Capítulo Um
O quão solitário é um coração recém partido?
Essa era a pergunta que não parava de rondar minha mente nos últimos meses.
Já fazia três meses que minha vida havia virado de cabeça para baixo após descobrir traições recorrentes da pessoa que eu mais confiava no mundo. Três longos meses de sofrimento e dor. Três meses que pareciam longos demais para continuar doendo e três meses curtos demais para conseguir superar.
Todos me diziam que passaria. Que uma hora pararia de doer e que eu superaria e seguiria em frente. Até mesmo que agora quem poderia quebrar corações era eu.
Mas eu me sentia um caco. Um pequeno caco tentando encontrar todos os outros que haviam se partido e se perdido ao longo do caminho desde que presenciei a cena do grande amor da minha vida com minha dama de honra, minha melhor amiga.
Sim, eu sei que pode parecer exagero. Que não machuca tanto e que eu preciso seguir minha vida. Isso era algo que todo mundo também me dizia. Mas eu já estava tão apegada a esses sentimentos ruins que me sentia em um ciclo vicioso entre lágrimas e garrafas de vinho.
A verdade era que eu nem sabia se queria mesmo parar de sentir tudo isso.
Esse era mais um dos dias que eu passava sentada no quarto que deveria ser do nosso bebê, com as fotos de nosso casamento ao meu redor, apreciando cada detalhe daquele dia tão planejado e almejado por mim.
As flores haviam sido delicadamente decididas nas cores azuis e brancas, para combinar com os vestidos das madrinhas, que eram da mesma cor. A mesa de doces era separada entre doces finos normais e doces finos sem lactose, pois minha sogra não podia comer.
E todos aqueles detalhes me machucavam cada vez que eu pensava neles.
E, sem mais demora, novas lágrimas começavam a rolar pelo meu rosto. Eu estava cansada desse ciclo, muito cansada. Mas parecia que quando mais eu lutava para sair dele, mais me enterrava em sentimentos e emoções indesejadas.
"Vá procurar um terapeuta". Era o que meu irmão me dizia. Porém eu ainda não me sentia pronta para isso.
"É que você não se ajuda". Falava meu pai, cansado de me ligar noite após noite e escutar minha voz embargada pelo telefone.
", vá procurar outro homem. Tem tantos por aí!". Minha avó suplicava enquanto eu apenas sorria e acenava falsamente.
Eu concordava com todos. Mas no fim não seguia nada do que me diziam. Pois encarar a dor e lidar com ela como uma pessoa madura doeria muito mais e eu não sabia se realmente aguentaria o baque.
David havia sido meu primeiro namorado. Meu primeiro beijo. Meu amor de infância. Ele e meu irmão eram melhores amigos desde sempre e é claro que eu, cinco anos mais nova, babava por ele cada vez mais enquanto ia crescendo e descobrindo o mundo das paixões.
Ele demorou um pouco para me notar. Mas quando completei a maioridade ele se declarou para mim, em uma festa de ano novo, dizendo que sempre havia me visto, mas que queria esperar o momento certo para ficarmos juntos. Claro que tudo isso foi dito no meio de uma embriaguez, mas eu havia ansiado aquele momento por tanto tempo, que não esperei um segundo para dizer que sim e iniciar uma relação entre nós dois.
Gustave, meu irmão, ficou maluco quando soube e o socou no rosto tão forte, que quebrou o seu nariz, fato esse que voltaria a acontecer quase cinco anos depois.
Elisa, por sua vez, havia se aproximado de mim na escola. No ensino médio, para ser mais precisa. Com seus lindos cachos e olhos azuis ela conquistava quem quisesse com sua beleza e carisma. Enquanto eu era apenas a amiga chaveirinho, que a seguia para cima e para baixo, sendo sua fiel parceira.
"Eu vou ser a madrinha dos filhos de vocês!". Foi o que ela me disse quando confidenciei minha primeira vez com David, afinal, eu ainda era virgem quando iniciamos nosso relacionamento. E eu concordei, dizendo que não havia ninguém mais perfeito para o momento.
Faltava cinco dias para nosso segundo aniversário de casamento. Eu preparava uma surpresa para ele, com direito a espumante e banheira com espuma. Havia preparado uma viagem para nós dois, iríamos para a praia, destino tão querido por nós dois.
Ele dizia que estava preparando uma surpresa para mim também.
Eu havia saído mais cedo do trabalho aquela tarde e fui para casa. Estranhei o seu carro estar na garagem e ainda mais ao ver a moto de Elise estacionada na frente do prédio onde morávamos juntos.
Assim que adentrei no apartamento avistei a cena que você já deve imaginar qual foi.
Após o choque, corri para fora e para longe. Corri o mais que minhas pernas podiam aguentar. E então caí no choro e no chão. E ninguém veio atrás de mim para se justificar.
Dois após o ocorrido, David se mudou, pegou apenas suas roupas e disse que iria morar com Elisa. Que lamentava o que tinha acontecido, mas que não podia mandar no coração. Que sua vida agora seria ao lado dela, vivendo tudo o que havíamos planejado por cinco anos e me deixando despedaçada para trás.
Não estava presente quando meu irmão quebrou o seu nariz pela segunda vez, mas admito que gostaria de ter visto a cena. Talvez fizesse meu coração se alegrar um pouco.
Mas não foram só coisas ruins que aconteceram após isso. Por precisar me ocupar meus pensamentos e também para não deixar meus gatos e eu morrermos de fome, me vi obrigada a trabalhar dobrado para sustentar o que antes era dividido em dois.
Horas e horas extras de trabalho me resultaram em uma promoção. Antes eu era apenas uma funcionária qualquer na empresa de administração onde trabalhava, agora gerenciava o setor. O que me causava muito mais dor de cabeça do que qualquer outra coisa, mas já era um bom começo. Ou melhor, recomeço.
E então era assim que eu passava meus dias. Trabalhando como uma louca de dia e chorando até desidratar de noite. Não é exatamente o que você imagina estar fazendo no auge dos seus vinte e dois anos, mas era o que restava para mim.
Eu sabia que havia um mundo grande lá fora para explorar e tentar coisas novas. Mas o medo que me acompanhava a cada novo passo de meus dias me impedia de fazer qualquer coisa além do que eu já havia me habituado.
Então me contentava com o que estava acontecendo, enquanto guardava tão profundamente meus desejos dentro de mim, que sonhava com todos eles se concretizando noite após noite.
E essa era mais uma dessas noites em específico. Fergus e Jocelyn se acomodaram em mês pés, ronronando confortavelmente em seu sonho profundo, e o rosto de Adam Sandler e Drew Barrymore estampavam minha TV. Como se fosse a primeira vez costumava ser um dos meus filmes favoritos. Hoje em dia eu o assistia para ansiar e imaginar como seria minha vida se eu perdesse minha memória.
Talvez decidiria seguir uma carreira diferente, arquitetura quem sabe, ou até mesmo jornalismo. Mas administração havia sido minha escolha acadêmica e profissional, pois David tinha planos de montar uma empresa de contabilidade e precisaria de alguém para auxiliá-lo. Porém, planos esses que jamais saíram do papel. O que me levava a uma nova onda de frustração e tristeza, pois até mesmo isso eu havia feito por ele. O quão longe dos seus sonhos você consegue ir por causa do amor?
Adormeci com esse questionamento rondando minha mente.
Essa era a pergunta que não parava de rondar minha mente nos últimos meses.
Já fazia três meses que minha vida havia virado de cabeça para baixo após descobrir traições recorrentes da pessoa que eu mais confiava no mundo. Três longos meses de sofrimento e dor. Três meses que pareciam longos demais para continuar doendo e três meses curtos demais para conseguir superar.
Todos me diziam que passaria. Que uma hora pararia de doer e que eu superaria e seguiria em frente. Até mesmo que agora quem poderia quebrar corações era eu.
Mas eu me sentia um caco. Um pequeno caco tentando encontrar todos os outros que haviam se partido e se perdido ao longo do caminho desde que presenciei a cena do grande amor da minha vida com minha dama de honra, minha melhor amiga.
Sim, eu sei que pode parecer exagero. Que não machuca tanto e que eu preciso seguir minha vida. Isso era algo que todo mundo também me dizia. Mas eu já estava tão apegada a esses sentimentos ruins que me sentia em um ciclo vicioso entre lágrimas e garrafas de vinho.
A verdade era que eu nem sabia se queria mesmo parar de sentir tudo isso.
Esse era mais um dos dias que eu passava sentada no quarto que deveria ser do nosso bebê, com as fotos de nosso casamento ao meu redor, apreciando cada detalhe daquele dia tão planejado e almejado por mim.
As flores haviam sido delicadamente decididas nas cores azuis e brancas, para combinar com os vestidos das madrinhas, que eram da mesma cor. A mesa de doces era separada entre doces finos normais e doces finos sem lactose, pois minha sogra não podia comer.
E todos aqueles detalhes me machucavam cada vez que eu pensava neles.
E, sem mais demora, novas lágrimas começavam a rolar pelo meu rosto. Eu estava cansada desse ciclo, muito cansada. Mas parecia que quando mais eu lutava para sair dele, mais me enterrava em sentimentos e emoções indesejadas.
"Vá procurar um terapeuta". Era o que meu irmão me dizia. Porém eu ainda não me sentia pronta para isso.
"É que você não se ajuda". Falava meu pai, cansado de me ligar noite após noite e escutar minha voz embargada pelo telefone.
", vá procurar outro homem. Tem tantos por aí!". Minha avó suplicava enquanto eu apenas sorria e acenava falsamente.
Eu concordava com todos. Mas no fim não seguia nada do que me diziam. Pois encarar a dor e lidar com ela como uma pessoa madura doeria muito mais e eu não sabia se realmente aguentaria o baque.
David havia sido meu primeiro namorado. Meu primeiro beijo. Meu amor de infância. Ele e meu irmão eram melhores amigos desde sempre e é claro que eu, cinco anos mais nova, babava por ele cada vez mais enquanto ia crescendo e descobrindo o mundo das paixões.
Ele demorou um pouco para me notar. Mas quando completei a maioridade ele se declarou para mim, em uma festa de ano novo, dizendo que sempre havia me visto, mas que queria esperar o momento certo para ficarmos juntos. Claro que tudo isso foi dito no meio de uma embriaguez, mas eu havia ansiado aquele momento por tanto tempo, que não esperei um segundo para dizer que sim e iniciar uma relação entre nós dois.
Gustave, meu irmão, ficou maluco quando soube e o socou no rosto tão forte, que quebrou o seu nariz, fato esse que voltaria a acontecer quase cinco anos depois.
Elisa, por sua vez, havia se aproximado de mim na escola. No ensino médio, para ser mais precisa. Com seus lindos cachos e olhos azuis ela conquistava quem quisesse com sua beleza e carisma. Enquanto eu era apenas a amiga chaveirinho, que a seguia para cima e para baixo, sendo sua fiel parceira.
"Eu vou ser a madrinha dos filhos de vocês!". Foi o que ela me disse quando confidenciei minha primeira vez com David, afinal, eu ainda era virgem quando iniciamos nosso relacionamento. E eu concordei, dizendo que não havia ninguém mais perfeito para o momento.
Faltava cinco dias para nosso segundo aniversário de casamento. Eu preparava uma surpresa para ele, com direito a espumante e banheira com espuma. Havia preparado uma viagem para nós dois, iríamos para a praia, destino tão querido por nós dois.
Ele dizia que estava preparando uma surpresa para mim também.
Eu havia saído mais cedo do trabalho aquela tarde e fui para casa. Estranhei o seu carro estar na garagem e ainda mais ao ver a moto de Elise estacionada na frente do prédio onde morávamos juntos.
Assim que adentrei no apartamento avistei a cena que você já deve imaginar qual foi.
Após o choque, corri para fora e para longe. Corri o mais que minhas pernas podiam aguentar. E então caí no choro e no chão. E ninguém veio atrás de mim para se justificar.
Dois após o ocorrido, David se mudou, pegou apenas suas roupas e disse que iria morar com Elisa. Que lamentava o que tinha acontecido, mas que não podia mandar no coração. Que sua vida agora seria ao lado dela, vivendo tudo o que havíamos planejado por cinco anos e me deixando despedaçada para trás.
Não estava presente quando meu irmão quebrou o seu nariz pela segunda vez, mas admito que gostaria de ter visto a cena. Talvez fizesse meu coração se alegrar um pouco.
Mas não foram só coisas ruins que aconteceram após isso. Por precisar me ocupar meus pensamentos e também para não deixar meus gatos e eu morrermos de fome, me vi obrigada a trabalhar dobrado para sustentar o que antes era dividido em dois.
Horas e horas extras de trabalho me resultaram em uma promoção. Antes eu era apenas uma funcionária qualquer na empresa de administração onde trabalhava, agora gerenciava o setor. O que me causava muito mais dor de cabeça do que qualquer outra coisa, mas já era um bom começo. Ou melhor, recomeço.
E então era assim que eu passava meus dias. Trabalhando como uma louca de dia e chorando até desidratar de noite. Não é exatamente o que você imagina estar fazendo no auge dos seus vinte e dois anos, mas era o que restava para mim.
Eu sabia que havia um mundo grande lá fora para explorar e tentar coisas novas. Mas o medo que me acompanhava a cada novo passo de meus dias me impedia de fazer qualquer coisa além do que eu já havia me habituado.
Então me contentava com o que estava acontecendo, enquanto guardava tão profundamente meus desejos dentro de mim, que sonhava com todos eles se concretizando noite após noite.
E essa era mais uma dessas noites em específico. Fergus e Jocelyn se acomodaram em mês pés, ronronando confortavelmente em seu sonho profundo, e o rosto de Adam Sandler e Drew Barrymore estampavam minha TV. Como se fosse a primeira vez costumava ser um dos meus filmes favoritos. Hoje em dia eu o assistia para ansiar e imaginar como seria minha vida se eu perdesse minha memória.
Talvez decidiria seguir uma carreira diferente, arquitetura quem sabe, ou até mesmo jornalismo. Mas administração havia sido minha escolha acadêmica e profissional, pois David tinha planos de montar uma empresa de contabilidade e precisaria de alguém para auxiliá-lo. Porém, planos esses que jamais saíram do papel. O que me levava a uma nova onda de frustração e tristeza, pois até mesmo isso eu havia feito por ele. O quão longe dos seus sonhos você consegue ir por causa do amor?
Adormeci com esse questionamento rondando minha mente.
Capítulo 2
No dia seguinte acordei me sentindo mais disposta do que o normal. O que me causou um estranhamento tão grande que precisei de um tempo para adaptar com essa sensação de disposição que não me acometia fazia algum tempo.
O relógio marcava nove horas da manhã quando finalmente levantei. Era sábado, o que significava que não precisaria ir para o trabalho e que teria todo o dia para ficar de preguiça em casa.
Decidi que começar o dia com um café preto e sem açúcar seria uma boa opção para tentar manter meu pico de animação.
Fergus decidiu que seria uma boa ideia ficar roçando e enrolando seu rabo pelas minhas pernas enquanto a água passava pelo pó do café e eu esperava pacientemente para iniciar o dia.
- Miau – disse ele assim que estava com a xícara em mãos.
- Eu sei, preciso dar um jeito na minha vida – respondi de forma séria e ele rebateu na mesma entonação, dando de costas logo em seguida.
O observei caminhar lentamente para longe de mim. E só então percebi o quão patética parecia ao estar conversando com meu gato. Talvez eu precisasse de um contato humano. Digo, de verdade, não apenas o estritamente profissional que eu estava tendo.
Talvez uma visita surpresa ao meu pai o fizesse feliz e até mesmo o surpreenderia.
Houve um tempo em que eu era fã de surpresas e adorava planejá-las com antecedência. Principalmente para ver as expressões de felicidade no rosto de quem as recebia. Talvez esse sentimento nesse dia me auxiliasse a tentar me reconectar comigo mesma.
Arrumei-me, vestindo roupas apresentáveis e um par de tênis confortáveis. Havia decidido ir caminhando até a sua casa para pegar um pouco de sol na minha pele pálida.
- Fergus, volto no final do dia – anunciei para meu gato que repousava preguiçosamente em sua caminha. – Por favor, se comporte.
Ele nem se moveu.
Saí de casa, torcendo para não encontrar nenhum vizinho conhecido no caminho do meu andar até o térreo. Apesar de estar precisando ver pessoas, não precisava de pessoas enxeridas querendo saber de como estavam as coisas entre mim e meu ex-marido.
Por sorte, não encontrei ninguém e suspirei aliviada ao dar de cara com a rua movimentada e sua costumeira agitação. Meus pés então começaram a me levar pelo caminho conhecido por mim em direção a casa de meu pai.
Papai não morava muito longe de mim, mas a pé dava quase meia hora de caminhada. Ele dizia que queria estar perto de mim o suficiente para me dar espaço pessoal e, ao mesmo tempo, estar disponível para me auxiliar no que eu precisasse quando eu casasse e saísse de casa.
Aproveitei a caminhada para apreciar as vitrines de lojas e confeitarias, coisa que eu já não fazia há algum tempo. Acabei me demorando um pouco mais na minha loja de calçados favorita. Meu irmão costumava me chamar de centopeia em nossa adolescência, por sempre ter um par de sapatos novos e lindos em meu guarda-roupa. Agora eu me dividia entre alguns poucos que eu ainda guardava algum sentimento de conforto.
Observei a vitrine com calma e interesse. Muitos dos que ali estavam não eram necessariamente o meu estilo, se é que eu ainda tinha um, mas o desejo de entrar e provar alguns não me impediu de entrar e dar um sorriso tímido para a vendedora que veio prontamente me atender.
- Bom dia, você deseja algum modelo em específico? – Questionou-me enquanto eu observava as prateleiras abarrotadas.
- Hã – cocei a nuca, sem saber direito o que lhe dizer. – O que você acha que combina comigo?
A vendedora me lançou um olhar estranho e se demorou no meu rosto, provavelmente se questionando se o que eu estava falando era sério. Ao perceber que eu realmente esperava que ela fizesse isso, um sorriso sincero tomou conta de sua boca alegremente pintada de vermelho.
- Estou vendo que você é mais discreta, certo? – Perguntou me olhando dos pés a cabeça e eu concordei. – Que número você calça?
- 37. – E assim que respondi ela virou e foi procurar calçados enquanto eu procurava um lugar confortável para me sentar.
Tamborilei os dedos em meus joelhos e olhei para os lados, aguardando a volta da vendedora.
Até que meu olhar caiu cuidadosamente em um par de pernas altas e desengonçadas que adentrou a loja com um sorriso no rosto.
- Bom dia – disse o rapaz em questão para a outra vendedora que foi recebe-lo. – Eu gostaria de ver aquele par de sapatos vermelhos que está na vitrine. Preciso do número 36.
A vendedora assentiu e lhe respondeu que logo voltaria com o seu pedido. Enquanto isso eu ainda o observava atentamente, sem conseguir desviar o olhar de seus lindos cabelos que lhe caíam nos ombros.
Demorei-me mais um pouco em sua aparência até me dar conta que talvez eu já estivesse o encarando a tempo demais e baixei o olhar para minhas próprias mãos, me sentindo envergonhada.
Encarei minhas unhas que não viam um bom esmalte fazia algum tempo, sem deixar de pensar no cara mais bonito que eu já tinha visto em meses.
- Bom dia, tudo bem? – Ergui o rosto ao perceber que falavam comigo e encontrei o mesmo rapaz que eu admirava segundos antes, sentado no banco ao meu lado.
- Bom dia – cumprimentei num meio sorriso.
- Está um lindo dia, não acha? – Olhou para fora apreciando o sol e eu concordei com um aceno de cabeça, sem saber muito bem o que lhe dizer.
Não tive que me preocupar em pensar o que eu lhe responderia, pois no instante seguinte a vendedora que me atendia apareceu com algumas caixas de sapato.
- Trouxe esses para você ver o que prefere – disse ela já tirando algumas sandálias das caixas.
Comecei a verificar o que era mais do meu gosto e fui provando as que eu achava que melhor combinariam comigo. Enquanto isso o rapaz ao meu lado olhava o sapato vermelho que tinha pedido.
- É para sua namorada? – A vendedora o questionou e eu não pude evitar de prestar atenção.
- É para o pedido – ele anunciou se mostrando muito orgulhoso e eu murchei um pouquinho.
Parei para apreciar a sandália preta e branca que estava em meus pés enquanto a vendedora dizia que combinava muito comigo e que ficaria perfeita em um barzinho à noite.
- Ela tem razão – o rapaz voltou a puxar assunto.
- Com um vestidinho curto, você vai ficar um arraso – a vendedora disse e eu mexi o pé, concordando.
- Acho que vou levar essa então – falei e ela comemorou.
- Eu acho que o vermelho também ficaria lindo em você – falou o rapaz e eu o encarei com a sobrancelha levantada.
- Ele tem razão – repetiu a vendedora o que ele tinha dito minutos antes. – Vou pegar um par para você provar.
E se sumiu antes mesmo que eu pudesse recusar. Olhei para o rapaz que parecia não saber parar de sorrir.
- Sua garota é realmente muito sortuda – falou a outra vendedora e ele encolheu os ombros, se sentindo elogiado.
- Eu é que sou muito sortudo por tê-la em minha vida – suspirou apaixonado e eu senti uma pontada em meu peito, por já ter ouvido a mesma frase antes.
- E você, vai usar em algum encontro também? – A vendedora me questionou.
- Eu? Ah não, ainda não sei muito bem onde usar – falei pela primeira vez desde que toda aquela cena havia tido início.
- Então vê se acha logo alguém! – Disse o rapaz rindo.
Sorri em resposta, novamente sem saber o que lhe responder.
Minha vendedora não demorou a aparecer com o tal sapato vermelho e, com a insistência de todos ali, o calcei.
- Coloca os dois! – Disse a vendedora. – Assim você tem uma ideia melhor.
Calcei o par, ficando na altura do rapaz agora e dei alguns passos, verificando se me adaptaria a eles.
- Leva o vermelho, sério! – Exclamou o rapaz. – Poucas pessoas ficam tão bem de vermelho.
- Ele tem razão – as duas vendedoras falaram juntas.
- Tá bom, me convenceram – cedi aos pedidos. – Vou levar os dois!
As vendedoras comemoraram e ressaltaram que havia sido uma boa escolha, provavelmente estando mais felizes pela comissão que conseguiriam com as vendas do que outra coisa. Mas também não fazia muita diferença para mim, não é?
- Obrigada pela ajuda – disse por fim ao rapaz que sorriu abertamente e me estendeu a mão.
- Foi um prazer – apertei seus dedos. – Sou Sam.
- – respondi.
- A gente se vê por aí, – falou por fim e eu concordei, seguindo o meu caminho em direção ao caixa para finalizar minhas compras enquanto ele finalizava as dele.
Não pude deixar de ficar pensando em seus gestos gentis e educado enquanto observava meu cartão de crédito ser passado na maquininha e me questionar o por que é que caras legais assim sempre estavam comprometidos ou eram gays.
Não consegui encontrar uma resposta e saí da loja com o vislumbre do seu sorriso em minha cabeça.
A casa do meu pai não ficava muito longe de onde eu estava, então não tardou muito para que eu chegasse em frente ao portão de cor azul e também que fosse recebida com uma grande festa pelos cachorros de meu pai.
Pouco tempo depois, meu pai também se juntou a festividade e me puxou para dentro, sem saber se me perguntava o que eu estava fazendo ali ou se apenas aproveitava o fato curioso e inédito de eu ter saído de casa sem que alguém tivesse me obrigado a isso.
- Vem, senta aqui – disse ele me empurrando para seu sofá arranhado e comido pelos bichinhos de estimação. – Eu vou fazer um chá. Vê se não sai daí!
Neguei com a cabeça tentando esconder um sorriso um pouco desconfortável que brincava no canto de meus lábios. Papai também tinha medo de que eu me arrependesse de estar ali e me levantasse para ir embora a qualquer momento.
Encostei-me no sofá e cruzei as pernas, respirando o ar fresco da casa que costumou ser meu refúgio por tanto tempo antes de eu sair e resolver morar sozinha. Deixei meus pensamentos viajarem pelos quadros e porta-retratos espalhados pela sala de estar. A maioria das fotos eu estava presente com minha antiga franjinha na testa e alguns dentes faltando.
Demorei-me na que marcava o aniversário de nove anos de meu irmão. Ele me abraçava de maneira desajeitada enquanto soprava um grande bolo enquanto meus pais sorriam atrás de nós dois. Aquela havia sido a nossa última memória boa de família. Dois meses após a festa, minha mãe arrumou suas malas e saiu pela porta, jamais voltando ou mandando um cartão postal para avisar onde estaria ou se estava viva.
Talvez fosse de família ser abandonado pelo seu cônjuge como se a vida fosse um caderno onde páginas eram arrancas e novas histórias eram escritas, sem nenhuma ligação com o que acontecera antes.
Soltei um suspiro com tal pensamento e sorri fraco para meu pai que voltava com dois pires e xícaras de chá fumegante em cima de cada um.
- Erva-doce, o seu favorito – disse ele se sentando à minha frente.
- Adoçado com mel? – Perguntei aproximando a xícara de meu nariz e aspirando o doce aroma do chá.
- Sem dúvida – respondeu-me, sabendo que eu apenas tomava chá com mel em sua casa, numa lembrança de uma infância distante e cheia de significado e saudade.
Suspirei novamente, dessa vez de alegria e alívio enquanto aproveitava a doce xícara de chá. Um silêncio confortável pairou sobre nós dois.
- E então? – Começou meu pai após vários goles. – A que devo a sua ilustre presença?
Papai me encarava com curiosidade e eu dei de ombros, como se fosse apenas mais uma visita casual e como se eu o visse todos os dias.
- Fiquei com saudade – falei com simplicidade e ele ergueu a sobrancelha esquerda, não acreditando em minhas palavras. – É sério. Eu... senti que precisava sair um pouco de casa também.
Seus ombros caíram num alívio imediato. Aquilo era o que ele queria ouvir.
- Que bom que você está aqui – disse ele por fim. – Você não faz ideia de como isso me deixa feliz, minha filha.
- Eu vou tentar ser mais presente. Prometo.
Ele me estendeu sua mão calejada e eu a aceitei de bom grado, aproveitando o momento e o lugar, de onde eu jamais deveria ter saído.
O relógio marcava nove horas da manhã quando finalmente levantei. Era sábado, o que significava que não precisaria ir para o trabalho e que teria todo o dia para ficar de preguiça em casa.
Decidi que começar o dia com um café preto e sem açúcar seria uma boa opção para tentar manter meu pico de animação.
Fergus decidiu que seria uma boa ideia ficar roçando e enrolando seu rabo pelas minhas pernas enquanto a água passava pelo pó do café e eu esperava pacientemente para iniciar o dia.
- Miau – disse ele assim que estava com a xícara em mãos.
- Eu sei, preciso dar um jeito na minha vida – respondi de forma séria e ele rebateu na mesma entonação, dando de costas logo em seguida.
O observei caminhar lentamente para longe de mim. E só então percebi o quão patética parecia ao estar conversando com meu gato. Talvez eu precisasse de um contato humano. Digo, de verdade, não apenas o estritamente profissional que eu estava tendo.
Talvez uma visita surpresa ao meu pai o fizesse feliz e até mesmo o surpreenderia.
Houve um tempo em que eu era fã de surpresas e adorava planejá-las com antecedência. Principalmente para ver as expressões de felicidade no rosto de quem as recebia. Talvez esse sentimento nesse dia me auxiliasse a tentar me reconectar comigo mesma.
Arrumei-me, vestindo roupas apresentáveis e um par de tênis confortáveis. Havia decidido ir caminhando até a sua casa para pegar um pouco de sol na minha pele pálida.
- Fergus, volto no final do dia – anunciei para meu gato que repousava preguiçosamente em sua caminha. – Por favor, se comporte.
Ele nem se moveu.
Saí de casa, torcendo para não encontrar nenhum vizinho conhecido no caminho do meu andar até o térreo. Apesar de estar precisando ver pessoas, não precisava de pessoas enxeridas querendo saber de como estavam as coisas entre mim e meu ex-marido.
Por sorte, não encontrei ninguém e suspirei aliviada ao dar de cara com a rua movimentada e sua costumeira agitação. Meus pés então começaram a me levar pelo caminho conhecido por mim em direção a casa de meu pai.
Papai não morava muito longe de mim, mas a pé dava quase meia hora de caminhada. Ele dizia que queria estar perto de mim o suficiente para me dar espaço pessoal e, ao mesmo tempo, estar disponível para me auxiliar no que eu precisasse quando eu casasse e saísse de casa.
Aproveitei a caminhada para apreciar as vitrines de lojas e confeitarias, coisa que eu já não fazia há algum tempo. Acabei me demorando um pouco mais na minha loja de calçados favorita. Meu irmão costumava me chamar de centopeia em nossa adolescência, por sempre ter um par de sapatos novos e lindos em meu guarda-roupa. Agora eu me dividia entre alguns poucos que eu ainda guardava algum sentimento de conforto.
Observei a vitrine com calma e interesse. Muitos dos que ali estavam não eram necessariamente o meu estilo, se é que eu ainda tinha um, mas o desejo de entrar e provar alguns não me impediu de entrar e dar um sorriso tímido para a vendedora que veio prontamente me atender.
- Bom dia, você deseja algum modelo em específico? – Questionou-me enquanto eu observava as prateleiras abarrotadas.
- Hã – cocei a nuca, sem saber direito o que lhe dizer. – O que você acha que combina comigo?
A vendedora me lançou um olhar estranho e se demorou no meu rosto, provavelmente se questionando se o que eu estava falando era sério. Ao perceber que eu realmente esperava que ela fizesse isso, um sorriso sincero tomou conta de sua boca alegremente pintada de vermelho.
- Estou vendo que você é mais discreta, certo? – Perguntou me olhando dos pés a cabeça e eu concordei. – Que número você calça?
- 37. – E assim que respondi ela virou e foi procurar calçados enquanto eu procurava um lugar confortável para me sentar.
Tamborilei os dedos em meus joelhos e olhei para os lados, aguardando a volta da vendedora.
Até que meu olhar caiu cuidadosamente em um par de pernas altas e desengonçadas que adentrou a loja com um sorriso no rosto.
- Bom dia – disse o rapaz em questão para a outra vendedora que foi recebe-lo. – Eu gostaria de ver aquele par de sapatos vermelhos que está na vitrine. Preciso do número 36.
A vendedora assentiu e lhe respondeu que logo voltaria com o seu pedido. Enquanto isso eu ainda o observava atentamente, sem conseguir desviar o olhar de seus lindos cabelos que lhe caíam nos ombros.
Demorei-me mais um pouco em sua aparência até me dar conta que talvez eu já estivesse o encarando a tempo demais e baixei o olhar para minhas próprias mãos, me sentindo envergonhada.
Encarei minhas unhas que não viam um bom esmalte fazia algum tempo, sem deixar de pensar no cara mais bonito que eu já tinha visto em meses.
- Bom dia, tudo bem? – Ergui o rosto ao perceber que falavam comigo e encontrei o mesmo rapaz que eu admirava segundos antes, sentado no banco ao meu lado.
- Bom dia – cumprimentei num meio sorriso.
- Está um lindo dia, não acha? – Olhou para fora apreciando o sol e eu concordei com um aceno de cabeça, sem saber muito bem o que lhe dizer.
Não tive que me preocupar em pensar o que eu lhe responderia, pois no instante seguinte a vendedora que me atendia apareceu com algumas caixas de sapato.
- Trouxe esses para você ver o que prefere – disse ela já tirando algumas sandálias das caixas.
Comecei a verificar o que era mais do meu gosto e fui provando as que eu achava que melhor combinariam comigo. Enquanto isso o rapaz ao meu lado olhava o sapato vermelho que tinha pedido.
- É para sua namorada? – A vendedora o questionou e eu não pude evitar de prestar atenção.
- É para o pedido – ele anunciou se mostrando muito orgulhoso e eu murchei um pouquinho.
Parei para apreciar a sandália preta e branca que estava em meus pés enquanto a vendedora dizia que combinava muito comigo e que ficaria perfeita em um barzinho à noite.
- Ela tem razão – o rapaz voltou a puxar assunto.
- Com um vestidinho curto, você vai ficar um arraso – a vendedora disse e eu mexi o pé, concordando.
- Acho que vou levar essa então – falei e ela comemorou.
- Eu acho que o vermelho também ficaria lindo em você – falou o rapaz e eu o encarei com a sobrancelha levantada.
- Ele tem razão – repetiu a vendedora o que ele tinha dito minutos antes. – Vou pegar um par para você provar.
E se sumiu antes mesmo que eu pudesse recusar. Olhei para o rapaz que parecia não saber parar de sorrir.
- Sua garota é realmente muito sortuda – falou a outra vendedora e ele encolheu os ombros, se sentindo elogiado.
- Eu é que sou muito sortudo por tê-la em minha vida – suspirou apaixonado e eu senti uma pontada em meu peito, por já ter ouvido a mesma frase antes.
- E você, vai usar em algum encontro também? – A vendedora me questionou.
- Eu? Ah não, ainda não sei muito bem onde usar – falei pela primeira vez desde que toda aquela cena havia tido início.
- Então vê se acha logo alguém! – Disse o rapaz rindo.
Sorri em resposta, novamente sem saber o que lhe responder.
Minha vendedora não demorou a aparecer com o tal sapato vermelho e, com a insistência de todos ali, o calcei.
- Coloca os dois! – Disse a vendedora. – Assim você tem uma ideia melhor.
Calcei o par, ficando na altura do rapaz agora e dei alguns passos, verificando se me adaptaria a eles.
- Leva o vermelho, sério! – Exclamou o rapaz. – Poucas pessoas ficam tão bem de vermelho.
- Ele tem razão – as duas vendedoras falaram juntas.
- Tá bom, me convenceram – cedi aos pedidos. – Vou levar os dois!
As vendedoras comemoraram e ressaltaram que havia sido uma boa escolha, provavelmente estando mais felizes pela comissão que conseguiriam com as vendas do que outra coisa. Mas também não fazia muita diferença para mim, não é?
- Obrigada pela ajuda – disse por fim ao rapaz que sorriu abertamente e me estendeu a mão.
- Foi um prazer – apertei seus dedos. – Sou Sam.
- – respondi.
- A gente se vê por aí, – falou por fim e eu concordei, seguindo o meu caminho em direção ao caixa para finalizar minhas compras enquanto ele finalizava as dele.
Não pude deixar de ficar pensando em seus gestos gentis e educado enquanto observava meu cartão de crédito ser passado na maquininha e me questionar o por que é que caras legais assim sempre estavam comprometidos ou eram gays.
Não consegui encontrar uma resposta e saí da loja com o vislumbre do seu sorriso em minha cabeça.
☸
A casa do meu pai não ficava muito longe de onde eu estava, então não tardou muito para que eu chegasse em frente ao portão de cor azul e também que fosse recebida com uma grande festa pelos cachorros de meu pai.
Pouco tempo depois, meu pai também se juntou a festividade e me puxou para dentro, sem saber se me perguntava o que eu estava fazendo ali ou se apenas aproveitava o fato curioso e inédito de eu ter saído de casa sem que alguém tivesse me obrigado a isso.
- Vem, senta aqui – disse ele me empurrando para seu sofá arranhado e comido pelos bichinhos de estimação. – Eu vou fazer um chá. Vê se não sai daí!
Neguei com a cabeça tentando esconder um sorriso um pouco desconfortável que brincava no canto de meus lábios. Papai também tinha medo de que eu me arrependesse de estar ali e me levantasse para ir embora a qualquer momento.
Encostei-me no sofá e cruzei as pernas, respirando o ar fresco da casa que costumou ser meu refúgio por tanto tempo antes de eu sair e resolver morar sozinha. Deixei meus pensamentos viajarem pelos quadros e porta-retratos espalhados pela sala de estar. A maioria das fotos eu estava presente com minha antiga franjinha na testa e alguns dentes faltando.
Demorei-me na que marcava o aniversário de nove anos de meu irmão. Ele me abraçava de maneira desajeitada enquanto soprava um grande bolo enquanto meus pais sorriam atrás de nós dois. Aquela havia sido a nossa última memória boa de família. Dois meses após a festa, minha mãe arrumou suas malas e saiu pela porta, jamais voltando ou mandando um cartão postal para avisar onde estaria ou se estava viva.
Talvez fosse de família ser abandonado pelo seu cônjuge como se a vida fosse um caderno onde páginas eram arrancas e novas histórias eram escritas, sem nenhuma ligação com o que acontecera antes.
Soltei um suspiro com tal pensamento e sorri fraco para meu pai que voltava com dois pires e xícaras de chá fumegante em cima de cada um.
- Erva-doce, o seu favorito – disse ele se sentando à minha frente.
- Adoçado com mel? – Perguntei aproximando a xícara de meu nariz e aspirando o doce aroma do chá.
- Sem dúvida – respondeu-me, sabendo que eu apenas tomava chá com mel em sua casa, numa lembrança de uma infância distante e cheia de significado e saudade.
Suspirei novamente, dessa vez de alegria e alívio enquanto aproveitava a doce xícara de chá. Um silêncio confortável pairou sobre nós dois.
- E então? – Começou meu pai após vários goles. – A que devo a sua ilustre presença?
Papai me encarava com curiosidade e eu dei de ombros, como se fosse apenas mais uma visita casual e como se eu o visse todos os dias.
- Fiquei com saudade – falei com simplicidade e ele ergueu a sobrancelha esquerda, não acreditando em minhas palavras. – É sério. Eu... senti que precisava sair um pouco de casa também.
Seus ombros caíram num alívio imediato. Aquilo era o que ele queria ouvir.
- Que bom que você está aqui – disse ele por fim. – Você não faz ideia de como isso me deixa feliz, minha filha.
- Eu vou tentar ser mais presente. Prometo.
Ele me estendeu sua mão calejada e eu a aceitei de bom grado, aproveitando o momento e o lugar, de onde eu jamais deveria ter saído.
Capítulo 3
Os dias que se passaram após a minha visita a meu pai foram exatamente iguais como os outros que haviam acontecido antes deles e, aos poucos, os mesmos sentimentos que eu lutava para não sentir, iam voltando em minha vida.
Mas eu havia feito alguns avanços! Já não chorava mais antes de dormir e conseguia acordar com o rosto menos inchado e mais bonito. Passei a usar máscara de cílios para ir trabalhar e a prender os cabelos com mais jeito e vontade. E meus sapatos novos fizeram sua morada em meus pés por alguns dias, enquanto eles ainda estavam ensolarados e eu podia ir de sandálias trabalhar.
Porém com o tempo chuvoso e uma neblina que parecia pairar até mesmo por cima da minha cabeça, me vi obrigada a vestir botas para não molhar os pés em minhas caminhadas de ida e volta da empresa. E o clima cada vez mais parecido com a cidade de Forks, na história de Crepúsculo, era culpado também pelo meu mau humor e tristeza.
Soltei um suspiro melancólico ao observar o céu cinza pela janela do escritório e apoiei a bochecha em uma das mãos, rolando a tela do meu computador sem muita vontade e atenção.
Ao meu lado, meus dois colegas discutiam sobre o que fariam nessa noite de sexta-feira.
- Eu acho que um barzinho é uma boa – dizia Michael com seu costumeiro sorriso galanteador.
- Mas não pode ser aquele estranho que a gente foi da última vez – Patricia o respondeu fazendo uma careta, enquanto eu fingia que não ouvia a conversa dos dois.
- Não sei porque você não gostou, tinha até karaokê! – Michael usava um tom ofendido, como se o lugar escolhido tivesse muito mais valor do que Patricia conseguisse imaginar.
- Que só tinha música cafona e chata!
- Elvis não é cafona! – O tom de voz de Michael aumentou ainda mais. – Cafona é você com essa saia vermelha!
- A Abigail também tem uma! – Patricia rebateu e eu arqueei uma das sobrancelhas ao notar que agora eu também estava no meio da discussão.
Michael abriu e fechou a boca algumas vezes, sem saber como ganhar a discussão enquanto eu tentava esconder um sorriso divertido. Michael não teria coragem de chamar a gerente de cafona. Eu acho que no meio disso tudo quem ainda saía ganhando era eu.
- Mas a Abigail não acha o Elvis cafona, não é? – Seus olhos me encaravam com súplica, necessitando da minha aprovação para tentar ter alguma chance contra a colega que agora cruzava os braços e sorria vitoriosa.
- Não, só está um pouco ultrapassado – respondi e Patricia explodiu numa gargalhada enquanto Michael assumia uma feição de quem havia acabado de comer um picolé de chuchu.
- Mas falando sério, onde vamos hoje a noite? – Questionou Patricia após terminar de rir.
- Escolha você já que é tão maravilhosa – o bico de Michael ficaria por mais algum tempo em sua boca.
Balancei a cabeça negativamente enquanto me esticava em meu lugar, ficando numa posição mais relaxada ao me permitir um breve tempo de descanso.
- Devemos ir naquele bar que você não quis da última vez. É da família de uma amiga minha – disse Patricia ignorando o comentário ácido do amigo.
- E vai tocar banda boa? – Questionou Michael um pouco mais interessado.
- Banda de rock – Patricia torceu o nariz. – Mas sei que você gosta.
- Ótimo! Eu passo te buscar as oito – os dois trocaram um high five enquanto eu bebericava minha água com gás. – Ei Abi, quer vir com a gente?
Franzi o cenho, demorando um pouco para assimilar a sua pergunta.
- Eu? – Perguntei redundantemente e os dois assentiram. – Por que?
- Porque você é nossa amiga, ué – Patricia deu de ombros. – E ninguém merece ficar em casa sozinha na sexta.
Chorando. Provavelmente foi o que ela pensou, mas não teve coragem de completar.
- Isso, ver uns gatinhos – Michael piscou o olho para mim. – Dar uns beijinhos na boca. Quem sabe levar alguém pra conhecer o seu apê que agora só tem você...
Patricia jogou uma caneta no rapaz que reclamou.
- Mas sério Abi, vem com a gente – Patricia piscou os olhos delicadamente, tentando me convencer. – Sinto falta de quando a gente ia beber umas depois do trabalho.
Soltei um suspiro refletindo sobre sua proposta e sobre seu último comentário.
Antes de tudo o que aconteceu acontecer, Michael saía com um dos amigos de David e por isso aproveitávamos para relaxar um pouco quando o expediente terminava. Mas Michael foi deixando de ficar com o outro rapaz e eu estava me separando, então as coisas aos poucos foram se tornando mais frias entre nós três, por mais que convivêssemos todos os dias juntos.
- Tudo bem, acho que vai ser legal – falei por fim e os dois ergueram as mãos para que eu fizesse um high five agora.
- Yes! Esteja pronta as oito!
O sapato vermelho que eu havia comprado na semana anterior brilhava lindamente em meus pés enquanto eu rodava em frente ao espelho tentando encontrar algo fora de ordem, ao mesmo tempo que apreciava em como eu estava bonita naquela noite.
Já eram quase oito e eu havia terminado de passar o batom, também vermelho. Fergus e Jocelyn serpenteavam pelas minhas pernas, observando meus movimentos, provavelmente estranhando toda a minha produção nada costumeira.
- Estou bonita? – Perguntei para os dois que me olhavam com atenção.
Fergus soltou um miau preguiçoso.
Meu celular vibrou indicando uma mensagem de Patricia dizendo que já estavam chegando.
- Bom, a mamãe vai indo – abaixei-me e dei um afago na cabeça de cada um. – Cuidem bem da casa. Eu não vou demorar.
Peguei o restante de minhas coisas e saí apressada. Não gostava de deixar ninguém esperando.
Por sorte, ao chegar no térreo, o carro de Michael ainda não havia chegado e eu tive um tempo para observar o movimento da rua naquela noite.
A chuva havia parado, mas uma brisa mais forte soprava pelas minhas pernas de fora por conta do vestido que eu havia escolhido usar, e poucas pessoas caminhavam para lá e para cá.
Cruzei os braços rente ao busto e senti uma pontada de ansiedade na boca do estômago. Será que eu ainda sabia interagir com as outras pessoas?
Mordisquei o canto inferior do lábio, torcendo para que eu me saísse minimamente bem, e que não passasse muita vergonha pela minha péssima experiência em socializar.
E no meio de meus pensamentos inseguros Michael apareceu buzinando seu carro.
- E aí, gatinha? – Disse Patricia abrindo o vidro para mim.
Dei um sorriso sincero e adentrei, os cumprimentando em seguida.
- Uau, eu não sabia que você tinha pernas – Michael provocou.
- E como ela andaria? – Não precisei rebater, pois Patricia o respondeu primeiro.
- Eu vou fingir que não ouvi isso – ele resmungou.
- Obrigada pelo elogio, Michael – disse rindo e me acomodei nos bancos traseiros.
- Pelo menos você me entende – desabafou. – Sabe, é muito difícil conviver só com essa sequelada aí.
Patricia apenas deu de ombros e seguimos o restante do caminho com a música que tocava no rádio, que eu não conhecia.
Alguns minutos mais tarde, Michael estacionou em frente ao nosso destino final. Que, apesar da estética mais underground, parecia ser legal.
- Sua amiga vai estar aqui também? – Perguntei a Patricia assim que adentramos ao local.
- Sim! E ela conseguiu uma mesa pra gente bem perto do palco – respondeu animada enquanto eu ainda olhava ao redor, não sabendo se me sentia confortável ou não com a quantidade de pessoas que ali já estavam.
Caminhamos lado a lado a procura da tal amiga até que uma mulher de cabelos vermelhos apareceu abraçando Patricia com um enorme sorriso no rosto.
- Patty, que bom que conseguiu vir! – As duas trocaram cumprimentos calorosos.
Michael e eu nos entreolhamos, sem saber muito bem o que fazer.
- Não perderíamos o show por nada – Patricia sorriu de maneira falsa e Michael me cutucou na cintura. Prendi um riso e o rapaz ao meu lado precisou virar o rosto, pois não sabia disfarçar. – Amy, esses são meus amigos, Abigail e Michael.
Sorri sem mostrar os dentes e acenei.
- Muito prazer, pessoal. Fiquem à vontade! – Disse Amy realmente muito amistosa. – Aliás, amei o sapato!
- Obrigada – respondi envergonhada.
E então nos sentamos. Para meu desgosto, acabei ficando na ponta. O que indicava que eu seria o primeiro contato dos garçons e garçonetes e ficava mais a mostra para as outras pessoas.
- E aí, já viu alguém bonito? – Perguntou Michael muito perto do meu ouvido e eu vi que ele analisava o local com muito cuidado.
Dei uma passada geral com os olhos, mas não senti atração por ninguém. O estilo daquelas pessoas não era exatamente o meu.
- Ainda nada – respondi.
- Então vamos beber que logo aparece – disse sorrindo e pediu duas cervejas para nós dois.
Logo mais algumas pessoas apareceram e se juntaram com nós na mesa. E mais rápido ainda Michael e Patricia entraram em assuntos que eu não tinha muita afinidade para participar junto com todo aquele pessoal.
Acabei concentrando minha atenção para a minha cerveja que já se encontrava pela metade.
- Abi – Michael me cutucou no braço. – Aquele cara não para de te olhar.
Apontou com o queixo para o outro canto do bar e eu franzi o cenho, demorando um pouco para compreender o que ele de fato havia me dito. Mas segui os olhos instintivamente para o local onde ele apontava.
Senti as bochechas esquentarem no instante que avistei um grupo de caras e, no meio deles, o mesmo rapaz que eu havia encontrado na loja de sapatos na última semana.
Ao perceber que eu o havia visto, Sam abriu um sorriso sincero e acenou para mim. Acenei de volta sentindo o rosto todo vermelho.
- Sapatos legais – disse ele e apontou para os meus pés.
Sorri e no momento que abri a boca para responder, uma garota apareceu ao seu lado e os dois se abraçaram. Olhei para os pés dela e vi que ela usava o mesmo par do que eu.
Sam sussurrou alguma coisa no ouvido da garota que me olhou e depois para os meus pés. Logo depois também abriu um sorrisão e acenou para mim. Para não parecer mau educada, acenei de volta, mas agora sentindo minha felicidade murchar como um balão furado.
- É amiga, acho que não foi dessa vez – Michael disse o óbvio e eu suspirei, retornando minha atenção para meu copo de cerveja. – Mas não vamos desanimar! Logo aparece alguém para você sair da seca.
Concordei com um aceno de cabeça, tentando não focar no cara que eu havia visto duas vezes, mas que, por alguma razão que eu não conseguia controlar, me fazia suspirar.
Mas decidi não ficar chorando as pitangas (mais do que eu já fazia) e tentei me inteirar dos assuntos que eram tratados e virei de costas para o grupo de amigos de Sam e me aproximando do pessoal da minha mesa que conversava animados.
- É um clube, na verdade – a amiga de Patricia dizia enquanto dois rapazes ao seu lado riam com certo ar de deboche. – Parem de rir, é coisa séria!
- Um clube pra quem foi corno? – Disse um dos dois visivelmente embriagado.
- Não é só pra quem foi traído! – Amy parecia realmente ofendida pela postura dos amigos. – É para todos aqueles que estão passando com algum problema que se refere ao amor.
Os dois continuavam rindo e o clima começava a ficar meio estranho.
Senti Patricia me olhando ao perceber que eu agora prestava atenção.
- E como é o nome desse "clube" aí? – Questionou o outro cara fazendo aspas no ar.
- Clube dos Corações Solitários – disse Amy muito séria e os dois explodiram numa gargalhada. O restante da mesa tentava não revirar os olhos para os dois inconvenientes.
- Que nome ridículo – os dois murmuravam entre si enquanto ainda riam.
- E como funciona esse clube? – Perguntou Patricia ignorando os dois.
- É como se fosse um Alcoólicos Anônimos. As pessoas se reúnem uma vez por semana, comentam suas experiências, são acompanhadas por uma assistente social e uma psicóloga.
Eu sabia que Michael me olhava e que Patty se segurava para não me encarar também. Eu sabia o que eles pensavam e não podia deixar de admitir que eu pensava o mesmo. Mas como pedir mais informações sem virar chacota dos dois idiotas que se sentavam com nós dois?
Patricia, lendo meus pensamentos, me cutucou e apontou para o meu celular. Peguei o aparelho e vi que ela havia me mandando uma mensagem.
"Eu vou pedir pra Amy onde fica e o número, fica tranquila". Era o que a mensagem dizia e eu sorri para minha amiga que me encarou com amorosidade.
Pouco tempo depois o assunto já havia se encerrado e agora amenidades eram discutidas.
- É agora! A primeira banda vai se apresentar! – Amy anunciou de repente quando as luzes do pequeno palco se tornaram mais fortes e o assunto parou para prestar a atenção em quem subiria para o show.
- Boa noite, pessoal, boa noite! – Um homem com um tufo de cabelo brotou em frente ao microfone principal. – Sejam todos bem-vindos ao nosso espaço, é uma honra ter a casa cheia para prestigiar os nossos lindos rapazes.
Alguns gritos puderem ser ouvidos, mas o homem continuava sozinho em cima do palco.
- Com vocês... Greta Van Fleet! – Anunciou finalmente e as luzes se tornaram brilhantes e piscantes quando quatro rapazes pularam no palco e se ajeitaram para começar o show.
- Boa noite, pessoal! – Disse o que eu julguei ser o vocalista enquanto os demais se preparavam em seus instrumentos.
Senti o ar sumir de meus pulmões ao ver Sam, que até então estava parado no mesmo lugar que o tinha visto antes, com um baixo em mãos e um sorriso galanteador nos lábios perfeitos. Precisei olhar para os lados para tentar disfarçar o rubor quente que havia se formado em minhas bochechas. Eu só não estava conseguindo entender muito bem a razão de minha euforia desenfreada.
Sem tardar, um rockzinho começou a tocar e o grupo dos rapazes começou a mostrar para o que de fato haviam vindo. Em pouco tempo, toda a plateia se levantava e aproveitava o show com muita energia e vibração.
- Uma pena que o seu garoto já é compromissado – disse Michael berrando em meus ouvidos entre uma música e outra. – Ele é um charme.
Sorri sem graça e concordei com um aceno de cabeça, sem saber muito bem o que lhe dizer.
Com as pernas cansadas de estar aproveitando o show em pé e com a bexiga cheia das cervejas que eu já havia tomado, avisei aos meus amigos que iria ao banheiro.
Serpenteei pelo grupo de pessoas e fiz o meu caminho para o lugar que estava mais iluminado naquele momento. Costumeiros grupos de amigas estavam ali fofocando e eu pedi licença para poder passar e fazer o que precisava ser feito.
Ao terminar, soltei um suspiro, percebendo como estava com o coração acelerado e a respiração mais pesada, e um sorriso bobo invadiu o canto da minha boca. Fazia tempo que eu não sentia a felicidade que estava sentindo naquele momento.
O som da banda ainda podia ser ouvido, embora mais abafado e novamente meus pensamentos foram para Sam. Suspirei mais uma vez e saí do box do vaso sanitário, tentando manter a minha atenção na água corrente para lavar bem as mãos.
- Ei, você é Abigail, não é? – Eis que a figura de uma garota brotou ao meu lado e eu a olhei pelo reflexo do espelho, encontrando a namorada de Sam.
- Sou eu – respondi num meio sorriso enquanto enxugava as mãos.
- Eu sou Hannah – abriu um sorriso maior do que o meu. – Sam me contou sobre você. Sobre o breve encontro que tiveram na loja de sapatos.
Eu acenei afirmativamente com a cabeça, tentando entender para onde aquela conversa estava indo.
- Ele me contou que você o ajudou a escolher o sapato – continuou ela. – Que aliás eu amei e amei em você também! Temos um ótimo gosto.
E soltou uma gargalhada, me segurando pelo braço como se fossemos conhecidas de longa data. Tentei esconder o meu cenho franzido ao forçar um riso na mesma intensidade que ela.
- Imagina, não foi nada – respondi sem muito jeito. – Não é todo mundo que fica bem de vermelho.
Usei a frase do seu namorado que seu namorado havia usado comigo e ela concordou ainda sorrindo. Agora eu me perguntava se as suas bochechas já não estavam doendo, já que não parara de sorrir desde que havia parado para conversar comigo.
- Bom, eu vou indo que deixei meus amigos me esperando – falei sentindo as coisas começarem a ficar estranhas.
- Claro, a gente se vê por aí – me deu um beijo estalado na bochecha e sem mais demora eu fiz o meu caminho de volta.
O show continuava rolando e algumas pessoas da nossa mesa haviam sumido. Patricia e Michael continuavam aproveitando e se viraram para mim quando me aproximei.
- Tá tudo bem? – Gritou Patricia entre o som.
- Só fui fazer xixi – dei de ombros.
- O seu garoto não parou de olhar pra nossa mesa desde que você saiu – falou Michael cheio de malícia e eu fiz uma careta.
- Ah é? Porque eu acabei de falar com a namorada dele lá no banheiro – apontei instintivamente ainda com a careta no meio da testa.
- Ih, é cafajeste – disse Patty com a mesma expressão do que a minha e eu concordei.
- Quero mais uma cerveja – disse por fim e me sentei.
Michael fez a gentileza de pedir mais duas para dividirmos e eu não pude evitar de olhar para o palco onde Sam estava. Agora seus olhos estavam fechados e ele se concentrava em seu instrumento.
Agora eu me perguntava a razão de ele ter mentido sobre a nossa conversa para a sua namorada e o porquê de ela ter vindo falar comigo tão bem a vontade. Tudo bem que existem pessoas extrovertidas e com facilidade em fazer amizades, mas eu não era exatamente a pessoa de aparência mais amigável de todas.
Eu ainda encarava Sam quando ele abriu os olhos e fixou o olhar em mim. Senti as bochechas enrubescerem com a sua piscadela e um sorriso sapeca iluminou o seu rosto. Virei a cara, tentando esconder o sorriso que quis aparecer e tive vontade de gritar, por não saber lidar com o que estava sentindo.
Balancei a cabeça e tratei de beber a minha cerveja, tentando ignorar tudo o que havia acontecido e aproveitar o resto da noite com meus amigos.
Mas eu havia feito alguns avanços! Já não chorava mais antes de dormir e conseguia acordar com o rosto menos inchado e mais bonito. Passei a usar máscara de cílios para ir trabalhar e a prender os cabelos com mais jeito e vontade. E meus sapatos novos fizeram sua morada em meus pés por alguns dias, enquanto eles ainda estavam ensolarados e eu podia ir de sandálias trabalhar.
Porém com o tempo chuvoso e uma neblina que parecia pairar até mesmo por cima da minha cabeça, me vi obrigada a vestir botas para não molhar os pés em minhas caminhadas de ida e volta da empresa. E o clima cada vez mais parecido com a cidade de Forks, na história de Crepúsculo, era culpado também pelo meu mau humor e tristeza.
Soltei um suspiro melancólico ao observar o céu cinza pela janela do escritório e apoiei a bochecha em uma das mãos, rolando a tela do meu computador sem muita vontade e atenção.
Ao meu lado, meus dois colegas discutiam sobre o que fariam nessa noite de sexta-feira.
- Eu acho que um barzinho é uma boa – dizia Michael com seu costumeiro sorriso galanteador.
- Mas não pode ser aquele estranho que a gente foi da última vez – Patricia o respondeu fazendo uma careta, enquanto eu fingia que não ouvia a conversa dos dois.
- Não sei porque você não gostou, tinha até karaokê! – Michael usava um tom ofendido, como se o lugar escolhido tivesse muito mais valor do que Patricia conseguisse imaginar.
- Que só tinha música cafona e chata!
- Elvis não é cafona! – O tom de voz de Michael aumentou ainda mais. – Cafona é você com essa saia vermelha!
- A Abigail também tem uma! – Patricia rebateu e eu arqueei uma das sobrancelhas ao notar que agora eu também estava no meio da discussão.
Michael abriu e fechou a boca algumas vezes, sem saber como ganhar a discussão enquanto eu tentava esconder um sorriso divertido. Michael não teria coragem de chamar a gerente de cafona. Eu acho que no meio disso tudo quem ainda saía ganhando era eu.
- Mas a Abigail não acha o Elvis cafona, não é? – Seus olhos me encaravam com súplica, necessitando da minha aprovação para tentar ter alguma chance contra a colega que agora cruzava os braços e sorria vitoriosa.
- Não, só está um pouco ultrapassado – respondi e Patricia explodiu numa gargalhada enquanto Michael assumia uma feição de quem havia acabado de comer um picolé de chuchu.
- Mas falando sério, onde vamos hoje a noite? – Questionou Patricia após terminar de rir.
- Escolha você já que é tão maravilhosa – o bico de Michael ficaria por mais algum tempo em sua boca.
Balancei a cabeça negativamente enquanto me esticava em meu lugar, ficando numa posição mais relaxada ao me permitir um breve tempo de descanso.
- Devemos ir naquele bar que você não quis da última vez. É da família de uma amiga minha – disse Patricia ignorando o comentário ácido do amigo.
- E vai tocar banda boa? – Questionou Michael um pouco mais interessado.
- Banda de rock – Patricia torceu o nariz. – Mas sei que você gosta.
- Ótimo! Eu passo te buscar as oito – os dois trocaram um high five enquanto eu bebericava minha água com gás. – Ei Abi, quer vir com a gente?
Franzi o cenho, demorando um pouco para assimilar a sua pergunta.
- Eu? – Perguntei redundantemente e os dois assentiram. – Por que?
- Porque você é nossa amiga, ué – Patricia deu de ombros. – E ninguém merece ficar em casa sozinha na sexta.
Chorando. Provavelmente foi o que ela pensou, mas não teve coragem de completar.
- Isso, ver uns gatinhos – Michael piscou o olho para mim. – Dar uns beijinhos na boca. Quem sabe levar alguém pra conhecer o seu apê que agora só tem você...
Patricia jogou uma caneta no rapaz que reclamou.
- Mas sério Abi, vem com a gente – Patricia piscou os olhos delicadamente, tentando me convencer. – Sinto falta de quando a gente ia beber umas depois do trabalho.
Soltei um suspiro refletindo sobre sua proposta e sobre seu último comentário.
Antes de tudo o que aconteceu acontecer, Michael saía com um dos amigos de David e por isso aproveitávamos para relaxar um pouco quando o expediente terminava. Mas Michael foi deixando de ficar com o outro rapaz e eu estava me separando, então as coisas aos poucos foram se tornando mais frias entre nós três, por mais que convivêssemos todos os dias juntos.
- Tudo bem, acho que vai ser legal – falei por fim e os dois ergueram as mãos para que eu fizesse um high five agora.
- Yes! Esteja pronta as oito!
☸
O sapato vermelho que eu havia comprado na semana anterior brilhava lindamente em meus pés enquanto eu rodava em frente ao espelho tentando encontrar algo fora de ordem, ao mesmo tempo que apreciava em como eu estava bonita naquela noite.
Já eram quase oito e eu havia terminado de passar o batom, também vermelho. Fergus e Jocelyn serpenteavam pelas minhas pernas, observando meus movimentos, provavelmente estranhando toda a minha produção nada costumeira.
- Estou bonita? – Perguntei para os dois que me olhavam com atenção.
Fergus soltou um miau preguiçoso.
Meu celular vibrou indicando uma mensagem de Patricia dizendo que já estavam chegando.
- Bom, a mamãe vai indo – abaixei-me e dei um afago na cabeça de cada um. – Cuidem bem da casa. Eu não vou demorar.
Peguei o restante de minhas coisas e saí apressada. Não gostava de deixar ninguém esperando.
Por sorte, ao chegar no térreo, o carro de Michael ainda não havia chegado e eu tive um tempo para observar o movimento da rua naquela noite.
A chuva havia parado, mas uma brisa mais forte soprava pelas minhas pernas de fora por conta do vestido que eu havia escolhido usar, e poucas pessoas caminhavam para lá e para cá.
Cruzei os braços rente ao busto e senti uma pontada de ansiedade na boca do estômago. Será que eu ainda sabia interagir com as outras pessoas?
Mordisquei o canto inferior do lábio, torcendo para que eu me saísse minimamente bem, e que não passasse muita vergonha pela minha péssima experiência em socializar.
E no meio de meus pensamentos inseguros Michael apareceu buzinando seu carro.
- E aí, gatinha? – Disse Patricia abrindo o vidro para mim.
Dei um sorriso sincero e adentrei, os cumprimentando em seguida.
- Uau, eu não sabia que você tinha pernas – Michael provocou.
- E como ela andaria? – Não precisei rebater, pois Patricia o respondeu primeiro.
- Eu vou fingir que não ouvi isso – ele resmungou.
- Obrigada pelo elogio, Michael – disse rindo e me acomodei nos bancos traseiros.
- Pelo menos você me entende – desabafou. – Sabe, é muito difícil conviver só com essa sequelada aí.
Patricia apenas deu de ombros e seguimos o restante do caminho com a música que tocava no rádio, que eu não conhecia.
Alguns minutos mais tarde, Michael estacionou em frente ao nosso destino final. Que, apesar da estética mais underground, parecia ser legal.
- Sua amiga vai estar aqui também? – Perguntei a Patricia assim que adentramos ao local.
- Sim! E ela conseguiu uma mesa pra gente bem perto do palco – respondeu animada enquanto eu ainda olhava ao redor, não sabendo se me sentia confortável ou não com a quantidade de pessoas que ali já estavam.
Caminhamos lado a lado a procura da tal amiga até que uma mulher de cabelos vermelhos apareceu abraçando Patricia com um enorme sorriso no rosto.
- Patty, que bom que conseguiu vir! – As duas trocaram cumprimentos calorosos.
Michael e eu nos entreolhamos, sem saber muito bem o que fazer.
- Não perderíamos o show por nada – Patricia sorriu de maneira falsa e Michael me cutucou na cintura. Prendi um riso e o rapaz ao meu lado precisou virar o rosto, pois não sabia disfarçar. – Amy, esses são meus amigos, Abigail e Michael.
Sorri sem mostrar os dentes e acenei.
- Muito prazer, pessoal. Fiquem à vontade! – Disse Amy realmente muito amistosa. – Aliás, amei o sapato!
- Obrigada – respondi envergonhada.
E então nos sentamos. Para meu desgosto, acabei ficando na ponta. O que indicava que eu seria o primeiro contato dos garçons e garçonetes e ficava mais a mostra para as outras pessoas.
- E aí, já viu alguém bonito? – Perguntou Michael muito perto do meu ouvido e eu vi que ele analisava o local com muito cuidado.
Dei uma passada geral com os olhos, mas não senti atração por ninguém. O estilo daquelas pessoas não era exatamente o meu.
- Ainda nada – respondi.
- Então vamos beber que logo aparece – disse sorrindo e pediu duas cervejas para nós dois.
Logo mais algumas pessoas apareceram e se juntaram com nós na mesa. E mais rápido ainda Michael e Patricia entraram em assuntos que eu não tinha muita afinidade para participar junto com todo aquele pessoal.
Acabei concentrando minha atenção para a minha cerveja que já se encontrava pela metade.
- Abi – Michael me cutucou no braço. – Aquele cara não para de te olhar.
Apontou com o queixo para o outro canto do bar e eu franzi o cenho, demorando um pouco para compreender o que ele de fato havia me dito. Mas segui os olhos instintivamente para o local onde ele apontava.
Senti as bochechas esquentarem no instante que avistei um grupo de caras e, no meio deles, o mesmo rapaz que eu havia encontrado na loja de sapatos na última semana.
Ao perceber que eu o havia visto, Sam abriu um sorriso sincero e acenou para mim. Acenei de volta sentindo o rosto todo vermelho.
- Sapatos legais – disse ele e apontou para os meus pés.
Sorri e no momento que abri a boca para responder, uma garota apareceu ao seu lado e os dois se abraçaram. Olhei para os pés dela e vi que ela usava o mesmo par do que eu.
Sam sussurrou alguma coisa no ouvido da garota que me olhou e depois para os meus pés. Logo depois também abriu um sorrisão e acenou para mim. Para não parecer mau educada, acenei de volta, mas agora sentindo minha felicidade murchar como um balão furado.
- É amiga, acho que não foi dessa vez – Michael disse o óbvio e eu suspirei, retornando minha atenção para meu copo de cerveja. – Mas não vamos desanimar! Logo aparece alguém para você sair da seca.
Concordei com um aceno de cabeça, tentando não focar no cara que eu havia visto duas vezes, mas que, por alguma razão que eu não conseguia controlar, me fazia suspirar.
Mas decidi não ficar chorando as pitangas (mais do que eu já fazia) e tentei me inteirar dos assuntos que eram tratados e virei de costas para o grupo de amigos de Sam e me aproximando do pessoal da minha mesa que conversava animados.
- É um clube, na verdade – a amiga de Patricia dizia enquanto dois rapazes ao seu lado riam com certo ar de deboche. – Parem de rir, é coisa séria!
- Um clube pra quem foi corno? – Disse um dos dois visivelmente embriagado.
- Não é só pra quem foi traído! – Amy parecia realmente ofendida pela postura dos amigos. – É para todos aqueles que estão passando com algum problema que se refere ao amor.
Os dois continuavam rindo e o clima começava a ficar meio estranho.
Senti Patricia me olhando ao perceber que eu agora prestava atenção.
- E como é o nome desse "clube" aí? – Questionou o outro cara fazendo aspas no ar.
- Clube dos Corações Solitários – disse Amy muito séria e os dois explodiram numa gargalhada. O restante da mesa tentava não revirar os olhos para os dois inconvenientes.
- Que nome ridículo – os dois murmuravam entre si enquanto ainda riam.
- E como funciona esse clube? – Perguntou Patricia ignorando os dois.
- É como se fosse um Alcoólicos Anônimos. As pessoas se reúnem uma vez por semana, comentam suas experiências, são acompanhadas por uma assistente social e uma psicóloga.
Eu sabia que Michael me olhava e que Patty se segurava para não me encarar também. Eu sabia o que eles pensavam e não podia deixar de admitir que eu pensava o mesmo. Mas como pedir mais informações sem virar chacota dos dois idiotas que se sentavam com nós dois?
Patricia, lendo meus pensamentos, me cutucou e apontou para o meu celular. Peguei o aparelho e vi que ela havia me mandando uma mensagem.
"Eu vou pedir pra Amy onde fica e o número, fica tranquila". Era o que a mensagem dizia e eu sorri para minha amiga que me encarou com amorosidade.
Pouco tempo depois o assunto já havia se encerrado e agora amenidades eram discutidas.
- É agora! A primeira banda vai se apresentar! – Amy anunciou de repente quando as luzes do pequeno palco se tornaram mais fortes e o assunto parou para prestar a atenção em quem subiria para o show.
- Boa noite, pessoal, boa noite! – Um homem com um tufo de cabelo brotou em frente ao microfone principal. – Sejam todos bem-vindos ao nosso espaço, é uma honra ter a casa cheia para prestigiar os nossos lindos rapazes.
Alguns gritos puderem ser ouvidos, mas o homem continuava sozinho em cima do palco.
- Com vocês... Greta Van Fleet! – Anunciou finalmente e as luzes se tornaram brilhantes e piscantes quando quatro rapazes pularam no palco e se ajeitaram para começar o show.
- Boa noite, pessoal! – Disse o que eu julguei ser o vocalista enquanto os demais se preparavam em seus instrumentos.
Senti o ar sumir de meus pulmões ao ver Sam, que até então estava parado no mesmo lugar que o tinha visto antes, com um baixo em mãos e um sorriso galanteador nos lábios perfeitos. Precisei olhar para os lados para tentar disfarçar o rubor quente que havia se formado em minhas bochechas. Eu só não estava conseguindo entender muito bem a razão de minha euforia desenfreada.
Sem tardar, um rockzinho começou a tocar e o grupo dos rapazes começou a mostrar para o que de fato haviam vindo. Em pouco tempo, toda a plateia se levantava e aproveitava o show com muita energia e vibração.
- Uma pena que o seu garoto já é compromissado – disse Michael berrando em meus ouvidos entre uma música e outra. – Ele é um charme.
Sorri sem graça e concordei com um aceno de cabeça, sem saber muito bem o que lhe dizer.
Com as pernas cansadas de estar aproveitando o show em pé e com a bexiga cheia das cervejas que eu já havia tomado, avisei aos meus amigos que iria ao banheiro.
Serpenteei pelo grupo de pessoas e fiz o meu caminho para o lugar que estava mais iluminado naquele momento. Costumeiros grupos de amigas estavam ali fofocando e eu pedi licença para poder passar e fazer o que precisava ser feito.
Ao terminar, soltei um suspiro, percebendo como estava com o coração acelerado e a respiração mais pesada, e um sorriso bobo invadiu o canto da minha boca. Fazia tempo que eu não sentia a felicidade que estava sentindo naquele momento.
O som da banda ainda podia ser ouvido, embora mais abafado e novamente meus pensamentos foram para Sam. Suspirei mais uma vez e saí do box do vaso sanitário, tentando manter a minha atenção na água corrente para lavar bem as mãos.
- Ei, você é Abigail, não é? – Eis que a figura de uma garota brotou ao meu lado e eu a olhei pelo reflexo do espelho, encontrando a namorada de Sam.
- Sou eu – respondi num meio sorriso enquanto enxugava as mãos.
- Eu sou Hannah – abriu um sorriso maior do que o meu. – Sam me contou sobre você. Sobre o breve encontro que tiveram na loja de sapatos.
Eu acenei afirmativamente com a cabeça, tentando entender para onde aquela conversa estava indo.
- Ele me contou que você o ajudou a escolher o sapato – continuou ela. – Que aliás eu amei e amei em você também! Temos um ótimo gosto.
E soltou uma gargalhada, me segurando pelo braço como se fossemos conhecidas de longa data. Tentei esconder o meu cenho franzido ao forçar um riso na mesma intensidade que ela.
- Imagina, não foi nada – respondi sem muito jeito. – Não é todo mundo que fica bem de vermelho.
Usei a frase do seu namorado que seu namorado havia usado comigo e ela concordou ainda sorrindo. Agora eu me perguntava se as suas bochechas já não estavam doendo, já que não parara de sorrir desde que havia parado para conversar comigo.
- Bom, eu vou indo que deixei meus amigos me esperando – falei sentindo as coisas começarem a ficar estranhas.
- Claro, a gente se vê por aí – me deu um beijo estalado na bochecha e sem mais demora eu fiz o meu caminho de volta.
O show continuava rolando e algumas pessoas da nossa mesa haviam sumido. Patricia e Michael continuavam aproveitando e se viraram para mim quando me aproximei.
- Tá tudo bem? – Gritou Patricia entre o som.
- Só fui fazer xixi – dei de ombros.
- O seu garoto não parou de olhar pra nossa mesa desde que você saiu – falou Michael cheio de malícia e eu fiz uma careta.
- Ah é? Porque eu acabei de falar com a namorada dele lá no banheiro – apontei instintivamente ainda com a careta no meio da testa.
- Ih, é cafajeste – disse Patty com a mesma expressão do que a minha e eu concordei.
- Quero mais uma cerveja – disse por fim e me sentei.
Michael fez a gentileza de pedir mais duas para dividirmos e eu não pude evitar de olhar para o palco onde Sam estava. Agora seus olhos estavam fechados e ele se concentrava em seu instrumento.
Agora eu me perguntava a razão de ele ter mentido sobre a nossa conversa para a sua namorada e o porquê de ela ter vindo falar comigo tão bem a vontade. Tudo bem que existem pessoas extrovertidas e com facilidade em fazer amizades, mas eu não era exatamente a pessoa de aparência mais amigável de todas.
Eu ainda encarava Sam quando ele abriu os olhos e fixou o olhar em mim. Senti as bochechas enrubescerem com a sua piscadela e um sorriso sapeca iluminou o seu rosto. Virei a cara, tentando esconder o sorriso que quis aparecer e tive vontade de gritar, por não saber lidar com o que estava sentindo.
Balancei a cabeça e tratei de beber a minha cerveja, tentando ignorar tudo o que havia acontecido e aproveitar o resto da noite com meus amigos.
Capítulo 4
Você me acharia muito tosca se eu dissesse que havia sonhado com Sam quase todas as noites após a noite no pub? Se sim, sinto muito em te decepcionar, mas foi exatamente isso que aconteceu. E, se serve de consolo, me deixava bastante irritada e intrigada também.
Não eram sonhos muito comprometedores ou aqueles do tipo sem pé nem cabeça. Eram só sonhos em que ele aparecia como se sempre fizesse parte da minha vida e estivesse fazendo atividades corriqueiras junto comigo. E era isso o que mais me intrigava, pois não era possível que meu cérebro conseguisse se adaptar tão facilmente com a ideia de ter alguém que eu só havia visto duas vezes tão presente em minha vida.
Mas ao mesmo tempo, não poderia esconder que os sonhos me deixavam felizes também. Era como viver a vida que eu tinha antes, mas sem o idiota do meu ex-marido e com alguém muito mais bonito. David não era exatamente um deus grego, mas sempre o considerei querido e simpático. O problema era que, o pouco que eu havia visto em Sam, ele tinha os três adjetivos, então eu não poderia me culpar em gostar de tudo isso.
Bem, eu me culparia menos se não fosse o fato de ele ter uma namorada. E ainda por cima, a desgraçada era linda, querida e simpática como ele. Não tinha como querer competir.
Então, eu me contentava em viver esses pensamentos, embora confusos, enquanto tocava a minha vida em sua normalidade.
Quase normalidade.
Desde aquela noite, junto de Sam, outro pensamento não parava de vir me perturbar antes do meu sono de beleza: o tal do clube dos corações solitários.
Eu havia mandando mensagem para a pessoa responsável pelo grupo, que tinha me mandado todas as informações que eu precisava para decidir se, de fato, entraria para a equipe ou não. Metade de mim já estava com o pé na porta do local, mas a outra parte se tremia de medo em pensar em ter que dividir o que eu havia passado.
E dividir o que tinha acontecido significava reviver todos os sentimentos de novo, e ter que ouvir histórias similares ou iguais as minhas e reviver mais uma vez.
Meu pai dizia que não era possível passar pela cura sem passar pela dor. Mas a pergunta maior era: será que eu estava mesmo preparada para me curar?
Mas Riley, a moça responsável pelo grupo, era uma fofa e disse que eu poderia pensar com calma e até mesmo ir em um "encontro teste", onde apenas os mais velhos falavam e fingiam que os novos não estavam lá, só para a gente sentir como era a coisa.
E bom, era exatamente o que eu estava fazendo no momento.
O local do encontro ficava consideravelmente longe da minha casa, o que significava que eu precisaria pegar um Uber para chegar até lá, uma vez que eu não tinha carro e morria de medo de dirigir.
Para minha sorte, o motorista era tão calado quanto eu, então não tentou puxar aqueles assuntos chatos de "oh, para onde você está indo?", "eu conheço fulano que mora perto de onde você vai", ou pior ainda, "grupo de apoio para gente corna? Ah, eu conheço um amigo que também vai". Então isso me ajudava a me sentir um pouco menos ansiosa.
A sede era no salão de uma igreja e eu sequer conseguia me lembrar quando havia sido a última vez que em que eu tinha pisado em um lugar santo ou até mesmo comungado. O frio em minha barriga aumentou com esse pensamento. Claro que era besteira, pois eu não estava indo para a missa e provavelmente a maioria das pessoas do grupo não era exatamente religioso, ou não teriam se separado, não é?
Bom, era disso que eu tentava me convencer enquanto arrastava os pés em direção ao pátio bem cuidado da igreja que, embora pequena, era bem cuidada e bonita. O vento frio que soprava e o céu nublado, junto com a calmaria do lugar, criavam uma atmosfera um pouco assustadora e eu segurei minha bolsa com mais força embaixo do braço.
Segui meu caminho, me lembrando das instruções de Riley para chegar até o salão que ficava na parte de trás da igreja, mas que precisava ser acessado por dentro dela.
A imagem do altar e de Jesus crucificado invadiram a minha visão e eu não pude deixar de apreciar os belos vitrais que a igrejinha tinha.
Conforme eu me aproximava, conversas podiam ser ouvidas e eu suspirei aliviada. Fui em direção a uma porta amarela que indicava "salão" em uma placa gasta e quando ia abrir, a figura de uma moça brotou à minha frente.
- Ah oi! – Ela abri um sorrisão para mim e eu encolhi os ombros envergonhada. – Você veio pro clube?
Acenei afirmativamente e ela deu espaço para que eu passasse pela porta.
- Ótimo! Estamos esperando os outros chegarem – falou fazendo o caminho contrário do meu. – Aliás, sou Marianne.
Mas não tive tempo de me apresentar, pois puxou um cigarro do bolso da calça e fechou a porta antes que eu pensasse em qualquer coisa.
- Olá, você é a ? – Outra pessoa me parou e eu me encontrei com quem eu pensava ser Riley, já que se parecia muito com a moça da foto que eu tinha conversado.
- Sou eu mesma – sorri fraco. – Você é a Riley?
- Isso mesmo – pousou a sua mão em minhas costas enquanto me guiava para um círculo de cadeiras. – Estava a sua espera. Ainda falta um pessoal chegar, mas pode ir sentando e pode ficar bem à vontade. Qualquer dúvida pode me chamar.
Concordei enquanto ela ia falando e me sentei no primeiro lugar que encontrei, enquanto ela ia terminar os seus afazeres.
Segurei minha bolsa rente a minha barriga e cruzei as pernas, observando o local já que o encontro ainda não tinha começado.
O salão, que mais remetia a uma sala, já que não era muito grande, tinha cadeiras colocadas em dois círculos. O círculo de fora tinha uma quantidade consideravelmente menor do que o de dentro e era ali onde eu estava sentada. Apesar da grande quantidade de cadeiras, acho que poucos viriam, pois, poucos lugares estavam demarcados com objetos pessoais e quase ninguém estava sentado.
No círculo de fora havia apenas eu e mais uma garota que havia decidido sentar do lado oposto ao meu e ela parecia entretida demais em seu celular. Mordisquei o lábio, começando a ficar nervosa mais uma vez. Conversar com alguém naquele momento acho que seria legal e me ajudaria a aliviar a pressão, mas ninguém parecia de fato livre para isso.
Remexi-me em meu lugar e me botei a observar a grande imagem de Maria, que ficava em um pedestal na parte contrária da porta e suspirei, esperado o encontro finalmente começar.
Verifiquei o celular e encontrei uma mensagem encorajadora de Patty, que era a única que sabia que eu viria, uma de meu pai me pedindo como eu estava e uma de meu irmão, que era uma foto que provavelmente seria de alguma besteira que ele estava comendo ou algo engraçado que encontrou pela rua. Decidi que não responderia ninguém, já que a movimentação do espaço passou a aumentar consideravelmente e as cadeiras, preenchidas.
Batuquei os dedos na perna e esperei todos se acomodarem, ansiando mais um pouco pelo começo.
- Bom pessoal, boa tarde – disse Riley e o burburinho de conversas paralelas foi se encerrando rapidamente. – Se acomodem, fiquem confortáveis, que já vamos começar.
E então o silêncio se fez presente no ambiente. Riley segurava uma prancheta em seu colo e outra mulher, sentada ao seu lado, também. Provavelmente a psicóloga. Ambas varreram as cadeiras com o olhar, verificando se todo mundo já tinha chegado.
- Damos início então às nossas atividades – falou a outra moça e o pessoal do círculo do meio ajustou a postura e fechou os olhos.
Olhei para os lados, tentando encontrar respostas sobre o que estava acontecendo, mas os outros três estranhos, como eu sentados no círculo de fora, me encaram da mesma forma.
- Ao pessoal novo, esse é o momento em que nos concentramos e deixamos nossas preocupações lá fora – explicou Riley, cortando o silêncio – É como se fosse uma conexão com nós mesmos,
Mas nenhum de nós quatro se movimentou enquanto o restante do pessoal fazia a sua mini meditação.
- Eu me perdoo e me abro para novas experiências – disse a outra mulher após minutos de pleno silêncio e todos os demais repetiram da mesma maneira. – Agora sim, podemos começar. Quem quer dar início?
Alguns milésimos de segundos constrangedores se fizeram presentes, até que um rapaz ergueu a mão e Riley sorriu de forma terna, o incentivando a continuar.
- Eu quero começar – disse ele. – Essa última semana eu consegui permanecer no mesmo ambiente que o meu ex e não chorei.
Seu rosto não me parecia estranho e eu me peguei o encarando por tempo demais, sentindo as bochechas esquentarem quando ele percebeu que eu o olhava. Olhei para minhas próprias mãos enquanto Riley o elogiava.
- Muito bem, Josh. E como você se sentiu com isso?
- Doeu um pouco menos, mas eu chorei quando cheguei em casa – falou e sua voz pareceu embargar um pouco. – Mas sinto que estou conseguindo superar um pouco mais a cada novo dia.
- Isso aí! Quem mais gostaria de falar?
E assim a sessão foi continuando, com todos os que estavam na roda do meio trazendo seus exemplos e o que tinham vivido desde o último encontro. E, pouco a pouco, fui começando a me sentir mais confortada pelas histórias comoventes e tão parecidas com a minha. A maioria também vinha de relacionamentos onde a traição havia sido uma constante.
- Ótimo! Pessoal, hoje gostaríamos de fazer uma dinâmica um pouco diferente – falou Riley quando a última mulher terminou de falar. – Sei que geralmente combinamos o que vamos melhorar para a próxima semana, mas para hoje eu e Brianna pensamos em propor algo mais íntimo.
- Exatamente – disse Brianna, que agora eu descobrira que era o nome da psicóloga. – Vamos deixar disponíveis folhas e canetas coloridas, e a ideia é que vocês pensem e escrevam uma carta para vocês mesmos, para como vocês querem se ver daqui a três meses. Podem circular pelo pátio da igreja, se alguém quiser fazer em conjunto... Enfim, fiquem bem à vontade. Quando terminarem, por favor, nos entreguem que vamos guardar para o encontro futuro.
- Estendemos também a atividade para os que vieram conhecer o nosso grupo – Riley me olhou sorrindo e eu encolhi os ombros. – Mas se não se sentirem à vontade, já estão liberados e vamos mantendo contato.
Olhei para os do círculo de fora e me surpreendi ao ver que todos os novos se levantavam para ir embora.
Engoli o seco e me questionei se ficaria ou se seguiria os demais. Eu não podia evitar de me sentir insegura em ser a única novata que permaneceria, mas não podia negar que havia gostado do grupo e tinha vontade de permanecer.
E enquanto eu pensava se ficaria ou não, os membros fixos começaram a se movimentar para fazer a atividade. Percebi alguns pequenos grupo serem formados e, alguns solitários como eu, permaneceram em suas cadeiras para escreverem.
Decidi que faria a atividade do lado de fora da igreja e recebi um sorriso encorajador de Riley ao me ver levantar e pegar os materiais ofertados.
- Estou feliz que tenha optado em ficar – falou-me e eu sorri em resposta, fazendo meu caminho para o bonito jardim que rodeava os campos da pequena igreja.
Pude avistar os pequenos grupos reunidos mais a frente e resolvi ficar longe o suficiente para que não achassem que eu estava querendo me enturmar, então acabei escolhendo me sentar ao pé de uma árvore e comecei a pensar o que escreveria em minha carta.
"Querida ,
Desejo que você daqui a três meses consiga pensar em tudo o que passou sem que seu coração doa tanto ao ponto de fazer os olhos arderem em lágrimas e..."
- Posso me juntar a você? – E minha produção foi pausada com uma doce voz que se aproximou.
Ergui o olhar e encontrei Josh, o primeiro rapaz que havia começado a falar na roda de conversa, sorrindo abertamente para mim.
- Hã... Claro – respondi sem muito jeito e ele se jogou ao meu lado, mais perto do que eu pensei que fosse se sentar.
- O pessoal aqui às vezes é muito nichado – puxou assunto. – Geralmente não temos o mesmo assunto.
- E o que te fez crer que vamos ter o mesmo assunto? – Perguntei curiosa e ele continuou me olhando sorridente.
- Você não foi embora – e esticou-se preguiçosamente.
Encarei-o ainda sem entender, pois não me fazia muito sentido a sua linha de pensamento.
- Todos aqueles idiotas vieram juntos – explicou apontando com a ponta do queixo para os grupos. – Só os corajosos vem sozinhos e abertos para se curarem.
Franzi o cenho, mas sem conseguir evitar de sorrir. Talvez a sua energia leve e espontânea estivesse me contagiando aos poucos.
- Sou Josh – falou por fim e me estendeu a mão.
- – foi a minha vez de sorrir verdadeiramente e Josh segurou minha mão e depositou um beijinho, parecendo muito cavalheiro.
- Muito bem, como uma garota legal como você veio parar em um lugar como esse? – Jogou o seu material para o lado e eu soube que não faríamos mais a atividade por enquanto.
- Eu penso que seja pelo mesmo motivo do que você – respondi e ele me olhou compreendendo que eu não abriria o jogo logo de cara, eu sequer o conhecia, e isso pareceu diverti-lo ainda mais.
- Eu acho que talvez seja a sina de pessoas tão incríveis como a gente – falou despretensiosamente e se aconchegou ainda mais ao meu lado, agora fazendo com que nossos braços se encostassem.
- Como era o nome dele? – Atrevi-me perguntar e a sua postura se tornou um pouco mais endurecida.
- Achei que o combinado era a gente ser misterioso um com o outro – falou num tom mais baixo e encostou a cabeça na árvore, fechando os olhos no meio de um suspiro pesado.
- Eu sou misteriosa, você é o cara que cativa porque gosta de falar – tentei o encorajar e pelo sorriso que automaticamente se formou em sua boca, acho que havia conseguido.
- Eu disse que a gente ia ter o mesmo assunto – retornou para o que falávamos antes e eu soltei uma risadinha. – Kyle. Kyle era o nome dele.
- Ele era um idiota?
- Ele era um completo idiota, mas um completo idiota que conseguia ser bem convincente – seu olhar encontrou o meu e eu pude ver o quão triste ele parecia ao relembrar. – Eu não queria me apaixonar. Não queria mesmo. E ele sabia disso... Enfim, um idiota.
Ele se remexeu em seu lugar e um silêncio desconfortável pairou entre nós dois.
- Meu ex-marido se chama David – tomei coragem e falei ao perceber que Josh esperava que eu prosseguisse o assunto.
- Espera aí... Marido? – Seu tom de voz me causou graça. – Garota, quantos anos você tem?
- Vinte e dois – respondi e ele continuou me olhando com indignação.
- Uau... E eu que achei que era precoce. Mas e aí, o que ele fez?
- O combo de filme de romance, me traiu com minha melhor amiga e me trocou por ela – falei e, pela primeira vez, não senti a garganta arder ao falar disso.
Josh olhou no fundo dos meus olhos e eu estranhei ao não ver o sentimento de pena estampado em sua íris castanha. Seu olhar exalava compreensão e carinho e, antes que eu conseguisse pensar em outra coisa, seus braços me puxaram para um abraço desengonçado.
Amoleci um pouco a postura ao me encostar em seu peito e seu polegar desenhou círculos em minhas costas, num gesto de calmaria. E, sem que eu tivesse controle, uma lágrima solitária rolou pela minha bochecha.
- Desculpa pelo abraço – disse ele ainda me segurando. – Mas eu achei que era o necessário pro momento.
- Tudo bem – funguei e então nos afastamos. – Um abraço às vezes é bom.
- É o meu lema – sorriu abertamente. – Agora sei porque você faz do tipo misteriosa. E estou feliz que você tenha escolhido ficar. Eu já tinha ficado feliz antes, mas agora estou mais ainda.
Sorri em agradecimento, sem saber o que lhe falar.
- E agora eu tenho uma dupla para partilhar os momentos – falou e olhou para os outros pequenos grupos, sendo que alguns deles também olhavam para nós. – Chupem essa, seus otários!
Soltei uma risada verdadeira que foi acompanhada por ele, que me abraçou pelos ombros e retomou a sua postura despreocupada.
- Ok gatinha, temos uma carta para terminar – falou finalmente e eu assenti. – Não queremos a dona Riley chamando a nossa atenção.
E assim voltamos a nossa tarefa, que não demorou a ser finalizada. Josh pareceu realmente se concentrar e não conversamos muito mais após isso. Nos despedimos de maneira simples, com ele me prometendo que eu voltaria na semana seguinte.
Enquanto eu pedia meu uber de volta, um sorriso bobo não saiu de minha boca e eu não via a hora de um novo encontro acontecer.
Não eram sonhos muito comprometedores ou aqueles do tipo sem pé nem cabeça. Eram só sonhos em que ele aparecia como se sempre fizesse parte da minha vida e estivesse fazendo atividades corriqueiras junto comigo. E era isso o que mais me intrigava, pois não era possível que meu cérebro conseguisse se adaptar tão facilmente com a ideia de ter alguém que eu só havia visto duas vezes tão presente em minha vida.
Mas ao mesmo tempo, não poderia esconder que os sonhos me deixavam felizes também. Era como viver a vida que eu tinha antes, mas sem o idiota do meu ex-marido e com alguém muito mais bonito. David não era exatamente um deus grego, mas sempre o considerei querido e simpático. O problema era que, o pouco que eu havia visto em Sam, ele tinha os três adjetivos, então eu não poderia me culpar em gostar de tudo isso.
Bem, eu me culparia menos se não fosse o fato de ele ter uma namorada. E ainda por cima, a desgraçada era linda, querida e simpática como ele. Não tinha como querer competir.
Então, eu me contentava em viver esses pensamentos, embora confusos, enquanto tocava a minha vida em sua normalidade.
Quase normalidade.
Desde aquela noite, junto de Sam, outro pensamento não parava de vir me perturbar antes do meu sono de beleza: o tal do clube dos corações solitários.
Eu havia mandando mensagem para a pessoa responsável pelo grupo, que tinha me mandado todas as informações que eu precisava para decidir se, de fato, entraria para a equipe ou não. Metade de mim já estava com o pé na porta do local, mas a outra parte se tremia de medo em pensar em ter que dividir o que eu havia passado.
E dividir o que tinha acontecido significava reviver todos os sentimentos de novo, e ter que ouvir histórias similares ou iguais as minhas e reviver mais uma vez.
Meu pai dizia que não era possível passar pela cura sem passar pela dor. Mas a pergunta maior era: será que eu estava mesmo preparada para me curar?
Mas Riley, a moça responsável pelo grupo, era uma fofa e disse que eu poderia pensar com calma e até mesmo ir em um "encontro teste", onde apenas os mais velhos falavam e fingiam que os novos não estavam lá, só para a gente sentir como era a coisa.
E bom, era exatamente o que eu estava fazendo no momento.
O local do encontro ficava consideravelmente longe da minha casa, o que significava que eu precisaria pegar um Uber para chegar até lá, uma vez que eu não tinha carro e morria de medo de dirigir.
Para minha sorte, o motorista era tão calado quanto eu, então não tentou puxar aqueles assuntos chatos de "oh, para onde você está indo?", "eu conheço fulano que mora perto de onde você vai", ou pior ainda, "grupo de apoio para gente corna? Ah, eu conheço um amigo que também vai". Então isso me ajudava a me sentir um pouco menos ansiosa.
A sede era no salão de uma igreja e eu sequer conseguia me lembrar quando havia sido a última vez que em que eu tinha pisado em um lugar santo ou até mesmo comungado. O frio em minha barriga aumentou com esse pensamento. Claro que era besteira, pois eu não estava indo para a missa e provavelmente a maioria das pessoas do grupo não era exatamente religioso, ou não teriam se separado, não é?
Bom, era disso que eu tentava me convencer enquanto arrastava os pés em direção ao pátio bem cuidado da igreja que, embora pequena, era bem cuidada e bonita. O vento frio que soprava e o céu nublado, junto com a calmaria do lugar, criavam uma atmosfera um pouco assustadora e eu segurei minha bolsa com mais força embaixo do braço.
Segui meu caminho, me lembrando das instruções de Riley para chegar até o salão que ficava na parte de trás da igreja, mas que precisava ser acessado por dentro dela.
A imagem do altar e de Jesus crucificado invadiram a minha visão e eu não pude deixar de apreciar os belos vitrais que a igrejinha tinha.
Conforme eu me aproximava, conversas podiam ser ouvidas e eu suspirei aliviada. Fui em direção a uma porta amarela que indicava "salão" em uma placa gasta e quando ia abrir, a figura de uma moça brotou à minha frente.
- Ah oi! – Ela abri um sorrisão para mim e eu encolhi os ombros envergonhada. – Você veio pro clube?
Acenei afirmativamente e ela deu espaço para que eu passasse pela porta.
- Ótimo! Estamos esperando os outros chegarem – falou fazendo o caminho contrário do meu. – Aliás, sou Marianne.
Mas não tive tempo de me apresentar, pois puxou um cigarro do bolso da calça e fechou a porta antes que eu pensasse em qualquer coisa.
- Olá, você é a ? – Outra pessoa me parou e eu me encontrei com quem eu pensava ser Riley, já que se parecia muito com a moça da foto que eu tinha conversado.
- Sou eu mesma – sorri fraco. – Você é a Riley?
- Isso mesmo – pousou a sua mão em minhas costas enquanto me guiava para um círculo de cadeiras. – Estava a sua espera. Ainda falta um pessoal chegar, mas pode ir sentando e pode ficar bem à vontade. Qualquer dúvida pode me chamar.
Concordei enquanto ela ia falando e me sentei no primeiro lugar que encontrei, enquanto ela ia terminar os seus afazeres.
Segurei minha bolsa rente a minha barriga e cruzei as pernas, observando o local já que o encontro ainda não tinha começado.
O salão, que mais remetia a uma sala, já que não era muito grande, tinha cadeiras colocadas em dois círculos. O círculo de fora tinha uma quantidade consideravelmente menor do que o de dentro e era ali onde eu estava sentada. Apesar da grande quantidade de cadeiras, acho que poucos viriam, pois, poucos lugares estavam demarcados com objetos pessoais e quase ninguém estava sentado.
No círculo de fora havia apenas eu e mais uma garota que havia decidido sentar do lado oposto ao meu e ela parecia entretida demais em seu celular. Mordisquei o lábio, começando a ficar nervosa mais uma vez. Conversar com alguém naquele momento acho que seria legal e me ajudaria a aliviar a pressão, mas ninguém parecia de fato livre para isso.
Remexi-me em meu lugar e me botei a observar a grande imagem de Maria, que ficava em um pedestal na parte contrária da porta e suspirei, esperado o encontro finalmente começar.
Verifiquei o celular e encontrei uma mensagem encorajadora de Patty, que era a única que sabia que eu viria, uma de meu pai me pedindo como eu estava e uma de meu irmão, que era uma foto que provavelmente seria de alguma besteira que ele estava comendo ou algo engraçado que encontrou pela rua. Decidi que não responderia ninguém, já que a movimentação do espaço passou a aumentar consideravelmente e as cadeiras, preenchidas.
Batuquei os dedos na perna e esperei todos se acomodarem, ansiando mais um pouco pelo começo.
- Bom pessoal, boa tarde – disse Riley e o burburinho de conversas paralelas foi se encerrando rapidamente. – Se acomodem, fiquem confortáveis, que já vamos começar.
E então o silêncio se fez presente no ambiente. Riley segurava uma prancheta em seu colo e outra mulher, sentada ao seu lado, também. Provavelmente a psicóloga. Ambas varreram as cadeiras com o olhar, verificando se todo mundo já tinha chegado.
- Damos início então às nossas atividades – falou a outra moça e o pessoal do círculo do meio ajustou a postura e fechou os olhos.
Olhei para os lados, tentando encontrar respostas sobre o que estava acontecendo, mas os outros três estranhos, como eu sentados no círculo de fora, me encaram da mesma forma.
- Ao pessoal novo, esse é o momento em que nos concentramos e deixamos nossas preocupações lá fora – explicou Riley, cortando o silêncio – É como se fosse uma conexão com nós mesmos,
Mas nenhum de nós quatro se movimentou enquanto o restante do pessoal fazia a sua mini meditação.
- Eu me perdoo e me abro para novas experiências – disse a outra mulher após minutos de pleno silêncio e todos os demais repetiram da mesma maneira. – Agora sim, podemos começar. Quem quer dar início?
Alguns milésimos de segundos constrangedores se fizeram presentes, até que um rapaz ergueu a mão e Riley sorriu de forma terna, o incentivando a continuar.
- Eu quero começar – disse ele. – Essa última semana eu consegui permanecer no mesmo ambiente que o meu ex e não chorei.
Seu rosto não me parecia estranho e eu me peguei o encarando por tempo demais, sentindo as bochechas esquentarem quando ele percebeu que eu o olhava. Olhei para minhas próprias mãos enquanto Riley o elogiava.
- Muito bem, Josh. E como você se sentiu com isso?
- Doeu um pouco menos, mas eu chorei quando cheguei em casa – falou e sua voz pareceu embargar um pouco. – Mas sinto que estou conseguindo superar um pouco mais a cada novo dia.
- Isso aí! Quem mais gostaria de falar?
E assim a sessão foi continuando, com todos os que estavam na roda do meio trazendo seus exemplos e o que tinham vivido desde o último encontro. E, pouco a pouco, fui começando a me sentir mais confortada pelas histórias comoventes e tão parecidas com a minha. A maioria também vinha de relacionamentos onde a traição havia sido uma constante.
- Ótimo! Pessoal, hoje gostaríamos de fazer uma dinâmica um pouco diferente – falou Riley quando a última mulher terminou de falar. – Sei que geralmente combinamos o que vamos melhorar para a próxima semana, mas para hoje eu e Brianna pensamos em propor algo mais íntimo.
- Exatamente – disse Brianna, que agora eu descobrira que era o nome da psicóloga. – Vamos deixar disponíveis folhas e canetas coloridas, e a ideia é que vocês pensem e escrevam uma carta para vocês mesmos, para como vocês querem se ver daqui a três meses. Podem circular pelo pátio da igreja, se alguém quiser fazer em conjunto... Enfim, fiquem bem à vontade. Quando terminarem, por favor, nos entreguem que vamos guardar para o encontro futuro.
- Estendemos também a atividade para os que vieram conhecer o nosso grupo – Riley me olhou sorrindo e eu encolhi os ombros. – Mas se não se sentirem à vontade, já estão liberados e vamos mantendo contato.
Olhei para os do círculo de fora e me surpreendi ao ver que todos os novos se levantavam para ir embora.
Engoli o seco e me questionei se ficaria ou se seguiria os demais. Eu não podia evitar de me sentir insegura em ser a única novata que permaneceria, mas não podia negar que havia gostado do grupo e tinha vontade de permanecer.
E enquanto eu pensava se ficaria ou não, os membros fixos começaram a se movimentar para fazer a atividade. Percebi alguns pequenos grupo serem formados e, alguns solitários como eu, permaneceram em suas cadeiras para escreverem.
Decidi que faria a atividade do lado de fora da igreja e recebi um sorriso encorajador de Riley ao me ver levantar e pegar os materiais ofertados.
- Estou feliz que tenha optado em ficar – falou-me e eu sorri em resposta, fazendo meu caminho para o bonito jardim que rodeava os campos da pequena igreja.
Pude avistar os pequenos grupos reunidos mais a frente e resolvi ficar longe o suficiente para que não achassem que eu estava querendo me enturmar, então acabei escolhendo me sentar ao pé de uma árvore e comecei a pensar o que escreveria em minha carta.
"Querida ,
Desejo que você daqui a três meses consiga pensar em tudo o que passou sem que seu coração doa tanto ao ponto de fazer os olhos arderem em lágrimas e..."
- Posso me juntar a você? – E minha produção foi pausada com uma doce voz que se aproximou.
Ergui o olhar e encontrei Josh, o primeiro rapaz que havia começado a falar na roda de conversa, sorrindo abertamente para mim.
- Hã... Claro – respondi sem muito jeito e ele se jogou ao meu lado, mais perto do que eu pensei que fosse se sentar.
- O pessoal aqui às vezes é muito nichado – puxou assunto. – Geralmente não temos o mesmo assunto.
- E o que te fez crer que vamos ter o mesmo assunto? – Perguntei curiosa e ele continuou me olhando sorridente.
- Você não foi embora – e esticou-se preguiçosamente.
Encarei-o ainda sem entender, pois não me fazia muito sentido a sua linha de pensamento.
- Todos aqueles idiotas vieram juntos – explicou apontando com a ponta do queixo para os grupos. – Só os corajosos vem sozinhos e abertos para se curarem.
Franzi o cenho, mas sem conseguir evitar de sorrir. Talvez a sua energia leve e espontânea estivesse me contagiando aos poucos.
- Sou Josh – falou por fim e me estendeu a mão.
- – foi a minha vez de sorrir verdadeiramente e Josh segurou minha mão e depositou um beijinho, parecendo muito cavalheiro.
- Muito bem, como uma garota legal como você veio parar em um lugar como esse? – Jogou o seu material para o lado e eu soube que não faríamos mais a atividade por enquanto.
- Eu penso que seja pelo mesmo motivo do que você – respondi e ele me olhou compreendendo que eu não abriria o jogo logo de cara, eu sequer o conhecia, e isso pareceu diverti-lo ainda mais.
- Eu acho que talvez seja a sina de pessoas tão incríveis como a gente – falou despretensiosamente e se aconchegou ainda mais ao meu lado, agora fazendo com que nossos braços se encostassem.
- Como era o nome dele? – Atrevi-me perguntar e a sua postura se tornou um pouco mais endurecida.
- Achei que o combinado era a gente ser misterioso um com o outro – falou num tom mais baixo e encostou a cabeça na árvore, fechando os olhos no meio de um suspiro pesado.
- Eu sou misteriosa, você é o cara que cativa porque gosta de falar – tentei o encorajar e pelo sorriso que automaticamente se formou em sua boca, acho que havia conseguido.
- Eu disse que a gente ia ter o mesmo assunto – retornou para o que falávamos antes e eu soltei uma risadinha. – Kyle. Kyle era o nome dele.
- Ele era um idiota?
- Ele era um completo idiota, mas um completo idiota que conseguia ser bem convincente – seu olhar encontrou o meu e eu pude ver o quão triste ele parecia ao relembrar. – Eu não queria me apaixonar. Não queria mesmo. E ele sabia disso... Enfim, um idiota.
Ele se remexeu em seu lugar e um silêncio desconfortável pairou entre nós dois.
- Meu ex-marido se chama David – tomei coragem e falei ao perceber que Josh esperava que eu prosseguisse o assunto.
- Espera aí... Marido? – Seu tom de voz me causou graça. – Garota, quantos anos você tem?
- Vinte e dois – respondi e ele continuou me olhando com indignação.
- Uau... E eu que achei que era precoce. Mas e aí, o que ele fez?
- O combo de filme de romance, me traiu com minha melhor amiga e me trocou por ela – falei e, pela primeira vez, não senti a garganta arder ao falar disso.
Josh olhou no fundo dos meus olhos e eu estranhei ao não ver o sentimento de pena estampado em sua íris castanha. Seu olhar exalava compreensão e carinho e, antes que eu conseguisse pensar em outra coisa, seus braços me puxaram para um abraço desengonçado.
Amoleci um pouco a postura ao me encostar em seu peito e seu polegar desenhou círculos em minhas costas, num gesto de calmaria. E, sem que eu tivesse controle, uma lágrima solitária rolou pela minha bochecha.
- Desculpa pelo abraço – disse ele ainda me segurando. – Mas eu achei que era o necessário pro momento.
- Tudo bem – funguei e então nos afastamos. – Um abraço às vezes é bom.
- É o meu lema – sorriu abertamente. – Agora sei porque você faz do tipo misteriosa. E estou feliz que você tenha escolhido ficar. Eu já tinha ficado feliz antes, mas agora estou mais ainda.
Sorri em agradecimento, sem saber o que lhe falar.
- E agora eu tenho uma dupla para partilhar os momentos – falou e olhou para os outros pequenos grupos, sendo que alguns deles também olhavam para nós. – Chupem essa, seus otários!
Soltei uma risada verdadeira que foi acompanhada por ele, que me abraçou pelos ombros e retomou a sua postura despreocupada.
- Ok gatinha, temos uma carta para terminar – falou finalmente e eu assenti. – Não queremos a dona Riley chamando a nossa atenção.
E assim voltamos a nossa tarefa, que não demorou a ser finalizada. Josh pareceu realmente se concentrar e não conversamos muito mais após isso. Nos despedimos de maneira simples, com ele me prometendo que eu voltaria na semana seguinte.
Enquanto eu pedia meu uber de volta, um sorriso bobo não saiu de minha boca e eu não via a hora de um novo encontro acontecer.
Continua...
Nota da autora: Sem nota.
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