Capítulo Único
— , você entra em cinco.
Ao redor de tudo era frenético. Gente correndo de um lado para o outro com malas e trouxas de roupas, maquiadores apressados com suas maletas, gritos, xingamentos; sangue, suor e lágrimas por trás do glamour. Acertou a manga do blazer que vestia, cujo caimento emoldurava o tronco e dava delineado à silhueta alta, respirou fundo e seguiu com tranquilidade até a entrada da passarela. No caminho, desviou de três mulheres aparentemente idênticas, se não fosse pelo peso que cada uma carregava acima das cabeças. Não um peso físico; o peso das escolhas e dos atos delas.
Claire, por que roubou o cordão da sua avó e deixou que a cozinheira fosse acusada no seu lugar? Ela foi demitida, perdeu a casa para o banco e aquele rosto sofrido não passou pela sua cabeça nenhuma vez. Um mínimo de remorso faria bem. Joanne, estimular a amiga a desenvolver comportamentos bulímicos estando ciente dos distúrbios de imagem que a assombravam não é atitude de quem diz ser “irmã de outra mãe”. Cynthia, nada a declarar sobre você.
As cortinas pretas que separavam o backstage e a passarela eram pesadas como o manto da morte, porque, para muitos, era como encontrá-la na primeira fila empunhando a foice. Era hora do espetáculo.
Dizem que o primeiro passo é o que dita a cadência do modelo no desfile; discordava totalmente. Muita coisa podia acontecer no decorrer daqueles oito metros e meio, tipo dar de cara com o ricaço que jurou amor eterno enquanto te ostentava como um troféu acompanhado por outra mulher mais jovem que você, Amanda. Cuidado para não tropeçar e, por favor, descongele o mais rápido possível antes que atrapalhe a passagem dos demais modelos. Primeiro o pé direito, para atrair boa sorte ou qualquer uma dessas balelas usadas para justificar os erros cometidos por exaustão física e mental; a indústria nunca foi de dar folgas, no fim das contas ou morre para chegar aos holofotes ou morre de frente para eles. O primeiro passo de foi com o pé esquerdo. À aparição de sua silhueta, todos os fotógrafos viraram as câmeras em direção à aclamada modelo, cujo rosto sustentava a mais blasé das expressões. O olhar, porém, era afiado e mortal como dez facas cravadas em cada uma das lentes que a registravam. Lá vem ela, a , aquela que acha estúpido como vocês supervalorizam o olhar que está julgando-os, certos de que se trata de técnica — ou pior, talento.
Não era fácil para ela também. Estar cercada por nuvens de ódio e rancor era cansativo, caminhar pelo mundo desviando de idiotas atolando seu trajeto era ainda mais difícil. Tão complicado quanto seguir em linha reta estando cercada pelas pessoas com as nuvens mais densas possíveis: as ricas. Até pela visão periférica conseguia ver os pecados daqueles porcos.
A ponta da passarela era como estar à beira de um precipício. Se olhasse para baixo, as hienas riam e acenavam, apontavam a presa vulnerável desejando abocanhar seus flancos o mais rápido possível. Acabem logo com isso, nenhum sofrimento deveria se estender por tanto tempo. era durona, não estava ali para brincadeira e enfrentara uma escalada complicada para permitir ser derrubada por qualquer coisa que não fosse a urgente vontade de mandar todos à merda e deixar para trás o trabalho que se comprometera a fazer.
Não há tempo, apresse-se.
Seres humanos são fáceis de ler, repetem comportamentos de matilha, protegem os seus escolhidos e lançam os demais aos leões. Dentro dos círculos, os segredos circulam com certa segurança, até que o elo mais fraco dá com a língua nos dentes e põe tudo a perder. Para , não era sequer necessário interagir com eles para saber quais eram as maçãs podres. Melhor dizendo, quais maçãs não estavam podres, porque a imensa maioria não valia nem para alimentar vermes. O pós-desfile era o momento crítico: ser cumprimentada por todos, olhar no fundo de suas almas e lê-los sem expressar nojo em cada linha do rosto. Robert, corrupto; Lionel, sonegador de impostos; Martha, lobista; Jaden, contrabandeador de armas; Carl, tem um caso com a cunhada. Tudo escrito em letras claras em suas testas, flutuando nas nuvens escuras e extremamente pesadas que pairavam sobre suas cabeças. O desejo de era que caísse uma bigorna de cada uma delas e os amassasse, enviando-os diretamente para o inferno.
Hora de partir.
— Senhor Bridgerfield, é um prazer encontrá-lo novamente. Infelizmente, preciso sair neste instante, tenho outro compromisso em vinte minutos. Obrigado por prestigiar o desfile.
A sempre fechada e quieta escolheu a dedo quem deveria cumprimentar antes de deixar o recinto em que a recepção acontecia, repetindo a mesma frase e mudando apenas o sobrenome a quem se dirigia. Um amigável tapinha nas costas e seguia em frente. Todos os figurões foram “lambidos” pela estrela da noite, como manda o protocolo. Um táxi a esperava, um senhor de aparência simpática abriu a porta para ela e, sem demora, o carro deixou a vista dos fotógrafos que acompanhavam cada passo da modelo.
— Parabéns, . Espero que tenha deixado tudo em ordem — o motorista cumprimentou-a, assim que os vidros se fecharam e o veículo adentrou a estrada escura.
— Não suporto mais um segundo aqui. Vamos embora, Michael.
— Essa foi a última vez. Tenho certeza de que fez um excelente trabalho.
— Ótimo.
— Segure-se, vamos fazer a travessia — o senhor pediu.
No caminho à frente, um túnel cortava a montanha até que não fosse possível ver o fim. O táxi adentrou o breu, sendo abraçado pela noite, e se foi.
Ninguém se recordava com exatidão de onde saíra, seu nome foi alçado ao estrelato relativamente depressa graças à imensidão de seus olhos fortes. Uma indicação atrás da outra, aparentemente ela conhecia as pessoas certas e, de favor em favor, alcançou as melhores oportunidades pelas quais qualquer outra modelo na mesma faixa etária mataria e morreria para conseguir. Pulando de campanha em campanha, o último ano foi estampado pela face perfeitamente simétrica de nas publicidades das marcas mais concorridas, nos desfiles dos grandes nomes dos circuitos de moda e nas revistas de prestígio.
Da mesma forma como surgiu, ela sumiu.
Na manhã seguinte àquele último desfile, as manchetes dos jornais mostravam a misteriosa série de mortes ocorridas todas ao mesmo horário, todas da mesma causa — infarto fulminante —, ceifando grandes nomes do mundo da moda e do entretenimento. A investigação policial aberta para apurar o caso não chegou a uma conclusão efetiva, tudo parecia conectado por fios de nylon: sabiam estar ali, no entanto ninguém os via até que estivessem no seu pescoço, prontos para o enforcamento. A única pista era a marca na forma de um anjo, que, coincidentemente, apareceu em todos os corpos envolvidos. Nos meses seguintes, o vazio nas cadeiras dos CEOs seria profundamente sentido e lamentado pelos que venderiam a alma para ocupá-las.
A figura de , a modelo de olhar penetrante, sumiu misteriosamente com a mesma tranquilidade com a qual entrou de toda e qualquer campanha veiculada com sua imagem. Não existia mais naquela dimensão, deixando os entusiastas da moda com a estranha e assoladora sensação de que tudo não passou de um enorme delírio. As capas das revistas ficaram em branco, todas as recordações em vídeo, voz, o que seja, que desse a entender que um dia habitou aquele plano terrestre sumiram tal como o táxi amarelo que entrou no túnel e não chegou ao outro lado da montanha.
Era a última vez.
Já dizia a lenda que o anjo da morte caminha entre os vivos todas as vezes em que a humanidade perde o sentido e os valores foram totalmente enterrados pelo pecado, levando consigo os porcos cujas almas não merecem julgamento e irão permanecer no frio, no escuro, na lama fétida do purgatório até que Deus decida resgatá-los. Para o terror de muitos, era excelente como modelo, contudo, era excepcional como Ceifadora.
Vigie seus pensamentos, ela pode vê-los.
Ao redor de tudo era frenético. Gente correndo de um lado para o outro com malas e trouxas de roupas, maquiadores apressados com suas maletas, gritos, xingamentos; sangue, suor e lágrimas por trás do glamour. Acertou a manga do blazer que vestia, cujo caimento emoldurava o tronco e dava delineado à silhueta alta, respirou fundo e seguiu com tranquilidade até a entrada da passarela. No caminho, desviou de três mulheres aparentemente idênticas, se não fosse pelo peso que cada uma carregava acima das cabeças. Não um peso físico; o peso das escolhas e dos atos delas.
Claire, por que roubou o cordão da sua avó e deixou que a cozinheira fosse acusada no seu lugar? Ela foi demitida, perdeu a casa para o banco e aquele rosto sofrido não passou pela sua cabeça nenhuma vez. Um mínimo de remorso faria bem. Joanne, estimular a amiga a desenvolver comportamentos bulímicos estando ciente dos distúrbios de imagem que a assombravam não é atitude de quem diz ser “irmã de outra mãe”. Cynthia, nada a declarar sobre você.
As cortinas pretas que separavam o backstage e a passarela eram pesadas como o manto da morte, porque, para muitos, era como encontrá-la na primeira fila empunhando a foice. Era hora do espetáculo.
Dizem que o primeiro passo é o que dita a cadência do modelo no desfile; discordava totalmente. Muita coisa podia acontecer no decorrer daqueles oito metros e meio, tipo dar de cara com o ricaço que jurou amor eterno enquanto te ostentava como um troféu acompanhado por outra mulher mais jovem que você, Amanda. Cuidado para não tropeçar e, por favor, descongele o mais rápido possível antes que atrapalhe a passagem dos demais modelos. Primeiro o pé direito, para atrair boa sorte ou qualquer uma dessas balelas usadas para justificar os erros cometidos por exaustão física e mental; a indústria nunca foi de dar folgas, no fim das contas ou morre para chegar aos holofotes ou morre de frente para eles. O primeiro passo de foi com o pé esquerdo. À aparição de sua silhueta, todos os fotógrafos viraram as câmeras em direção à aclamada modelo, cujo rosto sustentava a mais blasé das expressões. O olhar, porém, era afiado e mortal como dez facas cravadas em cada uma das lentes que a registravam. Lá vem ela, a , aquela que acha estúpido como vocês supervalorizam o olhar que está julgando-os, certos de que se trata de técnica — ou pior, talento.
Não era fácil para ela também. Estar cercada por nuvens de ódio e rancor era cansativo, caminhar pelo mundo desviando de idiotas atolando seu trajeto era ainda mais difícil. Tão complicado quanto seguir em linha reta estando cercada pelas pessoas com as nuvens mais densas possíveis: as ricas. Até pela visão periférica conseguia ver os pecados daqueles porcos.
A ponta da passarela era como estar à beira de um precipício. Se olhasse para baixo, as hienas riam e acenavam, apontavam a presa vulnerável desejando abocanhar seus flancos o mais rápido possível. Acabem logo com isso, nenhum sofrimento deveria se estender por tanto tempo. era durona, não estava ali para brincadeira e enfrentara uma escalada complicada para permitir ser derrubada por qualquer coisa que não fosse a urgente vontade de mandar todos à merda e deixar para trás o trabalho que se comprometera a fazer.
Não há tempo, apresse-se.
Seres humanos são fáceis de ler, repetem comportamentos de matilha, protegem os seus escolhidos e lançam os demais aos leões. Dentro dos círculos, os segredos circulam com certa segurança, até que o elo mais fraco dá com a língua nos dentes e põe tudo a perder. Para , não era sequer necessário interagir com eles para saber quais eram as maçãs podres. Melhor dizendo, quais maçãs não estavam podres, porque a imensa maioria não valia nem para alimentar vermes. O pós-desfile era o momento crítico: ser cumprimentada por todos, olhar no fundo de suas almas e lê-los sem expressar nojo em cada linha do rosto. Robert, corrupto; Lionel, sonegador de impostos; Martha, lobista; Jaden, contrabandeador de armas; Carl, tem um caso com a cunhada. Tudo escrito em letras claras em suas testas, flutuando nas nuvens escuras e extremamente pesadas que pairavam sobre suas cabeças. O desejo de era que caísse uma bigorna de cada uma delas e os amassasse, enviando-os diretamente para o inferno.
Hora de partir.
— Senhor Bridgerfield, é um prazer encontrá-lo novamente. Infelizmente, preciso sair neste instante, tenho outro compromisso em vinte minutos. Obrigado por prestigiar o desfile.
A sempre fechada e quieta escolheu a dedo quem deveria cumprimentar antes de deixar o recinto em que a recepção acontecia, repetindo a mesma frase e mudando apenas o sobrenome a quem se dirigia. Um amigável tapinha nas costas e seguia em frente. Todos os figurões foram “lambidos” pela estrela da noite, como manda o protocolo. Um táxi a esperava, um senhor de aparência simpática abriu a porta para ela e, sem demora, o carro deixou a vista dos fotógrafos que acompanhavam cada passo da modelo.
— Parabéns, . Espero que tenha deixado tudo em ordem — o motorista cumprimentou-a, assim que os vidros se fecharam e o veículo adentrou a estrada escura.
— Não suporto mais um segundo aqui. Vamos embora, Michael.
— Essa foi a última vez. Tenho certeza de que fez um excelente trabalho.
— Ótimo.
— Segure-se, vamos fazer a travessia — o senhor pediu.
No caminho à frente, um túnel cortava a montanha até que não fosse possível ver o fim. O táxi adentrou o breu, sendo abraçado pela noite, e se foi.
Ninguém se recordava com exatidão de onde saíra, seu nome foi alçado ao estrelato relativamente depressa graças à imensidão de seus olhos fortes. Uma indicação atrás da outra, aparentemente ela conhecia as pessoas certas e, de favor em favor, alcançou as melhores oportunidades pelas quais qualquer outra modelo na mesma faixa etária mataria e morreria para conseguir. Pulando de campanha em campanha, o último ano foi estampado pela face perfeitamente simétrica de nas publicidades das marcas mais concorridas, nos desfiles dos grandes nomes dos circuitos de moda e nas revistas de prestígio.
Da mesma forma como surgiu, ela sumiu.
Na manhã seguinte àquele último desfile, as manchetes dos jornais mostravam a misteriosa série de mortes ocorridas todas ao mesmo horário, todas da mesma causa — infarto fulminante —, ceifando grandes nomes do mundo da moda e do entretenimento. A investigação policial aberta para apurar o caso não chegou a uma conclusão efetiva, tudo parecia conectado por fios de nylon: sabiam estar ali, no entanto ninguém os via até que estivessem no seu pescoço, prontos para o enforcamento. A única pista era a marca na forma de um anjo, que, coincidentemente, apareceu em todos os corpos envolvidos. Nos meses seguintes, o vazio nas cadeiras dos CEOs seria profundamente sentido e lamentado pelos que venderiam a alma para ocupá-las.
A figura de , a modelo de olhar penetrante, sumiu misteriosamente com a mesma tranquilidade com a qual entrou de toda e qualquer campanha veiculada com sua imagem. Não existia mais naquela dimensão, deixando os entusiastas da moda com a estranha e assoladora sensação de que tudo não passou de um enorme delírio. As capas das revistas ficaram em branco, todas as recordações em vídeo, voz, o que seja, que desse a entender que um dia habitou aquele plano terrestre sumiram tal como o táxi amarelo que entrou no túnel e não chegou ao outro lado da montanha.
Era a última vez.
Já dizia a lenda que o anjo da morte caminha entre os vivos todas as vezes em que a humanidade perde o sentido e os valores foram totalmente enterrados pelo pecado, levando consigo os porcos cujas almas não merecem julgamento e irão permanecer no frio, no escuro, na lama fétida do purgatório até que Deus decida resgatá-los. Para o terror de muitos, era excelente como modelo, contudo, era excepcional como Ceifadora.
Vigie seus pensamentos, ela pode vê-los.
FIM
Nota da autora: Olá, obrigada por chegar até aqui! Trabalhar com essa música me deu a possibilidade de voltar a desenvolver a escrita abstrata e visceral que tanto gosto, trazendo a Dinah como uma ceifadora em missão de purificação da humanidade. Espero que tenha gostado e, caso ainda não tenha ouvido a música que deu origem à história, recomendo que o faça. Então, venha me contar o que faria no lugar da nossa protagonista. O que acha? Nos vemos em breve!
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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