Última atualização: 20/03/2020

Capítulo Único

- Eu já falei que eu não sei de nada. Não sei onde ela foi, não sei se foi com alguém, não sei nem mesmo se ela foi, como vocês estão dizendo.
Minha mãe olhava nervosamente de mim para os policiais parados na sala de estar e na porta. Ela parecia mais nervosa do que eu, enquanto eu preparava meu sanduiche e ignorava qualquer coisa que a mãe dela estava resmungando parada à porta de casa.
- Mas ela não deu indícios de que estava cansada de alguma coisa?
Abri um sorriso e me virei pro policial.
- Isso devia ser perguntado aos pais dela, não a mim. Todo mundo sabe que nada de bom vinha do apartamento onde ela morava, que ela não tinha motivo nenhum pra não reclamar de alguma coisa. E olha que ela era a pessoa mais paciente que eu conheci na minha vida...

Flashback – 10 anos de idade

Já fazia duas semanas que eu via aquela menina parada na frente da porta ao lado. Todas as vezes que ela me via, ensaiava um sorriso, um sorriso lindo, que eu, infelizmente, tinha sido proibido de retribuir. Isso era culpa dos meus pais, que tinham presenciado uma suposta briga muito violenta dos pais dela no estacionamento do prédio outro dia. Bom, eu não podia afirmar quanto à violência, mas quanto aos gritos vindos do apartamento, isso com certeza dava pra ser ouvido. Estava chegando ao meu andar, me preparando psicologicamente pra ignorar a menina. Era fácil, doze passos do elevador até minha porta, alguns poucos segundos até abrir a tranca e era isso.
O barulhinho do elevador soou e eu pude ver a garotinha levantar o rosto. Eu ia, eu juro por Deus que eu ia ignorar ela como todos os dias, mas ela abriu o sorriso maravilhoso de sempre, mas o que me fez parar foi que ela estava chorando. Era o sorriso mais lindo do mundo em meio às lágrimas. Eu sorri de volta, aposto que minha cara era de pena, mas ela abriu ainda mais o sorriso.
- Achei que você nunca ia sorrir pra mim - ela falou, baixinho e se levantou depressa, me estendendo a mão logo em seguida. – Eu sou a Amber.
- Eu sou o Ruan – ela sorriu mais uma vez, secou as lágrimas e colocou as mãos atrás do corpo. – Você tá bem?
- Sim, estou sim. Você quer brincar?
Eu pensei um pouco e decidi que, se já tinha quebrado uma regra, não ia me matar quebrar outra. Pedi pra ela esperar enquanto eu guardava a minha mochila e logo estávamos descendo até o playground do prédio.
- Por que você não sorria pra mim no início? Eu sou uma boa companhia, não sou?
Ela perguntou no meio da brincadeira. Com toda a vergonha do mundo eu só podia ser sincero.
- Meus pais não gostam dos seus pais – ela murmurou um “ah” baixinho. – Eles têm medo que eles não sejam boas pessoas pra eu me envolver.
Achei que ela ia chorar, mas ela me surpreendeu mais uma vez com um sorriso.
- Demorou, mas fico feliz que você tenha falado comigo. Se você quiser brincar escondido, eu juro de dedinho que eu não conto pros seus pais. Desde que a gente possa fazer isso todos os dias pra eu ficar longe dos meus pais.
Senti pena da garota mais uma vez no dia, me sentia super mal quando meus pais brigavam, imagina só como ela se sentia com os pais dela brigando todos os dias. Eu sorri de volta e uni o meu dedo mindinho ao dela. Acho que seriamos bons amigos.

Flashback


- Você sabe sobre os casos de agressão? Os pais dela me informaram que ela era agressiva com eles e com outras pessoas e também com animais.
Eu soltei a faca a meio caminho de acabar de passar maionese no meu pão. Olhei bem pra cara da mãe dela enquanto ela fingia não me olhar.
- Não, a Amber é um amor de pessoa. Talvez a pessoa mais carinhosa e compreensiva que eu conheço. Nem mesmo meus pais são tão carinhosos – minha mãe murmurou um “Ruan, por Deus” chocada com a informação. – Ela jamais faria mal a alguém, principalmente a um bicho.

Flashback – 14 anos

Estava saindo do elevador, quando Amber entrou pulando e me puxou de volta pra ele. Apertou o botão do térreo várias vezes e começou a pular no mesmo lugar, me olhando com os olhos cheios de lágrimas e um nervosismo sem tamanho. Me coloquei na frente dela, a fiz parar de pular e me olhar nos olhos.
- Amber, tá tudo bem? – ela negou. - Você se machucou? – ela negou. – Alguém te machucou? – ela negou de novo e, por um momento, pensei que ela poderia estar numa espécie de choque. – Me diz o que fazer.
- É caso de vida ou morte, Ruan – ela enxugou as lágrimas que caiam sem parar. – Eu preciso de você mais do que nunca na minha vida.
- Me conta o que tá acontecendo, por favor.
O elevador se abriu e tudo que ela disse foi: “vem comigo”. Me arrastou por uns quinze minutos até chegarmos em um parque. Logo em seguida ela parou em frente a um latão de lixo, que estava tampado com um papelão grande e uma pedra pesada em cima. Ouvi alguns poucos miados enquanto ela retirava a pedra, logo depois eu olhava pra dentro; quatro gatinhos muito pequenos e uma gata maior, com manchas vermelhas na cabeça e nas patas. O cheiro era horrível, parecia que a pobre gatinha já estava em decomposição, a única coisa que provava que não, era a respiração fraquinha enquanto os pequenos tentavam mamar.
- Por favor, Ruan, por favor, por tudo que é mais sagrado na tua vida – ela começou a soluçar. Nunca tinha visto ela daquela forma, nem quando os pais dela brigavam realmente feio. – Me ajuda, pede pros seus pais levarem ela num veterinário, eu não tenho dinheiro, se eu pedir lá em casa é capaz de eles virem aqui e acabarem de matar a pobrezinha e os filhotes e...
E eu senti um alivio imenso. Ela estava bem, ou tão bem quanto o nervosismo dela deixava ela ficar.
- Vamos levar eles pra o veterinário, eu dou um jeito.
Ela respirou fundo, ainda chorando, e pegou a gatinha no colo, com todo o cuidado possível. Levamos os gatos pra o veterinário mais próximo de casa. Pedimos ajuda e enquanto Amber explicava a situação, eu fui até em casa pegar o dinheiro da minha mesada, que, por sorte, estava guardando pra comprar o meu vídeo game no fim ano.
- Ruan, eles não querem atender, acham que a gente não vai ter como pagar.
Amber estava com os olhos vermelhos e inchados. Pedi que ela sentasse por ali e fui falar com a atendente.
- Olha só, se não fosse a gravidade da situação, eu iria pra outro veterinário, mas como eu não sei o estado da gata, tá aqui o dinheiro – coloquei as notas de cem, guardadas durante oito meses, em cima do balcão. – Faça o favor de salvar a gata, se não eu dou um jeito de levar vocês à falência.
A moça não falou mais nada, entrou no consultório e voltou pouco depois, dizendo que o veterinário já tinha começado os procedimentos. Me voltei pra Amber e sentei ao lado dela. Ela enterrou a cabeça em meu pescoço e começou a chorar.

Flashback


Era por esse motivo agora que eu tinha cinco gatos em casa.
- Eu vou repetir pra ver se vocês entendem: Ela jamais seria agressiva com eles – resmunguei quando acabei meu pão e fui sentar ao lado da minha mãe no sofá. – Ela passava a maior parte do tempo aqui em casa, até dormir ela estava dormindo aqui nos últimos meses.
Minha mãe pareceu chocada com a informação pela segunda vez no dia.
- Então vocês são namorados? Você sabe sobre o uso de substancias ilícitas? Foram encontradas garrafas e drogas no quarto da Amber.
- Puta que pariu, hein – falei mais alto assustando todos ao meu redor. – Essas coisas são dos pais dela. Olha a cara dessa mulher, acha mesmo que esses olhos vermelhos são de chorar pela Amber?
Ela me olhou com a maior cara de louca assassina, e eu estava sem entender porque ela estava tão preocupada com a Amber afinal de contas.

Flashback - 17 anos

- Seus pais te deram permissão pra vir nessa festa?
Sussurrei no ouvido de Amber fazendo ela se arrepiar um pouco, ao mesmo tempo em que rolava os olhos pro meu comentário.
- Sim Ruan, foram horas pra que eles me dessem permissão – ela tirou a garrafa de cerveja da minha mão e substituiu por uma latinha de refrigerante. – Aqui, se hidrata um pouco e vê se para de fazer pergunta estupidas sobre os meus pais.
Claro que eles nem faziam ideia de onde ela estava, nem ao menos se preocupavam com isso.
- Deixa de ser chata, Amber. Bebe aqui uma cervejinha – peguei a garrafa de volta e joguei o refrigerante dela fora. Ela fez um muxoxo chateado com a boca. – E depois a gente vai lá em cima e fuma um pouco do baseado que os caras trouxeram.
- Mas nem morta, querido – sorriu e deu alguns tapinhas no meu rosto. – Não tenho pretensão de ser como os meus pais, nem de longe vou experimentar esse tipo de coisa, aliás, nem você devia. E eu nem sei o que estou fazendo aqui – se levantou e desamassou a barra do vestido que usava. – Te vejo em casa, se der tempo, até te ajudo a curar a ressaca que você vai ter amanhã de manhã.
Ela virou as costas e foi embora. Passei alguns segundos olhando a porta por onde ela saiu e suspirei derrotado. O que me restou fazer foi seguir ela pra casa.

Flashback
- Rapaz, peço que você meça suas palavras – o policial falou puxando a mãe dele pra mais longe da porta de casa, parecia mesmo que ela ia voar no meu pescoço. – A conversa aqui é sobre a Amber, sobre onde ela poderia estar.
- Mas deveria ser sobre os maus tratos que ela recebia em casa, sobre como, só Deus sabe, aquela guria se virou a vida inteira.
- Vamos apurar isso também, não é primeiro vizinho que reclama disso – a mãe dela deu um soluço indignado, reclamando que era tudo mentira. O policial pediu que ela parasse. – Voc~e não sabe mesmo onde está, sabe?
Sob murmúrios da mãe dela de que eu sabia e que era tudo culpa minha, eu balancei negativamente a cabeça.
- Não, eu não sei.

Flashback – 18 anos

- Amanhã é meu aniversário...
Ela sussurrou baixinho perto do meu ouvido. Abracei ela mais apertado, sentindo que ela estava um pouco distante.
- O que você quer fazer?
Perguntei com calma, sentindo a respiração dela se acelerar um pouco.
- Eu já tenho tudo planejado, amanhã eu posso deixar os meus pais, já pensou nisso? – me virei de barriga pra cima na cama apertada do meu quarto. Pude perceber que ela sorria de canto. – Eu posso simplesmente ser livre, posso fazer o que eu quiser, Ruan. E ninguém vai poder fazer nada.
- A gente pode tomar um sorvete, comprar um bolo, quem sabe ir naquela churrascaria que você gosta.
Respirei fundo e segurei a mão dela. Eu sabia que não era daquilo que ela estava falando, eu sabia que tudo o que ela mais queria era sumir dali. Ela apertou os meus dedos mais forte e se virou pra mim, puxou o meu rosto e encostou os nossos narizes.
- Eu amo você, Ruan. E não pense por um segundo que eu vou te esquecer. Mas eu preciso ir – senti uma lágrima correr do meu rosto e ela limpou. – A gente vai se ver de novo e quando isso acontecer, eu não vou mais ser a garota da porta do lado que implora por atenção. Eu espero que você possa ficar feliz por mim...
E eu podia, mas não agora. Naquele momento eu só poderia ficar triste por perder a minha melhor amiga.

Flashback


Então eu sorri, sorri porque eu sabia que onde quer que ela estivesse, ela estava bem, fazendo o que gostava, sem ter de votar pra casa dos pais depois. Depois de me dar um olhar amedrontador e significativo, o policial agradeceu, se virou pra minha mãe e pediu que ela fosse com ele até o lado de fora. Adoraria saber do que mais tratariam, mas a vibração do meu celular me chamou mais atenção.
Ruaaaaaan, assim que possível, quero que você venha me visitar. O litoral é maravilhoso...
É, ela já não era mais a garota da porta ao lado...




Fim.



Nota da autora: Sem nota.





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