Finalizada em ou Última atualização: 23/04/2021

Nova Percepção

Aquela se contava a terceira semana consecutiva em que chegava do trabalho e encontrava seu vizinho do apartamento ao lado, jogado ao chão do corredor. De todas as outras vezes que isso havia acontecido, seu pedido de socorro fora ao zelador do prédio. Porém, como o velho John estava hospitalizado por problemas de pressão alta, ela não conseguia pensar em mais ninguém.

— Morador do 17? — ela se aproximou do homem e o chutou de leve para saber se ele ainda estava vivo — De novo… Como ele consegue ainda ter saúde?

Ela se abaixou e tocou em seu ombro. O rapaz que estava de bruços, foi virado por ela. pode observar o quanto ele estava em delírios, certamente sob o efeito de todo o álcool que ingeria diariamente. Suas pálpebras começaram a mexer, até que ele abriu os olhos em uma fresta. Um sorriso estranho surgiu em sua face.

— Oi querida? Veio me levar para casa? — disse ele, com seu tom nitidamente de embriaguez.
— Hum?! — franziu a testa, confusa e sem entender — Não deveria estar caído aqui.
— Aonde mais eu cairia? — perguntou ele de forma debochada.
— Dentro do seu apartamento e não na porta dos outro. — disse ela, inutilmente.

Já que não era a primeira vez e temia que não fosse a última. Por um infortúnio da vida, o vizinho do 17 sempre caía exatamente em sua porta. O que lhe causava o transtorno de pedir ao zelador para retirá-lo do local. Mas agora, ela não tinha a quem pedir socorro, então teria que resolver o problema por si mesma. A esforçada publicitária remexeu os bolsos do rapaz, encontrando as chaves dele. Se levantando, deu alguns passos até a porta certa e abriu. Assim queria mais fácil carregá-lo para dentro.

Deixando sua bolsa e a pasta de projetos no chão ao lado de sua porta, ela tentou ajudá-lo a se levantar pelo menos. Não deu nem dois passos e o corpo do vizinho desabou no chão, puxando-a consigo.

— Ai! Droga! — xingou ela, sentindo uma leve dor em seu braço causada pelo impacto no chão.
— Eu te amo, querida, não brigue comigo de novo. — disse ele, mais uma vez em delírios.

respirou fundo bufando de raiva e se levantando novamente, pegou as mãos do homem e saiu arrastando seu corpo pelo corredor até chegar em seu apartamento. Por um leve momento ela se sentiu como uma criminosa escondendo um cadáver, e caiu em pequenas gargalhadas pelo caminho. Assim que finalmente conseguiu fazer o que planejou, deixou o corpo do vizinho jogado ao chão de seu apartamento e saiu pela porta. Pegando sua bolsa e a pasta, finalmente conseguiu entrar em seu apartamento. Assim que passou pela porta e a fechou, trancando-a, retirou os sapatos de salto alto dos pés e seguiu descanso até a mesa de trabalho que ficava próximo a janela da sacada.

— Agora sim, finalmente cheguei. — sussurrou ela, deixando a bolsa e a pasta na mesa, seguindo para a cozinha. 

Seu próximo passo, esquentar água na velha chaleira e desfrutar de uma boa xícara de chá, enquanto ouvia um pouco de Isn't She Lovely de Stevie Wonder. Seu cantor favorito. Assim que a chaleira soou a água que fervia, colocou o sachê de chá de camomila na xícara e despejou a água. Sentando-se na poltrona recém adquirida em uma loja de antiquário, se acomodou para que a coluna relaxasse. E dando play em sua playlist pré programada no spotify, assoprou o líquido e deu o primeiro gole.

— Tudo que eu mais preciso. — sussurrou novamente — Paz… Tranquilidade...

Ela tomou mais um gole e fechou os olhos, para entrar na vibe da música. não queria pensar na cena de seu vizinho que nem mesmo sabia o nome, jogado ao chão frio no apartamento ao lado. E por mais que ela tentasse focar seus pensamentos em resolver todos os problemas que enfrentou no trabalho naquele dia. E os que relativamente apareceriam na segunda pela manhã. O olhar desnorteado dele vinha em sua mente.

— Droga. — disse ela, deixando a xícara na mesa de apoio ao lado da poltrona e se levantando.

Ela seguiu até seu quarto e finalmente trocou de roupa. Colocou um conjunto de moletom, guardou o celular no bolso da calça, pegou uma gominha e prendeu seu cabelo. Contrariada com sua consciência, de quem um dia foi ensinada por seus pais e ajudar a quem necessita de caridade, ela saiu de seu apartamento deixando-o trancado e voltou ao número 17. Assim que entrou, se deparou com o corpo do homem estirado no mesmo lugar em que havia deixado. Soltando um suspiro cansado, ela se aproximou dele e conferiu se ainda estava vivo.

— Bem, não foi desta vez. — disse de forma debochada, ao sentir a pulsação do rapaz através de seu pulso — Mas você está quente.

Ela estranhou de imediato. E como nunca havia se envolvido mais do que apenas pedir ao zelador para desaparecer com ele de sua porta, então não sabia se era normal. pegou seu celular e discou o número da amiga. Sabia que Lola teria algum tipo de conselho ou dica para lhe dar. E não foi difícil explicar a situação e ainda implorar por ajuda a distância.

— Por favor, amiga. — disse voltando o olhar para ele.
— Eu sou enfermeira, não fiz medicina, não é tudo que eu sei. — explicou Lola, do outro lado da linha.
— Amiga, só você me resta, pergunta pra algum médico aí? O dr. Torres com quem está saindo. — instigou .
— Eu e o Torres é puramente atração física, eu não tenho tanta intimidade assim para outros assuntos. — alegou ela.
— Lola, se ele morrer a culpa poderá ser nossa por não prestar socorro, e não quero ter esse peso na minha consciência, não foi pra isso que meus pais me criaram. — retrucou ela.
— Imagina o que o pastor James diria da filha perfeita dele. — Lola soltou uma gargalhada — Não é fácil ser a filha do pastor, né?!
— Muito engraçado, estou falando sério, vai me ajudar ou não?! — a voz de ficou mais séria.
— Tudo bem, você disse que ele está com pulsação, o que é bom, a febre eu não faço ideia do que pode ser, mas posso dar uma pesquisada por aqui. — disse a amiga, com mais seriedade — Você disse que ele está no chão, coloque-o no sofá mesmo, a febre eleva a temperatura da pessoa, mas se ele continuar em contato com o chão frio, pode piorar o estado dele, por perder rapidamente esse calor gerado internamente.
— Ok, vou tentar colocar ele no sofá que tem aqui, mais alguma coisa? — perguntou .
— Bem, talvez pelo excesso de álcool seu corpo esteja tentando chegar ao equilíbrio, o que pode explicar a febre… — Lola pareceu pensar mais um pouco — Precisamos controlar a febre e eu já te ensinei como faz isso, mas continue mantendo ele aquecido, quanto a embriaguez, tendo sorte dele acordar, faça-o tomar bastante água para limpar o organismo e algum isotônico que ajuda a repor eletrólitos do corpo, sódio e potássio.
— Tudo bem, mas e se ele não acordar novamente? — começou a se preocupar mais.
— Aí ocorre a probabilidade de um coma alcoólico e você terá que ligar para a emergência. — explicou Lola.
— Ok… — notou que o vizinho se remexeu no chão — Acho que ele está acordando, vou fazer o que me aconselhou. Obrigada amiga.
— Me mantenha informada. — pediu Lola.
— Vou sim. — assentiu.

Ao encerrar a ligação, ela guardou o celular no bolso novamente e se aproximou dele. O vizinho estava parcialmente consciente, porém sem forças para se mover com precisão. o ajudou a se levantar e o colocou em cima do sofá. Foi só então que ela notou que sua camisa estava meio molhada e ensanguentada. 

— O que aconteceu com você?! — sussurrou ela, em choque.
— Você voltou. — ele mesmo com os olhos fechados, abriu um sorriso de canto.
— E você não morreu. — ela tentou, mas seu comentário soou com ironia — Você tem camisas limpas?
— O que seria isso? — brincou ele.
— Claro que não dá pra te perguntar nada. — ela bufou e se afastou adentrando mais o apartamento dele.

Em termos de layout e espaçamento, o apartamento dele era relativamente parecido com o dela. Porém, em termos de limpeza e organização, perdia feio. achou o quarto do rapaz com facilidade, porém encontrar uma peça de roupa limpa foi quase uma missão impossível. Ela aproveitou para passar no banheiro e pegar o kit de primeiro socorros, quem sabe ajudaria em algo. A sorte veio quando encontrou no armário debaixo a pia, algumas toalhas limpas.

— E lá vamos nós. — disse ela, respirando fundo ao voltar para sala e ver o vizinho caído ao chão — Como ele...

Ela deixou os objetos que carregava em cima da mesa de centro e o ajudou a voltar para o sofá. Aproveitando o ensejo, ela retirou a camisa ensanguentada e colocou a limpa que encontrou, o acomodou de forma em que seu corpo ficasse um pouco mais erguido. Assim, caso ele tivesse algum tipo de convulsão, não teria risco de morrer sufocado ou algo do tipo.

— Como você ainda está vivo? — perguntou ela, num tom baixo — É um milagre que ainda esteja respirando.

Ela sabia que talvez ele pudesse não entender o que ela dizia, por seu estado de embriaguez.

— Eu também me faço essa mesma pergunta todos os dias. — sussurrou ele, deixando-a surpresa.

continuou cuidando dele, colocando as toalhas úmidas em sua testa para abaixar a febre e verificando sua pulsação. De tempos em tempos ela fazia alguma pergunta para que ele respondesse. Assim se certificava de que ele ainda estava parcialmente consciente. 

— Porque está cuidando de mim? — perguntou ele.
— Olha só quem está um pouco mais lúcido. — brincou ela.
— Não me respondeu.
— Considerando o fato de nem saber seu nome, também me faço essa mesma pergunta. — disse ela, trocando a toalha em sua testa — Você é simplesmente o vizinho do 17 que sempre cai na porta do meu apartamento, e nem adianta dizer que confunde 16 com 17, a sua porta é a última do corredor.

Ele riu baixo.

— Devo levar esse riso como algo proposital? — ela o olhou curiosa.
, me chame de . — disse ele, gemendo um pouco — Acho que estou com frio.
— Uma temperatura. — colocou a mão no pescoço dele e sentiu de imediato a diminuição da temperatura.

Ela se levantou e voltou ao quarto dele, pegando uma manta que tinha em cima da cama, retornou a sala e jogou sobre seu corpo.

— Me esqueci que tinha que te manter aquecido. — confessou ela, num tom de culpa.
— Já está fazendo muito. — ele riu novamente — Como devo chamar o anjo que cuida de mim?
. — respondeu ela.
— Estou apaixonado por você . — disse ele, soltando um suspiro cansado.
— Sei. — ela ignorou aquilo e pegou o termômetro que encontrou na caixa de primeiros-socorros e colocou embaixo do braço dele — Fique quieto e se recupere logo.

As horas se passaram com ela monitorando ele e o fazendo tomar água na medida do possível. Em um piscar de olhos, o cansaço de chegou ao limite e mesmo lutando contra o sono para se manter acordada, ela acabou dormindo ali mesmo. Sentada ao chão e debruçada no sofá. Um sono profundo, que durou algumas horas, mas lhe rendeu latejantes dores na coluna.

Ao finalmente acordar. se espreguiçou do chão e olhou para o lado. estava acordado e observando-a em silêncio. A publicitária se recompôs e levantou-se do chão.

— Como está? — perguntou ela — Se sente melhor?
— Me lembro do seu nome e que você me trouxe pra cá, então acho que estou numa boa agora. — respondeu ele, à sua maneira.
— Aposto que você não deve ter se alimentado direito nas últimas horas, a julgar pelo seu estado de embriaguez inicial. — disse ela, se espreguiçando novamente e seguindo para a área da cozinha — Levando em conta que ainda não chegamos a 12 horas.
— Doze horas do que? — ele a olhou confuso.
— É o tempo que leva para o álcool sair da corrente sanguínea. — explicou ela.
— Você é médica?! — perguntou ele, admirado.
— Não, mas tenho uma amiga enfermeira.
— O que vai fazer?! — indagou novamente, ao vê-la mexer nos armários.
— Você precisa se alimentar, tem algo nesses armários? — ela o olhou.
— Eu tenho cara de quem cozinha? — retrucou com outra pergunta.

Ela bufou novamente e se retirou do apartamento dele. Voltando ao seu, pegou alguns mantimentos no armário e colocou em uma sacola de papel. Passando pela sala ela viu sua xícara com o chá pela metade e totalmente frio. Algo que lhe partiu o coração. Retornando ao apartamento ao lado, pegou duas panelas e começou a cozinhar. Fazendo as contas, no seu celular marcava quase dez horas naquele lugar, o que parecia muita coisa, porém ela havia adormecido então se explicava o fato do relógio marcar três da manhã.

— Aqui. — disse ela, ao se aproximar dele, com uma tigela de sopa de legumes bem nutritiva.

fez uma careta, sendo recebido por um olhar atravessado dela.

— Coma. — disse num tom de ordem.
— Ok. — assentiu ele, pegando a tigela, sendo amparada por um pano por estar quente.
— Deixe esfriar um pouco. — aconselhou ela.
— Você não vai comer também? — perguntou ele.
— Estou sem fome. — respondeu indo se sentar na poltrona ao lado.

Foram alguns minutos de silêncio entre eles, com ela o observando.

— Porque você faz isso com a sua vida?! — perguntou ela.
— Está preocupada comigo? — contra perguntou ele.
— Eu estou aqui não estou? — respondeu — Um pouco curiosa admito… Já tem quatro meses que moro aqui e não teve um dia em que eu não te encontrei caído na frente do meu apartamento.

Ele riu. Tinha um motivo banal para os conhecidos de , mas relevante para ele.

— A pessoa que morava no número 16 antes de você, era especial para mim. — revelou ele, num tom mais baixo.
— E o que aconteceu com ela? — temeu a sua pergunta, mas queria fazê-la.
— Acidente de carro. — respondeu ele.
— Lamento. — disse ela, num tom mais suave.
— Meus amigos dizem que eu deveria ter superado, já que ela não me amava e iria se casar com outro, mas eu simplesmente não consigo. — colocou a tigela da mesa de centro e reclinou seu corpo para trás, se apoiando no encosto do sofá.
— E está destruindo sua vida por alguém que nem mesmo tinha sentimentos por você?! — se mostrou embasbacada — Isso é uma piada, não é?!

a olhou sério.

— Não acha que é hora de virar a página? Ela morreu, ok, é normal ter o luto, mas jogar sua vida morro abaixo por alguém que nem te amava, acho meio insano demais. — ela foi mais do que sincera e realista em suas palavras — Você não enxerga, mas está deixando de viver experiências na sua vida por alguém que nem merece.

Ela se levantou da poltrona, inconformada com a história dele.

— Aonde você vai?! — perguntou ele.
— Gastar meu tempo precioso com algo que valha a pena, e não com uma pessoa que se destrói sem pensar no que realmente vale a pena viver. — ela se afastou dele e saiu pela porta o deixando surpreso com tal reação.

passou o restante da madrugada jogada na cama assistindo Brooklyn 99 na Netflix. Ela havia se irritado tanto, que até seu sono havia se dispersado. Pela manhã, após uma ducha quente e chocolate quente para matar parte da fome, finalmente ela se rendeu aos cobertores e dormiu. Acordou no final da tarde e deu um pulo da cama, se lembrando dos compromissos do trabalho.

A publicitária estava encarregada de um projeto grande e trabalhoso, que lhe deixara algumas noites sem dormir e agora teria que revistar o pontos que o cliente não gostou. O restante do seu final de semana foi trabalhando e lutando contra seus pensamentos sobre o vizinho que surgiam a cada hora.

Segunda à noite, volta para casa. 

havia mesmo tido um dia estressante, mas no final, com fé, tudo havia dado certo para ela. Aprovação do cliente e mais dois projetos em sua responsabilidade. Com fones no ouvido e cantarolando uma canção bastante cantada na igreja do pai, seu corpo gelou e sua mente paralisou, ao se deparar com o vizinho assentado na porta de seu apartamento, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada.

— De novo não. — disse ela, num tom desanimado e frustrado.
— Eu estou sóbrio. — disse ele, assim que ouviu sua voz.
— O que?! — ela tomou de leve a cabeça, em choque.

levantou o olhar, movendo na direção dela. O que impressionou a garota. Ele havia passado algumas horas encarando o número acima da porta dela, antes de finalmente se assentar ali.

— Vim agradecer formalmente. — disse ele, se levantando do chão — Por tudo, principalmente por me fazer pensar sobre o que estava fazendo com minha vida.
— Hum… — ela se encolheu um pouco, não esperava por aquilo — Você está mesmo bem?
— Sim, com alguns tropeços e resistência, não mais bebi desde o momento em que saiu do meu apartamento. — assegurou ele — E pretendo me manter assim.
— Fico feliz que tenha tomado essa decisão. — ela sorriu discretamente, estava aliviada internamente.
— Posso te pagar uma pizza como um pedido de desculpas por todas as vezes que caí na sua porta? — perguntou ele.
— Hum… Se for de quatro queijos, posso pensar se desculpo. — brincou ela.
— Essa é a minha favorita. — assentiu ele.
— O que te fez mesmo mudar de ideia? — indagou ela curiosa.
— Você. — ele foi direto e preciso — Se uma pessoa que não me conhece se esforçou tanto para que eu vivesse, porque eu não posso me esforçar para seguir em frente?! Quero encontrar este valor que você deu a minha vida.

deixou seu sorriso mais aparente de forma espontânea. Se havia uma coisa em que ela tinha aprendido com seus pais, é que toda vida tinha seu valor, por mais teimosa que a pessoa fosse em reconhecer isso em si própria.

Sinto muito, eu disse que te amo e estava chapado, mas
Acho que é hora de se acalmar
Eu me apaixono quando fico bêbado
Eu estou bem em ser odiado
Estou sóbrio agora e não me importo.
- Split a Pill / Machine Gun Kelly

Quedas: Não é o que temos que nos define, e sim como nos levantamos após uma queda.” - by: Pâms



FIM.





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