14. Long Live

Última atualização: 26/10/2010

Capítulo Único

I said remember this moment


Copenhagen, 1782

O sol nascia ao leste, pairando sob as ruas da capital no verão. A senhora que entregou o segundo neto para um casal em frente à sua casa, no vilarejo, estendia roupas no varal, em silêncio. Os vizinhos planejavam secretamente um apedrejamento, se não nela, em seu filho mais velho. Antes disso, Lilian já ignorava os comentários maldosos a seu respeito, trancando-se dentro de casa, para que as pragas batessem apenas na porta e retornassem de onde vieram.
- Precisamos de dinheiro, não de outra boca para alimentar - disse, vendo Amelia, a filha do meio, sentar-se exausta à ilha da cozinha.
Amelia já tinha vinte e dois anos, um marido e dois filhos, sendo que um deles havia sido doado naquela manhã.
- Paolo venderá o nosso cavalo.
- Já era hora de tomar alguma atitude inteligente - e de costas, concluiu: - Se bem que sempre foi burro.
- A senhora deveria lhe dar créditos pela ajuda. Meu marido é um homem honesto e trabalhador. Todos os dias acordar antes das galinhas para apanhar lenha e...
Com a expressão endurecida, Lilian retrucou:
- Todos dias eu acordo para por comida na mesa, lavar e estender roupas. Se tem alguém que merece gratidão, esse alguém sou eu. E seu pai, quando estava vivo.
- Quase nunca fala sobre ele.
- Já falei tudo o que precisava saber. Era um homem de poucas palavras, lábioso, corajoso e não deixava faltar nada para nós.
- Era bonito?
- Tanto quanto seu irmão caçula.

Havia uma espécie rústica e velha de ateliê onde , conhecido como nobre , trabalhava sozinho; um local pequeno no porão de seu padrinho. Suas pinturas, sonhava, um dia seriam reconhecidas por todo o vilarejo e, com um pouco de sorte, até o Palácio de Amelienborg.
- Sua mãe é uma feiticeira do Demônio! - Um sujeito gritou quando saia do estabelecimento, as mãos sendo limpadas atrás da calça.
Olhou em direção a voz, avistando um rapaz. Deveria ser mais um jovem manipulado pelos pais.
Como você e sua irmã, a voz da razão lembrava, mas não lhe dava ouvidos. Para nenhum dos dois.
- O melhor a se fazer é ignorá-los. Os boatos acabam perdendo força e desaparecendo. - Seu padrinho aconselhou, com a mão em seu ombro.
- Eu sei.
- Conheci Lilian há mais de trinta anos, quando seu pai veio até a minha oficina. Eu o ofereci emprego, mas ele achou que estava sendo muito fácil, então recusou. Para Frederick, nada vem embrulhado como presente. Tem que existir o esforço por detrás da conquista. A bondade era bem vista, desde que fosse para os outros.
- Até para conquistar a minha mãe.
- Sim - o senhor sorriu. - Quando vi Lilian pela primeira vez, pensei que talvez Frederick tivera que moldar o seu jeito. Para um homem que não gostava de fofocas, casar-se com Lilian seria complicado. - E consertou-se rapidamente: - Não que seja fofoqueira, mas as personalidades de ambos viveriam em pé de guerra. Algum deles teve que ceder.
- Acredito que tenha sido ela.
- Por quê?
- Tenho lembranças.

***


Lilian pôs a cesta com roupas recém lavadas em cima da mesa de madeira e tirou uma por uma, separando, para poder dobrar em seguida. Amelia havia voltado para o quarto, e seu neto estava enfim quieto.
- Olá. - Estevan falou, com um largo sorriso no rosto avermelhado. - Onde estão todos desta casa, mamãe?
- Fazendo algo como você.
Ele abriu o colarinho da camisa, sem se abater pelo comentário sarcástico.
Sua mãe era realmente adorável.
- Ótimo. Reúna a família.
- Com qual finalidade?
- Mudar as nossas vidas para sempre.

abriu a porta, meia hora depois, avistando vários pares de olhos encarando-o, os lábios curvados para cima.
- Ora, ora. Meu querido. - Lilian disse, levantando-se com um copo com água para ele. - Beba e sente-se. Temos muito que decidir.
- Agradeço ao céu pela sua existência, . - Estevan comentou.
Amelia segurava o filho no colo e permaneceu calada.
- O que estão escondendo?
- Não existem segredos entre nós. Sente-se. - Lilian tornou a pedir. - Por favor.
sentou-se ao lado da mãe, pondo o copo sob a mesa.
- Estávamos discutindo o tamanho do seu talento artístico e chegamos a conclusão que - Estevan pigarreou - não há como medi-lo. Você é um grande artista, meu irmão. Merece todo reconhecimento que a Dinamarca pode oferecer.
- Mas ele tem poucas obras. - Amelia salientou, recebendo um revirar de olhos de Estevan.
- Quem se importa com a quantidade se temos qualidade no produto?
- Estou certa de que a rainha de Amelienborg ficará encantada com seus quadros, querido. O que acha disso?
bebeu a água, pensativo. Depois, bebeu novamente até Lilian retirar o copo de sua mão.
- Não seria bom?
- Seria incrível ter a rainha como cliente, mas - olhou para o outro - como faríamos isso?
Estevan sorriu.
- Aprendemos com o nosso falecido pai que a bondade deve ser dada, mas nunca aceitada. Então, é necessário pagar um preço.
- Quanto?
- Não estou me referindo a dinheiro. Ainda não. A rainha de Amelienborg está com as portas abertas para pretendentes de sua herdeira. Eu iria me alistar, mas não podem ter acima de vinte e cinco anos. Segundo fontes, ela não quer um velho.
- Ela é velha, não é? - Amelia perguntou.
- Não sei. Ninguém ouvira falar nessa princesa Marie - deu de ombros. - Tudo o que soube a seu respeito é que chora feito um bebê, é magra como um palito e virgem. O seu trabalho é lhe dar um filho o mais rápido possível. Se ela for velha, é melhor que seja ligeiro. Você não é estéreo, é?
sacudiu a cabeça.
- Faça-a se apaixonar por você, assim aceitará ter um filho seu e as suas obras serão espalhadas pelo palácio, da cozinha ao quarto principal. Sem falar que a nossa família estará em boas mãos.
- Não.
- O que disse?
- Que não. - Levantou. - Não farei isto: enganar uma pobre moça.
- Ela é rica. A moça mais rica da Dinamarca. - Argumentou devagar. - Não estará enganando ninguém, pense bem. Estará fazendo-lhe um favor. E que favor.
- Case-se você com ela.
- Já falei que não há como. Se houvesse, não perderia tempo nesta discussão.
- Deixe-nos a sós. - Lilian mandou.
Os dois irmãos levantaram, relutantes, saindo da cozinha. Ela, então, caminhou até e colocou o braço ao redor do seu ombro.
- Não conseguirei.
- O que, querido?
- Um casamento como negócio. - Encarou-a. - O que a senhora faria?
- Em nossa situação, casaria sem hesitar - beijou-o na tempora. - Não temos muitas oportunidades. Você a fará feliz, não há duvidas. É o meu favorito. Sempre foi. Tão diferente do seu pai.
Estevan escutou, escondido, e cerrou o punho.

I said remember this feeling


Por volta das oito da manhã, e Estevan subiram em uma carroceria que iria para o lado do palácio onde a rainha Margarida II vivia com seu esposo e filhos. Acomodaram-se como podiam, lado a lado, e esperaram até o locador seguir a viagem. Atrás, em pé, próximo à porta da casa, Lilian e Amelia acenavam contentes.
suspirou diante disso e abaixou o chapéu.
- A rainha provavelmente irá querer saber dos seus dotes, sejam quais forem. - Estevan avisou, distante do vilarejo. - Diga que tem economias guardadas.
- Andou mexendo em meus...
- Não. - Ergueu as mãos, na defensiva. - É apenas uma garantia de que ela lembrará de você, já que não é um gigolô.
não questionou.
- Vai dar certo, tenho certeza. Você é novo, bonito, talentoso... A vida tem que ser justa pelo menos uma vez.

***


- Sentem-se, senhores. - O mordomo pediu, as mãos atrás das costas, no salão real. Caminhou até a primeira porta à esquerda, deixando-os com os empregados, em uma situação um tanto surreal.
Estevan analisava todo e qualquer detalhe de cristal, ouro e prata ao redor do cômodo, em êxtase. , no entanto, mantinha a cabeça baixa, brincando com a bainha do chapéu.
- Olhe tudo isso - sussurrou Estevan. - Nunca pensei que estaria vivo para entrar aqui.
- Por Deus, cale-se, ou acharão que somos dois ladrões.
- Ladrões, não. No mínimo, ambiciosos. - Sorriu.
O mordomo retornou, parando longe deles.
- A rainha quer vê-los agora. Mantenham as mãos atrás do corpo, os passos silenciosos e me acompanhem, por favor.
A rainha Margarida II era uma senhora com cabelo grisalho, a pele enrugada, o sorriso cordial e a presença serena. Usava um óculos de grau arredondado e pusera as mãos ao lado do trono, pacientemente.
O tapete vermelho se estendia da porta até o seu trono, e engoliu em seco. Estava na frente da rainha, mesmo que a metros de distância; isso era o mais perto que havia chegado algum dia.
- Vossa Alteza Rainha Margarida II. - O mordomo anunciou, com a postura ereta.
- Vossa Alteza. - Estevan curvou-se, esperando que seu irmão o imitasse de uma vez e tirasse a expressão de susto do rosto.
o fez, curvando-se em seguida.
- Senhores. - A rainha disse. - Quem são vocês? - Estevan e , filhos de Frederick e Lilian Baptista.
- Não conheço seus pais, mas têm nomes bonitos.
- Obrigado, Alteza.
- Soube que estão interessados em casar-se com a princesa Marie - levou a mão ao queixo. - Por quê?
- O meu irmão está. - Empurrou para frente. - Ele é mais novo que eu.
- E então?
não sabia o que responder sem que soasse como uma mentira feita de última hora. Não discutiram perguntas como essa. Merda, pensou. Se dissesse que foi por causa da beleza de Marie, seria mais do que uma resposta piegas, até porque ninguém, em todo o país, a vira alguma vez. Duvida que os próprios criados não tiveram permissão.
- Acredito que serei o melhor marido que a princesa Marie poderá ter. Alguém como ela, merece alguém como eu.
- Ela é uma lady. Não se compare à princesa Marie, se nem ao menos conhecemos a sua definição de melhor marido.
- Perdão, Alteza.
Estevan suspirou.
- Quantos anos têm?
- Vinte e três.
A rainha o analisava minuciosamente, o olhar estreito. Não eram os seus trajes que lhe roubavam a atenção, apesar de ter sido um dos primeiros detalhes vistos, mas o modo como se expressava, a agilidade para responder suas perguntas e a postura. Alguém como ele, aparentemente, seria bom para Marie.
Por enquanto.
- Diga-me quais são seus dotes.
- Sou um artista. Tenho algumas obras prontas e muitas outras estão em fase de criação. E, bem, rendem dinheiro.
- Está me dizendo que não precisa do dinheiro da princesa Marie?
- , sim.
Estevan arregalou os olhos.
- Dê um passo à frente.
Ele deu.
- Poderíamos trazê-lo para a família real, como marido de minha filha, mas sem que tocasse em uma moeda. Aceitaria essa condição?
- Sim, Alteza.
- Muito convincente, porém - chamou o mordomo - a decisão final será passada para o meu marido. Aguarde-o.
conseguiu acalmar a respiração assim que viu a rainha sair do salão. Seu irmão segurou-o pelo braço, sem entender absolutamente nada do que acontecera ali.
- No que diabo você concordou?
- É necessário conquistar a confiança da princesa Marie. - Soltou-se. - E, segundo o nosso pai, é necessário esforço.
- Dane-se o que ele disse. Dane-se! Ele está morto!
percebeu que os criados observavam a discussão, que estava prestes a virar braçal. Calado, virou-se em direção ao trono.
- Cale a maldita boca, ou irei embora.
O príncipe consorte, marido da rainha Margarida II, Henrique Maria João André de Laborde de Monpezat apareceu no salão, sentando-se do outro lado do trono. Roliço, mal conseguia disfarçar que estava comendo antes que o chamassem.
- Pois não?
- É ele. - A rainha falou.
- Você...
- . - Se apresentou.
- Quer a mão da minha filha em casamento e não quer dinheiro em troca disso?
- Com licença, Alteza, mas o meu irmão se enganou.
rapidamente assentiu para o príncipe consorte.
- Bom, Marie talvez goste de você.
- Eu gostei. - A rainha comentou e virou-se para seu marido, abaixando a voz: - O que realmente acha dele? E da ideia de casar Marie com ele?
- Ela não se opôs. E já está na hora, não acha? É a terceira na linha de sucessão. Ao menos, temos a chance de encontrar um rapaz digno de respeitá-la e, quem sabe um dia, amá-la.
- Sendo assim, senhor , bem-vindo à família real.

***


Estevan tirou o chapéu, pondo no cabideiro. Depois, o paletó e, em seguida, abriu uma brecha da cortina, avistando sua mãe trazer uma cesta de roupas.
- E aí? - Amelia perguntou, curiosa, com o filho nos braços.
- Oh, chegaram. Como foi lá? - Lilian questionou, os lábios curvando-se.
- O filho pródigo parece ter mel nas calças porque ele conseguiu. Nós conseguimos. - Sorriu. - Senhor , bem-vindo à família real foram as palavras da rainha.
- Ai, meu Deus. - Amelia espantou-se.
Lilian se permitiu rir, como não fazia há algum tempo. Largou a cesta e correu para o quarto de .
Estevan a viu ir.
- Não se importe com isso, você sabe que mamãe ama todos nós.
- Duvido. - Tirou um maço de cigarro do bolso. - Ela ama apenas o seu garotinho. Não é à toa que foi manipulado a vida inteira.
- Não fume perto do meu filho. - Amelia reclamou. - Vá para fora, Estevan.
O irmão acendeu e, com uma carranca, abriu a porta e saiu.

O jantar foi farto naquela noite; frango assado; batata; queijo e pão à vontade foram servidos à mesa. Enquanto todos comiam e conversavam amenidades, permaneceu quieto.
- Está sem fome? - Lilian perguntou. - É para você este banquete. Coma tudo. Mulheres não gostam de homens tão magros.
- Obrigado.
- Preciso tirar algumas horas de sono, se não, não estarei de pé tão cedo. - Estevan disse, levantando-se com um pão em mãos. - Boa noite.
- Noite.
- Vou também. - avisou. - Tenho que fechar algumas caixas e digerir todo o plano.
- Há um?
- Não, mas tenho que bolar.

Promise me this: that you’ll stand by me forever


- A princesa Marie está chegando à tarde de uma conferência na Suíça. Ela é muito ocupada, mais que os irmãos.
assentiu, esperando novas instrunções do mordomo.
- Foi avisada sobre o casamento pela manhã.
- E o que achou disso?
- Não tenho permissão para contar alguns segredos da realeza, mas nem tudo são flores - comentou em voz baixa. - A princesa alega que, enquanto o senhor não for velho, está de acordo. Vai ter prova de vestidos assim que chegar, e o senhor, por favor, não me apareça com esses trajes ultrapassados.
averiguou a roupa e não encontrou um defeito; eram as peças mais novas do armário.
- Acompanhe-me, por favor. O palácio é grande demais para uma só manhã de visita. Terá muito tempo para conhecer tudo após o casamento.

Durante a manhã, conheceu a maioria dos criados, jardineiros e o chefe do gabinete real. Soube que a princesa Marie tinha dois irmãos, Frederico e Joaquim, ambos mais velhos. Havia uma felina perambulando pelos corredores do palácio, e a pegou uma vez, sendo duramente repreendido com o olhar por uma criada.
- A princesa Marie não gosta que mexam em Sagwa.
Conheceu o seu avô materno, David, e tomou café, ao invés de chá, com seu futuro sogro.
- Tenho novidades sobre o casamento, rapaz. - Henrique disse, virando a xícara entre os lábios.
- Sim?
- Primeiro, minha filha decidiu casar-se com você sem ao menos conhecê-lo por motivos que não sabemos. Mas, ao contrário do que imaginávamos, recusou uma festa no palácio.
- Que ótimo. - sentiu-se inundado de alívio. - É muita formalidade.
- Ela está quebrando nossa tradição.
- Que pena - consertou-se.
- E é. Uma festa de casamento é uma celebração. Levamos isso a sério.
- A festa ou o casamento?
- Mais o casamento em si.
bebericou o café, pensativo.
- Tem certeza que ainda quer se casar com ela? - Curvou o corpo, a barriga impedindo-o de aproximar-se mais.
- Por que eu não iria querer? Dizem que as suas melhores qualidades estão refletidas para com seu povo. A voz do povo é a voz de Deus. Tenho certeza que eles não metem.
- Sendo assim, cuide dela como uma rosa. Rosas murcham e morrem. Não a deixe murchar. Ela nunca mais será a mesma.

***


A princesa Marie virou uma, duas, três vezes para a troca de vestido, acabando, se não tonta, enlouquecida. Tirou e pôs sapatos, chapéus, luvas e todos os acessórios dos closets, além de peças feitas sob medida por um importante alfaiate dinamarquês. A porta do quarto foi trancada desde o minuto em que entrou, e somente a rainha, uma dama de companhia e o alfaiate estavam lá dentro.
- Vai ter que tirar o véu, meu bem. - A rainha Margarida II disse docemente.
- Agora não, mamãe.
- Como foram os tratamentos?
- Não vi muitos efeitos. A Suíça tem uma inovação no mercado estético. É uma cirurgia plástica. Corrige até danos aparentemente irreversíveis.
Ela deu um meio sorriso.
- Fico feliz em ouvir isso. Marcou a sua?
- Sim, retornarei em Dezembro.
Horas depois, bateram na porta do quarto, e a dama de companhia correu para atender quem quer fosse.
- O senhor aguarda a princesa Marie no salão principal.
- Obrigada.
Marie tirou os saltos.
- Como ele é?
A rainha tocou sua mão.
- Jovem, sábio, talentoso... Pinta quadros...
- Como é fisicamente? - Respirou devagar.
- É um homem bonito. O seu pai não concorda porque, para ele, não existe homens bonitos além de seus irmãos. - Sorriu.
- Bom, e se...
- Nada de se. Isso só serve para nos fazer desistir.
- Quanto ele ganhará com esse casamento?
- Ele aceitou casar-se sem retorno financeiro, mas terá direito a algum cargo.
- Deseje-me sorte.
- Sorte, meu bem.

estava suando frio, ansioso, nervoso e trêmulo enquanto esperava enfim a princesa Marie aparecer. Digamos que pela primeira vez. Mas assustou-se ao ver apenas o seu vestido bordado, joias e um rosto coberto por um véu. E não era um véu comum, de casamento. Era como uma mascara repleta de camadas. Não fizera comentários durante a pequena cerimônia e nem quando dançaram, meio cambaleantes, a valsa. Muito menos quando ficaram sozinhos no quarto, tarde daquela noite. Deitaria com uma mulher que nem ao menos sabia como era. E se ela não tirar o véu?, pensou. Como diabo poderei beijá-la?, talvez não houvesse beijos. Era um casamento de conveniência, afinal de contas. A princesa Marie não falou muito, mas seu toque era macio. Não quente ou fervente, só macio. Tinha mãos macias e corpo esguio, pelo que pôde perceber.
A princesa voltou ao quarto, vestindo uma camisola, descalça e com o véu.
- Espero que não se importe com ele - disse, a voz baixa, e teve que se esforçar para escutá-la.
Ele não poderia alegar que não era nem um pouco confortável dividir uma cama e lençóis com alguém que não sabia de quem se tratava de fato.
- Seu nome é Marie .
- Só meus pais e irmãos me chamam pelo segundo nome.
- Posso chamá-la também?
Ela deu de ombros, penteando o cabelo.
- Como quiser.
- Será que, em algum momento, poderei ver seu rosto?
Os olhos dela, por detrás do véu, o analisaram atentamente.
- Tudo o que sei sobre a noite de núpcias não é grande coisa. - Mudou o assunto rapidamente.
- Será um prazer ensiná-la, princesa.

***


Mas não foi. Não como imaginava que seria. Não daria certo iniciar atividades sexuais com uma virgem, sem ao menos saber se ela sentia prazer ou dor. A noite anterior, na melhor das hipóteses, fora constrangedora e fria.
- O véu era um de seus segredos reais? - Perguntou ao mordomo, vendo-o balançar a cabeça.
- Não, isso faz parte dos segredos da princesa.
- O que aconteceu com ela?
- Não sei - e olhou ao redor antes de completar: -, apesar da minha curiosidade ser do tamanho desta sala.
- E os boatos?
- Não existem. Eles acabam perdendo força com o passar do tempo se não houver provas concretas.
O barulho de um sino lhes chamaram atenção.
- É para você. - O mordomo conferiu. - A princesa o quer em seu aposento.

- Um passeio pelo jardim do palácio?
- Não é uma boa ideia? - perguntou, confusa.
A rainha sorriu.
- Claro que é. Mas chamar o seu marido com um toque de sino, meu bem, não é agradável. O que as pessoas pensarão?
Ela ficou pensativa.
- Ele é muito bonito - jogou-se na cama - e cuidadoso.
- Acredito que venha um mas aí.
- Ele quer me ver.
- É o que toda a Dinamarca quer.
- Mamãe, a senhora sabe a confusão que foi quando alguém alegou ter fotos minhas.
- Lembro-me disso, só que agora é seu marido.
- Se nem o meu povo me vê, por que um homem que nem ao menos amo mereceria?
A porta do quarto foi aberta no momento em que concluía a frase. Se escutara, não demonstrou.
- Chamou, Alteza?
- Vou deixá-los sozinhos. - A rainha saiu, e o quarto ficou silencioso.
- Desculpe. - pediu.
não respondeu, parado.
- Desculpe - a princesa falou mais alto.
- Não consigo escutá-la. - Aproximou-se, cauteloso, dela na cama.
A princípio, permaneceu na mesma posição, o peso do tronco apoiado nos braços, o corpo estendido na beirada da cama. ajoelhou-se aos seus pés e levantou a mão no intuito de erguer o véu.
- Não faça isso - os olhos encheram d’água -, por favor.
Ele deteve os dedos, tocando uma mexa do seu cabelo, que caia no ombro.
- Não vou fazer. - E beijou sua cabeça antes de afastar-se. - O que deseja?
levantou.
- Quero que me acompanhe em um passeio. Precisamos demonstrar sintonia.
- Tudo bem. Vamos? - Estendeu o braço, e ela o segurou.
- Vamos.

***


Estevan entrou em casa com uma garrafa de conhaque em mãos, os passos vagos, a mente, deturpada. Falava palavras desconexas e fedia a álcool e cigarro; uma mistura que Lilian detestava. Caminhou aos tropeços para o quarto dela, que dormia. Esmurrou a porta, sendo atendido com um susto.
- O que você está fazendo, infeliz?
- Mamãe... - As palavras saíam embaralhadas. - Eu amo você.
- Vá dormir - tentou fechar a porta, sendo impedida pelo pé dele.
- Eu amo você. Nunca se esqueça disso.

- Seu nome de batismo é Marie Henrique de Laborde de Monpezat? - perguntou.
- Sim.
- Daria para nomear vários criados do palácio com tantos sobrenomes, por Deus.
sorriu.
- Soube que viaja muito e está sempre envolvida em projetos e causas sociais, mais até que seus irmãos.
- É verdade. Tomei gosto pela luta de direitos igualitários e projetos sociais. Meus irmãos têm famílias e outros problemas para lidar. Estou longe de subir ao trono, então não me preocupo tanto.
- Você nasceu em berço de ouro. Nunca pensou em como seria ser uma adulta sem tantas responsabilidades e riqueza?
- Não.
- Gostaria de saber?
- Como?
- Alguns dias no vilarejo será o suficiente.

***


Estevan sentou-se à mesa, quieto demais, e mastigou o pão duro, que sobrara da refeição da manhã. Amelia aninhava o filho, e Lilian estava lá fora.
- Está sabendo da noticia? - Amelia perguntou.
- Acabei de acordar. Se for alguma bomba, deixei-a explodir bem longe dos meus ouvidos. Minha cabeça já está doendo.
- virá morar aqui, por sete dias, com a princesa Marie.
- Quem te contou?
- Mamãe. Ele enviou um bilhete. Ao que parece, é preciso abastecer a dispensa.
- A pessoa nasce uma única vez e nasce tão estúpida. - Levantou, saindo da cozinha. Encontrou Lilian atarefada. - Lhe dei a chance de mudar de vida, mas parece que o complexo de vira-lata está no sangue.
Lilian o ignorou.
- Não vai defendê-lo?
- Ele está casado com a princesa e terá um cargo real. As suas ofensas não o ofendem.
- Não cederei o meu quarto plebeu para ninguém!

sorria enquanto a carruagem balançava de um lado para o outro, sacudindo as bagagens e o seu corpo. , sem notar, segurou a sua mão, ainda no início do trajeto, para que não ficasse com medo de possíveis acidentes. Respire, , pedira, tentando tranquilizá-la.
- Estamos chegando?
- Mais umas poucas milhas. Abra os olhos.
Ela abriu um olho, vendo o verde das árvores e do campo.
- Meu cérebro foi minado. Não consigo raciocinar, então não faça perguntas difíceis.
- Há quanto tempo usa o véu?
Ela quase caia se não fosse pelo puxão de , que riu.
- Duas décadas.
- Por que o uso dele?
- Um acidente.
- Onde ocorreu?
- É uma pergunta difícil, precisaria pensar na resposta.
Ele assentiu, compreensivo, e ofereceu silenciosamente o ombro para que a princesa deitasse a cabeça.

Lilian trocou seu vestido por um mais novo, arrumou a cozinha e o quarto de . Amelia e Estevan se encarregaram de outros afazeres, e Paolo voltou mais cedo para casa, somente por causa da vinda da princesa de Amelienborg. Sentia-se orgulhosa do seu filho, muito orgulhosa. Além de ter casado-se com a herdeira do reino dinamarquês, lembrava da família.
Ao escutaram o relincho dos cavalos, saíram Amelia e Lilian para fora, casualmente.
A carruagem estava parada, o locador retirava as bagagens, e ajudava a princesa Marie descer.
O véu, no entanto, era um item estranho.
- Apostava que as princesas tinham noção de moda. - Amelia comentou, e Lilian concordou.
- Oh, querido. - Lilian sorriu para o filho, abraçando-o. Em seguida, virou-se para . - Vossa Alteza. - Curvou-se.
- Não se curve. A senhora é mãe de ?
- Sou.
- Me chamo . Apenas . Nada de alteza, princesa e realeza.
- Está bem. Esta é minha filha, Amelia.
guiou, depois da conversa rápida entre elas, para a casa, mostrando-lhe os cômodos.
Entraram em seu quarto e fecharam a porta.
- Aquele homem, Estevan, acho que é esse o nome, pareceu não gostar de nos ter aqui. - falou, sentando-se na cama. - É dura.
sorriu.
- É a minha cama, tinha que ser. Vai aprender a dormir aí depois de uma ou duas noites com dores nas costas. Porém, na terceira noite acordará revigorada.
Ela fez uma careta.
- O que tenho para conhecer?
- O centro comercial. Vou mostrá-la o meu ateliê.

***


- É aqui?
- É. - tirou as mãos de seus olhos, por cima do véu, ao entrar no ateliê.
A visão dela foi para vários quadros, a maioria com pintura colorida, desenhos de formas variadas, e postos um atrás do outro. Havia até... Caricatura.
- Você desenha rostos?
- Sim, e estou me aperfeiçoando.
- De quem é este daqui? - Tocou o quadro rabiscado à lápis.
- É a imagem que me lembro do meu pai. Tenho uma fotografia, mas toda vez que a vejo, é como se eu lembrasse mais algum detalhe.
- Você o conheceu?
- Eu tinha três anos.
- Sinto muito. - umedeceu o lábio.
- Gostaria de poder desenhar o seu rosto algum dia.
- Oh, não. Não conseguiria que notasse as minhas rugas, falhas e...
segurou seus ombros.
- Todos nós temos imperfeições, mas somos perfeitos para alguém - e afastou-se. - Sente-se no divã.
Ela sentou.
- Deite e relaxe.
- Não consigo relaxar com um espartilho me apertando.
- Tire.
suspirou diante do pedido, pensando em como todas as palavras poderiam ter sentidos diferentes depois que você dorme com um homem.
- Não acho que seja sensato.
- É o meu ateliê. Ninguém mais entrará aqui. Trabalho sozinho. E somos casados, que mal há nisso? Tire tudo, se quiser. Nua ou vestida, quero que esteja confortável.
Com uma respiração profunda, levantou, desamarrando o vestido e o espartilho. Sem conseguir, pediu sua ajuda, e ele atendeu prontamente, deslizando os dedos em suas costas. Rapidamente foi jogado no chão e, em seguida, os seios ficaram à mostra.
- Deite. - Enestou pediu baixinho contra sua orelha, fazendo-a arrepiar. Sorrindo, afastou-se.
- O que vai fazer?
- Paciência, princesa. Você verá.

- Um véu. - Estevan riu, balançando a cabeça. - Aposto todas as moedas de que ela é horrível. Deve ser o diabo vestido de mulher.
- Segundo a Igreja, o Diabo era o anjo mais bonito do Paraíso. - Amelia retrucou. - Talvez ela seja bela, mas não queira mostrar-se para . Não antes de saber se o amará.
- Esqueça o sentimento piegas e foque nos interesses.
Amelia revirou os olhos.
- É por isso que nunca casou-se com uma das moças do vilarejo?
Ele tirou o cigarro dos lábios.
- São pobres, não servem para muito, desde que mamãe lava minhas roupas e prepara meu café. Mas tive o prazer de conhecê-las - a fumaça foi expurgada. - Oh, sim.

- Pare, ! Pare! - ria ao correr para a casa dele.
O homem a abraçou por trás, erguendo seu corpo. Sem se importar, levou as mãos para os braços dele, que estavam ao redor de sua barriga.
- Quer ter filhos?
- Com você, sim.
Ela sorriu.
- Solte-me agora.
- Só se a princesa beijar-me depois.
- Como você é insistente.
- É o que dizem.
se debateu, e ele tentou contê-la, acabando por soltá-la com um gemido.
Havia acertado o cotovelo em sua costela.
- Desculpe - analisando seu rosto, aproximou-se cautelosa. - Querido, desculpe. - E segurou-o, beijando-o com o véu entre seus lábios.
- Acho que estou anestesiado.

Durante o jantar, Estevan observava a alegria do casal real e o entusiasmo de Lilian. Pôde escutar o silêncio que pairou sob a cozinha quando disse que preferia esperar para ter um herdeiro. E concordou. Estevan pediu licença e foi para o quarto, derrubando o retrato de Frederick .

Copenhagen, 1783

- Cirrose? - Amelia perguntou, assustada.
Lilian lhe deu o neto e virou-se para a pia, apoiando as mãos. Com um suspiro, afirmou:
- Estevan está doente.
- Mas, mamãe, ele é saudável.
- A bebida é um veneno. Vicia e destrói. Estevan está destruído.
Ela fechou os olhos.

Há cerca de três meses, a princesa Marie e o seu marido, , vinham tentando ter um bebê. Depois de aproveitarem o resto do verão, o início do outono, era a hora de formarem uma família. Em Dezembro, viajou sozinha para a Suíça e iniciou mais um tratamento estético. Os resultados eram pequenos, mas significativos. recebia a cada trimestre, Estevan no palácio e enviava envelopes por um locador, para que chegasse à sua família; era dinheiro, muito dinheiro. Uma parte do seu título como duque. Em meados de setembro, Estevan parou de ir.
- Você acabará cansando de mim. - disse, sentada à penteadeira.
negou.
- Por que casou-se comigo?
- Francamente, princesa, essa não é uma pergunta que se faça para o seu marido.
Ela pensou por um instante.
- Mamãe disse que você não quis o dinheiro. Mas aceitou o título de duque.
- Não foi exatamente assim. Casei-me e não tive acesso às contas reais. Porém, após um ano, é natural que eu venha ter direito. Não assinei nenhum contrato.
olhou para ele.
- Você é como os outros.
- Houveram outros? - Perguntou, disfarçando a onda de ciúmes. A primeira apareceu pela primeira vez há seis meses, logo quando um primo distante da princesa veio ao palácio e a tirou para uma dança.
- Todos interessados no dinheiro, não em mim.
- Estive interessado em você. Sem você, não haveria dinheiro. - Sorriu devagar. - Estou tentando tirá-la do sério, faz parte do humor peculiar da minha família.
pôs o pente de lado e levantou.
- Não gosto dele. É como se eu tivesse pisando em ovos. Nunca sei quando está sendo honesto.
suspirou.
- Não sei um monte de coisas. Por exemplo, como é a textura dos seus lábios. O tom de castanho dos seus olhos e se são tão bonitos como acho que são. E o seu rosto, por Deus, como seria tocá-lo sem um véu para atrapalhar? - Colocou a mão no bolso. - Nunca saberei, não é?
- A cirurgia não surtiu o efeito desejado. Ainda estou... - A voz embargou. - Cheia de cicatrizes.
Ele se aproximou com um passo.
- Deixe-me tocar, ver, sentir. Deixe, .
- Você não gostará do que tem aqui. Se ao menos esperar alguns meses...
- Mais do que estou esperando desde o dia da nossa valsa? Eu deveria ter arrancado e visto de uma vez. Ela levou as mãos à boca.
- Desculpe. Não quis ser rude. Esperarei o tempo que for necessário. E serei franco, princesa: aprendi a gostar de você antes de conhecê-la, quando os criados diziam o quão solícita era. Aprendi a adorá-la com o véu, ou me acostumei com ele, é uma possibilidade - deu um meio sorriso. - Mas tenho certeza que a amarei sem ele.
o viu sair do quarto.

***


- Aquele desgraçado... - Estevan falava embaralhado, o odor de bebida espalhando-se com o vento. - Casou-se com a mulher que era para eu ter casado.
Lilian despejou o balde de água fria em seu rosto.
- Cale-se.
- Era para eu ter casado - rodeou o braço na cintura de Lilian.
- Não fale assim do meu irmão. - Amelia o repreendeu, aparecendo na frente da casa, onde o mais velho estava sentado em um banco, e Lilian molhava sua cabeça.
- Não é dele que estou falando... - Fechou os olhos. - É de Frederick. Frederick .
Lilian pestanejou, despejando mais água nele.
- O que tem o nosso pai?
- Nada, Amelia. Entre com o seu filho. Eu cuido do meu.
Estevan riu, amargurado.
- Do que ele está rindo, mamãe?
- Ele está bêbado. Não lhe dê ouvidos. Entre, ande. Volte a dormir, se quiser. É sábado.
Amelia recuou, mas parou subitamente, assimilando todas as palavras arrastadas do irmão. Seu pai estava morto, não poderia ser culpado por nada. Nem por tê-lo impedido de se casar, a não ser que o proibiu quando era mais novo.
- Qual é o nome dela?
Estevan a olhou, sem entender.
- O nome da mulher que fez isso com você.
- Culpe Frederick por isso. - A voz se alterou, ríspida. - O culparei até encontrá-lo no Inferno.
- Como se atreve a insultar a memória do nosso pai?
- Amelia: nome de idiotas manipuladas pelas mães. - Cuspiu.
Lilian espraguejou.
- Já chega, Estevan! Cale-se imediatamente!
- Não. - Amelia balançou a cabeça, os fatos se esclarecendo. - Continue. Quer dizer algo a mais, não é? Diga. Irei escutá-lo. Prometo não interromper sua história.
- Amelia, entre agora! - Lilian gritou repentinamente. - Por Deus, me obedeça, garota!
- Por que Frederick é culpado pela sua infelicidade?
- Porque ele casou-se com a mulher que eu amo.
Ela tropeçou para trás.

Amelia acordou em sua cama, tentou abrir a porta do quarto, mas estava trancada. Fugiu pela janela, porém, Paolo a impediu de ir atrás de . Finja que não ouviu nada, meu amor, lhe dissera com medo.
Estevan e Lilian eram amantes.
Estevan e Lilian a enganaram a vida inteira.
Estevan e Lilian.
Sua mãe e seu falso irmão.
Desmaiou nos braços do marido, sendo colocada de volta na cama. Ao acordar, escreveu às pressas um bilhete para que fosse entregue com urgência ao irmão. Pediu para Paolo levar, em nome do casamento deles. Com um pedido daqueles, ele teve que ceder.

Naquela tarde, não esperava nada de importante, pois resolvera suas obrigações pela manhã. Estava sentado à mesa com , bebericando chá. E ele detestava chá.
- O que eu não faço por você?
- Disseram que os homens que bebem chá com suas esposas, aumenta em mais um ano a duração do casamento deles - sugou o canudo.
Ele não pôde deixar de sorrir.
- Então, princesa, tomaremos chá todos os dias durante todos os anos.
Antes que comentasse, o mordomo interrompeu a conversa, aparecendo no jardim, com um papel em mãos.
- Com licença, Alteza. É para o senhor, senhor . - Entregou e saiu.
- O que tem aí?
- Bom, veremos - desdobrou o bilhete e, na medida em que lia, seus olhos não acreditaram. - Céus.
- Dê-me. - Pegou de sua mão, lendo rapidamente. Voltou o olhar para o marido, com pena. - A causa da morte de seu pai nunca foi descoberta?
- Segundo minha mãe, ele morreu de causas naturais.
- Quantos anos tinha?
- Menos de cinquenta.
- Você acreditou nisso? Seu pai era jovem demais para morrer de causas naturais, .
- Por que ela mentiria para mim?
- Não sei, querido. Você terá que ir e descobrir.

But if God forbid fate should step in
And force us into a goodbye
If you have children someday
When they point to the pictures
Please tell them my name


Amelia girava o anel de casamento em seu dedo, indo de um lado ao outro no quarto, com Paolo acompanhando-a pelo olhar. O filho deles dormia na cama. A casa estava silenciosa, como tantas outras vezes, mas, ao contrário do que imaginavam, Lilian agiu como se nada tivesse acontecido. Como se fosse apenas uma alucinação de uma mente bêbada. Poderia ser, Amelia sabia, mas quando a bebida entra, a verdade sai. Estevan não inventaria tudo aquilo se estivesse fora de si. Torcia para que tivesse lido o bilhete e pego a estrada para o vilarejo.
- Meu pai, eu e fomos enganados durante todos esses anos.
Paolo levantou e a abraçou.

O peito de estava esmagado com tanta dor. Lembrar de seu pai lhe trazia velhas magoas; revivia as imagens dele batendo em sua mãe, os insultos e crueldade. Lilian insistia em dizer que Frederick, apesar de ter sido um homem de poucas palavras, não deixou faltar nada dentro de casa. Mas nada não se resume em comida. Faltou amor, refletia calado, enquanto ela explicava como ele era corajoso e bonito.
Respirou fundo várias vezes, segurando o choro.
Ao chegar na casa que passou a qual passou infância, caminhou devagar até a porta e bateu. Demorou um pouco para que alguém finalmente abrisse.
Era Paolo.
- Entre, . Amelia está esperando-o. - Abaixou a voz: - Só não conte nada a ninguém, em nome da vida de meu filho e da minha esposa.
estranhou, mas nada disse. Entrou, fechando a porta atrás de si. Escutou pratos caindo no chão e Lilian apareceu, surpresa, as mãos sendo enxugadas no pano.
- Meu filho. Saudades da minha comida? - Sorriu forçadamente.
- Na verdade, eu - trocou olhares com o cunhado - estava sentindo falta do meu antigo quarto. Ele continua intacto?
- Claro. - O abraçou mais forte que o esperado por . - Eu sempre amei você, lembre-se disso.
- . - Amelia chamou, os olhos avermelhados. - Precisamos ter uma conversa.
- Quem mandou você sair do quarto? Droga, sabia que não deveria ter lhe dado a chave, Paolo.
- Senhora, ela é a minha esposa e é adulta. Não deixarei que fique trancada.
não entendia nada, apesar de sentir que havia algo muito errado. Primeiro, Paolo nunca retrucava ou contrariava sua mãe, a última palavra era dela. Segundo, Amelia não costumava chorar e nem ser trancada como uma criança teimosa.
- O que está acontecendo aqui? Acabei de chegar e sinto que este ano longe parece mais uma década distante. Amelia, vamos conversar - frisou a última parte: - agora.
- Espere, querido. Deve estar faminto.
- Não, não estou. Vamos, Amelia.
Lilian observou-os ir e olhou para Paolo.
- Imprestável, chame Estevan agora.

Amelia abraçou o irmão; segurou-o por alguns minutos que mais pareceram horas. Escutou-o soluçar, rir de amargura, fungar e sentiu as lágrimas no colo. Duvidava que um dia ele acreditaria realmente que Lilian, sua doce mãe, traíra seu pai.
- Está me dizendo que ela é uma cretina?
- Estou, - acariciou seu cabelo despenteado. - Como gostaria que não fosse. Por Deus, como gostaria.
Ele suspirou depois de um momento em silêncio e ergueu a cabeça.
Seus olhos estavam assustadores.
- Papai era um bom homem. - Amelia comentou.
- O erro dela não elimina os dele e nem os diminuem.
- O que pretende fazer agora?
- Matar Estevan.

Quando retornou para dentro de casa, Estevan já estava lá, aparentemente aguardando-o para uma luta ou acerto de contas. Sabia que seria braçal, tinha que ser. Aguentou aquele moleque por tanto tempo, engolindo sapos de Lilian e demonstração de afeto em público. O filho de Frederick não merecia nada daquilo, apenas por ser seu filho.
- É verdade, não é? - exasperou, os punhos cerrados.
- Que sua mãe me amava mais do que amou seu pai durante anos de casados? Que só não o deixou por que era medrosa o suficiente? Sim, é. Aceite que seu pai era um merda, . Frederick era um merda. E eu mijo em sua sepultura para manchar toda a memória dele.
- Filho de uma puta! - Foi para cima de Estevan, o punho erguido em direção ao seu rosto. Com um soco, ele cambaleou para trás.
- É só o que consegue fazer? Igual ao pai.
- Cale a boca, desgraçado! Cale! - Esmurrou-o uma, duas, várias vezes, acertando seu supercílio, nariz, boca, sem ter tempo para pensar. O remorso o consumia por completo. Depois de um chute, Estevan o segurou, derrubando-o no chão.
Trocaram socos e pontapés até que o braço do mais velho cercou seu pescoço, com firmeza.
- A única coisa que o seu pai mereceu, ele ganhou. Eu fui muito generoso. Não o deixei sofrer. Foi rápido e indolor. E a única que coisa que você merece, como ele, é a morte. Encontre-o no Inferno e avise que ainda temos muito o que tratar. Me disseram - apertou o braço, ofegante. - que a matéria se recompõe por lá, então poderei matá-lo milhares de vezes.
perdia o sentido, escutando Amelia gritar e Paolo tentar afastá-los.
- Largue o meu filho. - A voz temerosa de Lilian falou calmamente.
Estevan olhou para ela, que segurava um revólver. Parecia serena e concentrada demais para conseguir errar a bala.
- Largue o meu filho. - Repetiu.
- Você não seria capaz de me matar.
- Eu matei ele, não matei? - A mão tremeu. - Sou capaz de matá-lo também. Você não vai arrancar o que tenho de mais precioso em minha vida. Largue-o agora.
Estevan soltou , que tossiu, tentando se recompor com a ajuda de Amelia.
- Querido, você está bem?
encarou a mãe, o olhar perdido e triste.
- Vocês dois mataram o meu pai. Ele cometeu o ato, e você - gritou - matou a memória boa que eu tinha dele! Todos os momentos, tudo, exatamente tudo foi deturpado! E eu só consigo imaginá-lo machucando você. Agressões que não aconteceram, não é? Sou igual ao meu pai, sim. - Sorriu, perdido, a lágrima escorrendo. - Que orgulho ser igual a ele, tão diferente de você.
Lilian derrubou o revólver e correu para perto do filho, abraçando-o por trás. Murmurava pedidos de desculpas, declarava seu amor e como Frederick era bom demais para alguém como ela.
aproveitou a vulnerabilidade da família para pegar o revólver e apontá-lo em direção a Lilian. Só que seu alvo estava na frente dela.
- Afasta-se, Lilian - pediu. - Afaste-se, meu amor.
Lilian gritou ao vê-lo segurá-la, arrastando-a para longe de , e puxar o gatilho.

***


derrubou a xícara de chá ao escutar o que o mordomo dizia. Sua felicidade foi reduzida ao pó quando a noticia sobre o ferimento de chegou ao palácio.
- Mamãe, meu marido - falou com aflição, e a rainha tentou acalmá-la.
- é forte, ficará bem. Estão cuidando dele.

- Há muitas pessoas do lado de fora, esperando noticias. - Lilian avisou, taciturna.
Amelia a ignorou, rezando para que o doutor do vilarejo soubesse o que estava fazendo.
Mais cedo, Estevan morreu depois que Paolo o derrubou e Lilian o apunhalou pelas costas. Só não tirou a própria vida em seguida por causa de , seu único menino. Precisava saber como ele estava, assim como precisava de ar para respirar.
O doutor saiu minutos depois, a aparência cansada.
- Ele está em observação, mas bem.
Lilian derramou uma lágrima contida.

ficou hospedado na casa de seu padrinho, recebendo constantes visitas do cunhado, da irmã e de seu sobrinho.
Deitado na cama, segurou a mão de Amelia.
- Onde ela está?
- Ela se suicidou - respondeu em voz baixa - logo depois que soubemos que você estava salvo. Tentei impedi-la, mas não quis me ouvir. Disse para que eu cuidasse da nossa família e que você teria três filhos.
- Lilian era feiticeira? - Estreitou os olhos. - Pensei que fossem apenas boatos.
Amelia deu um pequeno sorriso.
- Não sei. O que sei é que você terá três filhos. Prepara-se, papai.
- Por Deus, a princesa Marie ainda está tentando o primeiro. Vamos com calma, minha irmã.
- Falando nela... - Olhou para a porta, e estava ali, possivelmente sorrindo de alivio e chorando de felicidade. - Vou deixá-los sozinhos. Mais tarde venho te ver.
olhava para a princesa, tentando decifrar como ela estaria agora. Com raiva, medo, feliz?, pensou e sorriu. De qualquer forma, estava aliviado por ter sobrevivido para vê-la outra vez. Ver o véu, quero dizer.
- Estou com vontade de te matar.
- Já passei pela morte hoje e não foi uma experiência agradável. Dela, só quero distância.
- Estou com vontade de te matar com meus beijos - explicou. - Sinto-me aliviada por não ser viúva tão cedo e mãe solteira.
- Seus beijos só poderiam me salvar. Eles são como anestesia para a dor, princesa. - Tentou, pesaroso, levantar da cama, sendo ajudado por ela. - Espere um minuto.
Ela beijou seu rosto, de um lado e do outro.
- Espere, princesa.
- O que é?
- Está aliviada por não ser mãe solteira, mas nós não estamos esperando um filho ainda. Isso seria impossível, não é?
negou.
- Parabéns, papai.
Os olhos dele encheram d’água e ele abriu um largo sorriso.
- Não chore.
pôs a mão no rosto e chorou.

Long live the walls we crashed through
I had the time of my life with you


- Um, dois... - contou.
- Não, do início.
Ele assentiu, compreensivo, as mãos segurando o véu. O coração palpitava de um jeito que o levaria à morte precoce, mas jamais diria isso, ou entraria em crise. Três meses após ter se recuperado e de toda a sua história ter enfim entrado no eixo, sentia-se seguro e responsável. Mais responsável ainda. Iria ser o pai que um dia teve, mas que a inveja o levou cedo, sem que pudesse aproveitar a sua presença. Daria o seu melhor para os três filhos, trigêmeos, e o mais importante: amor.
- Você não vai rir? - perguntou, hesitante.
- Prometo que rir é a última coisa que farei.
- Está bem.
começou a erguer o véu vagarosamente, desnudando o pescoço sem danos, as orelhas pequenas, a mandíbula com pontos escuros parecidos com sinais.
Diante da sua pausa, a princesa se empertigou.
- O que foi? Solte-me, preciso ir...
Ele tocou os lábios lá, distribuindo beijos, os lábios abertos.
- Dói?
- Não. Seus beijos me anestesiam - sorriu, e o rubor tomou sua pele.
percebeu e continuou a erguer.
Os lábios dela eram cheios, e o seu dedo pairou sob eles.
- Conte-me o que está pensando. - suspirou.
- Estou me perguntando como pude aguentar viver sem eles. Beijo com véu é o pior beijo do mundo - beijou-a na boca. - Não acha?
- Tem razão.
Mais um pouco e as maçãs do rosto foram descobertas. tentou, em vão, escondê-las.
- Pare de se esconder. Lembra o que eu disse certa vez? Aprendi a adorá-la com o véu, só por quem você era, e sem ele a amaria. Estou amando e aceitando cada pedaço seu, princesa. - Desenhou as manchas negras ao redor da pele. Havia uma cicatriz na lateral do rosto, do olho à mandíbula. - Como conseguiu isto?
- As manchas são de nascença. Durante a minha infância, muitas pessoas disseram que fui adotada porque sou a única que as tem. Mas mamãe nega, lembrando-me que a minha falecida bisavó também as tinha. Prefiro acreditar nela. - Suspirou, sentindo mais beijos dele e o modo como era satisfatório mostrar quem você é, sem medo. - A cicatriz foi um acidente.
- Quer falar sobre isso?
- Causado em uma fábrica quando eu tinha sete anos.
Ele plantou um beijo rápido em seu nariz, fazendo-a sorrir.
- A parte que eu mais ansiei está próxima.
- Meus olhos. - Revirou-os. - Eles são realmente .
- Gosto da cor e gostarei deles.
O olhar dela era marcante, expressivo, e tinha a certeza que se dissesse que as suas sobrancelhas eram bem feitas, ela não acreditaria.
- Estou sendo seduzido por esse belo par de olhos - beijou suas pálpebras.
- Jamais estive tão perto de alguém sem o véu.
- A incomoda eu estar perto assim? - Rodeou os braços nus ao redor do seu corpo vestido com uma camisola de seda. Depois, envolveu seu rosto gracioso. Cada pinta, sinal, mancha e ferida era , a mulher que ele aprendeu a amar. E por ser dela, amava também tudo o que vinha consigo.
- Não. Estou me sentindo bem.
- Se amar faz isso conosco. Ser amado também.
Os olhos dela se estreitaram, assimilando, com uma pergunta que relutava ser feita, mas que necessitava de uma resposta clara, e ele assentiu.


Epílogo

Em 1822, com quarenta anos de casados, uma epidemia se alastrou pelo vilarejo e o palácio, matando sua mãe, a rainha, e o seu irmão mais velho. Sendo, agora, a segunda na linha de sucessão, a princesa Marie saiu na varanda real, acenando para o seu povo, sozinha e sem véu. Seu rosto havia sido estampado em revistas há anos, mas a realeza ordenou que todos os exemplares parassem de ser comercializados. Com um suspiro, entrou para o salão, encontrando os trigêmeos conversando animadamente.
- Onde está o pai de vocês?
- No quarto. - Margarida III disse.
seguiu pelo corredor extenso, virando de um lado e detendo-se em frente ao quarto do casal.
analisava um quadro, em pé.
Atravessou o tapete, entrelaçando a mão na dele.
- Não consigo olhar para esse quadro e não rir.
- Por quê?
Ela notou o quão velho, mas charmoso, ele estava depois de todos esses anos juntos.
- Não tenho mais medo. Estou curada, duque. O seu amor me curou.
acariciou sua mão.
O retrato havia sido feito há trinta e um anos, no vilarejo onde ele morava e a levou uma vez para conhecer. O ateliê, suas obras. A pintou naquele dia, nua em toda sua glória. O véu cobria o rosto dela.
- Então tenho que agradecê-la mais uma vez, princesa, por ter me permitido fazer isso. E por ter me amado de volta. O nosso amor nos curou.
- Nossa jornada ainda não acabou. Serei a rainha de Amelienborg e preciso do meu rei.
Ele sorriu, e ela encostou a cabeça em seu ombro.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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