivos para ser chamada de joia da Dalmácia. Várias casas e casarões – sendo a maioria construída com grandes pedras ou tijolos, sem grandes atenções a coberturas à tinta – rodeavam a ilha rochosa, delimitada pelas águas azul-turquesa do Adriático. O local era reservado, murado e dito por alguns como a terra natal do navegador e explorador veneziano – o que não fazia sentido algum na cabeça de - Marco Polo. Sim, o daquele pega-pega de piscina que você raramente compreende de verdade as regras.
Foram a um restaurante mediterrâneo e passaram horas lá por livre e espontânea pressão do estômago da mulher, que recusara praticamente toda a comida do avião durante o trajeto do Brasil até a Croácia – que demorara bem mais do que ela esperava – devido ao absurdo enjoo aéreo. Teria que tentar compensar o buraco negro que havia se instalado logo no meio de seu sistema digestório. Seu pai, quando estava com muita fome, costumava dizer que poderia comer um boi inteiro. Naquele momento, ela precisaria de uma criação de gado completa.
Em alguns minutos, o garçom chegou com a primeira leva de pratos. Espinafre com queijo brie, creme de cenoura com coentro e mel e uma grande travessa de caldeirada mediterrânea. Os frutos do mar estavam no ponto perfeito: macios sem estarem borrachudos. tinha certeza absoluta de que havia atingido um orgasmo gastronômico intenso. Por alguns segundos, cogitou um universo hipotético em que teria que abrir mão de sexo em troca do prazer de uma refeição incrível como aquela. Que bom que o mundo era bom o suficiente para permitir que ele tivesse ambos sem enfrentar um dilema pior que a questão filosófica do bonde desgovernado.
Ele comentou, como quem não queria nada, que pediria um coelho ao vinho tinto para experimentar. simplesmente surtou, sobre como era absurdo e cruel comer um bichinho tão delicado e carinhoso como um pequeno coelhinho. Ela só conseguia imaginar uma pequena bolinha de pelos saltitando em um segundo e sendo brutalmente assassinada no minuto seguinte. Talvez fosse uma das suas oscilações hormonais que vinham com a idade, mas ela jurava que ia chorar e esganar ele pelo outro lado da mesa. só ria, por saber exatamente que seria essa a reação dela. Ele adorava irritá-la, mas pedia desculpas desesperadamente ao perceber que ela tinha lágrimas escorrendo pela face ao passo que murmurava incessantemente que havia perdido o apetite.
- Amor, é brincadeira. Pelo amor de Deus! Não precisa de tudo isso. – tentava alcançar a mão dela por cima da mesa de madeira rústica. – , por favor, eu não esperava essa reação. Pede pelo menos a sobremesa que você queria.
- Não dá. Não quero mais. Vamos embora, por favor. Acabou minha vontade de ficar aqui.
abaixou a cabeça, mordendo o lábio e afundando as unhas nas palmas das mãos, sentindo-se profundamente chateado. Pediu a conta, pagou e retornaram ao pequeno hotel.
Ela largou os sapatos ao lado da mala e praticamente arremessou o próprio corpo na cama, afundando o rosto no travesseiro e enrolando o corpo nos cobertores. Deitada ali, dava início a um choro fino, desestabilizando totalmente o namorado que não fazia ideia de como proceder. A própria mulher não saberia definir direito o que estava sentindo. Era como a última gota necessária para que toda aquela água acumulada simplesmente transbordasse de uma só vez. As coisas entre a América do Sul e o Mediterrâneo não haviam sido fáceis e o problema ia muito além de um simples enjoo. Era mais fácil tentar ignorar a mágoa e o incômodo enquanto comia desesperadamente. Mas ela havia atingido um limite.
No dia anterior, acabaram entrando em uma briga complicada acerca de uma crise de ciúmes dele. Enquanto ela usava o banheiro do aeroporto em que aguardavam o voo da escala, ele acabou por notar a absurda quantidade de notificações que pipocavam na tela de bloqueio do celular dela, devidamente conectado ao Wi-Fi local. Algumas atualizações e comentários em fotos postadas no Instagram e redirecionadas ao Facebook, uma lista sem fim de retweets e uma chuva de mensagens no WhatsApp de amigas e parentes. Foi então que ele viu a notificação mais recente de chat do aplicativo:
“Quando puder conversar, me dá um alô, por favor. Sinto muito sua falta. Mesmo. As coisas não são as mesmas sem você por aqui.”
O remetente estava marcado como ‘Arnold’, juntamente a um daqueles emojis ridículos de coração. fez um tremendo esforço para se lembrar de alguém com aquele nome que tivesse cruzado caminhos com eles, mas só pensava no velho padeiro simpático que assava biscoitos toda manhã na esquina da rua em que morava quando jovem. E era óbvio que não poderia ser ele.
Seu peito e mente se encheram com um sentimento difícil de explicar e ainda mais duro de suportar: a raiva. Não sabia quem aquele homem era, mas claramente era o motivo pelo qual o relacionamento deles acabaria indo por água abaixo. Lendo e relendo aquela mensagem, o homem só conseguia imaginar como poderia ser tão baixa a ponto de enganá-lo dessa forma. Sentia-se traído por ela e humilhado pelo tal amante, que deveria ser mais bonito, sarado e ter mais cabelo que ele. Talvez ela sentisse que o outro a tratava melhor. Talvez fosse apenas sexo. Talvez ela só não estivesse satisfeita com o pouco que ele poderia oferecer. Mas engolir uma traição era algo que ele jamais conseguiria fazer.
- O banheiro feminino tinha uma fila enorme, começando no corredor de fora, acredita? A cada mulher que saía do banheiro, saíam pelo menos quatro homens do sanitário masculino. E eu encolhendo as pernas, tentando segurar aquele aperto idiota. É em horas assim que eu queria muito ter um pênis – ela dizia sem parar, voltando a se sentar ao lado dele e tomando de volta seus pertences e bagagens de mão.
não conseguia sequer levantar o rosto para encontrar o dela. Alguma coisa dentro de si parecia incrivelmente prestes a explodir.
- O que foi? Credo, você está pálido. – Ela passava as mãos pela testa dele, tentando checar algum sinal de estado febril.
Ele segurou as mãos dela, abaixando-as ao apertar os pulsos da mulher, que estranhou ainda mais aquela atitude de repulsa e recusa a seu toque preocupado.
- Fala pra mim. O que aconteceu?
- Quem é Arnold? – Ele foi direto, apesar de sentir um nó na garganta do tamanho de uma bola de bilhar.
parecia em choque, com a boca entreaberta, o cenho franzido e os olhos semicerrados.
- Você andou mexendo no meu celular? Meu Deus! Alguém já te ensinou o significado da palavra privacidade?
- Não mexi. Você largou o aparelho no meu colo e eu acabei vendo o turbilhão de notificações piscando logo no meu rosto. A última era de uma mensagem dele. Diz que sente sua falta e que nada é igual sem você. Talvez você deva ligar para esse seu amante, ele deve estar um pouco desesperado de ficar tanto tempo longe de você enquanto realizamos essa viagem. – A boca de tinha um gosto forte e metálico após morder tanto a parte interna da bochecha. E, mesmo assim, poderia afirmar com a maior certeza do universo que aquele corte não doía nada em comparação com a sensação de que tudo tinha simplesmente desabado de uma hora para a outra.
- Meu amante? Foi isso que você assumiu sem sequer se dar ao trabalho de me perguntar? Por Deus, , ele é meu primo. Acabamos nos afastando nos últimos tempos por causa do falecimento de minha tia, mãe dele. Sempre fomos muito próximos e eu tentei estar ao lado dele nesse momento, mas ele preferiu lidar com o luto sozinho. Se está me procurando agora é porque provavelmente quer desabafar.
O homem tentava digerir aquela história. Sabia que, de fato, enquanto ele passava um fim de semana com os sócios da empresa da família, havia ido a um enterro. Ele tentara se desvencilhar do almoço no golfe, mas sabia que não conseguiria se livrar daquele fardo de forma alguma. Só se perguntava por que nunca tinha ouvido falar do tal Arnold se eles realmente eram assim tão próximos.
- Eu nunca menti para você. Sempre fui a mais sincera e honesta possível contigo, independentemente de quais fossem as consequências disso. Você devia ter me perguntado, em vez de tacar pedras nas minhas costas sem sequer me dar a chance de dizer algo. Até os piores criminosos têm sua chance de falar. Faz parte da dignidade humana.
- Você nunca me falou sobre ele – soltou quase em um murmúrio, tentando assimilar tudo aquilo e se perguntando por que mesmo assim aquele peso não saía de seu peito. Por que sua cabeça continuava sendo martelada por aqueles pensamentos tão horríveis?
- Eu nunca lhe falei sobre a minha família, . Sabe o quão traumatizada eu sou por ter crescido tão distante do que todas as pessoas que eu conhecia tinham como família. Você acabou conhecendo os meus pais por uma formalidade depois que engatamos um relacionamento mais sério, mas se pudesse, teria deixado até os dois bem longe disso. Eu cresci sozinha e vivi sozinha esse tempo todo, enfrentando todas as porradas que a vida decidiu me dar pelo caminho. Construí uma carreira brilhante e um nome de respeito ao redor do mundo, sem precisar do apoio ou do carinho deles. Se eu vivi sozinha até hoje, não seria de repente que eu mudaria isso.
- Mas você acabou de dizer que vocês são próximos – ele reclamava, passando as mãos nervosamente pelos próprios braços. Era muito mais difícil do que realmente parecia.
- Nós somos. Mas ele e minha falecida tia eram realmente os renegados da família. Se minha avó tivesse que escolher apenas uma filha para deserdar e detestar, seria a mãe dele. É a caçula da família e acabou engravidando muito nova. A família a abandonou totalmente. Quando ele nasceu, ambos foram cortados da árvore genealógica. Minha própria mãe finge que a irmã nunca existiu. Por isso, meu relacionamento com eles nunca foi de se gritar aos quatro ventos. Deixei tudo por baixo dos panos, na tentativa de poupar todos os lados de uma grande e desnecessária briga. Não queria que ninguém se machucasse. E, agora, sou eu quem está machucada.
se virou na poltrona, ficando quase que de costas para ele, na tentativa de se afastar e impedir que ele percebesse as lágrimas em seus olhos. Não podia acreditar que ele desconfiava dela em tal proporção. Sempre fora verdadeira com tudo, sendo inclusive acusada, às vezes, de ser sincera demais . Era muito injusto que agora ela simplesmente fosse culpada por tentar proteger aqueles que amava.
apoiou a mão no ombro dela, torcendo para que ela não o afastasse. Seu peito ainda pesava, mas ele queria acreditar nela. Queria acreditar que eram um do outro e nada nem ninguém poderia interferir nisso. Era a viagem da vida deles; era a vida deles. Por que destruir tudo com incertezas? Por que permitir que tudo ruísse por insegurança?
- Me perdoa. Você sabe que eu sou muito inseguro. Não quero mais ser. Por favor, vamos fingir que nada disso aconteceu.
- Da próxima vez, tente confiar em mim – respondeu, com a voz embargada.
O clima ficara pesado após a discussão, tanto durante o voo quanto durante a grande refeição que tinha terminado incrivelmente mal. Por mais que tentassem sorrir e brincar, não era a mesma coisa. Parecia forçado, encenado, falso. Não era assim que eles eram.
Ainda se revirando na cama, se enfiou totalmente embaixo da coberta, rezando para que tudo aquilo simplesmente acabasse logo.

*****


Estar de frente a um Patrimônio Mundial da Humanidade registrado pela própria UNESCO era incrível. Český Krumlov surgiu por volta do século XIII, sendo o lar da nobreza mais rica da República Tcheca. Os monumentos históricos estavam bem preservados, enquanto a maior parte do calçamento das ruas e paredes era ainda o original medieval, levando os turistas a uma viagem no tempo europeia.
Com o cartão de acesso aos principais monumentos, decidiram ir primeiro ao castelo – mesmo que tenha sido uma conversa um tanto monossilábica, repleta de “sim”, “não”, “pode ser” ou “tanto faz”. Apesar do desconforto em que estavam um com o outro desde o episódio a caminho da Croácia, estava animada para subir até a torre principal. Lá de cima, além de uma ampla visão de toda a cidade, era possível ver o jardim em que ursos eram criados – uma tradição secular. O museu do castelo também não ficava muito atrás, repleto de acervos e documentos históricos, bem como móveis e objetos antigos expostos.
Após a visita aos museus e à Avenida Naplavka – de um clima acolhedor e bucólico como o das poesias antigas -, seguiram para um passeio de caiaque nas geladas águas do Rio Moldava. se perguntava se poderia parar de remar nos trechos mais calmos e se virar para falar com ela. O cenário seria perfeito para finalmente dizer o porquê daquela viagem. Mas mal olhava para ele e respondia pouco menos que o necessário.
Voltaram à pequena hospedaria de Svambersky Dum após o jantar – um porco com repolho e pães que a mulher nem conseguiu terminar de comer. Acabaram pedindo outra refeição no restaurante do próprio local, antes de decidirem se deitar de fato.
- Boa noite, amor – desejou, erguendo a mão para acariciar os cabelos dela.
- Boa noite – respondeu, virando-se para o lado oposto de forma que a mão dele não mais se encostasse a ela.
O homem fechou os olhos, respirando fundo. As coisas definitivamente estavam indo de mal a pior.

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O sol de Santorini entrava pelas janelas do quarto como se não se importasse com a intenção das cortinas no seu caminho. O quarto em Oia era bem mais caro que nos arredores, mas também bem mais deslumbrante. Algo pelo qual eles poderiam pagar tranquilamente.
Refugiaram-se na belíssima piscina do hotel durante o horário que haviam informado ser tempo de desembarque de alguns cruzeiros, famosos pelas paradas em Oia. As ruelas estreitas se entupiam – literalmente - de turistas durante o tempo de visitação. Pelo costume com a situação, os hotéis e pousadas já davam os horários de pico, recomendando que seus hóspedes não saíssem nesse horário e aproveitassem o tempo livre na cidade antes ou depois da formação do formigueiro humano.
À noite, experimentaram algumas iguarias e desistiram de pagar absurdos seis euros em uma garrafa de cerveja. Por sorte, o fato de terem alugado um carro e terem que dirigir de volta. Conversavam pouco, sequer sorria verdadeiramente como costumava fazer com frequência. continuava insistindo em ter uma conversa decente, mas ela definitivamente não estava mais interessada.
Pegaram o carro, enquanto a mulher praticamente se debruçava na janela, permitindo que a brisa balançasse seus cabelos enquanto observava o mar oscilando ritmado no horizonte.
- Por quanto tempo mais você não vai falar comigo? Vai continuar simplesmente fingindo que eu não existo? – Ele já estava impaciente.
- Se possível – respondeu simplesmente.
- Qual é o seu problema? Eu pedi desculpas por absolutamente tudo o que eu fiz. Estou fazendo de tudo há dias para conversarmos normalmente e você simplesmente finge que eu não existo. É ridículo!
- Meu problema é você! Essa sua insegurança. Não dá para lidar com isso, . Nós passamos anos juntos, ANOS! Não são dias ou semanas. É ridículo que você não consiga confiar em mim depois de tanto tempo juntos. Um relacionamento não existe sem confiança.
- Como você espera que eu saiba de algo assim ou confie em quem não se abre? Você não fala nada para mim. Eu sei pouco ou nada sobre a sua vida pessoal depois de tanto tempo. Você também deveria confiar em mim para me contar as coisas. É muita hipocrisia sua colocar toda a culpa nas minhas costas quando eu não sou o único a participar de todo esse desentendimento.
O palavreado foi ficando mais baixo e o tom de voz cada vez mais alterado. De repente, parecia o momento perfeito para esfregar todas as descrenças e insatisfações na cara um do outro. As palavras que usavam eram um desabafo de tudo que tinha ficado entalado ao longo dos anos. Não estavam mais simplesmente discutindo, estavam se agredindo gratuitamente. A intenção era machucar.
- Quer saber de uma coisa? – já estava com o rosto totalmente vermelho e os olhos enchendo enquanto dirigia. – Sabe por que eu inventei essa droga de viagem?
Ele tirou a caixinha de veludo do bolso e arremessou com força no colo dela, assustando-a enquanto abria aquela pequena tampa com as mãos tremendo. O pequeno anel tinha mais diamantes do que jamais havia visto. Ele brilhava sob a fraca luz do luar. voltou a chorar.
- Era para te pedir em casamento. Sabe por quê? Porque eu queria que fosse pelo menos especial para você que sempre foi tão especial e essencial para mim? Eu queria passar a droga da minha vida inteira ao seu lado e você simplesmente me trata como se eu fosse um pedaço de merda.
- Não era para ser assim – murmurou.
- Mas é isso que você está fazendo. Está acabando comigo há dias. Eu não posso mais fazer isso. Não dá para... – ele foi interrompido por um grito acompanhado de um farola alto e um som de buzina.
- ! – ainda tentou gritar, colocando as mãos no volante por um reflexo na última tentativa de salvá-los, mas já era tarde demais.

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- Ela precisa ser levada para cirurgia agora – uma voz feminina falava, em um tom um tanto alto e muito agudo. – Provável fratura no pescoço com sério risco de sequelas e sinais de hemorragia na cavidade peritoneal.
estava tonto, ouvindo tudo aquilo como se estivesse distante demais para interagir. Precisava saber para onde estavam levando . Que história era aquela de fraturas e sequelas?
- Aonde vocês vão levá-la? O que está havendo? – Ele gritava, mas os médicos simplesmente continuavam levantando as macas e as arrastando sem dar atenção alguma para a presença dele.
- Levem-no para os exames – um homem dizia mais atrás. - Manchas roxas no tórax, as costelas estão fraturadas. Precisamos avaliar as dimensões de uma possível perfuração pulmonar.
se virou, olhando o corpo estendido naquela maca, cujo painel cardíaco não parava de apitar - um pouco alto demais para seu gosto. Tropeçou nos próprios pés ao reconhecer o rosto desacordado, com cortes na bochecha, como o dele próprio.
Não era possível. Ele tentava tocar os médicos, apertar a própria perna e gritar para que ele acordasse, mas ninguém notava a sua presença. Por que ninguém o ouvia? Por que o seu corpo estava sendo levado se ele continuava exatamente ali vendo e ouvindo todas as tentativas de diagnósticos da equipe de médicos e enfermeiros.
Correu atrás da mulher que havia dito que precisava de cirurgia. Cruzou vários corredores em busca de qualquer um dos profissionais que a tratavam. Deu de cara com uma porta aberta para uma pequena sala com vários internos reunidos, observando algo com atenção. Lá embaixo, o amor de sua vida tinha o abdômen completamente aberto, com várias gazes e panos ensanguentados ao seu redor na tentativa de controlar a hemorragia. A cirurgiã já havia cansado de pedir sucção na área, procurando incansavelmente a origem daquele sangramento excessivo.
sentia dor. Se tivesse um corpo naquele momento, diria que a dor já havia passado a ser física, mas não fazia ideia de como definir o que era aquilo que estava acontecendo. Só sabia que não havia vida sem ela e ela mesma já mal tinha vida.
Viu o bisturi aumentando a profundidade do corte feito na mulher, em uma tentativa de aumentar a visibilidade local. Ela ficaria com uma cicatriz enorme, mas nada importava naquele momento desde que a salvassem. Pelo amor de Deus ou de qualquer outra entidade, ele só precisava que a trouxessem de volta para ele.
Um barulho mais alto e contínuo ressoou pelo ambiente, fazendo com que os internos e residentes que assistiam à cirurgia prendessem um pouco a respiração, nervosos. sentia o peito formigar estranhamente. O barulho não parava. A dor ficava mais forte.
- Carreguem a duzentos! Deem espaço!
Não, não, não, não. Aquilo não estava acontecendo. O homem se apoiou no vidro, sentindo o mais próximo de uma tontura que alguém naquele estado poderia cogitar sentir.
A massagem cardíaca lá embaixo continuava assiduamente, intercalada com longas tentativas no desfibrilador. Os médicos já estavam ofegantes, sentindo os braços latejarem pela força.
A equipe saiu de cima de , abrindo espaço ao redor da mulher aberta. Os internos abaixavam a cabeça e começavam a deixar a sala silenciosamente. não queria acreditar no que seus olhos viam. Não podia acreditar. Uma pontinha de esperança ainda queria convencê-lo de que ele estava errado.
- Hora da morte: meia noite e treze – anunciou, enquanto vários médicos se retiravam da sala de cirurgia.
sentiu seu mundo ruir em definitivo. Uma dor, um vazio, uma sensação de total impotência frente ao universo e as coisas horríveis que aconteciam nele. Era absurdo como semanas atrás ele pensava em pedi-la em casamento, minutos atrás eles tinham dito coisas das quais sabiam que se arrependeriam e, agora, ela simplesmente não estava mais ali. Tudo aconteceu rápido demais. A vida era como um fogo fraco que de repente virava fagulha e no segundo seguinte já não estava mais ali.
O peito doía enquanto ele vagava de volta ao Pronto Socorro sem ter certeza se essa era mesmo a melhor opção. Doía cada vez mais, até se tornar incrivelmente insuportável.
Encontrou a maca que carregava seu corpo de volta ao ponto em que a tinha encontrado. Os médicos discutiam algo sobre como a conduta tomada com ele havia sido equivocada e poderia comprometer suas chances de sobrevivência.
- Tomara que tenham comprometido. Eu não quero voltar sem ela – disse para si mesmo.
Agora, era o painel cardíaco dele que apitava estridente.
- Eu avisei que ele poderia ter uma embolia pulmonar – o médico gritou, correndo sobre seu corpo inerte.
Iniciaram o processo de reanimação para levá-lo à cirurgia. assistia àquilo sentindo-se, finalmente, o mais em paz que poderia naquele momento. Sorriu de forma sincera.
- Eu poderia perder tudo. Eu quase perdi tudo. Mas não dessa vez. Nós vamos ficar juntos como deveria ser – disse simplesmente, fechando os olhos de forma serena.
O médico se afastou.
- Hora da morte: meia noite e trinta e dois.




FIM



Nota da autora: MAIS UMA NO ÚLTIMO SEGUNDO DA PRORROGAÇÃO! Eu preciso parar com esses ficstapes. Mas não vou.
Espero que tenham gostado da história e, por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo.





Outras Fanfics:
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04. Warning
06. If I Could Fly
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4th of the July
Side by Side


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