Capítulo 1 - PART I
Nova York, 3 de Dezembro
10:45 a.m.
“URGENTE! Uma ação do grupo de meta-humanos, Vingadores, está acontecendo, nesse exato momento, no centro de Nova York. Fontes no local informaram que agentes de uma organização criminosa internacional estava em ação, com 80 civis de refém em um prédio local, enquanto um outro grupo de homens, da mesma organização criminosa, assaltava o laboratório Sheperd, atual sede de pesquisas de desenvolvimento químico, financiado pelo governo. A ação visou atrair atenção dos super-heróis para os reféns enquanto o roubo de informações e materiais confidenciais acontecia. Não se sabe, ainda, o motivo oficial do roubo. Os Vingadores chegaram ao local há cerca de 10 minutos. Explosões puderam ser ouvidas em diversas partes da cidade e não sabemos ao certo de onde vêm. A polícia local conta 328 feridos, até o momento, em atendimento local.”
Carmem desviou seu olhar da TV até mim. O saguão do New York Centre Hospital estava repleto de médicos e enfermeiros por todos os lados, assistindo ao noticiário do Canal 2, telefonando para amigos e parentes e se preparando para o que viria a seguir. Observei o pequeno alvoroço se formar ao meu redor, à medida que o contador de vítimas na tela da televisão aumentava. Desviei meu olhar de volta para a televisão, onde a imagem de um homem desesperado e raivoso, todo ensanguentado e cheio de poeira, aparecia dando entrevista. Atrás dele, podíamos observar paramédicos correndo, crianças chorando, muita poeira saindo dos prédios e alguns dos super-heróis mais cobiçados do mundo voando de um lado a outro.
“- Eles estão explodindo tudo e todos. Há crianças lá dentro. Não sabem mais quem é vítima e quem é criminoso. Eles precisam parar. Os Vingadores precisam parar de nos machucar.”
Como sempre, sobrou para quem não tinha nada a ver. Balancei a cabeça afastando meus pensamentos, antes que pudessem se transformar em raiva. 456 feridos no contador, em vinte minutos de ação. Nenhuma morte, por enquanto. Do hospital, podíamos ouvir o barulho de pequenas explosões e coisas – ou pessoas - voando pelo céu. Meus colegas de trabalho corriam de um lado para o outro, arrumando o que podiam o mais rápido possível. Em poucos segundos o trabalho iria começar e eu deveria estar correndo junto com eles. Carmem passou por mim com um walkie-talkie em mãos, anunciando que algumas ambulâncias estavam chegando com dezenas de pacientes feridos. Respirei fundo. Era o que tinha escolhido para minha vida, não era?
Ajudar quem precisa.
Há 5 anos estive trabalhando nesse hospital, contratada pela SHIELD que, em parceria com o governo de 32 países, abriu hospitais públicos com o objetivo de sanar os danos causados por ações de super-heróis e seus temidos ‘vilões’. O mundo em que vivemos não é mais o mesmo desde que um homem começou a voar de armadura pelos céus, um deus de outro planeta desceu a Terra, um soldado ser descongelado depois de anos ou um médico virar um mago. Tivemos que nos adaptar à bagunça que veio com eles. E, quase sempre, não era uma festa. Era um desastre.
Assim, depois de incontáveis testes físicos e psicológicos, fui habilitada para trabalhar nesse projeto. O New York Centre Hospital fica na periferia da cidade e é mundialmente reconhecido por ser um hospital referência em cirurgias. Existem unidades-braço desse hospital, em clínicas espalhadas pelos EUA e Canadá que fazem pequenos exames e consultas. Mas, o centro mesmo, onde pega fogo, é aqui. Mal havíamos nos recuperado no último ataque de ‘vilões’ à população civil e, há pouco menos de um mês para as festas de final de ano, eles aprontam mais essa. Obrigada, Vingadores, por trazerem ódio e caos a quem nada tem a ver com a briga de vocês. Cortei meus pensamentos odiosos ao sentir alguém cutucar minhas costas.
- Doutora Collins, as ambulâncias chegaram. – Virei-me a tempo de observar Allison, a jovem interna dizer assustada. Seria a primeira grande recepção dela. Sorri fraco.
- Tudo bem Alli, não se apavore. Você se lembra dos procedimentos, certo?
- Sim, me lembro. – Allison confirmou enquanto me passava um par de luvas. Fechei meu jaleco, ao tempo que praticamente corríamos sentido à porta de entrada das ambulâncias. O saguão do hospital já começava a lotar de pessoas desesperadas e pedindo ajuda. Carmem passou apressada de volta com um grupo de médicos novos e enfermeiros que teriam que dar conta daquelas pessoas. Segui meu caminho até a porta há poucos metros à minha frente, que já estava completamente aberta. Podíamos ouvir o alvoroço todo: as sirenes gritando, pessoas chorando, médicos correndo de um lado ao outro, macas para todos os lados, enfermeiros abrindo o caminho no meio da multidão. Bill e Stephen passaram por nós correndo com uma maca em que havia uma senhora deitada, desacordada. Bill gritava pelo desfibrilador e Stephen lutava para equilibrar o soro no alto enquanto corriam. Allison parecia ainda mais assustada quando chegamos, finalmente, na porta. Nate desceu mais uma maca de sua ambulância e a direcionou para nós duas. Um homem, de mais ou menos 40 anos, com queimaduras no corpo. Haviam estilhaços de bomba grudados em sua pele e pó por todo o corpo.
- Doutora , por favor. – Nate pediu ao se aproximar. Assenti com a cabeça, segurando a maca. Allison se juntou a mim. Observei o nome do homem em um cartão pendurado no que sobrou de seu suéter.
- Louis, pode me ouvir? – Perguntei já empurrando a maca pra dentro do hospital – Louis? Está tudo bem agora, vamos te ajudar. Procure ficar acordado.
O homem pareceu murmurar alguma coisa. Já era um bom sinal. Segurei a máscara de oxigênio que ele usava, com força, e empurrei a maca o mais rápido que pude.
- Sala 22, Allison. Vá buscar panos e prepare a água. Vamos tirar a roupa dele, limpar as áreas não queimadas e fazer compressas onde queimou. Traga curativos de tamanhos variados, a espátula de 2mm e a pinça de Richards. Rápido.
Allison saiu correndo pelo corredor à direita de onde estávamos passando. Meu pager não parava de apitar no bolso. Aquilo era desesperador. Doutora Sara passou correndo por mim com uma criança de 1 ano no colo. Ela tinha queimaduras por todas as partes do corpo também. Na sala 19, havia um homem com estilhaços nos olhos, Andrew tentava removê-los. Na sala 20, havia um casal de senhores sendo suturados. Na sala 21, uma mulher dando à luz prematuramente graças ao estresse. Virei à maca com cuidado e entrei na sala 22, a mais próxima vazia. Encaixei a maca no suporte e separei um cobertor no canto do quarto. Allison voltou com tudo que havia pedido, e como um trabalho de formiga, tiramos completamente a roupa do homem que, agora, estava desacordado. Merda. A preocupação era não retirar os pedaços de tecido grudados no corpo, fazer compressas leves e rápidas e colocar os curativos o mais rápido que podíamos. Os dedos das mãos e dos pés não podiam grudar uns nos outros e o desafio era descobrir qual era o grau de cada queimadura. Meu walkie-talkie dizia que mais 10 ambulâncias haviam chegado e que precisavam de ajuda o mais rápido possível. Não tive muito tempo para pensar no que fazer e dois segundo depois, Carmem já estava parada na porta do quarto onde estávamos atendendo Louis.
- , precisamos de ajuda. Até o terceiro andar já está cheio. Temos apenas 25 quartos disponíveis e mais carros acabaram de chegar com mais pacientes.
Tirei minhas luvas sujas, lavei as mãos rápido e coloquei um novo par. Allison daria conta de terminar com Louis sozinha. Seus batimentos cardíacos pareciam estáveis. Ajeitei meu estetoscópio no pescoço e sai correndo hospital afora.
- Alocamos duas, três pessoas por quarto. Usamos os recuos nos corredores para macas com pessoas menos feridas. Casos graves no primeiro andar, casos estáveis nos seguinte. – Disse correndo em direção às ambulâncias novamente. Carmem assentiu, anotando algo em uma prancheta e correu sentido oposto.
Sentia minhas costas suarem frio. Dei assistência rápida a algumas pessoas que estavam nos corredores, me aproximando aos poucos da porta principal de ambulâncias. Nate ainda estava lá, hora ajeitando pessoas em macas e distribuindo para os médicos que apareciam, hora acalmando os familiares e pessoas que buscaram refúgio no hospital. O homem me empurrou uma maca com uma menina desacordada de 5 anos, Anne, cujas fraturas nos ossos das pernas podiam ser completamente vistas. A mãe da menina chorava e perguntava a Deus o porquê daquilo tudo. No caminho pelo corredor, disse-me que estavam no prédio junto com os outros reféns quando um ‘raio’ forte, vindo do glorioso Homem de Ferro, atingiu parte do teto que cedeu sob a menina. As pernas de Anne ficaram presas nos escombros por cerca de 15 minutos. Anne não podia se mexer e não demorou para desmaiar de dor. A mãe da menina tinha as mãos e braços completamente cortados por tentar tirar os blocos de cimento de cima da filha que, só foi ser retirado dali por Wanda, a conhecida Feiticeira, que removeu os blocos e seguiu seu caminho para a luta. Outros homens, que também eram reféns, removeram a menina até a ambulância, quando puderam finalmente sair do prédio. Ouvi a história calada. Não teria o que dizer para aquela mãe. Não teria o que dizer para mim mesma.
Agora, nos encontrávamos no quarto 42, do segundo andar. O mais próximo da sala de cirurgias ósseas, que estaria ocupada pelas próximas cinco horas. Anne precisaria fazer alguns exames antes de entrar em cirurgia. Pedi que sua mãe se sentasse em uma poltrona azul clara que havia ao lado da maca, onde tinha acabado de sedar Anne, para que não corresse o risco de acordar e sentir as dores das fraturas novamente. Trouxe uma pequena bandeja com curativos, algodões e álcool e agachei-me de frente a mulher, que ainda chorava.
- Está tudo bem, agora. Vou limpar suas mãos e vamos fazer curativos nelas, para que os cortes não se aprofundem ou infeccionem, tudo bem? – Perguntei à mulher o mais carinhosamente possível. Ela apenas assentiu com a cabeça e esticou as mãos para que eu fizesse meu trabalho. - Anne vai se sair bem na cirurgia, é uma menina jovem e saudável. Não há com que se preocupar. Vamos fazer alguns exames nela daqui a pouco, e iremos te informar sobre todos os procedimentos, ok? – Tentei confortá-la enquanto passava os curativos sobre suas mãos. – Há mais alguém que posso ligar para vir ficar com vocês?
- Meu marido, John, por favor. – A mulher disse desesperada, chorando mais forte. – Ele estava nos esperando no carro, no estacionamento do prédio. Não sei onde ele está. Por favor, doutora.
- Tudo bem, tudo bem. – Empurrei a bandeja de alumínio pelo chão, me levantando para abraçar a mulher que se debulhou em lágrimas. – Vou achar ele, eu prometo.
Soltei-me da mulher enquanto ela me dava um pedaço de papel com o número de John. Guardei-o no bolso de meu jaleco. O doutor Charles entrou no quarto como um trovão, pronto para levar Anne para fazer os exames. Pedi que a mãe esperasse no quarto e que descanse um pouco. Logo trariam Anne de volta e teríamos que entrar na cirurgia.
- Preciso ver outros pacientes agora, tudo bem por você? – Perguntei delicada observando atentamente à mulher.
- Vou ficar bem doutora, vá ajudar outras pessoas agora, estarei bem aqui esperando por Anne. – A mulher comentou convicta. Sorri fraco em apoio e saltei para fora do quarto, mais uma vez.
Poderia acrescentar aquele dia na lista dos piores dias de minha vida. E poderia acrescentar um pouco mais de ódio ao idiota do Homem de Ferro. Eles precisam entender que existem regras, precisam agir de acordo com as leis e respeitar todos os termos dos direitos humanos. Todos. Não há exceção para ninguém e só porque se julgam diferentes dos demais, acham que têm direitos diferentes? Não. Continuei caminhando a passos pesados pelos corredores do hospital, parando em alguns quartos brevemente para ajudar meus colegas e dando uma olhada nas pessoas alocadas nos próprios corredores, que precisavam de curativos rápidos, remédios nas veias ou trocar o soro. Passei rápido para checar Louis, que agora parecia dormir com sua esposa sentada na poltrona ao lado, chorosa. Voltei ao corredor a tempo de ver Doutora Sara desesperada gritando por ajuda. Entrei como um furacão no quarto em que ela estava. A menina de um ano, que ela ainda estava atendendo, perdia pulso.
- Ela está asfixiando, está ficando roxa. O quadro parecia estável, estávamos cuidando das queimaduras e ela começou tossir. Tentamos pressionar as costas e o pulmão para ver se saia algo, ela parece engasgada. – Sara comentou intrigada, colocando o bebê de lado.
- Pegue a cânula, vamos fazer uma traqueostomia e leva-la pro ultrassom.
- Eu não posso fazer isso, é um bebê, . – Sara disse estridente.
- Você está perdendo tempo, Sara. Se não aguenta, está na profissão errada. Ou você ajuda ou ela morre. Escolha. – Falei o mais séria e rápida possível.
Essa enrolação nunca serviu de nada. Sara parecia estática, nem piscava. Bufei e busquei a cânula eu mesma. Nate segurou a menina, que já estava azul, de barriga para cima e, sem pensar muito, furei seu pescoço, precisamente sua traqueia, para que o ar pudesse finalmente passar. A menina chorava como se estivesse sob tortura. Pela cânula pudemos tirar um pequeno pedaço de algo que não identificamos à primeira vista.
No ultrassom pudemos ver que havia um outro pedaço de algo em seu estômago, possivelmente um estilhaço que ela devia ter engolido, sem querer, enquanto chorava no meio de toda a confusão. Assim, a primeira cirurgia que fiz naquele dia foi para retirar um pedaço de ferro vermelho, de dois centímetros, do estomago de uma criança.
O ódio foi mais longe do que pensei ao me dar conta que estava gritando de raiva dentro no banheiro depois da segunda cirurgia do dia. Seis horas de operação e Anne não teria chance de voltar a andar. Soquei e chutei as portas do banheiro de todas as maneiras possíveis. Gritei. Soltei tudo que minha alma estava segurando naquele dia e sem que pudesse me estender mais ali, meu pager voltou a apitar. Devia ter dado descarga nessa merda. Soltei um suspiro alto e pesado, me olhando no espelho e fui em direção ao que me esperava.
Achei Carmem no saguão, com mais alguns paramédicos e enfermeiros que pareciam alvoraçados. Há horas não traziam mais ninguém. Franzi a testa ao observar a expressão vaga de Carmem para mim do outro lado do saguão do hospital, onde uma maca com um homem de meia idade cruzava o corredor largo. O silêncio se instalou de forma generalizada e tudo que podíamos ouvir eram altos gemidos e gritos do homem. Carmem passou por mim com uma prancheta na mão, que praticamente enfiou no meu peito.
- Vai que é seu, gatinha. Quero ver se aguenta esse fardo. – Sussurrou ela pra mim, revirando os olhos. – Eu não tenho idade pra isso mais.
Observei a mulher de quase 60 anos passar por mim sem mais justificativas. Observei a prancheta em mãos e pra lacrar meu dia o nome de Anthony Stark estava nela. Olhei a maca, que já estava perto agora, com uma fúria sem tamanho. Isso não estava realmente acontecendo.
- Carmem, não faz isso comigo, por favor. – Implorei correndo atrás da mulher. Ela sorriu calma.
- Tem coisas na vida que precisamos passar para aprender, querida.
- Eu não tenho o que aprender com essa gente, Carmem. Olha o que eles fizeram hoje. – Disse sincera, devolvendo a prancheta para ela. Carmem apenas negou com a cabeça.
- Viu? Você realmente precisa disso. Aproveita o espírito natalino para repensar suas raivas e mágoas. Dê uma chance para eles, dê uma chance para si mesma. Eu confio em você. E você não pode desacatar uma ordem da sua chefe, que no caso, sou eu. O caso é seu e de Andrew, agora. Vá.
- Mas Carmem, eu não...
- Feliz Natal, . Ainda vai me agradecer por isso.
E lá se foi Carmem, depois desse lindo e emocionante discurso com uma ameaça subentendida. Largue o caso e você passará a vida tirando pontos, adeus cirurgias. Respirei fundo, amaldiçoando todos os karmas dessa vida.
Tony estava deitado na maca, sangrando por todos os lados e se contorcendo de dor. Me aproximei para dar uma olhada no que tinha acontecido com ele. Parte da sua armadura havia estraçalhado em suas pernas e havia uma viga, de tamanho médio e cor vermelha, atravessada em sua perna esquerda, de ponta a ponta. Na perna direita, precisamente na região interna da coxa, havia um corte enorme, digno de mais de uma dúzia de pontos. Aquilo estava muito feio. Três tiras finas de ferro estavam enfiados em seu abdômen, na região do baço e havia roxos de tamanhos diversos em seu peito, certamente costelas quebradas. Seu rosto tinha alguns pontos cortados, no canto da boca, nariz e nas mãos também. Aquilo estava realmente muito feio. Seu capacete estava jogado ao seu lado na maca e não podíamos mais saber o que era Tony e o que era armadura. Ele parecia um ciborgue triturado em uma máquina de moer cana. No fundo, eu queria mesmo era larga-lo ali jogado, sofrendo, como ele fez com Anne e o bebê. Mas a empatia pede um momento de cuidado. O maior esforço agora era tentar manter o profissionalismo e deixar a raiva de fora disso.
- Senhor Stark, meu nome é Collins e irei ajudar o senhor. Pode me dizer o que aconteceu?
- Você não está vendo? – Stark me questionou curto e grosso. Muito grosso, inclusive.
- Se vamos te ajudar, precisamos que o senhor nos ajude também. – Insisti. Tony gemeu algumas coisas incompreensíveis quando um enfermeiro começou a empurrar sua maca de novo. Sorri por dentro. Tony manteve-se calado por alguns instantes, apenas gemendo de dor. Não parecia disposto a contar o que aconteceu. Caminhei apressada ao lado da maca, conforme adentrávamos o corredor.
- Tudo bem, iremos te sedar em alguns minutos e te levar para cirurgia para que possamos remover a armadura sem maiores danos.
- MAIORES DANOS? Como se isso já não fosse o suficiente. Liguem pro meu médico, por favor. Você não parece adequada para isso. – Tony disparou essa olhando em meus olhos. Senti que podia quebrar a cara dele ainda mais.
- Sinto dizer, mas “seu médico” hoje sou eu. Capacitada ou não.
- Qual é seu problema? Você sabe quem eu sou? – O homem insistia no cinismo conhecido. Até nessas situações, o cavalo dava patadas. – Quanto você quer para chamar meu médico aqui? – O idiota não para nunca, não é? Revirei os olhos, perdendo a paciência.
- Andrew, por favor, deixo-o no quarto 30 e tire raio-x de tudo que conseguir. Aparentemente temos três costelas quebradas e precisamos mapear a armadura para removê-la. Prepare-se para a cirurgia. – Pedi gentilmente ao outro médico que empurrava a maca e segurava o soro. Havia dois enfermeiros para certificarem-se de que a perna do homem ficaria imóvel, evitando maiores machucados. Stark arregalou os olhos.
- Temos que retirar essas tiras daqui, . – Andrew comentou enquanto andávamos pelo corredor. Neguei com a cabeça.
- Não antes de mapeamos a armadura. Não sabemos o quão fundo está isso e vamos retirar tudo de uma vez na cirurgia. Você tem 10 minutos para tirar o raio-x.
- Mas isso parece superficial, podemos remover agora. – Andrew insistiu e eu bufei. Antes que pudesse responder, Stark resolveu se manifestar.
- DEZ MINUTOS? Você vai me deixar assim por mais dez minutos? – Ele gritou, tentando curvar-se para cima. Empurrei ele de volta para deitar na cama. Ele tinha mesmo um pedaço de... O que era aquilo no peito dele? Jesus Cristo, essas pessoas são bizarras. Sorri forçadamente para ele.
- Você parece muito bem para reclamar de mim, então acho que pode esperar um pouquinho. E se não percebeu, tem mais de 300 pessoas aqui hoje que precisam ser atendidas, graças ao senhor e seus coleguinhas. Então, entre na fila, senhor Stark. Agora, se me der licença, preciso me preparar para a cirurgia.
Tony fechou a cara como uma criança mimada. Andrew deu uma risada fraca, mas logo se recompôs e foi fazer o que pedi. Soltei o ar de uma só vez quando estava sozinha, me apoiando na parede. Era tudo que estava me faltando naquele dia. Me sentia nauseada.
Foi 1 hora seguida de catástrofe. 627 pessoas feridas, 320 delas deram entrada em nosso hospital naquele dia. Quatro super-heróis foram atingidos gravemente e cada um deles foi levado ao hospital mais próximo. As próximas 48 horas de nossas vidas foram de exaustiva tentativa de salvar aquelas pessoas, uma por uma, dano por dano. No final do segundo dia, estávamos sem dormir, sem comer, sem beber, sem ir ao banheiro direito, sem tempo de respirar.
Tivemos que atender uns aos outros.
Capítulo 2 - PART II
Nova York, 5 de Dezembro
22:56 p.m.
A cirurgia do Tony demorou cerca de dez horas.
Passamos a noite toda removendo a armadura de forma à não piorar a situação. Demoramos quase três horas para conseguir desmontar toda sua armadura, pedaço por pedaço, o mais rápido que podíamos para finalmente fecharmos aos cortes. O idiota do Andrew retirou as finas estacas de ferro antes do raio-X e deu pontos na área, sozinho, sem pedir ajuda a ninguém, sem ouvir minhas orientações, sem falar com ninguém. Aparentemente era mesmo superficial. Só sedou Tony antes da cirurgia e começou a retirar o que julgou não ser caso cirúrgico. Se você visse Tony nesse dia, diria que a vida toda dele era um caso cirúrgico. Trabalhei sozinha com Andrew pelas outras sete horas, concentrada em não deixar Tony morrer. Tivemos que reconstruir um dos músculos da coxa e tirar com pinças os minúsculos pedacinhos de ferro que grudaram em seu corpo. Todos os cortes foram fechados, limpos, suturados, delicadamente, corte por corte, ponto por ponto, machucado por machucado.
Dez horas depois e não haviam mais vestígios de sangue por seu corpo, apenas curativos, pontos e roxos. Tony continuava dormindo, como se nada tivesse sido feito ali. Estável, tranquilo. Nossas roupas estavam completamente sujas e depois do final da cirurgia, me peguei sentada no chão, observando os pedaços de armadura espalhados por toda a sala, enquanto um dos enfermeiros levava Stark para um quarto onde ficaria de repouso. Andrew estava na minha frente, parecia cansado e concentrado em desamarrar a roupa do centro cirúrgico.
- Parece que Carmem escolheu as pessoas certas para cuidar do Stark. – Ele comentou me olhando. Dei de ombros, desviando meu olhar dos pedaços da armadura até ele.
- Com tantos hospitais, bem no nosso. – Respondi suspirando. Sentia meu corpo formigar. Precisava dormir urgentemente. Andrew deu uma risada debochada e eu sorri. Ele gostava tanto de “super-heróis” quanto eu.
- Sorte. É tudo que não temos. – Ele rebateu sorrindo para mim. Concordei com a cabeça, sentindo meu pager apitar três vezes seguidas. Era hora de passar nos quartos para checar se estavam todos bem.
- Definitivamente esse não é nosso dia. – Comentei me levantando preguiçosamente e saindo da sala para me trocar e ir para a ronda dos quartos. Andrew teria que juntar os instrumentos da sala cirúrgica e se preparar para a próxima da noite.
Durante toda a madrugada, a cada duas horas, passava no quarto de Stark para checar os batimentos cardíacos, ver se os pontos estavam no lugar, se precisaria trocar o soro, se ele já tinha acordado, se estava se sentindo bem. O peso e a responsabilidade de se cuidar de um ‘Vingador’ era fora do normal. Havia muitos jornalistas e fotógrafos na porta do hospital e pessoas curiosas tentavam espiar o quarto, queriam conversar com ele, chegar perto e, por isso, havia um segurança na porta, fixado como uma pilastra, 24 horas por dia. Comi alguma coisa rapidamente com Andrew, entre um intervalo e outro. A manhã chegou e intercalei meu dia inteiro entre ver Tony, Louis e Anne. Os três dormiram o dia todo, mas estavam estáveis. A menina de um ano passava bem e sua mãe finalmente apareceu. Também consegui localizar John, o pai de Anne. Doutora Sara pediu-me desculpas pelo ocorrido e disse que, passado aquilo, trocaria de emprego para um hospital de atendimento marcado. A vida de cirurgiã em pronto-socorro é demais, na maioria das vezes. Todos estavam exaustos e Carmem dispensava grupos de dez em dez, pois o movimento no hospital era grande ainda. Pela vigésima vez no dia, perto das onze horas da noite, decidi ver se Stark já havia acordado, mas, dessa vez, trouxe a janta em uma bandeja.
- Olha só, vejo que a bela adormecida finalmente despertou. – Entrei no quarto tentando brincar com o homem que estava acordado, olhando tediosamente para o teto. Ele apenas tombou a cabeça para o lado e fingiu ter se assustado.
- Eu morri e entrei em algum plano cheio de zumbis? Não coma meu cérebro, ele é valioso demais.
Forcei uma risada falsa e encostei a porta atrás de mim. Decidi não dizer mais nada, porque aparentemente, o senhor ‘eu sou o máximo’ estava bem. Apoiei a bandeja com a janta de Tony na bancada próxima e comecei a abrir os potinhos e pacotinhos, preparando a janta. Tony acompanhava meus passos, um a um, com atenção.
- É sério agora, há quanto tempo você não dorme? Você está péssima. – O homem tentou mais uma vez, me observando atentamente enquanto fazia meu trabalho com cuidado.
- Há quase três dias e a culpa é sua, então não reclame do zumbi aqui. – Respondi um pouco mais áspera do que gostaria. Tony levantou as sobrancelhas.
- Ponto um: a culpa não é minha e ponto dois: se isso for minha janta, esquece, o cheiro está péssimo. Macarrão e vinho me caem melhor as terças à noite.
- Tudo bem, a culpa não é só sua, tem aqueles seus amiguinhos fantasiados também. Mas passei dez horas tentando fazer você viver normalmente, então a maior parte da culpa é sua. E sim, é sua janta e você vai comer. – Rebati me sentindo mais cansada do que antes. Queria mesmo ir embora. Tony riu debochado.
- De fato, a roupa do vovô América é ridícula. Conversamos enquanto jantamos, então? – Tony perguntou, recostando em sua cama. Bufei e virei sentido a cama, com a bandeja nas mãos.
- Não janto com você e não temos o que conversar. – Respondi apoiando a bandeja delicadamente sobre seu colo. O homem torceu o nariz exageradamente e sorriu para mim.
- Vai me dar comida na boca? – Tony perguntou abrindo a boca. Seria engraçado se não fosse trágico. Cruzei os braços, franzi o cenho e fiquei encarando aquela cena ridícula por alguns instantes. Tony riu sozinho depois de um tempo.
- Você não tem senso de humor. – O homem soltou mexendo na comida.
- Você é insuportável. – Rebati observando ele pegar um pouco da comida lentamente e comer com o maior nojo que já presenciei. – Pode comer, não vai morrer intoxicado.
- Vindo do tratamento que estou recebendo seu nesse hospital, devo temer.
- Estou tratando você como você trata todas as outras pessoas. Como se não tivessem importância. – Respondi simplesmente, dando de ombros. Tony revirou os olhos.
Os próximos cinco minutos foram de Tony mexendo porcamente na comida, engolindo um pedaço ou outro de pão e comendo as frutas. Largou quase a comida toda na bandeja e pediu que eu a retirasse dali, sem mais palavras. Aproveitei para organizar a bancada do quarto, que estava cheia de soro, remédios e curativos jogados. Retirei a bandeja do homem e pude observar que os curativos de suas mãos estavam encharcados de sangue, precisavam ser trocados.
- Sabia que posso te processar e acabar com a sua carreira? – Tony quebrou o silêncio com rispidez. Respirei fundo, ajeitando curativos novos, gaze e álcool em uma bandeja pequena de alumínio. Ele não aceitava estar errado, não é mesmo? Aproximei-me do homem, pegando uma de suas mãos. Tony pareceu confuso e entendeu logo quando comecei a retirar os curativos sujos dali.
- Vai em frente. - Falei calmamente, prestando toda minha atenção em suas mãos, limpando-as com álcool e colocando novos curativos, sem muito cuidado.
Pela primeira vez em minha vida encarei aquele homem de verdade, nos olhos. Se eu pudesse escolher um super poder, claramente optaria por raios laser que saiam dos olhos. Tony sustentou meu olhar de raiva para ele o tempo que foi necessário, sem dizer mais nada. Cínico, covarde e grosso. Terminei meu trabalho brevemente e descartei os curativos sujos.
- Se você não vai com a minha cara, por que não passou o caso para outra pessoa? Aposto que têm vários outros médicos aqui que não tratariam um paciente dessa forma. – Ouvi o homem me questionar irônico, segurando-me para não soltar tudo que eu pensava de uma vez. Não podia perder meu emprego por causa disso.
- Porque não posso. E ficaremos juntos aqui até o Natal, a gente querendo ou não. – Respondi cansada.
- Natal? Vou passar o Natal aqui? Com você? Não brinca! – Tony se desesperou, me olhando com os olhos mais arregalados que eu já tinha visto na vida. Sorri internamente.
- Sua cirurgia foi muito delicada, senhor Stark, tivemos que movimentar muitos músculos e alguns ossos para remover completamente a armadura e esse corte na sua coxa está muito grande, são 28 pontos, terá que evitar mexer as pernas nos próximos dias e ficar em observação até lá. Na próxima semana faremos fisioterapia para que possa andar normalmente. – Respondi o mais profissional e séria possível, afinal, eu estava ali para isso. – E faltam apenas 20 dias para o Natal, você vai sobreviver.
Tony não pode contestar mais nada, pois Carmem apareceu na porta do quarto sorrindo. Ela olhou significativamente para mim que apenas forcei um sorriso de volta. Me afastei de Tony indo até a pequena pia para lavar as mãos.
- Senhor Stark, vejo que já está melhor. – Carmem comentou passando por trás de mim, indo até a cama.
- Poderia estar melhor se estivesse em casa. Falando nisso, tive uma ideia brilhante: não existe essa possibilidade? Quer dizer, já que ficarei apenas de observação, poderia ficar em casa, ao menos. – Tony dizia tudo muito rápido. Revirei os olhos, ainda de costas para eles. Carmem soltou uma risada gostosa.
- Podemos negociar isso, senhor Stark. Mas só depois do final de semana. Você precisa tirar esses pontos antes e voltar a andar normalmente. E depois, se ficar em casa, teremos que enviar um médico para sua casa todos os dias. Você está em observação.
Puta merda.
Olhei Carmem por cima dos ombros, que sorria vitoriosa, discretamente. Sabia onde aquilo ia dar e sabia que sobraria para eu visitar Tony em seu castelo, se isso acontecesse. Meus pensamentos foram cortados pela voz de Carmem, mais uma vez.
- , está dispensada pelas próximas 24 horas. Vá dormir, comer e tomar banho. Você já fez demais por aqui.
- Obrigada, Carmem. Qualquer coisa pode me ligar que eu venho, a qualquer hora. – Respondi prontamente, sentindo a alegria de ir embora tomar conta de mim. Dei um abraço fofo em Carmem e sai rapidamente do quarto, dando um breve aceno seco à Stark que murmurou um “tchau, zumbi”. Peguei minhas coisas em meu armário e corri rumo à felicidade: aí vou eu, cama.
Carmem manteve-se no quarto, conversando com Tony. Parecia amigável a ele, embora o homem ainda fosse seco e egoísta.
- Sua médica não é muito profissional, sabia disso? Tenho reclamações formais para fazer dela. – Tony comentou recostando-se um pouco mais na cama. Estava cansado de ficar sentado ali, sem fazer nada. Hospital era mesmo um saco. Dois dias nele já eram suficientes para ficar tedioso. Carmem soltou uma risada.
- Ela é minha melhor médica, sabe? Mas carrega uma mágoa muito grande do senhor e de seus amigos. – Carmem comentou calmamente, sentando-se na poltrona ao lado da cama de Tony, que sorriu fraco.
- Algum motivo extraordinário para isso? – O homem a questionou intrigado. Carmem sorriu terna.
- Há 5 anos, o irmão dela morreu em um atentado contra a base dos Vingadores em Los Angeles. Ele era advogado, estava indo trabalhar ali perto. Vocês não puderam salvá-lo e não deu tempo de levar o homem ao hospital. Desde então, dedicou sua vida à trabalhar em hospitais como este, para impedir que aconteça com outras pessoas o que aconteceu com seu irmão. De alguma forma, ela se culpa por não poder tê-lo ajudado e culpa vocês por não se importarem com as pessoas.
Tony ficou em silêncio alguns minutos, absorvendo as informações. Sentia como se seu coração tivesse sido quebrado em milhões de partes. Sentiu-se ingrato, impotente, arrogante demais até para si mesmo. Tony sempre teve consciência de que não podia salvar todo o mundo, mas nunca se deu conta disso realmente. salvou a vida dele, mesmo ele não salvando seu irmão. Tony cortou seus pensamentos quando Carmem levantou-se e aproximou-se dele.
- Não acho que deva se sentir culpado, senhor Stark. Vocês não podem abraçar o mundo com dois braços.
- Mas nós temos bem mais do que dois braços, Carmem. Nós nos preocupamos com elas. Devemos garantir que as pessoas fiquem bem, é por isso que fazemos isso, mas ainda estamos fazendo errado. – Tony rebateu.
- Sei que se importam e é por isso que arriscam as próprias vidas todos os dias. Mas tenha paciência com . Ela retirou um pedaço da armadura do senhor de dentro do estômago de uma criança ontem. Ela precisa de tempo para se acostumar que trata a vítima e o culpado agora. – Carmem deu um leve aperto no ombro do homem que apenas ficou observando-a sair em seguida.
- Preciso de um Wisky, Carmem, por favor. - Tony pediu e respirou fundo, fechando os olhos. Sentia-se mal ali. Carmem apenas riu fraco.
Na madrugada, Stark conseguiu subornar o segurança em sua porta para que ele comprasse alguma bebida alcoólica. Tony dispensou o homem depois disso e encheu a cara. Com insônia e claramente alterado, Tony teve a brilhante ideia de sair do hospital. De regata branca, calça azul clara e chinelos com logotipo do NYCH, Stark rumou sentido à porta, mais devagar do que gostaria. Suas pernas doíam muito, tremiam muito e não davam a sustentação necessária para o homem ficar de pé sem ajuda das paredes. Mas, para Tony, aquilo não parecia realmente um problema. Podia se virar sozinho. Quantas vezes não fez isso? Quantas vezes não se curou sozinho, sem ajuda de absolutamente ninguém? Já havia feito a cirurgia, aparentemente estava tudo bem, não precisava de mais cuidados. De tudo que já havia passado, aquilo era só mais um episódio. Nem melhor nem pior do que os outros. Ficar naquele hospital não parecia uma boa opção com tantas pessoas sofrendo as consequências das ações que ele fazia. Com tantas pessoas inocentes que perderam suas vidas porque ele existia, que se machucaram, que estavam em coma, que nunca mais seriam as mesmas. Com tanta gente o julgando e não entendendo o seu lado, não entendendo que ele se sentia mal por isso e que fazia tudo que podia.
Às vezes, fugir do problema parecia algo necessário.
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Acordei assustada com o telefone de minha casa tocando desesperadamente. Levantei meio grouge, calcei minhas pantufas e antes que pudesse dizer ‘alô’, a voz de Carmem soou estridente no telefone.
- , volte para cá, agora. Você tem 3 minutos. - Meu corpo enrijeceu e podia sentir meus olhos esbugalhados. Droga. Espero que Anne esteja bem. Espero que não seja outro atentado.
- O que houve? - Perguntei correndo de volta ao meu quarto, calçando o primeiro sapato que vi pela frente, pegando o primeiro casaco que vi pela frente e jogando minha bolsa no ombro.
- Stark, hemorragia. Corre. - Carmem soltou e desligou na minha cara.
Acho que nunca dirigi tão rápido na minha vida. Em 5 minutos cheguei ao hospital, mas isso podia ser tempo demais para quem estava com uma hemorragia. Corria hospital à dentro, enfiando meu jaleco por cima do... pijama, até a ala dos pacientes internados e, antes que pudesse pensar em ir até o quarto de Tony, encontrei um grupo de pessoas agachadas no chão, em volta de um corpo jogado. Joguei minha bolsa no chão, em qualquer lugar.
- O que houve aqui? - Questionei Andrew que estava próximo.
- Ele tentou sair do hospital, mas não aguentou chegar até o final do corredor e caiu.
- Está acordado? - Perguntei me aproximando do homem deitado no chão.
- Não, e não conseguimos movê-lo sem piorar a situação, estamos esperando a maca.
Me agachei ao lado de Tony. O cheiro de álcool emanava dele. Não podia acreditar nisso. Olhei ao redor a tempo de ver o rótulo de uma bebida alcoólica qualquer jogada ao lado de onde Tony estava caído e dezenas de cacos de vidro da garrafa espalhados.
- Quem deu bebida a ele? – Perguntei alto e ríspida, olhando Tony desmaiado. Ninguém me respondeu. Ficaram me olhando assustados.
O homem estava imóvel e podíamos ver, por cima do abdômen, seu baço pulsar. Isso não é nada bom. Olhei furiosa para o médico de pé ao meu lado. Andrew passou dos limites dessa vez. Eu disse que não era superficial, eu disse que não devia tirar as estacas de ferro do abdômen sem os exames. Teria que aguentar Tony reclamando desse erro o resto da vida. Se ele sobreviver.
- Contente, Andrew? – Questionei-o com raiva. Não importava de quem se tratava. Um procedimento errado é uma vida em risco. E com a vida não tem brincadeira, não tem achismo, não tem despreparo. Andrew ficou estático, sem dizer nada. – Olha o que sua teimosia fez. Eu disse que não era superficial, eu avisei que precisaríamos de exames.
- Ele está bêbado, . Isso não quer dizer nada para você? – Andrew me perguntou envergonhado, tentando limpar sua barra.
- Desde quando álcool causa hemorragia? Olha só isso. – Apontei a região do baço do homem que estava bem inchada. Os furos de onde as estacas pegaram estavam abertos e havia muito sangue na região.
- Mas ele não podia ter bebido, só piorou a situação. – Andrew rebateu claramente nervoso. Nem me dei ao trabalho de olhá-lo mais.
- Você piorou a situação, Andrew. – Respondi seca. Andrew calou-se, passando as mãos pelos cabelos, em sinal de desespero. Sabia que aquilo seria sua condenação.
Peguei a pequena lanterna no bolso do meu jaleco e abri forçadamente os olhos do homem para analisar suas pupilas. Pouco dilatadas. Tony acordaria em breve. Movi sua cabeça levemente para o lado, observando o pequeno corte em sua testa aberto novamente.
- Preciso de um pano, rápido. ONDE ESTÁ A MACA? - Perguntei me desesperando. O baço de Tony parecia um ser vivo querendo sair.
Tony recuperava a consciência aos poucos. A droga da maca não vinha logo e o enfermeiro só conseguiu um pano com as moças da limpeza minutos depois do pedido. Segurei fortemente o pano sob os cortes abertos em cima do baço que pulsava. Você devia segurar um baço pulsante um dia. A adrenalina é... indescritível. Tony precisava ir para a cirurgia logo porque, ironicamente, ele estava perdendo sangue à quase 10 minutos no chão de um hospital. Respirei fundo tentando me acalmar, pressionando o quanto podia seu abdômen. A regata branca e grudada de Tony parecia apertar e já estava encharcada de sangue. Sem pensar duas vezes, rasguei a blusa com o maior cuidado e rapidez que podia ter para não machucá-lo ainda mais e voltei a estancar a hemorragia. Tony moveu-se incomodado.
- Isso foi sexy. - Ouvi o homem comentar baixo e rouco.
- Como se sente? Não se mova, por favor - Ignorei seu comentário, observando ao meu redor a aparição da maca. Tinha que me concentrar, pensar rápido. Não podia perder mais tempo.
- O que você acha? - Tony rebateu e riu cínico. Encarei o homem por alguns instantes e não disse mais nada. Conversar ali, com um bêbado, era a pior das opções.
Como um milagre, a maca apareceu. Mas, mover Tony dali foi o grande problema, na verdade. Cinco enfermeiros tiveram que levantá-lo e deitá-lo da maca, enquanto eu segurava o pano sob seu abdômen. Stark gritava de dor, como nunca antes havia visto. As opções que eu tinha eram: (i) abandonar o pano sob ele e correr para cirurgia, o que não parecia plausível, pois a hemorragia estava intensa. (ii) Correr ao lado da maca segurando o pano sob o homem, que não parecia plausível por motivos óbvios: eu certamente não conseguiria acompanhar a maca correndo e acabaria atrasando eles. Quando se estuda medicina, aprendemos que a tomada de decisão deve ser feita, no momento em que as coisas acontecem. Não há planejamento prévio e não há tempo para pensar nas consequências. Fazemos o que achamos que devemos fazer. E, assim, a opção (iii) foi a saída mais rápida que achei ao problema: subir na maca junto com Stark. Não sabia quem parecia mais assustado naquele momento, eu, Tony ou Andrew. Passei uma perna de cada lado do corpo de Tony e sentei sob suas coxas, tentando fazer o menor peso possível para não prejudicar os pontos que ele levou ali. Segurei o pano sob seu abdômen com força, pressionando para baixo, na tentativa de conter a hemorragia até chegarmos à cirurgia. A maca movia-se rápido e eu rezei para aquilo acabar logo.
- Você está muito ousada hoje. - Tony comentou com dificuldade, entre gemidos de dor conforme a maca era empurrada para dentro do elevador. - Tirou minha roupa, sentou em cima de mim... - Stark completou depois que a porta do elevador fechou. Senti meu rosto queimar e todos os enfermeiros me olharam querendo rir. Andrew estava de cara fechada.
- Não acho que seja uma boa hora para isso. - Comentei baixo com Tony.
- Então vai ter uma hora para isso? - Stark questionou-me de volta. Revirei os olhos.
- Quanto menos você falar, menos seu abdômen mexe, menos sangue sai, menos dor você sente, menor sua chance de morrer. Consegue entender? E você vai ter muito que falar depois da cirurgia. - Respondi claramente nervosa. Tony ficou em silêncio por poucos minutos, até sairmos no elevador e chegarmos à sala de cirurgia.
- Você está de pijama? - Bufei ao ouvir a voz de Tony novamente. Pressionei com mais força seu baço e o homem gemeu.
- Você resolveu fazer uma fuga infantil às 3 horas da manhã. - Respondi o encarando. Tony tossiu.
- Infantil é seu pijama dos ursinhos carinhosos... e velho também, cruzes. Vá se trocar para a cirurgia, não consigo te levar a sério assim. - O homem comentou e os enfermeiros riram ao meu redor. Não acredito que ele falou mal dos meus pijamas. – O urso azul é meu favorito. E o seu?
Antes que pudesse falar qualquer coisa, chegamos rapidamente na sala de cirurgia, onde Carmem já estava com tudo pronto.
- Nunca vi isso antes na minha vida. - Carmem comentou observando a cena, assim que chegamos. – Desça daí agora, .
Desci de cima da maca e os enfermeiros colocaram Tony na mesa de cirurgia, com o maior cuidado que podiam. Coloquei minha máscara, me preparando para sedar Tony que me olhava cuidadosamente. Parecia assustado e muito cansado. Seus olhos estavam fundos.
- Desculpa. – Tony sussurrou ainda me encarando. Custei em aceitar que ele estava se desculpando comigo, talvez porque não esperava por aquilo, talvez porque ele estivesse bêbado.
- Vai dar tudo certo, vou fazer o que puder para tirar você dessa. – Sussurrei de volta para que apenas ele me ouvisse. Andrew foi impedido de entrar na cirurgia e teve que ir prestar depoimento do ocorrido à Carmem. Os dois enfermeiros que me acompanhariam na cirurgia lavavam as mãos.
Tony sorriu com dificuldade, se deixando levar pelo medicamento que o sedava. Respirei fundo deixando-me levar pela empatia de cuidar dele como se cuidasse da minha própria vida.
Nosso trabalho começou novamente.
Capítulo 3 - PART III
Nova York, 15 de Dezembro
14:35 p. m.
Dez dias depois da tentativa de fuga de Tony, pouca coisa havia mudado. Seu estado de saúde progrediu rapidamente, seus pontos da coxa puderam ser finalmente tirados e seus cortes estavam bem sequinhos, já. Stark não se pronunciou sobre a bebedeira ou a fuga, não quis dizer por que quase se matou. Carmen parecia saber de mais coisas do que eu, a médica dele, sabia. Andrew levou um triplo esporro pelo seu erro médico: meu, de Carmem e – o pior – de Tony que acabou com qualquer fio de moral que ele tinha e proibiu Andrew de entrar no quarto dele, alegando que Andrew não estava preparado para ser um médico cirúrgico e que o processaria caso voltasse a atender Stark. Tony preferia morrer a ser atendido por Andrew. Um exagero sem fim que resultou em mais plantões para mim, isso é, em mais noites sem dormir, sem comer direito e mais trabalho a fazer. Com Andrew fora do caso, eu assumi sozinha. Tive que delatar o erro de Andrew à comissão de ética do hospital, como Carmem me orientou, e seu emprego estava em risco depois das reclamações de Stark à diretoria do hospital. Andrew me evitava nos corredores e dizia coisas sem sentido sobre mim para outros funcionários.
Ele estava com raiva.
Para minha total felicidade, Carmem não permitiu que Stark se recuperasse em casa, e ele ainda estava no mesmo quarto de hospital, reclamando da comida e de não ter tv à cabo. Estranhamente, nesse meio tempo e comigo passando mais tempo com ele, Tony passou a ser um pouco menos grosso comigo. Fazia perguntas sobre o hospital, sobre os investimentos que recebíamos nele, sobre nossos salários e quantas pessoas atendíamos por dia. Também me questionou sobre minha vida, minha formação, meus pais, onde eu já havia trabalhado. E bom, como uma conversa é feita de duas ou mais pessoas, me sentia cada vez mais confortável para perguntar coisas a ele também. Entre uma troca de curativo e outra, uma janta ou um exame de checagem, descobria sobre sua história, sobre a tragédia com sua família, sobre as indústrias Stark, sobre a ex-namorada, Pepper, que desistiu dele depois de anos. Começava a enxergá-lo de um jeito diferente. Começava a entender seu ponto de vista e aos poucos tinha cada vez com menos raiva ou mágoa dele. Tony parecia um homem solitário e um pouco triste, apesar de se esforçar para não transparecer qualquer sentimento de fraqueza. Seu jeito arrogante e metido afastava as pessoas de si. Aos poucos e com muito contato, comecei a entrar na vida de Tony, a tentar ajudá-lo com os problemas que me contava e a fazer o que tinha em meu alcance para que ele se recuperasse logo.
Passei noites e mais noites a fio no hospital, dormindo na poltrona ao lado da cama dele, enquanto conversávamos ou com o pager ao meu lado, na sala de soneca, para caso ele, Anne ou Louis precisassem de mim. Meus três pacientes dos últimos tempos viraram o trabalho da minha vida.
Todos os dias Tony e eu saíamos para caminhar pelo hospital, três vezes ao dia, como parte de sua fisioterapia assistida. Na terça, apresentei Tony a Louis, que parecia uma múmia de tantos curativos envoltos nas suas queimaduras já em recuperação. O homem agradeceu-lhe imensamente e incansavelmente. Tony sentiu-se vitorioso e eu apenas observei da porta do quarto.
Essa cena quebrou ainda minhas pernas e comecei a me questionar sobre o real motivo de ter odiado tanto ele um dia.
Na quarta, pedi que ele visitasse a menina de um ano, pois seria seu último dia no hospital. Tony concordou e, mesmo não querendo assumir, pediu desculpas aos pais da menina pelo ocorrido. Os pais pareceram satisfeitos e tiveram uma conversa amigável com ele. Tony contou-lhes em detalhes exatamente o que eu havia perguntado no dia em que ele chegou aqui: o que tinha acontecido com ele.
Hoje, alguns de seus amigos vieram visitá-lo. Steve, Natasha, Clint, Benner e Thor. Deus (literalmente), como esse homem é bonito. Havia um garoto também, Peter, muito simpático e atencioso com as crianças do hospital, corria com elas pelos corredores. Foi o único que conversou comigo e descobri que ele morava aqui perto. Tony fez questão que eu ficasse no quarto, para apresentar-me seus amigos, porém achei que aquilo seria demais para mim. De qualquer forma, encontrei com eles nos corredores do hospital e já pareceu suficiente. Havia outras pessoas que precisavam de atenção. Teria que trocar todas as faixas de Louis, renovar os curativos de Anne e lavá-la para mais uma bateria de exames na coluna, sem contar a quantidade de pontos que teria que tirar de incontáveis pacientes.
Isso tudo me tomou o dia todo, o que foi bom, pois deu tempo e espaço para Tony ficar com seus amigos. Só consegui parar para respirar, às 20h, no jantar, depois de saber que Stark estava bem e jantando também, e que seus coleguinhas já tinham ido embora. Encontrei Allison, Andrew e Scott, minha equipe principal de cirurgia, no pequeno refeitório. Juntei-me a eles para comer. Desde a saída de Andrew do caso Stark e do fato de eu ter relatado seu erro ao diretor do hospital, tenho evitado qualquer contato com ele. A janta, contudo, pareceu tranquila e amigável. Depois de comermos, Andrew resolveu me acompanhar de volta à ala de cirurgias, onde eu buscaria minhas coisas para ir embora e ele visitaria um paciente antes dele dormir.
- Como vai com o Stark? – Andrew perguntou forçadamente, no caminho. Conhecia o homem o suficiente para saber que aquilo não acabaria bem.
- Melhor do que eu pensava. – Respondi simplesmente, dando de ombros.
- Fiquei sabendo que Tony quer apenas você atendendo ele. – Andrew comentou divertido. Já podia imaginar onde essa ladainha ia dar.
- Ficou sabendo ou você está inventando essa história também? Estou sabendo das coisas que anda dizendo sobre mim por aí. – Questionei parando no meio do corredor. Andrew riu cínico.
- Estou dizendo a verdade. Aposto que está tratando ele de um jeito especial... - O homem começou irritantemente.
A questão é que Andrew nunca superou o término e nosso namoro, há 3 anos. Fomos noivos por alguns meses e eu simplesmente não podia mais. Conheci Andrew na faculdade, quando fazíamos medicina juntos. Tínhamos ideais parecidos, queríamos trabalhar com a mesma coisa e ele sempre foi um cara muito bonito, amável e carinhoso comigo. Esteve ao meu lado quando meu irmão morreu, como um amigo que segurou minha queda. Mas Andrew nunca foi para mim mais do que um bom amigo. Não queria mais me relacionar com ninguém, não estava pronta para casar e não seria justo com ele continuar aquilo. Terminamos no dia que saímos para comprar um apartamento. Uma briga feia, um coração partido e duas pessoas que estavam livres para viverem suas vidas, agora. Desde então, ele é um babaca comigo. Fez questão de vir trabalhar no mesmo hospital que eu e de estar por perto sempre que podia. Se queria me proteger ou me sufocar, eu não sabia. Respirei fundo.
- Andrew, não comece, por favor. – Pedi pacientemente em vão.
Puxei meu braço das mãos dele e dei um passo para trás, me afastando. Tony aproximou-se da pequena confusão. Andrew estava na minha frente, me encarando como se eu fosse uma criminosa. Naquele momento, tive medo dele fazer alguma coisa comigo.
- Esse seu ciúme é doentio. Você tem que se tratar e seguir sua vida. – Falei tentando me acalmar, olhando-o nos olhos. – E o que aconteceu aqui não tem nada a ver com o que aconteceu entre a gente. Eu sempre te disse que trabalharmos juntos não daria certo.
Tony arqueou a sobrancelha intrigado. Será que ele tinha entendido direito o que estava acontecendo ali? Continuou próximo a mim e Andrew, apenas nos olhando, em silêncio.
- Como acha que vou seguir minha vida se você está estragando ela? – Andrew me questionou, dando um passo mais perto de mim. Aquilo era chato demais.
Senti meus olhos marejarem. Odiava que falassem de meu irmão. Ainda mais dessa forma. Parei de encarar Andrew para olhar Tony. O homem não devolveu meu olhar. Continuou olhando para um ponto fixo em sua frente, de cabeça erguida. Parecia envergonhado, triste e sem coragem de me olhar de volta. Meu coração aceitava que Charles havia morrido em um acidente e que, naquele dia, não tinha nada que ninguém pudesse ter feito por ele. Não tinha ninguém que eu pudesse culpar, porque não havia um culpado. Charles estava lá, no dia e na hora errada, e eu precisei de anos de ódio e de conhecer e cuidar de um dos acusados para perceber isso. Uma lágrima rolava em meu rosto, enquanto ainda encava Tony, que parecia abatido. Estava quieto e seu corpo tenso. Respirei fundo segurando todo o choro que queria sair descontroladamente e me voltei a Andrew. Sem pensar duas vezes, dei o tapa mais forte da minha vida bem no meio de sua cara. O homem cambaleou para trás, mas manteve-se em pé, e voltou a me olhar com raiva enquanto checava se nada mais grave havia acontecido com seu rosto.
- Você não sabe nada sobre o meu irmão e não tem o direito de falar sobre isso. – Respondi firme e paciente, olhando-o nos olhos.
O clima ali estava tenso e tínhamos uma grande plateia de pacientes e enfermeiros nos assistindo, perplexos. Andrew voltou a se aproximar de mim, mas antes que pudesse me encostar, Tony colocou-se na minha frente novamente.
- Ele matou seu irmão, , ele matou Charles. – Andrew urrava incansável, vermelho e nervoso como nunca o havia visto antes.
Tony me olhou por cima dos ombros e sem que eu pudesse ter a chance de responder, socou Andrew no meio do rosto, bem onde eu havia batido minutos antes.
- Eu não matei ninguém, mas você pode ser o primeiro, se quiser. – Tony murmurou para Andrew que segurava seu nariz quebrado, olhando-nos com fúria.
Carmem puxou Andrew pelos ombros com força e em instantes o guiou até a enfermaria, onde receberia atendimento. Antes de sair, a mulher apontou com a cabeça para que eu ajudasse Tony, cujos cortes na mão direita abriram novamente com o soco. As pessoas se dispersaram do local rapidamente e ficamos eu e Stark no corredor, em silêncio. Respirei fundo, engoli a vergonha e o choro e caminhei com o homem de volta a seu quarto.
- Sinto muito por isso. – Comentei sincera, apoiando a bandeja ao lado do homem e pegando sua mão. Stark ainda estava sentado na cama e eu estava em pé de frente a ele, entre suas pernas, segurando sua mão direita. Retirei todos os curativos que estavam encharcados de sangue, um por um, com uma delicadeza extrema. Alguns machucados do dia do acidente estavam abertos de novo.
Ignorando-as, terminei de colocar os novos esparadrapos em silêncio. Tony nada mais disse também, apenas esperou que terminasse meu trabalho e me abraçou como se me protegesse de todo o mal do mundo. Me deixei ser abraçada por um tempo que não sei. Chorei tudo que meu coração pedia, lembrando-me de meu irmão e como ele nos deixou, repassando as coisas que Andrew havia me dito e me sentindo traída por ele, depois de todos os anos que passamos juntos. Nem eu, nem Tony tínhamos coragem de dizer alguma coisa.
- Andrew, você está se ouvindo? – Falei um pouco mais alto do que o normal. Não podia acreditar no que ele estava dizendo.
- Estou, claro que estou. Você não aguenta a verdade, ? Acha que ele quer você por perto porque confia em você? Por que você é uma grande médica? Ou será por que é um rosto bonitinho? Por que está acontecendo alguma coisa a mais? – O homem insistia. Àquela altura, sentia minha cabeça explodir e já havia me esquecido que estava no corredor de um hospital.
- Andrew, por favor, não faça isso comigo. Não seja injusto. – Pedi cansada, olhando-o com uma mistura de raiva e mágoa. Depois de todos esses anos comigo, ele não tinha o direito de falar aquilo.
- Não fazer isso com você? , você me largou três anos atrás, me disse que não dava mais para relacionamentos. Nós íamos nos casar. E agora você me condena por um erro mísero em um cara que, até ontem, você queria morto. – Andrew soltou tudo em plenos pulmões, gesticulando com as mãos, furioso. – E pior, você está se envolvendo com o cara. Como você tem coragem?
- Eu não devo explicação a você. Não mereço ouvir as suas insinuações, os seus julgamentos. Quem sabe da minha vida sou eu, e você está fora dela há anos. – Disse perplexa pelo assunto, dando ele por encerrado. Virei-me de costas e sem ir muito longe, Andrew segurou meu braço e me puxou, me forçando a olhar para ele.
- VOCÊ DEVE, SIM! – Andrew gritou na minha cara, me assustando. Pude ver alguns pacientes saírem dos seus quartos, com a gritaria que se formou no corredor. A silhueta de Tony apareceu atrás de Andrew. Respirei fundo. Aquilo só iria piorar a situação.
- Deixa de ser imbecil. Cresce, Andrew, supere seu passado e me deixe em paz. Sabe por que eu terminei com você? Porque é um imbecil, babaca. E essa sua postura só confirma isso. – Soltei de uma vez, sentindo seus dedos apertarem ainda mais meu braço. Andrew parecia estar consumindo por ódio. – Me solte. ME SOLTE!
- Você comete seus próprios erros, você arca com as consequências. Eu te relatei, sim, porque estava no caso, também. Eu disse o que você devia ter feito e você não me ouviu. Fez por sua conta e risco. Arque sozinho com isso agora. Perdeu o caso e vai continuar perdendo enquanto for orgulhoso e idiota. – Me peguei soltando tudo que estava em minha mente, mais alto do que pensei. Andrew arregalou os olhos e veio em minha direção, cheio de raiva, mas, antes que ele pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, Stark se colocou entre nós.
- O que está acontecendo aqui? – Tony perguntou me olhando. Andrew soltou uma risada irônica alta, parando na frente de Tony, muito próximo a ele. Olhamos para ele.
- Olha só, se não é o senhor dono da razão. – Andrew ironizou. – O super-herói da América. O filhinho de papai bêbado que se acha Deus.
- Ele está bêbado? – Tony me perguntou baixinho, virando-se levemente até mim, ainda cara a cara com Andrew.
- Dr. Andrew, o super-herói da América é o Rogers, e sugiro que o senhor vá para casa, respirar um pouco e esvaziar a cabeça. Acho que está descontando suas frustrações nas pessoas erradas. – A voz séria de Carmem cortou o clima silencioso que havia se instalado. Andrew olhou para ela com desprezo e voltou a me encarrar, me escondi um pouco mais atrás de Tony, que esticou levemente seu braço na minha frente.
- ELE MATOU SEU IRMÃO, . Não acredito nisso. Não acredito que você vai cair na conversa dele. – Andrew gritou essa, se dando por vencido. Passava as mãos pelos cabelos, desesperado. Sai de trás de Tony assim que ouvi o nome de meu irmão e encarei Andrew, frente a frente. – Charles morreu porque ele não conseguiu salvá-lo. O ataque era para ele e o outro do mesmo bando e seu irmão morreu no lugar deles. Você se lembra de como ele estava? Você se lembra que tentou falar com um deles e ninguém quis te receber? – Andrew apontava para Tony ao meu lado, todas as vezes que se referia a ele. Podia ver Stark pelo conto de olho. - Agora você está aqui, salvando a vida de um cara que não se importa com você e nem com ninguém. De um cara que não sabe o que fez com seu irmão, porque ele simplesmente não se importa.
Tony sentou-se na cama e esperou pacientemente até que eu arrumasse as coisas que precisaria para trocar seus curativos em uma pequena bandeja de alumínio. Entre busca ou preparar algum item, limpava minhas lágrimas em silêncio, que insistiam em cair.
- Não sinta, Andrew é um babaca. Não merece você. – Tony comentou quebrando o silêncio e me encarando. Sorri fraco, sem olhá-lo, sentindo lágrimas voltarem a escorrer pelo meu rosto.
Me sentindo mais calma, sai do quarto em completo silêncio para ir buscar minhas coisas e finalmente ir embora.
Pela primeira vez na vida, senti que gostava de um super-herói.
Pela primeira vez na vida, Tony se sentiu a pior pessoa desse mundo.
Capítulo 4 - PART IV
Nova York, 20 de Dezembro
19:20
Meu relógio marcava 19h20min quando estacionei meu carro em frente ao hospital. Estava com os plantões noturnos novamente, desde o ocorrido com Andrew e Stark, no corredor. A diretoria do hospital havia nos contatado, eu e Tony, para que contássemos nossa versão da história e eles pudessem avaliar uma punição a Andrew. Desci do carro apressada, por conta do frio. A rua estava completamente vazia e o único barulho que podia ouvir era o som de meus sapatos de salto batendo no asfalto. Corri até o saguão do hospital, tentando me proteger da geada que começava. O hospital estava incrivelmente bonito. A cinco dias do Natal, Carmem havia montado árvores enfeitadas por todos os cantos de dentro do local, com ajuda dos pacientes, e havia desenhos de natal das crianças colados pelas paredes. Bolas coloridas estavam penduradas no teto, bonecos de neve e renas estavam delicadamente postos nos cantos do hospital. Em um canto da recepção, havia uma caixa bonita, vermelha e verde, onde todos os pacientes puderam escrever uma carta para o Papai Noel. Todos os anos, sorteávamos dez cartinhas e fazíamos o possível para realizar os pedidos. Pelos corredores haviam pisca-piscas colados nas paredes e nas portas dos quartos, flocos de neve de papel brilhante. Sorri sozinha observando todo o caminho até meu armário, onde deixaria minhas coisas e pegaria meu jaleco limpo. Ao abrir o armário, sob minhas coisas, havia um pequeno envelope branco com meu nome escrito em uma letra fina e delicada. Franzi a testa ao ver o que tinha dentro.
Se me passar seu telefone, poderia te buscar em casa.
T. S.
Olhei para os dois lados do corredor, procurando pistas de quem havia deixado aquilo em meu armário, se era pegadinha ou real. Tony parecia mais infantil do que sua idade demonstrava. Sorri sozinha e guardei minhas coisas, finalmente, no armário e coloquei meu jaleco sem muita pressa. Me sentia uma menina de 13 anos sendo convidada para o primeiro encontro. Peguei a carta, coloquei no bolso do meu jaleco e fui sentido ao conhecido quarto 30.
Bati leve na porta e encontrei Tony sentado na cama, de bermudas e moletom do MIT. Já comentei o quão infantil ele é?
- Você está 22 minutos atrasada, doutora. – O homem comentou, observando o relógio na parede, ao lado na TV. Me aproximei da cama.
- Atrasada para o quê? – Perguntei confusa.
- Para minha janta, claro. Vamos jantar em um lugar diferente hoje. – Tony levantou-se da cama e calçou seus chinelos, mais devagar do que ele gostaria. Ainda tinha certa dificuldade em se movimentar rápido e, embora não dissesse nunca, sentia dores. Cruzei os braços, me segurando para não sorrir.
- O que está acontecendo aqui? – Continuei perguntando, sem entender muita coisa.
- Estou te chamando para jantar, o que parece? – O homem disse como se fosse óbvio. Não consegui segurar minha risada. Tony sorriu.
- E se supostamente eu aceitasse, onde me levaria? Lembrando que você não pode sair do hospital. – Comentei dando passos curtos e leves para o lado. Tony se aproximou da porta.
- Para a cafeteria do hospital, claro. Eles têm ótimas panquecas. Vamos? – Tony abriu a porta do quarto, esperando que passasse por ela. Encostei-me na bancada, longe da porta.
- Como sabe que eles têm ótimas panquecas? – Perguntei desconfiada. Até onde sabia, Tony não podia nem sair do quarto sozinho.
- Digamos que tenho meus contatos para conseguir comida, que não é aquilo que você costuma me trazer para comer quando é seu dia de plantão. – Tony respondeu rápido, arqueando as sobrancelhas. Franzi o cenho. Claro, isso só podia ser obra da...
- Carmem, né? Vocês dois são terríveis. – Rebati entendendo o esquema de Carmem em levar comida da cafeteria para Stark. Ela estaria encrencada se alguém descobrisse. Não se pode dar panquecas para pacientes em tratamento, cuja dieta é rígida para que a recuperação seja rápida e eficiente. Carmem é mesmo um ser humano indiscutível.
- Podemos discutir isso enquanto caminhamos até a cafeteria? Não sei você, mas eu estou com muita fome. – Stark insistiu ainda com a porta aberta. Não me movi.
- Eu não sei, estou na minha hora de trabalho. – Disse manhosa, porém com razão. Não poderia jantar antes de checar se todos meus pacientes estavam bem. Tony revirou os olhos.
- Você estará trabalhando, cuidando de mim enquanto janto, posso engasgar. – Tony comentou, já saindo do quarto. - Você é muito manhosa, sabia? Ande logo.
Caminhei até a porta fechando-a atrás de mim. Me coloquei ao lado de Tony e fomos caminhando lentamente até o andar de baixo. Fomos em silêncio por alguns minutos. Tony mantinha as mãos nos bolsos da bermuda e eu caminhava observando cada passo dele. A medicina é mesmo fantástica. Quem diria que iriamos conseguir recuperar Stark de um estrago daqueles? Em tão pouco tempo? Quase um mês de fisioterapia, exercícios constantes e medicação adequada e lá estava ele, caminhando como se nada tivesse acontecido. E quem diria que conseguiriam me recuperar de um estragado daqueles? Em tão pouco tempo? Me tratando psicologicamente com Tony Stark, o mesquinho, bilionário, sem mesmo que ele saiba disso. Minha medicação diária era entender que Charlie não tinha sido morto por ninguém, minha fisioterapia era me esforçar para entender o lado de Tony. Mesmo forçados, estivemos nos ajudando. Só me dei conta disso, caminhando no corredor do hospital em um dos dias mais frios do ano, ao lado do homem mais frio do mundo.
- Como está se sentindo? – Perguntei no caminho, quebrando o silêncio e observando suas pernas. Não estavam mais inchadas e os curativos pareciam secos.
- Estou bem, o babaca do médico da manhã tirou meus pontos hoje. Achei que minha pele sairia junto. – Tony comentou, torcendo o nariz e eu ri.
- Zack é um bom médico, ele só não tem muita paciência com pessoas como... Você. – expliquei cuidadosa. Tony fingiu-se ofendido.
- Pelo jeito nenhum médico desse hospital é muito paciente, não? – Ri baixo outra vez. Tony é todo engraçadinho.
- Me desculpa por não ser muito simpática desde o começo. É o que a mágoa faz com a gente... Nos deixa cegos. – Disse olhando meus pés, um pouco envergonhada, um pouco contrariada. – Mas, em minha defesa, você também não foi nada simpático quando chegou aqui.
- Como não? Logo eu, o senhor simpatia. – Tony comentou me olhando afetado. Tive que rir da ironia. Foi irônico, não foi?
- “Quanto você quer para chamar meu médico aqui”, não é bem a coisa mais simpática que se diz para alguém. – Respondi sincera, lembrando do dia em ele apareceu no hospital. Tony bateu seu ombro no meu, levemente e riu baixo.
- Sinto muito por isso, não estava no meu melhor dia. – Ele responde me olhando de soslaio. Sorri de volta, consentindo com a cabeça.
- Tudo bem, acho que nós dois não estávamos nos nossos melhores dias. Sinto muito também... Por tudo. – comentei o mais sincera possível.
Podíamos ouvir o som de meus sapatos batendo no chão e nossa conversa baixa apenas. Os corredores estavam praticamente vazios, vez ou outra encontrávamos algum médico ou enfermeiro. Tony pegou em minha mão, enquanto ainda andávamos.
- Já não lembro mais disso, não se preocupe comigo. – O homem comentou com firmeza. Parei por um instante e o encarei. Tony parou também e levantou as sobrancelhas. – É brincadeira.
- Você é muito arrogante, sabia? – Comentei descontraída, voltando a andar. Nossas mãos ainda estavam juntas.
- É o que andam dizendo de mim? Eles têm razão. – Tony falou divertido. Sorri para ele.
À nossa frente, uma pequena rampa em direção à recepção do hospital apareceu. Tony segurou minha mão com um pouco mais de força enquanto descia, lentamente. Sabia que ainda doía, talvez não tivesse sido uma boa ideia ter vindo por esse caminho. Alguns minutos depois, Tony pediu para pararmos um instante para que pudesse descansar as pernas alguns minutos.
Fiquei encarando o homem à minha frente que, mesmo machucado, parecia muito bonito.
Um daqueles que você certamente toparia perder algumas horas. Ou alguns dias. Tony tinha fama de galanteador, sempre aparecia na televisão com mulheres bonitas, modelos, 50 anos mais novas do que ele, com roupas justas e maquiagem pesada. Antes achava que estavam interessadas apenas em seus milhões de dólares, nos eventos que ia e em seu clube de amigos gatos-malhados-com-super-poderes. Hoje, vejo que o charme também é um fator a ser considerado. Os machucados em seu rosto haviam sumido e os de suas mãos estavam quase desaparecendo. Tenho certeza que se fosse em outra situação eu...
- Sei que sou irresistível, mas vai ficar me olhando assim até quando? – Meus pensamentos foram cortados por sua voz. Senti minhas bochechas queimarem. Tony apenas riu e apontou para a pequena caixa no canto da recepção, para me deixar menos constrangida do que já estava. - O que é aquilo?
- Uma caixa com cartinhas de Natal. Todos os anos, os pacientes que passam o natal aqui escrevem cartas para o Papai Noel com pedidos que gostariam que fossem realizados.
- E vocês os realizam? – Tony perguntou ingenuamente, aproximando-se da caixa e fuçando nas cartas.
- Nós não temos recursos para atender a todos pedidos, então selecionamos apenas dez deles e fazemos o possível. As cartas das crianças são sempre preferenciais. – Comentei dando de ombros. Tony pareceu curioso em ler as coisas que as pessoas pediram.
- Não há a possibilidade de o governo ou a SHIELD enviar dinheiro extra para isso? – Me questionou incomodado.
- Eles não se importam com isso, não é mesmo? Dizem que já é caro o suficiente manter o hospital em funcionamento e que não têm retorno financeiro com isso. – Expliquei sem mais detalhes para o homem que revirou os olhos.
- Idiotas. – Tony comentou baixinho, devolvendo as cartas à caixa. Deviam ter 15 ou 20 cartas no máximo. Suspirei.
- E temos outros problemas: há pedidos que não podemos resolver de jeito nenhum. Pessoas que pedem para melhorar, para sair do hospital ou pedem órgãos para transplante. Anne pediu por pernas novas. Está completamente fora de nosso alcance. – Disse um pouco chateada. A maioria dos pedidos envolvia melhoras médicas e não tínhamos realmente o que fazer. Impotência é um dos piores sentimentos que um ser humano pode ter.
Tony ficou em silêncio, pensativo, até chegarmos à cafeteria que, por sorte, estava vazia.
Sem que pudesse ter tempo de pensar no que queria, Tony pediu panquecas para ele e para mim e dois cafés. Sentamos em uma mesa perto da grande janela – que mais parecia uma parede de vidro – da cafeteria. Dali, podíamos ver a noite calma e fria lá fora. Os minutos que se seguiram foram de silêncio e observação da rua. Alguns floquinhos de neve caíam lentamente ao chão e as luzes dos prédios à frente misturavam-se com os pisca-piscas das casas. Sorri sozinha. Amava aquela época do ano.
- Eu sinto muito por seu irmão. – Tony comentou calmo, cortando meus pensamentos outra vez. Desviei meu olhar da rua para o homem, que continuou olhando para fora da janela. Estava surpresa. Anthony Stark pedindo desculpas? De novo?
- Tudo bem, eu acho que... Devia ter aceitado o que aconteceu de outra forma. Não deveria descontar em você. – Soltei docemente, escolhendo as palavras. Tony finalmente olhou para mim e sorriu leve. – Jogar a culpa nos outros é sempre mais fácil, não é?
- Eu não sabia o que dizer aquele dia que o Andrew... – Stark não terminou a frase. Desviou seu olhar para suas mãos em cima da mesa. – Eu não sabia que você e o idiota do Andrew tinham... Um caso.
- A gente terminou faz alguns anos, ele não soube lidar com isso. – Suspirei pesadamente. – Ele não tinha o direito de dizer aquelas coisa. Peço desculpas por ele ter te acusado daquela forma, você não tinha nada a ver com aquilo.
- A culpa foi minha. Eu deveria ter feito alguma coisa. Tenho pensado nisso todos os dias... Em como eu posso conviver com você, te olhar todos os dias, deixar que você cuide de mim quando eu nem sequer me lembro do que aconteceu no dia do acidente que matou seu irmão. Eu deveria ter feito alguma coisa, eu não sei por que não fiz, eu...
- TONY, para! – Cortei ele, pegando uma de suas mãos por cima da mesa. – Tenho certeza que você tentou fazer tudo o que podia. Aquilo estava na história de Charlie, como isso tudo que aconteceu com você está na sua história. Já foi, passou, tenho superado isso a cada dia e você não teve culpa. Não para mim mais.
Respirei fundo, olhando o homem sentado à minha frente bem no fundo dos olhos. Tony sustentou o olhar e apertou levemente minha mão. Ele parecia sério, pensativo, mas sua expressão estava mais aliviada do que nos dias que se seguiram depois do ocorrido com o Andrew. Ele tinha que se sentir perdoado. Eu tinha que perdoá-lo de uma vez por todas.
Alguma coisa dentro me mim confiava em Tony com todas as forças. Alguma coisa nele me fazia quere entendê-lo. Mantivemo-nos em silêncio absoluto, observando um ao outro, por alguns minutos antes dele se pronunciar novamente.
- Eu não sou a melhor pessoa do mundo, você sabe. Mas não conte isso a ninguém. – Tony comentou tentando tirar o clima sério que havia se instalado e eu ri leve do cinismo. – Tentamos fazer o que está em nosso alcance e nos cobramos de salvar o mundo todas às vezes, mas... Às vezes isso não é possível. Você mais do que ninguém sabe como é.
- Ninguém mandou termos profissões tão difíceis. – Comentei observando Chloe, da cafeteria, finalmente trazer nossos pedidos e colocá-los na mesa.
Segurei minha xícara de café com as duas mãos, bebericando aos poucos para não me queimar. O silêncio se instalou novamente entre nós. Dividimos nossa atenção entre comer panquecas e olhar através da janela. Não podia me lembrar da última vez que me sentia assim: calma, acolhida, realmente feliz. Apesar das brigas e discussões, me sentia bem na companhia de Stark. E ele parecia abaixar a guarda quando estava comigo.
Tony ficou pensativo o caminho todo de volta ao quarto dele.
- Esse é o quarto de Anne. – Comentei apontando à porta fechada que passávamos. Tony observou o número. – Talvez você devesse fazer uma visita a ela uma hora dessas. Acho que ela gostaria de conversar com você.
- Acho que ela gostaria de me matar, se possível. – Tony disse simplesmente.
- Acho que você pode mudar isso nela, como mudou em mim. – Confessei olhando-o de lado. Tony sorriu olhando o chão. Aproximamo-nos de seu quarto. Tony abriu a porta para entrar e virou-se para mim.
- Senhorita, muito obrigado pela janta. Você estava linda e gentil, e comeu as panquecas como um urso. – Tony fez um reverencia exagerada. Eu apenas ri.
- Antes de eu te deixar descansar... – Comecei retirando o pequeno papel do bolso de meu jaleco. – Eu vim aqui hoje, na verdade, para falar sobre isso. O que é isso?
Tony pegou o papel de minha mão, observando-o.
- Um convite meu para passar o ano novo com você? – O homem perguntou de volta. Revirei os olhos.
- Você sabe que está passando do limite entre paciente e médico, não sabe?
- Sei, mas daqui cinco dias não seremos mais paciente e médica, seremos eu e você, duas pessoas normais que vão à uma festa juntas. – Tony comentou simplificando a coisa para que eu pudesse entender. Senti meu estômago revirar. Isso era um convite formal para algo como um encontro? Aproximei-me dele para que pudesse falar mais baixo. Teria problemas com meus supervisores se alguém achasse que ali tinha algo a mais do que profissionalismo. Enquanto ele estivesse no hospital, isso definitivamente não poderia acontecer.
- Eu não estou disponível para você, Tony, sinto muito. – Sussurrei. Tony aproximou-se ainda mais de mim, sussurrando também.
- E quem disse que quero que esteja disponível pra mim?
- Não é o que parece. – Retruquei. Tony bufou.
- Você é muito convencida
- Você é muito egocêntrico.
- Isso não é novidade. – Tony sorriu forçadamente. Revirei os olhos.
- Desiste, Stark. – Falei olhando-o nos olhos.
- O que há de mais nisso? É só uma festa. – O homem questionou gesticulando com as mãos.
- Na casa de um paciente que costuma voar e explodir coisas. Além de ser antiético, é perigoso.
- Se tem um lugar em que você não deve ter medo, é em uma casa cheia de super-heróis. – Tony falou ainda mais perto. Podia sentir sua respiração bater em meu rosto. – Deixe de ser orgulhosa.
- Falou o cara mais orgulhoso do mundo. – Soltei irônica. E lá vinha outra briga.
- Sei que você tem seus motivos para não gostar de mim, mas eu quero que você vá. Você cuidou de mim por quase um mês inteiro e tudo que fizemos foi discordar, brigar e discutir. Eu te dei várias patadas e fui grosso diversas vezes. E, mesmo depois de tudo isso, você ainda vinha me ver. Sei que nos últimos dias você entrava no meu quarto de madrugada, enquanto eu dormia, para saber se eu estava bem, sei que Andrew falou muitas coisas ruins sobre mim para você a vida toda, sei que você chora no banheiro quando uma cirurgia dá errada. Sei que gosta de Ben&Jerrys, que não sabe andar de bicicleta e que não gosta de falar do seu irmão. Eu sei de você porque enquanto está longe de mim, fico desejando que esteja perto. Fico perguntando sobre você para os outros médicos, para Carmem. Você veio com o pijama mais velho que já vi na vida, dos ursinhos carinhosos, me socorrer em uma madrugada que estava de folga, que não tinha obrigação nenhum de vir. Você se importa comigo. E eu quero que me dê à chance de mostrar que eu me importo com você, que te acho uma médica incrível, mesmo me atendendo de pijama, e que confio no seu trabalho. Que confio em você. Não quero que pense que as coisas que Andrew disse sobre mim são verdade. Só engole esse orgulho que já me cansou e me dê uma chance de fazer por você, o que você faz por mim.
Tony soltou tudo aquilo de uma vez, em um sussurro, me encarando. Fiquei tão extasiada que não tive a coragem de responder. E se aquilo havia me assustado de um jeito estranho, o que veio a seguir foi ainda pior... Ou melhor. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, Stark simplesmente me beijou. No meio do corredor pouco iluminado e frio do hospital, Tony me beijou. De um jeito calmo e preciso. Como se já houvéssemos feito aquilo antes, como se já nos conhecêssemos. Suas mãos pausaram em minha cintura e costas e ali ficaram por dois ou três minutos, até eu empurrá-lo delicadamente para trás.
- Tony, eu vou me ferrar por causa disso, eu não...
- Ninguém está vendo. – Stark comentou baixinho, sem soltar meu corpo do seu.
- Não diga isso a ninguém. – Sussurrei.
- Não digo se você não disser nada sobre eu ter me declarado no meio do corredor de um hospital. – Tony respondeu rápido e eu ri.
- Você é...
- Maravilho, eu sei. – Tony me cortou de novo. – Te busco às 20 horas, esteja pronta.
- Tudo bem, seja pontual. – Respondi rápido antes de ser cortada por outro beijo e ser puxada para dentro do quarto. Tony trancou a porta e o que aconteceu, bom, você já sabe. Ou imagina. Roupas para lá e para cá, beijos para lá e para cá e mais uma maca de hospital quebrada ‘sem explicação’ oficial.
Talvez aquilo fosse demais para mim.
Mas a merda já estava feita.
Capítulo 5 - PART V
Nova York, 25 de Dezembro
Feliz Natal
17:00 p.m.
Como já era previsível, fui suspensa do hospital por cinco dias por má conduta no trabalho e tive que pagar uma maca nova também.
A suspenção ocorreu na manhã seguinte ao beijo-e-outras-coisas-com-o-homem-de-ferro, isto é, no final do meu plantão daquele dia. A questão é que dormi no quarto do meu paciente na hora de trabalho e, como sorte é algo raro nessa vida, Andrew me viu saindo de madrugada, amassada, descabelada e calçando meus sapatos às pressas. O homem não me disse nada, mas até onde Carmem me contou, ele abriu um processo na supervisão de ética do trabalho no hospital, alegando que “alguns dos funcionários estavam utilizando-se de sua posição hierárquica para seduzir e se aproveitar de pacientes em estado de vulnerabilidade” e, junto com esse absurdo, vídeos das câmeras de segurança do hospital foram entregues, com imagens minhas e de Tony andando pelos corredores durante todo o mês, a briga no corredor, jantando na cafeteria, nos beijando e eu entrando no quarto dele, saindo 5 horas depois.
5 horas depois.
Não sabemos como Andrew conseguiu essas imagens tão rápido. A comissão achou a denúncia de Andrew pertinente e válida aos protocolos de ética no trabalho do hospital. E, assim, fui suspensa. Allison me disse, por telefone, que Stark foi pedir satisfação a Andrew, quando soube o que havia ocorrido, e acabaram travando uma discussão que virou outra briga. Andrew teve seu nariz quebrado pela segunda vez no mês e agora estava de licença médica. Não contente, Tony seria claramente processado por isso. Mas nada que algum dos melhores advogados do mundo não pudesse ocultar. Tony havia me mandado uma única mensagem perguntando se eu estava bem e eu respondi um simples ‘sim’. Essa aproximação não era comum para mim.
Cinco dias depois, voltar ao trabalho seria a grande fofoca do dia.
Carmem estava me esperando na porta do hospital e parecia muito mais feliz do que o normal. Corri para abraçá-la.
- Você parece tão feliz, o que houve? – Questionei divertida vendo a mulher rir alto.
- Primeiro, fico feliz em ter você de volta. Não sabe a falta que faz nesse hospital. Segundo, não quero comentar sobre você e o Stark e terceiro: olha só tudo isso. – Carmem disse divertida e um pouco ansiosa, dando espaço para que eu entrasse na recepção do hospital. De baixo de todas as árvores de natal que Carmem havia montado, havia pilhas e mais pilhas de presentes, de tamanhos variados, todos embrulhados em embalagens coloridas, com laços e cartões. Havia caixas e pacotes por todos os lados, como nunca antes havíamos visto naquele hospital. Senti uma alegria enorme me invadir e, não contente em soltar gritinhos, abracei Carmem de novo, que apenas riu.
- Isso é incrível, Carmem! De onde veio tudo isso? – Perguntei animada, deixando minha bolsa com a moça da recepção. Naquele dia não tínhamos que usar jalecos ou roupas brancas. O único dia no ano que estávamos ali como pessoas comuns, como uma família. Nossa festinha de Natal, simples, porém carinhosa, seria comemorada por todos: médicos, enfermeiros, recepcionistas, pessoal da limpeza e da cozinha, pacientes e seus familiares mais próximos. Estava realmente feliz, não podia parar de sorrir.
- Stark. – Carmem me olhou significativa. - Ele tratou de comprar presentes para todos e, bom, ele atendeu os pedidos das cartinhas. Todos que seriam possíveis.
Olhei incrédula para a mulher ao meu lado, que continuava a sorrir. Carmem era uma pessoa naturalmente carrancuda, séria, extremamente profissional. Quase nunca sorria à toa, ou gargalhava ou ria daquele jeito. Não sei se estava feliz em vê-la feliz daquele jeito pela primeira vez, ou por tudo que estava acontecendo ali.
- Mas como ele pegou as cartas? – Perguntei pensativa.
- Allison o ajudou. Ela ficou observando ele enquanto você esteve suspensa. Ela levou as cartas de madrugada para ele ler e eles anotaram todos os pedidos e o nome do paciente.
- E quem foi comprar as coisas, embalar...? Como as coisas foram parar aqui sem que você visse antes? – Continuei intrigada. Carmem ria como uma criança boba.
- Tony recebeu uma visita de um homem, na terça-feira, Bruce, algo assim. Hoje pela manhã chegou um caminhão com todas as coisas, dizendo que era uma entrega para nós. - Carmem explicava animada. – Acreditamos que foi esse homem que viabilizou tudo.
- E Tony, o que disse? – Observei ao redor tentando contar, por cima, quantos pacotes havia ali, sem sucesso.
- Não disse nada, apenas acompanhou a entrega dos presentes observando de longe. Parecia satisfeito e feliz. Bruce trouxe um pacote agora pouco, grande, e foi levá-lo a Stark.
- O que é? – Olhei a mulher a minha frente que balançou a cabeça em direção ao corredor que abria caminho rumo aos quartos de internação.
- Vá ver Anne, querida. Vá. – Carmem disse simplesmente e eu, sem pensar duas vezes, corri para o andar de cima. Não podia ser.
Para minha completa surpresa, o quarto de Anne parecia movimentado. Do corredor podíamos ouvir risadas e pessoas conversando animadas. Abri a porta do quarto lentamente e Anne, como um milagre, levantou-se da poltrona que estava sentada e andou com cuidado, desajeitada, para me abraçar. Ela usava um vestido amarelo clarinho e sapatilhas douradas. Tinha um arco de pérolas nos cabelos e pulseiras coloridas. Parecia uma boneca. Ajoelhei no chão ao ver a menina andando e esperei pacientemente por ela. Não pude conter minhas lágrimas. Depois de tudo que fizemos para salvá-la, para tentar fazer com que ela andasse novamente, aquilo era a coisa mais linda que poderia ter acontecido. Anne sorria e, mesmo tendo muitas dificuldades em caminhar, escorando-se na parede, móveis e nos pais para chegar até onde eu estava, mostrava-se feliz. A menina me abraçou com força e sussurrou ‘obrigada’, sem parar. Os pais de Anne, também no quarto, choraram observando a cena e junto a eles, Tony e seu amigo, Bruce, sorriam.
- Você está linda, querida. Como está se sentindo? – Perguntei a Anne afastando-a de mim para poder observar suas pernas. Estrutura de metal tingido de branco davam sustentação em suas pernas, cintura e costas. Anne tinha os movimentos das pernas perfeitos com as estruturas que se encaixavam perfeitamente em seu corpo. Milimetricamente feito para ela. Aquilo estava muito além do que nosso hospital poderia fazer. Do que nós, médicos, podíamos fazer.
- Estou muito bem, tia . Olhe minhas novas pernas. – Anne disse dando uma volta ao meu redor. Enxuguei minhas lágrimas e ri leve ao perceber que a menina estava tentando desfilar.
- Elas são realmente lindas, meu amor. – Respondi carinhosa, ainda agachada no chão. Anne parou em minha frente de novo.
- Senhor Stark disse que você conversou com o Papai Noel sobre minha cartinha e que o Papai Noel só precisava de dinheiro, na verdade, para poder fazer pernas novas para mim. Então, senhor Stark emprestou um dinheiro pra ele e o Papai Noel contratou o senhor Banner para ajudar ele. E os três fizeram essas pernas novinhas só para mim.
Anne contou toda a história que, provavelmente, Tony havia inventado. Olhei Tony encostado na parede perto da janela, com as mãos no bolso, meio sem jeito, enquanto Anne falava e o homem apenas acenou com a cabeça para mim.
- Senhor Stark disse que podemos colar adesivos no metal se quisermos e que agora eu sou a menina de ferro. – Anne comentou contente e correu, dentro de seus limites, até Tony, abraçando-o pela cintura. Stark pareceu ainda mais sem jeito e apenas deu uns tapinhas nas costas da menina, sorrindo.
- Você é uma super-heroína incrível, Anne. – Disse me levantando e observando a menina sorrir ainda mais. Os pais da menina se aproximaram de mim.
- Doutora , podemos conversar um minuto em particular? – A mulher perguntou-me e assenti com a cabeça. Sai do quarto com o casal atrás de mim e encostei a porta.
- Nós gostaríamos de agradecê-la pelo que fez pela Anne. – A mulher começou, sem jeito.
- Por não ter desistido dela. – O pai continuou.
- E por ter comentado sobre o pedido dela com o senhor Stark. Ele nos disse que você disponibilizou os exames de Anne para ele e pediu que ele ajudasse, se pudesse.
- Muito obrigado, mesmo. Não sabemos como retribuir. – O pai completou. Sorri para o casal, mesmo sabendo da mentira que Tony havia contado a eles. Allison provavelmente havia desviado os exames de Anne para que Tony e Bruce pudessem fazer a prótese.
- Não há o que retribuir. – Comentei. – Meu presente é ver Anne andando de novo e vocês poderem seguir a vida como antes.
O casal me deu um breve abraço em conjunto e voltaram para dentro do quarto. Nate passava de porta em porta, pelo corredor, avisando que nossa ceia já iria começar e que todos deviam descer até o andar de baixo. Sem voltar ao quarto de Anne, desci para o saguão no hospital, empurrando Louis, que encontrei no caminho, em uma cadeira de rodas.
- Você parece ótimo, Louis. – Comentei animada e o homem sorriu de volta.
- Obrigado, Doutora. Estou animado para comer algo que não envolva sopa e gelatina. – Louis disse brincando e eu apenas ri, deixando sua cadeira próxima a uma árvore de natal onde sua filha brincava.
Tony e Bruce não demoraram a aparecer no saguão. Sentaram-se juntos e vez ou outra eram interrompidos por pessoas curiosas que queriam fotos com eles ou fazer algumas perguntas. A próxima hora se passou conforme todos nós, médicos e enfermeiros, ajudávamos as pessoas a pegar a comida e a comer. Não tivemos muito tempo de curtir a festinha, pois, querendo ou não, tínhamos trabalho a fazer. Fiquei de tempos em tempos em cada mesa, conversando com as famílias e meus pacientes e lembrando-os de tomarem seus remédios na hora certa. A boa médica chata, risos. Parei cinco minutinhos, encostada na parede em um canto, para comer um pedaço do panetone que a esposa de Louis havia feito. Observei Tony sentado com seu amigo - que, descobri mais tarde, oferecer certo risco ao hospital caso ele resolvesse ficar verde - e comerem juntos, conversando e rindo, como se estivessem em casa. Ele parecia bem melhor. Ainda carregava algumas cicatrizes e marquinhas nas mãos, braços e rosto. Já podia andar normalmente, embora as marcas em suas pernas fossem bem maiores e mais aparentes, afinal ele se fundiu com sua própria armadura. Ninguém esperava que se recuperasse sem sequelas. Modéstia parte, fiz um excelente trabalho.
Sorri sozinha, negando com a cabeça ao ver, sob a mesa em que eles estavam, uma garrafa de vinho que bebiam em copos de plástico. Stark é terrível. Excepcionalmente naquele dia, podia fazer vista grossa quanto a isso. Tony me olhou de volta, do outro lado do saguão, sorrindo discretamente antes de ter sua atenção cortada por uma moça da recepção que lhe disse algo breve e se afastou. Stark deu mais um gole no seu vinho e, segundos depois, pedia um momento da atenção de todos, colocando-se em pé no meio do saguão, com Bruce em seu alcance.
- Boa noite a todos, eu gostaria de dizer algumas palavras antes que comecemos com a parte legal do Natal. – Tony se pronunciou apontando os presentes, vendo as pessoas rirem. – Bom, eu dei entrada nesse hospital há quase um mês atrás. Contra minha vontade, é verdade, mas era o que tinha mais próximo de onde me acidentei com a possibilidade de me fazer cirurgias rápidas. Na verdade, não foi bem um acidente, fui atacado. Por dezenas de homens com bombas chatas que também atacaram a maioria de vocês. Naquele dia, como em muitos outros, eu não pude salvar todas as pessoas que precisavam de ajuda e sinto muito por isso. Eu falhei. Eu e meus amigos fizemos o possível e o impossível, mas nós falhamos. Minha armadura foi destroçada como se fosse feita de lego e fundiu nas minhas pernas como se fizesse parte de mim. E faz, vocês sabem. – As pessoas prestavam atenção como se suas vidas dependessem daquilo. Tony parecia sincero. - Bom, o que quero dizer hoje é que esse hospital me ajudou, me recuperou, trouxe minhas pernas de volta e não deixou com que eu morresse. Me deu a chance de conhecer pessoas que todos os dias fazem por nós muito mais do que fazemos por elas. Nesse tempo que estive aqui, pude caminhar por este lugar, ver os descascados do teto do meu quarto, ver os médicos se desdobrarem para conseguir equipamento e utensílios adequados para cada caso que chega e enfermeiros fazerem vaquinha para comprar presentes de natal para as crianças. Vi a comida se repetir três vezes na semana, por falta de opção e alguns jalecos com pequenos furos. Vi macas quebradas. – Tony olhou significativamente para mim, relembrando a maca que ele, ou nós, quebrou. Algumas pessoas deram risadas leves e eu queria me esconder dentro da parede. – E pedidos de remédios que demoram semanas para chegar. Isso está errado para mim. Hoje é minha última noite aqui. Quer dizer, se a Doutora assinar minha liberação. E, por isso, gostaria de anunciar que, em nome da gratidão que tenho por este lugar, a partir do próximo ano, as empresas Stark será dona de 80% do New York Centre Hospital. E o que isso significa, Tony? Você deve estar se perguntando. Significa que mais da metade desse hospital e de todas suas filiais passam a ser minhas a partir do dia primeiro. Inicialmente, iremos reformar algumas áreas, expandir andares e investir em infraestrutura e maquinário. Contrataremos mais médicos e daremos bolsas de estudos a pessoas que se interessem pela causa. Ofereceremos subsídios para pessoas que, como Anne, precisam de tecnologia de ponta para fins médicos. Ao contrário do que muitos pensam as indústrias Stark também investem na vida. Obrigado e tenham um ótimo Natal.
Tony abriu os braços, acenando, enquanto as pessoas aplaudiam fortemente. Sorri para o homem que me olhava, como se houvesse me dado um grandioso presente. Aquilo tinha sido realmente incrível e bastante justo com nós. Foi uma boa forma de agradecer pelo que fizemos e reconhecer a importância do nosso trabalho. Pessoalmente, me pareceu uma forma amigável de demonstrar que, embora ele não desse nada por nós no começo, havia mudado de ideia. Mas, por outro lado, se tratando de Anthony Stark, nada sairia de graça. Investir em um hospital era também uma forma de mostrar à mídia que as Indústrias Stark não fazem apenas armas, mas se importam com a saúde e bem-estar da população. Desviei meu olhar de Tony pra atrás do balcão da recepção, onde Banner fixava uma placa dourada e vermelha com os escritos “Indústrias Stark”. Mais metido que Tony? Impossível. Agora seríamos funcionários tripartites: do governo, da SHIELD e do Stark. Bom, prefiro não pensar muito nisso agora.
Caminhei a passos lentos até o homem. Tony me acompanhava com o olhar, as mãos nos bolsos da calça jeans, com a barra da camisa xadrez, azul escura, verde e cinza levemente levantada e um sorriso amigável no rosto, que o deixou pela noite toda. Na mesa ao seu lado, havia um belo embrulho com papel de presente do homem de ferro em desenho.
- Obrigada pelo que fez pela Anne e pelo hospital. – Comentei ao chegar perto. Tony sorriu e abriu os braços.
- Mereço um abraço, não? – O homem perguntou. Olhei assustada pra ele.
- Já fui suspensa por causa disso, Tony. Sem contato físico. – Rebati ouvindo Bruce rir e se afastar de perto da gente.
- Eu sou o dono disso aqui agora, anda logo. – Tony respondeu me puxando e me abraçando. Sem qualquer condição de me afastar dele, retribui o abraço por alguns instantes. Acho que, no fundo, eu fazia manha para que ele insistisse. Alguns instantes depois e ele me soltou animado.
- Comprei um presente para você. – Tony entregou-me o embrulho que estava na mesa ao lado.
- Que altruísta. – Comentei revirando os olhos ao embrulho com desenhos... dele mesmo. – Se for um boneco do homem de ferro, eu juro que faço você engolir ele.
- Para que um boneco quando você tem o real bem aqui? – Tony fez pose e eu não aguentei segurar a risada. Embora o jeito dele às vezes me incomodasse, eu havia me acostumado. Com as brincadeiras cínicas, com o egocentrismo. Estava começando a assumir para mim mesma que gostava daquilo. Que gostava dele. Finalmente.
Sem pensar muito, abri o pacote curiosa e dele saiu o último presente que eu poderia imaginar ganhar na vida: um conjunto feito de plush, de calça e blusa de manga longa, azul clarinho, bem fofinho. Tinha cheiro de morango.
- É um pijama novo dos ursinhos carinhosos, eu não acredito! – Soltei animada, desdobrando o pijama para checar os detalhes. Espalhados por toda a calça, apenas a cabeça dos ursinhos sorrindo e vários arco-íris. No centro da blusa, todos os ursinhos carinhosos abraçados juntos. Exatamente igual ao meu velho. Percebi que Tony havia reparado em meu pijama, pois sempre falava sobre o dia em que o socorri vestindo ele, mas não sabia que tinha cuidadosamente gravado os detalhes a ponto de achar outro igualzinho. Dei uma risada gostosa, abraçando meu novo conjunto de dormir. Tony sorria abertamente, observando-me. Sem pensar duas vezes, pulei no pescoço do homem, o abraçando novamente.
- Vou ter que te demitir por assédio aos pacientes. – Tony sussurrou e eu sorri afundada em seu pescoço, sentindo seus braços me envolverem.
- Você não é meu paciente mais. – Sussurrei de volta, à tempo de vê-lo rir e me beijar, pela segunda vez naquele hospital.
Pela primeira vez sem termos que nos esconder de ninguém. Nem de nós mesmos.
Capítulo 6 - PART VI
Nova York, 31 de Dezembro de 2016
23:52 p.m.
Tony me buscou às 21:30h na véspera do ano novo. Pontual e romântico como um cavalo, uma hora e meia atrasado. Me apresentou sua casa e seus amigos fantasiados – pelo menos eles não estavam fantasiados naquele dia. Dançamos e bebemos a noite toda. Definitivamente uma das noites mais incríveis da minha vida.
A verdade é que passamos a vida impondo obstáculos a nós mesmo, criando dificuldades e barreiras que, no final das contas, não nos cercam, não nos protegem, mas só nos afastam, nos isolam. Sofremos por antecedência pelo sofrimento do próximo, pelos males que passamos. Deixamos as mágoas tomarem conta de nós, reger nossas vidas e nossas atitudes. Mas isso faz parte da condição humana.
Conheci Tony Stark graças à um atentado.
Um ataque de pessoas dissimuladas que queriam roubar coisas de um laboratório. Tony apanhou como nunca antes havia apanhado. Machucou as pernas, os braços, o rosto, as mãos e o próprio ego. Chegou para mim como um inferno na Terra, um desastre, um castigo da vida e de Carmem para as pessoas que mais nutriam ódio por ele: eu e Andrew. Eu aprendi a engolir minha raiva, passei por cima da minha mágoa. Eu tinha que fazer isso, por mim e pela saúde de Tony. Ele aprendeu a deixar a implicância e o cinismo de lado, pelo menos às vezes. Era só mais um ser humano. Tony não cruzou meu limite, mas me faz cruzá-lo sozinha, por conta própria. Meu irmão não irá voltar mais. Mas de quem é a culpa senão do destino? Destino que, quando tira, te dá algo valioso em troca.
Existe uma lenda que diz que quando você passa a virada do ano novo ao lado de alguém, essa pessoa ficará em sua vida para sempre. Sentada no topo do Empire State, observando ao meu lado um homem em pé, vestindo uma armadura que se fechava rapidamente em uma maleta, penso que, talvez, isso nunca tenha sido demais para mim.
Obrigada, Carmem.
Fim!
Eu estou realmente feliz em ter publicado essa história aqui. Espero do fundo do coração que ela não morra, que sempre tenha um lugarzinho no coração de todo mundo que leu e que ela tenha marcado vocês de algum jeito, como me marcou.
Deixo meu agradecimento final à todas/os que leram, um grande abraço à todas que comentaram (eu surto com cada comentário que vejo aqui e não é pouco hihi) e um obrigada (imenso e especial) à Thay que fez todo trabalho técnico em scriptar CB e deixar ela lindona assim. Obrigada mesmo <3
Tenho 4 projetos em aberto, em breve eu voltarei com novas histórias.
Me aguardem!
Nota da Beta: Eu pretendo, do fundo do meu coração, não deixar essa NB maior que a NA, mas, Ju... Tenho eu que te agradecer, tenho eu que ser grata por você me permitir betar a sua história, que foi incrível desde as primeiras letras, e por, juntas, (re)começarmos no site. Estou contando cada momento para receber essas 4 histórias! Já falamos sobre isso, não? Haha. Obrigada por dedicar-se e deixar, no meu pobre coração, um pequeno, mas significado, marco. Enquanto as leitoras: comentem e cobrem a Ju! Ela é incrível não só como escritora, mas também como pessoa. Te espero em breve. O sentimento fanático é recíproco.
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