Última atualização: Fanfic finalizada.

Capítulo Único

Paralisia Cerebral é uma lesão de uma ou de várias partes do cérebro. Pode acontecer durante a gestação, durante o parto ou após o nascimento, ainda no processo de amadurecimento do cérebro da criança. É uma lesão provocada, muitas vezes, pela falta de oxigenação das células cerebrais. A pessoa que tem paralisia cerebral pode ter inteligência normal, a não ser que a lesão tenha afetado áreas do cérebro responsáveis pelo raciocínio e pela memória.
Fonte: http://www.crfaster.com.br/cer.htm


Skies are crying
I am watching



A primeira coisa que pensei quando o vi foi: Que cabelo legal.
Era aquele tipo de cabelo que parece que foi desarrumado na frente do espelho, aquele que diz “é, eu acordo sexy assim, lide com isso sua pobre mortal que acorda toda babada e cheia de remela”. Ele tinha esse tipo de cabelo, que era tão legal quanto os seus óculos escuros e sua camiseta com estampa do Tarantino, quando entrou no meu estúdio acompanhado de uma senhora de expressão apreensiva. Eu só notei que o homem era diferente quando ele se aproximou do meu balcão e tirou os óculos.
O olho esquerdo dele ficava levemente mais fechado do que o direito, mas tinha sobrancelhas grossas que davam uma boa moldura para aqueles olhos. Sua pele era branca e seus lábios se repuxavam um pouco para baixo, como se ele estivesse fazendo uma careta para o melhor amigo de forma sutil, para que ninguém mais percebesse.
— Bom dia. Você é a ? – Sua voz era arrastada e extremamente pausada, mas ele sorria quando falava. Um sorriso alegre que pendia mais para o lado direito do seu rosto.
— Em carne, osso, pele e tinta. – Sorri também. – Planeja fazer uma tatuagem?
— Sim. Quero escrever Be Kind e Be brave. Pensei em fazer uma palavra de cada lado. Na parte de trás dos ombros.
— Filho, peça pra ver portfólio dela primeiro. Tudo bem que o Ben te recomendou essa moça, mas isso vai ficar na sua pele pra sempre! – A senhora ao lado interrompeu, estava tentando parecer segura de si, mas eu podia apostar a maior grana de que ela estava pensando “Tatuagem é aquele negócio que se aprende fazer dentro da cadeia”.
— Mãe! Nosso acordo foi você vir conhecer o estúdio sem julgamentos. Estou decidido. – Disse firme.
Eu já estou acostumada com esse tipo de discussão, sou tatuadora profissional há seis anos, mas treinei a vida inteira com meu pai. Amo minha profissão, amo o estúdio que papai deixou para mim quando ele se foi e não me importa que ainda existam pessoas que não reconhecem que ser um tatuador é ser um artista. Às vezes, eu acho até engraçado ver mães e pais que não gostam de tatuagens. Sabe, os pais nunca estão satisfeito! Meu irmão mais velho, o , sempre morreu de medo de agulhas e tem a pele mais lisinha do que bunda de bebê, por mais que minha mãe ainda tente, sem sucesso, convencê—lo de que uma tatuagem bem pequenininha não vai doer nada.
Peguei meu portfólio e deixei que eles folheassem. A senhora parecia bem mais envolvida no julgamento do meu traço fino do que o seu filho. Ele estava olhando para mim.
— Eu gostei. Das suas rosas. – Sorri, as rosas vermelhas tatuadas no meu ombro tinham sido uma das últimas obras do meu pai antes do acidente de carro.
— Obrigada, vai ser a sua primeira tattoo?
— Sim. Estou muito empolgado. Minha mãe nem tanto. Acho que ela não percebeu que o menininho indefeso dela já cresceu.
— Não fale de mim como se eu não estivesse aqui, ! – A senhora deu risada. –Marque isso de uma vez então, já que aquele seu amigo te indicou essa moça, ela deve ser boa mesmo. Ele tem aquela coisa enorme rabiscada, deve entender disso. – A mulher deu de ombros em sinal de derrota.
— O meu amigo tem um lobo, mãe, não uma coisa rabiscada. – Ele riu em resposta.
Fiquei ansiosa para tatuar o filho daquela senhora e mostrar o motivo desse tal Benjamin ter me indicado. Não conseguia me lembrar dele, são muitos clientes, poucas histórias acabam me marcando de verdade, mas tinha certeza que a coisa era um lobo perfeito que não merecia ser desprezada assim.
— Que eu sou boa eu posso garantir. – Sorri. – Quando quer fazer?
— Amanhã mesmo. – Ele sorriu.
— Que tal às 11 da manhã? Vou te entregar o termo de compromisso e você pode levar pra casa, ler e me trazer amanhã. Preencha seus dados nas linhas pontilhadas, ok? Você é responsável por si mesmo, não é? – Ele parecia ser maior de idade, mas como estava com a mãe, quis garantir.
— Claro que ele é! – Pela primeira vez a senhora teve a intenção de soar verdadeiramente grosseira e ultrajada. – Não é porque ele é diferente de você que não é normal.
Isso é o que eu chamo de bola fora. Nem me passou pela cabeça que eles podiam entender aquilo da forma errada. O meu cliente, , tinha sim algumas condições físicas diferentes: O olho mais fechado, o sorriso torto e a fala mais lenta, que o fazia soar como se cada palavra pudesse vir com um ponto final, e sua mão esquerda não se abriu totalmente quando ele pegou o termo. Senti—me péssima.
— Sinto muito, não foi isso que eu quis dizer, eu só queria garantir que ele é maior de idade. – Foi à vez de a senhora ficar sem graça. Foi então que começou a dar risada.
— Agora vocês estão falando de mim como se eu não estivesse aqui. – Ele riu. – Amanhã às 11 eu trago o papel assinado. Só para esclarecer. Tenho 25 anos. Paralisia cerebral leve. O que me garante uma mãe maravilhosa, mas muito protetora. E estou ansioso para te ver de novo. .

Eu posso não me lembrar de todos os meus clientes, mas sei que todos vão sempre se lembrar de mim. As pessoas decidem fazer tatuagens por diversos motivos. Alguns escolhem os desenhos só porque gostam, alguns tatuam nomes de pessoas especiais, assim como eu fiz o nome do meu pai na costela, algumas pessoas querem esconder cicatrizes, ou marcar uma fase importante da vida. Eu sempre dei o meu melhor em todas as tatuagens que fiz. Foi a primeira coisa que meu pai me ensinou: a responsabilidade de deixar uma marca nas pessoas para sempre. Isso bem antes de eu assumir o estúdio sozinha; ele disse isso quando eu decidi que queria ser como ele, aos dez anos de idade.
Mas algumas tatuagens são especiais o bastante para me fazer lembrar, por exemplo, uma vez que fiz flores na cicatriz deixada por uma cirurgia para remover um câncer de mama, outra vez, desenhei uma calculadora em um jovem estudante de engenharia que tinha ganhado uma bolsa integral para um intercâmbio na Espanha. Alguns clientes conseguem me marcar tanto quanto eu os marco e eu tinha a sensação de que seria um desses clientes que não conseguiria esquecer.
O céu amanheceu fechado naquela manhã, com ameaças de chuva. Pontualmente, às 11 horas, entrou no estúdio. Eu estava separando algumas fontes para que ele escolhesse.
— Bom dia, . – Ele sorriu.
— Pode me chamar só de . Você trouxe alguma referência de fonte? Estou rascunhando algumas aqui. – Estiquei a folha com as palavras Be kind e Be Brave escritas várias vezes. Algumas com letras mais redondas, outras inclinadas, cursivas enfeitadas e outras mais simples. Ele olhou com atenção meu trabalho. Além do seu característico cabelo, hoje ele estava usando óculos de grau que me fez lembrar o Clark Kent em uma versão sem músculos.
— Posso imprimir algo pronto também. – Disse sorridente. – A maioria traz algo da internet, mas como você ainda não tinha me mostrado nada, tomei a liberdade de brincar com o papel. – Dei de ombros.
— Eu gostei dessa aqui. – Ele disse, mostrando um dos meus desenhos. Gostava quando as pessoas aceitavam minhas sugestões, deixava a tatuagem diferente quando não era algo pronto. Uma obra única.
— Desenhei essa pensando nas letras de uma máquina de escrever, mas afinei e dei um espaçamento maior para o traço ficar mais limpo.
— Ficou ótimo, .
— Sua mãe está ai? Pode ir mostrar para ela.
— Hoje estou sozinho. Não sou tão filhinho da mamãe quanto pareço. – Ele riu, mas recomeçou a falar apreensivo. – Aliás. Desculpe por ela ter sido grossa ontem. Minha mãe aprendeu a esperar o pior das pessoas.
— Eu sou quem pede desculpas, nunca pensei que você... é... – Hesitei. Não queria ter hesitado. O que eu devia dizer? Não era responsável por si mesmo? Normal?
— Tudo bem. – Ele deu de ombros e sorriu. Não sei como pude comparar seus lábios com uma careta, ele sorria com tanta facilidade. – Já me decidi. Podemos começar?
O sorriso dele era muito bonito, mesmo que não fosse simétrico, era verdadeiro.
— Vou arrumar o estêncil. Qual tamanho você quer?
— Um pouco maior que essa que você fez. Quero uma de cada lado das costas. Perto dos meus ombros. Be kind no lado direito. Be brave do lado esquerdo.
— Entendi. – Abri o a escâner para passar o desenho para o computador e aumentá—lo. – Vai ser bem simples, nem vai dar tempo de você sentir muita dor.
— Estou bem confiante de que vou aguentar firme. – disse. – As suas doeram muito?
— Não, na verdade eu acho até que é uma cócega gostosa! – Dei risada, adorava tanto tatuar, quanto ser tatuada. – Mas varia muito, já tive clientes que acharam que estavam sendo torturados. Costas é um lugar tranquilo, as campeãs das reclamações são as costelas e o pé, mas quando eu tatuei a minha costela não senti nada demais.
— O que você tem na costela? – Perguntou.
— O nome do meu pai e as asas de um anjo. Esse estúdio era dele, foi ele que me ensinou quase tudo o que eu sei.
— Hm. Asas de anjo? – Percebi na forma como me olhou que ele havia entendido.
— Eu tinha vinte anos quando ele sofreu o acidente de carro de carro e se foi, seis anos atrás. Quando reabri o estúdio perdi muitos clientes porque me achavam muito nova para tatuar sozinha, mas eu cresci aqui, e apesar de me considerar profissional só a partir do momento em que assumi o estúdio, comecei a tatuar aos quinze. Meu pai me deixou fazer uma carpa na perna dele. Aquela foi sem dúvida a minha pior tatuagem, ficou horrível, o traço todo tremido, mas ele insistia em dizer que era a favorita dele.
— Tenho certeza que era porque ele tinha muito orgulho de você. – disse e eu sorri. Tinha saudades do meu pai.
— Caramba, acabei de dizer para um cliente que fiz uma tatuagem ruim! – Eu ri. – Lembre—se de que era porque eu estava começando, te garanto que a sua vai ficar incrível. – a conversa com fluía tão naturalmente que parecia que eu estava prestes a tatuar um amigo de décadas.
Imprimi o desenho e mostrei a ele.
— O que acha do tamanho?
— Perfeito. – Ele sorriu e essa foi a minha deixa para fazer o estêncil.

ficou esperando na recepção enquanto eu preparava os materiais na sala onde fazia as tatuagens. Eu já usava minhas luvas e minha máscara cirúrgica enquanto preparava as agulhas descartáveis e arrumava a tinta preta no batoque. Qualquer um sabe que a higiene e a esterilização são as partes mais importantes do processo da tatuagem. Tirei a máscara e chamei pelo quando estava tudo pronto.
— Vou precisar que você tire a camiseta. Pode deixar ali em cima da maca mesmo. – Eu disse e não pude deixar de reparar enquanto ele fazia isso. Foi um procedimento um pouco desajeitado, mas bem eficiente. O corpo de era magro e graças a Deus tinha só alguns pouco pelos no peito, suas costas eram limpas. Acredite, a única parte ruim de tatuar é ter que raspar um homem peludo.
— Aqui, certo? – Disse, colocando os dedos em sua pele para que ele confirmasse o local. Podia sentir a sua temperatura, por um segundo, imaginei como seria tocá—lo sem as luvas.
— Sim, .
— Relaxe os ombros e fique com postura ereta pra eu colocar o decalque.
— Posso relaxar os ombros. Mas ficar totalmente reto não garanto.
— Ah... descul...
— Não peça desculpas! — começou a rir alto e eu o acompanhei. Ele tinha um senso de humor bem esquisito.
— O que eu quis dizer é que você não pode se mexer enquanto eu coloco o decalque. – Eu ri. me obedeceu e ficou parado. Passei o produto de decalque e pressionei o estêncil de papel vegetal. Primeiro com Be brave e depois com o Be kind. Quando tive a certeza de que estava tudo reto e alinhado perguntei para o .
— Quer dar uma olhada no espelho antes?
— Não. Confio em você.
— Prometo que vai ficar incrível. Sente—se aqui, com o encosto da cadeira para frente, igual malandro no bar. – Ele riu da minha piada e eu recoloquei a máscara cirúrgica para começar a tatuar. Liguei a máquina e comecei a trabalhar para valer.
— Então, porque Be kind e Be brave? – Perguntei.
— Aposto que você está pensando que eu devia fazer uma coisa mais máscula. Um dragão ou uma garota nua. – Ele riu e eu soube que ele sabia que eu não pensava aquilo.
— Desde que você não tatue o nome da sua nova namorada que conheceu há um mês, não vou te julgar. – Acompanhei seu riso. – Aposto que você tem uma boa razão pra escolher essas palavras.
— Gentileza e coragem são as coisas mais importantes pra mim. Quer dizer, dá pra notar que eu não sou perfeito.
— Perfeição é um saco, cara. – Disse, enquanto limpava o excesso de tinta e examinava os primeiros traços da tatuagem se formando.
— Concordo. – Ele riu. – Escolhi colocar o Be brave do lado esquerdo porque é onde meus movimentos ficaram prejudicados. A minha vida inteira eu precisei de muita coragem para superar os meus próprios limites.
— Tenho certeza disso. – Disse, limpando o excesso mais uma vez. O primeiro B já estava pronto.
— Minha mãe biológica morreu no parto. A que me trouxe aqui ontem é, na verdade, a irmã dela. Mas eu a chamo de mãe porque é isso que ela sempre foi pra mim. Eu nasci prematuro, com 7 meses. E não estava respirando quando fizeram a cesárea às pressas. Quase não sobrevivi.
— Você já nasceu com mais coragem do que a maioria das pessoas. – Disse.
— Isso soa poético. – Ele riu. – Minha tia me adotou legalmente. Mas não demorou muito pra perceberem que eu não tinha saído tão ileso quanto pensaram. Eu não conseguia aprender a falar e a andar. Aí descobriram a minha paralisia. Desde então, tem uma grande novela acontecendo, envolvendo mil fisioterapeutas, fonoaudiólogos e todo tipo de gente que atende por doutor e doutora.
— Sinto muito. – Disse. era tão sorridente e simpático, não era justo ele ter passado por tudo isso.
— Não precisa sentir, . Paralisia não é uma doença, é só a forma como eu nasci. Meu maior medo é que as pessoas não enxerguem além da minha condição. Eu sou uma pessoa normal.
Afastei um pouco a agulha para me recompor. Aquelas palavras tinham me pegado de jeito. Não é uma doença. Quantas pessoas podem ter pensando que ele estava doente? Terem julgado sem nem o conhecer? Terem se afastado por preconceito, imaginando que ele tinha algo contagioso ou que era só um pobre coitado que teve a infelicidade de ter uma doença sem cura. Não é uma doença, é só a forma como ele nasceu.
— Tudo bem aí? – Perguntou. Respirei fundo encarando sua nuca.
— Sim, continue. – Disse e voltei a tatuá—lo.
— Minha paralisia não é cognitiva, só motora. Hoje eu tenho minhas condições especiais sobre controle e apesar da minha fala pausada, eu me comunico bem. Minha mão esquerda também não é das melhores, mas consigo fazer tudo o que eu quero: Posso andar e comer. Tenho um emprego que amo. Você não tem ideia do quão sortudo eu sou. Existem pessoas que infelizmente não conseguem fazer essas coisas, sabe? Acho que no fim, eu não seria a mesma pessoa se não tivesse passado por tudo o que eu passei. Tenho orgulho de quem eu sou e de cada característica que me faz ser essa pessoa.
— Isso é muito inspirador, . – E era mesmo, em pouco tempo eu já tinha até me habituado ao seu discurso lento e pausado, ele falava muito bem, apesar disso. – E qual é a sua profissão?
— Fotógrafo. Eu e meu irmão moramos juntos em um sobrado. Construí meu estúdio no térreo. Amo a ideia de registrar momentos, pois considero uma arte.
— Com certeza é uma arte, toda forma de expressão é arte. – Disse enquanto conferia a minha própria arte na pele de — E a primeira parte da sua tatuagem já foi, vou para o Be kind.
— Estou desapontado. Praticamente não senti dor nenhuma. – Ele disse.
— Fez jus a sua coragem. – Sorri, começando a traçar o segundo be.
— Acho que foi por sua causa. Fica difícil sentir dor enquanto conversamos.
— Me conte o porquê da gentileza, então. — Troquei o papel tolha que usava para tirar o excesso da tinta enquanto ele começava a falar.
— Tive que usar muletas na infância. Não conseguia andar direito e crianças podem ser um pouco cruéis as vezes. Sabe como é. Eu não era bom em me enturmar. Uma criança tímida e diferente das outras vira um alvo fácil ena adolescência, comecei a andar sozinho e as coisas melhoraram um pouco. Mas é difícil esquecer os que os outros diziam.
— Babacas estão em todos os lugares, você não tem noção do quanto olhavam torto para o meu pai quando nós saíamos juntos. Bem, admito que ele era uma figura: um homem barbudo com quase dois metros de altura e cheio de tatuagens, então você deve imaginar a cara das professoras e das outras famílias quando ele ia a alguma reunião da escola... Achavam que ele era um pai ruim. Não sabem o quanto estavam erradas.
— Por isso a gentileza é importante. As pessoas veem como uma qualidade, mas devia ser uma coisa comum. Todo mundo deve respeitar todo mundo. As pessoas deviam ser mais gentis.
— Você está completamente certo, . – Disse, completando mais um traço em suas costas.
— Algumas crianças escondiam minhas muletas para me ver cair quando eu tentava andar sem elas. Achavam isso engraçado. Conforme fui crescendo. Os outros alunos pararam de fazer crueldades físicas, mas sempre me chamaram de cara torta, corcunda de notre dame, pirata caolho, cavalo manco e... Você está rindo?
— Não! – Droga, eu estava. – Ah meu Deus, desculpe, sou uma pessoa horrível, uma babaca! — Dava pra eu me sentir pior do que aquilo? Existe algum tipo de situação mais constrangedora no mundo? Quis enfiar a agulha dentro da minha língua. Poxa, aquilo era cruel, rir daquilo era cruel.
Ainda bem que tinha afastado a agulha da pele dele, ou teria feito um traço tremido nas suas costas inteiras tamanho foi meu choque quando ele começou a rir descontroladamente.
— Tudo bem. Admito. Pirata caolho soa um pouquinho engraçado.
— Para nós que ouvimos de fora sim, mas tenho certeza de que para você não era nem um pouco engraçado. – Recomecei a tatuá—lo. Faltava pouco agora.
— Não era. Mas isso porque eu tinha uma porcaria de autoestima. Depois aprendi a me aceitar. Sabia que havia pessoas que me amavam como eu era. Minha família, por exemplo. Vi que pessoas são só pessoas. Não é o que elas dizem que me define. É o que eu sou.
— Corajoso e gentil? – Perguntei.
— Sim. Corajoso e gentil. – Ele respondeu.
— Ótimo, porque sua tatuagem ficou pronta. — Analisei sua pele levemente inchada e vermelha, onde as letras foram feitas. Estava muito boa. O traço firme e reto, de um preto reluzente, iria cicatrizar bem. – Vem olhar no espelho.
se levantou e eu peguei o espelho de mão. Ele ficou de costas para o espelho maior preso na parede, enquanto eu mirava o espelho menor em suas novas tatuagens.
— O que achou?
— Ficaram incríveis. – Ele sorriu. – Adorei.
— Que bom. – Sorri.
— Elas ficaram melhores do que aquela carpa que você fez com 15 anos. – Me olhou desafiador.
— Touché! Eu mereço isso por ter rido de você, pirata caolho.
— Agora estamos quites. – Ele riu.
Só percebemos que estava chovendo quando voltamos para a recepção do estúdio. me pagou e eu o instruí sobre os cuidados que deveria ter com a tatuagem. A cicatrização era tão importante quanto o processo de fazer a tatuagem em si, ou as letras ficariam falhadas e ele teria de voltar para retocar.
— Não se esqueça de hidratar o tempo todo nos primeiros dias, não coce e não arranque a casquinha que vai se formar de jeito nenhum! É igual um ralado, você tem que deixar cicatrizar naturalmente ou vai ficar falhada. Entendeu?
— Perfeitamente. – Ele assentiu.
— Sério, hidratar e não coçar. Nada de tomar muito sol também e muito menos entrar em uma piscina com cloro.
— Caramba, . Eu marquei uma viagem para a praia esse final de semana. Água do mar é um problema? – Ele perguntou sério.
— O que? Ficou doido? Claro que é! – Meu coração deu um pulo dentro do peito só de pensar no sal e na areia se esfregando numa tatuagem recém feita. começou a rir.
— É brincadeira. Você devia ver sua cara.
— Palhaço! – Eu disse. – Cara, se quiser, pode esperar a chuva passar aqui. – Dei de ombros, apontando para uma garoa leve molhando a janela do estúdio.
— Tenho que ir embora. Preciso organizar um álbum ainda. – disse. – Não me incomoda que o céu está chorando.
— O céu chorando? – Ri.
— Eu tinha medo de trovões quando era criança e minha mãe me acalmava dizendo que o céu estava chorando. O trovão era a mãe dele cantando para céu dormir. Eu tinha dó do céu porque a mãe dele era muito desafinada.
— Isso seria muito fofo se não fosse tão engraçado. – Eu falei no meio de risadas esganiçadas.
— Você é um doce, . – ironizou, mas acabou rindo também. – A maioria das garotas se impressionaria com caras sensíveis.
— Primeiro: muitas garotas com certeza iam rir dessa história. Segundo: não sou como a maioria das outras garotas! – Disse, enquanto gesticulava para o estúdio.
— A segunda parte eu notei. E notei que você gosta de cinema e música. – olhou sugestivamente para alguns pôsteres que decoravam meu ambiente de trabalho. – Também notei que o sábado está chegando e eu conheço um bar legal que tem música ao vivo.
— Você está tentando me chamar pra sair? – Arqueei as sobrancelhas.
— Que bom que você notou isso.

Only silence, has its ending



me buscou de carro. Não sei por que fiquei espantada com o fato dele dirigir, já que ele já havia mostrado que sabia sim se virar muito bem, na verdade, eu quase não reparava mais em suas diferenças físicas. Mas reparei no cabelo de novo.
Como ele consegue ter um cabelo tão legal?
E um bom gosto também. O bar em que ele me levou tinha um aspecto muito agradável. A decoração era cheia de pôsteres clássicos, como Beatles, Janis Joplin, Elvis e até Cazuza. A música ambiente também era ótima; um moço bem afinado fazia vários covers acústicos.
puxou a cadeira para que eu me sentasse quando chegamos. Foi tão casual, que parecia que ele fazia só por ser gentil mesmo e não para me impressionar. Ele era mesmo gentil, além de engraçado. , que não bebia álcool, fez piada quando a garçonete entregou o suco que ele havia pedido para mim e a minha cerveja para ele. Tínhamos muito em comum, desde nossos gostos até estilo de humor e, bem, ele não perdeu o bom humor nem quando um pouco do molho de pimenta da porção de asas de frango que havíamos pedido escorreu pelo lado esquerdo da sua boca assimétrica.
era uma ótima pessoa. Incrível como conseguia prestar atenção em tudo o que eu dizia. Eu mesma me perdia em suas palavras porque ficava olhando o sorriso dele. Como ele podia sorrir tanto? Era tão natural, tão verdadeiro e bonito.
Era isso que era: bonito. Não pela sua aparência e nem pelas coisas que dizia, ele só era incrivelmente bonito com o seu jeito de ser.
— Com licença, preciso ir ao banheiro. – disse baixinho depois que tivemos outra crise de riso.
— Ok. – Respondi e dei outro gole na minha cerveja. Fiquei observando—o atravessar as mesas até o banheiro. Depois meus olhos caíram sobre a porção de frango frito parcialmente comida, apesar de o ambiente ser ótimo, o molho estava apimentado demais.
Estava observando o músico quando uma massa de músculos definidos sentou no lugar que ocupava, de frente pra mim.
— Oi princesa, qual o seu nome? – O homem disse. Ele era bem apessoado até, aquele tipo que vive na academia, mas qual é? Se tinha uma coisa que eu não era, é uma princesa.
— Oi, plebeu. Sinto muito, mas eu estou acompanhada. – Disse tentando ser o menos grossa possível. Quem tinha dado permissão para esse cara sentar na minha mesa?
— Ah linda, eu não vi ninguém com você.
— Pois é, acontece. Mas se puder me dar licença, você sentou no lugar do meu acompanhante e ele já vai voltar.
— Então, você podia me passar seu número pra gente se encontrar, não é? — Ele tentou de novo.
— Eu estou acompanhada, já disse. Será que você, por favor, pode levantar a sua bunda dessa cadeira? – Meu Deus, que cara insistente!
— Não se faça de difícil, princesa, você não parece ser desse tipo. – Ele resmungou. Não pareço ser desse tipo?
— De que tipo exatamente eu não pareço ser? – Cruzei os braços e encarei o homem da forma mais ameaçadora que eu conseguia. Chega de tentar ser legal.
— Ah, princesa, você sabe, essas tatuagens e esse batom vermelho... – Ele começou.
— Sabe que tipo de garota eu pareço ser? – Interrompi. – O tipo que não está nem um pouco interessada em você. – Peguei minha bolsa e me levantei abruptamente. – Era o tipo de garota fácil o que você queria dizer, não é? Ah, faça o favor! Ninguém é vestibular pra ser fácil ou difícil.
, o que foi? – estava se aproximando, enquanto eu me levantava e discutia com o homem.
— As coisas ficaram um pouco desagradáveis enquanto você não estava aqui, .
— Sem chance! – O homem musculoso começou a rir incrédulo. – Esse é o seu acompanhante? Você não reparou que ele é retardado?
Paciência nunca foi o meu forte e ouvir aquele desconhecido dizer aquilo de forma tão maldosa sobre o , o homem que tinha sido uma pessoa extremamente amável comigo a noite toda, fez meu sangue ferver.
Peguei o resto da porção de frango apimentado e virei no rosto do homem da forma mais rápida e ágil que consegui.
— MEU OLHO! – Ele gritou. – SUA PUTA LOUCA, TEM PIMENTA NO MEU OLHO!
Não contei dois segundos até vários garçons se aproximarem. Até o músico parou de cantar.
— É. Acho que nós vamos querer a conta. – disse.

***


— Você é louca. – disse, quando já estávamos indo embora. Estávamos dentro do carro, não havia como continuar lá depois da situação. Não sei como as pessoas não viam que o errado era aquele machista preconceituoso.
— Aquele cara é um babaca. – Respondi.
— É verdade. Mas jogar molho de pimenta no rosto dele não vai o fazer melhorar.
— Droga, , você não pode deixar as pessoa pisarem em você assim.
, você viu o tamanho daquele cara? Uma montanha de músculos machistas e acéfalos. Já pensou se ele fosse pra cima de você? Eu não ia conseguir te defender.
— Não preciso que ninguém me defenda de nada.
— Tudo bem. Eu devo ter minhas muletas guardadas se você precisar delas então.
— Eu daria conta! – Reclamei exasperada. Eu não acho que violência seja a forma adequada de resolver problemas, juro, mas eu tinha um temperamento forte e não gostava de ser vitimizada. Sou forte e independente, posso resolver meus problemas sozinha.
, o cara parecia o incrível Hulk em uma segunda feira de manhã!
— Quanto maior o tamanho, maior a queda. – Rebati, mal humorada, e encarei a janela, finalizando o assunto. Como uma noite tão divertida tinha acabado assim?
Não era justo ouvir as porcarias que aquele babaca do bar tinha dito. Primeiro, o julgando por causa do meu visual, como se as tatuagens que eu tenho, as roupas que eu uso ou a minha maquiagem definissem algo sobre o meu caráter! E depois ele se atreveu a chamar o de retardado, como se ele possuísse alguma deficiência cognitiva e fosse inferior... Ah, meu Deus! Mesmo se tivesse alguma deficiência cognitiva, isso não o faria inferior a ninguém! A única deficiência que desmoraliza alguém é a deficiência de caráter, como a daquele cara do bar.
Mais uma vez, me senti péssima com as minhas atitudes. Quantas vezes não vemos alguém especial na rua, com alguma diferença física ou alguma síndrome e sentimos pena? Mesmo que não seja intencional, nós acabamos pensando conosco: “Ah, pobrezinho, ele não tem culpa de ser assim!” Quantas vezes olhamos torto para alguém especial, o julgando incapaz de se virar sozinho? Tiramos nossas conclusões precipitadas sem saber nada sobre a vida daquela pessoa. Quantas vezes eu não fiz isso? Achamos que não estamos fazendo nada demais e na verdade estamos agindo feito babacas preconceituosos?
Lembrei—me de ter rido dos apelidos que recebia na infância e aquela história não me pareceu mais nem um pouco engraçada.
O observei de forma discreta enquanto ele dirigia, já estávamos chegando a minha casa e fiquei me perguntando quando o veria de novo. Assim que estacionou, ele pulou para fora e andou desajeitado para o lado do passageiro, se apressou para abrir a porta para mim.
— Obrigada, pela carona e pela gentileza. – Eu disse. – Foi uma ótima noite... Bem, até acontecer tudo aquilo.
— Eu achei a noite toda ótima. Temos uma grande história para contar agora. – Ele sorriu e eu o acompanhei. Mas não estava com vontade de sorrir, não até colocar os meus pensamentos engasgados para fora.
, quando eu ri daquela história que você me contou, sobre os apelidos e o bullying...
— Pirata caolho tinha sido o seu preferido. Não? – Ele riu.
— Foi rude e idiota! Eu sinto muito, isso não tem graça nenhuma. – Quando eu disse isso ele ficou me olhando sério, não sei porque, mas senti um pouco de vontade de chorar. Engoli em seco, nem pra eu ter passado um rímel aprova de água!
, não tem problema. Você não me ofendeu. Sei que você não riu por maldade.
— Será que não, ? Quando eu penso naquele cara te chamando de retardado, caramba, eu não quero soar daquela forma, eu não quero ter atitudes parecidas com aquela.
Senti meu corpo aquecer. De forma desajeitada e carinhosa, colocou seus braços e encostou seu corpo magro junto ao meu, me envolvendo em um forte abraço. Encostei minha cabeça em seu peito ossudo e fiquei sentindo o seu perfume.
— Você não é como aquele cara, . Você é uma garota linda, divertida, inteligente e talentosa. Um pouco barraqueira e respondona também. O que te faz ainda mais sensacional. Você é intensa, . E nunca me ofendeu de forma nenhuma. Você só me fez sentir uma cara perfeitamente normal que fica completamente desnorteado e nervoso perto da garota mais incrível que ele já conheceu.
Então não era só mais o meu corpo que o abraço de aquecia, mas o meu coração também. Levantei o olhar e mais uma vez o observei. Não me cansava de olhar para ele, cada ângulo parecia mais bonito que o outro para mim agora. Quando meus olhos pousaram em seus lábios eu não pude conter a vontade de beija—lo.
Os seus lábios eram finos e assimétricos, mas que, de alguma forma, se encaixaram perfeitamente nos meus. Nosso beijo foi calmo e doce, como a sua fala pausada. Meus olhos se fecharam e eu não podia mais ver a diferença de abertura das pálpebras dele. Sua mão esquerda não se movia com perfeição, mas era eficiente em me envolver pela cintura. Sua boca repuxava para o lado, mas eu podia sentir o gosto dela para sempre.
— Acho que essa é uma boa deixa para que eu te convide para outro encontro. – disse quando afastamos nossos lábios, apesar de nossos corpos ainda estarem abraçados.
— Vou aceitar só porque não tivemos tempo de dançarmos juntos. – Respondi.
— Dançar?
— É, dançar. Não era pra isso que fomos a um bar com música ao vivo? – Perguntei risonha.
— Não sou bom em dançar. – respondeu baixinho.
— Isso é o que nós vamos ver. – Respondi e o beijei de novo, eu queria beija—lo mais mil vezes.

Do you have to make me feel like
There's nothing left of me?



Minha mão estava dolorida. Havia acabado de terminar a terceira e última sessão de uma tatuagem que fechava o braço inteiro de um homem, e ficou incrível. Um dragão, gueixas e lanternas japonesas interligados na pele do cliente. Ainda bem que meu irmão, , havia aparecido para me ajudar a limpar e a fechar o estúdio.
Era sábado à tarde, já fazia quase um mês que eu me encontrava com frequentemente e ainda trocávamos mensagens e ligações o tempo todo. Hoje eu estava ansiosa porque ele não tinha dito para onde iriamos, só que era um lugar muito especial. “Eu conheci você no seu trabalho, quero que você conheça o meu”. Sou curiosa demais para ser deixada no escuro assim.
— Acho que eu devia conhecer o cara que merece esse nervosismo todo. – Meu irmão riu. Ele estava varrendo a sala de recepção enquanto eu conferia o caixa.
— Não estou nervosa. – Me defendi. – Só estou atrasada. Talvez eu devesse realmente contratar uma assistente.
— Isso eu concordo, não estou sempre por perto pra te salvar, maninha, mas dessa vez eu posso terminar de fechar o estúdio pra você ir pro seu encontro. – Meu irmão deu uma piscadela.
— Claro, , você só está me ajudando porque é um ótimo irmão. – Ironizei. – Pensa que eu não sei que você veio aqui enrolar pra conhecer o e ir fofocar com a mamãe.
— Bem, como vou saber se apoio ou não seu namoro se você não me apresenta o cara?
— Qual namoro, seu palhaço, bebeu ácido sulfúrico? Mal nos conhecemos.
— Rabugenta, desse jeito não desencalha nunca.
— Não fui pra praia pra ficar encalhada, aliás, você é o mais velho e ainda continua solteiro. Que moral tem pra falar de mim?
— Não dá pra brincar com você. – Ele riu. – Vai se trocar pro seu encontro com o seu não namorado, eu termino isso.
Acabei aceitando e abusando da ajuda de . Fui para o banheiro do estúdio, substituir a camiseta com que tinha trabalhado a manhã inteira por uma das minhas regatas preferidas. Troquei o tênis velho por um salto e pronto, já gostava mais ainda do que vi quando olhei no espelho. Estava retocando a maquiagem quando ouvi a voz de me avisar que já estava no estúdio. Borboletas se agitaram no me estômago e eu comecei a rir sozinha. Éramos só amigos, no máximo poderia sentir algumas lagartinhas, nada de borboletas... Bem, amigos que às vezes trocavam alguns beijos.
Olhei—me no espelho do banheiro uma última vez e saí.
estava sorrindo, como sempre.
— Bonequinha de luxo? – Ele ri. – Sabia que você gostava de clássicos, mas eu te visualizava mais como uma fã de filmes de ação.
— Gosto de filmes bons. – Pisquei. – Esse é o , meu irmão.
— Oi. Sou o . – Ele disse sorridente esticando a mão. demorou alguns segundos para apertar de volta.
— Ouvi falar bastante de você, mas não que... É... Bem... , eu posso deixar a chave do estúdio na casa da mamãe, aí você passa lá pra pegar depois.
— Tudo bem. – Sorri. – Obrigada por fechar as coisas por mim, pago uma pizza depois.
Entreguei as chaves do estúdio para meu irmão e fui com para o trabalho dele, que eu não sabia exatamente o que significava ainda.
— Então, pra onde vamos? – Perguntei, enquanto ele ligava o carro.
— Vou fazer uma sessão de fotos. E queria que você fosse comigo.
— Isso deduzi sozinha, espertinho, mas o que nós vamos fotografar?
— Espere pra ver. Vou montar uma exposição. É um trabalho especial.

You can take everything I have
You can break everything I am
Like I'm made of glass
Like I'm made of paper



Eu imaginei fotografando várias coisas, paisagens, modelos, até objetos. Mas não imaginei aquilo que era no fim, a resposta mais óbvia.
, essa é a doutora Pacheco. Uma das várias responsáveis por eu ter recuperado o movimento completo das minhas pernas.— sorriu, me apresentando a médica. Uma senhorinha simpática de pele negra e cabelo crespo curtinho e volumoso.
— Muito prazer em conhecê—la. – Sorri.
— O prazer é meu, querida. Bem vinda ao CAPE, ou Centro de Artes para Pessoas Especiais.
— A doutora Pacheco e o marido dela. Que era um professor de artes. Começaram o projeto há 30 anos. Aqui várias pessoas portadoras de necessidades especiais podem fazer aula de dança. Pintura. Teatro...
— E qualquer outra coisa que encontremos professores voluntários. Graças a Deus muitos começam fazendo pra conseguir créditos extras na faculdade e acabam ficando mesmo depois de formados.
— A doutora foi minha ortopedista quando eu era criança. Ela me convidou para ver o projeto e eu virei um dos alunos. Eles oferecem aulas para todas as idades e todos os tipos de deficiência. Foi aqui que peguei minha primeira câmera fotográfica. – explicou, e ainda sorriu para a Canon, que ele trazia nas mãos.
— Estamos muito empolgados com a exposição do , ele é nosso orgulho. Além de que, podemos ganhar alguma visibilidade e, se tudo der certo, mais pessoas vão conhecer nossa instituição e receberemos mais doações. As coisas andam meio complicadas, especialmente depois que um marido morreu. – A doutora lamentou.
— Sinto muito.
— Sentir é uma coisa boa, querida. – A médica disse. – Vou buscar as autorizações dos pais dos menores de idade . Fiquem à vontade. – Ela sorriu.
— Obrigado.
Nós estávamos no jardim do CAPE. O lugar parecia uma mistura de escola e hospital, havia vários alunos desenhando do lado de fora e vários voluntários que se vestiam de branco. O jardim era bonito, eu podia sentir o perfume de várias flores no ar. A atmosfera era amigável.
— Surpresa? – perguntou.
— Não sabia que esse lugar existia. – Disse.
— É uma instituição não governamental. Gosto de visitar e ajudar sempre que possível. Passei grande parte da infância aqui.
— É bonito aqui, bem, ao menos o jardim. – Sorri. sempre era uma caixinha de surpresas. – Sobre o que vai ser sua exposição?
— Ainda não decidi o nome, mas vai ser sobre as marcas das pessoas. Estou fotografando pessoas que possuem uma história de superação e não se envergonham das marcas no corpo que têm, sabe? Como cicatrizes, ou amputações, ou qualquer marca que tenha uma boa história.
— Que incrível!
— Faz tempo que queria fotografar alguns dos alunos daqui. Hoje consegui e queria mostrar pra você. Essa exposição é importante pra mim.
— Eu mal posso esperar pra ver suas fotos prontas, Roy. – Beijei sua bochecha esquerda. — Vou te mostrar o lugar. – A mão se entrelaçou na minha e deixei que ele me guiasse.
As coisas com aconteciam muito rápido. Se eu visitasse aquele lugar antes de conhecê—lo, sairia de lá arrasada, acreditando que aquelas pessoas eram pobrezinhas, que não poderiam ter nada na vida. Depois que eu o conheci, entendi que elas são só pessoas tentando viver a vida delas da melhor forma possível, como todos nós. Não posso reduzir uma pessoa só a sua necessidade especial, não é justo com elas. Assim como eu conheci e vi que ele não é sua paralisia cerebral. era um amante de cinema, gentil, educado, que odiava matérias exatas. A sua condição era só uma parte dele.
Por que será que é tão difícil quebrar nossos preconceitos?
me mostrava o jardim e tirava várias fotos ao mesmo tempo, acho que ele era algum tipo de celebridade, porque vários voluntários e estudantes paravam para dizer oi o acenavam de longe.
! – Uma menina de uns doze anos apareceu sorridente empurrando sua cadeira de rodas. Ela era pequena, de cabelos curtinhos. Suas pernas terminavam onde seriam nossos joelhos.
— Maluzinha. – Ele respondeu. – Tudo bem?
— Sim, estava desenhando. – Ela sorriu mostrando o caderno que trazia no colo.
— Legal! – sorriu. – Olha. Essa é minha amiga. . Ela é uma desenhista também.
— Caramba, que tatuagens legais! – Ela riu pra mim. Parecia que não tinha me notado até me apresentar. – Meu nome é Maria Luz, mas pode me chamar só de Malu.
— Sou a . Você gosta de desenhar?
— Sim, mas ainda estou tendo aulas. – ela hesitou um pouquinho. – Você quer ver meus desenhos?
— Claro. – Eu sorri e me sentei no chão do jardim mesmo, pra poder ficar na altura da Malu. Ela me entregou o caderno de desenhos dela e eu fiquei realmente surpresa. A garota levava jeito, o colorido dela era impressionante. E eram desenhos bem legais, cartunescos, com vários personagens da cultura pop, desde o Darth Vader até super heróis.
— Essa mulher maravilha ficou ótima! – Eu disse em aprovação.
— Obrigada! – Maluzinha respondeu entusiasmada. – Qual seu estilo?
— Sou tatuadora, então tive que estudar todos. Realista, preto e branco, mas confesso que eu adoro desenhos do seu estilo, parecem quadrinhos mesmo.
— Eu quero ilustrar quadrinhos quando crescer, sabe? Como profissão. – Ela sorriu.
— Você está no caminha certo, seu colorido é ótimo! – Disse encorajando a garotinha.
– Obrigada... Ei , não tire fotos sem estarmos preparadas. – Ela reclamou e eu notei que estava nos fazendo de modelos.
— Ei, seu paparazzi! – Sorri.
— Desculpem. Mas as fotos ficaram ótimas. – Ele ergueu as mãos em forma de rendição.
, querido, trouxe seus papéis! – A doutora Pacheco nos interrompeu. – Maluzinha fazendo amizades! –A mulher perguntou de forma terna para nós duas.
— Estava testando a namorada nova do . Ela é bem legal mesmo, podemos aprovar o relacionamento. – A menina riu e eu senti minhas bochechas corarem. Namorada? As coisas definitivamente estão indo rápido demais.
— Malu! – A doutora repreendeu.
— Que foi? – a garota perguntou inocente.
Olhei para discretamente e vi que ele estava tão sem jeito quanto eu. Parecíamos dois adolescentes, uma garotinha que conseguia nos fazer ficar sem palavras.
— Bem, , acho que podemos ir tirar as outras fotos. – A doutora Pacheco disse quebrando o silêncio.
Eu conheci várias pessoas incríveis durante a tarde que passamos lá. Pessoas que nasceram com deficiência, pessoas que tiveram de ser amputadas, alunos com síndrome de down e várias outras histórias inspiradoras. Passei um bom tempo desenhando com a Malu, a garota que tinha na verdade treze anos e havia amputado as duas pernas para impedir que tumores do seu osteossarcoma se espalhassem, mas agora, estava com exames limpos há dois anos.
Eu tinha cada vez mais respeito pelos alunos de lá. Principalmente, mais respeito pelo . Não importava o quão julgassem que aquelas pessoas tinham perdido tudo, elas ainda estavam lá vivendo, cheias de sonhos, assim como eu.

Go on and try to tear me down
I will be rising from the ground

— Essa é a segunda parte. – sorriu, quando chegamos a um sobrado. – A parte de cima é meu estúdio. A de baixo é a casa que eu divido com meu irmão. Bom, na verdade, meu primo. Mas eu considero como irmão.
Desci do carro e o ajudei com os equipamentos dele, um enorme cachorro preto veio nos saudar quando entramos no quintal da casa.
— Hitchcock gostou de você.— disse.
— Hitchcock? – Eu ri. – Ele é uma graça. Qual a raça?
— É um vira lata adotado. Que nem o pai dele. – Ele riu ao responder. Colocou o tripé no chão e abriu a porta da casa, Hitchcock entrou primeiro que nós.
— Calma, Hitch! — Ele deixou os equipamentos no sofá e fez carinho no cachorro. – Essa é a sala, . Os quartos e o banheiro são pra lá. E do outro lado é a cozinha. Está com fome? Quero te mostrar meu estúdio. Podemos pedir uma pizza? O , meu irmão, é melhor na cozinha do que eu, mas ele ainda ta trabalhando.
— Tudo bem.
A casa de era bonita, mas não apreciei muito. Depois que decidimos a pizza, subimos para o seu estúdio, vi algumas das fotos que já estavam prontas, e elas eram lindas. valorizava os tons neutros e diminuía as cores vibrantes à medida que ele ia me mostrado as fotos e contando a história de cada um dos modelos eu ficava mais encantada.
Um bombeiro com o peitoral cheio de cicatrizes de queimaduras.
Uma mãe com cicatrizes de cesárea que teve uma gravidez de risco.
Um ex viciado em drogas com marcas de facadas.
Uma mulher com o seio único a mostra. O outro ela havia perdido para o câncer de mama. Eu senti meus olhos encherem de lágrimas quando vi as flores que escondiam as suas cicatrizes da remoção de mama.
— Essa mulher, fui eu quem fez essa tatuagem. Eu me lembro dela. Carla? Clara?
— Carmem. – disse sorrindo. – Ela adora as flores.
— Sim, ela escolheu margaridas porque lembravam o jardim da casa onde ela cresceu.
— Que mundo pequeno! – riu. Eu continuei olhando as fotos até notar um par de pernas pálidas e esbeltas, cheias de cicatrizes nos joelhos.
— Essas de quem são? – perguntei.
— Minhas. – Ele responde. – São cicatrizes de cirurgias.
— Suas fotos são lindas, a exposição vai ser um sucesso. – Sorri.
, eu te mostrei as fotos porque queria pedir algo pra você. Olha. Vou entender perfeitamente se você não quiser. – Ele disse, mais devagar e pausado que o costume, em hesitação.
— Peça.
— Uma vez você me disse que tinha o nome do seu pai tatuado. Eu pensei, sabe, essa poderia ser uma ótima foto para a exposição. Uma manifestação artística que mostra um sentimento interno. Mas se você não quiser eu entendo, todos os modelos dessa exposição são voluntários. Eu estou montando as fotos porque me identifico com elas. E não para vender.
. – Por essa e não esperava, fazer parte daquela exposição? – Seria uma honra. – Sorri.
— Obrigado, ! Podemos marcar o dia que você quiser. Por ser na costela. Acho que você vai ter de usar um biquíni. Espero que não tenha problema.
— Na verdade, eu tenho uma ideia melhor. – Disse hesitante – Podemos fotografar agora?

As the smoke clears
I awaken and untangle you from me



estava arrumando a iluminação e o painel de fundo enquanto eu me preparava no banheiro do estúdio. Penteava os cabelos enquanto pensava nas fotos, especialmente a da Carmem. Já que eu faria isso, faria por completo.
— Quando estiver pronta, . – bateu na porta. Eu conferi minha imagem usando apenas a calça jeans, e sai do banheiro abraçando meus seios nus.
mordeu o lábio.
— Tem certeza? Várias pessoas vão ver essa foto. – Ele disse.
— Tenho.
Eu valorizava tanto minha profissão, amava minha arte, amava meu passado. O ensaio do é sobre mostrar pessoas confortáveis com suas próprias marcas e histórias. Eu amava cada uma das minhas tatuagens porque elas refletem quem eu era. Amo meu pai por ele ter me criado da melhor maneira possível.
Eu queria mostrar para todo mundo o quanto eu me amava.
Ele indicou a posição que em que e deveria ficar. Com o braço direito eu mantive meus seios abraçados e levantei o esquerdo, relando no meu ombro, para mostrar melhor a tatuagem na costela. começou a me fotografar.
— Ficaram muito boas – disse olhando o visor da câmera digital. Aproximei—me para ver também. Ele havia tirado várias fotos: algumas coloridas, outra em preto e branco, mais próximas, mais distantes.
— Adorei. – Sorri. – Ficaram lindas.
— Porque você é linda.
A próxima coisa que senti foram os lábios de . Nosso encaixe imperfeito.
Abraçados, me guio até a bancada onde ele deixava o computador e depositou a câmera fotográfica sob a mesa, deixando suas mãos livres para que ele apertasse minha cintura.
Tudo deixou de existir, ele era o meu mundo e eu era o dele.
Até que a campainha tocou.
— A pizza. – Resmunguei.
— Droga. – Ele respondeu.
foi, por fim, abrir a porta para o entregador enquanto eu vestia a blusa de volta. Comemos juntos e ainda pude conhecer o primo/irmão de , , quando ele chegou do trabalho.
era um cara legal, acabou me convidando para o seu jantar de aniversário na próxima semana, e eu aceitei empolgada.
Como fui boba em ter aceito.

Would it make you feel better
To watch me while I bleed
All my windows, still are broken
But I'm standing on my feet



O primeiro sinal de que as coisas iam dar errado veio do meu irmão. No dia seguinte em que ele havia conhecido , recebi uma mensagem dizendo “Você não acha que é bonita demais para aquele cara?
Eu não era ingênua de não notar alguns olhares atravessados quando saímos juntos. Não éramos um casal convencional, de capa de revista, não éramos bonitos juntos. Mas éramos felizes juntos.
Eu só não esperava que os julgamentos vissem do meu próprio irmão, nós nem tínhamos um namoro concreto e todos já tinham suas conclusões tiradas.
“Não acho, acho que somos imperfeitos um para o outro”
Mas o problema só veio nos encarar no aniversário do .
Estávamos todos jantando juntos, os pais de , ele, seu irmão, Jennifer, noiva de e eu.
— Muito obrigado pela camisa, , adorei a estampa. – Gabriel disse sorrindo. — Que bom. me disse que você era fã do Foo Figherts, tomei a liberdade de customizar.
— Você desenhou aquele Dave Grohl? Ficou perfeito! – Jennifer disse.
— Obrigada. – Sorri orgulhosa. — Sou tatuadora, desenhar pra mim é diversão.
— Você não pode ir para a faculdade, querida? – A mãe de disse.
— Preferi investir em cursos e workshops de desenho e tatuagem depois do ensino médio. Eu cresci no meu estúdio, ele era do meu pai, sempre soube que queria ser tatuadora como ele.
— E onde seu pai está agora? – Ela perguntou.
— Ele faleceu há um tempo. – Disse pesarosa. – Acidente de carro.
— Meus pêsames. – O pai de disse.
— Oh... Ele bebia muito? Bateu o carro? – A mãe disse.
— Foi atropelado, na verdade. Um acidente, já passou de qualquer forma.
Tentei ao máximo ignorar e me convencer de que mãe de não queria ser maldosa e julgar meu pai só porque ele tinha sido tatuador. Beber e dirigir? Será que ela realmente achava que pessoas tatuadas são todas marginalizadas? O filho dela têm tatuagens! Que ficaram lindas depois de cicatrizadas, aliás.
— A Jennifer é estudante de medicina, um orgulho. – A mãe de disse.
— Todas as profissões são importantes. – Jenn deu de ombros. – Aliás, esse semestre nós estamos desenvolvendo um trabalho super interessante com a turma de enfermagem...
— Não seja modesta, querida. – A senhora interrompeu. – Você deu muito duro e estudou demais pra chegar onde está.
— Não é só porque a não foi pra faculdade que ela não estudou, mamãe. Ela tem um dom. Consegue desenhar qualquer coisa e ainda é ambidestra! – disse sorrindo pra mim. Eu fiquei feliz por saber que ele se orgulhava da minha profissão tanto quanto eu.
— E as tatuagens dela são incríveis. , eu acabei vendo as fotos da exposição do , aquelas asas na sua costela são ótimas, quem fez em você?
— Fiz com um dos meus professores de workshop... – Comecei a explicar para o .
— Você fotografou pro ? Como conseguiram ver suas tatuagens na costela? – Aquela senhora realmente gostava de interromper. Caramba, eu sei que ela era a dona da casa e tinha criado e , que eram pessoas ótimas, mas que maldita mulher chata! Tive de respirar fundo antes de falar de novo.
— Eu vi as fotos de e, por uma incrível coincidência, eu havia tatuado uma das modelos! A mulher que fez margaridas para esconder a cicatriz da retirada da mama... Adorei aquela foto. Então, quando me chamou eu pensei na coragem daquela mulher e...
— Você tirou uma foto pelada? – Ele arregalou os olhos e o marido dela engasgou com a bebida. – Pra todo mundo ver?
— Não exatamente... – Comecei. Eu estava sem blusa nas fotos, mas meu braço tampava o seio e ainda usava meus jeans. Mas, mesmo se eu estivesse completamente nua, era uma exposição artística, o que ela tinha haver com a exposição que eu dava ao meu corpo.
Mas eu perdi a vontade de argumentar ou falar qualquer coisa quando a senhora completou o pensamento dela.
— Que coisa de vagabunda!
— Mãe! Você não pode falar assim com a ! – começou a dizer ultrajado.
, deixe, tudo bem. Não adianta, aparentemente a sua mãe já sabe tudo o que tem que saber sobre mim. Acho melhor eu ir embora.
— Desculpa, , eu não sabia que mencionar isso... – começou a se desculpar também.
— Tudo bem, desculpe pelo seu aniversário. Eu tinha de ir embora logo de qualquer forma. Amanhã tenho de acordar cedo. É... A comida estava ótima.
Nunca fui boa em controlar meus nervos, sair de lá era a melhor coisa a se fazer.
Vagabunda.
Filha do pai tatuador bêbado irresponsável.
Burra por não ter ido pra faculdade.
Eu não era isso, não queria ficar ali aguentando saber que era assim que a mãe do me via. Por mais eu adorasse o , não valia a pena. Estávamos nos conhecendo, mas não adiantava, em qualquer lugar que fossemos seríamos julgados, todos apontariam os dedos mesmo sem saber nada sobre nós. Meu Deus, aquele cara no bar, as pessoas nas filas do cinema, os garçons, meu próprio irmão e a família dele... Em todo lugar éramos julgados. Será que eles estavam todos certos e nós dois éramos os errados?
era incapaz de amar alguém porque tinha paralisia cerebral?
Eu era incapaz de amar alguém porque era tatuadora, usava maquiagem forte e roupas curtas?
Éramos mesmo só o retardado e a vagabunda, como todos diziam?
Jamais daríamos certo. Éramos muito diferentes.
Fiquei surpresa comigo mesmo por chorar quando cheguei a minha casa e por ter tomado aquela decisão.
Eu saí da casa dele. Eu iria sair da vida dele também.

Go run, run, run



As palavras brilharam no visor do meu celular.
“Desculpe por ontem”
“Já passou”
“Vou falar com minha mãe”

E o quê? É fácil dizer o que penso para todos os outros, mas como podia brigar com a mãe do ? Ela havia sido uma babaca, mas era a mãe dele. Como eu podia ficar no meio de uma família? Eu sempre amei meus pais acima de tudo, eles sempre estiveram lá pra mim. E sei que também amava a mãe dele... Como eu podia me meter entre eles?
“Acho que as coisas nunca serão fáceis pra nós”
Respondi e guardei o celular. Não queria remoer mais as coisas, estava decidida a seguir o caminho mais fácil e me desvencilhar de .
Eu só não esperava que iria sentir tanta falta dele.

— As pessoas são um saco. – Malu disse. Eu não sei exatamente porque havia ido até o CAPE, mas eu queria conversar com alguém.
Eu não acredito que vim pedir conselhos amorosos pra uma garota de treze anos.
— E o que é que eu vou fazer? Começar uma briga de família? Como eu posso ficar com ele e entrar na casa da mulher que me chamou de vagabunda de novo?
— Olha, eu sei que é horrível quando pessoas nos classificam sem nem nos conhecer, . Eu passei a vida toda por isso... — A menina parou de falar para tossir.
— Tudo bem? – perguntei.
— Sim, só estou resfriada. Olha, você tem que colocar as coisas em uma balança, e decidir o que é melhor. Ficar com , o gatinho sensação das deficientes aqui do CAPE e ter que lidar com babacas o tempo todo, ou escolher o caminho mais fácil e ficar sem ele. – Maluzinha deu de ombros e eu comecei a rir.
— Você faz a vida parecer tão fácil assim, não acredito que tem só treze anos!
— Porque é fácil! Nós caímos o tempo todo, mas sempre podemos nos levantar e ir mais alto. Como um prédio, sabe? Começamos no chão e nos construímos para tocar o céu. Somos um arranha—céu!
— Arranha—céu? – Eu ri.
— Sim. – Deu de ombros. — Agora, eu preciso ir pra aula de desenho, mas foi muito legal você vir me visitar. Pode me consultar quando quiser, sou ótima em relacionamentos, já até dei um beijo uma vez. Na boca. – Malu deu uma piscadela e eu desatei a rir. Que figura de menina.
— Obrigada, Maluzinha. Qualquer dia você pode ir visitar meu estúdio, acho que ia gostar.
— Sim! Eu ia adorar, .

I'm gonna stay right here
Watch you disappear, yeah



Antes de me reconstruir, eu fui para o chão.
Eu e não nos víamos pessoalmente desde o incidente na casa dele, quase um mês atrás. Curioso é que se não fosse aquela terrível ligação, talvez tivéssemos nos perdidos para sempre. Mas, ao invés disso, outra pessoa havia se perdido.
Tomei coragem de atender o celular um pouco antes de cair na caixa postal.
?
— Eu sei que estamos dando um tempo. Mas. Eu... Não sei com quem mais poderia contar. – A voz dele, sempre pausada, estava intercalada com soluços agora.
— O que aconteceu, ?
— A Maluzinha morreu.
E eu estava abaixo do chão

. Foi horrível ver o corpo da garota que queria tocar o céu ser enterrado. Maria Luz, a garota de treze anos que sonhava em ser desenhista, havia descoberto que o câncer que havia tirado suas duas pernas estava agora em seu pulmão. Seus pais descobriram alguns dias depois de termos nos falado no CAPE e eu sequer fiquei sabendo. Se ao menos tivesse voltado lá para cumprir a promessa de levar Malu para visitar meu estúdio, mas fiquei tão envolvida com a correria do dia a dia... Como eu ia saber que duas semanas depois ela ia estar morta?
— É horrível ver alguém tão jovem ir embora. – apareceu do me lado e eu posei a cabeça em seu ombro.
— Ela tinha tantas coisas pra fazer ainda. – Respondi sentindo sua mão acariciar meus cabelos.
— Obrigado por vir no enterro, . Sei que você está brava comigo, mas estou feliz de você estar aqui.
— Eu não estou brava com você, estava brava com a situação.– Respondi. – E eu devia isso pra Maluzinha também, não pude conhecer a garota melhor e agora me arrependo tanto.
— Nunca sabemos quanto tempo ainda temos.
— Não.
Eu nunca fui uma pessoa fácil de lidar, nunca fui boa com relacionamentos. Quando meu pai morreu passei a maior parte do tempo trancada no meu quarto chorando sozinha, odiava demostrar emoções na frente das pessoas. Eu gostava de ser forte, independente, gostava de passar a imagem de autossuficiente. Chorar na frente de todos, abraçada a , foi a coisa mais corajosa que havia feito em anos.
Ver aquela garotinha ir embora me mostrou que não podia adiar as coisas, não podia perder tempo, não podia continuar seguindo o caminho mais fácil. Não podia perder o homem por quem eu estava apaixonada por medo dos outros.
Meu Deus.
O homem por quem eu estava apaixonada.

Like a skyscraper



Quatro meses depois

! – A mulher sorriu pra mim, passando pela multidão. – Eu vi sua foto, você está linda! Ah, o que estou dizendo, você se lembra de mim?
— Claro que me lembro, dona Carmem. – Sorri. – A foto da senhora é a minha favorita da exposição e não só por motivos pessoais! – Disse me referindo à tatuagem.
— Esse é um mundo bem pequeno, não é? Muito bom ver você de novo, não sabe o que o seu trabalho fez para minha autoestima.
— Essa é a melhor gratificação que eu posso ter! — Sorri para a senhora Carmem.
A exposição de era um sucesso.
! – Ouvi a voz de me chamar, pedi licença a dona Carmem e fui ao encontro do meu irmão mais velho.
— Até que enfim te encontrei, isso aqui está lotado! Cadê o , preciso dar os meus parabéns para ele.
— Da última vez que vi estava dando entrevista para a tv local, mas acho que o discurso dele já vai começar. — Respondi.
— Isso aqui está incrível, você tinha razão, maninha, são imperfeitos uma para o outro. – falou. — E adorei a sua foto. As duas, aliás!
— Obrigada, . É muito bom ouvir você dizer isso.
e eu estávamos em um relacionamento de verdade desde o enterro de Maluzinha. Não posso dizer que as coisas são fáceis, ainda existem os olhares tortos quando saímos juntos. Eles sempre vão existir, mas eu não me importava mais, estava plenamente feliz.
Meu irmão conheceu e aceitou , eu me tornei amiga de e Jennifer e recebi um pedido de desculpas da mãe dele. Apesar de saber que nunca seria a garota que ela sonhava para o filho, ela aprendeu a me respeitar, e eu também a respeito por isso.
— Quero agradecer a todos os presentes aqui hoje. A Exposição Arranha céu significa muito para mim. Espero que vocês saiam daqui mais inspirados. – começou a discursar em agradecimento, na frente da foto principal da exposição: Eu e Maluzinha desenhando no dia em que nos conhecemos. – Essa exposição é sobre pessoas e suas histórias. Mais do que minhas fotos. São essas pessoas as obras de arte aqui. Eu queria muito agradecer pela oportunidade de me deixar fazer parte da história de vocês. Um brinde a todos nós!
ergueu a taça de champagne e os sons dos aplausos ecoaram pelo salão. Fui em sua direção e o abracei orgulhosa.
— Você foi incrível, meu amor. – Disse.
— Sério? Sou horrível falando. Ainda mais em público. – Ele disse desajeitado.
— Eu adorei. – Selei nossos lábios em dos nossos beijos doces e tortos.
— Não acredito. – Eu ri entre nosso beijo. – Essa música! — O som de fundo pareceu ficar ainda ais alto quando reconheci os acordes de Moon river, trilha sonora de um dos meus filmes favoritos.
— Bonequinha de luxo. – Ele revirou os olhos rindo. – Devo ter ciúmes da Audrey Hepburn? Quando você disse que sabia as falas do filme de cor e sempre achava que era um exagero.
— Disse o cara que gosta de Velozes e furiosos. Pelo menos meu gosto é clássico. – Sorri.
— Todos temos um prazer culposo. – Ele deu de ombros. – Ei, lembra que eu estou te devendo um dança desde o nosso primeiro encontro?
— Achei que você não dançasse. – Respondi surpresa. sempre me disse que não conseguia dançar.
— Podemos tentar? – Ele arqueou as sobrancelhas me estendendo a mão.
— Aqui? – Eu ri. – Tudo bem, eu adoro tentar.
No seu abraço assimétrico e no meio dos seus passos desajeitados, eu tive certeza de duas coisas: Ele era um dançarino terrível e eu o amava.

Two drifters, off to see the world
There's such a lot of world to see
We're after the same rainbow's end
waiting, round the bend
My Huckleberry friend
Moon River, and me



*ouça a verão de Moon River aqui


FIM



Nota da autora: Nasceu! Gente, essa fic foi uma novela na minha vida, praticamente. Espero que vocês gostem do resultado. Por favor, fique um pouquinho a mais aqui comigo porque e tenho algumas coisas importantes que preciso dizer:
Quero agradecer as meninas do TDKAU, especialmente a Polly, que me aturaram e serviram de leitoras testes. Obrigada meninas! Quero mencionar a fonte de inspiração dessa short, que foi o RJ Mitte, um ator que possui paralisia cerebral. As entrevistas e a história dele foram fundamentais pra construir o personagem principal. Se vocês jogarem ele no youtube podem até achar algumas falas que foram diretamente tiradas dela, especialmente na primeira parte da história.
Só pra deixar claro, o CAPE infelizmente não existe, foi criado só pra suprir a necessidade da fic.
Bom, se você leu até aqui, deixe seu comentário por favor. Ajuda o site e me ajuda como autora. Muito obrigada!
Pode me procurar no twitter e na ask, meu user é @brunacagnin ou entre no grupo do facebook.



Outras Fanfics:
→ Radioativo – Restritas, em andamento.
→ Úrsula – finalizada, challenge #16
→ 01. Roar – Ficstape #15 Prism (Katy Perry)

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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