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Última atualização: 14/07/2024

Prólogo

Draco POV

“Lar” é uma palavra curiosa.
O termo vem do lugar da casa onde se acende a lareira: o fogo, o fogão. O centro da casa, o lugar quente, onde há vida, alegra, força e esperança. Os livros de poemas encadernados em couro grosso que minha mãe mantinha em nossa biblioteca exibiam, porém, conotações diferentes para o vocábulo: às vezes o lar era uma pessoa; a pessoa amada.
Não sei dizer qual das duas definições se assemelharia mais à minha percepção do mundo. Só sei que o meu lar decididamente não era (e nem estava) ali, na ampla sala de visitas da Mansão Malfoy.
A enorme porta de carvalho se abriu, e desviei meu olhar para ela num átimo de segundo. As figuras altas de Severo Snape e Corban Yaxley se tornaram visíveis em meio à penumbra. A sala de jantar estava cheia de pessoas silenciosas, sentadas a uma comprida mesa ornamentada. Os móveis que habitualmente a guarneciam tinham sido empurrados descuidadamente contra as paredes. A iluminação provinha das chamas vivas da bela lareira, cujo console de mármore era encimado por um espelho dourado e um único porta retrato, pesado, de ouro, com uma foto que exibia todo o clã Black-Malfoy com rostos sérios, excetuando-se o meu: um menininho loiro de seis anos que ria no colo da mãe.
Snape e Yaxley pararam um instante à entrada, com os olhos voltados para o detalhe mais estranho da cena: o vulto de uma pessoa aparentemente desacordada suspensa de cabeça para baixo sobre a mesa, girando lentamente como se estivesse presa por uma corda invisível, e se refletindo no espelho e na superfície nua e lustrosa da mesa. Nenhuma das pessoas sentadas à roda dessa visão singular a encarava, exceto eu. Incapaz de me conter, erguia os olhos a todo instante. Só queria que aquilo acabasse de uma vez, para que aquela figura parasse de projetar sobre mim a culpa esmagadora que eu sentia no peito.
— Yaxley, Snape — falou uma voz aguda e clara da cabeceira da mesa —, vocês estão praticamente atrasados. Severo, aqui. — Ele indicou a cadeira imediatamente à sua direita. — Yaxley, ao lado de Dolohov.
Os dois homens ocuparam os lugares designados. Os olhares da maioria dos que estavam à mesa seguiram Snape, e foi a ele que Voldemort se dirigiu primeiro.
— E então?
— Milorde, a Ordem da Fênix pretende transferir Harry Potter do lugar seguro em que está, no sábado, ao anoitecer.
O interesse ao redor da mesa se intensificou perceptivelmente. Alguns enrijeceram, outros se mexeram, todos atentos a Snape e o Lorde das Trevas. Eu, porém, não poderia estar me importando menos. No fundo, esperava que a informação estivesse incorreta e eles todos se explodissem.
— Sábado... ao anoitecer — repetiu milorde. Seus olhos vermelhos se fixaram nos olhos pretos de Snape com tanta intensidade que alguns dos observadores desviaram o olhar, aparentemente receosos de serem atingidos pela ferocidade daquela fixidez. Snape, no entanto, sustentou esse olhar calmamente, e, após um momento, os lábios descarnados do Lorde se curvaram num aparente sorriso.
— Bom. Muito bom. E essa informação veio de...?
— Da fonte sobre a qual conversamos — disse Snape.
— Milorde.
Yaxley tinha se inclinado para a frente procurando ver seu mestre e Snape. Todos os rostos se voltaram para ele.
— Milorde, eu ouvi coisa diferente.
Yaxley aguardou, mas o Lorde não objetou, então ele prosseguiu.
— Dawlish, o auror, deixou escapar que Potter não será transferido até o dia trinta à noite, na véspera do seu aniversário de dezessete anos.
Snape sorriu.
— Minha fonte informou que planejam divulgar uma pista falsa; deve ser essa. Sem dúvida, lançaram em Dawlish um Feitiço para Confundir. Não seria a primeira vez, todos conhecem a sua suscetibilidade a feitiços.
— Posso lhe assegurar, Milorde, que Dawlish me pareceu muito seguro do que dizia — contrapôs Yaxley.
— Se foi confundido, é óbvio que parecerá seguro — disse Snape. — Garanto a você, Yaxley, que a Seção de Aurores não irá participar da proteção de Harry Potter. A Ordem acredita que estamos infiltrados no Ministério.
— Então, pelo menos nisso a Ordem acertou, hein? — comentou Avery, dando uma risadinha sibilada que ecoou pela mesa.
O Lorde das Trevas não riu. Seu olhar se desviou para o alto, para o corpo que girava vagarosamente, e ele pareceu se alhear.
— Milorde — continuou Yaxley —, Dawlish acredita que vão usar um destacamento inteiro de aurores na transferência do garoto...
O bruxo de feições ofídicas ergueu a mão grande e branca, e Yaxley calou-se imediatamente, observando, rancoroso, ele se dirigir outra vez a Snape.
— E em seguida, onde irão esconder o garoto?
— Na casa de um dos membros da Ordem — respondeu Snape. — O lugar, segundo a minha fonte, recebeu toda a proteção que a Ordem e o Ministério juntos puderam lhe dar. Acredito que seja mínima a chance de pormos as mãos nele uma vez que chegue ao destino, milorde, a não ser, é claro, que o Ministério tenha caído antes de sábado, o que, talvez, nos desse a oportunidade de descobrir e desfazer um número suficiente de feitiços, e passar pelos demais.
— E então, Yaxley? — interpelou-o o Lorde, a luz das chamas se refletindo estranhamente em seus olhos vermelhos. — O Ministério terá caído até sábado?
Mais uma vez, todas as cabeças se viraram. Yaxley empertigou-se.
— Milorde, a esse respeito tenho boas notícias. Consegui, com dificuldade e após muito esforço, lançar uma Maldição Imperius em Pio Thicknesse.
Muitos dos que estavam próximos de Yaxley pareceram impressionados; seu vizinho, Dolohov, um homem de cara triste e torta, deu-lhe um tapinha nas costas. Grande merda. Aos dezesseis anos eu também lançara uma Maldição Imperius e encontrara uma brecha nas barreiras mágicas de Hogwarts. Mas essa proeza nunca seria comemorada. Porque eu falhara. Não só com Voldemort, mas comigo mesmo também. E, principalmente, com ela.
— É um começo — disse milorde —, mas Thicknesse é apenas um homem, Scrimgeour precisa estar cercado por gente nossa para eu agir. Um atentado malsucedido à vida do ministro me causará um enorme atraso.
— É verdade, milorde, mas o senhor sabe que, na função de chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia, Thicknesse tem contato frequente não só com o próprio ministro como também com os chefes dos outros departamentos do Ministério. Acho que será fácil dominar os demais, agora que temos um funcionário graduado sob controle, e então todos podem trabalhar juntos para derrubar Scrimgeour.
— Isso se o nosso amigo Thicknesse não for descoberto antes de ter convertido o resto — afirmou seu mestre. — De qualquer forma, é pouco provável que o Ministério seja meu antes de sábado. Se não pudermos pôr a mão no garoto no lugar de destino, então teremos que fazer isso durante a transferência.
— Nesse particular, estamos em posição vantajosa, Milorde — disse Yaxley, que parecia decidido a receber alguma aprovação. — Já plantamos várias pessoas no Departamento de Transportes Mágicos. Se Potter aparatar ou usar a Rede de Flu, saberemos imediatamente.
— Ele não fará nenhum dos dois — disse Snape. — A Ordem está evitando qualquer forma de transporte controlada ou regulada pelo Ministério, desconfiam de tudo que esteja ligado àquele lugar.
— Tanto melhor — disse o Lorde. — Ele terá que se deslocar em campo aberto. Será muitíssimo mais fácil apanhá-lo.
Mais uma vez ele ergueu o olhar para o corpo que girava vagarosamente, então prosseguiu:
— Cuidarei do garoto pessoalmente. Cometeram-se erros demais com relação a Harry Potter. Alguns foram meus. Que Potter ainda viva deve-se mais aos meus erros do que aos seus êxitos.
As pessoas em volta da mesa o fitaram apreensivas, cada qual deixando transparecer o medo de ser responsabilizada por Harry Potter ainda estar vivo. Talvez fosse culpa minha. O bruxo, no entanto, parecia estar falando mais consigo mesmo do que com os demais, ainda atento ao corpo inconsciente no alto.
— Por ter sido descuidado, fui frustrado pela sorte e a ocasião, essas destruidoras dos planos, a não ser os mais bem traçados. Mas aprendi. Agora compreendo coisas que antes não compreendia. Eu é que devo matar Harry Potter, e assim farei.
Nisso, e em aparente resposta às suas palavras, ouviu-se um lamento repentino, um grito terrível e prolongado de infelicidade e dor. Muitos ao redor da mesa olharam para baixo, assustados, pois o som parecia vir do chão.
— Rabicho? — chamou o Lorde, sem alterar o seu tom de voz, baixo e reflexivo, e sem tirar os olhos do corpo que girava no alto. — Já não lhe disse para manter essa escória calada?
— Disse, M-Milorde — falou o homenzinho sentado na segunda metade da mesa, tão encolhido que, à primeira vista, sua cadeira parecia estar desocupada. E, levantando-se de um salto, saiu correndo da sala, deixando em seu rastro apenas um estranho brilho prateado.
— Como eu ia dizendo — continuou Voldemort, olhando mais uma vez para os rostos tensos dos seus seguidores —, agora compreendo melhor. Precisarei, por exemplo, pedir emprestada a varinha de um de vocês antes de sair para matar Potter.
Os rostos à sua volta expressaram apenas incredulidade; como se ele tivesse anunciado que queria um braço deles emprestado. Fechei as mãos com força para não tremer.
— Nenhum voluntário? — perguntou Voldemort. — Vejamos... Lúcio, não vejo razão para você continuar a ter uma varinha.
Meu pai ergueu a cabeça. Sua pele parecia amarela e cerosa à luz das chamas, e tinha os olhos encovados e sombrios. Quando falou, sua voz saiu rouca.
— Milorde?
— Sua varinha, Lúcio. Preciso de sua varinha.
— Eu...
Meu pai olhou de esguelha para minha mãe, que tinha o olhar fixo à frente, a pele mais pálida que o normal, os longos cabelos louros descendo pelas costas, mas, sob a mesa, seus dedos finos apertaram brevemente o pulso dele. Ao seu toque, papai enfiou a mão nas vestes e tirou uma varinha que passou ao Lorde, que a ergueu diante dos olhos vermelhos e examinou-a detidamente.
— De que é?
— Olmo, Milorde — sussurrou ele.
— E o núcleo?
— Dragão... fibra do coração.
— Ótimo — aprovou Voldemort. E, sacando a própria varinha, comparou os comprimentos.
Meu pai fez um movimento involuntário, e tive vontade de gritar por ter sido tão imprudente; por uma fração de segundo, pareceu que esperava receber a varinha de Voldemort em troca da sua. O gesto não passou despercebido ao Lorde, cujos olhos se arregalaram maliciosamente.
— Dar-lhe a minha varinha, Lúcio? Minha varinha?
Alguns dos presentes riram.
— Dei-lhe a liberdade, Lúcio, não é suficiente? Mas tenho notado que você e sua família ultimamente parecem menos felizes... alguma coisa na minha presença em sua casa os incomoda, Lúcio?
— Nada... nada, Milorde.
Tudo incomodava. A presença de cada uma daquelas pessoas dentro da minha casa, seus passos audíveis o tempo todo mesmo enquanto eu estava fechado no meu quarto, a consciência de que qualquer um deles poderia ter sido…
Não. Doía demais pensar nisso.
Quanta mentira, Lúcio...
A voz suave parecia silvar, mesmo quando a boca cruel parava de mexer. Um ou dois bruxos mal conseguiram refrear um tremor quando o silvo foi se intensificando; ouviu-se uma coisa pesada deslizar pelo chão embaixo da mesa. A enorme cobra apareceu e subiu vagarosamente pela cadeira de Voldemort. Foi emergindo, como se fosse interminável, e parou sobre os ombros do mestre: o pescoço do réptil tinha a grossura de uma coxa masculina; seus olhos com as pupilas verticais não piscavam. Voldemort acariciou-a, distraído, com seus dedos longos e finos, ainda encarando meu pai.
— Por que os Malfoy parecem tão infelizes com a própria sorte? Será que o meu retorno, minha ascensão ao poder, não é exatamente o que disseram desejar durante tantos anos?
— Sem dúvida, Milorde — respondeu papai. — É o que desejávamos... desejamos.
Lancei um brevíssimo olhar ao Lorde, com medo e raiva demais para encarar o bruxo.
— Milorde — disse uma mulher morena na outra metade da mesa, sua voz embargada pela emoção —, é uma honra tê-lo aqui, na casa de nossa família. Não pode haver prazer maior.
Minha tia, Bellatrix Lestrange. Estava sentada ao lado da irmã, tão diferente desta na aparência, com seus cabelos negros e olhos de pálpebras pesadas, quanto o era no porte e na atitude; enquanto mamãe sentava-se dura e impassível, Bellatrix se curvava para Voldemort, porque meras palavras não podiam demonstrar o seu desejo de maior proximidade.
— Não pode haver prazer maior — repetiu Voldemort, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, estudando o rosto de minha tia. — Isso significa muito, Bellatrix, vindo de você.
Com o rosto abaixado, arregalei os olhos. Então realmente tinha acontecido entre eles o que eu achava que tinha acontecido. O barulho durante a madrugada no quarto de hóspedes… A silhueta de Rodolfo Lestrange fumando no jardim enquanto a cabeceira da cama de sua esposa batia ruidosamente contra a parede… Se eu não estivesse tão tenso, teria estremecido de nojo.
O rosto dela enrubesceu e seus olhos lacrimejaram.
— Milorde sabe que apenas digo a verdade!
— Não pode haver prazer maior... mesmo comparado ao feliz evento que, segundo soube, houve em sua família esta semana?
Minha tia fitou-o, os lábios entreabertos, nitidamente confusa.
— Eu não sei a que está se referindo, Milorde.
— Estou falando de sua sobrinha. E de vocês também, Lúcio e Narcisa. Ela acabou de casar com o lobisomem Remo Lupin. A família deve estar muito orgulhosa.
Gargalhadas debochadas explodiram à mesa. Muitos se curvaram para trocar olhares divertidos; alguns socaram a mesa com os punhos. A cobra, incomodada com o barulho, escancarou a boca e silvou irritada, mas os Comensais da Morte nem a ouviram, tão exultantes estavam com a humilhação da sra. Lestrange e meus pais. O rosto da mulher, há pouco rosado de felicidade, tingiu-se de feias manchas vermelhas.
— Ela não é nossa sobrinha, Milorde — disse em meio às gargalhadas. — Nós, Narcisa e eu, nunca mais pusemos os olhos em nossa irmã depois que ela casou com aquele sangue ruim. A fedelha não tem a menor ligação conosco, nem qualquer fera com quem se case.
— E você, Draco, que diz? — perguntou Voldemort, e, embora falasse baixo, sua voz ressoou claramente em meio aos assovios e caçoadas. — Vai bancar a babá dos filhotes?
Olhei para meu próprio pai, sentindo minhas entranhas ficarem geladas e um enjoo se apossar de mim. Ele contemplava o próprio colo. Cruzei olhares com mamãe: ela balançou a cabeça quase imperceptivelmente, depois retomou seu olhar fixo na parede oposta. As gargalhadas aumentaram de volume.
— Já chega — disse Voldemort, acariciando a cobra raivosa. — Basta.
E as risadas pararam imediatamente.
— Muitas das nossas árvores genealógicas mais tradicionais, com o tempo, se tornaram bichadas — disse, enquanto Bellatrix o mirava, ofegante e súplice. — Vocês precisam podar as suas, para mantê-las saudáveis, não? Cortem fora as partes que ameaçam a saúde do resto.
— Com certeza, Milorde — sussurrou a irmã de minha mãe, mais uma vez com os olhos marejados de gratidão. — Na primeira oportunidade!
— Você a terá — respondeu Voldemort. — E, tal como fazem na família, façam no mundo também... vamos extirpar o câncer que nos infecta até restarem apenas os que têm o sangue verdadeiramente puro.
Ela tinha sangue puro. Ela tinha sangue puro e foi…
Voldemort ergueu a varinha de meu pai, apontou-a diretamente para a figura que girava lentamente, suspensa sobre a mesa, e fez um gesto quase imperceptível. O vulto recuperou os movimentos com um gemido e começou a lutar contra invisíveis grilhões.
— Você está reconhecendo a nossa convidada, Severo? — indagou Voldemort.
De baixo para cima, Snape ergueu os olhos para o rosto pendurado. Todos os Comensais agora olhavam para a prisioneira, como se tivessem recebido permissão para manifestar sua curiosidade. Quando girou para o lado da lareira, a mulher disse, com a voz entrecortada de terror:
— Severo, me ajude!
— Ah, sim — respondeu Snape enquanto o rosto da prisioneira continuava a virar para o outro lado.
— E você, Draco? — perguntou Voldemort, acariciando o focinho da cobra com a mão livre.
Sacudi a cabeça com um movimento brusco. Agora que ela acordara, eu era incapaz de continuar encarando-a.
— Mas você não teria se matriculado no curso dela — disse Voldemort. — Para os que não sabem, estamos reunidos aqui esta noite para nos despedir de Caridade Burbage que, até recentemente, lecionava na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts!
Ouviram-se breves sons de assentimento ao redor da mesa. Uma mulher corpulenta e curvada, de dentes pontiagudos, soltou uma gargalhada.
Caridade Burbage. Fechei os olhos com força, tentando evitar que as lembranças viessem com tanta força.

FLASHBACK ON

— Olá, professora Burbage — ela cumprimentou, recebendo um aceno animado em resposta. O olhar da mulher, porém, recaiu sobre mim, e um indisfarçado medo se apossou de seu rosto.
— Boa tarde, ! — ela desejou. Forçando cordialidade, se virou em minha direção: — Nunca imaginei que… que um M-Malfoy visitaria minha sala… — Apesar da voz fraquejar, notei um pouco de ternura invadir sua face quando ela falou: — Seja bem-vindo, querido.
— É — falei de má vontade, recebendo uma cotovelada de . Pigarreei, tentando desmontar um pouco da postura defensiva. — Quer dizer… obrigado, professora.


FLASHBACK OFF

— Sim... a profa. Burbage ensinava às crianças bruxas tudo a respeito dos trouxas... e como se assemelham a nós...
Um dos Comensais da Morte cuspiu no chão. Em seu giro, Caridade Burbage tornou a encarar Snape.
— Severo... por favor... por favor…
Silêncio — ordenou milorde, com outro breve movimento da varinha de meu pai, e Caridade silenciou como se tivesse sido amordaçada. — Não contente em corromper e poluir as mentes das crianças bruxas, na semana passada, a profa Burbage escreveu uma apaixonada defesa dos sangues ruins no Profeta Diário. Os bruxos, disse ela, devem aceitar esses ladrões do seu saber e magia. A diluição dos puros sangues é, segundo Burbage, uma circunstância extremamente desejável... Ela defende que todos casemos com trouxas... ou, sem dúvida, com lobisomens...
Desta vez ninguém riu: não havia como deixar de perceber a raiva e o desprezo na voz de Lorde Voldemort. Pela terceira vez, Caridade Burbage encarou Snape. Lágrimas escorriam dos seus olhos para os cabelos. Snape retribuiu seu olhar, totalmente impassível, enquanto ela ia girando o rosto para longe dele. Sentei na ponta da cadeira, minha coxa tremendo obsessivamente. Desejei com todas as minhas forças que ela não se dirigisse a mim, porque poderia ser minha ruína final.
Avada Kedavra.
O lampejo de luz verde iluminou todos os cantos da sala. Caridade caiu estrondosamente sobre a mesa, que tremeu e estalou. Vários Comensais pularam para trás ainda sentados, mas caí da cadeira para o chão.
— Jantar, Nagini — disse Voldemort com suavidade, e a grande cobra deslizou sinuosamente dos ombros dele para a lustrosa mesa de madeira.
Me recusei a olhar. O som da gigantesca serpente devorando o cadáver da professora de Estudo dos Trouxas, que me recebera em sua sala apesar de saber que minha família a odiava e me proporcionara um dos momentos mais especiais com , era demais para mim. Levantei do piso duro de mármore com o máximo de dignidade que ainda me restava, mas nem cheguei a sentar: com um gesto displicente, o Lorde das Trevas dispensou todos os convivas, e deixei o aposento o mais rápido que pude sem correr.
Adentrei meu quarto e fui direto em direção à lareira apagada, sentindo o vômito ácido e escaldante subir pela garganta e cair em meio à lenha. Lágrimas queimaram meus olhos, e limpei a boca com a manga da camisa antes de arrancá-la do corpo, todo suado.
Tudo ao meu redor girava, com as lembranças e realizações que instalaram um peso permanente em meu peito desde a noite do meu décimo sétimo aniversário: a Maldição da Morte seguida do som de um corpo caindo, logo depois de nossas mãos terem se soltado; os gritos de dor e medo que trouxeram uma esperança que logo me foi arrancada; a culpa podre de ter fugido sem olhar para trás; a tortura a qual fui submetido quando minha falha foi descoberta, e que só cessou quando Snape pediu que o Lorde me poupasse, já que a missão fora cumprida; e por fim… A pior de todas. A coruja negra que chegou à Mansão Malfoy com uma carta de Pansy, que continha as palavras, horrivelmente definitivas: “Perguntei a todo mundo, mas não encontraram nem o corpo dela… Eu sinto muito, Draco.”
Me joguei na cama, apertando o travesseiro contra o rosto com força, para abafar meu choro convulsivo e, se eu desse sorte, me sufocar.
Porque estava morta, e era tudo culpa minha.

Capítulo 1

POV
Duas aves bateram na minha janela naquela manhã. Numa confusão de penas e bicos, pois elas não pareciam muito satisfeitas com a presença uma da outra, deslizei o vidro pelos trilhos enferrujados e deixei que a arara azul e a coruja entrassem no quarto do Caldeirão Furado.
Twiggy, apressada como sempre, tirou o pequeno pedaço de pergaminho preso em sua pata com o bico e o depositou em minha mão. Era um pequeno bilhete na caligrafia de minha mãe, que parecia ter sido rabiscado sem muito cuidado em um pedaço rasgado de algum documento sem importância:

Deixei dinheiro no Gringotes pra você, use a chave que tem no seu malão.

Um nó desconfortável se instalou em meu peito enquanto pegava a carta maior, presa à pata da arara azul, que saiu voando imediatamente. Aquelas eram as aves que o Ministério da Magia brasileiro usava para comunicações oficiais, como, inclusive, a carta de admissão de Castelobruxo.
Rompi o lacre, me atentando à data de duas semanas antes e descendo meu olhar pelas linhas que eu já tinha certeza do que iam dizer.

Rio de Janeiro, 16 de julho de 1997
Gabinete do Chefe do Departamento de Aurores do Brasil

CARTA DE DISPENSA


Prezada srta. ,

o Ministério da Magia do Brasil informa que, devido ao fracasso constatado de sua missão nº 7, operação nº 009734, realizada na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, no Reino Unido, em favor da Segurança Internacional Bruxa, seus serviços como auror juvenil estão sendo dispensados por esta corporação por tempo indeterminado, não contando mais com o suporte oficial para quaisquer necessidades.

Para manter a segurança e o sigilo da operação, também informamos que a senhorita, a partir do envio desta carta, recebe a ordem de permanecer no Reino Unido, matriculada na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, não retornando para cursar seu sétimo ano na Instituição Mágica de Castelobruxo.

Cordialmente,
Auror , chefe do Departamento de Aurores.


Ri com escárnio, sentindo uma lágrima quente escorrer pela bochecha. Patético.
Era absurdo submeter menininhas de 11 anos ao Voto Perpétuo. Era desumano permitir que uma adolescente de 16 anos tomasse parte numa missão em que deveria seduzir outra pessoa, como uma prostituta ou pedaço de carne numa bandeja. Era cruel mandar uma garota tão nova para longe sem nenhum suporte direto para desempenhar uma tarefa tão delicada, complexa e perigosa. Não era de se admirar, portanto, que agora eles abandonassem a própria filha daquela forma. Com a angústia ameaçando transbordar em um choro descontrolado, constatei a verdade que já deveria ter constatado há muito tempo: eu não tinha nascido porque eles queriam um bebê, e sim porque eles queriam um sucessor. Uma arma perfeita, infalível e controlável por sangue e laços de família. Uma máquina de matar, com poderes e inteligência de uma bruxa excepcional, que nunca se rebelaria, porque passaria a vida toda acreditando que cada passo daquela trajetória fora sua própria escolha.
Rasguei a carta, jogando-a junto com o bilhetinho no fogo escasso que ardia na lareira do quarto apertado.
Tinha mais de um mês que eu estava hospedada ali no Caldeirão Furado. Irônico que eu estivesse tão perto de onde os estudantes de Hogwarts circulavam naquela época do ano, atrás de livros, pergaminho novo e varinhas.
Quando sumi de Hogwarts no dia que minha missão falhou, não tive tempo de avisar nada a ninguém, e sabia que seria dada como sequestrada ou morta. Porém, enviei uma carta para Fred Weasley, explicando que escapara, pedindo-o que informasse a meus amigos que eu conseguira fugir naquele dia e solicitando que não me enviasse nenhuma resposta, por medo de alguém conseguir interceptá-la. Pedi explicitamente que só contasse qualquer coisa depois que o ano letivo estivesse terminado.
Escolhi ele para ser o destinatário de minha carta pois era uma das poucas pessoas fora de Hogwarts que eu interagira e confiava o suficiente — era irmão de um dos meus melhores amigos e membro da Ordem da Fênix. Naturalmente, eu imaginava que ele tivesse repassado as informações a Harry, Rony e Hermione depois dos funerais de Dumbledore, mas ainda estava um pouco nervosa com a possibilidade de tentarem se comunicar comigo e serem pegos por Comensais da Morte.
Por mais que fosse algo esperado, no fundo a notícia que Alvo Dumbledore tinha sido assassinado, estampada na capa do Profeta Diário, me chocou. Minha mente não processava o fato de eu ter errado ao julgar o caráter e a alma de Draco Malfoy. Mas, afinal, erros estavam se tornando algo corriqueiro em minha vida.
Eu, , uma das melhores agentes secretas juvenis do mundo bruxo, estava aterrorizada, sozinha e com uma tatuagem feita a fogo no antebraço esquerdo que representava uma aliança com o maior bruxo das trevas da atualidade, ou talvez da História. Mal ousava sair do quarto, descendo as escadas somente para buscar um prato de comida e acompanhar os jornais que Tom, o dono do bar, disponibilizava aos fregueses, e dedicava o máximo do tempo que eu podia a dois objetivos principais: tentar descobrir como retirar a Marca Negra da minha pele e desvendar minha profecia.
Maldita Clarissa Manteuff. Por que não me contara o que poderia acontecer se eu me apaixonasse também? Por que não me avisara que o que serviria de vetor para a Marca Negra era exatamente o amor, e, que se este não fosse unilateral, eu acabaria passando para mim a caveira com as cobras? Será que aquele fora o objetivo deles o tempo todo? Ou simplesmente não ligavam para o destino de uma agente brasileira qualquer?
O tempo todo eu pensava em Draco. Não conseguia acreditar que ele tinha de fato matado Dumbledore, e me doía demais pensar que aquele garoto de olhos puros e ternos tinha se tornado um homicida. Ao mesmo tempo, minha mente se enchia com os terríveis tipos de punições que ele certamente sofrera por ter tido a Marca Negra removida. Chantagem, tortura…. Talvez ele nem estivesse vivo mais. Eu tentava expulsar aqueles pensamentos de minha cabeça virando a madrugada entre livros e anotações para tentar solucionar a enrascada em que eu me metera.
A imagem que me encarava de volta no espelho ia ficando cada vez mais pálida, destoando da de um ano antes: bronzeada, corajosa e ansiosa para a missão mais importante de sua vida. A que era a maior promessa do departamento de aurores, com índice de sucesso absoluto em todas as operações.
Mas eu falhara. E mais do que a frustração do fracasso, me corroía por dentro a consciência de duas coisas: as amizades que eu construíra e deixara para trás em Hogwarts, e o sentimento tão belo e puro que eu desenvolvera por Draco Malfoy, um Comensal da Morte de dezessete anos que fez todas as escolhas erradas.
Apesar disso, a carta de meus pais que eu acabara de receber me trouxera uma pontinha de esperança e algo em que eu podia me agarrar: eu estava livre. Fora dispensada de todas as minhas obrigações oficiais e estava exilada. Portanto… não tinha nada a perder.
Com isso em mente, pulei da cama e puxei um pedaço de pergaminho. Eu tinha alguém a quem recorrer. E agora finalmente podia fazê-lo. As linhas ficaram um pouco borradas pela velocidade que eu escrevia, borrando a tinta da pena ao passar a lateral da mão no ímpeto de escrever as palavras seguintes na maior rapidez possível. Usar canetas esferográficas, apesar de ser infinitamente mais prático, ainda me trazia uma pontada de incômodo e lembranças de uma pessoa que eu preferia não recordar demais. Despachei Twiggy e fiquei o resto do dia lendo e fazendo anotações perto da janela, de olho no céu para ver se minha saída estava a caminho.
Meu malão aparecera no exato lugar onde eu decidira aparatar depois de sair do Armário Sumidouro. Era um dos poucos privilégios de ser uma agente do governo: ter acesso a feitiços de localização e ter todos os meus pertences ligados a eles. Era praticamente impossível que eu perdesse qualquer um. Levantei da cadeira onde estivera sentada e abri a bagagem. Bem em cima, estavam minhas botas Prada, meus sapatos preferidos e que traziam tantas memórias agridoces que me machucavam… Calcei-as, girando pelo quarto sobre os saltos altos e me sentindo tremendamente infeliz, apesar de forçar um sorriso no rosto.
Antes que chegasse a hora do jantar, recebi uma resposta da sra. Weasley, e, antes mesmo que pudesse lê-la, ouvi duas batidas secas na porta.
Com o corpo em alerta e a carta na mão esquerda, empunhei a varinha e puxei a maçaneta com o trinco ainda impedindo a abertura total da passagem.
Uma mecha de cabelos coloridos e íris de cor violeta me observaram de volta.
— Oi, . Sou a Tonks. Vim te buscar.
Fiquei boquiaberta por um instante, mas logo me recompus. Meu coração dera um salto incômodo de saudade e perda; a mulher à minha frente era nitidamente uma metamorfomaga, como minha amiga Malena. Senti um nó se formando ali, misto de saudade e rancor. Como será que meu desligamento tinha sido informado a minhas amigas? Teria sido dito que eu era uma desertora? Uma traidora? Ou que minha missão ainda estava em andamento? Qualquer que fosse a desculpa, seria uma mentira. O Ministério era tão podre quanto as forças do mal que tentavam combater.
Com uma lida rápida no papel que segurava, constatei que Molly escrevera para me avisar exatamente aquilo, me agradecendo pelo contato e me convidando para passar os dias antes de meu retorno a Hogwarts em sua casa, para assistir ao casamento de seu primogênito. As palavras me tomaram o fôlego por um segundo doloroso. Será que eu realmente poderia voltar para Hogwarts? Será que conseguiria passar um ano inteiro escondendo minha Marca Negra de todos? Será que conseguiria encarar Draco, se ele estivesse lá, e assumir o impacto absurdo que ele causara no meu corpo, vida e coração?
— Ah — foi o que brilhantemente respondi. Fechei a porta para remover o trinco e a abri de novo, acenando simultaneamente com a varinha.
Tonks entrou. A garota, que deveria ser não mais do que uns quatro ou cinco anos mais velha, tinha um ar animado e otimista que contrastava bastante com o meu.
— Me mandaram porque eu sou auror, mas sou uma auror dispensável à segurança de Harry, pelo visto. — ela explicou, caminhando pelo quarto enquanto meus pertences e roupas iam magicamente se dobrando e entrando no malão. Parou diante de minha mesinha de cabeceira. — Mas algo me diz que você não é exatamente uma menininha indefesa, estou certa?
Tonks fez um gesto vago em direção aos livros de magia negra e aos artefatos, como bisbilhoscópios e um pequeno Espelho dos Inimigos, que repousavam ali.
— Se fosse, não teria saído de Hogwarts viva — respondi, dando de ombros como se comentasse sobre o tempo lá fora.
Os cabelos dela mudaram de cor; assumiram um tom turquesa dolorosamente familiar.
— Não guarde a vassoura — ela pediu, e minha Firebolt parou no ar, indo de encontro a minha mão. — Brasil, certo?
— Isso.
— Castelobruxo ou ensinada em casa?
Minha boca se curvou num sorriso leve, notando de imediato a real pergunta que ela queria fazer e respondendo prontamente.
— Sim, eu conheço Malena Xavier.
Tonks sorriu, fazendo seus fios retornarem ao tom róseo de antes.
— Boa garota — a auror estalou a língua. — Você e ela. Agora vamos logo. — Com um feitiço simples, o malão flutuou atrás de nós, prendendo-se às palhas de minha vassoura.
Em pouco menos de uma hora, estávamos sobrevoando a pequena cidade de Ottery St. Catchpole. Mesmo do alto, A Toca estava bem diferente do que eu me lembrava. Os preparativos para o casamento de Gui, irmão mais velho de Rony, e Fleur Delacour tinham modificado completamente o quintal da propriedade, que agora exibia um toldo madrepérola ainda desarmado cobrindo a grama.
Essas mudanças também eram visíveis em Molly Weasley. Minha anfitriã me recebeu efusivamente, mas parecia terrivelmente apreensiva quando me mandou segui-la, subindo as muitas escadas da casa até chegar a um dos andares mais altos, onde eu sabia ficar os aposentos de Rony.
A porta do quarto se escancarou, produzindo um estrondo de sacudir as paredes. Por uma fresta entre o batente e o corpo volumoso da sra. Weasley, pude ver Hermione gritar e deixar cair um livro, que tinha a capa muito semelhante à do Segredos das artes mais tenebrosas; seu gato, Bichento, disparou para baixo da cama, bufando indignado. Rony pulou da cama, escorregou em uma embalagem velha de sapos de chocolate e bateu a cabeça na parede oposta, e Harry, instintivamente, se jogou para apanhar sua varinha antes de perceber que estava vendo a sra. Weasley, que tinha os cabelos revoltos e o rosto contorcido de raiva.
— Lamento interromper essa reuniãozinha íntima — vociferou ela, com a voz trêmula. — Tenho certeza de que vocês precisam de descanso... mas há presentes de casamento empilhados no meu quarto que precisam ser separados, e tive a impressão de que vocês concordaram em ajudar.
Abafei uma risada atrás dela.
— Ah, sim — respondeu Hermione aterrorizada, levantando-se depressa e fazendo os livros voarem para todos os lados. — Ajudaremos... pedimos desculpas...
Com um olhar aflito para Harry e Rony, a garota saiu correndo do quarto atrás da sra. Weasley, mas deu um grito de susto e felicidade quando me viu, de pé, segurando minha mochila multicolorida e com um sorriso genuíno rasgando o rosto.
! — ela exclamou, pulando em cima de mim em uma demonstração de afeto que eu não esperava nem um pouco daquela britânica certinha.
Quando dei por mim, já estava chorando, liberando tudo junto: a raiva que sentia de meus pais, a emoção de estar de volta com meus amigos, a frustração de não entender minha própria profecia apesar de ter estudado exaustivamente cada verso, o medo gélido de ter uma Marca Negra e a dor de ter perdido para sempre o Draco Malfoy por quem me apaixonei.
Abracei Hermione com força, molhando a blusa dela com minhas lágrimas e ouvindo ela rir com a emoção de reencontrar sua amiga, que eu tinha certeza que muitos acreditavam estar morta.
—... vai parecer até que estamos de férias, não é? — ouvi a voz de Harry vindo pela escada.
Rony começou a rir, mas, ao ver a enorme pilha de presentes de casamento que os esperava no quarto da sra. Weasley, parou no ato. Seus olhos encontraram meu rosto enquanto eu pensava na melhor maneira de explicar tudo a Hermione. Em seguida, foi a vez de Potter processar minha presença e ficar embasbacado.
? — Harry, ao contrário do que eu imaginava que fosse acontecer, não teve uma reação de fúria ou desgosto: correu na minha direção, me segurando num abraço apertado que só me fez cair no choro de novo, com mais intensidade ainda. — Ah, , que saudade…
O ruivo ainda estava um pouco atordoado, mas se aproximou de mim para me envolver pelos ombros.
— O que houve com você? Por que sumiu e não falou direto com a gente? Por que Fred…?
— Por Merlim, Rony, deixe a garota respirar — riu Mione, com os olhos molhados e passando a mão pelas bochechas.
Harry ainda me analisava. Era nítido que mil perguntas invadiam a mente dele, mas só consegui focar no fato de o olhar dele estar exausto. Por fim, ele abriu a boca:
— Vamos procurar Horcruxes depois do casamento de Gui e Fleur.
Rony e Hermione encararam o amigo, estupefatos. Ele dissera a informação de uma forma tão crua e ríspida que nem tive tempo de absorver o peso dela antes de ele prosseguir.
— Eu não sei o que te fez correr, — continuou Harry. — Eu não sei o que aconteceu naquela noite. Fred nos disse que você tinha escapado dos Comensais… Então acho que você poderia nos explicar algumas coisas, porque também vamos te dar explicações sobre nossos planos.
Nunca o vira tão sério. Era como se tivesse envelhecido cinco anos em pouco mais de um mês. A angústia apertou meu peito. Não podia contar toda a verdade a eles, mas eu realmente lhes devia algumas informações. A única opção era omitir alguns detalhes, por mais que me doesse. Além disso, precisava ter cuidado com o que dizia; o Voto Perpétuo que eu fizera quando criança era definitivo e poderia me matar por uma simples palavra errada. Não poderia revelar que viera do Brasil como a representante de um esquadrão de elite de garotas tão psicologicamente machucadas quanto eu.
Decidida, andei com rapidez até a porta do quarto e a fechei, trancando-a e lançando um Feitiço Imperturbável. Respirando fundo, me virei para o trio e comecei.
— Eu não poderia contar isso para vocês, porque seria considerado o mais alto nível de traição. Mas eles me libertaram… Me desligaram oficialmente. — A frase teve um gosto amargo em minha boca. — Não sou uma intercambista. Sou uma agente convocada por Scrimgeour. — Engoli o princípio de choro que ameaçava fechar minha garganta. — Não posso contar mais do que isso... Preciso que acreditem em mim, acreditem que eu não quis nada disso e tive que fazer porque todas as escolhas foram tomadas por mim.
O choque no três rostos era idêntico; eles nem ao menos conseguiram questionar nada. Prossegui, contando o objetivo de minha missão, que estava fora do encantamento ao qual eu fora submetida.
— Minha missão era entrar em Hogwarts e tirar a Marca Negra de Draco Malfoy, porque, de algum jeito, sabiam que a guerra teria seu início na tatuagem dele. — A boca de Potter tremeu de indignação. — Sim, Harry, você esteve certo o tempo todo… E me doía toda vez que eu tinha que tentar dissuadir você dessa ideia, porque se não isso arruinaria a operação.
Ele trocou o peso do corpo de uma perna para outra, me encarando intensamente e trincando a mandíbula antes de dizer:
— E a única forma de remover algo como isso, uma magia negra poderosa…
— É com uma magia mais poderosa ainda — completou Mione, baixinho.
Assenti, apertando os olhos que ardiam.
— E você sabe qual é, não sabe? — questionei, com pesar.
— Sim. — Os olhos dela se marejaram. — A mesma que salvou Harry…
— O amor — o garoto disse. — Ele precisava amar você.
Sorri com tristeza.
— Sim. Ele precisava me amar. E, como vocês sabem, eu sou perfeitamente capaz de fazer uma Amortentia… Mas era necessário amor, e não uma mera obsessão ou paixão. E… — Minha voz se embargou. — Eu consegui. Eu consegui que ele me amasse. Mas…
Rony tinha os olhos muito arregalados, provavelmente chocado com a informação que Draco Malfoy, o garoto que ele tanto desprezava, pudesse nutrir amor por alguém além de si próprio.
— Mas não funcionou. Eu tentei… eu fui atrás dele naquela noite, eu sabia que ele teria que cumprir alguma tarefa, mesmo sem saber qual seria… — Mentira. Uma pontada de dor me tirou a voz por um segundo. — E ele disse que me amava. Eu toquei a Marca Negra com minha pulseira. — Ergui o braço esquerdo, cuja manga comprida cobria o lugar onde a tatuagem aparecera, mas exibia a joia com o diamante de Ravenclaw. Outra coisa que eles não podiam saber pela minha boca. — Mas não… — Um soluço cortou minha frase, e tive que parar.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Hermione.
— Você também o ama. Então a magia não funcionou.
Os olhos dela desceram por minha manga longa, que parecia tão sem propósito naquele dia abafado de verão, e eu soube que ela sabia.
Por isso minha amiga chorava. Por isso tinha ideia do meu desespero, da minha vergonha e da minha raiva…
Mas ficou em silêncio. Não perguntou, não insinuou, não contou aos outros. E isso me fez grata como nunca na vida.
Subi meus olhos para Harry. Eu me sentia suja. Podre. Como se minha alma parecesse ainda mais profana na presença do garoto de ouro, o Menino que Sobreviveu, o Eleito; Harry Potter, que tinha perdido tudo e mesmo assim continuava sendo a pessoa mais valente, pura e maravilhosa que eu conhecia.
E exatamente por isso ele se aproximou de novo de mim e me abraçou, sussurrando no meu ouvido para que ninguém além de nós dois soubesse o que foi dito.
— Eu não sei como isso aconteceu, eu não sei como você se apaixonou por ele… Mas eu sinto muito, .
— Eu também — murmurei em resposta.
Naquele instante, sendo envolvida pelos braços de Harry, tive a consciência de que nossas palavras não se referiam somente à minha situação com Draco, mas sim a todos os sofrimentos e provações que nós, dois adolescentes de dezesseis anos, já tínhamos passado e ainda estavam longe de chegarem ao fim.
Nos separamos depois do que deveria ter sido mais de um minuto, e logo em seguida um borrão — ou melhor, três borrões — de cabelos flamejantes vieram rapidamente pelo corredor, atropelando-se em meio a sons altos de aparatação. As emoções que eu acabar de experienciar tinham enfraquecido o Coloportus que lançara. Desfiz o feitiço por completo que lacrava a entrada do cômodo e a abri.
— Oi, gatinha — Fred foi o primeiro a pisar para dentro do quarto, abrindo um sorriso torto e ajeitando o cabelo para trás.
Sorri de volta e fui abraçá-lo, num agradecimento mudo por ter seguido minhas instruções. Ele me encarou, preocupado. Pelos meus cálculos, era apenas a terceira vez que nos víamos na vida, mas eu tinha a impressão que aqueles poucos encontros tinham sido suficientes para ele saber ler meu rosto melhor do que muitas pessoas. Dei-lhe um beijo no rosto.
A seu lado, Jorge estava com uma faixa de gaze enrolada em volta da cabeça, com uma mancha um pouco sangrenta exatamente onde uma de suas orelhas deveria estar.
— Cortesia do nosso querido professor Snape — ele apontou para o ferimento, com um ar quase cômico. — Acho que pelo visto ele estava cansado de nos confundir nas aulas ou quando ia nos dar broncas por jogar Bombas de Bosta nos corredores.
Contive uma risadinha para camuflar a preocupação, e também o abracei.
A próxima Weasley na fila era Gina, mas seus olhos não estavam em mim, e sim no rosto ainda marcado por lágrimas de Hermione. Ao notar que eu a encarava, porém, ela disfarçou e abriu um sorriso antes de me abraçar.
— Saudades de você, apanhadora.
— Saudades de você… capitã?
Ela me fitou meio assustada e sem entender.
— O capitão… é Harry…
— Ela já sabe, Gina — disse Rony.
— Oh. — O semblante iluminado dela se anuviou. — Então… ela vai com vocês?
Era de se esperar que eu encarasse Harry diante da pergunta, mas meus olhos foram atraídos para Hermione. Ela só entreabriu os lábios, mas a resposta era nítida na feição incerta. Eu não fazia ideia do mecanismo de minha Marca Negra. Poderia ser um rastreador. Eu nunca poderia me lançar numa missão com eles, vagando o Reino Unido ou até mesmo a Europa, atrás de fragmentos da alma de Lorde Voldemort, enquanto tivesse a aliança dele estampada em minha pele.
— Não — limpei a garganta em um pigarro, tentando soar natural. — Vou para Hogwarts junto com você… Não poderia abandonar o time de quadribol depois da vitória do ano passado, certo?
Ela deu risada, mas logo a alegria se reduziu a um sorriso triste. Fora naquele dia que ela e Harry tinham começado a namorar, e agora ele iria para longe, numa jornada perigosa e precária, certamente com pouquíssimos indicadores do que fazer. Uma lembrança agridoce, sem dúvidas.
— Bom — Fred cortou o silêncio desagradável —, acho que minha adorável mamãe deu uma tarefa e tanto para vocês, não é mesmo?
Me virei para o trio em interrogação.
— Arrumar esses presentes de casamento — Rony bufou.
Puxei minha varinha do bolso lateral da mochila e fechei os olhos, me concentrando. Com meia dúzia de movimentos complicados no ar, os presentes estavam devidamente abertos, desembrulhados e organizados em prateleiras organizadas.
Accio pergaminho — enunciei, batendo na folha que voou até minha mão e entregando-a, toda preenchida, na mão de Gina. — Prontinho. Tudo organizado em ordem alfabética com os respectivos itens dados para enviar os bilhetes de agradecimento.
Os seis jovens presentes na sala me encararam embasbacados e gargalhadas de choque irrompendo de uma só vez.
— O que achar de virar Weasley, ? — Jorge pegou minha mão, galanteador. — Eu estou totalmente disponível.
— Pff, até parece, maninho — Fred rebateu, pegando minha outra mão. — Todo mundo sabe que eu sou o gêmeo bonito.

* * *

Os Delacour chegaram na manhã seguinte às onze horas. Os caldeirões enferrujados e as botas velhas que, em geral, coalhavam a escada para a porta dos fundos, tinham desaparecido e sido substituídos por dois grandes vasos com arbustos tremulantes a cada lado da porta; embora não houvesse brisa, as folhas balançavam preguiçosamente, produzindo um belo efeito ondulante. As galinhas tinham sido trancadas no galinheiro, o quintal varrido e o jardim anexo fora despojado das folhas velhas, podado e, de um modo geral, cuidado, não exibindo mais a impressionante população de gnomos saltitantes que eu conhecera no Natal do ano anterior.
Eu mantivera uma vaga noção da quantidade de feitiços de segurança que tinham sido lançados sobre A Toca, tanto pela Ordem quanto pelo Ministério; barreiras físicas, azarações permanentes e perturbadores mentais inviabilizavam a possibilidade de alguém viajar por magia até ali. O sr. Weasley, portanto, fora esperar os Delacour no alto de um morro próximo, onde a família chegaria por Chave de Portal. O primeiro sinal de sua aproximação foi uma gargalhada anormalmente aguda, dada pelo sr. Weasley, soube-se depois, que apareceu ao portão em seguida, carregado de malas à frente de uma bela loira de longas vestes verde-folha, que só poderia ser a mãe de Fleur. O sr. Delacour não era nem de longe atraente como sua mulher; era uma cabeça mais baixo que ela, além de extremamente gordo, e usava uma barbicha pontuda e preta. Parecia, contudo, uma pessoa bem-humorada. Sacudindo-se nas botas de salto em direção à sra. Weasley, ele lhe aplicou dois beijos em cada bochecha, deixando-a perturbada.
Vocês tiverram tante trrabalhe… Fleur nos contou qu’andarram trrabalhando muite mesme.
— Ah, não foi nada, absolutamente nada! — gorjeou a sra. Weasley. — Não foi trabalho algum!
Rony aliviou sua frustração mirando um pontapé em um gnomo que estava espiando atrás de um dos vasos com arbustos tremulantes.
Minhe carra senhorra! — replicou o sr. Delacour, ainda segurando a mão da sra. Weasley entre as suas, muito gorduchas, e dando-lhe um radiante sorriso. — Nos sentimes muite honrrrades com a eminente união de nosses famílies! Deixe-me arpresentarr-lhe minhe mulherr, Apolline.
Madame Delacour adiantou-se como se deslizasse e se curvou para beijar a sra. Weasley também. Era bem óbvia a ascendência veela de Apolline Delacour.
Enchantée. Se marrido esteve me contanto histórrias muite diverrtidas!
O sr. Weasley soltou uma risada exagerada; a sra. Weasley lançou-lhe um olhar que o fez calar-se imediatamente e assumir uma expressão mais apropriada a uma visita a um amigo doente no hospital. Não o julgava; a magia sedutora das veelas era potente demais mesmo quando diluída no sangue.
E, naturralmente, já conhecem minhe filhinea Gabrrielle! — disse Monsieur Delacour.
Gabrielle era uma Fleur em miniatura; onze anos, cabelos louros platinados, a garota dirigiu um sorriso ofuscante à sra. Weasley, abraçou-a e, pestanejando, lançou um olhar intenso a Harry. Gina pigarreou alto.
— Então, entrem, por favor! — convidou a sra. Weasley animada, levando os hóspedes para dentro.
Recebi dois beijinhos e fui a única a não ficar assustada com aquilo; era algo tão corriqueiro para uma brasileira que me trouxe até mesmo um pouco de conforto e saudades de casa.
Os pais de Fleur eram hóspedes prestativos e agradáveis. Mostravam-se satisfeitos com tudo e desejosos de ajudar nos preparativos do casamento. Monsieur Delacour considerou tudo, desde a distribuição de lugares até os sapatos das damas de honra. Apolline era muito talentosa com feitiços domésticos e deixou o forno limpo em segundos; Gabrielle seguia a irmã mais velha pela casa, tentando ajudar no que pudesse, tagarelando em um francês muito rápido, e ficou surpresa quando descobriu que eu conseguia arriscar palavras o suficiente para fazê-la me entender razoavelmente no idioma.
As oportunidades de o trio se reunir para fazer planos praticamente deixaram de existir, e foi por desespero que Harry, Rony e Hermione passaram a se oferecer para dar comida às galinhas só para fugir da casa demasiado cheia. Quando consegui me livrar do falatório de Elle Delacour, como era apelidada pela família, fui acompanhá-los.
— Nem assim ela vai nos deixar em paz! — reclamou Rony quando a segunda tentativa de se encontrarem no quintal foi frustrada pelo aparecimento da sra. Weasley, carregando um grande cesto de roupa lavada nos braços.
— Ah, ótimo, vocês já alimentaram as galinhas — disse ao se aproximar. — É melhor prendê-las outra vez no galinheiro antes que os homens cheguem amanhã... para armar a tenda para o casamento — explicou, parando e se apoiando à parede da casa. Ela parecia exausta. — Tendas Mágicas Millamant… eles são muito bons. Gui vai acompanhá-los... é melhor você não sair de casa enquanto estiverem aqui, Harry. Devo confessar que complica bastante organizar um casamento, com tantos feitiços de segurança pela propriedade.
— Lamento muito — respondeu Harry com humildade.
— Ah, não seja tolo, querido! — exclamou a sra. Weasley imediatamente. — Não quis me referir... bem, a sua segurança é muito mais importante! Aliás, eu estava pensando em lhe perguntar como vai querer comemorar o seu aniversário, Harry. Afinal, dezessete anos é uma data importante...
— Não quero incomodar — disse Harry depressa, imaginando a pressão adicional que isso traria a todos. — Realmente, sra. Weasley, um jantar normal seria ótimo... é a véspera do casamento...
— Ah, bem, se você tem certeza, querido. Vou convidar Remo e Tonks, posso? E Hagrid?
— Seria ótimo. Mas, por favor, não se incomode demais.
— Não, não mesmo... não será incômodo...
A bruxa lhe lançou um olhar demorado e inquisitivo, depois sorriu com certa tristeza e, se aprumando, afastou-se.
Vi nos olhos dele como ele se sentia culpado com tudo aquilo. Era mais um fardo que o Eleito tinha que carregar, mas fui tomada por um pensamento egoísta: pelo menos ali eu não poderia ser encontrada pelos Comensais da Morte… Na verdade, por um Comensal da Morte específico. E para mim era uma pequena vitória, pois eu planejava adiar ao máximo o momento em que teria que encará-lo. Meu amor por um assassino me fazia apodrecer por dentro e me sentir a pessoa mais indigna de todas, mas não ousei dizer nada. Harry sempre fora salvo pelo amor, pela magia pura e poderosa que o circundava, mas para mim, era como veneno.
Um veneno doce que eu parecia incapaz de parar de beber até a última gota.

Capítulo 2

POV

Eu e Mione acordamos cedo na manhã seguinte. Ela estava eufórica, remexendo numa bolsinha de contas que fazia barulho demais.
— Ah, qual é. Não são nem oito da manhã e você já está vestida e executou um Feitiço Indetectável de Extensão — resmunguei, rolando na minha cama de armar e ouvindo-a ranger.
— Bom dia pra você também, Miss Simpatia. — Ela sorriu de um jeito estranho, enfiando o braço até o cotovelo dentro da bolsa, o que, a um trouxa, pareceria fisicamente impossível. Puxou um pequeno embrulho. — Hoje é aniversário do Harry.
— Ah, meu Deus — Tampei meu rosto com o travesseiro. — Esqueci totalmente de comprar alguma coisa pra ele.
Obviamente me senti mal, mas a preocupação com a profecia e minha Marca Negra apagaram totalmente de minha cabeça assuntos mundanos como presentes de aniversário.
, não se incomode tanto com isso — ela apaziguou, colocando a bolsinha em cima de sua colcha. — Qualquer coisa você pede alguma coisa pelo serviço de Encomenda-Coruja. Ou melhor, compra algum artigo dos gêmeos. Eles devem ter aqui na casa.
— Boa ideia — Pulei da cama e mais que depressa corri até o quarto que Fred e Jorge compartilhavam, batendo energicamente na porta.
Fui recebida por uma onda de cheiro de sabonete, cabelos ruivos escurecidos pela água, assumindo um tom de castanho, e um abdômen nu salpicado de sardas. Não pude evitar compará-lo com o de Malfoy: era mais largo e robusto, mas não tão definido.
De nada por agraciar sua manhã com essa visão do paraíso, — gracejou Fred, apoiando o cotovelo no batente. Qualquer outra garota teria corado, mas eu só ergui as sobrancelhas. — O que traz Vossa Alteza dos Feitiços de Arrumação aos nossos humildes aposentos?
— Aposto que ela considerou nossas propostas de casamento e quer aproveitar a comemoração de Gui e Fleur — ouvi a voz de Jorge palpitar atrás do irmão. Ele segurava alguns artigos de higiene e uma toalha pendurada no ombro.
— Não foi dessa vez que vocês conseguiram me seduzir com essa tentadora proposta — foi o que respondi a Jorge, que saiu pela porta em direção ao banheiro com uma careta de falso pesar. — E você acha que isso é a visão do paraíso porque claramente nunca viu o que eu vejo quando me olho no espelho.
— Talvez você pudesse me mostrar quando essa confusão toda acabar. — Ele cruzou os braços, fazendo os músculos do tórax saltarem um pouco. — E por confusão eu quero dizer o casamento, claro. Não a iminente guerra bruxa que pode matar todos nós.
Ri da sugestão e da piada ácida.
— Vou guardar esse convite especial para outra oportunidade.
— Eu sei reconhecer um fora educado quando vejo um, . — Fred pôs a mão no peito, como se tivesse sido atingido por uma ofensa. Logo, porém, abriu um sorriso alegre de novo. — Sorte sua que não sou rancoroso. Mas agora sério, o que te traz aqui?
— Preciso de algo pra dar para o Harry.
— Oh, que ótima amiga você é — alfinetou ele, fazendo um gesto para que eu entrasse no quarto. Pescou uma camisa azul marinho de cima da escrivaninha e a vestiu, escondendo o tronco. — E não faça essa cara de decepcionada, não posso ficar expondo essa escultura perfeita — ele indicou o próprio corpo — por aí.
Revirei os olhos.
— Eu e Jorge já vamos dar pra ele uma caixa com alguns artigos da loja — ele ignorou minha reação e continuou falando —, mas posso tirar do nosso kit o produto que você escolher comprar e substitui-lo por outro. Temos Febricolate, Vomitilhas, Fogos Espontâneos, Pó Escurecedor Instantâneo…
— Isso — falei tão abruptamente que ele tomou um susto. — Quer dizer — pigarreei —, pode ser esse Pó Escurecedor. Uns cinco pacotinhos, está bem? Quanto fica?
— Quinze sicles. — Me entregou uma pequena caixa contendo os vidrinhos negros. — Mas eu faço por treze para uma garota bonita como você.
Joguei uma moeda dourada na direção dele: um galeão, equivalente a dezessete sicles.
— Fica com o troco.
Ele assobiou.
— Tem certeza que não quer casar comigo?
Ri e soprei um beijo no ar enquanto descia as escadas.
— Feliz aniversário, Harry! — desejou Hermione, entrando apressada na cozinha, seguida por mim, e acrescentando o seu presente ao topo da pilha que ocupava a mesa. — Não é muita coisa, mas espero que goste. Que foi que você deu a ele? — perguntou a Rony, que pareceu não tê-la ouvido.
— Anda logo, abre o presente da Hermione! — disse Rony.
A garota comprara um novo bisbilhoscópio para Harry. Os outros embrulhos continham um barbeador encantado de Gui e Fleur, bombons do casal Delacour e uma enorme caixa com as últimas Gemialidades Weasley dos gêmeos, como Fred me contara.
— Aqui, Harry. Espero que goste — falei timidamente, lhe entregando a caixa que comprara naquela mesma manhã.
Ele abriu o suficiente para espiar o conteúdo, e ficou congelado por um segundo. Abaixei os olhos.
— Funcionou para ele — sussurrei. — Dessa vez, quero garantir que as coisas funcionem para você.
— Obrigado — ele falou, e senti sinceridade em sua voz.
O trio e eu não nos demoramos à mesa, porque a chegada de Madame Delacour, Fleur e Gabrielle deixou a cozinha muito cheia e desconfortável.
— Eu guardo isso para você — disse Hermione animada, tirando os presentes dos braços de Harry enquanto voltávamos para o andar de cima. — Quase terminei, só estou esperando suas calças acabarem de lavar, Rony...
A resposta engrolada de Rony foi interrompida pela abertura de uma porta no primeiro andar.
— Harry, você pode vir aqui um instante?
Era Gina. Rony parou abruptamente, mas Hermione agarrou-o pelo cotovelo e puxou-o escada acima. Nervoso, Harry entrou com Gina no quarto.
— Mas o que… Hermione, você não espera que eu deixe eles ficarem sozinhos dentro de um quarto, certo? — ele questionou, alarmado. Segurei seu cotovelo para evitar que ele se soltasse do braço de Hermione.
— Rony, pelo amor de Deus, seja razoável — ela respondeu, revirando os olhos. — Não é como se seu melhor amigo fosse deflorar a sua irmã em cinco minutos numa conversa com o mínimo de privacidade.
A expressão no rosto de Ronald deixava claro que ele considerava aquilo uma possibilidade bem real.
— Ele está brincando com os sentimentos dela! Da minha irmãzinha!
— Ela não tem nada de “inha” já há vários anos — pontuei. — Gina é uma moça, pare de tratar ela como criança.
Rony nos olhou como se ponderasse, mas aproveitou que afrouxamos o aperto para pular os degraus e, apesar de nossos protestos, escancarar a porta contra a parede. Os dois ocupantes do cômodo se separaram, sobressaltados.
— Ah — disse Rony incisivamente. — Desculpem.
— Rony! — Hermione bronqueou, ligeiramente ofegante. Fez-se um silêncio constrangido, quando Gina disse inexpressivamente:
— Bem, enfim, Harry, feliz aniversário.
As orelhas de Rony ficaram vermelho-vivo; Hermione parecia nervosa. Harry olhou para Gina, nitidamente querendo lhe dizer alguma coisa mas sem saber muito o quê; contudo, ela lhe virou as costas.
— A gente se vê mais tarde — disse ele, e nos acompanhou para sairmos do quarto.
Rony desceu pisando firme, passou pela cozinha cheia e saiu para o quintal, Harry seguiu-o de perto ao meu lado e Hermione, quase correndo, foi atrás dos dois com ar assustado.
Quando chegaram ao isolamento do gramado recém-aparado, Rony se voltou para Harry.
— Você deu o fora em Gina. Que está fazendo agora se metendo com ela?
— Não estou me metendo com ela — retorquiu Harry no momento em que Hermione nos alcançava.
— Rony...
O garoto, porém, ergueu a mão pedindo que a amiga se calasse.
— Ela ficou realmente arrasada quando você terminou...
— Eu também fiquei. Você sabe por que terminei, e não foi porque quisesse.
— É, mas agora fica de beijos e abraços, renovando as esperanças da minha irmã...
— Ela não é idiota, sabe que não pode ser, não está esperando que a gente... a gente acabe casando nem...
— Se você não para de se atracar com a Gina sempre que tem uma chance...
— Não vai acontecer outra vez — retrucou Harry com rispidez. — Ok?
Rony fez uma cara entre ressentida e sem graça; balançou-se sobre os pés para a frente e para trás por um instante, então disse:
— Certo, então, bem, é... isso.
Gina não buscou outro encontro a sós com Harry o resto do dia, nem, por olhar ou gesto, demonstrou que tivessem tido mais do que uma conversa cordial em seu quarto. A chegada de Carlinhos foi um alívio para o grupo. Era engraçado observar a sra. Weasley forçar o filho a sentar em uma cadeira, erguer a varinha ameaçadoramente e anunciar que ia lhe fazer um corte de cabelos decente.
Como o aniversário de Harry teria feito a cozinha d’A Toca explodir de tanta gente, mesmo antes da chegada de Carlinhos, Lupin, Tonks e Hagrid, foram colocadas várias mesas ao comprido, no jardim. Fred e Jorge conjuraram algumas lanternas roxas, enfeitadas com um grande número 17 para pendurar no ar sobre as mesas. Graças aos cuidados da sra. Weasley, o ferimento de Jorge estava sarando, processo esse que vinha sendo acompanhado por muitas piadas dos gêmeos sobre a mutilação. Hermione fez irromperem da sua varinha serpentinas roxas e douradas e arrumou-as artisticamente sobre árvores e arbustos.
— Bonito — comentou Rony, quando a garota, com um floreio final da varinha, dourou as folhas da macieira-brava. — Você realmente tem gosto para esse tipo de coisa.
— Muito obrigada, Rony! — disse Hermione, parecendo ao mesmo tempo contente e um pouco envergonhada.
— Abram caminho, abram caminho! — cantarolou a sra. Weasley, passando pelo portão com algo que lembrava um pomo de ouro do tamanho de uma bola de piscina flutuando à sua frente. Era o bolo de aniversário de Harry, que a sra. Weasley trazia suspenso com a varinha, para não se arriscar carregá-lo pelo terreno acidentado.
Quando o bolo finalmente aterrissou no meio da mesa, Harry elogiou:
— Fantástico, sra. Weasley!
— Ah, não é nada, querido — respondeu-lhe a bruxa carinhosamente.
Por volta das sete horas, todos os convidados tinham chegado e sido levados ao interior da casa por Fred e Jorge, que os esperavam no fim da estradinha. O professor Hagrid usava um terno marrom peludo que parecia ser uma extensão de sua própria barba, e parecia não caber em si mesmo de contentamento. Embora Remo Lupin sorrisse ao apertar minha mão, notei um resquício de infelicidade indefinível. Era muito esquisito; ao seu lado, Tonks parecia simplesmente radiante. Não tardei a compreender que eram um casal.
— Feliz aniversário, Harry — ela lhe desejou, abraçando-o com força.
— Dezessete anos, hein! — exclamou Hagrid aceitando um copo de vinho do tamanho de um balde das mãos de Fred. — Faz seis anos que nos conhecemos, Harry, lembra?
— Vagamente — respondeu Harry, rindo para o amigo. — Você não derrubou a porta de casa, botou um rabo de porco em Duda e disse que eu era bruxo?
— Esqueci os detalhes — comentou Hagrid com uma gargalhada. — Tudo bem, Rony, Hermione, ?
— Estamos ótimos — respondeu Hermione. — E você, como vai?
— Hum, nada mal. Andei ocupado, temos uns unicórnios recém-nascidos, mostro a vocês quando voltarem…
Minha atenção se desfocou um pouco da conversa. Me preocupei em analisar os integrantes da mesa e fazer um breve compilado das informações que eu colhera sobre cada um; os velhos instintos de agente não se desvaneceram. E foi nesse instante que notei uma ausência contundente no jantar. Mas onde ele estaria?
A pergunta foi respondida minutos depois, não pela chegada de Arthur Weasley, mas sim pela de uma doninha prateada feita de luz: um Patrono mensageiro.
— O ministro da Magia está vindo comigo.
Larguei meus talheres num estalo e comecei a suar frio.
O ministro da Magia.
— Nós não devíamos estar aqui — disse Lupin na mesma hora. — Harry... lamento... explicarei outra hora...
E, agarrando Tonks pelo pulso, levou-a embora; ao chegarem à cerca, os dois a transpuseram e desapareceram. A sra. Weasley demonstrava espanto.
— O ministro... mas por quê... Não estou entendendo...
Não houve, porém, tempo para discutirem o assunto; um segundo depois, o sr. Weasley apareceu ao portão acompanhado por Rufo Scrimgeour, instantaneamente reconhecível pela juba grisalha. Os recém-chegados atravessaram o quintal e, com passos firmes, se dirigiram ao jardim e à mesa iluminada pelas lanternas, onde todos aguardavam em silêncio, observando sua aproximação. Quando Scrimgeour entrou no perímetro iluminado pelas lanternas, pude constatar que o ministro parecia muito mais velho do que da última vez que tínhamos nos visto.
— Desculpem a intrusão — disse Scrimgeour, ao parar diante da mesa. — Principalmente porque posso ver que estou penetrando em uma festa para a qual não fui convidado.
O seu olhar se demorou por um momento no gigantesco pomo de ouro.
— Muitos anos de vida.
— Obrigado — disse Harry.
— Preciso dar uma palavrinha com você em particular — continuou Scrimgeour. — E também com o sr. Ronald Weasley, srta. Hermione Granger… e srta. .
— Nós?! — exclamou Rony em tom surpreso. — Por que nós?
Levantei-me com rapidez e me aproximei do ministro.
— Eles não sabem — menti. — Nada que aconteceu foi culpa deles…
Mas o homem me ignorou, como o babaca prepotente que sempre se mostrara ser.
— Explicarei quando estivermos em lugar mais reservado. Há na casa um lugar assim? — perguntou ao sr. Weasley.
— Naturalmente — disse o sr. Weasley, parecendo nervoso. — A... a sala de visitas, pode usá-la.
— Mostre-me onde é — disse Scrimgeour a Rony. — Não haverá necessidade de nos acompanhar, Arthur.
O casal dono da casa trocou um olhar preocupado quando os outros três se levantaram também. Sem opções, segui o grupo, agradecendo mentalmente por pelo menos estar de posse de minha varinha naquele momento.
O ministro não falou quando passamos pela cozinha desarrumada e entraram na sala de visitas d’A Toca. Scrimgeour sentou-se na poltrona de molas frouxas que o sr. Weasley normalmente ocupava, deixando que Harry, Rony e Hermione se apertassem lado a lado no sofá. A inquietação me impediu de sentar. Uma vez acomodados, o ministro falou:
— Tenho algumas perguntas a fazer a todos, mas acho que será melhor fazê-las separadamente. Se vocês — ele apontou para mim, Harry e Hermione — puderem esperar lá em cima, começarei pelo Ronald.
— Não vamos a lugar algum — disse Harry, secundado por um vigoroso aceno de cabeça de Hermione. — O senhor pode falar com todos juntos ou não falar com nenhum.
Scrimgeour lançou a Harry um frio olhar de avaliação.
— Muito bem, então, juntos — disse ele, sacudindo os ombros. E pigarreou. — Estou aqui, como bem sabem, por causa do testamento de Alvo Dumbledore.
O trio se entreolhou e eu encarei o ministro com mais intensidade, meu rosto se contorcendo em incredulidade. Então ele ia simplesmente ignorar o fato de eu ter falhado numa missão pedida por ele?
— Pelo visto é surpresa! Vocês não sabiam que Dumbledore tinha lhes deixado alguma coisa?
— A... aos três? — perguntou Rony. — A mim e Hermione também?
— A todos… Aos quatro.
O trio me encarou de soslaio. Harry, no entanto, cortou o clima estranho.
— Já faz mais de um mês que Dumbledore faleceu. Por que demoraram tanto para nos entregar o que ele nos deixou?
— Não é óbvio?! — exclamou Hermione, antes que Scrimgeour pudesse responder. — Queriam examinar seja lá o que ele tenha nos deixado. O senhor não tinha o direito de fazer isso! — Sua voz tremia levemente.
— Tinha todo o direito — disse Scrimgeour sumariamente. — O Decreto sobre Confisco Justificável dá ao ministro o poder de confiscar os bens de um testamento...
— A lei foi criada para impedir os bruxos das trevas de legarem seus objetos — retorquiu Hermione —, e o Ministério precisa ter fortes provas de que os bens do falecido são ilegais antes de apreendê-los! O senhor está nos dizendo que julgou que Dumbledore estivesse tentando nos passar objetos malditos?
Não pude evitar o sorriso orgulhoso que se formou em minha boca. Hermione era foda!
— Srta. Granger, está pretendendo fazer carreira em Direito da Magia?
— Não, não estou — retrucou Hermione. — Tenho esperança de fazer algum bem no mundo!
Rony riu. Os olhos de Scrimgeour piscaram em sua direção e tornaram a se desviar quando Harry falou.
— Então, por que resolveu nos entregar o que nos pertence agora? Não conseguiu pensar em um pretexto para manter os objetos em seu poder?
— Não, deve ser porque os trinta e um dias venceram — respondeu Hermione imediatamente. — O Ministério não pode reter objetos por prazo superior, a não ser que sejam comprovadamente perigosos. Certo?
— Você diria que era íntimo de Dumbledore, Ronald? — perguntou Scrimgeour, ignorando Hermione. Rony pareceu surpreso.
— Eu? Não... muito... era sempre Harry quem...
Rony olhou para os amigos e viu Hermione lhe dando aquele olhar “cale-já-a-boca!”, mas o estrago já fora feito: Scrimgeour fez cara de quem acabara de ouvir exatamente o que tinha esperado e queria ouvir. Avançou na deixa de Rony como uma ave de rapina.
— Se você não era muito íntimo de Dumbledore, como explica que tenha se lembrado de você no testamento? Ele deixou excepcionalmente pouco a indivíduos. A maior parte dos seus bens... sua biblioteca particular, seus instrumentos mágicos e outros pertences... foram legados a Hogwarts. Por que acha que mereceu destaque?
— Eu... não sei — respondeu Rony. — Quando digo que não éramos íntimos... Quero dizer, acho que ele gostava de mim...
— Você está sendo modesto, Rony — interveio Hermione. — Dumbledore gostava muito de você.
Para mim, a questão mais absurda não era Rony nem Hermione receberem relíquias do falecido diretor. Por que diabos eu estava no testamento? Conversara com Dumbledore no máximo três vezes na vida, se muito. Ele dissera que conhecia meu pai, mas por que isso justificaria o recebimento de uma herança dele?
Contudo, Scrimgeour não parecia estar escutando. Meteu a mão sob a capa e puxou uma grande bolsa de cordões. Da bolsa, tirou um rolo de pergaminho, que abriu e leu em voz alta.
— “Últimas vontades de Alvo Percival Wulfrico Brian Dumbledore...”, sim, aqui está, “a Ronald Weasley, deixo o meu desiluminador, na esperança de que se lembre de mim quando usá-lo.”
Scrimgeour tirou da bolsa um objeto que parecia um isqueiro de prata. Scrimgeour se inclinou para a frente e passou o desiluminador a Rony, que o recebeu e examinou entre os dedos com ar de perplexidade.
— Isto é um objeto valioso — comentou Scrimgeour, observando Rony. — Talvez seja único no mundo. Com certeza foi projetado pelo próprio Dumbledore. Por que ele teria lhe legado algo tão raro?
Rony sacudiu a cabeça, aturdido.
— Dumbledore deve ter tido milhares de alunos — insistiu Scrimgeour. — Contudo, os únicos de que se lembrou em seu testamento foram vocês quatro. — Ele se virou em minha direção, apertando os olhos. — Entre os quais uma intercambista que ele conhecia havia pouco menos de um ano… Por que será? Que uso ele terá pensado que o senhor daria a esse desiluminador, sr. Weasley?
— Apagar luzes, suponho — murmurou Rony. — Que mais eu poderia fazer com ele?
Evidentemente Scrimgeour não teve outras sugestões a dar. Depois de observar Rony com os olhos semicerrados por um momento, voltou sua atenção para o testamento de Dumbledore.
— “Para a srta. Hermione Granger, deixo o meu exemplar de Os contos de Beedle, o bardo, na esperança de que ela o ache divertido e instrutivo.”
Scrimgeour apanhou, então, na bolsa um livrinho antiquíssimo. A encadernação estava manchada e descascando em alguns pontos. Hermione recebeu-o do ministro em silêncio. Segurou o livro no colo e contemplou-o. O título estava escrito em runas, e uma lágrima caiu sobre os símbolos gravados em relevo.
— Por que acha que Dumbledore lhe deixou esse livro, srta. Granger? — perguntou Scrimgeour.
— Ele... ele sabia que eu gostava de ler — respondeu a garota com a voz embargada, enxugando os olhos nas mangas da roupa.
— Mas por que esse livro em especial?
— Não sei. Deve ter pensado que eu gostaria de lê-lo.
— Alguma vez discutiu códigos ou outros meios de transmitir mensagens secretas com Dumbledore?
— Não, nunca — disse Hermione, ainda enxugando as lágrimas na manga. — E se o Ministério não encontrou nenhum código secreto nesse livro em trinta e um dias, duvido que eu vá encontrar.
A garota engoliu um soluço. Os três estavam sentados tão espremidos que Rony teve dificuldade em puxar o braço e passá-lo pelos ombros de Hermione. Scrimgeour tornou a consultar o testamento.
— “A Harry Potter” — leu ele — “deixo o pomo de ouro que ele capturou em seu primeiro jogo de quadribol em Hogwarts, para lembrar-lhe as recompensas da perseverança e da competência.”
Quando Scrimgeour tirou a bolinha de ouro do tamanho de uma noz, suas asas de prata esvoaçaram levemente. Oh, não.
— Por que Dumbledore lhe deixou este pomo? — perguntou Scrimgeour.
— Não faço a menor ideia — respondeu Harry. — Pelas razões que o senhor acabou de ler, suponho... para me lembrar o que se pode obter quando se... persevera e o que mais seja.
— Então você acha que é apenas uma lembrança simbólica?
— Suponho que sim. Que mais poderia ser?
— Sou eu quem faz as perguntas — disse Scrimgeour, puxando sua cadeira para mais perto do sofá. O gesto me trouxe um arroubo de raiva, e acariciei o punho de minha varinha encaixada na cinta liga que prendia minhas meias cor da pele.
— Reparei que o seu bolo de aniversário tem a forma de um pomo de ouro — disse o ministro. — Por quê?
Hermione riu ironicamente.
— Ah, não pode ser uma alusão ao fato de Harry ser um grande apanhador, isso seria óbvio demais. Deve haver uma mensagem secreta de Dumbledore escondida no glacê!
— Não acho que haja nada escondido no glacê — retrucou Scrimgeour —, mas um pomo seria um esconderijo muito bom para um pequeno objeto. A senhorita certamente sabe por quê.
Harry sacudiu os ombros. Hermione, no entanto, respondeu ao ministro:
— Porque os pomos guardam na memória o toque humano.
— Quê?! — exclamaram Harry e Rony juntos; os dois consideravam os conhecimentos de Hermione em quadribol insignificantes. Ahá, tomem essa, lerdões, pensei.
— Correto — disse o ministro. — Um pomo não é tocado pela pele humana nua antes de ser liberado, nem mesmo por seu fabricante, que usa luvas. Ele carrega um encantamento mediante o qual é capaz de identificar o primeiro ser humano que o segurou, no caso de uma captura disputada, por exemplo. Este pomo — acrescentou ele erguendo a minúscula bola — se lembrará do seu toque, Potter. Ocorre-me que Dumbledore, que possuía uma prodigiosa competência em magia, apesar dos defeitos que porventura tivesse, talvez tenha enfeitiçado o pomo para que só se abra ao seu toque.
Mordi o lábio. Talvez Scrimgeour estivesse certo, e nesse caso… Como Harry poderia evitar receber o pomo com as mãos nuas diante do ministro?
— Você não responde. Talvez já saiba o que o pomo contém, não?
— Não — respondeu Harry.
— Pegue — disse Scrimgeour calmamente.
Harry encarou os olhos amarelos do ministro e entendeu que não lhe restava opção senão obedecer. Estendeu a mão e Scrimgeour tornou a se inclinar para a frente e depositou o pomo na palma de sua mão lenta e deliberadamente.
Nada aconteceu. Quando os dedos de Harry se fecharam em torno do pomo, suas asinhas cansadas esvoaçaram e se imobilizaram. Scrimgeour, Rony e Hermione continuaram a olhar ansiosos para a bola, agora parcialmente oculta, como se esperassem que pudesse sofrer alguma transformação.
— Essa foi dramática — comentou Harry descontraído. Rony e Hermione riram juntos. Minha testa se franziu. Algo estava errado.
— Então terminamos o de nós três, não? — perguntou Hermione, tentando se erguer do sofá apertado.
— Ainda não — respondeu Scrimgeour, que agora parecia mal-humorado. — Dumbledore lhe deixou outra herança, Potter.
— Qual? — perguntou ele, sua agitação se renovando. Desta vez Scrimgeour não se deu ao trabalho de ler o testamento.
— A espada de Godric Gryffindor.
Hermione e Rony enrijeceram. Harry olhou para os lados, procurando um sinal da bainha incrustada de rubis, mas Scrimgeour não a tirou da bolsa de couro que, de todo modo, parecia pequena demais para contê-la.
— Então, onde está? — tornou Harry desconfiado.
— Infelizmente — disse Scrimgeour —, aquela espada não pertencia a Dumbledore para que dispusesse dela. A espada de Godric Gryffindor é uma importante peça histórica, e como tal pertence...
— Pertence a Harry! — completou Hermione exaltada. — A espada o escolheu, foi ele quem a encontrou, saiu do Chapéu Seletor para as mãos dele...
— De acordo com fontes históricas confiáveis, a espada pode se apresentar a qualquer aluno da Grifinória que a mereça — retrucou Scrimgeour. — Isto não a torna propriedade exclusiva do sr. Potter, seja o que for que Dumbledore tenha decidido. — O ministro coçou o queixo mal barbeado, estudando Harry. — Por que acha...?
— Que Dumbledore quis me dar a espada? — respondeu Harry visivelmente se esforçando para não explodir, mas falhando miseravelmente. — Talvez tenha achado que ficaria bonita na minha parede.
— Isto não é brincadeira, Potter! — vociferou Scrimgeour. — Teria sido porque Dumbledore acreditava que somente a espada de Godric Gryffindor poderia derrotar o herdeiro de Slytherin? Quis lhe dar aquela espada, Potter, porque acreditava, como tantos, que você está destinado a destruir Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado?
— Uma teoria interessante. Alguém já tentou transpassar Voldemort com uma espada? O Ministério talvez devesse encarregar alguém disso, em vez de perder tempo desmontando desiluminadores ou abafando fugas em massa de Azkaban. Então, é isso que o senhor está fazendo, ministro, se trancando em seu gabinete para tentar abrir um pomo? As pessoas estão morrendo, eu quase fui uma delas, Voldemort atravessou três condados me perseguindo, matou Olho-Tonto, mas o Ministério não disse uma palavra sobre a perda, disse? E ainda espera que cooperemos com o senhor!
— Você está indo longe demais! — gritou Scrimgeour, levantando-se; Harry pôs-se de pé também. O ministro se encaminhou para Harry, mancando, e lhe deu uma forte estocada no peito com a varinha: o golpe abriu um buraco como o de uma brasa de cigarro na camiseta do garoto antes que eu pudesse decidir o que fazer.
— Ei! — exclamou Rony, erguendo-se de um salto e empunhando a varinha, mas Harry disse:
— Não! Você quer dar a ele uma desculpa para nos prender?
— Lembrou-se de que não está na escola, não é? — perguntou Scrimgeour, bufando no rosto de Harry. — Lembrou-se de que não sou Dumbledore, que perdoava a sua insolência e insubordinação? Você pode usar essa cicatriz como uma coroa, mas não cabe a um garoto de dezessete anos me dizer como dirigir o Ministério! Já é hora de você aprender a ter respeito.
— E do senhor aprender a merecê-lo — foi o que eu disse, me pondo entre Rufo Scrimgeour e Harry Potter, apontando a varinha diretamente para o rosto do homem.
— Ah, então agora a senhorita abre a boca — ele ironizou.
— Sim, abro — concordei com escárnio. — E posso abrir muito mais, se é que o senhor entende o que quero dizer. Posso abrir a boca e deixar escapar segredos ultrassecretos do Ministério que só o senhor e meia dúzia de integrantes da Suprema Corte sabem. Segredos tão podres quanto esse seu caráter sujo que achou que seria uma boa ideia me tirar da minha escola, do meu país, para me usar como uma isca, um pedaço de carne, uma vadia como vocês acham que as brasileiras são, para atender aos seus interesses. Pois eu digo — dei mais um passo, com a varinha apertada contra o pescoço do ministro da magia — que chega.
— E como você planeja provar o que diz? Hã? — questionou ele, escarnecendo de minha ameaça. — Se todos os registros que temos da sua existência foram destruídos e substituídos por meros documentos de intercâmbio?
Sem saber, Scrimgeour acabara de dizer exatamente o que eu queria ouvir: eu estava livre. Se o Ministério fosse tomado por Voldemort, eu não seria caçada. Não seria um alvo. Seria apenas uma intercambista sangue-puro que tentava terminar seus estudos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
— O senhor não sabe com quem está lidando. — ameacei contundentemente, ignorando o que revelara. Ele caiu novamente sentado na poltrona. — Não sou uma de suas aurores, que ocultam o que veem para não arriscarem o emprego nem a própria sanidade. Eu simplesmente não tenho nada a perder. Então não chegue perto — quase colei meu rosto no dele, estreitando os olhos e baixando a voz para evitar que o trio atrás de mim ouvisse minhas palavras —, muito menos encoste nos meus amigos. Porque pode ser que o senhor venha a descobrir por que eu tenho a fama de melhor agente juvenil do mundo bruxo.
Um brilho úmido de medo se acendeu nos olhos dele.
Ouviu-se um tropel de passos, em seguida a porta da sala de visitas se abriu de repente e o sr. e a sra. Weasley entraram correndo.
— Nós... nós pensamos ter ouvido... — começou o sr. Weasley, absolutamente assustado ao ver a mim e ao ministro virtualmente se enfrentando.
— ... vozes alteradas — ofegou a sra. Weasley.
Me afastei dois passos do ministro, que estava olhando para o buraco que abrira na camiseta de Harry. Pareceu se arrepender de ter perdido a cabeça.
— Não... não foi nada — rosnou o ministro. — Lamento... sua atitude — disse, encarando a mim e em seguida a Harry mais uma vez. — Pelo visto, você pensa que o Ministério não deseja o mesmo que você, o que Dumbledore desejava. Devíamos estar trabalhando juntos.
— Não gosto dos seus métodos, ministro. Está lembrado?
Ele ergueu o pulso direito e mostrou a Scrimgeour cicatrizes lívidas no dorso de sua mão, em que se liam Não devo contar mentiras. A expressão de Scrimgeour endureceu. Virou-se sem dizer mais nada e saiu mancando da sala. A sra. Weasley apressou-se em acompanhá-lo. Fui atrás, e agarrei o punho do homem sem nenhuma delicadeza.
— Dumbledore me deixou algo. E eu acho melhor que o senhor me entregue.
Paramos à porta dos fundos. Com os movimentos um tanto duros e mecânicos, Scrimgeour puxou o pergaminho que continha os últimos desejos de Alvo Dumbledore e leu para mim, engasgando:
— “À srta. , deixo este velho livro de mitologia grega, para que ela se recorde de procurar a raiz de seus problemas para resolvê-los, antes que cresçam e suas copas atinjam as estrelas”.
O ministro passou o livro para minha mão, observando-o com desdém; certamente, ele o considerava o menos interessante dos objetos herdados. Era um pequeno exemplar de capa dura, inteiramente de couro dourado, como de um unicórnio filhote. A ideia me deixou enjoada.
Rufo Scrimgeour voltou a fechar a bolsa e se aprumou.
— Cuidado com quem a senhorita for ameaçar a partir de agora. — Ergueu o queixo em desafio. — Não tem mais a proteção do Ministério.
— Que proteção? — cuspi. — Nunca a recebi. Nem de você… nem de meus pais.
O olhar de pena dele só me fez ter mais raiva ainda, mas contive a vontade de prolongar a discussão e o observei atravessar as barreiras mágicas e desaparatar.
Soltei um ar que nem ao menos lembrava de estar segurando. Apertei a lombada do livro na mão suada, nervosa por ter acabado de ameaçar o ministro da magia britânico. Contudo, um esboço de sorriso cresceu em meu rosto.
Draco sempre me dizia que o Chapéu Seletor estava errado, que eu deveria ter sido colocada na Sonserina. Mas eu nunca me senti tão grifinória quanto naquele momento.


Capítulo 3

POV
— Quando eu me casar — ia dizendo Fred enquanto eu me aproximava por trás do pequeno grupo, repuxando a gola de suas vestes —, não vou me preocupar com nenhuma dessas bobagens. Vocês todos podem vestir o que quiserem, e lançarei um Feitiço do Corpo Preso na mamãe até terminar a cerimônia.
Eram três horas da tarde do dia seguinte. Harry, Rony, Fred e Jorge estavam parados diante da grande tenda branca no pomar, aguardando a chegada dos convidados para o casamento. Harry tomara uma boa dose de Poção Polissuco e virara o duplo de um trouxa ruivo, morador da aldeia local, Ottery St. Catchpole, de quem Fred roubara alguns fios de cabelo usando um Feitiço Convocatório. O plano era apresentar Harry como o “primo Barny” e confiar que o grande número de parentes dos Weasley o camuflasse.
Eu vinha d’A Toca por trás deles, então ainda não tinham me visto. Passara a manhã toda ajudando Mione a colocar todos os itens que precisariam para a busca às Horcruxes dentro de sua bolsinha de contas, habilmente encantada. Enquanto ela separava os livros por ordem alfabética, decidi fazer o mesmo com meus pertences antes do casamento. Algo no fato de ter todas as minhas coisas perfeitamente à mão a qualquer momento, dentro de uma pequena clutch de festa, era reconfortante.
— Ela não esteve tão ruim assim hoje de manhã — comentou Jorge. — Chorou um pouco porque Percy não veio, mas quem queria a presença dele? Ah, caramba, se preparem... aí vêm eles, olhem.
Vultos muito coloridos vinham surgindo do ar, um a um, na distante divisa do quintal. Em minutos formou-se uma procissão, que começou a serpear pelo jardim em direção à tenda. Flores exóticas e pássaros enfeitiçados esvoaçavam nos chapéus das bruxas, e pedras preciosas cintilavam nas gravatas de muitos bruxos; o murmúrio das conversas animadas foi crescendo cada vez mais, abafando o zumbido das abelhas à medida que a multidão se aproximava da tenda.
— Excelente, acho que estou avistando algumas primas veelas — disse Jorge, espichando o pescoço para ver melhor. — Elas vão precisar de ajuda para entender os nossos costumes ingleses, podem deixar que eu cuido delas.
— Calma aí, seu mal-amado — disse Fred, fazendo menção de ultrapassar o irmão quando virou para o lado e me viu pelo canto do olho.
Rapidamente parou e virou o corpo totalmente para mim, com um sorriso bobo.
— Por aqui, permettez-moi de assister vous — falei para duas meninas loiras que vinham com o grupo, levando-as até a tenda e sendo seguida por Fred.
O espanto dele era compreensível. Meu vestido era rosa claro, com pequenos brilhos espalhados pelo tule, indo até meus joelhos e com uma saia esvoaçante que parecia flutuar como nuvens ao redor de minha cintura. Por mais que Fleur discordasse, a cor combinava perfeitamente com meus cabelos, que agora estavam profundamente ruivos como os da família Weasley, graças a meus conhecimentos de Transfiguração Humana. Na verdade, eu poderia passar perfeitamente por uma parenta distante, com as sardas leves que Hermione desenhara em meu rosto usando maquiagem. Era exatamente o objetivo: impedir que alguém reconhecesse uma agente do Ministério brasileiro no casamento.
— Oi, primo — debochei, me virando para meu gêmeo favorito quando as garotas se acomodaram em mesas ao longe.
— Não me chame assim, por favor. — ele resmungou, puxando uma mecha vermelha de meu cabelo. — Não quero me sentir culpado pelos pensamentos incestuosos nojentos que acabei de ter.
Caí na risada. Aquele era o tipo de comentário que, se vindo de qualquer outra pessoa (Zabini, por exemplo), eu ficaria extremamente incomodada, mas com Fred era simplesmente natural e engraçado. Flertávamos e trocávamos piadinhas sujas, mas sem real intenção (pelo menos de minha parte).
Ele me estendeu o braço para me guiar até nossos lugares à mesa da família do noivo, e logo me juntei a Harry e Rony, que acabara de se afastar de uma senhora muito enrugada.
— Um pesadelo, essa Muriel! — exclamou Rony, enxugando a testa com a manga da roupa. — Costumava vir todo ano passar o Natal conosco, então, graças a Deus, se ofendeu porque Fred e Jorge estouraram uma bomba de bosta embaixo da cadeira dela na hora da ceia. Papai sempre comenta que ela deve ter riscado os dois do testamento, como se eles se importassem; nesse ritmo, eles vão acabar sendo os mais ricos da família... uau — acrescentou, pestanejando rapidamente quando viu Hermione vindo apressada ao nosso encontro. — Que máximo!
— Sempre o tom de surpresa — respondeu Hermione, embora sorrisse. Usava um esvoaçante vestido vermelho com sapatos altos da mesma cor; seus cabelos estavam lisos e sedosos. — Sua tia-avó Muriel não concorda, acabei de encontrá-la lá em cima entregando a tiara a Fleur: “Ai, não, essa é a menina que nasceu trouxa?”, e em seguida “má postura e tornozelos finos demais”.
— Não se ofenda, ela é grosseira com todo o mundo — disse Rony.
— Falando de Muriel? — perguntou Jorge, emergindo da tenda. — É, ela acabou de dizer que as minhas orelhas estão desiguais. Morcega velha. Mas eu gostaria que o tio Abílio ainda fosse vivo; ele era gargalhada certa em casamentos.
— Não foi ele que viu um Sinistro e morreu vinte e quatro horas depois? — perguntou Hermione.
— Bem, foi, ele ficou meio esquisito mais para o fim da vida — admitiu Jorge.
— Mas, antes de ficar caduco, ele era a alma das festas — comentou Fred. — Costumava beber uma garrafa inteira de uísque de fogo, depois ia para o meio do salão de dança, levantava as vestes e começava a tirar buquês de flores do...
— É, era realmente encantador — interrompeu-o Hermione, enquanto Harry se acabava de rir.
— Jamais casou, não sei por quê — disse Rony.
— Que curioso — ironizei.
— Você me espanta — replicou Hermione.
Estavam rindo tanto que fui a única a notar um convidado atrasado, um rapaz de cabelos escuros com um narigão curvo e grossas sobrancelhas negras, até ele apresentar o convite a Rony e dizer, com os olhos em Hermione:
— Você está marravilhosa!
— Vítor! — exclamou ela, deixando cair a bolsinha de contas, que produziu um baque desproporcional ao tamanho. Ao se abaixar, corando, para recuperá-la, disse: — Eu não sabia que você foi... nossa... que prazer ver... como vai?
As orelhas de Rony tinham mais uma vez ficado muito vermelhas.
Ali, na maior intimidade com minha amiga, estava Vítor Krum, um dos melhores apanhadores da atualidade, contra quem eu já tinha jogado havia muitos anos em um campeonato entre as escolas de magia Durmstrang, Castelobruxo e Mahoutokoro. Infelizmente perdera, mas posso ter o orgulho de dizer que foi uma disputa acirrada.
Examinando o convite de Krum como se não acreditasse em uma palavra do que via escrito, Rony falou, um pouco alto demais:
— Por que está aqui?
— Fleur me convidou — respondeu Krum, erguendo as sobrancelhas. Harry apertou a mão do rapaz; depois, ofereceu-se para lhe mostrar onde sentar. Decidi segui-los.
Fazia sentido que a noiva o tivesse chamado; ele, assim como ela, fora um dos campeões do Torneio Tribruxo, que, conforme eu vira nas lembranças de Draco, culminara na morte de Cedrico Diggory. A aparição de Krum estava causando certo rebuliço, particularmente entre as primas veelas: afinal, era um famoso jogador de quadribol. Mas seu olhar confuso parou em mim.
— A senhorrita… — ele disse, quando pegou minha mão para beijá-la educadamente — me lembra muito uma jogadora de quadribol que conheci há alguns anos… Uma garrotinha pequena que me deu muito trabalho na partida.
Sorri largamente, mas o convenci de que deveria ser apenas impressão dele.
Enquanto as pessoas ainda se esticavam para dar uma boa olhada em Krum, Rony, Hermione, Fred e Jorge vieram, apressados, pelo corredor central.
— Hora de sentar — disse Fred, bem próximo ao meu ouvido — ou vamos ser atropelados pela noiva.
Uma sensação de ansiedade perpassava a tenda quente, os murmúrios eram pontuados por ocasionais risadas de excitação. O sr. e a sra. Weasley entraram no corredor sorrindo e acenando para os parentes; ela trajando um conjunto novo de vestes ametistas e um chapéu da mesma cor.
No momento seguinte, Gui e Carlinhos se postaram à frente da tenda, os dois de vestes a rigor com grandes rosas brancas nas botoeiras; Fred deu um assovio de aprovação, que foi acompanhado por nova erupção de risinhos das primas veelas.
Então a multidão fez silêncio e o volume da música foi aumentando, aparentemente vinda dos balões dourados.
— Aaaah! — exclamou Hermione virando-se na cadeira para olhar a entrada.
Um suspiro coletivo se ergueu dos bruxos e bruxas reunidos quando Monsieur Delacour e Fleur entraram pelo corredor, ela deslizando, ele balançando o corpo com um largo sorriso no rosto. A noiva usava um vestido branco simples e parecia desprender uma forte aura prateada. Embora, por comparação, sua radiância normalmente empanasse a de qualquer pessoa, hoje embelezava todos sobre quem incidia. Gina e Gabrielle, ambas usando trajes dourados, pareciam ainda mais bonitas do que de costume, e quando Fleur chegou aonde estava Gui, ele pareceu jamais ter tido as cicatrizes que ganhara por ter enfrentado Lobo Greyback na noite em que fugi de Hogwarts.
— Senhoras e senhores — anunciou uma voz ligeiramente cantada. — Estamos aqui reunidos para celebrar a união de dois fiéis bruxos que tiveram a sorte de experimentar a poderosa mágica que é o amor.
Nunca fui de me emocionar em casamentos, mas cada palavra que era enunciada naquele instante me tocava profundamente, como uma faca que logo em seguida despejava um bálsamo sobre as feridas abertas.
Amor. Por que a minha primeira experiência com amor tinha que ser tão dolorosa, tão errada, tão sofrida? O amor deveria ser bom. Não deveria me sufocar com culpa por amar uma pessoa que tirara a vida de outra, apesar de minha última súplica. Por que precisávamos estar de lados opostos de uma mesma guerra, ser lados opostos de uma mesma moeda? Ambos submetidos a missões que não queriam, manipulados por pais que tinham ideias estranhas do que era amar seus filhos. Sem irmãos, sem alguém com quem dividir o tormento. Desesperados pela aprovação, mimetizando comportamentos, trejeitos, pensamentos e atitudes.
O que nos diferenciava era o quê? O fato de eu ter conhecido antes o amor por meio de minhas amizades? Felícia, Malena, Luna, Neville, Hermione, Rony, Harry… Mas ele tinha Pansy, tinha Zabini, tinha Crabbe e Goyle. Será que tinha mesmo? Não sei.
Mas eu o tive. Não no sentido mais primordial da palavra, por mais que eu quisesse no dia em que fui para seu quarto e nos beijamos pela madrugada, queimando de uísque e desejo. Eu tive a confiança, o carinho, o amor de Draco. E ele tivera isso tudo de mim também.
Eu queria ter tido a chance de amá-lo no momento certo, sem que ele estivesse sob aquela absurda pressão de ter sua família assassinada por escolhas que ele nem mesmo teve a chance de fazer. Mas talvez ele não tivesse mudado se não fosse pelo sofrimento; teria continuado sendo o garoto mimado que perseguira Hermione, desdenhara de Rony e odiara Harry.
Nenhum daqueles devaneios, porém, mudaria a realidade: eu amava Draco Malfoy e aquele exato amor, espelhado nos corações, meu e dele, espelhara também a Marca Negra. Eu precisava desesperadamente resolver aquilo, pois não existia a mínima possibilidade de eu ir para Hogwarts com a caveira ofídia tatuada no braço.
— Guilherme Arthur, você aceita Fleur Isabelle como sua esposa e companheira de alma?
Na primeira fila, a sra. Weasley e Madame Delacour choravam baixinho em lencinhos de renda. Sons de trombeta ao fundo da tenda anunciaram que o professor Hagrid puxara do bolso um dos seus lenços tamanho-toalha. Hermione virou-se sorridente para Harry; seus olhos também estavam marejados. Bom, pelo menos eu poderia fingir que as lágrimas silenciosas que cortavam minhas bochechas eram de emoção pela linda cerimônia.
— Então eu os declaro unidos para toda a vida.
O bruxo de cabelos em tufos ergueu a varinha sobre as cabeças de Gui e Fleur e uma chuva de estrelas caiu sobre os noivos, envolvendo em espirais os seus corpos agora entrelaçados.
Enquanto Fred e Jorge puxavam uma salva de palmas, os balões dourados no alto estouraram: flutuaram no ar aves do paraíso e minúsculos sinos de prata que somaram seus cantos e tinidos à zoada geral.
— Senhoras e senhores! — falou o bruxo de cabelos em tufos. — Por favor, queiram se levantar!
Todos obedeceram; ele acenou a varinha. As cadeiras em que as pessoas tinham estado sentadas se ergueram graciosamente no ar, ao mesmo tempo que as paredes da tenda desapareciam, deixando agora os convidados apenas sob o toldo sustentado pelos postes dourados, com uma vista gloriosa do pomar ensolarado e do campo ao redor. Em seguida, uma poça de ouro líquido se espalhou do centro para a periferia da tenda formando uma pista de dança reluzente; as cadeiras suspensas se agruparam em torno das mesinhas, cobertas com toalhas brancas, o conjunto flutuou suavemente de volta ao jardim, e a banda de paletós dourados marchou em direção a um pódio.
A música começou a soar, e me afastei a um canto da tenda para retocar a maquiagem levemente borrada. Abri o espelho do estojinho de pó e fui passando um pouco sobre as bochechas, e as sardas pintadas sumiram debaixo da camada de produto.
— Agora você não parece tanto uma Weasley — Fred comentou quando nossos olhos se encontraram pelo espelhinho.
— Achei que você tinha dito que preferia assim.
— Prefiro.
Fechei o pó compacto com um estalo e o recoloquei na bolsa. Ele segurou minha mão pomposamente e deixou um beijinho no dorso.
— Me concede esta dança, senhorita?
Entrei no jogo, segurando meu vestido ao lhe fazer uma mesura.
— Claro, nobre senhor.
A música animada que vinha da banda não era nem um pouco condizente com nossa brincadeirinha, mas não tinha importância. Logo descobri que Fred era um ótimo parceiro de dança, espirituoso e que sabia exatamente como me guiar.
O sol ia se pondo aos poucos, colorindo o céu de amarelo, laranja, vermelho, púrpura e por fim preto, mas a festa parecia estar longe de acabar. Era um pontinho de luz no meio das trevas da guerra, e ninguém parecia inclinado a deixar que se extinguisse.
— E aí, animada para seu último ano em Hogwarts? — o ruivo me questionou, quando fomos em direção ao bar para pegar algo para beber.
Minha pele brilhava um pouco pelo suor e calor. Porém, a pergunta, aparentemente inocente, foi como um balde de gelo na minha cara, um retorno à realidade da qual eu queria escapar. Não queria ter que tirar aquele vestido de mangas longas que cobria a Marca Negra, não queria fazer meus cabelos voltarem à cor escura que tinham, não queria sair da Toca e ter que encarar ou Hogwarts ou o Ministério brasileiro.
Minha demora em responder fez murchar o sorriso no rosto de Fred, que apoiou o braço em meu ombro e me encarou com preocupação.
— Falei alguma coisa errada?
— Não — suspirei. — Quer dizer, mais ou menos… É complicado.
— Temos a noite toda — ele checou o relógio de pulso teatralmente e me puxou para o lado de fora, fresco e escuro, da tenda.
Lá, o negrume do firmamento atraiu meu olhar marejado como um ímã, procurando entre os pontos prateados das estrelas uma constelação em especial. Foi só vê-la que uma pequena lágrima escorreu.
— Já pode me dizer quem foi o idiota que te deixou assim — ele disse, erguendo o queixo e fazendo uma pose ameaçadora.
Sorri fraco.
— Por que você acha que isso tem a ver com um garoto?
— Porque você é forte demais para chorar, . Soube disso quando recebi sua carta. — Fred encolheu os ombros. — Você parece que organiza a sua vida de uma forma tão metódica que, para quem olha de fora, não sobra espaço para aflições mundanas. A única coisa que te faria chorar é a única que você não pode controlar: o amor.
A simplicidade com que ele disse aquilo fez meu rosto se contorcer com o choro, e logo me senti ser envolvida pelo calor de seu abraço.
— Eu tô com medo — confessei, choramingando como não fazia havia anos.
— Você, com medo? — Ele deu uma risadinha. — A garota que ultrapassou as barreiras mágicas de Hogwarts durante uma invasão de Comensais da Morte e escapou ilesa sem ninguém saber?
Ri com o rosto pressionado contra o peito dele. Tinha cheiro de sabão artesanal e desodorante masculino. Eu não tinha escapado exatamente ilesa, mas não podia dizer aquilo a ele.
— Tenho medo do que… do que eu sinto. É… esmagador.
— Mas o sentimento está dentro de você, . Você pode não saber como controlar, e isso assusta, mas ele está dentro de você ainda assim. Você tem um poder, ainda que mínimo, sobre ele. — Os dedos dele recolheram as lágrimas com delicadeza. — Esse garoto… Ele te fez mal?
— Não. — Mas a resposta não pareceu certa. — Quer dizer… Ai, é complicado. Tenho medo de voltar a Hogwarts e precisar encarar isso tudo, entende?
— Entendo. Eu mesmo larguei meu último ano de Hogwarts, por motivos totalmente diferentes, claro… Mas eu sei o que é sentir que não pertence a algum lugar porque a presença de outra pessoa entra em conflito com a sua. No seu caso, é um garoto. No meu, era a sapa velha da Dolores Umbridge.
Dei uma gargalhada. Ele não cansava de tentar me animar com piadinhas nunca?
— Mas agora falando sério. Você tem o quê, dezesseis ou dezessete anos, certo? Linda, você não deveria estar se preocupando em encontrar a pessoa certa agora. — Ele acariciou meus cabelos, enganchando os dedos em minha nuca. — Se ele for o cara pra você, isso vai dar certo. Se o sentimento for bom, puro e verdadeiro, vocês vão se encontrar, apesar de todos os obstáculos…
Meu coração se desacelerava aos poucos, sendo inundado por uma tranquilidade que estivera sentindo falta.
— E nada impede que você se divirta com a pessoa errada, sabe — insinuou ele, um esboço de risinho nascendo no canto da boca.
— Weasley! — o adverti, rindo de novo e dando um tapa fraco em seu tórax. — Ele já é a pessoa errada, esse é exatamente o ponto.
— Nada impede que você se divirta com outra pessoa errada, então — ele cedeu, implicando comigo.
Quando ele disse aquilo, saí do conforto de seu peito e aproximei meu rosto do seu. Não foi paixão nem desejo que eu senti, mas sim uma gratidão tão arrebatadora que aquela ideia parecia estranhamente certa.
— Você está muito bonita hoje — ele sussurrou, subitamente sério, alternando as pupilas dilatadas entre meus olhos e meus lábios.
— Só hoje? — ironizei.
— É — ele respondeu com sarcasmo e se inclinou para juntar a boca à minha.
O beijo de Fred era calmo, gostoso e seguro. Suas mãos seguravam minha cintura com delicadeza, não com a posse que Draco costumava me agarrar. Os lábios eram macios e gentis, sem as mordidas lentas que o sonserino me dava. A língua que tocava a minha era suave, mas não acendia meu corpo do jeito que…
Apertei os olhos com mais força. Que diabos eu estava pensando? Aquele era Fred Weasley, irmão de Rony, um garoto mais velho, atraente e engraçado, exatamente meu tipo. Aquela era uma noite linda, possivelmente uma das últimas noites que eu teria de pura alegria e diversão. E pronto: aqueles pensamentos preencheram minha cabeça ao ponto de eu conseguir varrer para um canto obscuro do cérebro as comparações com minhas lembranças de Malfoy…
Até que entreabri minhas pálpebras milimetricamente, e um borrão de prata invadiu meu campo de visão.
Me afastei de Fred com um susto, deixando-o desnorteado.
— Você viu aquilo? — apontei para a fonte da luz atrás dele.
— Ah, qual é, eu beijo tão mal assim? — ele gracejou, mas a diversão sumiu do semblante quando girou nos calcanhares e viu o animal prateado que flutuava pela grama.
Agarrei a mão dele e o puxei comigo, sentindo as folhas da grama arranhando meus tornozelos, e adentramos a tenda agora estranhamente silenciosa.
Naquele momento, algo volumoso e prateado atravessou o toldo sobre a pista de dança. Gracioso e reluzente, o lince aterrissou com leveza entre os espantados convidados. Cabeças se viraram, e as pessoas que estavam mais próximas congelaram absurdamente em meio a passos de dança. Então a boca do Patrono se abriu desmesuradamente e ele anunciou numa voz alta, grave e lenta:
— O Ministério caiu. Scrimgeour está morto. Eles estão vindo.
Foi só quando o primeiro grito soou que a realização caiu sobre mim: minha dança com o demônio estava longe de terminar.

Capítulo 4

Draco POV
Meu cômodo preferido da Mansão Malfoy sempre foi a sala de armas do meu pai. Numa casa trouxa, talvez um lugar assim estivesse cheio de espingardas e rifles, mas não ali: a sala comprida abrigava uma coleção impressionante de artigos das trevas. Ao passo que Lúcio Malfoy enxergava as artes malignas como algo que deveria se submeter a ele, eu as enxergava como a fonte de um poder que eu gostaria de entender, mas não obter.
Contudo, desde que o Lorde das Trevas resolvera transformar minha casa em seu quartel-general, aquela sala passara a ser a que eu mais detestava. Era onde aconteciam as punições. Era onde ele me torturara no Natal do ano anterior, me torturara quando saí de Hogwarts na noite da morte de Dumbledore e ameaçara minha mãe em um sussurro agudo que ainda me causava pesadelos. E naquele momento, na sala iluminada apenas pela lareira, um Comensal grandalhão e louro estava no chão, berrando e se contorcendo, graças à magia que provinha de minha varinha.
Thorfinn Rowle. Filho de Euphemia Rowle, uma senhora de nariz empinado e olhos astutos que frequentava muito a Mansão Malfoy desde que eu voltara de Hogwarts depois do sexto ano, apesar de não ser uma Comensal da Morte, e eu não conseguia entender. Contudo, a mera ideia de ela aparecer enquanto eu torturava seu filho me fez vacilar e o feitiço se desfazer.
— Por favor… Por favor… — ele implorou, ofegando e com a voz rascante de quem gritara demais. — Eu não sei… não sei para onde ele foi… Perseguimos os três até a rua Tottenham Court, é tudo que sei, é a verdade…
Todas as vezes que o Lorde das Trevas me obrigava a aplicar aquele tipo de punição (que ele sabia muito bem que era mais doloroso para mim do que simplesmente enunciar uma palavra mágica), um único pensamento era capaz de acender a raiva que a Maldição Cruciatus demandava: forçar a mim mesmo a acreditar que aquele bruxo em específico era quem tinha matado . Aquela mera suposição, sobre a qual eu muito provavelmente nunca descobriria a verdade, era suficiente para me consumir com ódio, enegrecendo e envenenando cada pedaço de minha alma e coração com a vingança que eu queria em nome de . Ela, uma garota tão incrível; uma garota que viera de longe e sempre fizera tudo para me ajudar; a garota que eu amava, estava morta por culpa direta de algum deles. Mas, independente de quem tivesse lançado a Maldição da Morte sobre ela, a culpa real continuava sendo exclusiva e totalmente minha.
— Mais, Rowle, ou vamos encerrar logo e dar você para Nagini comer? Lorde Voldemort não tem certeza se desta vez irá lhe perdoar... Foi para isso que me chamou, para me dizer que Harry Potter tornou a escapar? — O bruxo de feições ofídias estreitou mais ainda os olhos vermelhos, mas dessa vez em minha direção. — Draco, dê a Rowle mais uma amostra do nosso desagrado… Faça isso ou sinta pessoalmente a minha ira!
Uma tora de madeira caiu na lareira, me sobressaltando. As chamas se avivaram e o calor subiu junto com meu medo…
Crucio.
Me senti podre por dentro quando os urros de sofrimento recomeçaram. O Lorde das Trevas desviou o olhar de mim, impassível, enfurnando a capa às suas costas e apertando as têmporas. Aproveitei o breve momento de distração de meu mestre para realizar o que já se tornara um pequeno hábito meu: praticar Legilimência.
Thorfinn fora enviado em uma missão ao casamento do Weasley mais velho com Fleur Delacour, e apesar de Potter estar lá, ele não conseguiu capturá-lo. Em seguida, perseguiu o garoto, Weasley e Granger pela Londres trouxa e mesmo assim não conseguiu impedi-los de fugir. Eu estava passeando por suas lembranças quando um vislumbre me gelou a espinha.
Foi muito rápido. Debaixo de uma tenda branca, provavelmente armada para a cerimônia de casamento, se instalara o caos. Observando tudo através dos olhos de Rowle, vi um dos gêmeos desviar de uma maldição, a sra. Weasley erguer um Feitiço Escudo na frente da filha a seu lado, Ronald gritar por Harry e Hermione, e Gina duelar espetacularmente com Dolohov, com uma ferocidade e habilidade que eu nunca tinha visto ninguém exibir. Os jatos de luz pareciam errá-la por milímetros, e ela continuava lançando azarações e maldições numa velocidade absurda, acertando seu alvo e desnorteando-o o suficiente para, por fim, sair debaixo do toldo e seus cabelos cor de cobre brilharem na luz da lua.
Mas não… não poderia ser Gina, ela estava do outro lado, eu acabara de ver…
No instante antes de Thorfinn Rowle desaparatar, na tentativa de seguir o trio da Grifinória que fugia, a garota ruiva se virou na direção dele, permitindo que eu visse claramente as feições de .
Cambaleei para trás. A interrupção da tortura chamou a atenção do Lorde das Trevas, mas eu simplesmente não consegui me importar com aquilo depois de vê-la ali, linda e viva, naquelas lembranças.
— Me desculpe, milorde. — Limpei a garganta e ergui a varinha de novo, apontando para o corpo inconsciente de Thor no chão.
— Assumirei a partir daqui. Está progredindo, Draco. Quem sabe, se continuar assim, você não volte às minhas graças como antes.
Que se fodessem as graças dele. Minha mão suada apertou o punho da varinha com mais força, sentindo uma energia alucinada tomar conta de mim. Não. estava morta. Não tinham encontrado o corpo dela, segundo o que Pansy descobrira, mas eu ouvi a maldição. Ouvi alguém cair, logo atrás de mim onde eu a soltara. Era impossível que ela estivesse viva.
Tremendo, subi correndo as escadas de pedra até meu quarto, e tirei a roupa encharcada de suor. Só com a roupa de baixo, remexi com pressa em minhas gavetas e peguei um pequeno frasco de Poção para o Sono Sem Sonhos, meu mais novo vício para impedir os pesadelos, e derramei todo o conteúdo na minha boca. O líquido já era tão concentrado que dei alguns passos em direção à cama e tombei sobre o colchão, sentindo meu corpo anestesiado. Meu coração, porém, parecia ter sido dilacerado por aquela falsa esperança. A última imagem que vi em minha mente antes de apagar foi o sorriso de , o sorriso que eu nunca mais veria de novo.

POV

O costumeiro som de aparatação pareceu ecoar mais alto que o normal no quarto do Caldeirão Furado. O tom avermelhado de meus cabelos já estava se desvanecendo, mas a coloração rubra pareceu ter migrado para minha pele, que estava quente e corada para corresponder a meu estado afoito e nervoso.
Não tinha nem dez minutos que eu e Fred estivéramos sob as estrelas, trocando um beijo calmo e grato, mas era como se tivessem se passado horas a fio. Hordas de Comensais da Morte simplesmente apareceram na tenda do casamento, sabe-se lá como burlando os inúmeros feitiços de proteção instalados.
Grata à minha intuição aguçada que me levara a colocar meus pertences dentro da bolsa de festa, tirei o vestido, que já estava todo esfrangalhado e sujo pela luta que eu acabara de travar com um Comensal da Morte. Eu era acostumada a duelar, mas aquilo… Duelar contra um homem que tinha a mesma Marca que eu no braço era absurdamente difícil. A tatuagem ardia mais e mais a cada feitiço que eu lançava, como se minha própria magia protestasse contra o ataque que eu infligia no meu adversário. Somada à dor física havia a preocupação de o homem estar sentindo o mesmo, o que poderia me delatar.
Só usando minhas roupas íntimas, abri a bolsa e fui tirando tudo: livros, roupas, malão, vassoura. Usei a varinha para organizar tudo em seus lugares dentro do quarto, e finalmente apoiei as costas na parede, deixando o choro vir.
Fred me obrigara a desaparatar tão logo o irmão e os amigos sumiram do quintal. Segurara meus ombros, logo depois de estuporar meu oponente de duelo pelas costas, e falou:
, sai daqui, por favor, vamos dar um jeito! Vai embora!
Eu relutei. Hesitei em deixar todos para trás, sabendo que tinha a capacidade para derrotar todos os Comensais ali, se quisesse. Mas e se, por um golpe do destino, eles me capturassem? Veriam minha Marca Negra e, caso não me matassem e matassem Draco no ato (se é que já não o tinham executado), me obrigariam a ir atrás do trio de ouro, para me aproveitar da confiança que construí com eles. E eu estava cansada daquilo. Cansada de ser uma espiã, cansada de ser tratada como uma arma perigosa e imprevisível em vez da garota jovem que eu era.
Então, segundos depois, eu estava ali. Na quietude quase desagradável de um quarto vazio do Caldeirão Furado, o mesmo que eu ocupara por tanto tempo antes de minha curta estada na casa dos Weasley. Sozinha, ali, percebendo o que eu vinha relutando para aceitar: não tinha condição de nenhuma de eu voltar a Hogwarts. Não enquanto Comensais da Morte estavam tão audazes quanto eu vira havia pouco. Eu lutara contra um, dando bastante trabalho a ele e por fim derrubando-o. E se ele estivesse na escola? Poderia fazer qualquer coisa comigo e sairia impune. Eu não ficara exatamente irreconhecível com cabelos ruivos…
Não. Não havia outra opção. Abrindo o malão em busca de roupas para ir fazer meu check-in na hospedaria, tive a convicção de que o melhor a fazer era prosseguir em minha busca pela resolução da profecia e quem sabe usar minha Marca Negra a meu favor, talvez para localizar os outros portadores. Eu precisava aceitar que aquilo era permanente e precisaria aprender a conviver com aquilo.
Logo no topo dos pertences da bagagem, estava o livro dourado que Dumbledore me deixara. Nas semanas seguintes, meus esforços e toda a minha habilidade em Feitiços se dedicaram exclusivamente a tentar desvendar o que o falecido diretor poderia ter deixado de mensagem ali para mim. Tudo parecia ser irritantemente em vão, e a cada dia eu me sentia mais tentada a aceitar o que Hermione dissera: se o Ministério não encontrara nenhum código secreto no objeto em trinta e um dias, dificilmente eu encontraria, mesmo com meu treinamento extensivo. Por algum motivo, eu não me sentia pronta para abrir o volume e lê-lo em busca de códigos secretos. Aquele livro encerrava uma aura de pureza que eu temia conspurcar, então me limitava apenas a abri-lo e executar encantamentos para fazê-lo flutuar como um móbile de criança, sob o qual eu adormecia sob o efeito de poções para não ter pesadelos.
O céu estava tempestuoso naquele primeiro de setembro. Como em praticamente todos os dias depois do ataque ao casamento, quase um mês antes, eu estava sentada preguiçosamente na poltrona ao lado da janela, com um grosso livro aberto no capítulo sobre o Feitiço do Patrono.

O Patrono que representa um ovo é um dos mais raros que já foram analisados por estudiosos do mundo bruxo. O ovo é um símbolo de nascimento e criação, o qual se manifesta por meio da transformação, sendo, portanto, um repositório "de uma nova vida”. Os casos já documentados narram a ocorrência desta forma de Patrono em bruxos que nunca tinham conseguido executar esse feitiço de maneira corpórea, e que estivessem passando por profundas transformações emocionais (vide capítulo 357, “Ligações Mágicas”).

Meus olhos treinados iam descendo rapidamente pelas linhas pela força do hábito. Mesmo que racionalmente eu soubesse que estava tudo bem, que eu estava segura e tinha o dia todo livre para planejar minha próxima tentativa de remover a Marca ou desvendar o meu futuro escrito nas estrelas, meus instintos de alerta estavam ligados. Era o dia em que eu deveria estar indo para Hogwarts, e o relógio se aproximava rapidamente das 11 horas. Voltei o olhar ao parágrafo que eu já quase decorara de tanto reler.

O Patrono que assume um formato de dragão representa um elemento interno proeminente nos bruxos que o executam. Tal elemento varia, mas de forma geral é o fogo; há forte ambição e paixão neste indivíduo, bem como inigualável ferocidade. Isto não significa, obrigatoriamente, tratar-se de um bruxo ou bruxa enraivecido, mas sim que possui um direcionamento que o estimula com todo o seu ser. Aqueles que produzem este Patrono podem ser impulsivos; contudo, isto é combinado com ótimos instintos e reações calculadas. Estes indivíduos também tendem a encapsular suas emoções para que não nublem seus julgamentos e responsabilidade.

Inferno de livro. Não era à toa que Hermione era tão obcecada por leitura: eu entendia o apelo de se agarrar a recursos que estavam sempre certos, por mais amarga que fosse a verdade.
A capa lisa de couro do volume, porém, escorregou pelo tecido de minha calça preta de moletom quando me sobressaltei, e caiu com um estrondo no chão. Alguém estava batendo à porta.
Estiquei a mão para minha mesinha de cabeceira, enfiei o livrinho dourado de mitologia de Dumbledore entre o estrado da cama e o colchão e empunhei minha varinha, apontando-a ameaçadoramente em direção à porta. Firmei as pernas e joelhos no piso empoeirado, como minha amiga campeã de jiu jitsu, Jussara, me ensinara, e esperei a segunda batida insistente. Ela não veio, mas eu podia ouvir a respiração baixa de uma pessoa do lado de fora. Um pressentimento gelado e horrível se instalou em minhas entranhas, e abri a porta com um aceno de varinha, o suficiente para enxergar quem era o idiota que interrompia minha solidão forçada.
— Bom dia, srta. . Não deveria estar na estação de King’s Cross?
As íris escuras e o cabelo longo de Hélio Cairu me encaravam pela fresta que exibia a ele meu quarto de hotel.
Dei um chute na porta, fechando-a na cara dele.
Filho da puta. Desgraçado. Minha mente se encheu de palavrões em todas as línguas que eu conhecia, mágicas ou trouxas, clássicas ou modernas, e mesmo assim não foi o suficiente para expressar o arroubo de ódio que dominou o meu corpo naquele instante. Eu queria gritar, queria destruir aquela porra de quarto do teto ao piso, queria despedaçar meu instrutor com minhas próprias mãos.
Porém, a fechadura girou sozinha, como eu sabia que faria, e Cairu apareceu na passagem aberta, recolocando calmamente um pequeno clipe de ouro em sua gravata antiquada. Eu não era inocente a ponto de achar que ele respeitaria meu espaço e se absteria de usar seus truques não-mágicos comigo; afinal, fora ele quem me ensinara a apelar para aqueles artifícios quando magia não funcionava. Na terceira semana de treinamento, com 11 anos, eu já dominava a arte de abrir fechaduras com praticamente qualquer objeto fino e flexível o suficiente.
— Você não é bem-vindo. — Minha voz saiu estrangulada, demonstrando toda a fraqueza e abalo que eu queria esconder dele. Pelo menos minha mão da varinha não tremia.
— Eu sei. Mas você sabe que eu não ligo.
Seu olhar desceu de meu rosto até o antebraço esquerdo, exposto devido à camiseta que eu usava, e pareceu registrar cada pequeno detalhe dos traços que compunham a Marca Negra. Não esboçou reação. Caminhou até minha poltrona, sentou-se sem a menor cerimônia, entrelaçou os dedos das duas mãos e me encarou com as sobrancelhas erguidas, do jeito que fazia nas raras vezes em que me dava permissão para questioná-lo.
— Por quê?
— Cinco anos de treinamento intensivo em Princípios de Psicologia, fluência em todos os idiomas fornecidos pelo curso de Línguas Mágicas e a senhorita só consegue formular essa pergunta?
Ergui o queixo.
— Está bem. — Ele cruzou as pernas. — “Por quê” o quê? Por que estou aqui? Por que isso aconteceu?
— Por que Clarissa Manteuff não me contou?
O sorriso besta dele se endureceu. Eu esperava que ele dissesse “porque ela é uma incompetente” ou “porque ela não sabia”, mas a verdadeira resposta fez um nó se formar em minha barriga.
— Porque eu pedi a ela.
— O quê?! — Meus instintos de luta foram ativados quando a raiva veio intensamente, mas a resposta do meu corpo foi fugir; dei passos para trás até sentir minhas escápulas se chocarem contra a parede.
— Desde quando a toda-poderosa-e-melhor-agente-juvenil-do-mundo-bruxo precisa desse tipo de informação idiota? Achei que não se apaixonar pelo alvo fosse uma questão bom senso.
— Então você aparece aqui depois de todo esse tempo, depois de aparecer em Hogwarts numa estúpida festa de Natal e nem ao menos tentar me contatar, para tripudiar e esfregar na minha cara esse título estúpido que eu nunca nem ao menos quis? O que houve, sua vassoura ficou presa na alfândega? Ou Madame Nor-r-ra tinha comido sua língua na sala de Slughorn? — A comida de Horácio estava realmente boa. — gracejou. — E não estou apreciando seu tom debochado, princesinha. Não temos tempo o suficiente para isso. — Ele consultou o relógio na parede. Eram 10:58.
— Eu aprendi essa arte com o melhor — fui sarcástica de volta.
— Quem? Eu? Ou Draco Malfoy?
Desviei o olhar do dele, sentindo minhas pálpebras pesarem e arderem de raiva e vergonha. O que ele estava jogando na minha cara era exatamente o que já se passara pela minha cabeça milhões de vezes: Manteuff não deveria precisar me alertar quanto ao risco de me apaixonar, porque era óbvio que eu não deveria nutrir aquele tipo de sentimento por meu alvo. E, bom… Minha reputação me precedia, quer eu gostasse disso ou não.
— Você teria voltado a Castelobruxo. — continuou Hélio. — É isso que você queria? Abandonar Hogwarts? Abandonar o garoto?
— Não é essa a questão, e você não tem direito de falar sobre ele. — Agora sim meu indicador tremia de raiva quando o apontei para o rosto dele. — Não quando eu posso ter destruído a vida dele a troco de nada, porque a guerra foi iniciada do mesmo jeito. E talvez sim, talvez eu quisesse voltar à minha vida!
— Não seja hipócrita — ele desdenhou. — Eu sempre via em você a vontade esmagadora de fugir de perto dos seus pais. Por mais que você gostasse de ser uma agente, você sempre quis fazer suas próprias escolhas; não foi à toa que concordou em embarcar na missão para Hogwarts.
— O que isso tem a ver com o fato de você ter pedido a Clarissa Manteuff que escondesse informações de mim?
— Você não entende? Simplesmente não faria diferença se você soubesse ou não! O mínimo de informação a que você tivesse acesso, melhor seria para o desenrolar dos eventos, porque seria uma preocupação a menos!
— Não faria diferença? — repeti, incrédula. — Óbvio que faria! Talvez eu pudesse ter evitado tudo isso!
— Evitado de se apaixonar? — Ele estalou a língua, escarnecendo. — Sempre tão cheia de si, srta. .
A postura calma dele estava me dando nos nervos.
— Essa decisão cabia a mim. — Cruzei os braços, encarando-o com dureza ao ignorar a crítica. — Eu tinha que saber!
— Eu sempre soube que a sua determinação a levaria longe, mas ao mesmo tempo tinha a certeza de que sua prepotência te levaria longe demais. — Cairu franziu as grossas sobrancelhas.
Fiz menção de protestar, mas ele ergueu a mão e me calei. Meu instrutor se levantou da poltrona, caminhou lentamente, parou e, indicando o vazio entre nós no ar do quarto, ordenou:
— Execute o Feitiço do Patrono.
Meu estômago afundou.
— Eu não sei.
Seu olhar ficou mais profundo no meu, e ele não precisou repetir. Não era medo que ele causava em mim, mas sim um temor e respeito que, apesar de tudo, eu não ousava contrariar.
Expecto Patronum! — bradei, apertando o punho de minha varinha com mais força do que o necessário.
O fio prateado saiu em linha reta, aos poucos se espiralando no ar, e por fim formando os contornos de um enorme dragão, como eu já sabia muito bem. A gigantesca criatura, uma vez inteira, se empertigou e cuspiu fogo cor de prata com todo a força sobre Hélio Cairu, como se o visse como uma ameaça a minhas lembranças felizes. Meu mestre, porém, apenas sorriu muito levemente.
— Como você pode dizer que isto — ele estendeu a mão para meu Patrono, que agora voava alegremente ao redor como se fosse um bichinho de estimação — poderia ter sido evitado? Como você pode dizer que vocês não foram predestinados um ao outro?
Uma lágrima silenciosa escorreu por minha bochecha enquanto eu absorvia o impacto do que ele dissera, porque eu sabia que era verdade.
— Eu falei com Clarissa Manteuff porque a solução da sua profecia está em Hogwarts. — Ele hesitou. — Mas tenho a impressão de que, no fundo, você só aceitou essa missão porque sabia disso.
Eu assenti levemente. — A garota além-mar… — …acenderá as chamas do fim sob as estrelas. — Ele completou. — Eu sei. Eu escondi sua profecia, srta. , como me pediu. Retirei o globo de vidro do Departamento de Mistérios, para evitar que seus pais vissem e interferissem ainda mais no seu destino.
— Mas pelo visto você não se incomodou ao interferir, não é? — ironizei, cruzando os braços na defensiva.
Cairu ignorou minha atitude. O dragão prateado desapareceu no ar.
— Eu trouxe algo para você.
Entre seu dedo médio e indicador da mão direita estava um envelope selado com o emblema do Ministério brasileiro. Ele me entregou o papel grosso e balançou a cabeça, indicando que eu abrisse sob seus olhos atentos. Rompi o lacre de cera e tirei a folha de lá de dentro.

Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1997
Departamento de Aurores, Divisão Juvenil

De acordo com o Voto Perpétuo realizado entre as dezesseis agentes da Divisão Juvenil do Departamento de Aurores ao entrarem para esta corporação, fidelidade vitalícia foi jurada entre as participantes. Nunca poderiam ser reveladas as origens, razões ou naturezas deste esquadrão. No entanto, as demais informações que não prejudiquem as demais integrantes da divisão juvenil foram deixadas a cargo das bruxas envolvidas no encantamento de promessa.
Desta forma, por meio deste documento, as agentes juvenis desta corporação declaram à agente nº 16, , que ela tem autorização para revelar informações cruciais aos indivíduos que, segundo seu próprio julgamento, sejam dignos de confiança e que devam saber sobre as circunstâncias que a levaram a Hogwarts, os objetivos de sua missão e aspectos sobre seu treinamento e trajetória como auror juvenil. Permanece vedada somente a permissão de revelar localizações ou identidades das demais agentes.
As quinze desejam a ela todo o sucesso e expressam seu desejo de em breve vê-la segura, realizada e, acima de tudo, feliz.


Quinze assinaturas, com cujas signatárias eu crescera desde os 11 anos, adornavam o fim da folha.
— Imagino que… — Minha voz falhou, embargada, e pigarreei. — Imagino que meus pais não saibam da existência desta folha.
— Evidentemente — ele confirmou. — O Voto Perpétuo que você fez foi com elas. Jurou fidelidade a elas. E essa carta permite que você burle o encantamento, porque garante que qualquer decisão que você tome ainda será fiel às garotas.
Sorri, chorando silenciosamente de emoção e gratidão.
— Você disse que queria fazer sua escolha. Pois bem, você pode fazer agora, sem riscos. Isso é magia de sangue. Aproveite a sua chance. — Ele apoiou a mão em meu ombro, fitando intensamente meus olhos marejados. — Suas amigas amam você, e esse amor, como você sabe muito bem, é mais poderoso que qualquer outro tipo de magia.
Eu ainda estava estática quando ele se afastou para sair.
— E, — ele parou sob o umbral da porta, me chamando pelo primeiro nome pela primeira vez naquela conversa. — Ele está vivo. E está a caminho de Hogwarts.

Draco POV

— Sinceramente, mas que coisa ridícula ter que voltar para a escola num momento quanto esse, ainda mais Hogwarts — bufei, girando o anel da família Malfoy no dedo.
Blásio nem ergueu os olhos do livro que estava lendo. Pansy estava sentada ao lado de Daphne no assento do trem, enquanto a loira fazia uma trança complicada em seus cabelos curtos. Nenhuma das duas pareceu prestar atenção no que eu dizia, encapsuladas numa bolha do amor que me nauseava. Ao contrário de mim, meus três colegas ainda usavam suas roupas normais: Pansy trajava um vestido cinza Dolce & Gabbana, Zabini ostentava uma jaqueta Gucci e os sapatos de Daphne eram um par de Louboutins de renda preta. Me senti sufocado ao lembrar de um certo par de botas Prada enfeitando o mais belo par de pernas que eu tivera o prazer de ver, então continuei falando para evitar que o silêncio me prendesse a meus próprios pensamentos.
— Eu acho que me jogaria da Torre de Astronomia se tivesse que continuar vindo para cá por mais dois anos — comentei, sem ter um interlocutor em especial.
Os três ocupantes imediatamente pararam o que estavam fazendo e me encararam. Parkinson arregalou os olhos levemente.
— O que você quer dizer com isso?
— Nada. — Direcionei meu olhar para as paisagens que passavam rapidamente pela janela, que iam mudando conforme íamos mais para o norte.
— Draco… — ela começou, com um olhar de pena que me enojou.
Os sentimentos dela em relação a toda a situação eram conflitantes. Apesar de eu saber que Pansy tinha detestado ser a pessoa que me deu a informação final sobre o corpo desaparecido da brasileira, minha colega sonserina também guardava um certo rancor de devido à questão do Sectumsempra de Harry e como ela o fizera companhia no dia seguinte.
— Não enche, Parkinson — resmunguei, e levantei para sair da cabine. Ajeitei o distintivo de monitor chefe espetado no paletó preto. — Vou começar a patrulha.
Ela não disse nada, mas comprimiu os lábios um no outro. Ela sabia muito bem o motivo de eu estar tão fechado, mas aos olhos dos outros minha atitude parecia estranha: meu pai acabara de ser libertado de Azkaban, eu deveria estar feliz. Mas a perda de era como um dementador que vivia preso à minha sombra: a lembrança sugava qualquer resquício de felicidade que fosse.
Caminhei com decisão até a cabine do Expresso de Hogwarts onde eu encontrara pela primeira vez, e abri a porta só para encontrá-la vazia. Uma pequena parte de mim ainda tinha esperança de ver a mesma cena do ano anterior. Fora ali onde ela me recebera com as pernas cruzadas e a cinta-liga aparente sob a saia e as botas, com um sorriso sarcástico na boca pintada de vermelho e a promessa não dita de nunca mais sair da minha cabeça. Bom, essa ela conseguiu cumprir.
O choro veio a minha garganta, doloroso e impactante, mas o engoli. Minha apatia já chegara a tal nível que nada parecia me abalar mais. Eu só queria sentir alguma coisa além daquele vazio esmagador.
Num único impulso, fechei a porta de vidro da cabine e percorri o corredor a passos largos, chegando ao final do vagão. Os assentos acolchoados estavam ocupados por Luna Lovegood, Gina Weasley e Neville Longbottom. Abri a porta deles sem pedir licença e dei um passo para dentro, exibindo a expressão mais presunçosa que consegui forjar.
— Como vai, Longbottom? Animado para seu último ano? Ou assustado, já que o trio de ouro que compunha seus guarda-costas já não está mais aqui? — provoquei.
Um músculo se destacou na mandíbula da Weasley quando ela pôs a mão sobre os punhos cerrados do colega. Ótimo, eu estava conseguindo incitar a raiva deles. Queria saber quanto tempo demoraria para me acertarem com uma azaração ou uma porrada. Esperava que não fosse muito; eu queria aquilo. Queria que alguém me responsabilizasse e me fizesse sofrer pelo que eu tinha feito.
— Acho que vai ser um ótimo ano, sabe — Me sentei ao lado de Lovegood, sem me preocupar ao dar um esbarrão grosseiro nela. — Ser monitor chefe vai ser especialmente divertido… Ainda mais quando meu distintivo não vai ser o único símbolo da minha posição no novo regime. — Acariciei o antebraço esquerdo por cima da roupa.
Os olhos escuros de Gina seguiram o movimento, e a visão mais detalhada de seus cabelos me trouxe a mente a lembrança de Rowle que eu vira em casa: uma versão ruiva de , claramente fruto de minhas esperanças infundadas.
— Você já pode finalizar sua patrulha, Malfoy — o garoto disse, sem me encarar. Seu olhar estava fixo em um ponto sobre a cabeça de Luna, como se ele estivesse se controlando para não tomar nenhuma atitude brusca em relação a minha proximidade com a corvina. — Não estamos fazendo nada de errado.
— Além de serem traidores do sangue nojentos? É, suponho que não. — Me levantei rapidamente, ajeitando os anéis em meus dedos; um com o emblema da família, outro com o brasão da Sonserina.
— Cala a boca.
Ri com falso escárnio, estranhamente eufórico por saber que ele estava perto do limite.
— Oh, te ofendi? Não sabia que desmiolados como você conseguiam captar sarcasmo. Talvez devesse se juntar aos seus pais no St. Mungus, não acha?
Foi tudo muito rápido; eu sabia que tinha tocado no ponto sensível. Neville Longbottom me deu um soco na lateral da mandíbula que me fez cambalear para trás. Luna e Gina se levantaram apressadas para segurá-lo e impedir o grifinório de me nocautear.
— E talvez você devesse se juntar ao seu papai em Azkaban depois do que fez naquela noite, seu assassino de merda — ele cuspiu.
Porra, aquilo doeu mil vezes mais do que o soco. Me reergui e agarrei a porta de vidro, deslizando-a pelos trilhos.
— Eu também perdi alguém naquela noite, Longbottom. — murmurei, mudando bruscamente de tom e sentindo o queixo arder. — Eu sei que você me odeia, e não está errado por isso, mas eu não sinto mais dor depois daquilo. E, se te consola, acho que nenhuma dor vai se comparar a essa culpa.
Gina Weasley franziu as sobrancelhas ruivas na minha direção, como se não entendesse do que diabos eu estava falando. Aquilo só me enraiveceu mais. Será que o tanto de balaços que atingiram sua cabeça durante anos de quadribol a tinham deixado tão retardada que ela não percebia que eu estava falando de ?
Os três me observaram sair de sua cabine, ainda espantados com o que eu dissera. Contive a vontade de correr pela extensão do trem até encontrar a cabine vazia em que deveria estar. Com a garganta ardendo e a mandíbula latejando, tranquei a porta pelo lado de dentro, abaixei a cortina do compartimento e busquei dentro de minhas vestes um frasco de Poção para o Sono. “Talvez eu deva substituir pela Poção do Morto-Vivo”, pensei, escarnecendo de mim mesmo enquanto o líquido descia pela minha garganta.
Não sei se era uma alucinação da minha cabeça fodida ou eu preparara a poção errado, mas meu sono não foi sem sonhos.

Ela estava toda de branco, como um anjo. O vestido parecia ser de água ou ar, juntos e combinados numa nuvem fluida, com os cabelos escuros como terra e os olhos queimando com o fogo que fizera eu me apaixonar por ela.
Vi a curva entre o quadril e a cintura ser lindamente moldada pelo tecido diáfano quando ela deu a volta na ocular do telescópio. O vento fustigava a Torre de Astronomia, espalhando os fios quase negros dela por toda a parte, me envolvendo em ternura e um aconchego que eu sabia que nunca mais teria na vida.
— Meu amor.
A voz dela, o tom doce, o vocativo: tudo aquilo junto provocou um efeito avassalador no meu coração, acelerando-o, estilhaçando-o e reconstruindo-o de uma só vez.
.
Ela sorriu de seu jeito gentil e sarcástico ao mesmo tempo, como se estivesse prestes a implicar comigo.
— Sentindo minha falta?
estendeu a mão em minha direção.
— Todos os dias — confessei, sentindo a garganta fechar mesmo dentro do sonho.
— Bom, estes dias estão se acabando, Draco. — Ela caminhou com os dedos entrelaçados aos meus, atravessando a torre e chegando ao ponto onde o guarda-corpo se despedaçara quando Dumbledore morto caíra dali. Contudo, ela não parecia estar desacelerando; seu passo continuava firme e decidido. — Vamos nos reencontrar em breve.
A morena deu um passo em direção ao vazio do fim do piso da torre, mas não caiu. Flutuou, como se o chão fosse de vidro, e me chamou para um abraço. Olhei para baixo. Era muito, muito alto.
— Você não confia em mim?
Era a coisa certa a fazer. Pisei para fora, olhando nos olhos dela, e quentes como sempre foram.
— Eu confio em você, . Eu amo você. — Tomei a mão dela, sentindo seu corpo quente contra o meu, e chorei entre os cabelos dela, permeados com o cheiro que eu sentira na Amortentia na última manhã que a vira.
Porém, envolvido pelos braços dela, um arrepio de pavor me sacudiu quando vi a imagem grotesca a meus pés, metros e metros abaixo, sobre a relva: meu próprio corpo, disforme, espatifado e com os cabelos claros completamente ensopados de sangue.


Acordei sobressaltado com o som de um trovão, batendo com a testa em algo dolorosamente duro.
— Ai, porra — reclamou Pansy, esfregando a ponta do queixo com a testa franzida de irritação. — Por que diabos você se trancou aqui? Demorei séculos para te encontrar.
— Ah, eu… — comecei a elaborar uma desculpa qualquer, mas reparei que o Expresso estava desacelerando. Barulhos de chuva ecoaram quando gotas grossas caíam como pedradas no vidro da janela.
— O que é isso no seu queixo? Não — ela pareceu mudar de ideia subitamente —, não quero saber com quem você andou arrumando confusão. Só vamos logo, porque eu não quero que Snape tenha motivos para reclamar de meu papel como monitora-chefe.
Ela ajeitou o distintivo na própria capa. Revirei os olhos. Snape não nos escolhera porque éramos os melhores monitores, mas sim porque éramos da Sonserina. Certamente o Lorde das Trevas fazia questão que os alunos da casa de seu ascendente fossem beneficiados em detrimento das demais.
Saímos juntos do Expresso segurando as varinhas para nos proteger da chuva com Feitiços Impermeabilizantes, com uma expressão altiva e sem nos importarmos em esbarrar com força nos alunos do primeiro ano: Pansy porque ela gostava do poder que o cargo lhe conferia; eu porque simplesmente não estava nem aí. A monitora da Grifinória, Romilda Vane, nos encarava com olhar de censura indisfarçado, ensopada dos pés à cabeça enquanto tentava manter os aluninhos novos em uma fila organizada.
— Menos 10 pontos para a Grifinória, por desrespeitar os monitores-chefes — rosnei na direção dela, irritado.
Ela ficou boquiaberta e juntou as sobrancelhas ao franzir o cenho, prestes a retorquir algo, mas Pansy se adiantou e pisou no pé dela de propósito, continuando a caminhar inabalável.
— Ah, a doce sensação do abuso de poder — Parkinson ironizou, sorrindo maldosamente.
Só balancei a cabeça, concordando. Se visse aquilo, provavelmente reviraria os olhos e me confrontaria por ser um babaca. Talvez eu fosse realmente um babaca.
Pegamos uma das primeiras carruagens, e tomei um susto. Ela estava sendo puxada por dois enormes cavalos, com rostos semelhantes a dragões, que exibiam olhos brancos e cintilantes sem expressão nem pupilas. Asas vastas, pretas e coriáceas, parecidas com as de morcegos, brotavam de suas costas. Seus corpos sem carne e brilhantes eram cobertos com um couro translúcido e brilhante, tão fino que os ossos dos animais eram claramente definidos através de toda a extensão de seus corpos elegantes. Testrálios. Agora eu finalmente podia vê-los, depois de duas mortes presenciadas.
— Vamos logo, estou morrendo de fome — reclamou Pansy, dando tapinhas no banco a seu lado.
O caminho até o castelo foi silencioso. Nós dois estávamos concentrados demais em impedir que a tempestade nos molhasse para que a garota pudesse me metralhar de perguntas ou tentar puxar um assunto profundamente desinteressante. Assim que chegamos ao saguão de Hogwarts, fui o mais rapidamente que pude para o Salão Principal, que ia se enchendo aos poucos, e deixei Parkinson fiscalizando os demais alunos e monitores. Não estava nem um pouco a fim de ter que cumprir aquelas obrigações acadêmicas estúpidas. A única coisa que ocupava meus pensamentos era a alucinação, sonho ou premonição que eu tivera com havia poucos minutos. “Vamos nos reencontrar em breve”? Isso era um aviso que eu finalmente seria punido apropriadamente por ter falhado em minha missão? Ou era o empurrão que eu precisava para realmente realizar o que estivera pensando obscuramente desde aquela noite, que era ter o mesmo fim que Dumbledore?
Saí de meus devaneios quando toda a mesa da Sonserina explodiu em gritos: um primeiranista fora selecionado para nossa casa. Só Pansy, sentada à minha frente, fazia uma careta de desdém.
— Não sei por que estão comemorando, ouvi dizer que essa garotinha aí — apontou com a cabeça para a menina que se sentou na outra ponta da mesa, entre as irmãs Greengrass e as gêmeas Carrow — é uma sangue-ruim.
— Não fala isso.
Ela ergueu as sobrancelhas, com um risinho irritante se insinuando na boca.
— Ora, ora, agora subitamente você tem princípios em relação a essa baboseira de nascidos trouxas? Pelo amor de Merlim, Draco…
— Eu não… — tentei desconversar, mas ela gargalhou.
— Para de ser idiota, Malfoy. não está mais aqui pra te dar uma bronca por você ser malvadinho.
— Cala a boca. — Cerrei o punho sobre a mesa.
— Ah, francamente… Eu sinto muito por tudo, mas você precisa superar isso. Eu sei, que merda que a menina que você pegava sofreu esse acidente, mas…
— Parkinson, eu estou falando sério, chega. Você não tem o direito de falar dela.
Ela revirou os olhos.
— Draco, ela era legal, ok? Não nego isso. E gostosa, e devia beijar bem, mas você não é a porra do viúvo dela, sabe…
— Eu disse para você CALAR A BOCA! — Fiquei em pé e dei um tapa na mesa que sacudiu os talheres e ecoou por todo o ambiente.
Pansy entreabriu a boca, chocada. Os olhares dos alunos de todas as casas foram atraídos na minha direção. Meu urro furioso soara exatamente no instante em que a Seleção finalizara e o novo diretor, Snape, se levantou para proferir o discurso de início das aulas. Ele cravou os olhos negros em meu rosto e perguntou:
— Será que nosso monitor-chefe tem algo que queira dividir com os demais?
Fervendo de raiva, abri a boca para responder algo e voltar a me sentar, mas fui interrompido. A porta do Salão Principal se abriu com um estrondo. Um raio riscou o céu negro lá fora, iluminando com clareza a imagem que eu mais queria ver no mundo.
O trovão soou no instante em que deu um passo a frente com suas botas Prada no piso de pedra de Hogwarts, e tudo parou.


Capítulo 5

Draco POV

Talvez eu estivesse exagerando nas minhas doses de poção para dormir, e aquilo fosse um grande sonho maluco. Talvez a minha apatia tivesse se tornado tão patológica que agora eu tinha alucinações. Talvez eu já estivesse morto, depois de realmente me jogar da Torre de Astronomia, e ela estivesse vindo levar a minha alma embora: um último vislumbre do céu antes de eu queimar no inferno.
Ou talvez… talvez Parkinson tivesse mentido para mim. Talvez ela simplesmente não soubesse, e todas as fofocas se tornaram tão repetitivas que ela assumiu que fossem verdade.
Talvez se eu pudesse tocá-la… assim, saberia que aquilo era maravilhosamente real.
Depois de observar o rebolado decidido de percorrer todo o ambiente, sob o silêncio sepulcral das quatro casas de Hogwarts, desci meu olhar para Pansy. Ela abriu e fechou a boca, sem saber o que dizer.
A raiva que me subiu foi tão grande que eu fechei o punho com força a ponto de sentir minhas unhas curtas perfurarem a pele da palma. Raiva de Parkinson, raiva de Snape, raiva de mim. Não conseguia sentir raiva de , por mais que isso fosse totalmente irracional. Ela estivera viva esse tempo todo… e não entrara em contato comigo. Deixara eu sofrer por todo aquele tempo por uma perda que não era nem mesmo real…. Mas foda-se. Ela estava ali de volta.
Sim, a raiva veio com força, mas meu corpo ficou subitamente fraco com a emoção. Ela estava ali. O beijo intenso e molhado de lágrimas que tínhamos trocado naquela noite da invasão não precisaria ser mais o último. O sorriso dela ainda estaria lá, brilhando nos corredores. As respostas sarcásticas naquela voz com sotaque não se restringiriam só a minhas lembranças, e eu poderia aprender o que significavam os xingamentos incompreensíveis em português que ela proferia sempre que ficava envergonhada ou irritada. E talvez, se todos os astros se alinhassem e a sorte resolvesse sorrir para mim uma única vez, nossos momentos de mais intimidade evoluiriam e terminariam na minha cama, aliviando nossos corpos tensos e consumando o desejo que vínhamos partilhando um pelo outro desde o instante em que nos vimos pela primeira vez. Agora eu poderia fantasiar com nosso futuro incerto, tendo uma mínima esperança de que pudesse se concretizar, porque naquele instante eu sentia como se tudo e qualquer coisa fosse possível.
Caí sentado de volta no banco, mas ninguém mais olhava para mim. Olhavam para , que estava esplendorosamente viva, com os olhos lindamente fuzilando o diretor de Hogwarts de forma assustadora.
— Srta. — Snape tentou disfarçar sua surpresa óbvia com um tom de voz neutro, mas, aos meus ouvidos, falhou.
caminhou firmemente na direção dele, estalando os saltos altos no chão e com a mandíbula trincada. No último segundo, quando todos prenderam a respiração por acharem que ela subiria no pequeno tablado e enfrentaria Severo Snape cara a cara, ela desviou seu percurso e se sentou na ponta da mesa da Grifinória.
— Bom, como novo diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, devo dar as boas-vindas…
Snape novamente parou, ao ouvir o som de louças de ouro se chocando. Todas as cabeças se viraram de novo para . Ao contrário dos outros ocupantes do Salão Principal, ela bebia algo de seu cálice dourado, depois fazendo barulho ao raspar os talheres no prato de ouro. Estava cheio de comida — arroz, feijão com caldo, uma espécie de farinha dourada e um ovo frito —, o que chegava a ser quase cômico se eu não estivesse tão emocionalmente soterrado por toda a situação. Para mim era incompreensível como ela poderia ter feito aquilo, uma vez que quem fazia o banquete aparecer eram os elfos domésticos, e não era possível que ela tivesse conjurado aquilo do nada. afastou o copo dos lábios calmamente, como se não notasse a atenção embasbacada que todos dedicavam a ela, e uma gota escorreu da boca dela, escura e rubra como se ela bebesse sangue.
O diretor estava visivelmente desconcertado. Olhou em volta e franziu o cenho ao mirar um dos cantos do enorme salão. Virei a cabeça naquela direção. Claro. Eu deveria ter imaginado. Lá estava Dobby, com uma expressão sapeca; certamente ele fora o responsável por fazer aquela pequena travessura para irritar o assassino de seu mestre Dumbledore.
Snape prosseguiu um discurso ao qual não consegui prestar nenhuma atenção, porque ideias mirabolantes se formavam, se estilhaçavam e se reconstruíam em minha cabeça para tentar processar a cena perante meus olhos. estava ali, viva. Em Hogwarts. Desafiando Snape na frente de todos, de uma forma um tanto estúpida… E ela me dissera que não sabia se voltaria para o sétimo ano. Sua presença ali então significava que ela não tinha mais nada a perder? Que tipo de evento transformador a mantivera longe do Brasil?
O fim do discurso e o banquete de boas-vindas passaram sem que eu me desse conta, apesar de ser o último que eu presenciaria em minha vida; no ano seguinte, já estaria formado, fazendo sabe-se Merlim o quê de minha vida. Se o Lorde das Trevas permanecesse invicto, talvez eu pudesse almejar um cargo alto… Chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia, talvez? Se Potter o vencesse, minha cela em Azkaban certamente seria inescapável.
Aquela, contudo, não era minha preocupação enquanto eu corria. Pulava os degraus de dois em dois pelas escadas móveis, tentando alcançar o grupo de alunos de gravatas vermelhas e douradas, desesperado à procura dos cabelos longos e botas que fugiam totalmente do uniforme permitido. Quase tropecei em um degrau falso, e o pequeno atraso foi o suficiente para perder a oportunidade de pular para a escada seguinte, que já se movera para longe.
! — Meu chamado ecoou pelas paredes cobertas de quadros.
Mas ela não estava lá, como descobri logo. A escada onde eu estava em pé também se moveu, e lá embaixo, agora havia o corredor que dava para o pátio externo, vazio exceto por uma garota morena trajando a capa da Grifinória.
Quando seus olhos encontraram os meus, ela correu, pulando sobre a pequena mureta que separava o corredor do jardim, e não se importou com a chuva torrencial que se abatia sobre si. Queria ficar longe de mim a qualquer custo, e eu não entendia o porquê. Apressei o passo, saindo de baixo do telhado e ficando ensopado em poucos segundos, mas consegui agarrar o braço dela e forçá-la a se virar para mim. Tanto tempo sem notícias, sem respostas, e ela agora fugia? Eu merecia informações tanto quanto ela.
E foi assim que nos reencontramos. Sob uma tempestade que abatia Hogwarts, ofegantes depois de uma corrida, os dois tão quebrados que nem sabíamos por onde começar. O brilho que se acendeu nos olhos de foi inédito. Era feroz, cru, predatório. Tive a impressão nítida de que ela estava prestes a erguer a mão e me desferir um tapa na cara, mas não foi isso que ela fez. agarrou meus cabelos e esmagou os lábios contra os meus com uma urgência que eu nunca tinha visto.
Porra. Quando ela me beijou… A boca quente, a língua macia, eu sedento, ela desesperada… Os contornos firmes do corpo sob minhas mãos, nossas peles em combustão apesar da tempestade gelada, nossos dedos puxando os cabelos um do outro em busca de mais proximidade… Apesar de toda a emoção pura que inundou meu peito, fiquei excitado. Todo o tesão que eu tentara reprimir durante os meses depois daquela noite, me sentindo sujo toda vez que pensava nela daquele jeito e me aliviava sozinho no banheiro, veio de uma vez.
descolou nossas bocas e começou a tatear meu rosto com os lábios, passando-os por minhas bochechas, cílios, queixo, como se estivesse se certificando de que eu era mesmo real. E éramos ambos gloriosamente reais. Segurei o rosto dela, mantendo-o no lugar, para encontrar sua pele do pescoço, macia como uma seda quente, e a senti com a língua. suspirou, curvando os dedos, suas unhas espetando minha nuca. Eu queria conversar com ela, queria entendê-la, mas também queria ela inteira. Queria que ela me queimasse inteiro.
Por isso, num impulso puxei a coxa dela para cima, fazendo-a se entrelaçar na minha cintura, sentindo o ponto onde o cano alto da bota terminava e sua pele ardente começava. Ela entendeu, sendo guiada pelos mesmos instintos quase selvagens que eu, e fez o mesmo com a outra perna, depositando seu peso em mim. Sob a chuva, caminhei com ela no colo até uma coluna de pedra do corredor, enterrando meus sapatos na terra molhada e chocando as costas de sem muita delicadeza contra a construção. Foi o suficiente para ela fincar as unhas em meus ombros, deixando arranhões dolorosos que só duplicaram meu desejo, e morder meu lábio. Em retaliação, pus o peso do meu corpo ainda mais sobre ela, esfregando o volume duro em minha calça contra a roupa íntima dela. arfou, certamente tão frustrada quanto eu pelas três camadas de tecido entre o que nós dois queríamos.
Aquele era o tipo de fogo que eu nunca tinha sentido. Era como se eu só fosse conseguir raciocinar depois de saciar toda a minha vontade com , depois que meu coração chegasse a um ritmo exacerbado e se desacelerasse, soando alto por todo o meu corpo enquanto prazer e amor se juntassem numa explosão incontrolável.
Ela mordeu minha mandíbula, descendo chupões pelo pescoço, numa intensidade que deixava nós dois ofegantes. Inclinei a cabeça para trás, expondo a pele para ela. Porra, ela poderia fazer o que quisesse… Me destruir, me refazer, me punir e me recompensar o quanto desejasse. Voltei a capturar sua boca, sugando o lábio inferior, faminto.
Enquanto uma mão segurava a perna de com firmeza em volta de meu quadril, encaminhei a outra para baixo da saia dela, trilhando um caminho um tanto grosseiro contra a parte interna da coxa. Precisava saber… precisava sentir se ela estava tão excitada quanto eu. E não pude evitar de perder o fôlego quando senti ela molhada em meus dedos, molhada de um jeito que nada tinha a ver com a chuva.
, você… — comecei, mas ela impulsionou o quadril e meu dedo escorregou por sua entrada, se enterrando no calor dela.
Quando ela gemeu, um som desesperado e ofegante, tomei consciência do quanto aquilo parecia precipitado e obstinado. Tinha provavelmente uma hora, ou nem isso, que ela aparentemente tinha voltado dos mortos, e já estávamos naquele nível… Não que eu estivesse reclamando. Usei o polegar para pegar um pouco de sua umidade e esfregar o clitóris pulsante logo acima. Sentindo o aperto firme das pernas dela ao meu redor, guiei a mão livre sob a camisa encharcada de , subindo por baixo do sutiã para tocar seu mamilo sensível. De seus lábios, escapou meu nome, no tom mais sensual que eu já ouvira. Nós dois estávamos totalmente entregues, afoitos, ansiosos. Ela estava totalmente imersa nas sensações que eu lhe trazia ao estimulá-la nos lugares exatos. Eu conseguia sentir os pequenos espasmos dela em volta dos meus dedos, a declaração óbvia de que cada gemido era deliciosamente genuíno.
O som emitido por ela mesma, porém, pareceu despertá-la. Seu tronco se tensionou, e ela empurrou meu peito com as mãos. Os pés voltaram a encontrar o chão, os saltos altos se afundaram na lama, e ela se afastou de mim, estremecendo quando meu dedo saiu de dentro dela e deslizou sobre o ponto mais delicado uma última vez. Sem entender, virei em sua direção, só conseguindo ver os cabelos enormes e negros encharcados se colando às costas dela. Quando cheguei mais perto, pude notar que ela tremia: não sei se de frio, fraqueza ou choro.
Limpei a mão em minha calça, sem adiantar muito porque o tecido estava ensopado, e fui atrás dela. Seu peito subia e descia, e logo vi as lágrimas se misturando às gotas da tempestade sobre suas bochechas.
, desculpa, eu… Eu senti tanto a sua falta e… — Toquei no ombro dela, ao que ela se desviou bruscamente.
— Por quê?
Encarei seu rosto inchado de choro, confuso.
— Por que eu senti sua falta?! — Ri, nervoso. — Porque eu te amo, . Porque eu achava que você estivesse morta, e… Você tem noção do quão podre eu me senti esse tempo todo, com a culpa me corroendo e você desaparecida, eu sentindo coisas tão intensas por você que… — A emoção tomou minha voz, somada a uma insatisfação que me dominava. Ajeitei minha ereção por cima da roupa, duro a ponto de doer, o que só me deixava mais frustrado. acompanhou meu gesto com o olhar, mordendo o lábio como se estivesse cogitando se ajoelhar na minha frente sob a chuva e…
— Não fui eu quem morreu naquela noite por sua culpa — ela quase cuspiu, ressentida. O brilho animalesco de desejo em seus olhos estava quase extinto, dando lugar a um rancor que eu não esperava. — Mesmo depois de eu ter te pedido, chorando…
Espera aí. O quê?
— De quem você está falando?
A gargalhada sem humor dela veio alta, quase encobrindo o trovão que seguiu um raio prateado.
— Do homem que você matou a sangue frio por ordens de Vol…
— Não fale o nome dele — a cortei, olhando em volta com apreensão. — Agora há um tabu…
— Que seja — ela revirou os olhos. — Estou falando de Alvo Dumbledore.
Uma nuvem de incompreensão nublou meus pensamentos. Ela não sabia que tinha sido Snape? Ela não sabia que eu não suportara cumprir minha missão depois de achar ter presenciado a morte dela no meio das trevas? Ela não sabia que eu cedera à oferta de Dumbledore, de manter minha família a salvo caso eu fosse para o lado certo? — , eu não matei Dumbledore.
— Ah, claro, e eu sou a ministra da magia — ela debochou. — Foi Dumbledore quem se jogou do alto da Torre de Astronomia, não é? Para te poupar do trabalho sujo…
— Snape o matou. Não fui eu, eu juro… Eu… não consegui. Eu achava que tinha… tinha perdido você e… Vi o quão insano era fazer o que eu fui mandado fazer. Tive certeza de que minha Marca Negra foi um erro desde o começo…
— Mas mesmo assim a fez, não é?
— Você não entende…
— Entendo sim — ela retorquiu.
— Não, não entende — insisti, ficando irritado. — Por mais que os seus pais terem feito merda com você, como você contou naquela noite em que invadimos a Dedosdemel, tenho certeza de que eles não foram ameaçados de morte com uma varinha na cabeça…
— Como aconteceu com os pais de Harry, você quer dizer. — Ela cruzou os braços sobre os seios, escondendo os mamilos aparentes por causa da chuva. — Foi por causa de pessoas como… como… foi por causa de pessoas que se aliaram ao Lorde das Trevas que esses ideais nojentos tomaram força. Por isso que Harry é a porra de um órfão, e mesmo assim ele não tomou o caminho ruim, apesar de todo o sofrimento que aconteceu na vida dele. Você entende a dimensão disso, e ainda tenta se justificar?
— Por que você está me questionando sobre isso só agora? — perguntei, começando a sentir fúria borbulhar no peito. — Por que passou o ano passado inteiro me ajudando e falando aquelas palavras bonitas sobre as minhas escolhas para me tornar uma pessoa melhor, e agora volta dos mortos para me entupir de acusações?
Ela ficou em silêncio. Tomei aquilo como uma iniciativa para prosseguir.
— Eu entendo que você tenha passado esse tempo todo achando que eu era um assassino, sei que é muito para processar… — Afastei o cabelo molhado que caía em meu rosto. — Mas eu achava que você tinha morrido. Eu me sentia a criatura mais indigna e nojenta do mundo, pensando que tinha sido responsável pela sua morte… e você simplesmente sumiu.
— Você também sumiu — ela murmurou. — Desapareceu. Não veio procurar por mim… ou pelo meu corpo.
atingiu meu ponto fraco com aquela frase. Pensar naquilo já era doloroso o suficiente, mas ver aquela afirmação sair da boca dela era excruciante.
— Eu sei. Escolhi salvar minha própria pele. E eu sei que você não teria feito o mesmo no meu lugar, porque eu sei que você é melhor do que eu. Nunca escondi isso de você, . Você sempre soube o tipo de pessoa que eu sou.
O rosto dela se contorceu em protesto.
— Você não é uma pessoa ruim, Malfoy, só nasceu no lugar errado e não teve peito para se insurgir.
— Não seja injusta — falei, surpreso com as palavras dela. Tudo que ela dizia parecia ter sido pensado especialmente para me machucar, para reabrir as feridas que ainda não estavam nem perto de se tornarem cicatrizes, e era uma clara retaliação às verdades que eu também jogava na cara dela. — Você também se submeteu às vontades dos seus pais.
— As vontades dos meus pais não envolviam matar pessoas.
— Claro, porque não tinha ninguém ameaçando eles de morte caso eu não acabasse a vida de um terceiro — retruquei, insistindo em meu ponto.
— Isso não é justificativa! O Harry…
— PARA DE ME COMPARAR COM A PORRA DO POTTER! — explodi enquanto um trovão ribombava sobre nós. — Eu não sou ele! Desde que eu nasci, EU era para ser esse príncipe do mundo bruxo, o garoto mais famoso e respeitado, o herdeiro das duas famílias mais poderosas que já frequentaram Hogwarts! Mas não, aquele imbecil com uma cicatriz idiota tomou a porra do meu lugar, e não só isso, mas também a minha paz!
— Caralho, qual o seu problema? — ela berrou a plenos pulmões. — Ele perdeu os pais, o padrinho, viu um colega ser assassinado por causa dele, viveu a vida toda com um monte de trouxas babacas e você quer comparar a sua situação com a dele?! A sua família que escolheu estar do lado errado da porra da guerra! Para de ser tão egoísta!
— Sim, eu sou egoísta, ! — rebati, virando de costas para ela e mexendo nos cabelos encharcados, muito nervoso. — Porque eu fui criado para ser assim, para ser um sangue puro exemplar, um perfeito sonserino, para me preocupar mais com a minha própria pele do que com qualquer outra coisa! No único momento em que eu decidi ser minimamente altruísta, eu falhei, e a culpa me corroeu durante esse tempo todo, porque eu tinha certeza que você estava MORTA!
— E você acha que eu não me senti do mesmo jeito? — questionou , com um riso descontrolado subindo pela garganta. — Você acha que eu não ia dormir todos os dias com o coração acelerado, desesperada para saber se você ainda estava vivo depois de eu ter tirado sua Marca Negra?
Parei de apertar as têmporas com as pontas dos dedos e a encarei, alarmado.
— C-como assim, você tirou minha Marca Negra?!
Quando um relâmpago chicoteou a superfície do Lago Negro, o clarão iluminou os olhos aterrorizados de .
— Ah, não. — ela balbuciou, trocando o peso do corpo de um pé para o outro e quase tombando para o lado.
— O quê, ? — Me aproximei dela, exasperado, e segurei seus ombros. — O quê?
Agora grossas lágrimas escorriam por seu rosto e caíam em meus polegares, parecendo ferventes em contraste com a chuva fria que nos banhava.
— Ah, Draco… — Ela me puxou pelos ombros, escondendo o rosto na minha clavícula e deixando que eu a envolvesse, a acalentasse como eu ansiara por tempo demais. Por que diabos ela estava chorando daquele jeito? O que de tão ruim poderia ter acontecido?
Quando a realização me atingiu, foi como um tapa. Foi como se um dos raios da tempestade tivesse acabado de chicotear meu crânio. Foi como se o medo escorresse por todo o meu corpo, me encharcando como a chuva pesada que caía e me enregelava até os ossos.
Não. — Me desvencilhei de seu abraço como se o relâmpago tivesse me dado um choque por meio do corpo dela. — Não, não…
Agarrei seu braço esquerdo e puxei a manga comprida da camisa do uniforme para cima, num gesto bruto e afobado, arrebentando o botão do punho e expondo a pele dela. Foi como se todo meu sangue congelasse e me deixasse estático e sem raciocínio quando vi a Marca Negra tatuada em .
— Mas que PORRA você fez, ? — urrei, esfregando a caveira preta com força, na esperança de aquilo ser alguma espécie de piada e ela ter desenhado ali com uma de suas canetas trouxas. — PUTA QUE PARIU!
O choro dela só se intensificou, e ela se encolheu sob a chuva torrencial. Aquela tempestade poderia ser considerada uma mera garoa se comparada ao turbilhão de ideias, imagens e teorias que permeava meu cérebro naquele instante.
— Como… como você fez isso? O que… — comecei, mas fui interrompido por um suspiro alto dela.
— Eu vim para Hogwarts tirar sua Marca Negra.
Minha cabeça subitamente pareceu ter se esvaziado, como um balão que estoura e libera todo o ar numa fração de segundo: os pensamentos evaporaram porque o que ela dizia simplesmente não fazia nenhum sentido.
Quê?
Ela apertou os olhos, como se enunciar aquelas palavras lhe trouxesse uma dor dilacerante, mas continuou.
— Eu… eu fui convocada pelo Ministério da Magia, uma divisão ultrassecreta, que sabia que você tinha se tornado um Comensal. E… eu sou uma auror juvenil.
— Isso não existe — protestei.
Foi a vez de apertar as têmporas, hesitar brevemente e pôr o dedo sobre o diamante azul em sua pesada pulseira de prata.
— Esse diamante… é um dos diamantes que tinha sido escolhido para compor o diadema de Ravenclaw, uma das relíquias dos quatro fundadores de Hogwarts — ela explicou. — Como você deve saber, pedras e cristais são utilizados por muitas culturas como catalisadores de magia, amplificando-a ou até mesmo, no caso de bruxos familiarizados com feitiços sem varinha, canalizando encantamentos. É o caso desta coisa aqui. — Seu olhar ficou subitamente cansado, e ela parecia incapaz de me olhar nos olhos. — E eu…
Franzi a testa, sem entender bem onde aquilo ia chegar.
— Recebi instruções para… para fazer você… — As feições de se contorceram de dor, vergonha, ou um sentimento muito pior, que eu conhecia bem: nojo de si mesma. — Você se apaixonar por mim. Porque… isso deveria remover sua Marca Negra, caso você me amasse.
Meus lábios se entreabriram com o choque.
— Mas magia negra não pode ser consertada por magia boa — murmurei, ainda confuso.
— Mas não foi isso que aconteceu com Lily Potter, não é? Foi uma magia boa que protegeu Harry da Maldição da Morte. — Ela abriu um sorriso triste, que certamente a machucava mais do que a mim.
O entendimento me atingiu. Ela precisava que eu nutrisse amor por ela, que era um dos vetores de magia mais poderosos existentes, o único que não podia ser fabricado ou induzido… E ela fora perfeita em cada etapa para realizar seu intento. Aquilo tudo fora a porra de uma farsa, uma encenação, porque ela era uma maldita infiltrada. Uma maldita infiltrada que poderia ter acabado com a minha vida se qualquer que fosse a magia daquela joia estúpida não tivesse falhado.
— Então foi tudo uma enorme mentira de merda — cuspi, tirando as mãos dela como se temesse me contaminar com aquela falsidade. — Eu estava certo, você realmente é uma perfeita sonserina.
— Draco, por favor…
Na minha frente, estava desmoronando. Foi como no dia em que ela surtara dentro da Sala Precisa, chorando depois do nosso duelo, mas mil vezes pior, porque cada lágrima que caía era como uma facada no meu peito. Eu estava furioso, e não pude evitar de rir com escárnio quando ela tentou se justificar.
— Não, agora você vai me escutar. — Passei a mão na boca, numa tentativa idiota de remover meu sorriso incrédulo. — Eu passei meses me culpando pelo que aconteceu naquela noite, me sentindo um lixo por ter, em um minúsculo período de tempo durante o ano passado, cogitado te usar para conseguir consertar o Armário Sumidouro. Porque você era tão pura, tão boa, tão altruísta… E quando eu vi que você me ajudaria de bom grado, imediatamente meus sentimentos em relação a você mudaram completamente. Mas agora eu vejo que tudo aconteceu conforme o seu plano, não é? Eu me sentia mal por estar te usando, mas quem me usou o tempo todo foi você.
— Draco, eu achei que fosse a coisa certa a se fazer. Você não entende?
Não respondi.
— Me disseram que isso impediria uma guerra, que impediria que pessoas boas e inocentes se machucassem e perdessem suas vidas… Parecia justo, parecia correto, porque mesmo que isso fizesse mal à sua família, ainda seria um preço pequeno a se pagar…
Eu nem ao menos poderia contestar. Era o tipo de falácia que seduziria qualquer pessoa com o mínimo de senso de justiça.
— O problema… — ela contrapôs, passando a mão no rosto para tentar secá-lo, em vão. — O problema é que eu me apaixonei por você.
Pela primeira vez, ela realmente verbalizou o que sentia, e tive a sensação de que aquilo era um ponto decisivo. Eu sabia muito bem qual era a sensação de racionalizar, organizar e reprimir emoções durante toda a vida, e por fim admitir a verdade para si mesmo e para o mundo. Havia libertação e medo, vulnerabilidade e euforia.
— Eu me apaixonei por você e vi que não importava a porra da minha missão, não importava se o mundo explodiria sobre a minha cabeça, porque eu não podia perder você. Esse era meu coração falando, berrando para que eu o ouvisse. A minha mente, porém, sabia que eu tinha um dever a cumprir, que impactaria muito mais no mundo bruxo do que eu jamais pudesse sonhar… E eu falhei miseravelmente, com você e com todas as facetas de mim mesma. — precisou parar de falar, pois soluços cortavam suas palavras. — Você sabe por que isso — ela ergueu o braço esquerdo — veio para mim? Porque eu amo você. Porque o poder da pedra, em vez de simplesmente remover a sua Marca, a duplicou. E eu sei que isso, mais cedo ou mais tarde, vai me matar. Seja porque a magia negra vai me consumir, ou porque os verdadeiros Comensais vão me encontrar e me executar…
Voltei a me aproximar dela, trazendo seu rosto para mim e apoiando os polegares em suas bochechas. Seus olhos estavam nublados e envergonhados, numa tempestade profunda mil vezes mais violenta do que a que se instalara no céu daquela noite.
— Por favor — ela implorou uma última vez. O desespero em seu timbre fez minha garganta fechar. — Por favor, eu não sei como eu vou passar esse ano e tudo o que vier depois sabendo que você me odeia.
Respirei fundo e ergui seu queixo com delicadeza, colando meus lábios nos dela num beijo carinhoso. A raiva se amainara, e agora o que restava no meu peito era um medo que eu temia que me invadisse por completo. Medo de perdê-la, medo de ser castigado, medo de vê-la sofrer por conta das escolhas que me foram tiradas.
— Isso é o pior de tudo, . — Minha voz saiu embargada. — Eu não consigo sentir nada ruim em relação a você, mesmo depois de descobrir tudo isso… porque eu te amo. E eu não vou deixar que nada aconteça… — Apoiei minha testa na dela, que tremia. — Não posso perder você de novo.
Ela passou os braços ao meu redor, de um jeito sôfrego e enlouquecido, e choramos juntos até nossas lágrimas, roupas e tempestades secarem.

POV

Eu sentia meu rosto inchado, ainda um pouco úmido. As roupas estavam com aquele cheiro incômodo de quando não secam direito. Meu cabelo estava uma bagunça, despenteado e duro onde a chuva o juntara em chumaços. Minhas pernas e costas doíam, tanto de cansaço quanto da agressividade desesperada que Draco empregara ao me pegar no colo, tão consumido pelo desejo quanto eu, cheio de saudade, querendo saciar aquela sensação desesperadamente.
Foi naquele estado em que entrei na sala comunal da Grifinória, atraindo olhares curiosos antes de notar o pequeno grupinho confabulando perto da lareira. Os olhos escuros de Gina Weasley foram rápidos ao me encontrarem, e ela fez um sinal com a cabeça indicando que eu me sentasse no sofá com ela. Perguntas não foram feitas sobre onde eu estivera ou por que estava tão deplorável, e isso já me deu uma pista de que o assunto discutido era sério. Obedeci o pedido silencioso de Gina apesar de meu corpo estar exausto depois do dia muito longo, devido a minha decisão de voltar a Hogwarts e todas as implicações posteriores daquela escolha.

FLASHBACK ON

Assim que Cairu saiu de meu quarto no Caldeirão Furado, soltando quase casualmente a informação que ele sabia que seria decisiva, minha mente começou a maquinar todas as etapas que eu tomaria para chegar à escola. Segundo o relógio, o Expresso já tinha partido havia alguns minutos. Não tinha nada a perder, e aquela sensação de liberdade me fez pensar: foda-se. Era o momento de eu agir como a grifinória que era e aceitar que um plano arriscado era minha melhor opção; um plano que começava enviando cartas às minhas 15 amigas contando sobre o que tinha acontecido, usando códigos trouxas (porque meus pais tinham deixado bem claro que não queriam mais se comunicar comigo), e revelando o que eu pretendia fazer. Enrolei-as todas juntas e as entreguei a Twiggy. Ela piou e logo saiu pela janela aberta.
Em seguida, peguei meu dossiê sobre a missão, que, apesar de estar obsoleto em alguns aspectos, ainda me serviria de grande ajuda. Perto dele, no fundo falso do malão, além do kit com poções que me fora tão útil, havia uma série de peças de roupa e joias aleatórias: disfarces. Depois de encontrar as informações que precisava, trocar de roupa para me caracterizar adequadamente e executar alguns feitiços delicados, empacotei minhas coisas e saí para o Beco Diagonal.
Estava incomodamente vazio, com ambulantes vendendo quinquilharias e uma quantidade impressionante de pedintes. De vez em quando, eu vislumbrava ou entreouvia um agente do governo, que certamente exibia em seu antebraço uma marca igual à minha, chutando ou empurrando algum maltrapilho que tentava se esconder. Meu sangue fervia, mas eles estavam além da minha ajuda, e se eu fosse pega… Merlim sabe o que me aconteceria.
Já quase no fim da rua, tomei o caminho para uma alameda escura e esquisita, dedicada às artes das trevas e que infelizmente eu conhecia melhor do que queria: a Travessa do Tranco. Parei em frente à Borgin & Burkes, cujo nome homenageava um ladrão e um envenenador famosos, e era especializada em uma grande variedade de objetos sinistros.
Eu tinha apenas duas lembranças da loja, mas nenhuma das duas era concreta. A primeira era a descrição que Hermione me dera certa vez, quando perguntei o que tinha acontecido quando eles seguiram Malfoy por ali no verão anterior, tentando entender o que diabos ele queria fazer lá. Não tardei a descobrir que ele obtivera o colar amaldiçoado, a Mão da Glória e o próprio Armário Sumidouro do vendedor mal encarado que folheava um livro de contabilidade por trás da vitrine suja. A segunda lembrança… Era de quando eu estivera lá dentro por um fugaz instante, muda de dor e aterrorizada, depois de escapar de Hogwarts na noite do aniversário de Draco.
Forcei uma expressão presunçosa e apertei os olhos, para protegê-los do reflexo do sol dourado que se punha, ao empurrar a porta pesada. Era uma ideia arriscada, mas momentos desesperados pediam medidas desesperadas.
— Boa tarde.
O dono da loja, o sr. Borgin, um homem untuoso e encurvado, subiu os olhos para mim uma primeira vez, voltou a analisar seu livro, e em seguida reergueu o olhar em minha direção. Não sei se foi meu cabelo agora prateado, meu sorrisinho prepotente ou a transfiguração cuidadosa e dolorida que eu fizera no nariz para que se assemelhasse ao de Lúcio Malfoy, mas obtive sua assustada atenção.
— Boa tarde — ele respondeu respeitosamente, franzindo a testa.
Espalmei as mãos no balcão na frente dele, inclinei a cabeça para o lado e estreitei os olhos para falar baixo, num tom de confidência:
— Perdi o Expresso de Hogwarts e preciso usar o Armário.
Os olhos miúdos do homem se arregalaram por um instante, deixando claro que minha intimidação o tinha atingido de alguma forma.
— Não sei do que a senhorita está falando.
Era a resposta que eu esperava.
— Engraçado, que meu primo parece discordar de você. — Pus ênfase no grau de parentesco, dando uma piscadinha. — Nós não escondemos as coisas entre nós da família, entende? Ainda mais entre nós dois, que somos… muuuito próximos.
Borgin esbugalhou os olhos de novo, e desceu os olhos até minha mão. Não era nenhum segredo que algumas famílias mágicas britânicas, devido à mania de pureza de sangue, se casavam entre primos, e certamente foi exatamente àquela conclusão que o homem chegou ao ver o enorme anel de diamante (falso, é claro) em meu dedo: além de prima, a garota loira e arrogante em sua frente também era a noiva de Draco Malfoy.
Porém, um pequeno tique em sua testa me revelou a desconfiança e relutância que ele ainda demonstrava. Eu sentia meu nariz ardendo, um sinal de que o encantamento que eu pusera nele provavelmente se esgotaria em um ou dois minutos.
— Eu… bem… — ele balbuciou, ao que o cortei com uma risada desagradável.
— Sr. Borgin, imaginei que a sobrinha de Lúcio Malfoy fosse receber um pouco mais de crédito e respeito do senhor…
— Depois de ele ter sido jogado em Azkaban?
Um brilho de desafio se acendeu nos olhos do velho, mas meu sorriso só se alargou.
— Oh, não… Depois de o Lorde das Trevas a ter escolhido pessoalmente. — E mostrei a tatuagem em meu antebraço esquerdo, vendo-a tremular quando passei a mão sobre o desenho, sem tocá-lo.
Aquele era o movimento mais perigoso de todos. Eu só poderia esperar que ele não fosse um Comensal da Morte, pois, apesar de ele não constar nos documentos do Ministério como um, não era impossível que tivesse se tornado. Porque se fosse… Isso traria algumas perguntas bem desagradáveis.
Eu nem ao menos dissera meu primeiro nome. O pior que poderia acontecer era ele tentar me atacar, ao que eu poderia simplesmente desaparatar. Porém, com isso, não teria como voltar a Hogwarts de forma alguma. Os Malfoy seriam notificados de sua sobrinha perdida, que nem ao menos existia, e… Bom, o que eu poderia fazer, exilada do Brasil e sem poder recorrer a meus únicos amigos na Inglaterra? Os segundos em que ele examinou minha Marca Negra antes de assentir e sinalizar para que eu o seguisse foram os mais tensos de minha vida, o que me rendeu marcas de minhas próprias unhas na pele das mãos.
— Por aqui, senhorita… senhora Malfoy — ele abriu a porta pesada com intrincados detalhes, idêntica à que eu passara horas tentando consertar na Sala Precisa com Draco.
— Obrigada — falei rispidamente. — E, obviamente, presumo que o senhor não vá mencionar este encontro com mais ninguém, estou correta?
— Claro, sem dúvidas — Borgin assegurou apressadamente. Ajeitei a manga comprida de minhas vestes para cobrir totalmente o braço e atravessei a passagem, desembocando no lugar que virara minha vida de cabeça para baixo: a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

FLASHBACK OFF


?
A voz de Gina me tirou de dentro das recordações. Toda os alunos da Grifinória que compunham a Armada de Dumbledore e alguns simpatizantes me encaravam em curiosidade, provavelmente sem entenderem como a garota atrevida e divertida que aparecera na escola no ano anterior tinha se transformado naquela menina fragilizada, cansada e terrivelmente perdida.
— Oi.
Ela tensionou ligeiramente as sobrancelhas ruivas, num misto de desconfiança e preocupação. Nem ao menos consegui me importar se ela estava me julgando; a conversa com Draco fora tão extenuante que eu só queria cair na cama.
— Você estava quando Scrimgeour deixou as heranças de Dumbledore, não estava? O que ele deixou para o Harry?
Suspirei, me lembrando que nem ao menos tinha dado a devida atenção ao livro que o diretor me legara.
— O pomo de ouro que ele capturou em sua primeira partida de quadribol, e… bom, a outra coisa ele não teve como dar, não é? Era a espada de Gryffindor.
Neville e Gina se entreolharam, com os lábios apertados em linhas finas e rugas precoces na testa que denotavam a relevância do que eu dissera.
— E ele explicou por quê?
— Ah, disse que era uma propriedade de Hogwarts e que por isso…
— Não — a ruiva me cortou, um pouco impaciente. — Quero dizer, Dumbledore explicou por quê legou a espada de Gryffindor?
Franzi o cenho, tentando me lembrar. Scrimgeour, ao contrário do que fez com as outras relíquias, não disse as palavras de Dumbledore em relação à espada, se é que o diretor tinha deixado alguma. Fiz que não com a cabeça, mas a Weasley não mudou de expressão.
— Por que todas essas perguntas?
Neville inspirou fundo e abaixou o rosto. Ele tinha mudado muito durante aquele verão. Estava bem mais alto, uma sombra de barba cobria sua mandíbula e sua expressão agora era muito mais dura e decidida. O assassinato do amado diretor da escola tinha sido um marco do início da guerra, e eu chutaria ser ainda mais significativo do que a Batalha do Departamento de Mistérios, dois anos antes.
— Sabemos que a espada fica no escritório de Snape.
Meu estômago rodopiou na barriga. Era a primeira vez que eu ouvia o nome de Snape sendo enunciado depois de Draco me contar o que realmente acontecera naquela noite. Era a primeira vez que eu tomava consciência de que ele matara seu antecessor, olhara nos olhos do homem que confiara nele e o assassinara, e agora ocupava sua cadeira na sala do diretor.
— Mas não por muito tempo, não é? — Abri um sorriso cansado.
— Como assim?
— Nós vamos pegá-la.
Eles deram uma risadinha nervosa.
— Vamos. E precisamos da sua ajuda para isso.
Era o que eu imaginava. Eles sabiam que eu tinha escapado de Hogwarts naquela noite com vida, e, apesar de não saberem do meu histórico como agente, certamente já tinham notado as minhas habilidades para me esconder e manipular. No entanto, aquilo trouxe uma pontada incômoda de rejeição. Óbvio, eu faria aquela tarefa sem nem pensar duas vezes, mas o pedido de auxílio me soou dolorosamente familiar. Dolorosamente semelhante às ordens de missões que eu recebia, em que deveria esconder, mentir, manipular. E a que custo?
— Olha, , não queremos te obrigar a nada, a decisão de participar disso é totalmente sua — Gina se apressou em esclarecer, provavelmente com medo de que eu negasse de cara. — Mas é que precisamos manter os monitores do quinto ano e os monitores-chefes fora dos corredores na noite de sexta-feira para fazer isso. Os da Corvinal e da Lufa-Lufa certamente vão concordar com a gente e cooperar, mas…
— Os da Sonserina vão querer mais é que vocês se fodam — completei, secamente.
Neville ficou um pouco surpreso com meu tom, e encarou a amiga como se questionasse silenciosamente se aquilo era mesmo uma boa ideia.
— Sim. E você deve saber que o sentimento é recíproco da parte da maioria de nós. — a Weasley retorquiu.
— Sei. E você sabe que eu sou uma exceção. — Suspirei, inclinando o pescoço para trás para apoiar a nuca no encosto macio do sofá. Encarei o teto. — Então cuido dos sonserinos para mantê-los fora do caminho enquanto vocês pegam a espada.
Longbottom assentiu. Todo o plano deles dependia da minha colaboração e do meu sucesso. E não só o roubo da espada, mas tudo o que se sucederia a isso: o contato que eles deveriam fazer com Harry para entregá-la e ele pudesse usá-la sabe-se lá para qual finalidade Dumbledore planejara. Eu poderia dizer não. Poderia negar para atender aos meus caprichos e ceder àquela gostosa sensação de falsa liberdade. Contudo, não sabia dizer ao certo se o que agia em mim e me impelia a aceitar era a lavagem cerebral de anos na corporação do Ministério brasileiro ou se eu de fato tinha princípios, e aquilo me assustava. Me assustava duvidar da minha própria moral, e ter o nauseante medo de ser manipulada novamente pelos verdadeiros Comensais da Morte, quando minha Marca fosse descoberta, só que para o lado errado dessa vez.
— Tudo bem. — declarei, depois de hesitar por alguns instantes.
Estiquei a coluna, encarando a bainha de minha saia preta ensopada, por baixo da qual Draco subira as mãos, faminto e desesperado. De novo eu teria que enganá-lo, dissuadi-lo, despistá-lo para que o lado bom vencesse. Mas até quando ele poderia me perdoar? Em quantas mentiras e danças eu ainda teria que envolvê-lo para que o bem triunfasse?
— Até quinta eu arrumo uma solução para vocês. Mas agora realmente preciso dormir.
Me levantei e fui para o dormitório; Lilá Brown e Parvati Patil estavam juntas na mesma cama, conversando em voz baixa com expressões sérias bem diferentes do que elas costumavam exibir no ano anterior. Passei pela cama intocada que pertencia a Hermione, sentindo a garganta ardendo e tentando não pensar em até onde eu precisaria chegar para fazer o que devia ser feito.


Capítulo 6

Draco POV

O cheiro das masmorras parecia mais úmido que o normal, e a sala comunal pouco iluminada denotava o quão feio deveria estar o dia. No entanto, eu acordei com um humor totalmente diferente do da noite anterior. Estava mais desperto, como se uma estranha eletricidade me mantivesse alerta a tudo ao meu redor.
Pansy me encarava à mesa do café da manhã com uma expressão culpada, mas era excessivamente orgulhosa para falar qualquer coisa. Daphne conversava com ela num tom baixo e eu via os olhares das duas se desviando na direção da mesa da Grifinória. Elas não eram as únicas, na verdade; o lugar ocupado por na mesa da casa dos leões era alvo da atenção de quase todos da escola, o que ainda era um número considerável de alunos apesar dos desfalques gritantes. Dino Thomas, Hermione Granger, Ronald Weasley e Harry Potter: a ausência dos quatro deixava um buraco no sétimo ano. Engoli em seco, notando o quão estranhamente pequena e solitária parecia enquanto bebericava sua caneca fumegante.
Gina Weasley sentou ao seu lado, com um sorriso fraco no rosto, e a expressão de se iluminou minimamente. Sem que nenhuma das duas enunciasse nenhuma palavra, elas se abraçaram longamente.
— Draco. — A voz incerta de Pansy chamou minha atenção, e e virei o rosto na direção dela, mas sem encará-la exatamente.
Pela visão periférica, vi que os olhos da garota estavam inchados, como se ela tivesse chorado por boa parte da noite. Minha vontade era de enxotá-la dali, como eu sempre fizera desde o primeiro ano, e agora tinha mais motivos que nunca. Mas o que saiu de minha boca foi um suspiro cansado, acompanhado de um aceno de cabeça que ela interpretou como permissão para sentar-se perto de mim.
— Eu… eu queria pedir desculpas.
— Pelo quê, exatamente? — questionei, com o sarcasmo audível na voz, e desviei o olhar diretamente para ela. Ao fazê-lo, vi que a Greengrass caminhava devagar em nossa direção, obviamente de olho na conversa mas andando lentamente de propósito para não nos interromper.
— Por ter dito aquelas coisas sobre a . Por ter falado para você que não tinham encontrado o corpo dela mesmo sem ter certeza se ela tinha morrido. Por… por tudo. Eu só… — Ela apertou os olhos, tentando conter o orgulho para que ela pudesse dizer o que queria. — Eu só queria que você vivesse a sua vida, Draco. Continuasse vivendo a sua vida, que foi poupada apesar de tudo, e a vivesse sem gastar o resto dos seus dias se remoendo com a culpa de alguém que já se foi.
— Jeito curioso o seu de demonstrar isso — debochei.
— Passar a vida chorando a morte de quem se ama não é viver. — Pansy murmurou.
— E o que você sabe sobre isso? — cuspi. — Não foi você quem passou meses achando que tinha sido responsável pela morte do amor da sua vida. Você nunca passou nem nunca vai passar por isso. Por que acha que pode ditar regras sobre a minha forma de lidar com tudo?
— Não posso — ela admitiu. — Mas você estava se destruindo, Malfoy.
— Quem disse?
— Não sou idiota. Eu faço o nível N.I.E.M. de Poções e sei perfeitamente reconhecer os sinais de abuso de Poção do Sono: sonolência durante o dia, reflexos lentos, ansiedade… E todos estão aparentes em você. A briga que você arranjou no Expresso; tenho certeza que você só levou aquele hematoma no queixo porque quis que te batessem. Depois destratou aquela monitora da Grifinória… Isso seria normal para você talvez no quinto ano, mas não depois dela. E… — ela hesitou. — Não quero ver meu melhor amigo se machucando dessa forma.
A forma como ela se referiu a mim abrandou um pouco minha irritação.
— Mas ela está aqui. Você… você vai parar com isso… certo?
— Vou — respondi um pouco seco, mas sem ser grosso como tinha sido antes.
Eu não conseguia entender Pansy, mas sabia que ela estava passando por muitos questionamentos consigo mesma, então imaginava que seria muita coisa para processar ao mesmo tempo. Por isso as atitudes dela eram tão conflituosas e discrepantes o tempo todo: uma hora ela era preocupada e atenciosa, na outra tripudiava e era sarcástica, sem que houvesse um motivo para isso. Talvez fossem os diferentes lados dela lutando entre si para ver qual prevalecia. A questão é que Daphne sempre trazia o melhor dela à tona, que foi o que aconteceu naquele instante, quando as mãos da loirinha se apoiaram nos ombros da Parkinson, brilhando devido aos muitos anéis em seus dedos finos. O maior tinha o emblema da família Greengrass; todas as famílias das Sagradas Vinte e Oito tinham um daqueles, que era usado pelo herdeiro ao atingir a maioridade.
— Oi, Pan, Malfoy — ela acenou com a cabeça, e sua voz doce me impediu de ser escroto com ela ou ignorá-la.
— Oi, Greengrass — cumprimentei, e Pansy segurou as mãos da melhor amiga, sorrindo.
Um silêncio um pouco desconfortável se instalou, e levantei da mesa.
— Vou pra sala, temos Defesa agora — expliquei, com os olhos presos em . Ela também me encarava, com a expressão leve e parecendo grata. Fiz um gesto indicando para nos encontrarmos do lado de fora do Salão Principal, e ela assentiu.
Numa reentrância das colunas que ladeavam a passagem, estava encostada à parede, com os braços cruzados sobre o peito e a mochila pendendo do ombro. Um meio sorriso se espalhava pelo rosto. Levei minha mão ao queixo dela, apoiando minha palma em sua mandíbula, e a beijei.
— Bom dia.
Ela segurou minha gravata, deu um leve puxão e me beijou de volta.
— Bom dia.
— Defesa agora, hã?
Apesar de tentarmos manter uma leveza no ar ao conversarmos amenidades, eu ainda tinha muitas perguntas: como ela tinha chegado em Hogwarts? Que história era aquela de auror juvenil? Por que ela não tinha voltado para seu país depois do fracasso? No entanto, não queria gastar aqueles momentos com ela, entre aulas ou logo após as refeições, com questionamentos desgastantes.
— Isso. — Ela revirou os olhos. — Eu já detestava o Snape, não quero nem saber como vai ser essa aula com aquele tal de Carrow.
— Quê?
— Você não ouviu o discurso do Snape ontem?
— Hã… não. Não exatamente.
Como ela esperava que eu prestasse atenção em qualquer coisa que o diretor dissesse, sendo que ela tinha acabado de adentrar o Salão Principal e meus olhos e pensamentos só se importavam com ela?
— Os irmãos Carrow assumiram os cargos de professores de Defesa Contra as Artes das Trevas e Estudo dos Trouxas. Depois de tudo o que aconteceu, era óbvio que eles não iam manter a professora Burbage.
Engoli em seco. Mal sabia ela que a professora Burbage tinha sido assassinada na minha frente, meses antes. Meu corpo ficou tenso, e ela notou.
— Que foi? — Ela apoiou as mãos em meus ombros, rígidos com o nervosismo.
— Nada — menti.
— Está preocupado porque eles também são Comensais? — ela perguntou em voz baixa, olhando em volta para se assegurar que não havia ninguém por perto.
Demorei alguns segundos para raciocinar. Também são Comensais… Também tinham a Marca, assim como eu e ela. E pronto: com meia dúzia de frases, meu bom humor se esvaiu.
— Vai ficar tudo bem. — Passei a mão de leve pela bochecha dela. — Não vou deixar eles te machucarem.
Eu conseguia notar a inquietação dela, mas mesmo assim ela deu uma risadinha.
— Você sabe que eu sei me cuidar muito bem, não se preocupe.
— Eu sei.
Os dedos de brincaram com meu cabelo na altura da nuca, numa carícia tão familiar que aqueceu meu peito.
— Vamos para a sala? — perguntei.
A garota franziu a testa.
— Draco, não sei se… Não sei se é uma boa irmos juntos…
— Tudo bem. Mas vamos sentar juntos, pelo menos. Assim posso ter certeza de que o professor não vai te incomodar.
Ela assentiu, mordendo o lábio. Ao ouvir passos no corredor, se afastou de mim e assumiu uma postura casual, mas me deu uma piscadinha depois que uma garotinha da Lufa-Lufa passou por nós. Deixei que ela fosse primeiro para a sala de DCAT, e percorri os corredores devagar, pensando em tudo que eu queria agora que ela tinha voltado para mim. Era quase estranho fantasiar com ela, agora que eu sabia que havia a possibilidade de um dia tudo que eu imaginava acontecer. Não era uma atitude racional, mas minha ambição sonserina agora estranhamente se inclinava para realizar tudo que eu queria com .
A gêmea Patil da Grifinória e sua amiga, Brown, ex-namorada de Ronald Weasley, encararam com um ar de censura quando me sentei ao lado dela, numa das carteiras mais para o fundo da sala. Lancei-lhes uma careta debochada, e elas logo viraram para frente, Brown empalidecendo ao notar-se alvo da minha atenção. , porém, não notou nada; estava ocupada demais tirando seus materiais de dentro da mochila e colocando-os com cuidado em cima da mesa, evitando a todo custo que a manga da camisa subisse e revelasse a tatuagem.
A decoração da sala não mudara muito desde seu último ocupante, que fora Snape: as paredes ainda exibiam as figuras grotescas de pessoas atacadas pelas Artes das Trevas, mas as prateleiras exibiam redomas de vidro grosso que continham objetos que reconheci com um susto. Vários artigos ali presentes eram partes integrantes da coleção de meu pai; costumavam adornar a sala de armas da Mansão Malfoy e serem banhados pelo meu olhar curioso de criança depois que eu entrara em Hogwarts.
— Podem guardar os livros de vocês, não vamos usar nada dessa baboseira — uma voz estranhamente familiar soou pela sala, e logo depois ouviu-se o ruído da porta batendo.
Amico Carrow. Eu conhecia o nome e conhecia o rosto, mas nunca os tinha associado um ao outro. Lá estava ele na frente da sala, com um sorriso maldoso e uma roupa de couro preto coberta por uma capa que o fazia parecer um carrasco do ministério. A expressão maquiavélica dele me dava a desagradável sensação de que o motivo para guardarmos o material não era porque as aulas seriam práticas como as de Lupin, no terceiro ano.
— A partir de agora, as aulas de Defesa Contra as Artes das Trevas serão um pouco diferentes do que os senhores estão acostumados. Como vocês sabem, a prioridade do Ministério da Magia finalmente voltou aos trilhos corretos. Agora, o governo se dedica a expurgar os impostores que não possuem sangue mágico e mesmo assim compartilham de nossos segredos. — O rosto dele ficou mais avermelhado, e ele esbravejou com tamanha paixão que fez metade da classe se sobressaltar: — Por anos e anos, os sangue ruins nos perseguiram, e mesmo assim famílias mágicas os permitiram se misturar conosco. O mundo bruxo só não desmoronou por completo graças à ação correta e orgulhosa das famílias que compõem a solene lista das Sagradas Vinte e Oito.
Só naquela sala eu consegui enumerar vários herdeiros daquelas famílias: Abbot, Bulstrode, Greengrass, Parkinson, Longbottom, Nott… E Black e Malfoy. Eu.
Vi os dedos de se curvarem em um punho cerrado por baixo da mesa, as falanges ficando brancas de tanta força que ela usava. Os outros alunos da Grifinória, Lufa-Lufa e Corvinal estavam nitidamente chocados, enquanto vários da Sonserina, como Crabbe, Goyle e até mesmo Pansy, exibiam expressões divertidas.
— Felizmente, tenho o orgulho de dizer que esse é o caso de meus antepassados. Mas precisamos treinar a futura geração para que aprenda a fazer o mesmo!
Coloquei a mão na perna de , como um aviso, e ouvi ela respirar ruidosamente.
— Não podemos deixar que os impuros nos subjuguem, não é mesmo? — A sala permaneceu em silêncio. — Não é mesmo?!
Um murmúrio se espalhou entre os alunos. Com cuidado, fui desenhando pequenos círculos em sua coxa com a ponta dos dedos, primeiro sobre o joelho e depois migrando para a pele macia da parte interna, embaixo da bainha da saia. O corpo dela relaxou um pouco.
— Por isso — continuou o professor — é necessário que os senhores saibam empregar adequadamente os feitiços necessários para que isto não aconteça. Hoje iremos treinar a Maldição Imperius.
Meus dedos se afundaram na perna de , abandonando as carícias; fiquei tenso demais para isso. Uma Imperdoável? Íamos praticar uma Maldição Imperdoável uns nos outros? Quer dizer, eu não tinha orgulho disso, mas eu já dominava perfeitamente a Imperius e a Cruciatus, só que aquela não era a preocupação. E se alguém lançasse o feitiço sobre e a obrigasse a fazer algo ruim? Ou algo que a expusesse?
— Duplas — ele bateu palmas, me tirando dos devaneios. — Sonserinos com grifinórios, corvinos com lufanos.
Finalmente minha mão relaxou na coxa de , e fiquei de pé, evitando demonstrar alguma afeição por ela, para que o professor não nos separasse para praticar; era a única forma de assegurar que tipo de ação ela seria obrigada a fazer.
— Acho que é bom momento para te contar que eu nunca lancei uma Imperdoável, e sou péssima resistindo a elas — murmurou quando nos posicionamos um em frente ao outro, as palavras dela sendo camufladas pelo som dos outros alunos se levantando e arrastando carteiras.
Ah, excelente. A senhorita-sabe-tudo-auror-juvenil finalmente me contava alguma coisa que não sabia fazer, e essa coisa era exatamente o que ela precisava naquele momento.
— Achei que você tivesse me dito que lançou uma Imperdoável na direção da Parkinson quando ela tentou te afogar — rebati no mesmo tom.
— Bom, eu tentei, pelo menos. — Ela fez graça, tentando descontrair em vão. — Não custava tentar, mas acho que não funcionaria.
Um riso nervoso escapou por minha boca.
— Os sonserinos e corvinos irão começar lançando as Maldições, enquanto os grifinórios e lufanos devem tentar resistir a elas. Trocamos depois… se der tempo, claro. — avisou o professor.
Óbvio que ele arranjaria uma forma de prejudicar os grifinórios, devido à descarada rivalidade que a casa dos leões tinha com a das serpentes. Ergui minha varinha, apontando-a para . O rosto dela estava franzido em concentração.
Imperio. Como eu já estava acostumado, meu braço ficou dormente. Por um instante, vi a expressão de surpresa dela ao notar a familiaridade com a qual eu lançara o feitiço, mas logo suas feições relaxaram. Desconfortável com a situação, comecei a mentalizar a ordem que eu queria que ela cumprisse. Uma coisa boba: faça uma trança em seu cabelo. não ofereceu qualquer tipo de resistência ao encantamento, separando prontamente os longos fios escuros em três mechas e trançando-as habilmente. Agora desmanche, pensei. Ela obedeceu. Ficamos quase uma hora daquele jeito, com tarefas bobas para ela cumprir.
Pegue seu livro, abra na página 301 e leia o título, foi minha ordem seguinte. Ela caminhou até a mochila e puxou não o livro-texto de Defesa, mas sim um pequeno volume de couro dourado. Abriu-o e leu o título, em uma voz bizarramente mecanizada e aérea, que me deu um aperto no peito:
O Jardim das Hespérides — e estacou, em vez de prosseguir lendo, exatamente como a maldição a obrigara.
— Está indo bem, garoto — disse o professor, à minha direita. Sua voz chamou a atenção dos demais alunos, cuja maioria ainda tentava, sem sucesso, amaldiçoar o colega.
O elogio tirou minha concentração, e o feitiço se desfez. inspirou fundo e vi que ela estava suada de esforço infundado para impedir que a Imperius lhe afetasse.
— Acho que já podemos partir para algo mais divertido, não acha? — sugeriu ele, se encaminhando para trás de mim e apoiando a palma no meu ombro. — Faça ela tirar a blusa.
— O-o quê? — quase engasguei, e se encolheu com o susto. Um burburinho se espalhou pela sala, bem como uma risadinha abafada que eu poderia jurar que viera de Zabini.
— Você ouviu, Malfoyzinho — ele riu, e logo sussurrou baixo, para evitar que a grifinória ouvisse: — Vai dizer que não quer saber o que tem debaixo desse uniforme vermelho e dourado?
Uma veia salientou-se na testa de , e ela arregalou os olhos por um milésimo de segundo. “Não temos escolha”, era o que o olhar dizia, mas eu não queria fazer aquilo de jeito nenhum. Era degradante demais, errado de todas as formas possíveis, mas a mão do professor apertando meu ombro deixava claro que se eu não cumprisse aquele dever, ele mesmo se encarregaria de fazê-lo.
Para minha surpresa, relaxou o rosto de novo, puxou sua gravata e desfez o nó. Os dedos dela tremeram quando ela abriu o primeiro botão, depois o segundo e o terceiro, e assim foi até a camisa estar totalmente desabotoada, o sutiã exposto para toda a turma. Os olhos dela estavam fixos intensamente nos meus e um filete de suor lhe escorria pela têmpora, devido ao esforço de lutar contra a maldição nos minutos anteriores e à tensão de estar muito próxima de exibir a Marca Negra.
Uma risada maliciosa e nojenta saiu da garganta de Carrow, e ele fez um gesto displicente com a mão.
— Acho que já vimos o suficiente, Malfoy… Pelo menos agora você já sabe o que consegue fazer com as garotas usando a Imperius.
Baixei a varinha, ainda chocado demais com o nível de nojo que aquele homem me proporcionara. Uma lágrima escorreu do rosto de , mas ninguém ali, a não ser eu, sabia que em nenhum momento eu usara a maldição nela; tinha sido pura encenação o tempo todo. No entanto… o princípio de choro parecia terrivelmente real.
— Estão dispensados — Carrow declarou, dando uma espiada final no tronco seminu de antes que ela respirasse fundo e começasse a abotoar a camisa de novo.
Ela foi uma das primeiras a sair da sala, puxando a mochila com violência para escapar dos olhares dos outros alunos. Murmúrios se espalharam pelo aposento, e juntei minhas coisas com uma raiva que só foi atiçada quando Carrow arreganhou um sorriso para mim. Filho da puta.
Corri entre as colunas de pedra até alcançar descendo sozinha a escada que dava para o banheiro de Murta. Ela se virou ao ouvir o barulho de meus passos, e vi que seu nariz e seus olhos estavam vermelhos. Ah, merda. De imediato, segurei a mão dela para que descêssemos a escada juntos mais rápido, entrei no banheiro e fechei a porta, puxando-a para um abraço. Senti o tronco dela tremer ligeiramente com um soluço incontido.
, por favor, me desculpa, eu… — comecei, mas ela cortou.
— Não é culpa sua. — Ela se afastou de mim e limpou o rastro por onde a lágrima escorrera. Suspirou. — Eu só… eu só tô cansada de me enxergarem desse jeito o tempo todo. Me sexualizarem, me exporem, como se eu fosse só isso. Primeiro o ministério, agora o pervertido nojento do professor de Defesa… Se é que se pode chamar essa porra de Defesa.
Engoli em seco. Senti raiva de mim mesmo no ano anterior, quando a objetificara exatamente daquele jeito, antes de conhecê-la. Vira nela uma garota gostosa, com um belo par de pernas, um sorriso sarcástico e o estereótipo da mulher brasileira que eu ouvira a vida toda entre meus colegas e amigos do meu pai. Eu tinha feito aquilo, e não sabia o que dizer diante das palavras dela, tão machucadas.
— E apesar de tudo, sim, eu tenho medo dele… Mas não por mim. — Ela levou o dedo à boca, mordendo a falange como se estivesse nervosamente escolhendo a melhor forma de explicar como se sentia. — Você viu o que aconteceu hoje. Eu tenho medo do que ele é capaz de fazer com outras garotas quando ninguém estiver por perto.
Ergui a mão para fazer carinho em seu rosto, e ela apoiou a testa no meu ombro ao retornar para o abraço. Estávamos tão colados que eu conseguia sentir o coração dela batendo contra meu peito. Afundei o nariz entre seus fios escuros, me reconfortando por longos minutos com o cheiro que eu sentira tanta falta, e ao mesmo tempo dando a a sensação de segurança que nós dois precisávamos desesperadamente, mas sabíamos que não podíamos verdadeiramente obter.
— Vejo você mais tarde, ok? — Por fim, ela ajeitou meu cabelo atrás da orelha e sorriu levemente. — Queria te perguntar uma coisa.
— E não pode perguntar agora?
Ela encolheu os ombros.
— É porque não depende só de você. Eu estava com a ideia de fazermos uma festa de boas-vindas na sexta… Porque é nosso último ano e tal. — Ela mordeu a boca, como se estivesse insegura. — Mas a gente precisa que a Parkinson concorde também; pelo que sei ela é a monitora-chefe…
Fitei seus lábios. Eu lembrava perfeitamente das várias vezes que vira ela fazendo exatamente aquilo no ano anterior, prendendo a carne macia entre os dentes e piscando os olhos daquele jeito lento, os cílios parecendo pesados quando ela aparentava estar sem graça. Apesar de ser uma bela cena e meu coração se aquecer com a familiaridade, algo no meu íntimo me deixava inseguro. Não sabia se aquilo era uma encenação, e eu não sei como reagiria a mais mentiras, mais segredos e mais perdas.
— Acho que seria legal — falei. — Posso ver com ela.
Se ela notou alguma desconfiança na forma como respondi, não demonstrou. Abriu um sorriso e apertou meu ombro carinhosamente.
— Mais tarde nos encontramos, pode ser? — ajeitou a alça da mochila no ombro.
Glória de sangue.
— Quê?
— É a senha do meu salão comunal. Aparece lá.
Ela ficou na ponta dos pés e me deixou um beijo no canto da boca, mas agarrei sua nuca para beijá-la direito. Foi forte e gostoso, o suficiente para fazer a euforia subir numa sensação fria pela minha barriga. sorriu de novo e saiu, fechando a porta atrás de si.
Soltei o ar com força, sozinho ali dentro. Mesmo depois de nossa conversa cheia de confissões na noite anterior e o sentimento avassalador que me tomava, e suas intenções continuavam sendo um mistério.
— Poxa, você está dando mais atenção para ela do que para mim — uma voz aguda choramingou, e a figura translúcida de Murta saiu pela tubulação da torneira quebrada que já era marca registrada daquele banheiro.
— Ah, não enche — resmunguei, com um risinho querendo escapar de meus lábios quando saí do banheiro.

POV

— O tipo de magia canalizado pela pedra em seu primeiro uso definirá o comportamento dela nos encantamentos futuros.
O professor Flitwick, de pé sobre sua costumeira banqueta, sacudia a varinha enquanto o giz branco flutuava, formando as palavras no quadro negro que compunham as Leis de Orykto. A sala estava abafada, os alunos muito quietos depois da aula de Defesa e lançando olhares estranhos para mim. Bom, não seria a primeira nem a última vez que isso aconteceria.
— Um exemplo bem didático e simples de entender, porém difícil de executar, é o de pedras infusionadas com algum tipo poderoso de magia que possa neutralizar as artes das trevas.
Ouvi o som de pergaminho sendo amassado em uma bola, que voou do fundo da sala até bater na cabeça de Ana Abbot. A lufana franziu o cenho em irritação ao ver os risinhos de Tracey Davis, da Sonserina, ao ver que tinha acertado seu alvo. Flitwick continuava a falar com sua voz aguda, alheio às distrações e apatias da classe.
— Uma vez exposta a esse tipo positivo de força de maneira primária, o artefato irá desviar ou repelir a magia negra em todas as suas ativações subbsequentes.
Senti o diamante em minha pulseira pesar como se fosse uma parte do meu próprio braço. A aula de Feitiços naquela tarde se dedicava especialmente ao que aprendera dolorosamente na prática.
Puxei uma caneta esferográfica de dentro do estojo, anotando o que o professor colocava no quadro. Neville estava sentado ao meu lado na mesa comprida, encarando o pergaminho em sua frente com o olhar enevoado, como se não conseguisse ler o que estava escrito ali. Dei uma batidinha com a tampa da caneta no dorso da mão dele. O garoto se sobressaltou levemente, mas logo seu olhar se focou no meu rosto de novo.
Longbottom estava tenso. Algo em seus olhos estava aceso, uma fúria que eu por vezes enxergava em mim mesma ao me olhar no espelho. A fúria que se avolumava e antecedia um escape.
— Tudo bem? — questionei com preocupação.
— Tudo — ele respondeu, mas sem me convencer.
— Cada um de vocês vai receber um cristal e deverá primeiro tentar canalizar a magia usando a varinha através dele, e depois somente com as mãos. Já posso alertar aos senhores que esse é um processo demorado e que nem todos os bruxos conseguem de primeira.
Flitwick sacudiu a própria varinha e um pequeno saco de veludo preto se abriu, a partir do qual pedras voaram por toda a sala. Neville girou um rubi escarlate entre os dedos. Minha palma aparou a ônix que veio flutuando em minha direção. Tão negra que sua superfície lisa era quase um espelho.
Saí da sala, quase duas horas mais tarde, esgotada. Eu era péssima naquilo, e eu odiava ser péssima em qualquer coisa que fosse. O professor nos prevenira a respeito das dificuldades, mas eu queria acreditar que funcionaria. Seria uma pequena vitória a qual eu poderia me agarrar no meio daquelas atribulações todas causadas pela presença de Draco na minha vida e minha antiga condição de agente.
As próximas três aulas seriam sobre o mesmo assunto, e alternaríamos entre os alunos os diferentes tipos de pedra, até encontrarmos o que funcionava melhor para cada um. Daphne Greengrass já conseguira a proeza: catalisara um Feitiço da Levitação com um topázio dourado. Quando os alunos de sua casa começaram uma pequena algazarra em comemoração, não pude evitar de me lembrar de Hermione. Tinha certeza que ela teria sido a primeira a ter sucesso na tarefa.
Os pensamentos não paravam de pipocar na minha cabeça enquanto eu caminhava pelos corredores em direção às masmorras. Depois de dizer aquela senha patética, entrei no salão comunal da Sonserina.
Quase todo o sétimo ano estava ali, à exceção de Zabini e Bulstrode. Todos me encaram, alternando os olhares entre minha gravata vermelha e dourada e os olhos cinzas de Draco, também presos em mim.
— Oi — cumprimentei eles, me aproximando do jogo de sofás e mesa de centro onde eles estavam amontoados.
Pansy desviou o olhar de mim, parecendo constrangida meio deitada sobre Daphne. A loira sorriu para mim.
— Então quer dizer que vamos fazer uma festa? — Greengrass questionou com animação.
— Bom… é. Eu tinha pensado nisso.
— E por quê os grifinórios não organizam? — perguntou Parkinson.
— Depois da festa de Halloween, ela viu que as melhores festas são da Sonserina — Draco respondeu por mim, com um meio sorriso.
Seus colegas riram e fizeram sons de aprovação.
— Exatamente. — Tentei soar o mais entusiasmada possível. — É nosso último ano… Nada mais justo que finalizemos a primeira semana de aula com uma boa comemoração… E realmente, vocês são os melhores nisso.
Vi os sorrisos presunçosos deles se alargarem, como eu previa. Só Malfoy continuava sorrindo de lado, sabendo exatamente como eu estava jogando, manipulando os alunos mais manipuladores da escola para conseguir exatamente o que eu queria. No olhar dele, havia orgulho.
Eles se achavam tão inteligentes, astutos, independentes. Mas eu mesma, como Draco sempre insistia em dizer, tinha muitas características da Sonserina. Por isso, sabia bem que amaciar o ego deles e seduzi-los com elogios precisos era a forma mais segura de chegar onde eu queria. Não demorou muito para que eu tivesse a certeza do que aconteceria na noite de sexta-feira. No jantar, depois de termos ficado mais de uma hora debatendo detalhes da festa e eu voltar à Torre da Grifinória enquanto eles discutiam as preparações — desde bebidas e música até as drogas que eles iam dar um jeito de arranjar, decoração e dress code —, recebi um bilhetinho alado na mão: um dragãozinho de papel batendo suas asas finas de dobradura.

Tudo certo. Sala Precisa, 22h. Mentalize a festa do 7º ano. Não conte aos grifinórios se não quiser arrumar uma confusão.
D.M.


Por fora, encarei Draco sobre as mesas do jantar e revirei os olhos. Ele sorriu.
Por dentro, meu estômago se remexeu incomodamente, e a comida ficou bem menos apetitosa. “Não conte aos grifinórios”. Mal sabia ele que aquilo fora um plano arquitetado exatamente por eles, e agora restava esperar para saber se a casa dos Leões seria astuta o bastante para escapar do ninho das serpentes.

Capítulo 7

POV
A sexta-feira começou mal. Demorei mais do que devia para me arrumar no banheiro, sentindo um constante aperto na barriga devido à ansiedade. Tropecei em um dos degraus da escada que levava à sala de Estudo dos Trouxas ao tentar subi-la com pressa, abri a porta rápido demais e acabei chamando a atenção de todos os presentes.
— Menos dez pontos para a Grifinória — a professora falou. — Ande.
Ela era irritantemente parecida com Amico Carrow, de um jeito mais doentio do que fraterno, por mais que eu soubesse que eles compartilharam o útero e o sobrenome.
A sala estava totalmente diferente de quando Burbage era a professora. Os muitos instrumentos musicais, brinquedos trouxas, eletrodomésticos simples e livros de fotografias foram quase totalmente substituídos por pôsteres de guerra, fotografias animadas de paredões de fuzilamento, gravuras medievais de mulheres sendo assassinadas em fogueiras. Era uma versão trouxa da decoração grotesca feita por Snape na sala de Defesa.
— Estão vendo essas imagens? Veem como os sangues-ruins são malignos para com sua própria espécie? — ela falou alto, observando os alunos perambularem pela sala circular, que ainda mantinha as cadeiras de rodinhas de escritório como eu me lembrava, mas seus estofados azuis tinham sido arrancados brutalmente, expondo a armação desconfortável de metal. — Agora sentem-se.
O ambiente não era nem de longe grande o suficiente para acomodar todos os alunos, visto que até o ano anterior tinha sido uma disciplina eletiva. Agora, no entanto, era obrigatória para o currículo. Ouvi Parkinson resmungar, irritada, quando uma das rodas de seu assento emperrou. Mandy Brocklehurst, da Corvinal, deixou escapar um xingamento baixo quando um pedaço de plástico pontudo machucou seu quadril ao se sentar. Zabini cutucou Nott e apontou, rindo, para uma das fotos de pessoas sendo baleadas. Os sonserinos pareciam estar todos levando aquilo como uma enorme brincadeira, uma aula que seria quase um tempo livre. Mas não Draco.
Draco Malfoy estava mais pálido que o normal e completamente estático. Seus dedos se curvavam uns sobre os outros em pequenos movimentos nervosos, e ele fitava intensamente um dos únicos itens que tinham sobrado dos pertences escolares de Caridade Burbage: o piano de cauda.
Senti uma picada de alguma coisa afiada no braço e me virei para frente. Aleto Carrow exibia uma careta irritada na minha direção, com a varinha em punho.
— Minha aula é aqui na frente, srta…
— completei. — .
— Ah. A senhorita que fez aquela cena no dia do banquete de boas-vindas. — Ela estalou os lábios em desgosto. Minha nuca queimou, e ergui o queixo.
— Foi.
Ela estreitou os olhos na minha direção.
— Qual o seu status sanguíneo, srta. ?
— Sangue-puro.
Carrow ergueu as sobrancelhas, um pouco surpresa.
— E o que a senhorita acha a respeito de sangues-ruins que se apossam dos nossos poderes, os chamados “bruxos nascidos-trouxas”?
— Eu não tenho que achar nada. Eles existem e são tão bruxos quanto qualquer outro que venha de família mágica.
Escutei Crabbe soltar uma risada baixa.
— Resposta errada. Vejamos, senhor…
— Não.
A professora se virou novamente na minha direção.
— Perdão, o que disse?
— A senhora disse que minha resposta está errada. A senhora perguntou minha opinião, e ela não está errada. Se quiser que eu responda algo certo ou errado, deve me perguntar uma questão de resposta objetiva.
— Ah, entendi. A senhorita gosta de se fazer de espertinha.
Abri a boca para retrucar, mas rodinhas deslizaram pelo piso e a mão de Draco agarrou meu braço. A palma estava suada e se colou na manga de minha camisa.
— O que a srta. quer dizer — Draco disse, com a voz um pouco mais grave que o normal — é que a opinião dela não pode ser definida como certa ou errada, porque ainda não sabemos a verdade e, portanto, não podemos ajustar nossos pensamentos a ela.
A frase pareceu ter agradado a professora.
— Muito bem, sr. Malfoy. Não esperaria nada menos do senhor, apesar de todos os… acontecimentos recentes em sua família.
Puxei meu braço do aperto do garoto sem muita delicadeza. Mas que porra. Ele não precisava me defender daquela ridícula. Eu não queria que ele me defendesse.
— Tem algo a acrescentar, srta. ?
Pensei em acrescentar algo. Pensei em falar algo que provocasse e incitasse Carrow a me castigar, para que Draco visse, mais uma vez, como os pensamentos dele e da família dele eram prejudiciais às outras pessoas. Apesar de estarmos bem um com o outro, eu sentia algo dentro de mim prestes a explodir: uma vontade insana de provocar alguma reação nele na frente de todo mundo, para que ele se rebelasse e mostrasse publicamente que me escolhia em vez de escolher o lado em que nascera. Mas seria injusto. Seria egoísta exigir aquilo. Porque afinal de contas, ele era um adolescente assustado com magia negra no próprio corpo e que só queria sobreviver em meio àquele fogo cruzado, porque se relacionar comigo era perigoso para nós dois.
Por isso, apenas sorri timidamente, da forma mais humilde que consegui fingir, e respondi:
— Não, professora, desculpe.
Quando a aula acabou, depois de horas de explicações absurdamente distorcidas sobre como a sociedade trouxa se organizava, saí com pressa da sala de aula, descendo os degraus o mais depressa que pude.
. — ouvi a voz de Draco me chamar enquanto eu ia em direção à sala comunal da Grifinória.
Algumas garotas do sexto ano, colegas de Gina que também eram de nossa casa, se entreolharam em surpresa quando me virei na direção de Draco. Arregalei levemente os olhos para ele. Formei as palavras com a boca: aqui não.
Continuei andando pelo corredor, até uma reentrância entre as colunas de pedra que dava quase na Sala Precisa, e ele veio logo atrás. Apoiei as costas na parede, abraçando um livro contra o peito como um escudo contra o que ele ia dizer.
— Você não vai querer arrumar uma confusão com Aleto Carrow, . — ele declarou, sem rodeios, com um braço apoiado ao lado da minha cabeça e o corpo se debruçando sobre o meu.
— Ela também certamente não deveria querer arrumar uma confusão comigo — rebati, cruzando os braços.
Ele respirou fundo.
— Olha. Eu entendo você não aguentar aquela merda de aula. Honestamente nem eu aguento, apesar de ter acreditado e concordado com tudo aquilo por muito tempo…
— E por que não acredita mais?
Draco piscou, processando a informação, e entreabriu a boca. De súbito, foi como se o sangue lhe fugisse de novo, como ele estivera durante quase toda a aula.
— Porque eu vi… coisas. Vi o que isso causa. E percebi que não consigo mais lidar com isso.
Franzi a testa.
— Por isso que você tava tão estranho lá dentro?
Ele assentiu fracamente. Pus a mão em seu ombro.
— Draco, o que você viu?
— Eu… — Ele apertou os olhos. — Caridade Burbage.
— O que… — Minhas pernas fraquejaram. — Ah, não.
— Na minha casa. Na minha frente. — A voz dele estava horrivelmente calma e baixa, como se ele precisasse controlar o timbre para não surtar.
Nem percebi quando minha mão se curvou e minhas unhas espetaram o ombro dele. Minha boca secou, os dentes parecendo pesados sob os lábios.
— Eu não pude fazer nada. E enquanto ela sofria e morria a única coisa que eu pensava era “tomara que ela não me reconheça, tomara que ela não fale comigo” — ele disse, amargamente.
— Você não tinha escolha — protestei, ainda sentindo o repuxo de ansiedade sob meu peito.
Ele não respondeu, mas notei sua respiração se acelerando. Draco estava obviamente nervoso, e a sensação de estar se escondendo só pioraria aquilo.
— Vamos sair daqui — falei com firmeza.
, eu tenho medo… Não quero que os Carrow nos vejam juntos…
— Eles não vão ver. Vem rápido.
Puxei ele pela mão para fora do “esconderijo”, que era abafado demais, e fomos descendo as escadas em direção ao pátio. Uma brisa leve soprava, mas aqueles bancos, tão expostos, não eram o destino que eu buscava. Em vez disso, desviei o caminho para as estufas, e passei por entre os arbustos até encontrar o que parecia ser o resto de uma velha estrada, um caminho alternativo para o campo de quadribol que circundava o Lago Negro.
— Os Carrow não vão ver a gente aqui, Draco. — assegurei. — Pode ficar tranquilo. Respira.
Nos sentamos no chão mesmo, com nossas mochilas e livros entre as pernas e o sol fraco que passava entre as nuvens esquentando um pouco a pele.
— Eu odeio essa porra — ele desabafou, irritado.
— Eu também.
O silêncio imperou entre nós por alguns minutos, sendo audíveis somente os sons de insetos e vento ao nosso redor, até Draco cortá-lo.
— E provavelmente minha vida vai ser assim daqui pra frente, pra sempre. Um Comensal da Morte respeitado, um herdeiro bilionário… Grande merda. Eles vão me fazer matar pessoas e eu não sei se minha cabeça aguenta isso.
— Draco…
— Minha tia enlouqueceu. Bellatrix Lestrange, a herdeira dos Black… Todo mundo sabe que ela enlouqueceu quando o Lorde das Trevas foi derrotado em 1981. — Ele estava inquieto, a perna direita tremendo ansiosamente. — Já ouvi sussurros de pessoas dizendo que é o sangue de primos…
Estremeci, me lembrando de quando eu fingira ser sua prima e sua noiva para Borgin a fim de chegar a Hogwarts.
— E se eu ficar maluco também? E se eles foderem tanto a minha mente… a ponto de eu machucar você… Eu vi uma pessoa ser assassinada na minha frente… e eu não suportaria fazer aquilo com alguém.
Ergui a mão para acariciar sua bochecha, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele continuava dizendo, de forma quase febril:
— Eu não posso perder você de novo, … E eu não suportaria…
Montei em cima dele, como eu fizera no porão da Dedosdemel. O suor lhe escorria pela nuca, mas o abracei, colando todo o meu corpo no dele.
— Draco, você não vai fazer nada comigo. Calma. — e o beijei, sentindo os lábios frios contra os meus.
— Desculpa, eu… fiquei nervoso com essa aula da Carrow.
— Tudo bem.
, eu não sei o que vou fazer se o resto do ano for assim.
— Não se preocupa com isso agora, ok? — Passei o polegar pelo lábio dele. — Foca em hoje à noite, vamos nos divertir, estar juntos…
— Tá bem — ele suspirou e me beijou de novo, com a palma segurando minha nuca de um jeito um tanto possessivo.
Draco endireitou os ombros quando o beijo se partiu e apoiou a testa em minha clavícula. Subi meus dedos entre seus fios platinados, num carinho leve.
— Sobre hoje…
Meu peito se apertou. Ele ia cancelar? Ia dizer que a Sonserina tinha desistido? Pior: tinha descoberto o plano para o roubo da espada?
— Eu… eu queria ficar com você depois. Conversar… e… — Draco se atrapalhou com as palavras de um jeito fofo que eu não esperava.
Sorri, aliviada e enternecida, e saí de cima dele.
— Tudo bem. Também quero… conversar — falei sugestivamente, segurando em sua nuca para beijá-lo em despedida, o estômago fervilhando.
Draco se levantou e passou por entre os arbustos, a capa da Sonserina caindo de um dos ombros despreocupadamente, uma óbvia encenação. Além do temor que a presença dos Carrow provocava em nós dois, ele ainda tinha seus resguardos e desconfianças em relação ao que eu lhe contara sobre minha missão, depois de nossos beijos sob a tempestade. No entanto, nenhum de nós estava particularmente inclinado a resolver a situação num diálogo. Era bom estar com ele, porque me fazia esquecer as preocupações, mesmo que a raiz de todas elas fosse o próprio Draco Malfoy. Como aquilo podia fazer sentido e parecer tão certo?!
Suspirei, logo imitando o caminho que ele tomara até chegar a entrada principal. Subi as escadas de volta ao sétimo andar querendo chegar logo ao dormitório, para descansar um pouco antes do almoço. Seria uma longa noite e eu deveria estar pronta para qualquer coisa.

* * *


Depois de uma tarde cheia de aulas às quais não consegui prestar nenhuma atenção, veio o jantar. A mesa da Grifinória estava anormalmente quieta, e eu percebia os sussurros e olhares de soslaio em minha direção. Tentando ignorar aquilo e me concentrar em comer direito, apesar de a ansiedade me tirar o apetite, dirigi meu olhar para um pouco mais longe e notei pequenos pontos nas outras mesas, grupos de alunos mais velhos, com a mesma postura suspeita de meus colegas de casa. A exceção era a da Sonserina: uma considerável algazarra a ocupava, fruto da animação dos alunos mais velhos em relação à festa que aconteceria mais tarde na Sala Precisa, depois do toque de recolher.
Desci do dormitório já pronta, com um vestido todo bordado de pedras e saltos altos nas mãos, e encontrei a Armada de Dumbledore completa sentada nos sofás. Nossas vestimentas eram tão contrastantes quanto possível: enquanto a ideia de minha roupa era causar uma distração sedutora, as peças pretas e discretas que eles trajavam tinham por objetivo chamar o mínimo de atenção possível.
Ana Abbott, Susana Bones, Ernesto MacMillan e Zacarias Smith, da Lufa-Lufa. Antônio Goldstein, Luna Lovegood, Terêncio Boot, Miguel Corner e Padma Patil, da Corvinal. E, claro, os da Grifinória: Parvati Patil, Simas Finnigan, Colin e Dênis Creevey, Lilá Brown, Neville Longbottom e Gina Weasley. Todos me encarando, tendo a plena consciência de que aquela linda garota de vestido de festa era a peça chave para o plano daquela noite.
— Oi — cumprimentou Neville, um pouco corado ao me encarar de cima a baixo com assombro.
— Oi, Neville. Oi, pessoal.
O grupo foi permeado por murmúrios tensos e educados. Me sentei no sofá no único espaço vazio que sobrara; Gina estava acomodada no tapete exatamente em frente àquele ponto, ansiosa demais para se contentar com o estofado macio.
— Tudo certo? — perguntou Gina, com cautela.
— Tudo. Vou manter os sonserinos dentro da festa, tomando especial cuidado com Malfoy e Parkinson, os monitores chefes.
— Perfeito. E os monitores do quinto ano?
— Zoe Accrington e Edmund Vaisey. Os dois foram convidados “com honra” para a festa também; mandei uns cartõezinhos para me certificar de que iriam. Não vamos ter problemas com o pessoal do quarto ano para baixo, porque eles vão fazer sua própria comemoração nas masmorras.
— O problema maior é a Parkinson — Neville pontuou. — Ela não é exatamente o tipo de pessoa fácil de lidar ou manipular.
— Eu sou a favor de dar uma paulada na cabeça dela e esconder o corpo num armário de vassouras — sugeriu Gina.
— Gina — bronqueei, tentando esconder o riso.
— Quando eu digo “o corpo”, não é um corpo morto — ela soou escandalizada. — Só desacordado.
— Relaxem, sei de alguém que consegue cuidar disso pra gente — falei, ignorando a justificativa da Weasley, ao pensar em uma certa loirinha que tenho certeza que adoraria tomar conta de Pansy a noite toda.
Eles não questionaram e assentiram. Gina cutucou um desenho de leão no tapete com a ponta do coturno, visivelmente ansiosa.
— E vocês? O que vão fazer?
— Vamos usar alguns artigos da Gemialidades Weasley para incitar o Pirraça e encobrir o que realmente vamos fazer — explicou Neville.
— Enquanto isso, eu subo e pego a espada — emendou Gina.
— Mas não tem senha para entrar na sala do diretor?
Os dois se entreolharam de forma orgulhosa.
— Nós conseguimos a senha com a Romilda Vane, monitora da Grifinória. O Snape passou para ela num bilhete, porque ele queria instruir os novos monitores sobre os horários de patrulha, e obviamente colocou a senha lá.
Apenas assenti lentamente. Todos estavam nervosos, até mesmo Luna, apesar de ela tentar manter uma expressão plácida.
— Quantos de vocês foram convidados?
Os alunos sangue puro da Corvinal e Lufa-Lufa levantaram as mãos timidamente.
— Preciso que vocês apareçam lá pelo menos um pouco durante a noite, se não vai parecer muito suspeito vocês recusarem o convite. Organizem escalas de duplas ou trios e transfigurem as roupas; cada grupinho não precisa ficar muito mais que uma hora, mas tentem conversar com bastante gente lá para marcar presença. — Meu olhar se dirigiu de volta a Gina. — A festa foi marcada para começar às dez horas, então uma margem segura de tempo seria por volta de uma da manhã. É o melhor horário para você invadir a sala do Snape. Tarde o suficiente para não topar com algum retardatário, mas cedo o suficiente para não encontrar Filch e Madame Nor-r-ra na patrulha da madrugada.
Todos concordaram com a cabeça, alguns um pouco atordoados com o excesso de informação.
— Você está linda — disse Luna suavemente.
Me virei em sua direção e minha boca tremeu com a vontade de rir de nervoso.
— Obrigada, Luna.
Um silêncio tenso se espalhou pela sala comunal, como um líquido viscoso que prendia todos os presentes numa letargia apreensiva.
— Vamos combinar agora os grupos que irão aparecer na festa — Gina declarou, levantando do chão. — Depois disso, voltem para suas salas comunais, e vamos nos encontrar nos lugares combinados meia hora depois do toque de recolher. — Seus cabelos ruivos cintilaram quando ela girou o rosto para me fitar. — , uma palavrinha, pode ser?
Nos afastamos dos demais, e ela torceu as mãos, num gesto contrastante com sua costumeira segurança.
— Você precisa manter o Malfoy fora do caminho, então faça o que precisar fazer…
— Gina, eu sei, eu…
. — Ela me interrompeu. — Por favor.
O olhar cheio de significado dela fez meu estômago pesar e borbulhar ao mesmo tempo: um misto de inquietação e expectativa. Assenti com leveza, e ela sorriu ao apertar minha mão carinhosamente.
— Vai dar tudo certo — assegurei.
— Eu sei.
Enquanto via a Weasley se afastando e subia as escadas, depois de trocarmos um aceno de cabeça, o pedido camuflado dela envenenava todas as minhas expectativas para aquela noite. Mesmo sem a intenção, era mais uma ordem que eu deveria executar, mais uma circunstância que eu deveria assegurar, mais uma missão a cumprir. E dessa vez… e dessa vez eu queria o ato em si. Será que o dever que eu tinha para com o lado bom macularia até mesmo aquele momento?
Vasculhei meu malão até encontrar o pequeno vidrinho de Poção Vitare no fundo de um saco de veludo. Meu coração deu um salto e meu corpo se agitou com a expectativa do que aquele líquido possibilitaria para as 24 horas seguintes.
Girei o frasco de poção nas mãos. Tinha uma cor púrpura e um gosto um pouco amargo: só tinha tomado uma vez, para a única vez que eu tinha precisado dela, e estivera terrivelmente nervosa na ocasião. Agora… Era um tipo diferente de nervosismo, um tipo diferente de importância. Mas, estranhamente, parecia mais certo. Puxei a rolha e desci o líquido pela garganta, bebendo de uma vez.
Algumas meninas tinham efeitos colaterais imediatos, como sentir um formigamento sob o umbigo, ou escurecimento da visão. A curandeira que me atendera quando completei 14 anos, a pedido de minha mãe para que eu fosse instruída sobre as medidas para me proteger, me alertara para sempre prestar atenção ao meu indicador de que a poção anticoncepcional estava funcionando. No meu caso, era uma sequência de espirros. Um, dois, três. Achei graça da reação e, contente por ter funcionado, coloquei o vidro vazio de volta no malão e suspirei. Apertei as pernas, pensando em Draco e em como eu queria que aquela noite acabasse.
Em meu íntimo, sabia muito bem que o pedido da Armada de Dumbledore para manter os monitores-chefes fora do caminho era só uma desculpa da qual eu me apropriaria para tomar coragem e concretizar o que queria fazer com Draco desde nosso beijo na festa de Halloween do ano anterior. Virei-me em direção ao espelho, mirando o reflexo. Uma garota de vestido de festa de mangas assimétricas, uma longa e outra curta, com um sorriso incontido nos lábios, me encarava de volta. Meu corpo e meu coração queriam desesperadamente aquilo, e eu sentia que seria… diferente. Seria especial. Não seria como a única outra vez, movida por curiosidade e com um amigo. Draco era… Draco. Tinha tesão, tinha saudade, tinha amor. E aquela mistura só me deixava mais e mais ansiosa a cada segundo.
Coloquei minha varinha no bolso interno que havia na saia do vestido, fechei o discreto zíper frontal por completo e saí da sala comunal. Não eram os maiores desafios vencer os corredores desertos e escuros e mentalizar minhas intenções em frente à parede onde a porta da Sala Precisa se materializaria, ao contrário do que eu imaginava. O maior desafio foi olhar para Draco, tão lindo no fundo da sala, sorrindo e conversando com seus colegas de casa, e saber que o final que eu planejara e desejara para aquela festa serviria a outro propósito que não a minha felicidade.
Ele usava uma camisa de botão, como quase sempre, de um tom cinza chumbo que cintilava levemente. Um blazer preto, de corte mais casual, completava a roupa. Os cabelos estavam penteados para trás, como se ele tivesse saído do banho pouco antes de se encaminhar para a festa, dando um ar irritantemente charmoso. Com o quadril apoiado na bancada do bar, de tempos em tempos ele ajeitava os fios platinados com os dedos, mechas se enrolando e desenrolando nos dois anéis que ele usava: um dourado, dos Malfoy, um prateado, da Sonserina. Mas o que havia de mais bonito sobre Draco Malfoy na festa de início de ano era o brilho em seus olhos, o fogo que inundou as íris quando registraram minha presença.
Os alunos da Casa das Serpentes quase não prestaram atenção em mim; somente Daphne me deu um aceno simpático sobre o ombro de Pansy, com quem ela conversava alegremente em um dos sofás dispostos à distância. Ele, porém, abandonou tudo o que estava fazendo quando me aproximei, espalmando minhas mãos no mármore que apoiava as bebidas e abrindo um sorriso.
Para minha surpresa, Draco me pegou meio pela nuca, meio pelo pescoço, e me beijou, depois sorrindo e enchendo minha boca de selinhos. Um contraste gritante com sua postura naquela manhã, e eu apreciei aquilo mais do que imaginava.
— Você… — ele sussurrou contra meus lábios. — Você está… linda.
— Obrigada. Você também — e passei minha palma pelo ombro dele, como se ajeitasse o tecido.
Suas íris azuis me estudavam atentamente enquanto sua mão descia até minha cintura, desenhando pequenos círculos com a ponta dos dedos nas minhas costas.
— Só os sonserinos chegaram até agora? — questionei, como quem não quer nada.
— Sim, e eu imaginava que isso fosse acontecer. — disse Malfoy. — As outras casas amam nossas festas, mas sempre chegam mais tarde, porque ninguém vem se não for em grupo.
Deixei minha atenção vagar pelo aposento, observando os grupos de amigos conversando, bebendo e dançando, mas sentia os olhos de Draco me queimarem inteira.
— Eles não sabem que essa sala se molda às suas necessidades, entende — ele explicou, em voz baixa e com um sorriso preguiçoso nos lábios. — Eu disse que conhecia um lugar, e, como chegamos todos juntos, eles aceitaram a explicação.
— Boa — elogiei a perspicácia dele de manter as propriedades do local como segredo.
Como se não conseguisse se conter, ele segurou meu queixo e tocou nossos lábios de novo. Eu ri.
— Que foi?
— Tô feliz. Feliz por você estar aqui. E você está certa. Eu preciso… viver um dia de cada vez. — Ajeitou uma mecha atrás de minha orelha. — Você bebeu alguma coisa? — ele perguntou casualmente, com uma garrafa de cerveja amanteigada na mão.
Abri um sorriso torto e inclinei meu corpo sobre o dele, contra a bancada do bar. Aproximando minha boca de sua orelha, sussurrei:
— Só uma Vitare…
Draco tensionou levemente o corpo, surpreso, e sorri. Obviamente ele sabia o que significava.
— Eu te disse, lembra? — continuei, instigando-o. — Que estaria sóbria quando acontecesse…
… — ele murmurou, apertando a mão na minha cintura num tom de aviso, como se me prevenisse do que faria comigo mais tarde. Pouco importava. Eu queria desesperadamente.
Não respondi. Peguei a garrafa da mão dele e tomei um gole, sem me preocupar com o pouco de espuma que me escorreu pelos lábios. Ele sorriu, com as pupilas dilatadas fixas na minha boca, e se inclinou, chupando o líquido doce da minha pele.
— Sóbria, lembra?
— Relaxa — murmurei no ouvido dele enquanto meus dedos brincavam de adentrar sua camisa social pela barra nas costas, passando com leveza pelos músculos rígidos. — Vamos dançar.
Nossos corpos juntos se movimentavam na pista de dança ao centro da sala, numa meia-luz intimista e inebriante. Enquanto isso, a Sala Precisa ia ficando mais e mais cheia e movimentada; os alunos da Armada de Dumbledore vinham e iam aos poucos, olhando para mim com sorrisos nervosos que eu retribuía para dar-lhes segurança. Tudo estava muito bem decorado em tons predominantes que combinavam com as cores da Sonserina, o teto estava encantado como se fosse o céu do lado de fora, mas a diferença era que as estrelas rodopiavam entre os que dançavam, pontos de luz que cintilavam como diamantes. A música explodia alta de todos os cantos, contagiando cada adolescente animado ali.
Zabini estava em pé, com um cigarro entre os dedos e soprando fumaça com cheiro de menta para o alto, enquanto uma garota da Lufa-Lufa rebolava nele. Ele ergueu as sobrancelhas quando me viu encarando-o, e desviei a atenção. Alguns metros à sua esquerda, três meninas da Corvinal (que de vista eu reconhecia como MacDougal, Turpin e Brocklehurst) passavam um baseado entre as mãos com unhas compridas e pintadas com desenhos surpreendentemente detalhados. Num dos cantos da sala, Tracey Davis colocava uma balinha rosa neon na língua e puxava Stephen Cornfoot para um beijo bem mais intenso do que deveria ser em um local público.
Tudo isso se apagava da minha cabeça enquanto as mãos de Draco me guiavam, passeando por mim de um jeito sensual, mas sem dar um show para quem nos observava. Ele não me parecia o tipo de cara que gostava de exibir a garota com quem estivesse, ou se expor excessivamente.
Só demos uma pausa quando o cabelo dele já tinha ficado seco e o suor fazia nossas peles brilharem em euforia. Malfoy deixou um beijo em minha testa e foi até o bar pegar alguma coisa gelada para nós. Assim, me encaminhei para um dos sofás, onde Daphne ria sozinha.
— Oi! — ela disse quando me sentei ao seu lado, e ela me deu dois beijinhos no rosto, exatamente como todos faziam no Rio de Janeiro. — Eles fazem assim no Brasil, não é? Cumprimentam com beijos?
— Sim! — ri. — Como você está?
— Bem. Decididamente menos sóbria do que deveria. — Ela exibiu uma expressão culpada e caiu na gargalhada. — Pelos menos estou melhor que a Pan — e apontou para o lado.
Uma mesa de pingue pongue verde escura, com as linhas de demarcação pintadas em prateado, apoiava vários copos em duas formações triangulares, uma em cada ponta. Viradas na minha direção, estavam duas garotas idênticas, que eu reconheci como Flora e Hestia Carrow; tinham o mesmo nariz fino e comprido dos professores com quem compartilhavam o sobrenome. Como oponentes delas e de costas para mim, estavam o lufano Kevin Ernwhistle e…
— PORRA! Aí sim! — Pansy Parkinson gritou, entusiasmada, quando a bolinha quicou na mesa e acertou um copo. Se virou na direção do parceiro de jogo. — Boa, time!
Os dois fizeram um toque surpreendentemente complicado com as mãos e caíram na risada, enquanto Flora exibia uma careta e descia o conteúdo do copo garganta abaixo. Sua irmã jogava para cima e capturava no ar a pequena bola branca molhada, com os lábios apertados em concentração.
— Ela tá doida demais pra ainda jogar beerpongVodkapong, na verdade. Eles decidiram que cerveja amanteigada era muito fraca — explicou Daphne, parecendo satisfeita consigo mesma.
— Ah — foi o que consegui dizer.
O olhar da loira estava perdido na garota de cabelos curtos, sua colega de casa, sua melhor amiga. Eu reconhecia bem aquele olhar: era o mesmo que Draco me encarava…
— E vocês duas? Como estão?
Greengrass pareceu ter perdido o ar por um instante.
— Estamos bem, por que não estaríamos bem? — Ela forçou uma risada. — O ano mal começou, então ainda não temos preocupações com notas…
— Você sabe que não é isso que eu quero dizer — diminuí o volume da voz e ergui as sobrancelhas.
Sua boca se entreabriu, mas ela logo relaxou as pálpebras e deixou a cabeça cair no encosto do sofá, se rendendo à minha pergunta.
— Nós… saímos nas férias.
— Mesmo? Que bom!
— Sim — ela virou o rosto, esmagando a bochecha contra o couro do sofá. — Fomos pra Paris.
O grito das gêmeas Carrow ecoou, e pela visão periférica registrei Pansy bebendo mais um copo de vodka. No entanto, meu choque não era pela bebida que ela consumia, e sim pelo que Daphne acabara de me revelar.
Quê?!
— Pois é… Dissemos aos nossos pais que íamos dormir na casa uma da outra, e como já passamos no exame de aparatação, fomos passar o fim de semana lá.
Meu queixo caiu. Para mim, era muito fora da realidade passar um fim de semana em Paris, e mais ainda agir daquela forma despretensiosa a respeito. No entanto, o que mais me surpreendeu foi o teor absurdamente romântico daquela viagem.
— Foi incrível… Comemos todos os tipos de doces possíveis, passeamos pelos pontos turísticos mágicos, compramos roupas novas e ela me deu uma câmera instantânea trouxa, uma graça. — Sua bochechas adquiriram um leve tom rosado. — Até fiz um álbum com as fotos que tirei por lá.
— Meu Deus, vocês são a coisa mais fofa.
Agora o rosto dela ficou decididamente vermelho.
— É. Bom, eu pensei em… dar um passo a mais na viagem. Passamos as férias todas juntas, porque nossas famílias são amigas e tudo… Mas não sei se… Não sei se isso ia assustar ela. Então estou esperando o momento certo.
— Por que não hoje? — insinuei.
— Ah… Não sei. Não quero que seja na frente de todo mundo, sabe.
Demorei uns três segundos para raciocinar e entender que ela não estava falando de sexo; estava falando de compromisso.
— Não precisa ser na frente de todo mundo. Essa sala tem algumas… propriedades especiais. Se você for ali atrás do bar, vai ter uma alavanca que você puxa e dá num pequeno corredor com quartos. Assim vocês vão ter privacidade para conversar. — Ao dizer aquilo, torci para que a Sala Precisa fizesse sua mágica e exatamente aquilo aparecesse. Segurei a mão dela. — Ela gosta muito de você, Daph. Eu vejo pelo jeito como ela te olha… Vocês deveriam estar juntas.
Daphne arregalou os olhos.
— Será que ela está pronta para… namorar?
— Você só vai descobrir se perguntar a ela.
— Mas eu…
Um barulho alto e agudo de microfonia interrompeu o que Daphne dizia, e voltamos os olhares para a pista de dança. Um pequeno tablado se materializara ali, e Pansy segurava a varinha contra a garganta, executando um feitiço Sonorus.
— Quero dedicar essa música para minha melhor amiga… A garota mais gostosa dessa festa! Daphne Greengrass, vem cá! — Pansy chamou alegremente.
Direcionei de volta meu olhar para ela, como quem diz “eu não falei?”.
— Ai, meu Salazar — a loira murmurou sob a respiração, se levantando em alarme. — E vem você também… — ela pronunciou meu nome lentamente, como se os fonemas latinos representassem um desafio à sua mente bêbada. — A segunda garota mais gostosa da festa.
Dei uma risada, caminhando atrás de Daphne. Quando meus olhos procuraram por Draco, minha surpresa não foi contida ao vê-lo subir no palco ao lado da amiga, ajeitando um pedestal de microfone encantado. Em pouco tempo tudo estava arranjado, e ele ergueu a varinha para ajustar a iluminação; o resto da Sala ficou mais imerso na penumbra e dois holofotes douraram as duas figuras no alto, enquanto os acordes da música começavam e Draco Malfoy agarrava o microfone, numa desinibição que eu não imaginava que ele tivesse. [N/A: dê play na música aqui (Medicine — Harry Styles).]

Here to take my medicine, take my medicine
(Aqui para tomar meu remédio, tomar meu remédio)
Treat you like a gentleman
(Te tratar como um cavalheiro)


Draco olhou de soslaio na minha direção, com um sorrisinho torto. Quase encostou a boca no microfone, fechando os olhos para cantar.

Give me that adrenaline, that adrenaline
(Me dê aquela adrenalina, aquela adrenalina)
I think I'm gonna stick with you
(Acho que vou continuar com você)


Ele tirou o paletó preto, causando gritinhos agudos do trio de meninas chapadas da Corvinal, e o jogou na minha direção. Capturei a peça impregnada com o cheiro dele, vendo-o alargar o sorriso. Pansy colocou a boca ali perto e continuou cantando, a voz saindo rouca e mole devido a toda a vodka que ela já tinha botado para dentro desde o início da festa.

Here to take my medicine, take my medicine
(Aqui para tomar meu remédio, tomar meu remédio)
Rest it on your fingertips
(Deixe na ponta de seus dedos)
Up to your mouth, feeling it out
(Até sua boca, sentindo o gosto)
Feeling it out
(Sentindo o gosto)


Um incômodo cresceu em mim, e abaixei o rosto para tirar a varinha da faixa escondida em minha coxa, colocando-a no bolso interno do blazer de Draco. Pansy se apossou do microfone, com os olhos presos em uma loirinha muito específica em meio à multidão:

I had a few, got drunk on you and now I'm wasted
(Eu tomei algumas, fiquei bêbada em você e agora estou chapada)
And when I sleep I’m gonna dream of how you tasted
(E quando eu dormir, vou sonhar com o gosto que você tinha)


À minha esquerda, Daphne soltou uma exclamação surpresa e ficou vermelha. Pansy só abriu um sorriso malicioso, passando a língua nos lábios e pulando em volta de Draco. Troquei o peso do corpo de um pé para o outro, perturbada irracionalmente com a proximidade deles.
Os dois aproximaram a boca do microfone juntos e cantaram:

If you go out tonight, I'm going out 'cause I know you're persuasive
(Se você sair esta noite, eu vou sair porque sei que você é persuasiva)
You got that something, I got me an appetite; now I can taste it
(Você tem aquela coisa, me dá apetite, agora eu posso provar)


Rodopiando e alcoolizada, Parkinson se desequilibrou nos saltos agulha que usava e caiu nos braços de Draco, cujos reflexos de apanhador não deixaram que ela caísse no chão. A criatura possessiva dentro de mim rosnou, e dei vários passos à frente, cortando o grupo de pessoas até ficar colada ao pequeno palco. Eles continuavam a cantar juntos.

We're getting dizzy, oh, we're getting dizzy, oh
(Estamos ficando tontos, oh, estamos ficando tontos, oh)
La la la la la
You get me dizzy, oh, you get me dizzy, oh
(Você me deixa tonto, oh, você em deixa tonto, oh)


Garras de ciúme cortaram meu peito, e mesmo sem ter bebido absolutamente nada, sentia minhas emoções à flor da pele. Vesti o paletó de Draco, largo e pesado sobre meu vestido justo e brilhante.
O garoto voltou a cantarolar os versos, aproximando o microfone:

Tingle running through my bones, fingers to my toes
(Formigamento correndo por meus ossos, dos meus dedos da mão aos dos pés)
Tingle running through my bones
(Formigamento correndo por meus ossos)


Pansy, fazendo uma careta, puxou o pedestal para si, e fechou os olhos, parecendo inebriada pela música:

The boys and the girls are in
(Os meninos e as meninas estão dentro)
I mess around with them
(Eu me divirto com eles)


E ela se virou para Malfoy:

And I’m okay with it
(E estou bem com isso)


Se ela não estivesse visivelmente tão bêbada e tão claramente louca por Daphne Greengrass, certamente eu teria feito mais do que lhe lançar uma cara feia. Draco, porém, ignorou a amiga e agarrou minha mão com força, me puxando para subir no palco com ele. Seus braços colaram minhas costas a seu peito, e ele cantou, com o microfone no meu ouvido:

I'm coming down, I figured out I kinda like it
(Eu estou descendo, eu descobri que meio que gosto disso)


E apertando meu quadril, completou:

And when I sleep I’m gonna dream of how you ride it
(E quando eu dormir, vou sonhar com como você cavalga)


Todos os alunos dentro da Sala Precisa deram um grito de euforia, e eu gargalhei. Ele realmente queria me deixar ansiosa… Nada mais justo que eu devolvesse o favor.

If you go out tonight, I'm going out 'cause I know you're persuasive
(Se você sair esta noite, eu vou sair porque sei que você é persuasiva)
You got that something, I got me an appetite; now I can taste it
(Você tem aquela coisa, me dá apetite, agora eu posso provar)


Enquanto ele entoava a canção, apoiei minha nuca em sua clavícula e rebolei nele, de um jeito lento e ritmado. As palavras lhe fugiram da boca, e ele deixou Pansy cantando sozinha enquanto eu dançava.

We're getting dizzy, oh, we're getting dizzy, oh
(Estamos ficando tontos, oh, estamos ficando tontos, oh)
La la la la la
You get me dizzy, oh, you get me dizzy, oh
(Você me deixa tonto, oh, você em deixa tonto, oh)


Era como se tudo tivesse sumido ao nosso redor, e rapidamente a atenção geral foi desviada de nós para ser direcionada a Pansy, que descia do palco lentamente, indo na direção de Daphne e segurando-a pela cintura. A loira estava, na mesma medida, assustada e impressionada.

I had a few, got drunk on you and now I'm wasted…
(Eu tomei algumas, fiquei bêbada em você e agora estou chapada…)


E Parkinson se inclinou para beijar a melhor amiga pela primeira vez em público.
Os gritos ficaram ensurdecedores, quase encobrindo o som da guitarra que saía do gramofone encantado; pelo visto o resto do sétimo ano de Hogwarts não fazia ideia de que a relação delas já estava naquele nível. Pansy obviamente tinha receios consigo mesma sobre se assumir, mas qualquer amarra à qual ela ainda se prendia foi rompida quando Daphne afastou o cabelo dela do pescoço e sussurrou: “Pansy, eu quero que você seja minha namorada, você…”, e ela gritou um “SIM!” ensandecido que ecoou por todo o aposento e não fez sentido para mais ninguém.
Contudo, consegui ouvir Malfoy perguntar em meio ao caos:
— O que você acha de irmos pro meu dormitório?

If you go out tonight, I'm going out 'cause I know you're persuasive
You got that something, I got me an appetite; now I can taste it
We're getting dizzy, oh, we're getting dizzy, oh
La la la la la
You get me dizzy, oh, you get me dizzy, oh


Minha cabeça sabia que não podíamos, meus instintos de agente diziam que isso ia pôr a perder o plano da Armada de Dumbledore, mas meu coração e corpo queriam desesperadamente aceitar. Então tomei a única decisão possível: conciliar todas aquelas necessidades que invadiram minha mente.
— Pra quê sair daqui se a Sala consegue arrumar um lugar pra nós?
Com a boca passeando perto da minha orelha e soltando a respiração quente na minha nuca, ouvi a risada baixa e grave de Draco. Ele nos guiou para descer do palco pela parte de trás, fugindo da aglomeração.
— Eu já estava com saudade das suas respostas espertinhas.
— Por quê? — questionei, puxando-o até a bancada do bar e passando a mão na parte de baixo do mármore até sentir, depois de alguma concentração, uma alavanca. — Garotas perspicazes te dão tesão?
Abaixei só o tronco para puxar a abertura para o cômodo que a Sala criara para nós, e ele riu exasperado, puxando meu quadril até encostar no dele por trás, satisfazendo meu intento. Meia dúzia de degraus compunham o caminho até um corredor, que exibia duas portas idênticas à dos dormitórios da Sonserina.
Você me dá tesão — respondeu ele, num suspiro divertido, quando descemos a pequena escada.
Meus lábios se entortaram num sorrisinho, que Malfoy logo desfez ao me empurrar para dentro de um dos quartos e me agarrar vorazmente. Meu corpo todo ferveu de expectativa e ansiedade.
— Tempo demais, — ele murmurou contra meu pescoço, chupando a pele fina com mais força do que deveria e a arranhando com os dentes. Draco devia estar sentindo o mesmo que eu, e aquilo era exageradamente forte para permitir que ele fosse delicado.
— Tempo demais — concordei, arfando e girando para chutar a porta, fechando-a num estrondo.
Ele segurou de leve meu pescoço para grudar nossas bocas, e enquanto sua língua acariciava a minha com a costumeira maestria, desceu a mão pela parte interna de minha coxa. Sentindo o arrepio seguir a trilha do toque, puxou minha varinha do bolso fino dentro do próprio paletó dele, para trancar o quarto com um Coloportus e isolar os sons com um Abaffiato, e logo a recolocou no lugar. Não queria ser surpreendido ou ouvido. E eu queria que ele se permitisse fazer o que tinha vontade, porque finalmente nós dois estávamos livres das amarras que nos prendiam no ano anterior. Éramos apenas e Draco, sem os pesos que nossos sobrenomes traziam.
Malfoy tirou as mãos de minha cintura para levá-las a minhas coxas, impulsionando para que eu subisse em seu colo. Entrelacei as pernas ao redor dele, e o garoto me empurrou contra a parede, prensando minhas costas na pedra e meus seios em seu tronco. A força do impacto me fez arfar e morder o lábio dele sem gentileza, que partiu o beijo para sorrir, provocante.
Meus dedos se perderam na maciez prateada de seus cabelos, trazendo-o mais para perto, achando que nossas bocas fundidas ainda eram uma proximidade longe da suficiente. Deslizávamos um contra o outro com uma sincronia perfeita, como se viesse de outras vidas. Ele me repreendeu com uma mordida lenta quando esfreguei meu quadril no dele com mais intensidade, quase rosnando. Sua boca se descolou da minha e voltou a saborear a pele do pescoço.
— A cama é logo ali — lembrei, tentando esconder minha vontade de pedir explicitamente para que se deitasse comigo.
— Eu sei — Ele segurou na minha nuca com firmeza, encarando minha boca com uma intensidade que nunca o vira exibir, num devaneio inebriante. — Mas nem tudo que eu quero fazer com você é lá.
Foi como se todas as borboletas do mundo tivessem decidido bater suas asas no meu estômago ao mesmo tempo. A única resposta possível foi agarrar os cabelos dele com mais força e beijá-lo de novo, deixando-o receber o primeiro gemido em sua boca quando ele me apertou ainda mais contra seu corpo para sustentar meu peso, e o senti duro contra o pano fino da calcinha.
— E o que você quer fazer comigo? — questionei, sentindo as pálpebras pesarem enquanto ele distribuía beijos molhados pela clavícula.
— Ah, … — ele abaixou um pouco o decote do vestido com uma das mãos, roçando a palma no mamilo no caminho. Abaixei os braços para deixar o blazer cair no chão, ouvindo um ruído seco quando a varinha se chocou contra o piso. — Pra quê te contar se eu posso te mostrar?
Apoiei a cabeça na parede, jogando-a pra trás e rindo fraco.
— Pena que você só fala — debochei.
Foi uma péssima ideia. Ou uma ótima, dependendo do ponto de vista.
As pupilas dele se dilataram diante do desafio. Confiando na força de minhas pernas que se prendiam ao seu redor, Draco ocupou as duas mãos em descer o zíper central discretamente costurado em meu vestido, passando a língua na pele que ia sendo exposta numa velocidade lenta que era irritantemente contrastante com a urgência que eu via em suas íris. As mangas do vestido escorregaram de meus ombros como água, mas ele ignorou e continuou beijando e lambendo meu pescoço, colo e esterno. O idiota estava me provocando de propósito…
Finalmente ele chegou à área que não era tão desconhecida assim para ele; meu sutiã, de renda madrepérola, era fino o bastante para que ele visse a cor mais escura dos mamilos excitados. Seus olhos subiram rapidamente para meu rosto antes que ele abaixasse as duas alças da peça com carícias leves e tomasse um seio inteiro com a boca.
— Draco… — sussurrei, alongando a última vogal de seu nome numa súplica incompleta.
Sem beijos leves. Sem roçar os lábios devagar antes. A maciez e o calor de sua boca, direto nos bicos endurecidos e sensíveis. Foi o suficiente para meu corpo ficar ainda mais quente e eu me derramar na calcinha. O vestido já estava aberto até quase o umbigo, e meu desejo desenfreado me levou a deslizar a pequena peça de metal pelos trilhos de uma só vez, permitindo que o tecido caísse no chão com um som suave.
Ainda me segurando em volta de seu tronco, Draco se afastou momentaneamente para me ver, e me viu, de fato. Crua. Imperfeita. Faminta. O sutiã ainda abotoado e preso nas costelas; a calcinha pequena e translúcida, já incomodamente molhada; as cicatrizes que anos de treinamento fizeram no meu corpo; o fogo que emanava de cada centímetro meu, querendo devorá-lo.
— ele pronunciou meu nome como se saboreasse cada fonema que deslizava por sua língua, e me desencostou da parede. O movimento me desequilibrou por um instante, mas ele logo agarrou minha cintura e, alguns passos depois, eu estava deitada sobre o colchão.
Draco se afastou mais uma vez para me observar, e fiz o mesmo com ele. Os ombros largos fazendo sombra sobre mim, a pele clara visível pelo colarinho aberto, os antebraços expostos pela camisa dobrada, com a Marca Negra se destacando, e o volume duro ainda coberto pela calça preta. O rosto estava avermelhado e com as sobrancelhas franzidas, como se ele ainda estivesse decidindo por onde começar ao me ver ali, deitada na cama e pronta para qualquer coisa que ele quisesse.
— Você está com roupas demais — acusei, e cheguei perto, subindo os dedos pelo peito dele até encontrar o primeiro botão ainda fechado. Tirei cuidadosamente o primeiro de dentro da casinha costurada, depois o segundo…
, pelo amor de Deus — ele grunhiu e agarrou minhas duas mãos, puxando-as num estrépito e fazendo os botões pularem pelo piso.
Ofeguei ao vê-lo. O tórax claro e esculpido como mármore estava quente e um pouco suado, e era marcado por cicatrizes prateadas e espessas como riscos numa obra de arte que só a deixavam mais valiosa e única: o artista responsável fora Harry Potter e seu Sectumsempra mal calculado. Minhas mãos desceram o percurso definido pelos músculos, que se afundavam um pequeno vale e desembocavam dentro da calça dele. Minhas unhas arranharam o limite entre tecido e pele. Draco sorriu com malícia e segurou minha mandíbula com uma atitude de posse, juntando nossas línguas de novo.
Me ajoelhei na ponta do colchão e desabotoei o sutiã por completo, sentindo o contato muito mais fluido e gostoso entre nós dois. Uma das mãos de Malfoy foi até um seio, beliscando o mamilo de leve e me arrancando um ruído de prazer no meio do beijo. A outra desceu um pouco mais, encontrando a renda delicada da calcinha. Ele mordeu e lambeu meu lábio inferior quando sentiu o quão encharcada eu estava.
Tive que partir o beijo para conseguir respirar quando os dedos se cansaram de me sentir somente através do forro da peça íntima e a adentraram, me explorando sem pressa. Sentiu a pele molhada de tesão, passou o indicador em cada ponto sensível e por fim parou com o polegar no mais delicado de todos. O estímulo, tão direto e forte, me tomou o fôlego.
— Você sentiu minha falta — ele sussurrou, rodeando o lugar exato com a ponta do dedo e me vendo estremecer. Não era uma pergunta, mas se fosse, a resposta teria sido “sim”. — Sentiu minha falta sem eu nem ter encostado direito em você ano passado... — Eu conseguia ouvir o sorriso orgulhoso dele. — Você fez isso pensando em mim?
Dois dedos entraram em mim devagar e se mexeram pressionando contra um ponto que eu não sabia nem que existia, mas que estava muito grata a Merlim por ele saber. Deixei escapar seu nome num suspiro alto, sem conseguir me conter por completo, sabendo que qualquer comentário elogioso só aumentaria o ego daquele pretensioso de merda. Mas, porra, como ele era bom naquilo…
Tive que abraçá-lo com força pelos ombros para não cair na cama, de tão fracas que minhas pernas ficaram. Ele passou o outro braço pela minha cintura para grudar cada centímetro de nossos troncos. Deitei a cabeça em seu ombro, arfando e gemendo enquanto ele se ocupava naquela tortura deliciosa. Sim, tortura, porque a parte dele que eu realmente queria dentro de mim ainda estava debaixo de duas camadas de roupa, já pronta para o que viria depois, mas ele continuava se dedicando exclusivamente ao meu prazer.
— Tempo… demais… — eu repeti, quase choramingando, e ele riu baixo.
— Não precisa implorar, .
Ele tirou os dedos de mim, chupando-os, e me deitei na cama. Minhas coxas tremiam, e o fato não escapou aos olhos atentos de Draco. Tinha certeza que ele estava fazendo uma anotação mental para depois jogar aquilo na minha cara, enquanto desafivelava o cinto, descia o zíper da calça e tirava toda a roupa num único puxão.
Porra.
— Caralho, Malfoy… — fechei os olhos, sorrindo em reação ao que acabara de ver.
Era… perfeito. Perfeito como ele todo.
Draco inclinou a cabeça para rir, o que só salientou mais as veias marcadas na pele, criando um caminho delicioso pelo qual eu já conseguia me imaginar passando a língua. Engatinhei sobre o colchão em sua direção e aproximei a boca dele, sentindo sua ponta melar meus lábios. O garoto suspirou, apertando os olhos, e deslizei a língua pela pele lisa e rosada, vendo seu abdômen se contrair com o prazer. Num impulso, ele agarrou meus punhos e me empurrou de volta ao colchão, me prendendo com seu peso embaixo de si.
— Não me provoca… — ele quase rosnou.
— Por quê? — rebati, desafiando-o.
— Porque eu preciso de você agora… — Draco segurou meu queixo e me deu um beijo duro e intenso. — Preciso estar dentro de você…
Apesar da cor azul profunda que agora coloria suas íris, ele não parecia cego pelo desejo. Havia algo muito mais crucial ali quando ele se roçou na minha entrada, me ouvindo gemer, fraca e suplicante. As chamas prateadas que se avivaram não eram só de fome pelo nosso prazer, mas também outra coisa.
— Você está aqui — ele murmurou. Malfoy repetiu a investida, sem me penetrar, só sentindo o quão melada eu ficara por causa dele. Abaixando o rosto para beijar minha mandíbula, completou no meu ouvido: — E eu não quero que vá embora nunca mais.
Sorri, mesmo que ele não visse. As chamas prateadas também eram do amor latente que ardia entre nós.
Entrelaçando os dedos nos meus, grudando minha Marca Negra em sua pele e estendendo a expectativa até o último instante, Draco se impulsionou para frente e deslizou para dentro, incendiando meu corpo todo. Foi ali que eu percebi o quão insanamente perdida eu estava, e como ele fazia tudo se encontrar em mim.
— Puta merda, — ele grunhiu, respirando fundo quando entrou por completo.
A pressão que ele fazia contra mim era surreal. Encontrava-se pouco antes da tênue linha entre o começo da dor e o êxtase absoluto, divisão da qual eu não me importaria se ele quisesse se aproximar um pouco mais. Não demorou muito para eu me acostumar com a grossura dele, entrando e saindo num ritmo perfeito.
— Tá… tudo bem? — ele ofegou, passando as mãos pelo meu tronco nu como se lesse minha vontade pelo tato.
— Sim... você não faz ideia… — respondi baixo, abraçando-o mais com as pernas.
Puxei os cabelos dele, encarando fundo nos olhos azuis com meus . Ele parecia zonzo, embriagado com nosso prazer, mas sorriu com uma pureza que esquentou ainda mais meu peito. O ritmo ia mudando aos poucos; começara lento, se acelerava e depois voltava a ir um pouco mais devagar. Eu imaginava que ele não fosse assim tão experiente, mas eu também não era muito. Não importava. O que não tínhamos de prática (apesar de também não sermos totalmente inocentes), tínhamos de paixão e de vontade de levar o outro ao clímax.
Mas porra, Draco era gostoso. Tamanho gostoso, ritmo gostoso, e ele sabia exatamente onde pesar a mão para me arrepiar toda, onde apertar quando o tesão fugia um pouco a seu controle, e quando deixar escapar os xingamentos sujos no sotaque britânico que me deixavam maluca.
— Caralho… — ele grunhiu contra minha pele, a boca colada na curva que o pescoço formava com o ombro. — Como que você pode ser tão gostosa…?
Já estávamos havia longos minutos naquele vaivém intenso, sem parar de nos beijarmos nem por um segundo, gemendo na boca um do outro quando ele estocava com firmeza, me proclamando para si.
— Eu vou perder o controle com você… — ele sussurrou, tão baixo que até mesmo fiquei em dúvida se tinha imaginado aquilo.
Mas quando nossos lábios se descolaram em busca de ar, eu vi. Eu vi nos olhos dele, agora mais azuis do que prateados por terem se escurecido com o desejo, o quanto ele estava se contendo. Não sei se o medo era me assustar ou me machucar, mas qualquer um dos dois era completamente infundado. Queria que ele se desvencilhasse de qualquer receio ou pudor e compensasse no meu corpo a dor da minha perda, a alegria de me reencontrar e, acima de tudo, o ano inteiro que passou me desejando sem poder me ter.
— Draco — pedi —, mais forte…
— Quê? — O rosto afogueado dele se tensionou, surpreso. — Mas…
Quase ri da reação. Ele achava que eu ia quebrar se ele fosse com força?
— Mais forte, porra — xinguei, impaciente.
E foi o bastante para Draco Malfoy perder o controle que lhe restava.
Os dedos dele se afundaram no meu quadril de um jeito que deixaria marcas vermelhas ou até roxas no dia seguinte, e me trouxe de encontro a si com a ferocidade que eu estivera ansiando. Apertei mais minhas pernas em volta do quadril dele, fazendo-o chegar mais fundo em mim, como eu precisava. O som dos corpos se chocando, os grunhidos graves e profundos que ele deixava escapar, o calor desmedido que me consumia… finalmente. Finalmente ele me via não mais como a garota impecável e que ele deveria privar dos perigos, mas sim como sua parceira, que tinha as mesmas necessidades e desejos sujos que ele… E naquele instante eu só queria desesperadamente saciá-los.
O polegar de Draco voltou a passear por meus lábios, como se quisesse me trazer um pouco de carinho contrastante com o contato bruto entre nós. Minha língua novamente o circulou, deixando-o úmido e quente. Malfoy então foi descendo a mão, deixando um rastro leve e molhado por meu esterno, seios, abdômen, umbigo, até chegar no clitóris inchado, que ele pressionou e acariciou em círculos, com precisão. Um gemido agudo me escapou pelos lábios, sentindo como se todos os meus nervos se interligassem com aquele toque, disparando pura energia.
Draco desacelerou, cansado ou tentando se segurar para não gozar ainda. Aproveitei a pequena pausa para mudar um pouco, e me desencaixei de seu corpo pulsante. Sentir sua ausência era quase um sofrimento, então me apressei a empurrá-lo delicadamente para que caísse deitado na cama. Arranquei a expressão surpresa de seu rosto ao montar nele e deixar que se enterrasse em mim de novo.
Isso. Isso era o que eu queria desde o início. Estar por cima e ver o olhar de adoração e fome com que ele me banhava. Vê-lo sem controle, gemendo e sorrindo, satisfeito e suado, embaixo de mim… Como eu fantasiava havia tanto tempo.
— Você não precisa mais sonhar com isso agora — sussurrei quando me debrucei sobre seu rosto, pincelando seus lábios com os meus.
— Porra… — ele gemeu baixo, segurando minha cintura em cima por alguns instantes para que ele mesmo se mexesse como queria. E se empurrou em mim com o vigor que eu precisava para arquear um pouco as costas e aproveitar a sensação.
Forte, duro, incandescente, feroz e primitivo. Como o dragão que dava origem a seu nome. Mas ao mesmo tempo cheio de amor, de boas lembranças, de ternura, de felicidade. Como o meu Patrono, que era um dragão por causa de seu nome…
Aquilo era a consumação de todos os nossos beijos. Era sempre daquele jeito: eu em cima dele, tomando-o e sentindo-o me tomar. Uma troca, uma provocação, uma dança.
E quando meu corpo se aproximou, por fim, da borda do precipício da sanidade e do prazer imagináveis, foi como se asas se abrissem e me levassem para o alto. As três palavras que expressavam aquilo tudo vieram a minha língua, mas a explosão de estrelas prateadas atrás de minhas pálpebras fez tudo parar. Foi como se todos os astros se alinhassem dentro de mim e irrompessem de uma só vez. Meus dedos se curvaram, deixando vergões vermelhos em minhas próprias coxas, mas Draco pôs minhas mãos sobre seu peito, deixando-o que eu o arranhasse, deleitando-se com as marcas que o meu prazer infligia nele. Ergueu o próprio tronco, tomando a minha boca para si num beijo faminto e desesperado.
… caralho — ele gemeu contra meus lábios entreabertos quando sentiu eu me contraindo em sua volta, alcançando alturas que nunca tinha alcançado na vida. Com a boca grudada na minha clavícula, Draco se tensionou por completo com um grunhido grave e relaxou, se derramando quando o limite chegou para ele, pouco depois do meu.
Por Merlim. Como eu tinha vivido até aquele momento sem experimentar isso com Draco Malfoy?
Ondas de prazer ainda se quebravam sobre meu corpo, subindo pelo baixo ventre e alcançando cada centímetro de pele arrepiada. Arfei quando ele me ergueu pelo quadril e saiu de dentro de mim; seus olhos estavam pesados e um sorriso bobo criava vincos no rosto.
Incrível. Devastadoramente delicioso. Celestial e infernal na mesma medida, com sensações como o paraíso propiciadas por desejos profanos que queimaram nós dois numa dança intrincada que eu poderia repetir para sempre.
— Melhor do que quando você imaginava sozinho com a sua mão? — debochei, depois de vários minutos, mas ainda com a respiração entrecortada.
Ele riu. Sarcasmo já era uma coisa tão nossa que parecia ser a única reação apropriada ao momento. Ambos estávamos deitados de barriga para cima sobre o colchão da cama, com os lençóis embolados e travesseiros caídos pelo chão, maravilhosamente satisfeitos.
— Eu deveria dizer que não, só para você parar de ser convencida — ele rebateu. — Mas não dá pra mentir desse jeito depois de a gente fazer... isso.
Isso? — Achei graça. — Você tem quantos anos, doze?
— Isso, porque “melhor sexo da minha vida” não é suficiente para descrever — admitiu, me arrancando uma risada.
O sorriso que ficou na minha boca foi se suavizando conforme Draco se virou na minha direção para me abraçar e percorreu os contornos da tatuagem preta no meu braço com a ponta do dedo.
— Eu queria poder tirar isso de você.
Com a mão direita, toquei a tatuagem dele, espelho da minha.
— Eu também.
Permiti que a frase soasse ambígua. Queria ter tido a chance de tirar aquilo dele, ou melhor, de ter impedido que ele fosse marcado em primeiro lugar.
Apesar disso, o silêncio era reconfortante e leve. Não saberia dizer quantos minutos ou horas tinham se passado, e nem queria saber. Nos encarávamos, mas não de um jeito constrangedor, e sim como que em expectativa. Expectativa do que estava na ponta de nossas línguas; expectativa de saber quem cruzaria a linha primeiro, depois de tudo o que tinha acontecido, naquele momento em que não havia desespero, mas só calma e…
— Eu te amo.
As palavras poderiam ter saído da minha boca, mas saíram primeiro da dele.
— Eu te amo, — A mão dele subiu do meu antebraço até meu rosto. — Eu amo cada detalhe em você, por dentro e por fora, tanto os que eu posso ver quanto os que eu posso sentir. E eu sinto que… eu sinto que alguma coisa muito poderosa quis que a gente se encontrasse.
Inclinei o rosto para beijar a mão dele.
— Eu também te amo, Draco Malfoy.
O sorriso dele se inundou de dor.
— Mesmo que te machuque?
Me segurei nos lençóis, içando meu corpo para mais perto, a ponto de conseguir contar os cílios claros que sombreavam os olhos de prata.
— Não é o meu amor que me machuca. O amor é puro, é bom, é mágico. — Foi minha vez de tocar sua bochecha com ternura. — É o mundo que quer que o nosso amor seja errado, mesmo não sendo. É isso que dói.
— Mas foi o amor que te deu uma Marca Negra. Uma que você não quis, duplicata da minha, que eu também não queria. — O amargor na voz do garoto esmagou meu peito.
— Se foi o amor, uma magia tão boa e forte, que me trouxe isso, foi por razões que eu ainda não entendo, mas que deveriam acontecer. Eu acredito… — Senti minha voz falhar quando o choro ameaçou subir pela garganta. — Eu realmente acredito que há um motivo maior para isso.
Draco não sabia o que dizer, mas parecia também estar tomado pela emoção intensa que me dominava. Ele me puxou contra seu peito, sobre a pele clara e quente e cheia de marcas, e acariciou meus cabelos como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo para ele.
— E se não tiver? — ele questionou, tão baixo que fiquei em dúvida se ele realmente queria que eu ouvisse.
Me aninhei sobre ele, deixando o peso do cansaço fechar minhas pálpebras e desacelerar minha respiração. Enquanto isso, pensava naquela hipótese. Seria terrível, sim. Mas mais terrível que isso era o fato de eu perceber que Draco lutava para aceitar meu amor. Aquele monte de perguntas e de empecilhos que ele colocava em palavras mostrava que ele não se achava digno de ser amado. Porém, mesmo que eu pudesse estar em qualquer lugar, era exatamente ali com ele que eu estaria. Essa era a resposta.
— Mesmo assim valeu a pena — confessei, num murmúrio tão quieto quanto. — Por você.
E adormecemos juntos como se o peso do mundo que carregávamos tivesse se dissipado, depois de termos tocado o céu naquela cama.

Capítulo 8

Draco POV

Demônios são anjos caídos. Anjos que escolheram descer do firmamento em uma rebelião contra seu senhor. Anjos que experimentaram a glória e mesmo assim a dispensaram. E naquela manhã, no instante que acordei, tal pensamento veio à minha cabeça. Eu acabara de experimentar o que mais se aproximara do paraíso em minha vida, e era inconcebível que pudesse me saciar com qualquer outra coisa.
Sob meus olhos recém-abertos e sonolentos, estava meu céu particular. O corpo dela, as curvas macias e suaves, as diferentes texturas da pele, os quadris e seios marcados por finas linhas prateadas, o suor que fazia ela brilhar, o sangue que afluía onde minha mão pesava e deixava ela rosada: cada detalhe que compunha era mais que mágico, era divino.
Minhas mãos beijaram poesia pelos contornos dela, leves e lentas até que ela despertasse. Nada desrespeitoso ou invasivo, apenas carinho e reverência.
— Bom dia — ela desejou, preguiçosamente.
Respondi puxando-a para mim e aspirando o cheiro de seu perfume no pescoço, enfraquecido pelo suor da noite anterior, mas inconfundivelmente dela. Cheiro de Amortentia.
— Bom dia.
O silêncio dominou o quarto como se aquele cômodo fosse fora da realidade e quiséssemos prolongar aquele pedaço de felicidade para sempre.
Por tanto tempo eu procurei uma causa para me entregar, algo que realmente me trouxesse paixão e que fosse minha, sem interferência de ninguém. E agora eu tinha ela. Minha própria deusa, que me punha de joelhos da forma mais pura e ao mesmo tempo suja possível. Enquanto meu olhar descia pelo corpo nu de a minha frente, tão próximo, eu tentava imaginar se os anjos que caíram se envolveram no pecado de forma tão deliciosa quanto eu. Porque isso era ela: uma convidativa dança com o demônio da qual eu aceitaria participar até o fim dos tempos.
— Por Merlim, você é insaciável — ela riu, quebrando a quietude ao sentir minha ereção contra sua coxa. Não era como se eu pudesse ter controle sobre isso, afinal de contas. Meu corpo reagia a ela de formas intensas como nunca tinha reagido a nenhuma outra garota.
— Você fala como se fosse uma coisa ruim… — Inclinei o rosto para beijar seu ombro exposto.
— Você me deixou dolorida ontem — Ela relaxou o corpo com a barriga para baixo, e pude vir os contornos definidos dos músculos das costas se suavizando. Meus olhos desceram para o quadril, que tinha pequenas marcas arroxeadas onde eu afundara meus dedos no ápice do delírio.
— Desculpa…
— Você fala como se fosse uma coisa ruim — rebateu, abrindo um sorrisinho sarcástico.
Ela se levantou antes que eu conseguisse prendê-la embaixo de mim para um segundo round do que tínhamos feito na noite anterior, e apanhou minha camisa no chão. Os botões estavam espalhados desordenadamente pelo piso, tapete e lençóis que tinham caído do colchão, mas ela logo pegou minha varinha e a usou para remendar a peça. Com um Feitiço Convocatório, recuperou sua própria varinha, e logo em seguida se vestiu com minha roupa. Sem esperar por mim, saiu pela porta. Pude ouvir sua exclamação de espanto. Fiquei alarmado e peguei um amontoado de roupas para me cobrir quando corri na direção dela para ver a causa de tanta surpresa. Logo entendi.
A Sala Precisa não mais aparentava ser um salão de baile decorado com luzes coloridas e um palco, e sim era réplica exata do banheiro dos monitores, com suas muitas torneiras de espuma perfumada, pilhas e pilhas de toalhas macias e uma enorme banheira. primeiro se direcionou às pias enfileiradas, e escovou seus dentes pacientemente enquanto eu analisava nosso entorno. Logo me juntei à ela, deixando um beijo leve em sua mandíbula antes de também iniciar minha higiene matinal. Porém, ela desligou a água e entrou na banheira, nua como uma tentação perfeita.
— Você vem? — ela questionou com um olhar convidativo, mas franzi o cenho.
— Banheiras são nojentas.
— Quê? — Ela pareceu quase escandalizada enquanto a água ia subindo até cobrir seus seios. — Que ideia é essa?
— Vai me dizer que você não acha minimamente anti-higiênico ficar dentro de um recipiente com água quente, dentro do qual várias outras pessoas já estiveram peladas?
Ok, aquilo soava bem mais idiota quando dito em voz alta. Ela me encarou, um pouco perplexa, mas logo um brilho travesso perpassou seus olhos.
— Ok, eu tomo meu banho sozinha.
[N/A: dê play na música aqui ((Sin City - Remix — Chrishan ft. Ty Dolla $ign).]
Voltei para a frente do espelho e observei os arranhões no tórax que tinha me feito. Finos e rosados em comparação com as cicatrizes que o feitiço de Potter deixara; quase bonitos. Já sem roupa nenhuma, me encaminhei para um dos chuveiros perto da banheira e deixei os jatos de água relaxarem minhas costas, que também tinham sido marcadas pelas unhas dela, durante longos minutos.
A noite anterior tinha sido uma surpresa e tanto. Eu imaginava que teria que fazer as coisas devagar, ter muito cuidado, e queria demonstrar todo o meu sentimento e não apenas luxúria quando acontecesse. Nunca tínhamos conversado sobre nossas experiências anteriores, então quando ela me pediu para ir com mais força… Suada, com a boca vermelha inchada e entreaberta… Eu conseguia sentir ela se abrindo para mim, pulsando e pedindo mais… Uau. A mera lembrança daquele momento foi suficiente para me deixar excitado de novo.
Ao fim de minha ducha, ouvi um ruído agudo vir da direção da banheira, e pude enxergar o braço esquerdo de , com a Marca Negra tatuada, apertando com força a borda de mármore. Dando mais um passo a frente, pude vê-la com a nuca inclinada para trás, o pescoço e colo vermelhos e úmidos, e a outra mão mergulhada na água de forma que eu não consegui vê-la.
— Que porra você tá fazendo?
O chuveiro desligou sozinho atrás de mim, e no silêncio que se seguiu, pude ouvir claramente o gemido tímido que saiu da boca dela.
— Você não foi o único que acordou com tesão. — Suas pálpebras pesaram e a boca se abriu um pouco mais com o toque que ela fazia em si mesma. — Então me deixa… hmm… tomar meu banho sozinha.
Filha da puta. Cheguei perto e acariciei seu rosto, sem saber que reação deveria esboçar diante daquela cena tão absurdamente indecente que parecia digna de um sonho. era um demônio enviado à terra especialmente para me tentar, e eu passaria a eternidade sofrendo qualquer pena que ela quisesse.
— Draco… — ela gemeu, com a mão entre as pernas e arqueando as costas delicadamente para trás. — Eu quero você…
Ah, caralho.
Quase pulei dentro da banheira, sabendo que a água absurdamente quente provavelmente deixaria minha pele pálida toda vermelha, e a puxei para meu colo. atacou minha boca, sedenta e usando os dentes para me punir pela demora em fazer o que ela queria. Ela rebolava lentamente, se roçando em mim, que já estava duro a ponto de latejar. Agarrei o quadril dela por cima das marcas da noite anterior e a guiei para que sentasse de uma vez, sem mais preliminares: nenhum de nós precisava delas. Dentro da água, ela não estava tão lubrificada quando estivera na cama, o que só deixou o impacto mais intenso.
Inferno delicioso de garota.
— Puta merda…! — grunhi contra o ombro dela, enquanto ela arfava e ia relaxando para me acomodar.
— Boca suja — ela bronqueou com sarcasmo, a própria voz falhando pela sensação que nos tomava.
Dei uma risada em resposta, virei seu queixo para mim e colei meus lábios nos dela, recebendo sua língua e um gemido baixo no beijo ardente. Um grunhido grave me escapou, sentindo como se todos os meus nervos se interligassem quando eu entrava nela, disparando pura energia. Queria compensar no corpo de a dor de perdê-la, a felicidade genuína de reencontrá-la e, acima de tudo, o ano inteiro que passei desejando-a e fantasiando com ela quando estava em banhos quentes e lençóis frios.
Na noite anterior eu cantara no ouvido dela "And when I sleep I’m gonna dream of how you ride it”, mas mal sabia eu que a realidade era muito melhor que qualquer sonho que eu pudesse idealizar. A forma como ela rebolava e flexionava as coxas sobre mim e ao meu redor era indescritível…
— Eu já te disse que você é gostosa pra caralho, não disse? — rosnei, passando as mãos pela pele lisa e escorregadia em sua bunda.
Ela deixou escapar um riso gratificado.
— Não que eu me lembre…
De novo, como em nossa primeira vez, se desvencilhou de mim, girou e apoiou o tronco para fora da borda da banheira, posicionando os joelhos no fundo e ficando praticamente de quatro na minha frente. Tudo lento e quase coreografado, como se a única coisa à qual ela dedicasse sua existência fosse me provocar.
— Você pode repetir, por favor?
era a porra de um anjo que tinha caído na minha vida, só podia ser.
— Achei que você estivesse dolorida de ontem… — insinuei, chegando por trás dela e me roçando em sua entrada, tão quente e tão melada que disparava arrepios pelo meu corpo todo. — Pra quê fica me provocando desse jeito, então?
— Disse que estava dolorida — ela retorquiu, rebolando contra mim —, não disse que não queria mais.
O tom de desafio foi o suficiente para me fazer sorrir e puxá-la de encontro a mim, metendo nela e sentindo meu corpo sair de órbita com o prazer que me trazia toda vez que eu a sentia daquela forma.
— Draco…! — ela gemeu meu nome numa súplica exasperada.
Puxei sua nuca para mim enquanto me inclinava sobre suas costas, deixando chupões quase agressivos pelo pescoço e ombros.
— Porra, … — O gosto quente da pele dela me fazia perder a cabeça. — Eu sou louco por você…
— E eu sou louca por você — ela respondeu, ofegando conforme eu dava estocadas firmes.
Quando o orgasmo dela se aproximou, os gemidos ficaram mais altos e ela me pediu para não parar, para continuar exatamente daquele jeito, porque ela estava quase lá… E obedeci, porque queria aquilo tanto quanto ela. Queria que ela chegasse ao ápice enquanto eu estivesse dentro dela, porque já estava viciado em cada som, cheiro, gosto e movimento que ela fazia no auge do prazer. se contorceu ao meu redor, ficando ainda mais apertada do que já era e arqueando a coluna para trás até meu tórax colar em suas costas, enquanto o orgasmo a consumia. Agarrei seu pescoço, trazendo sua boca para mim, invadindo-a com língua e dentes e recebendo os ruídos do prazer dela que saíam enquanto ela ia gemendo. Tão linda. Toda minha, ali naquele momento. Poucos minutos depois, tudo queimou num instante, com nossos sons se misturando no ar enevoado, clamando o nome um do outro misturados a palavras tão sujas quanto nossas ações. Depois de pulsar por longos segundos e me derramar nela, saí de dentro de , ainda duro mas cansado demais para continuar a fazer qualquer coisa.
mal conseguia se mexer depois de gozar, e ficou algum tempo prensada entre meu corpo extenuado e a borda da banheira de mármore. Por fim, eu a puxei para mim e mergulhamos com um splash considerável, espirrando água por todo o lado. Demorou vários minutos até que outro som além de nossas respirações alteradas cortasse o ar cheio de vapor.
— Isso que eu chamo de “bom dia” — ela riu, e eu achei que não poderia amá-la mais do que amava naquele momento.

* * *

— Conhecendo a , provavelmente é ela quem te fode — Pansy pontuou, sentada no sofá ao meu lado, vestindo um enorme suéter surrado de quadribol que eu não fazia ideia de quem tinha dado aquilo à garota.
Estiquei o dedo do meio para ela.
— E conhecendo você, certamente é a Daphne quem te fode — rebati em resposta.
Nós dois estávamos meio descabelados, com olheiras e marcas de chupões habilmente escondidas com maquiagem, feitiços e blusas pretas de gola alta. Meu corpo, apesar de exausto por todo o esforço da noite anterior e daquela mesma manhã, estava leve. Parkinson ergueu uma mão em rendição enquanto tomava uma xícara de café.
— Ok, não vamos conversar sobre nossas vidas sexuais aqui.
— Então você transou com a Daphne.
Ela jogou a franja repicada para trás, tirando-a dos olhos inchados de sono.
— Digamos apenas que, assim como a Greengrass, a Sala Precisa sabe bem como suprir desejos. — Ela fez uma expressão sugestiva e um pouco envergonhada. Assobiei, ao que Pansy pigarreou. — Snape chamou a gente, você recebeu o recado? — perguntou, tentando desconversar.
— Não, o que diabos ele quer?
— Sei lá — ela bufou, terminando de despejar o café na boca e engolindo o amargor com uma careta. — Ouvi alguém comentando que houve um problema com a sala dele ontem à noite, mas não sei bem o que aconteceu.
— Nossa, já tô prevendo o esporro que ele vai dar na gente.
— Somos péssimos monitores-chefes — ela concordou, pousando a caneca sobre a mesa com um estalo seco.
Um silêncio recaiu sobre a sala comunal vazia.
— É diferente — ela comentou, passando o dedo pela borda da xícara.
— O quê?
— Com… meninas.
— Nossa, nunca ia imaginar — ironizei.
Ela me deu um tapa no ombro.
— É sério. Eu nunca… nunca senti aquilo… com um garoto.
— O quê? Amor?
— Também. — ela admitiu, ficando com o rosto mais rosado. — Mas…
Ela hesitou, e as bochechas adquiriram um tom quase escarlate.
— Ah. — Logo entendi. — Você quer dizer um orgasmo.
— Bom… é.
— Nossa, quais foram os idiotas que você andou pegando? — Dei uma risadinha, me espreguiçando, e completando de brincadeira: — É porque você nunca fez comigo.
Pansy revirou os olhos.
— Até parece. E acho melhor você não deixar sua namorada ouvir o que acabou de dizer.
Pausei por um instante.
Minha namorada — testei o vocativo em minha boca.
— Vamos lá ver o que Snape quer — Parkinson se levantou, parecendo não ter ouvido meu murmúrio.
Depois que ela desapareceu pelo corredor do dormitório feminino, me encaminhei para meu quarto.
, minha namorada.
Isso realmente acontecera, então, não tinha sido um devaneio ou sonho meu. Podia lembrar com exatidão cada palavra e detalhe do momento.
— Me lembre o porquê de a gente não ter transado na noite da festa de Natal do Slughorn — ela perguntara, brincando com a espuma que se desmanchava na superfície da água.

— Porque você não quis — acusei prontamente.
Ela se virou entre minhas pernas e me encarou com falsa indignação.
— Era um questionamento retórico.
— Foi uma resposta sincera.
se voltou para frente e deitou de novo em meu peito, criando pequenas ondinhas na superfície da água ao se movimentar.
— Eu também dei uma resposta sincera naquela noite, e você não gostou nem um pouco.
— Sobre…?
— Luna Lovegood perguntou se estávamos namorando, e eu disse que não.
— Ah, sim.
Fiquei quieto, e ela riu.
— Você vai fingir que isso não aconteceu só porque não admite que ficou putinho.
— Eu não fiquei putinho — protestei. — Você disse que no Brasil é bem diferente; para ser considerado namoro, geralmente acontece um pedido depois de um casal estar junto há algumas semanas ou meses.
— Eu sabia que você era obcecado por mim, mas não a ponto de decorar as coisas que eu falo — ela implicou, deitando a cabeça no meu ombro e roçando a ponta do nariz em meu pescoço.
— Nós estamos juntos há meses já.
O corpo dela se tensionou.
— Sim.
— Então… estamos namorando?
— Eu não ouvi um pedido.
Inclinei a cabeça para quase colar minha boca à orelha dela, e perguntei num sussurro:
, você quer ser minha namorada?
Ela virou o rosto, exibindo o sorriso brilhante que eu sentira tanta falta e acreditara ter perdido, mas estava bem ali na minha frente.
— Quero. — Ela ergueu o braço esquerdo e o pôs sobre o meu, entrelaçando nossos dedos. — E, olha só, nem precisamos de um anel de compromisso; já temos até tatuagens que combinam!
Contive o riso causado pela piada ácida com um beijo na boca dela.
Um sorriso idiota afluiu devido às lembranças, e se manteve em meu rosto desde o instante em que saí da sala comunal da Sonserina até chegar à gárgula que guardava a escada em espiral da sala do diretor. Pansy desdobrou o pedaço de pergaminho e leu a senha em voz alta: Lírios.
— O Snape não me parece o tipo de cara que curte flores — ela ironizou quando a pedra se moveu e exibiu os degraus. — Que sensível.
Encolhi os ombros. Parkinson começou a subir e fui atrás dela.
Snape estava sentado à sua mesa, com os dedos entrelaçados, de um jeito perturbadamente parecido com o quadro de Dumbledore às suas costas. O falecido diretor me encarou, e abaixei os olhos, esmagado por culpa e vergonha. Ele me oferecera uma saída, antes de morrer. Me oferecera a chance de mudar de lado, de proteger minha família… Mas não tive tempo. E desonrei sua oferta ao deixá-lo morrer pelas mãos daquele que agora ocupava sua cadeira, ao abandonar dentro do castelo.
— Onde os senhores estavam na madrugada de ontem?
— Fazendo a patrulha — Pansy respondeu prontamente, no tom casual de quem tem por hábito contar mentiras.
— Oh, isso tenho certeza que não estavam fazendo — Snape retrucou.
Manchas vermelhas irregulares de nervosismo se espalharam pelo colo e pescoço de Pansy, evidenciando ainda mais os hematomas em sua pele causados pela boca de Greengrass.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei polidamente. Precisava soar o mais inocente possível.
Aconteceu que os alunos da Grifinória tentaram invadir minha sala durante a madrugada de ontem.
O ar pareceu ter ficado rarefeito dentro do escritório circular. Ousei levantar os olhos por um instante e Dumbledore ainda me encarava, os pequenos olhos azuis parecendo afiados sob lentes em formato de meia-lua.
— Mas… o que… — Parkinson balbuciou ao meu lado, sem saber exatamente o que perguntar primeiro. Eu, porém, sabia bem: por quê?
— Honestamente, as razões que os levaram a tomar uma atitude tão estúpida não nos interessa — disse Snape com desprezo. — Pouco tenho a fazer em relação a um bando de arruaceiros que discordam da minha forma de gerir esta escola, a não ser tomar medidas drásticas de punição.
Que medidas drásticas? Detenções pelo resto do semestre? Expulsão? Maldição Cruciatus? A quantidade de informações, junto à privação de sono e aos efeitos remanescentes de meu abuso de Poções para o Sono Sem Sonhos durante o verão, fazia minha cabeça rodar.
— Quero deixar bem claro que não tolerarei que isto se repita, está bem? — Os olhos dele, negros como buracos no rosto, se estreitaram ao nos analisarem. — Menos vinte pontos para a Sonserina. Srta. Parkinson, está liberada.
Pansy tinha os olhos levemente arregalados quando me fitou, levantou da cadeira e desceu as escadas, as solas dos sapatos fazendo ruídos ritmados na pedra dos degraus.
— O que diabos vocês estavam fazendo, afinal de contas? — Snape questionou, sem altear a voz, quando ouvimos o som da porta sendo fechada. — Eles queriam pegar a espada de Gryffindor, que Dumbledore deixou para Potter, e você sabe muito bem o quanto o Lorde das Trevas nos preveniu a respeito disso. — Ele levantou, evitando olhar para a parede onde o quadro do diretor anterior estava pendurado, e foi em direção à janela. O tempo lá fora estava nublado e um tanto frio para setembro. — Sua tia Bellatrix gentilmente cedeu um espaço no cofre dos Lestrange em Gringotes e irei transferir a espada hoje mesmo. Mas com o que você estava na cabeça para ignorar uma patrulha tão importante?
— Eu… — comecei, mas pigarreei para evitar que a voz falhasse antes de continuar: — Eu estava no meu dormitório. Estava muito cansado…
— Ora, você não acha verdadeiramente que eu irei acreditar nisso, não é mesmo, Draco?
— Mas eu…
Snape não era idiota, para meu azar. Ele enganara Dumbledore, no fim das contas. Era uma grande surpresa que ele ainda não soubesse que o que eu vinha escondendo dele desde o ano anterior era a presença de em minha vida. Ou talvez ele soubesse… O pensamento me desceu pela espinha como uma lâmina gelada que cortava a pele e perfurava os pulmões. No calor e ansiedade do momento, acabei soltando a primeira coisa que me veio à cabeça:
— Eu transei com ela, está bem? — falei exasperado. — Comi a Parkinson e por isso não estava monitorando os corredores. Era isso que você queria ouvir?
Snape franziu a testa, meio chocado e meio irritado.
— Mais respeito, Draco. Não se esqueça que agora eu sou o diretor. — O canto da boca dele tremeu. — E você deveria ser menos agressivo com ela, o pescoço da pobre garota está todo marcado.
Apesar da tensão do momento, um sorrisinho se espalhou pelos meus lábios. Daphne, Daphne…
— Está bem, professor. Posso ir agora?
— Vou te acompanhar à saída.
Quando desci pela escada e a passagem de pedra se abriu, um corpo se projetou para dentro, batendo no meu. Dei um passo atrás, alarmado, e vi os olhos arregalados e a postura quase ameaçadora de se voltarem para um ponto acima de mim nos degraus, onde estava Severo Snape.

POV
Eu estava usando a camisa de Draco. Eu ainda estava latejando, ardendo e com marcas pelo corpo todo, revivendo mentalmente tudo o que tinha acontecido na noite anterior enquanto atravessava o longo corredor do sétimo andar até o buraco do retrato. No entanto, o sorriso em meus lábios foi imediatamente apagado no exato instante em que pisei dentro da sala comunal da Grifinória, que estava envolta num silêncio sepulcral. Os alunos mais velhos estavam todos amontoados ao redor de uma das mesas de centro, ladeada por sofás lotados, e me acotovelei por entre a aglomeração para por fim enxergar o motivo da comoção toda.
Gina Weasley estava sentada na poltrona felpuda, segurando um pano molhado que parecia embrulhar uma grande pedra de gelo, e seu rosto estava coberto por uma mistura de sardas, hematomas e sangue seco.
— Mas que porra é essa? — foi o que consegui enunciar diante do choque.
Ela tentou sorrir, mas logo fez uma careta de dor quando o corte em seu lábio se esticou ligeiramente. Usei minha varinha para limpar a sujeira marrom-avermelhada de seu queixo.
Eles tinham sido pegos. Merda, merda, merda. Eu devia ter estranhado; tudo estava tão quieto. Será que Pansy tinha saído da festa com Daphne durante a madrugada? Será que algum aluno mais novo tinha visto a Armada de Dumbledore fora da cama depois do toque de recolher e não quis ser cúmplice da transgressão? Mas… Gina… por que o rosto dela, e só o dela, estava todo machucado?
— Gina, por favor, acredite, eu fiz tudo certo, os monitores não saíram da Sala Precisa em momento nenhum, tenho cert…
— Eu sei — ela me interrompeu, suavemente. — Foi Snape quem me viu.
O quê? — Aquilo era uma surpresa. — E Snape te bateu?
— Não… isso foi a Carrow. Professora de Estudo dos Trouxas. — Gina suspirou, pressionando o gelo contra a marca roxa debaixo de sua órbita. — Ela apareceu pouco depois de Snape me encontrar subindo as escadas. Ele deve ter chamado ela pela Marca Negra ou algo do tipo.
Raiva e culpa borbulharam no meu estômago. Eu nem ao menos tinha sentido a Marca Negra queimar na noite anterior; estava… ocupada demais. Talvez, se eu tivesse prestado atenção, Gina estaria com a espada escondida no fundo do malão e o rosto intocado.
— Filho da puta — murmurei.
— Quê? — ela perguntou, sem me ouvir direito.
Filho da puta! — repeti, agora à beira de gritar.

Não! — Me desvencilhei quando ela tentou apoiar a mão sobre meu braço. — Como se não bastasse tudo que ele fez com Dumbledore e a Ordem, como obviamente contou tudo aos Comensais, ele ainda chama alguém para espancar os próprios alunos! Gina, ele era da porra da Ordem da Fênix! Ele sentou à mesa com todos, ajudou a montar planos e depois nos vendeu!
— Eu sei, , mas precisamos te explicar exatamente o que houve e pensar no que… Onde você vai?
Eu já estava com metade do corpo para fora da sala quando ela teve tempo de me perguntar. Ignorei. Cada centímetro do meu ser estava tomado por uma vontade alucinada de espancar Severo Snape com o quíntuplo de violência que ele permitira que Aleto Carrow empregasse em Gina Weasley. Por isso, ao dar um encontrão em Draco, vendo-o sair da sala do diretor junto com o objeto do meu ódio, foi como um balde de água gelada em cima de mim. Definitivamente não era o que eu estava esperando, e na hora percebi que aquilo me traria outro problema bem sério, ainda mais depois de tudo o que tinha acontecido entre mim e o sonserino.
E ele estava ali, usando aquela maldita máscara fria e entediada que ele usara durante quase todo o ano anterior, me olhando como se ele não tivesse passado as últimas horas comigo, embaixo, em cima e dentro de mim. Como se mal nos conhecêssemos. E, apesar de eu entender que Snape não podia nem sonhar sobre nosso envolvimento, aquilo doeu.
— Srta. , em que posso ajudá-la?
A voz do antigo professor me dava vontade de afundar o punho em seu nariz de gancho e sentir a cartilagem se despedaçar sob minhas falanges.
— Não é a mim que o senhor deveria ajudar, diretor — Tentei ao máximo usar um tom comedido, mas assim que as palavras me escaparam pela boca percebi que tinha falhado miseravelmente. — Ginevra Weasley está na sala comunal da Grifinória com o rosto todo machucado e acho que suas novas contratações para o corpo docente tenham sido as responsáveis.
Snape continuou impassível, com os olhos cravados nos meus, mas Draco descolou os lábios em surpresa. No instante em que cometi o erro de olhar diretamente para ele, pude ver tudo.
O rosto dele foi mudando silenciosamente, os músculos se tensionando sob a pele à medida que a compreensão o atingia. Draco agarrou meu punho, de um jeito menos agressivo do que ele fez parecer a Snape, e me puxou. Não deu chance ao mentor de responder nada.
— As punições que o diretor decide para o descumprimento de regras escolares não devem ser questionadas, principalmente por você, . Vamos, para seu salão comunal. Vou te levar lá para que não apareça com nenhuma gracinha.
Seus dedos apertaram um pouco mais meu braço conforme ele me puxava para longe, indo na direção da sala comunal da Grifinória. No entanto, ele abriu uma sala de aula vazia com um simples Alohomora e entramos. Tão logo estávamos sozinhos, ele me largou como se tocasse em algo tóxico.
— Essa porra de espada… Você sabia disso? Participou disso?
Draco foi direto, e isso era sempre um mau sinal. Fiquei quieta, mas o músculo que saltou em minha mandíbula foi a resposta que ele precisava. Malfoy riu em escárnio, uma risada breve, curta e irônica que me doeu na espinha.
— Foi uma ótima ideia, sabe. Dar pra mim pra não correr o risco de eu atrapalhar o plano dos seus amiguinhos.
Quando ele disse aquilo, algo em mim rachou. Ele tinha cruzado a linha. Ido longe demais. Me machucado no lugar que eu lhe expusera como o mais vulnerável.
— Draco… — meu timbre falhou e meus olhos pesaram com lágrimas.
— Quantas vezes mais você vai fazer isso, hein? — perguntou ele. Malfoy fingia não se importar com a ferida que me causara, mas o rosto estava vermelho e inundado de decepção. — Quantas vezes mais vai me enganar e me manipular para eu fazer o que outras pessoas querem? Eu tô de saco cheio de não poder escolher.
Eu apertava meus dentes numa mordida dolorosa, tensionando a mandíbula para não gritar e xingá-lo para minha raiva ser extravasada até o limite.
— E sabe o que é pior no meio disso tudo? — ele continuou. — Não adiantou de porra nenhuma, porque a espada vai ser transferida para Gringotes depois dessa palhaçada de vocês. Grifinórios são tão idiotas.
Draco passou a mão pelo cabelo, andando brevemente de um lado para o outro antes de dizer:
— Se você tivesse me contado, eu teria te ajudado.
Uma risada ácida rasgou minha garganta.
— Até parece.
— Eu não sou o mentiroso daqui — ele rebateu.
— Não. — O sorriso escarnecedor continuava tensionando meus lábios. — Eu sou a mentirosa, e você é o projeto de assassino. Que casal lindo, não?
Ele estacou e se virou para mim. Eu sabia que tinha cruzado a porra da linha, e estava esperando os gritos, como acontecia toda vez que eu cruzava a linha em conversas com meus pais, sobre treinamentos, missões e o futuro. No entanto, Malfoy apenas apertou os olhos e respirou fundo.
— Que merda, . Você deu um jeito de até transformar a nossa primeira vez numa missão. — Sua voz falhou no fim da frase.
— Me desculpa…
Tudo ficou quieto enquanto Draco continuava exibindo aquela expressão impassível e impenetrável que me agoniava, até quebrá-la ao voltar a falar, quase cuspindo:
— Sabe, eu acho quase bonita essa lealdade que você tem com seus amigos. Eu nunca conseguiria.
— Por isso que você está na Sonserina.
— Não — ele sacudiu a cabeça. — Blood is thicker than water.(N/A: “O sangue é mais grosso que a água”, ditado que significa que as ligações por sangue são as mais fortes).
— Não. The blood of the covenant is thicker than the water of the womb (N/A: “O sangue do pacto é mais grosso do que a água do útero”). — corrigi o ditado, erguendo o queixo para tentar resgatar a confiança que me restava. — Minha família me abandonou, Draco, a minha lealdade é para com meus amigos. Eles são a família que eu escolhi. Os laços que você forma com quem luta ao seu lado são mais fortes do que qualquer genética.
Ele franziu a testa, as sobrancelhas claras, que quase se fundiam com o tom da pele, transformadas em linhas retas e tensas.
— Você não me contou nada disso. — Agora sua fala era mais suave.
— Bom, não era o meu problema principal. E você parecia estar bem mais interessado no fato de eu ter voltado dos mortos — ironizei.
— Para de ser tão sarcástica o tempo todo — ele reclamou, passando a mão no rosto em um gesto de enfado.
— Eu aprendi essa arte com o melhor.
Isso arrancou um sorrisinho torto dele, que logo se apagou.
— Não fuja do assunto.
Apertei as pálpebras com as pontas dos dedos. Eu não falara com ninguém a fundo a respeito daquilo desde que acontecera. Era mais fácil esconder aquela lembrança da rejeição dolorosa, da carne da minha carne, sangue do meu sangue, e só lidar com a situação quando fosse tarde demais. Quando eu já estivesse implodindo e precisasse explodir.
— Meus pais basicamente me exilaram do Brasil. Meu pai, o chefe do Departamento de Aurores, me mandou uma carta padronizada me dispensando dos meus serviços e falando que eu deveria continuar em Hogwarts em vez de fazer meu último ano em Castelobruxo. Minha mãe me mandou um bilhete de duas linhas falando que deixou dinheiro pra mim no Gringotes.
Falei tudo de um fôlego só, lutando contra as lágrimas estúpidas que teimavam em cair pelo meu rosto, chorando de raiva e tristeza pelo abandono das pessoas que eu mais amava no mundo. Pessoas que botaram o dever na frente da própria filha. E eu imaginava qualquer coisa, menos que Draco colocasse seus braços à minha volta e me segurasse enquanto os soluços sacudiam meu corpo, soluços que finalmente expressavam o luto de me sentir uma órfã de pais vivos.
— P-por isso eu me agarrei tão deses… tão desesperadamente a-a isso — eu disse, as palavras saindo entrecortadas. — Por isso eu quis… quis continuar na ilusão de ainda estar uma missão… manter a ilusão de que estava numa missão que eu… que eu mesma escolhi.
— Você não pode fazer isso, , você está se destruindo.
— Mas eu…
— Eu sei bem o que é não ter escolhas e ser guiado pela família, e você não tem ideia de onde eu estive enquanto você tinha sumido. Não faça isso com você mesma.
— Eu sei que você estava usando P-poções do Sono demais — murmurei. — Dá pra… ver… no seu rosto. Precisa parar c-com isso.
— E quando você vai parar de se permitir ser controlada por outras pessoas? Você consegue manipular todo mundo e é tão boa nisso que acaba manipulando a si mesma.
Engoli o nó na garganta e os resquícios de choro.
— Não aja como se você não fizesse exatamente o mesmo — Ri sem humor. — Nós dois estamos nos destruindo, Malfoy. Nós dois temos magia negra no braço… E estamos juntos mesmo sendo opostos. Nada disso faz sentido.
O rosto dele se endureceu de novo.
— Eu… sobre isso…
— O quê?
— Snape perguntou por que eu não estava fazendo a patrulha ontem à noite… e eu não pude contar a verdade.
Eu não estava gostando nem um pouco do rumo que aquilo estava levando. — E o que você disse?
— Disse que estava transando com a Parkinson.
A mera frase, que eu sabia que era uma absoluta mentira, fez meu estômago se retorcer em ciúme e revolta.
— V-você disse… o quê?
— Foi o que eu pensei na hora! — Ele passou a mão nos cabelos, nervoso. — Ela também estava cheia de chupões e com aquela cara de quem trepou a noite toda, então achei que seria convincente.
Dei um passo para trás e cruzei os braços.
— E o que caralhos isso representa pra nós, já que Snape não pode saber que estamos juntos? Vamos terminar?
— Quê? Não! O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Não sei, me diga você! — alteei a voz.
— Eu estou fazendo isso pra te proteger, ok? — ele esbravejou, gesticulando enfaticamente. — A culpa não é minha se essa sua pulseira não funcionou direito e te deu uma Marca Negra!
— O que não teria acontecido se você não tivesse a maldita Marca Negra pra começar!
Nós dois nos encarávamos, raiva borbulhando nos olhos prateados e , peitos subindo e descendo para que a respiração acompanhasse a intensidade da discussão. Aquilo só me lembrou da noite anterior, em que tínhamos perdido o fôlego múltiplas vezes, embebidos em dores, perdas, medos e prazer. Meus olhos desceram para a boca dele, entreaberta e ofegante, e num impulso o beijei.
Draco deixou escapar um grunhido nos meus lábios. Cerrei os punhos com a camisa dele entre os dedos, puxando o tecido mais para mim; seus dedos se enterravam no meu quadril por cima dos hematomas que ele mesmo causara durante as horas anteriores, amassando a saia. Suspirei com a dor morna que irradiou, minha boca pincelando levemente a dele depois do beijo forte.
Ficamos pelo menos uns três minutos inteiros em completo silêncio, respirando fundo com os rostos quase colados. Espalmei seu peito com força, incoerentemente, indecisa entre afastá-lo, puni-lo pelo que dissera e fizera ou trazê-lo para mim até nos fundirmos. Ele agarrou meus punhos para se proteger de meus tapas e, apertando-os, levou a boca ao meu pescoço e mordeu a pele, lambendo em seguida quando choraminguei diante do misto de dor e prazer.
— A gente precisa parar de fazer isso — arfei.
— Beijar? — ele questionou contra a minha orelha, a voz ainda um pouco grave pela irritação.
— Beijar no ápice de discussões. — corrigi. — Precisamos resolver nossos problemas, Malfoy, não só…
— …transar pra esquecer deles? — ele sugeriu, passando a ponta da língua pelo meu pescoço tão levemente que quase fazia cócegas. — Honestamente, acho que fico com a segunda opção.
Dei mais um tapa em seu ombro.
— Eu te odeio, sabe disso?
— Não foi isso que eu ouvi hoje de manhã enquanto você gemia… Na verdade, era como mesmo? — Ele colocou o nariz no ponto macio sob minha orelha, a respiração quente me arrepiando quando ele gemeu, me imitando: — “Eu sou louca por você…”
— Babaca — balbuciei.
— Vou considerar isso uma vitória pessoal.
O sorrisinho safado dele foi sumindo quando se afastou, dando lugar à preocupação de antes, e ele beijou minha têmpora. A delicadeza me lembrou da forma como Fred Weasley também beijara minha testa, quando o desespero também tomava meu peito mas por motivos que agora pareciam quase irrelevantes. A imagem me fez pensar que, se tudo tivesse sido diferente, talvez eles pudessem ter sido amigos.
— Snape não pode saber de nós — Draco declarou num tom firme. — E muito menos os Carrow, se não eles vão nos usar para punir um ao outro.
Foi como se um garfo gelado espetasse e revirasse minhas entranhas como macarrão. Como sempre, eu entendia a necessidade, mas todo o meu ser gritava em protesto. E não podia negar que estava chateada.
— Mais uma vez, não temos escolha — bufei.
— Desculpa.
— Não é culpa sua, para com isso — Fiz um gesto displicente.
Draco suspirou.
— Nos vemos mais tarde.
— Onde, se a porra do diretor tem olhos em todo o lugar?
— Os principais olhos do diretor somos eu e Parkinson, e ela não vai nos dedurar porque sabe que eu retribuiria o favor prontamente — Sua boca se esticou em um sorriso preguiçoso. — Os alunos da Sonserina não vão falar nada, porque não vão se voltar contra o monitor-chefe que também é um Comensal da Morte. E os das outras casas… bom, eles parecem gostar de você, a julgar pelo plano elaborado por vocês…
Não adiantaria me enganar: eu sabia que Draco ficara magoado com aquela situação toda, mas o que fora feito estava feito. Pelo visto seria mais uma das várias cicatrizes que nos cobriam em consequência da guerra e do amor.
— Tá bem — me rendi. — Vamos dar um jeito.
— Que tal… na passagem das cozinhas? Às cinco da tarde?
— Ok, nos vemos lá.
Confesso, não estava feliz. Achei que fosse estar em êxtase pelo fato de estarmos finalmente juntos, mas meu corpo parecia preso, apertado naquela rede de limitações de quem não podia nos ver, e que não tinha nenhum tipo de previsão de quando poderia ser rompida.


Capítulo 9

POV A primeira semana como namorada de Draco Malfoy foi surpreendentemente melhor do que eu esperava, dadas as circunstâncias, mas passou tão depressa que parecia ter transcorrido em meros flashes.
No domingo, ele me deu um galeão encantado, que eu reconhecia como o mesmo que ele usara na minha frente no porão da Dedosdemel. Com ele, combinávamos nossos encontros.
Na segunda, a moeda permaneceu inalterada em todas as vezes que a tirei do bolso e brinquei com ela entre meus dedos inquietos. Não pudemos nos ver fora das aulas porque ele teve tarefas de monitor-chefe a cumprir em todos os tempos livres; Snape certamente estava decidido a puni-lo pelo lapso da madrugada de sexta para sábado.
Na terça, o galeão me queimou através de meu bolso. Pesquei-o com as pontas das unhas e analisei sua superfície sob a mesa, escondendo-o do olhar dos outros alunos da Grifinória. No lugar do número de série aparecia o horário “12:30” e onde costumava estar escrito “Tesouro Britânico de Gringotes”, estava “Passagem das Cozinhas”. Comemos sanduíches juntos no almoço. Dobby cada vez mais se afeiçoava a mim, vendo-me como uma representante do trio de ouro em Hogwarts, e não se castigava mais por enfrentar Draco.
Na quarta, tive mais uma aula de Feitiços exaustiva em que nenhuma pedra que testei conseguia canalizar minha magia. Logo antes do toque de recolher, foi minha vez de acionar o galeão. Encontrei Malfoy na Sala Precisa e transamos, forte e intenso, em cima de uma mesa e em um ângulo perfeito, para descarregar minha frustração.
, eu preciso… O Snape… — ele tentou argumentar enquanto eu desafivelava seu cinto e puxava o zíper da calça para baixo.
— Cala a boca — falei, soando como um pedido e não uma ordem.
Ele obedeceu e não falou mais nada até terminarmos tudo e ele deixar uma bagunça melada entre minhas coxas. Draco se reintegrou à patrulha dos corredores todo suado, recebendo olhares tortos de Pansy.
Na quinta, logo após o jantar, me juntei a Gina e Luna na biblioteca. Elas estudavam Poções, tirando dúvidas pontuais comigo, e eu lia atentamente página por página do livro dourado de mitologia que Dumbledore deixara para mim, rabiscando anotações e cruzando referências com outros volumes do assunto. No entanto, era frustrante não saber exatamente o quê eu estava procurando. Formas de resistir ao regime dos Comensais da Morte que imperava em Hogwarts? Dicas ocultas para remover minha Marca Negra? Maneiras de encontrar ou destruir as Horcruxes? Ou seria a solução da minha profecia, e com ela viria todo o resto? O máximo que eu podia fazer era apurar meu foco e ter fé na genialidade do antigo diretor, na esperança de que eu saberia exatamente o que ele queria que eu encontrasse assim que chegasse lá.
Indo para a Torre da Grifinória logo antes do toque de recolher dos alunos, ouvi um soluço e encontrei dois garotos grandalhões rindo baixo em um corredor contra a parede. Apressei o passo na direção deles.
— Ei — chamei, e eles se viraram.
Eram Crabbe e Goyle, e agora não mais oculto pela sombra deles, lá estava um garoto do primeiro ano da Lufa-Lufa, que eu sabia ser nascido-trouxa, com o rosto todo sujo de algo que parecia ser lama, mas fedia como uma Poção Polissuco podre. Rastros claros cortavam a sujeira em suas bochechas por onde lágrimas tinham passado.
Antes que eu pudesse abrir a boca ou sacar a varinha para azará-los, ouvi passos, mas agora atrás de mim.
Draco Malfoy andava empertigado, com o distintivo de monitor chefe espetado nas vestes, mas parou ao alternar seu olhar entre mim e os dois colegas de casa.
— Já está na hora de ir para seu salão comunal, — ele falou, no timbre arrastado que ele usava para debochar na frente dos amigos; o timbre que me dava nos nervos.
— Digo o mesmo sobre seus coleguinhas, Malfoy — retruquei. — O sétimo andar é bem longe das masmorras, não?
Goyle encarou Draco mais incisivamente, como se estivesse na expectativa de o monitor exercer o poder que tinha para favorecê-lo. Meu namorado hesitou por um instante, os olhos desviando na direção do garotinho lufano e em seguida no pote de tinta escura na mão de Crabbe.
— Menos cinco pontos para a Grifinória e menos cinco para a Lufa-Lufa — ele disse, por fim, sem muita segurança na voz. — Para o salão comunal, agora.
No entanto, o abuso de autoridade pareceu satisfazer seus colegas, que riram e empurraram o menininho no chão, antes de darem tapinhas nas costas de Draco ao segui-lo para fora do corredor. O loiro nem ao menos olhou para trás, e quando eles começaram a descer as escadas, pude ver seu rosto retorcido no sorriso preguiçoso que me dava tanto asco.
Irritada, ajudei o novato da Lufa-Lufa a se levantar, limpei seu rosto com a varinha e usei a passagem secreta das cozinhas para cortar caminho até a sala comunal dele. Depois que ele tinha se acalmado um pouco do choro e conseguiu entrar para seu dormitório, voltei pela penumbra da passagem, fervilhando de raiva. Hermione estava certa, então. Draco era realmente o babaca de sempre quando estava na frente dos amigos. Quer dizer, obviamente eu não esperava que ele abrisse um sorrisão e me beijasse na frente de todos ao me ver, mas fala sério! Aquilo fora patético.
Fui dormir num humor pior do que qualquer dia daquela semana, mesmo sem entender por que estava tão à flor da pele. Não estava perto de ficar menstruada ainda, e nem queria saber como seria quando ainda tivesse esse fator para agravar meu estado de espírito.
Na sexta, a insuportável aula de Estudo dos Trouxas representou mais uma farpa no meu relacionamento com ele. A classe estúpida sobre a Segunda Grande Guerra Trouxa distorcera totalmente os fatos para que se expusesse somente a crueldade dos não-mágicos, e não os conflitos ideológicos da guerra, com seus conceitos supremacistas raciais que eram incomodamente semelhantes aos de Voldemort. Draco se sentou do meu lado numa das cadeiras de escritório mutiladas e me lançava olhares arregalados toda vez que eu resmungava algo diante das palavras de Aleto Carrow, até que ele me lançou um Silencio para impedir que a professora me castigasse. Fiquei sem falar com ele pelo resto do dia, apesar de o feitiço já ter se desvanecido.
No sábado, aconteceram os testes de quadribol.
Malfoy não era o capitão da Sonserina, o que foi uma surpresa para grande parte dos alunos, pelo que ouvi dos cochichos nos corredores. Zabini, que jogava como artilheiro, ficara com o cargo. Era compreensível, contudo; Draco já era monitor-chefe e Comensal da Morte. Certamente o Lorde das Trevas não gostaria que um de seus seguidores próximos perdesse tanto assim seu tempo com frivolidades como bolar estratégias para ganhar a Taça das Casas.
Sendo assim, naquela manhã quente de sábado, em que o sol já castigava meu couro cabeludo e queimava a ponte do nariz, Gina Weasley e Blásio Zabini tiveram um pequeno atrito no meio do campo para decidir a quem cabia seu uso primeiro.
— Eu reservei com Madame Hooch já tem duas semanas — Gina rosnou, soprando uma mecha ruiva que caía sobre seu rosto. — Cai fora, Zabini.
— Uh, acordou com o pé esquerdo, Weasley? — O garoto apoiou o próprio peso na vassoura que segurava ao lado do corpo, entortando a cabeça como se falasse com uma criança. — Ou isso tudo é saudade do namorado?
Sendo honesta, era meio que uma surpresa para mim que Zabini fosse tão sarcástico. Pelo pouco que eu o conhecia, ele parecia simplesmente um garoto arrogante e cafajeste que não se importava com muita coisa além de mulheres e sua própria aparência (apesar de eu não poder negar que ele era inteligente, visto que cursava Poções no nível de N.I.E.M.). No entanto, a menção de Blásio a Harry fora dolorosamente exata.
— Por que você não enfia essa condescendência no seu rabo? — Gina rebateu num tom inocente, piscando os olhos.
Gina — falei, repreendendo-a. Dei um passo para ficar entre os dois capitães. — Zabini, por que não dividimos o campo para o início dos testes? Depois revezamos caso você precise usar todas as balizas.
Ele ergueu as sobrancelhas, com um sorriso desacreditado.
— Você não é a capitã, o que te faz pensar que pode negociar alguma coisa comigo?
— Olha, nós dois sabemos que vocês estão errados, ok? A reserva do campo foi feita com antecedência pela Grifinória; permitir que vocês usem seria uma concessão nossa.
— Ah, é? E quem tiraria a gente daqui? Vocês?
Olhei em volta dele. Os alunos da Sonserina que estavam ali para o teste não prestavam muita atenção à nossa conversa, mas mesmo assim eu sabia que a maioria não ficaria muito feliz em sair pacificamente do campo. Eram basicamente garotos grandalhões e mal encarados.
— A quem vocês pretendem recorrer? — ele continuou. — Os Carrow? Você sabe muito bem quem vai ganhar essa briga.
— Onde está o resto do seu time? Vai fazer o teste sem os titulares jogando?
Ele passou a língua pelo lábio num risinho sarcástico e deu um passo à frente, mas não me intimidei. Suas palavras soaram macias e baixas.
— Ah, você esperava que o Malfoy te defendesse nessa, não é? Não é porque agora você dorme com ele que ele vai fazer tudo o que você quer…
Meu pescoço queimou, mas o espanto de ouvir a confirmação de que ele sabia sobre mim e Draco me impediu de raciocinar uma resposta. Ele me lançou uma piscada e bateu palmas para chamar a atenção dos colegas de casa.
— Vamos usar essa parte do campo.
Desnecessário dizer, mas Gina ficou bufando durante metade do teste. No fim das contas conseguimos montar o time: ela, Demelza Robins e Bruno von Schnee como artilheiros, Peakes e Coote como batedores, Francesca Giovanni como goleira e eu como apanhadora. Tanto Giovanni quanto von Schnee eram novatos; graças ao decreto do ministro Thicknesse, os jovens bruxos que antes eram educados em casa agora eram obrigados a comparecer a Hogwarts. Ambos eram bem quietos, mas jogavam muito bem; Francesca era um ano mais nova que Gina e já tinha sido convidada para formar o time de base das Holyhead Harpies.
Draco só apareceu quando já tínhamos finalizado o treino, e me cumprimentou com um aceno de cabeça discreto antes de montar sua Nimbus 2001 e se juntar ao resto do time da Sonserina, que cortava o ar em vassouras velozes de última geração, exibindo seu estilo agressivo de jogo pelo qual era famoso.
Que ódio. O desgraçado não somente jogava bem, mas ficava incrivelmente gostoso jogando. A visão me deu sensações distintas e possivelmente conflitantes: metade de mim queria ficar esperando por ele no vestiário vazio, na intenção de surpreendê-lo no chuveiro, talvez; a outra metade queria voar o mais rápido possível e derrubá-lo em pleno ar.
A maior parte do time se encaminhou de volta para a escola, mas Gina acenou com a cabeça para mim, indicando uma das portas dos dois vestiários dali. Entramos, e fechei a porta atrás de mim. Sob a iluminação fraca, sombras dançaram no rosto dela onde o inchaço do castigo de Aleto Carrow ainda não desaparecera.
— Vou reunir a Armada de Dumbledore hoje, na Sala Precisa, uma hora antes do fim do toque de recolher — ela declarou, direta e discreta.
Arregalei os olhos.
— Ok. Precisa que eu faça o quê?
— Agora que o Harry está longe — uma expressão de dor perpassou seu rosto, não tão contida quanto ela gostaria —, precisamos de um novo instrutor. Pensei em dividirmos a tarefa.
Meu coração se acelerou com a expectativa.
— Tem vários alunos de séries abaixo de nós e alguns novatos desse ano interessados em se juntar à Armada. — Gina prosseguiu. — Seria bom se você assumisse os veteranos, digamos assim, e eu desse as aulas introdutórias para os demais.
— Eu topo, claro.
Ela acenou devagar com a cabeça, e um silêncio desconfortável se instalou até nós duas falarmos ao mesmo tempo:
— Melhor nós irmos...
— Gina, eu...
Ela fez um gesto, me convidando a continuar o que dizia.
— Me desculpa pela noite da festa. Eu deveria ter prestado mais atenção...
— Você não tinha como saber, . — A voz dela soava cansada. Na verdade, ela toda parecia cansada, com o cabelo ruivo desarrumado escapando do elástico do rabo de cavalo e os olhos castanhos escurecidos de preocupação. — Se Snape chamou os irmãos Carrow pela Marca Negra, você não teria como sentir.
Hesitei por um instante além do que devia. Gina trocou o peso do corpo de uma perna para a outra e inclinou a cabeça para o lado.
— Ou teria? — questionou, o tom acusatório incontido.
— Não, claro que não — assegurei e soltei um riso nervoso. — Mas... não sei. Talvez eu tivesse conseguido reparar se Malfoy sentiu alguma coisa, e isso teria servido de alerta.
— Já passou — De novo ela sacudiu a mão no ar, no mesmo gesto displicente. — Se concentra em hoje à noite, está bem? Para nos ensinar o máximo possível... pra que isso não se repita.
— Tudo bem. Nos vemos mais tarde então.
Ela deixou o vestiário, mas eu preferi ficar. Não estava a fim de interagir com ninguém no momento, e poder tomar banho em paz e silêncio era uma dádiva rara em Hogwarts. Por isso, decidi aproveitá-la. No entanto, quando eu já estava quase totalmente vestida, colocando grampos no cabelo para segurar as tranças que eu fizera na parte de trás da cabeça, o time da Sonserina entrou, todo enlameado, suado e barulhento.
Na hora, meu estômago congelou. Meu agasalho de zíper estava aberto, mas as mangas cobriam perfeitamente meus braços. Por um instante irracional, porém, eu tive certeza de que fora pega, de que minha Marca Negra fora descoberta. O alívio se espalhou como água quente por meus músculos tensos, mas logo o calor originou-se da vergonha de estar seminua na frente de sete desconhecidos — ou melhor, seis.
— Uhh, temos uma intrusa — debochou o capitão, Zabini, enquanto encaixava sua vassoura no suporte da parede, sem dar mais atenção a mim.
O goleiro e os outros artilheiros riram, conforme os batedores também entravam e, por último, o apanhador.
Draco.
Os olhos azuis dele se arregalaram levemente ao registrarem minha presença, mas a boca se apertou numa linha quando ele me viu puxar rapidamente o zíper do moletom para cima, escondendo o sutiã exposto. O instante em que ele me encarava logo passou, e ele prosseguiu para os armários como se eu fosse uma aluna qualquer do time rival.
— Não fica assim, — uma voz surpreendentemente suave falou atrás de mim. Virei a cabeça. Era Vicente Crabbe, um dos batedores e comparsas de Draco. — Não é como se todo mundo da turma não tivesse visto seus peitos antes. Malfoy se assegurou disso — completou, provocando risos de todo o time, exceto de Zabini e Draco.
Meu olhos foram na direção de meu namorado. Ele nem ao menos olhava para mim; estava desamarrando os cadarços de suas botas, mas uma veia salientou-se na têmpora e o rubor da irritação coloriu-lhe os lados do pescoço.
Crabbe se inclinou na minha direção, o corpanzil cobrindo minha visão de Malfoy e impedindo que qualquer outra pessoa no vestiário ouvisse o que ele disse:
— Engraçado. Ele não costumava exibir a comida antes de comer. Qual a diferença agora?
Dei um passo brusco para longe e empurrei o braço dele do meu caminho, enquanto as gargalhadas de antes se avolumavam. Sem olhar para trás, saí em direção ao castelo e furiosamente subi até meu quarto na Torre da Grifinória.
Porra. Será que o estúpido do meu namorado não conseguia nem ao menos reagir a isso?
Fiquei o resto do dia remoendo o ocorrido durante os instantes em que minha mente ficava livre. Por sorte, não eram muitos: eu tinha uma aula da AD para planejar e um livro dourado de mitologia para ler, então jantei antes mesmo de o sol se pôr e me enfiei na biblioteca.
Eu já lera três contos: um sobre Urano e Gaia, outro sobre Cronos e Reia, e um terceiro sobre como os deuses filhos do titã do tempo tinham nascido e depois o derrotado. O próximo era sobre o nascimento de Atena, e eu já tinha lido algumas partes depois do almoço, então estava com os livros que estivera utilizando para as referências cruzadas. Continuei anotando tudo o que podia, mas uma pontada de enxaqueca me dizia que aquilo era desagradavelmente inútil.
Depois de terminar aquele e ter meio metro de pergaminho escrito ao meu lado, passei para o próximo. Deixei meus olhos pesarem sobre o título decorado, já cansados de decifrar as letras ornamentadas da diagramação.

Eco e Narciso


A ilustração logo abaixo retratava uma jovem de cabelos longos e encharcados, nua e com uma expressão metade entristecida, metade curiosa. À sua frente, estava uma árvore, e pouco adiante um belo rapaz estava debruçado sobre um lago, o reflexo idêntico admirando-o de volta.
Fui lendo o conto de pouco em pouco pela primeira vez, me concentrando em cada detalhe da narrativa, mas também tentando buscar eventuais marcações no papel cor de creme, erros de impressão ou letras sublinhadas, mas não achei nada. Bom, pudera. Se eu tivesse encontrado, seria uma coisa óbvia o suficiente para o Ministério britânico também ter detectado.
Ao terminar, fui na direção da mesa de Madame Pince devolver os volumes que usara para o conto anterior e pedi sua ajuda para buscar no acervo todos os livros que mencionassem as palavras “eco”, “narciso” e derivados. Com a ajuda dos complicados feitiços de catálogo instalados, um total de 247 volumes veio flutuando rente ao teto e se empilhou suavemente atrás da mesa da bibliotecária.
— Acho que você deveria limitar sua pesquisa — ela aconselhou, dispensando os livros com um aceno de varinha quando me debrucei de novo sobre as folhas do caderno encantado, escrevendo somente “narciso”.
Cerca de uma dúzia de volumes se dividiu em três pilhas sobre o tampo da mesa de Pince. Ainda era bastante coisa, mas agradeci e usei Feitiços de Levitação para voltar com os livros para a bancada onde estivera estudando. No entanto, de pé entre meus materiais e com a mão pousada sobre a capa dourada de minha herança de Dumbledore, estava Draco Malfoy.
Com a surpresa irritada, deixei os doze livros caírem com um baque surdo ao lado de meus rolos de pergaminho. Peguei o primeiro deles, Guia celta das propriedades mágicas de gimnospermas, um exemplar grosso o suficiente para servir como arma de um crime, e usei minha varinha para executar um encantamento de busca e encontrar os verbetes que queria. Comecei a ler, ignorando totalmente a presença de meu namorado ali, mas ele deu um passo até ficar atrás de mim e colocou a mão na minha nuca, os dedos serpenteando de leve por baixo dos cabelos num carinho insinuante. Revirei os olhos e murmurei Abaffiato com a varinha na mão.
— Veio pedir desculpas? — perguntei, tentando manter um tom neutro.
— Pelo quê? — ele questionou despreocupadamente, se sentando na cadeira ao meu lado. — Por impedir que você fizesse uma burrice na aula da Carrow? De nada.
Fechei o livro com um estalo seco.
— Você literalmente tirou minha voz.
Sua voz ia te conseguir uma detenção bem desagradável e possivelmente dolorosa. Eu só quis evitar isso, já que você obviamente ignorou todos os seus instintos de autopreservação.
— Não preciso que você me defenda. — E lá estava eu me contradizendo. — Na verdade, talvez eu quisesse a maldita detenção.
— Eu não sabia desse seu lado masoquista, . — O braço dele se apoiou no encosto de minha cadeira, e ele inclinou o tronco para completar, o sorriso entortado pelo sarcasmo. — Podemos tentar alguma coisa assim na cama, se você insiste.
Cruzei os braços, e só então ele constatou que eu não estava a fim de brincar.
— Ok, ok. Olha, eu não devia ter feito isso, mas era o melhor para você.
Engoli a vontade de dizer que o melhor para mim deveria ser uma escolha minha, e só disse:
— Não é só isso.
— É por causa do Crabbe?
Sim, também era por causa do Crabbe. Mas era inútil argumentar com ele sobre aquilo. Eu sabia exatamente por onde a conversa iria: “Você queria o quê, que eu batesse nele pra te defender? Queria que arrumasse uma confusão?”.
, eu honestamente não sei o que eu poderia ter feito, mas pelo menos ninguém viu sua Marca Negra…
— O Zabini sabe o que aconteceu na noite da festa. — o cortei.
— O quê? Que seus amigos invadiram a sala do Snape? A escola inteira sabe disso.
— Ele sabe que nós transamos.
Draco continuou com a mesma expressão.
— E?
— E eu não gostaria de ter sido exposta desse jeito.
— Eu não contei a ninguém, se é isso que você está insinuando — ele esclareceu, escorregando na cadeira numa postura relaxada. — Mas nós dividimos o banheiro da Sonserina, não é como se eu pudesse esconder os arranhões e chupões que você deixou em mim.
— Uau, quem ouve isso acha que você não tem uma varinha a sua disposição para resolver a situação, se quisesse. Se eu tivesse que apostar, apostaria que você agiu como se as marcas fossem um troféu.
Ele sacudiu a cabeça lentamente, como se estivesse custando a acreditar no que eu dizia.
— Pessoas transam, . Namorados transam. Não precisa tentar buscar um significado profundo de honra nisso, ou algo do tipo. — A boca exibiu um esgar divertido. — Seu lado grifinório ainda pode ser sua ruína, sabia?
Meu pescoço ferveu.
— Até quando você vai continuar com essa picuinha ridícula de casas? Eu só vou ser suficiente para você quando meu lado sonserino estiver à tona?
Ele franziu a testa, e a sombra de um sorriso sarcástico se espalhou nas bochechas.
— Bom, quando seu lado sonserino está à tona, você mente descaradamente. Então não sei.
Ri sem humor.
— De novo isso?
— Não é “de novo”. Esse não é o tipo de coisa que se esquece assim.
Me levantei bruscamente e comecei a juntar meus livros e anotações com violência.
— Se eu sou tão péssima e cheia de defeitos como você faz parecer, por que caralhos está namorando comigo?
A hesitação de alguns segundos de Draco me machucou mais do que quando ele me acusou de dar pra ele para distraí-lo.
— Porque se for só pelo sexo… — comecei, enraivecida, mas ele me interrompeu.
Que porra você tá falando, ?
A expressão dele mudou, como se ele finalmente tivesse percebido que não estávamos levando aquela discussão do mesmo jeito.
— O que houve? — ele insistiu.
Senti os lados da minha boca caírem, e soltei o ar com força ao sentar de novo na cadeira.
— Nada. Só tô estressada.
Mentira. Eu estava borbulhando de raiva por causa da palhaçada da última aula de Aleto Carrow, por ele ter me ignorado no teste de quadribol, pela piadinha e insinuação de Zabini, pela humilhação e maldades de Crabbe e Goyle que ele fingiu não vir, por não ter tido tempo pra mim na segunda-feira, por ele ter dito a Snape que transara com Pansy, por termos que nos manter nas sombras. E aquela raiva resolveu entrar em erupção da forma que eu sabia que ia atingi-lo, da forma que nossa relação sempre tinha funcionado: com uma provocação.
— Bom, bem-vinda ao clube — ele ironizou, mas minha cabeça apenas maquinava o que eu faria a seguir.
Era irracional e imaturo? Sim. Eu ligava? Absolutamente não. Afinal, eu era uma agente secreta exilada, marcada com magia negra na pele, apaixonada e namorando o garoto que eu deveria fazer fracassar, no meio de uma guerra, com três dos meus amigos mais próximos viajando por toda a Europa para encontrar pedaços da alma do bruxo das trevas mais poderoso da história moderna. Queria me agarrar a uma vingança boba, queria poder cometer um erro idiota que não me traria consequências graves, queria ser um pouco irresponsável e infantil porque minha adolescência e minha ingenuidade foram arrancadas e encurtadas à força em prol de um bem maior.
Por isso, dei uma olhada no relógio da torre oposta à janela da biblioteca, empunhei minha varinha e deixei um sorriso sarcástico se espalhar pelo meu rosto ao enunciar:
Decipere Sacculo.
A imagem das estantes, mesa e pilhas de livros à minha frente tremeu levemente, como a visão de parachoques de carros tremeluzindo sobre o calor do asfalto. Draco também notou o efeito do meu feitiço.
— O que é isso?
— Um truquezinho — O canto direito de meus lábios se ergueu quando me levantei de minha própria cadeira, puxei a de Malfoy para virá-la na minha direção e montei nele.
Seu pomo de adão subiu e desceu; os lábios rosados se entreabriram infimamente.
...?
Draco virou a cabeça ao ouvir o som de um garoto do 3º ano deixar um livro cair no chão perto de nós. O menino conferiu quem estava em volta, envergonhado, mas seus olhos passaram reto por mim e por Malfoy. Ele não podia nos ver, graças a meu Feitiço da Desilusão modificado, cortesia da Divisão de Criação Mágica do Ministério brasileiro. O Feitiço da Ilusão, que não deixava o objeto do encantamento invisível, e sim o mascarava. Não tinha como ter certeza absoluta do cenário que o feitiço criara, mas eu mentalizara que qualquer pessoa que olhasse para nós, veria ambos debruçados à mesa, estudando.
A ilusão duraria no máximo cinco minutos, mas isso era mais do que suficiente para o que eu pretendia. Agarrei o cabelo dele pela nuca e o beijei.
A boca de Draco tinha gosto de Feijõezinhos sabor maçã e algo frio e picante, como menta: doce de um jeito afiado e perigoso, que condizia com a forma que ele me agarrava. O ponteiro grande do relógio da torre se movera um minuto quando os lábios dele desceram pela minha mandíbula e os dentes se afundaram no meu pescoço delicadamente, onde ele depois passou a língua. Afrouxei a gravata dele e me mexi em seu colo enquanto ele explorava minha pele; o som que ele emitiu com o contato fez minhas veias vibrarem.
O ponteiro se mexeu de novo. Eu tinha três minutos.
Saí de cima dele e me ajoelhei à sua frente.
— Sabe... — comecei, ignorando a confusão estampada no rosto dele e olhando em seus olhos de baixo para cima — A graça de namorar alguém é poder ter alguém que alivie seu estresse... não importa a hora ou o lugar.
Draco fechou os olhos e abriu um sorriso frouxo quando eu escorreguei as mãos pelos joelhos dele, subindo centímetro a centímetro conforme minhas palavras iam acariciando-o.
— Eu sei que você queria me exibir pela escola… — Desafivelei seu cinto, deixando a fivela de prata bater contra o chão num ruído metálico. Ninguém apareceu para reclamar do barulho; bom sinal. — Eu sei que adoraria levar pela cintura a garota que todos os seus amigos desejam, mas ficam quietos porque temem você... — Abri o botão da calça. — Você gosta de ser temido, amor?
As pontas dos meus dedos entraram pelo cós, sentindo a pele quente dele pulsando sob meu toque, as batidas fortes e rápidas: tesão e adrenalina pelo local público.
Deslizei as unhas ali.
Gosta? — insisti.
— Gosto — ele respondeu num sussurro cheio de ar e expectativa.
— Muito bem. O que mais você gosta?
— Gosto quando você não está estressada... — Ele começou, fazendo gracinha. — Quando você prende o cabelo e expõe o pescoço... gosto mais ainda quando tem as marcas da minha boca na sua pele…
Me levantei um pouco mais, puxando sua gravata com uma das mãos e passando a língua pela pele macia sob a garganta. Ele parou de falar. Lentamente, desci o zíper da calça dele. Draco prendeu a respiração.
— O que mais? — incentivei.
— Gosto quando você sorri daquele jeito meio sarcástico e coloca a língua no lábio... Quando... — A voz vacilou quando minha mão realmente entrou em sua calça e o senti crescer contra minha palma.
— Quando...?
— Quando você abre as pernas pra mim e só de olhar pra sua calcinha eu já sei que você me quer.
Senti o sangue bombear quente pelo meu rosto.
— Gosto tanto da sua boca, ... — Ele pegou a própria varinha de dentro da capa do uniforme e murmurou Abaffiato, reforçando meu bloqueio sonoro. — Gosto quando você me beija... me morde... quando fala tudo que você quer que eu faça com o seu corpo... Porra...! — ele xingou quando o apertei, envolvendo-o em meus dedos num punho firme, e mexi a mão para cima e para baixo, bem lento. — Mais forte… mais forte, amor…
Sorri quando ele me chamou de amor; um sorriso mais maldoso do que enternecido, e continuei tocando-o, com mais força mas na mesma velocidade.
— Continua falando — pedi.
— Eu… queria poder dizer que gosto quando você me chupa… — A voz dele ficou um pouco mais grave e entrecortada. — Por que você não me mostra? Pra eu saber se gosto…
Foi naquele instante que eu soube que ele estava nas minhas mãos, mais do que só literalmente. A expressão relaxada, de quem tem a vitória como certa, a cabeça inclinada para trás, as veias marcadas no pescoço, a vermelhidão que emanava calor pelo corpo todo.
Olhei o relógio pela janela. Trinta segundos.
Sem tirar a mão de dentro da calça dele, levei minha boca até a orelha de Draco, logo depois de deixar um chupão doloroso na pele abaixo, e sussurrei:
— Por que você não vai pedir à Parkinson?
Mesmo sem olhar pra ele, senti seu rosto se tensionar e a boca se entreabrir em surpresa.
— Você já disse ao Snape que transou com ela mesmo… Só deixaria a história mais verossímil… Além do mais, talvez ela seja exatamente a garota sonserina e não mentirosa que você está procurando.
…?
— Não precisa ser ela, na verdade. — Tirei minha mão de onde estava e comecei a abotoar a calça dele de novo: cada milímetro do zíper, o botão preto da calça, os buracos do cinto onde a fivela se encaixava. — Pode ser qualquer uma.
— O que você… — Malfoy estava atordoado, tonto, parecendo quase bêbado com o tesão que eu induzira e agora jogava na mão dele.
— Já está na hora do toque de recolher — falei, ajeitando a gravata dele no lugar, meus lábios quase raspando nos dele com a proximidade. — Você não deveria estar na patrulha, monitor chefe?
Eu quase pude ver os olhos dele queimando; não com o fogo prateado de desejo de sempre, mas sim raiva. Porém, não fiquei para ser consumida pelas chamas. Me levantei definitivamente, juntei meus pertences e os coloquei dentro da mochila, indo diretamente para a Sala Precisa e sentindo minha pele arrepiada e eufórica com o que eu tinha acabado de fazer. Provocar Draco me levava de volta à adrenalina do início do ano anterior, quando ainda não tínhamos nos beijado e nosso contato se resumia a azarações, quase afogamentos e poções arruinadas.
Entrei na Sala completamente vazia a não ser por Gina, que estava de pé na frente de um Espelho de Inimigos, mas virada para um boneco de treinamento que usava uma máscara de Comensal da Morte. A visão me deixou desconcertada por um segundo, mas ocultei a sensação ao deixar a mochila pesada cair aos meus pés, atraindo o olhar da ruiva.
— Oi — ela cumprimentou. Um curativo cor da pele cobria o corte semi cicatrizado sob seu lábio, e o arroxeado debaixo da órbita agora assumia um tom amarelado. — Chegou cedo.
— Ansiosa, acho. — Dei a volta no boneco que ela analisava e ajeitei a máscara dele. — Pensei em começar com algumas coisas sem varinha hoje.
— Isso é um pouco avançado, não acha? Magia sem varinha é nível de sétimo ano…
— Não, não… Não quis dizer magia. Eu… — De repente a ideia pareceu estúpida. — Quero dizer, habilidades de… trouxas.
— Ah! — ela exclamou.
Gina pareceu forçar a animação que exibiu. Certamente passava pela cabeça dela o mesmo pensamento que passava pela minha depois de verbalizar a sugestão: de que adiantaria saber uma coisa que não envolvia magia, sendo que os Comensais da Morte não teriam receio de usar Maldições Imperdoáveis contra nós?
— Acho que pode ser legal — ela completou, mas não tinha tanta segurança assim na voz.
— Se você achar idiota, posso fazer outra coisa — me apressei a dizer. — Talvez Patronos para comunicação, ou algo assim.
— Não, acho que sua ideia vai ser diferente! Vai em frente, — disse Gina, prendendo o cabelo em um rabo de cavalo e em seguida começando a organizar os bonecos de treinamento em fileiras distanciadas.
Respirei fundo e fui até um dos armários que a Sala fizera. Na prateleira de cima, havia exatamente o que eu estava procurando: uma fechadura solta da porta, como se estivesse prestes a ser encaixada sob a maçaneta. Meu corpo ainda estava vibrando pela minha interação com Draco minutos antes. Dei pulinhos para ajudar a dispersar a energia e comecei a me concentrar na tarefa.
Peguei o pequeno mecanismo de metal e comecei a tatear meu cabelo a procura de um grampo. Coloquei-o entre os dentes e puxei a varinha. Com Feitiços Duplicadores, multipliquei a fechadura em várias, e peguei a original para testar. Era razoavelmente complexo, e eu não esperaria menos das fechaduras de Hogwarts, certamente escolhidas pelos próprios fundadores para protegerem seus segredos. No entanto, meu treinamento também fora razoavelmente complexo, e demorei cerca de um minuto e meio para destravar o mecanismo da chave. Repeti o processo com as duplicatas, diminuindo meu tempo a cada vez, e finalmente consegui limitá-lo a dezessete segundos.
Nem percebi que já estava rodeada por alunos da Grifinória, Corvinal e Lufa-Lufa, me observando trabalhar nas fechaduras enquanto Gina instruía alguns mais novos com feitiços simples de defesa, como o Escudo e de Desarmamento.
— Por que você simplesmente não usa um Alohomora? — perguntou um garoto da Lufa-Lufa, Zacarias Smith.
Arremessei uma fechadura na direção dele, que conseguiu apanhar com dificuldade, usando as pontas dos dedos.
— Tenta.
Envergonhado sob o olhar de todos os colegas, ele sacou a varinha e tentou abrir com magia, sem sucesso.
— Como nosso querido colega Smith aqui já demonstrou, essas fechaduras estão encantadas contra feitiços. — Usei um Convocatório para recuperar a peça de metal da mão dele, e a ergui na frente do grupo. — Esse é o tipo de tranca que os Carrow vêm usando em Hogwarts.
— Que idiotas — murmurou Dênis Creevey, de um jeito tão espontâneo e inocente que achei fofo.
— Sim, Creevey — concordei, e ele se sobressaltou; decerto não esperava que eu soubesse seu nome. — Bruxos nascidos trouxas sabem apontar facilmente a óbvia fraqueza desse encantamento, mas geralmente os sangue puros nem sequer cogitam a possibilidade de alguém usar as próprias mãos e não uma varinha para burlar a fechadura. Certamente as portas têm algum tipo de magia que as defenda de um arrombamento por força bruta, mas não são imunes a ferramentas não-mágicas.
— Mas por quê exatamente está ensinando isso pra nós? — questionou Parvati Patil. — Quando tentamos invadir uma sala, deu terrivelmente errado.
Todos se remexeram, desconfortáveis. Eu não duvidava que alguns deles até mesmo reputassem a mim o fracasso do roubo da espada de Gryffindor, mas honestamente não poderia me importar menos.
— Isso não serve só para entrar. Também serve para sair — disse Luna Lovegood, sua voz etérea se espalhando pelo ar até mim e suavizando a tensão em meus músculos. Pelo menos ela acreditava em mim e não achava tudo aquilo uma grande bobagem.
— Perfeito, Luna — agradeci a explicação com um aceno, e coloquei a fechadura no chão a meus pés, com o grampo de cabelo a seu lado. — Vamos começar, então. Engorgio.
Os dois objetos cresceram até que a fechadura, que antes cabia na palma da minha mão, chegasse até meu joelho e o grampo de cabelo estivesse do tamanho de um taco de quadribol.
— Primeiro, vocês precisam entender que a fechadura tem como se fossem duas partes: a de cima e a de baixo. Por isso, precisamos dividir o objeto que formos usar, no caso aqui um grampo, em dois. Normalmente eu quebraria com a mão, mas esse é muito grande. — Com a varinha, cortei o grampo na curvinha de baixo com um Diffindo. — Agora, vou entortar um deles no meio, até ficar nesse ângulo assim, como um leque, e vou arrancar essa bolinha da ponta. — Usei de novo o feitiço de corte, e entortei levemente a ponta onde ela estivera. — Então enfio essa parte na metade de cima da fechadura.
Os olhares de todos estavam fixos nos meus dedos enquanto eu trabalhava, e até mesmo alunos do outro grupo de treinamento arriscavam espiadas na minha direção.
— Sem tirar esse pedaço de cima, você introduz o segundo na parte inferior da fechadura e entorta ele até ficar dobrado num ângulo reto, assim. — Olhei em volta. — Creevey, segura aqui pra mim.
O pequeno Dênis veio em minha direção e segurou os pedaços de grampo exatamente onde estavam, o que me permitiu realizar o Feitiço Expansor em uma duplicata da fechadura e abri-la com um Feitiço de Corte, de forma a expor o mecanismo interno.
— Estão vendo a fileira de pinos que atravessa esse cilindro aqui embaixo? Na porta trancada, esses pinos ficam desalinhados desse jeito aí, impedindo que o cilindro gire. Quando você encaixa uma chave, ela alinha esses pinos, o cilindro gira e a porta abre. Como estamos supondo uma situação em que você não tem a chave nem pode recorrer a magia, quem vai realinhar os pinos é o pedaço de grampo. Para isso, você precisa acionar as duas metades ao mesmo tempo. — Creevey tirou as pequenas mãos do caminho para que eu demonstrasse a técnica certa. — Enquanto o primeiro grampo levanta o pino, o outro gira o cilindro para travá-lo no sentido em que a chave gira para abrir a porta, ou seja, pra direita. — Girei meus punhos conforme descrevera e um clique soou.
A fechadura estava aberta.
Um pequeno conjunto de aplausos soou tímido pela sala, e fiz uma reverência sem graça.
— Vez de vocês — declarei, usando um Reducio para fazer meu modelo voltar ao tamanho normal e um Geminio para multiplicar os grampos entre meus colegas.
Comecei a andar por entre os alunos, e ver aquele espaço de treinamento me trouxe uma sensação agridoce na boca do estômago. Apesar de eu ter lembranças ruins e me sentir mal por finalmente ter percebido que me tornar uma agente juvenil não fora escolha minha, eu gostava da atmosfera do Ministério com as outras quinze garotas. Gostava de ouvir as risadas quando Jussara derrubava Aderlissa no tatame pela décima vez, Georgina cantarolava uma música qualquer enquanto fazia massagens cardíacas em um boneco no ritmo exato, Felícia preparava uma poção incrivelmente fedida e Malena deixava seu cabelo de todas as cores do espectro visível de luz.
— a voz de Gina me chamou. — Me ajuda aqui.
Fui na direção dela e, sem aviso, ela me lançou um Rictusempra. Por reflexo, consegui barrar a azaração com um Feitiço Escudo.
— Que porra…?
— Estão vendo? É esse tipo de reação que eu espero que vocês tenham — ela falou aos alunos a sua volta, com um sorriso malicioso na minha direção. — Vamos lá, apanhadora. Mostre seu espírito esportivo.
Locomotor Wibbly! — enunciei, lançando uma Azaração das Pernas Bambas que a derrubou de lado no chão até ela conseguir fazer força com o tronco e rolar rápido o bastante para formar um escudo antes de meu próximo feitiço atingi-la.
Finite! — ela exclamou, se levantando então num pulo e me lançando um feitiço não-verbal, que eu logo bloqueei.
Raios de luz multicolorida brilhavam pela sala, cores refletidas no suor que se espalhava por meu rosto e o de Gina, as duas sorrindo, ofegando e gritando com o esforço. Ela era boa, porque sabia exatamente os instantes em que lançar feitiços, como se ela visualizasse o duelo estando sempre um segundo à frente. Foi essa habilidade que lhe permitiu me lançar uma Azaração para Rebater Bicho-Papão, que fez com que pequenos morcegos de meleca saíssem voando de minhas narinas. O encantamento só serviu para me fazer parar de falar e me deixar irritada, e comecei a levar o duelo mais a sério.
Desfiz o feitiço e lhe lancei um combo de três ataques sucessivos: Levicorpus, Liberacorpus e Impedimenta. Gina ficou tão atônita ao ser suspensa no ar, solta de volta ao chão e depois paralisada que me deu alguns instantes de vantagem para que eu a desarmasse e imobilizasse. No entanto, não consegui fazê-lo, pois ela deu um jeito de acertar um chute na minha varinha que a fez voar pela sala. Sem hesitar, agarrei seu braço e me deitei no chão, puxando-o por entre minhas pernas e passando a guarda na posição de jiu jitsu que Jussara me ensinara. Só larguei quando Gina soltou um gemido de dor, e a perda de tônus do antebraço dela me permitiu agarrar sua varinha e girá-la entre os dedos.
O som de nossas respirações descompassadas foi engolido por aplausos e gritos dos alunos em volta.
— Vocês foram geniais! — Neville gritou, rindo. — Vamos fazer aqueles Comensais engolirem as Marcas Negras idiotas!
Dei um passo para trás em falso e me desequilibrei por um segundo ao levantar, mas Gina estendeu a mão para que eu recuperasse a postura. Nós duas rimos.
Minutos depois, todos os alunos estavam de volta a suas respectivas salas comunais, meu cabelo estava um pouco úmido do segundo banho do dia e Gina escovava os dentes na pia do meu lado enquanto discutíamos os melhores momentos da aula. Foi quando a curiosidade pipocou na minha cabeça.
— Posso te perguntar uma coisa?
Ela se inclinou e cuspiu a pasta na pia, assentindo pelo espelho.
— Por que você não deixou Madame Pomfrey curar os machucados no seu rosto?
Ela sorriu, erguendo levemente as sobrancelhas.
— Porque, como você já deve ter reparado, eu sou teimosa pra cacete. Neville me disse a mesma coisa, e falou que os machucados mostram que nós somos vulneráveis a eles — Ela se virou pro espelho e tocou o hematoma amarelado com a ponta do dedo. — Eu discordo. Gosto de ver a expressão de extremo desconforto do filho da puta do Snape toda vez que ele olha na minha cara.
— Justo — eu ri.
Gina colocou a mão em meu ombro e sorriu de um jeito travesso que me lembrou demais o sorriso de meu irmão preferido dela.
— Fred e Jorge teriam amado essa aula. Especialmente o Fred, considerando a professora.
Ela se encaminhou para o dormitório das meninas do sexto ano, e me permiti cair deitada em meu colchão logo depois, os cabelos se espalhando no travesseiro e minha boca se curvando para cima.
Me embrulhei nas cobertas felpudas, sentindo a endorfina do exercício e da empolgação dos minutos anteriores dar lugar a um cansaço estranhamente bem-vindo. Tudo se apaziguara; até mesmo o medo congelante que parecia ter se alojado permanentemente em meu estômago. Lembrei-me da última conversa que tivera com Fred, antes de nos beijarmos, antes de o casamento do irmão dele ser invadido, antes de eu perceber que minha vida antiga tinha chegado ao fim no exato instante em que a Marca Negra se duplicara em minha pele. Lembrei que Fred Weasley riu. “Você, com medo? A garota que ultrapassou as barreiras mágicas de Hogwarts durante uma invasão de Comensais da Morte e escapou ilesa sem ninguém saber?”
Teria sido tão simples me apaixonar por uma pessoa como Fred Weasley, com suas sardas, pegadinhas, cabelos ruivos e aroma aconchegante de sabão artesanal e desodorante masculino. “Mas o sentimento está dentro de você, ”, ele me dissera. “Você pode não saber como controlar, e isso assusta, mas ele está dentro de você ainda assim. Você tem um poder, ainda que mínimo, sobre ele.” E eu usara aquele maldito poder para irritar Draco, como se aquela pequena vingança doce de deixá-lo na vontade não fosse amargar nos meus lábios quando voltasse a falar com meu namorado.

Capítulo 10

Draco POV
Mas que porra. Mas que porra.
Eu tinha minhas dúvidas de quem estava mais maluco, se eu ou . Lá estava eu, sentado numa cadeira da biblioteca, suado, vermelho e duro, sem entender por que diabos a louca da minha namorada tinha acabado de me prometer um boquete e saído logo antes de começar, como se nada tivesse acontecido.
Tudo bem, ela não tinha realmente me prometido um boquete, e eu sabia que ela tinha todo o direito de mudar de ideia a qualquer momento, mas eu estava puto. Puto porque, mais uma vez, vinha com aquelas merdas de joguinhos e provocações por causa das insatisfações dela, em vez de simplesmente me dizer. Ou gritar comigo. Ou mandar trinta berradores de uma vez pra explodirem na minha cabeça.
Mas não. Ela precisava descontar no meu pau!
Levantei da cadeira meio tonto, ajeitei a calça o melhor que pude pra que ninguém notasse meu estado e fui para o dormitório. Sem paciência, arranquei meus artigos de banho de dentro do malão.
Já no banheiro, tirei a camisa, bufando de raiva, e Zabini entrou, segurando na mesma mão a varinha e uma lâmina de barbear. Olhou pra minha expressão e riu.
— O que ela fez?
— Hã?
. Só ela pra te deixar puto assim. O que ela fez?
— O que ela não fez, na verdade — resmunguei.
Os olhos de Blásio cintilaram e ele inclinou a cabeça para trás numa gargalhada.
— Essa mulher ainda vai te enlouquecer.
— Eu sei, Zabini, não precisa me lembrar disso — rosnei.
Puxei uma toalha da pilha de roupas lavadas pelos elfos domésticos. Deixei meu colega rindo sozinho e espalhando espuma perfumada pelo rosto, enquanto eu entrava no boxe para um banho gelado.
— É o preço a se pagar por querer uma leoa! — ele exclamou, ainda em meio a risadas e dando tapas na porta do meu boxe.
— Vai pra porra, Blásio — respondi.
Honestamente, eu não sabia dizer por que minha namorada estava agindo daquele jeito tão maluco. Sério, o que ela esperava? Que nós andássemos de mãos dadas pelos corredores expondo nossas Marcas Negras combinando? Não podíamos agir como se estivéssemos juntos, ainda mais na frente de pessoas como Crabbe e Goyle, que desde o primeiro ano eram meus informantes de fofocas e, pelo hábito, tinham se tornado a maior fonte de informações esquivas de Hogwarts. Desde o ano anterior eu sentia que eles tinham perdido um pouco do temor e respeito que tinham por mim, então era mais um motivo para tomar cuidado. O mais seguro era agir normalmente, e se o meu normal era ser escroto, então que assim fosse.
Mas aquilo era tão bizarro. era uma pessoa racional, tão manipuladora e astuta quanto uma sonserina. Por que agora ela agia daquele jeito?
Fiquei rolando na cama de um lado para o outro, grato por não ser minha noite de patrulha, pensando e analisando excessivamente todas as minhas atitudes recentes com .
Eu não estava errado em relação à aula de Estudo dos Trouxas, certo? Eu sabia muito bem como Aleto Carrow era: burra como uma porta, mas proporcionalmente cruel. Ela e o irmão eram Comensais estúpidos e malvados em níveis estratosféricos, bem diferentes da precisão quase elegante de meu pai ou da loucura brutalmente eficiente de minha tia Bellatrix.
Mas em relação a todo o resto… O encontro à noite no corredor do sétimo andar, com Crabbe e Goyle e um primeiranista perdido. A cena depois dos testes de quadribol, em que meu coração se descompassou ante a possibilidade do time da Sonserina ver a Marca Negra dela, e Crabbe fez gracinha com a primeira aula de Defesa do ano, em que “expus” o sutiã dela para todos. Nossa discussãozinha na biblioteca, em que ela parecia longe da garota controlada e segura, a que sempre tinha uma resposta ácida e um sorriso zombeteiro no canto da boca. Quantos pequenos erros eu tinha cometido naquele ínterim?
Talvez eu estivesse errado em não tê-la defendido de meus colegas, mas deveria saber, pela experiência que teve comigo no ano anterior e certamente pelas fofocas que Granger, Potter e Weasley tinham contado a ela, que eu não era exatamente o tipo de pessoa que batia de frente com outras em uma discussão. Isso era coisa de grifinórios fanfarrões. A única vez em que me meti numa briga foi no quinto ano, depois de perder um jogo de quadribol para a casa rival: me custou um nariz quebrado, bastante sangue e um Episkey particularmente doloroso, mas pelo menos os gêmeos Weasley e o próprio Potter foram suspensos do time por Umbridge.
Estava começando a cair no sono quando uma ideia me invadiu a cabeça: se estivesse lá, eu teria quebrado bem mais do que só o nariz.
E pronto. A mera imagem dela me transportou para uma espiral de pensamentos que terminou onde eu não queria que terminasse: ela socando meu nariz, abaixando a mão até meu pescoço, envolvendo-o com a mão aberta, e depois minha mão em volta do pescoço dela, meus lábios nos seus, ela gemendo na minha boca… e eu estava duro de novo.
Puta que pariu! Inferno. Inferno. Essa mulher era a porra de um demônio, era a única explicação.
Sabia que não ia conseguir dormir até resolver aquilo, o que não demorou muito tempo com a minha mão: terminei suado e aliviado, com o corpo mole e dei um aceno de varinha para limpar tudo antes de apagar.
O domingo e boa parte da semana passaram corridos; não nos vimos direito, só nas refeições e mesmo assim de longe. Ela estava brava e não fazia questão de esconder, mas o que me irritava era o quão irredutível e não empática estava sendo. Considerando que eu perdoara toda aquela mentira elaborada dela pra transarmos na fatídica sexta-feira em que o escritório de Snape fora invadido, era de se esperar que eu tivesse algum crédito.
Na véspera do fim de semana de visita a Hogsmeade, todos os alunos estavam eufóricos, porque seria uma das poucas ocasiões em que poderíamos respirar relativamente fora dos domínios dos Carrow. Exatamente por isso, acho, Aleto resolveu lecionar sua classe mais polêmica até então.
Quando ela escreveu “Genética mágica” no quadro negro, eu ouvi bufar. Apertei minha mão em volta do punho da varinha. Depois do arroubo de raiva de minha namorada, eu não podia me arriscar a repetir a proeza de lançar um Silencio sobre ela para impedir que ela se expressasse como queria.
— Como os senhores sabem perfeitamente — começou a professora —, no século XVII as relações entre bruxos e trouxas estavam no pior estado até então observado em toda a História, pois desde os anos 1400 a perseguição a bruxos e bruxas tinha se disseminado por toda a Europa. Por isso, boas ações da população mágica, como auxiliar seus vizinhos trouxas com pequenos feitiços, passou a ser sinônimo de acender sua própria pira funerária. — A professora sacudiu a varinha e pedaços de giz flutuaram pelo quadro, formando uma gravura de uma mulher agonizante sendo queimada em uma fogueira. Ouvi Parvati Patil prender a respiração, incomodada. — Famílias bruxas eram especialmente vulneráveis, por suas crianças serem ainda incapazes de controlar a própria magia e, portanto, chamarem a atenção para si e seus parentes. A proliferação de assassinatos de crianças bruxas por trouxas fez com que as comunidades mágicas se unissem para buscar medidas urgentes.
Escrito com giz, agora havia “Estatuto Internacional de Sigilo em Magia, 1692”.
— Por isso, a Confederação Internacional Bruxa assinou em 1692…
Em 1689 — ouvi murmurar.
— Perdão? — Aleto se virou para ela abruptamente, com os olhos ligeiramente arregalados, ultrajada com a intromissão.
A grifinória ergueu o queixo.
— A Confederação Internacional Bruxa assinou em 1689 o Estatuto Internacional de Sigilo em Magia, mas ele só foi implementado oficialmente em 1692 — corrigiu.
Uma risadinha ecoou do fundo da sala, na direção da qual a professora lançou um olhar fulminante. Logo a quietude se restabeleceu.
— Como eu dizia — continuou ela —, após inflamadas discussões na Suprema Corte, foi estabelecido o Estatuto de Sigilo. Este marco histórico, em que nosso povo foi separado daqueles com sangue sujo e não mágico, é o ponto de partida de nossa aula hoje.
Tive que conter a vontade de virar a cabeça para ver quantos dali eram nascidos trouxas ou mestiços. Certamente seria uma aula péssima para eles, e se o mesmo conteúdo fosse repetido para todas as séries, isso trairia ainda mais divisão e agressões dentro da escola do que já havia.
— O fato de vivermos majoritariamente em locais onde também há habitações de trouxas impede os bruxos verdadeiros de exercerem suas totais faculdades mágicas, sendo que incontáveis elementos da cultura popular dos trouxas tem origem obviamente mágica. São tão tolos que nem ao menos reconhecem isso. Mas o que se esperar de uma raça que oprime um povo mais forte, como se a possibilidade de retaliação não existisse? Não é à toa que somos muito mais avançados em todos os aspectos, e poderíamos estar hoje subjugando-os e condenando-os a este covarde sigilo em que estamos enclausurados.
Eu lembrava bem dessa parte da história; ouvia-a desde pequeno. Ralston Potter fora um membro da Suprema Corte Bruxa no período da assinatura do Estatuto, e fora sua apaixonada defesa de ponto de vista, contrário à declaração de guerra aos trouxas que a família Malfoy apoiava fervorosamente, que tivera dois efeitos significativos: o documento foi assinado, e a família Potter foi deixada de fora, séculos depois, da aclamada lista das Sagradas Vinte e Oito.
— Apesar das dificuldades, foram criados pequenos vilarejos bruxos ao redor da Europa e do Reino Unido, que têm o orgulho de acolherem unicamente famílias detentoras de magia até os dias atuais. — Com uma batidinha de varinha, um mapa da ilha britânica desenhou-se no quadro atrás da professora. — Alguns célebres exemplos são Tinworth, na Cornualha, Upper Flagley, em Yorkshire e Ottery St. Catchpole, em Devon…
— E Godric’s Hollow — completou Longbottom, a voz muito mais forte do que eu me recordava do ano anterior. — Em West Country.
Era óbvia a razão para Carrow, uma Comensal da Morte, não citar o local onde o Lorde das Trevas fora derrotado pela primeira vez por um bebê, de forma tão humilhante. No entanto, um pedaço relutante de giz flutuou e sinalizou o local no mapa, e ela continuou a falar como se a interrupção não tivesse existido.
— É importante frisarmos aqui que o fato de a pureza dessas comunidades, mantida com custo pelas tradicionais famílias mágicas, só reforça a importância de sanarmos a praga da miscigenação. Casamentos com trouxas não somente representam uma possível quebra do Estatuto, mas também são uniões vergonhosas, não naturais e provocam contaminação do sangue mágico. Vejam…
O quadro se apagou completamente, e os pedaços de giz novamente flutuaram e escreveram, para o choque de muitos: “SANGUE RUIM”.
— Os chamados “bruxos nascidos trouxas”, que nada mais são do que ladrões imundos da nossa sabedoria, são frutos de uma mutação grotesca, uma anomalia da natureza. Os sangues ruins…
ergueu a mão e cortou o que a professora dizia:
— Professora, mas…
— De novo me interrompendo, srta. ?
— Perdão, mas acho que seria necessário que a senhora abordasse a explicação para o nascimento de bruxos em famílias trouxas. A teoria proposta por Dunce Tinman, com base nos achados de genética de Gregor Mendel…
— Não pedi sua participação nesta aula, senhorita…
— …que foram realizados por meio de experimentos com ervilhas, enquanto os de Tinman basearam-se em diferentes linhagens de flores de acônito…
— Eu estou lhe avisando,
— …expõe claramente que o gene mágico é, ao contrário do que ocorre na genética trouxa, dominante mas pode ser resistente quando não submetido a algumas condições…
— Menos cinco pontos para a Grifinória! — O rosto de Aleto estava quase roxo, mas se levantou e falou ainda mais alto.
— …então bruxos nascidos trouxas podem ser, na verdade, descendentes de uniões entre trouxas e bruxos abortados, mesmo em linhagens muito antigas…
— Menos VINTE pontos para a Grifinória!
Todos os grifinórios da turma ofegaram em protesto, mas não parava; as ameaças da professora pareciam encorajá-la a continuar, quase gritando:
— …e mesmo que não fosse o caso, uma mutação que ocasionasse um benefício, como a capacidade de realizar magia, seria uma bênção da natureza e não uma anomalia grotesca!
— Ora, cale já a…
sacou a varinha numa fração de segundo e achei que ela fosse azarar a professora. Nenhum feitiço visível cortou o ar… mas a voz de Aleto simplesmente parou de sair de seus lábios.
Um Silencio.
Enquanto a turma toda exibia ruídos de choque, se debruçou sobre a própria carteira, como se quisesse expulsar as palavras de seus pulmões o mais depressa possível, a voz a decibéis de berrar:
— Por isso, se vocês quiserem proferir suas opiniões supremacistas como se fossem verdade absoluta, tenham pelo menos a decência de fingir que estão embasando-as em alguma coisa coerente que não seja um monte de merda!
— CHEGA! — Aleto berrou e um lampejo brilhou de sua varinha na direção de , que arregalou os olhos como se tivesse levado um soco no estômago.
Deixei escapar um grunhido de dor quando minha Marca Negra queimou, mas logo a sensação ficou em segundo plano quando dobrou o corpo e vomitou uma enorme lesma no chão da sala circular de Estudo dos Trouxas.
Todos os sonserinos caíram na gargalhada, e a única imagem que veio à minha mente foi de meu segundo ano, em que Ronald Weasley tentara me atingir com aquela mesma azaração, mas o encantamento ricocheteara nele. Por isso, tive que prender uma risada, e, por azar, foi nesse exato momento em que virou para mim, com os olhos marejados, e cuspiu mais uma lesma ao cair sentada na cadeira.
E eu ri.
Porque sou um IDIOTA.
Aleto Carrow fez o que pôde para se recompor diante dos alunos.
— Já que está tão engajada em participar da classe, srta. , irei informar ao professor Carrow para que você tenha um papel especial na próxima aula dele. — Ela se adiantou para perto da carteira da garota e chutou para longe uma das lesmas que deslizavam por ali. — Agora saia da minha sala.
apanhou sua mochila, se levantou e uma lesma particularmente grande e gosmenta saiu de sua boca, caindo com um ploc sobre os sapatos da professora. Antes que a mulher pudesse ter qualquer reação, a aluna insubordinada já estava porta afora.
Não consegui prestar atenção em mais nada naquele dia. Sabia que precisava encontrá-la para pedir desculpas, mas meu lado rancoroso aflorou o tanto que tinha ficado tolhido nas últimas semanas. Quer saber? Foda-se. Ela tinha passado o verão toda escondida, sem dar sinal de vida, achando que tinha retirado minha Marca Negra e causado minha morte, e nem assim tentou entrar em contato. Depois, quando voltamos para Hogwarts, ela me contou que a missão dela consistia em literalmente brincar com meus sentimentos e depois me submeter a uma magia extremamente instável para remover uma tatuagem de magia das trevas. E eu perdoei. Na primeira semana, ela inventou aquela maldita festa, e eu concordei. Transamos, eu estupidamente confessei que a amava do jeito mais profundo que eu sequer ousava pensar no sentimento, e ela disse que sentia o mesmo. Mas agora… Agora eu ficava em dúvida se era verdade ou um mero artifício para me impedir de sair daquele quarto, sair do meio das pernas dela e do cheiro de Amortentia que sua pele tinha, para evitar que eu encontrasse a porra da Armada de Dumbledore transgredindo regras. Regras as quais era minha função de fazer cumprir. E eu perdoei cada uma das mentiras dela.
No jantar, cheguei cedo e procurei seu rosto entre os ocupantes da mesa da Grifinória, mas não a encontrei. Fiquei até o último momento em que a comida estava servida, e ela ainda não tinha aparecido. Apesar de todos os cenários quase apocalípticos que se passaram por minha mente (será que tinham descoberto a Marca Negra dela?), logo fiquei sabendo que a Grifinória estava tendo treino estendido de quadribol, e que o time tinha ido diretamente às cozinhas para lanchar antes do toque de recolher. Um alívio estranho percorreu meu corpo, junto da realização de que eu gostava demais dela para não me importar.
No entanto, quando fui dormir naquela noite, eu sabia exatamente o que deveria fazer. e eu éramos dois lados da mesma moeda, então eu sabia onde deveria atingir. Estava na hora de ela pagar o preço do jogo em que entrara.

POV

Estava escuro. Uma meia-luz cor de âmbar coloria tudo com um tom delicado de dourado. Meus seios estavam esmagados contra o colchão, e meu corpo tremia com as estocadas firmes que eu recebia. Apesar da fraca iluminação, só fui enxergar quem me dava todo aquele prazer quando mãos grandes me agarraram pelos quadris e me viraram, apertando a área sem muito cuidado.
O teto para mim agora era o peito salpicado por constelações de sardas de Fred Weasley, por onde eu arrastava as unhas enquanto ele ia se mexendo em cima de mim, para frente e para trás, para fora e para dentro, ofegante. Os cabelos pareciam quase tão castanhos quanto os olhos devido ao suor.
— Porra, linda — ele grunhiu, me chamando do jeito que me chamara no casamento de seu irmão.
Ele afundou o rosto na curva de meu ombro com meu pescoço, mordendo e chupando a pele, o próprio rosto ficando mais e mais rosado a cada movimento. Fred era delicado até certo ponto, mas a forma como ele explorava meu corpo com vontade, com as palmas ásperas de quem tinha jogado quadribol desde sempre, me arrepiava toda.
— Mais… — sussurrei. — Mais, por favor…
O ruivo obedeceu, agarrando minhas coxas com mais força, e eu vi que ele se cansava a cada segundo.

Eu estava perto, mas não perto o suficiente para ele conseguir me satisfazer antes de chegar ao próprio limite… E de meus lábios escapou, quase num choramingo, o que eu queria, o que eu precisava:
— Draco…
Os olhos cinzas exibiam uma chama gélida quando se aproximaram do meu rosto, quase brilhando na penumbra enquanto ele desabotoava a camisa, negra como o próprio céu noturno. Ah, sim. Era ele a verdadeira constelação: não na pele, mas no nome e na habilidade ímpar de me fazer ver as estrelas toda vez que me tocava. Fechei os olhos e senti sua boca me tomar, a língua quente tocando a minha e me fazendo gemer mais alto com um simples beijo do que o Weasley conseguira fazer estando dentro de mim.
O som baixo que Fred emitia, quase gozando — agora metendo um jeito rápido, duro, quase egoísta, mas que eu gostei, e muito —, somado ao toque intenso de Draco, foi o suficiente para eu sentir meu corpo se livrando de todas as amarras de pudor.
— Weasley. — Cessando nosso beijo, a voz de Draco, mais rouca e grave que o normal devido ao desejo, alertou o ruivo, que saiu dentro de mim e se aliviou com a própria mão, gemendo quando atingiu o clímax.
Os olhos castanhos dele, pesados pelo cansaço, encontraram os meus. Com um sorrisinho brincalhão, ele limpou a mão e veio para meu rosto. Me deu um selinho e foi descendo os beijos devagar, deixando mais marcas por cima dos desenhos arroxeados que seus dentes já tinham deixado em minhas clavículas. Chegando aos seios, ele envolveu um mamilo com a boca e levou os dedos ao outro, puxando-o levemente sob o olhar atento de Malfoy.
Fechei os olhos, com um misto de sentimentos tomando meu peito. Era inexplicavelmente delicioso, mas… Os dois? Ao mesmo tempo?
O loiro, curvado sobre o outro lado do meu tronco, voltou a me beijar. Chupou meu lábio inferior para si e colocou os dedos em meu pescoço, num afago firme que me fez perder o ar, mesmo sem que ele me apertasse ali.
— Draco… — gemi baixinho, suplicando por algo mais que eu não sabia exatamente o que era.
— Você sabe que eu detesto dividir… — ele murmurou no meu ouvido. — Mas eu sei o quanto você gosta disso…
E sem falar mais nada, desceu a boca até o ápice de minhas coxas, lambendo e explorando… Eu sentia o ouro frio do anel dos Malfoy e a prata gelada do anel da Sonserina roçando nos pontos mais sensíveis do meu corpo, a língua dele circulando e os lábios chupando todos os lugares certos… Era estímulo demais… As bocas dos dois na minha pele fervente, mãos por todo o lugar, e… eu… eu estava… oh, Merlim…


Acordei quase num pulo, com os cabelos suados e uma umidade incômoda na calcinha enquanto sentia o orgasmo se afastando de mim, como água de um rio escorrendo por entre meus dedos.
?
Meu rosto esquentou mais do que eu imaginava ser possível quando Gina afastou as cortinas de minha cama e me encarou com curiosidade. Mal sabia ela que eu acabara de ter um sonho absurdamente erótico envolvendo o irmão dela e meu namorado.
Mas que porra?
— Hã… oi.
— Você vai querer ir comigo pra Hogsmeade ou não?
— Ahn… é… vou.
— Vai ser o primeiro passeio em que a filial da Gemialidades Weasley vai estar aberta, mandei cartas para eles para pedir que viessem…
— Quê?
Puta que pariu, como que eu ia conseguir olhar na cara de Fred Weasley sem lembrar da cena de ele e Draco me fazendo gozar ao mesmo tempo?!
— Honestamente, você não escutou nada que eu falei depois da nossa primeira reunião da AD? Eu sabia que você estava com sono, mas esquecer disso já é demais. — A ruiva bufou e ajeitou a blusinha azul clara que usava. — Eles compraram a Zonko’s, no fim das contas, mas eles não podiam deixar a matriz da loja sem ninguém, então…
— …só Jorge veio? — arrisquei, esperançosa.
— Fred — ela corrigiu.
Soltei um rosnado de frustração, abafado pelo travesseiro.
— Vamos, vamos, vamos — Gina bateu palmas, puxando em seguida meu cobertor de cima de meu corpo. — Se veste logo porque eu quero chegar cedo, com certeza vai ter uma fila enorme na porta.
Obedeci, ainda resmungando. Estava cansada e incomodada; minha menstruação descera no dia seguinte à reunião da AD, o que explicara bastante minhas oscilações de humor. No entanto, continuava chateada por Draco ter rido de mim na aula de Estudo dos Trouxas no dia anterior. Minha garganta ardia por ter gritado com Aleto Carrow e por ter ficado horas vomitando lesmas na ala hospitalar até a azaração se desvanecer. Tudo isso, aliado ao sonho pornográfico que eu tinha acabado de ter logo antes de encontrar um de seus participantes, estava colaborando para que meu mau humor matinal estivesse dez vezes pior que uma TPM.
Sendo assim, não era de se estranhar que eu estivesse tensa e irritadiça enquanto Gina ia abrindo caminho pela enorme aglomeração na porta da Gemialidades Weasley, recebendo olhares feios dos alunos por estar furando a fila.
— Eu sou a irmã deles, imbecis — ela cuspiu para um grupo de garotos do quarto ano que tentaram começar uma discussão com ela. Antes que os moleques pudessem rebater, a ruiva agarrou meu punho e me puxou para dentro da loja.
O lado de dentro era tão colorido, barulhento e cheio de diferentes aromas que demorei alguns segundos para me habituar. Fogos de artifício explodiam pelo teto em forma de animais, fontes jorravam com líquidos coloridos que se envasavam automaticamente, caixas de Kit Mata Aula se empilhavam em quiosques a atraíam a atenção de todos os compradores, prateleiras de Poções do Amor brilhavam em um rosa neon quase venenoso… e Fred Weasley estava em pé à minha frente, de braços abertos e um sorriso no rosto.
O cabelo dele estava um pouco maior e mais bagunçado do que da última vez em que o vira, o crachá com seu nome espetado no paletó piscava em todas as cores do arco-íris e a camisa social estampada estava com os botões de cima abertos e a bainha fora da calça.
— Quanto tempo, linda — ele me cumprimentou, e não consegui conter o sorriso ao me adiantar e abraçá-lo, tentando ignorar a vergonha quando senti as palmas das mãos dele, tão grandes quanto no sonho, se colarem nas minhas costas.
— Porra, eu sou sua irmã — Gina resmungou atrás de mim. — Eu sei que você quer pegar ela e tudo o mais, mas achei que você estivesse com mais saudade de mim.
Em vez de negar a acusação da caçula, Fred apenas riu e foi abraçá-la também, erguendo-a no ar como se não pesasse quase nada.
— Ai, tá bom! Tá bom! Me coloca no chão!
Os gritos dela atraíram a atenção das pessoas em volta, entre as quais estavam Pansy Parkinson e Daphne Greengrass, ambas segurando produtos da linha Bruxa Maravilha. A loira me deu uma piscadinha, mas Parkinson nem pareceu me ver: estava ocupada colocando uma mecha atrás da orelha da namorada e ajeitando o broche de prata que Greengrass levava na gola do casaco.
— E aí, como têm sido as coisas? — o dono da loja perguntou a nós duas, segurando-nos pelas cinturas e nos guiando até a seção de produtos de Defesa Contra as Artes das Trevas. — Imagino que vocês estejam a procura desses itens aqui, considerando o que vêm aprontando em Hogwarts sob o nariz desproporcional de Snape — completou, diminuindo o tom de voz.
— Algumas coisas daqui seriam realmente bem úteis, irmãozinho — Gina admitiu, sorrindo de lado.
— Bom, escolha o que quiser por conta da casa. Tenho o maior prazer em te ceder qualquer coisa que faça aquele xampufóbico se irritar — Ele fez um floreio com a mão em direção às prateleiras. Em seguida, virou-se para mim. — , pode vir aqui um instante?
Engoli em seco. O que diabos ele queria comigo que não podia ser visto pela irmã?
Estava quase falando alguma coisa para dispensá-lo, mas o sininho da porta soou atrás de mim, e me virei por um milissegundo. Ladeado por Crabbe e Goyle, Draco entrou na loja com uma expressão fechada, os olhos indo de um lado para o outro como se estivesse procurando algo — ou alguém. Por isso, voltei a olhar para frente o mais rápido possível e assenti para Fred, seguindo-o para trás do balcão e me abaixando.
Ele me encarou, curioso e divertido.
— O que houve?
— Tô me escondendo de alguém que eu não tô a fim de falar — respondi num sussurro.
— Ah, então vamos entrar aqui — e abriu a porta que dava para os fundos, onde eu imaginava que houvesse o estoque.
Concordei, e logo me vi sozinha com ele dentro do espaço abarrotado de caixas. Todos os alertas de pânico envergonhado se acenderam no meu cérebro, então mais que depressa me virei de costas e andei para o mais longe possível ali dentro do ambiente, em direção a uma mesa. Junto dos papéis espalhados sobre o tampo, meia dúzia de Marcas Negras comestíveis e um sanduíche de carne assada pela metade, estava uma caixa de uma cor profundamente azul, num tom cobalto arroxeado. Passei a mão sobre a tampa lisa.
— Ah, isso aí são algumas coisas novas que chegaram, mas são só protótipos. — Senti sua presença logo atrás de mim, não tão perto quanto já tínhamos chegado um do outro no casamento de Gui e Fleur, mas próximo o bastante para eu sentir calor emanando dele. — Eu e Jorge estamos pensando em lançar uma linha mais… adulta, digamos assim. Uma área restrita da loja, separada por uma linha etária, com esses tipos de brinquedinhos.
Soltei a caixa como se tivesse levado um choque. Ele riu.
— Relaxa, obviamente ainda não foram testados. Mas se você quiser…
— Eu estou namorando — falei, de súbito e muito estupidamente, ao girar nos calcanhares para fitá-lo.
Fred ergueu as sobrancelhas, contendo a vontade de rir.
— …eu ia dizer que eu podia te dar algum deles para experimentar sozinha.
— Ah.
Meu rosto pegou fogo.
— Mas está namorando, é? Interessante. Devo dizer parabéns? É com aquele garoto que você me falou no casamento?
— Bom… sim.
— E, deixa eu adivinhar, é exatamente dele que você está fugindo, porque as coisas não estão funcionando do jeito que você esperava?
— Como sempre, na mosca — tentei brincar, mas minha voz soou estranhamente infeliz.
Ele franziu a testa.
— Posso fazer alguma coisa em relação a isso?
— Tipo o quê? Cobrir ele de porrada?
— Já que você insiste… — Um sorriso torto se abriu no rosto dele.
Dei-lhe um tapa amigável no ombro, repreendendo-o de brincadeira.
— Brincadeiras à parte… Nossa, soei igualzinho ao Percy agora. — Ele passou a mão no cabelo. — Te chamei para conversar porque pensei em algo para te deixar mais animada. — Fred se virou na direção de uma das prateleiras e, depois de vasculhar com o olhar por alguns segundos, apanhou algo que parecia uma caixa de baralho e me entregou.
Abri a caixinha. De fato, havia um baralho lá dentro, e as cartas tinham desenhos coloridos e com elementos modernos nas figuras do valete, dama e rei.
— Você pode usar para o objetivo real dele, claro… Gina é ótima no pôquer, então não recomendo que aposte nada alto contra ela. Mas não é por isso que te dei essas cartas. — Ele tomou-as de minha mão e procurou a que queria, estendendo-a na minha direção. — A rainha de copas tem uma surpresinha para você.
Fred pegou a própria varinha de dentro do bolso interno do paletó, tocou levemente a carta com a ponta e murmurou Juro solenemente não dizer nada de bom.
A imagem da rainha ganhou vida, e ela esticou os dois braços na direção do ruivo, estendendo o quadrado colorido que segurava. Ele virou a carta na minha direção e, maravilhada, puxei o objeto para fora da figura: um pequeno rádio com botões giratórios para trocar de estações e o símbolo da Gemialidades Weasley estampado no centro.
— Proibiram a entrada de rádios em Hogwarts este ano, eu ouvi dizer, então achei que você fosse gostar de uma surpresa escondida como essa para o que vamos fazer.
— O que vamos fazer…?
— O Observatório Potter. Um programa de rádio clandestino que conta com a minha participação, do Lino Jordan, do Shacklebolt, do professor Lupin… e a sua.
Meus lábios se entreabriram com a surpresa.
— Precisamos de alguém de dentro de Hogwarts. Alguém que saiba bem como manter a discrição e consiga as informações necessárias sem ser percebido. Por mais que eu odeie dizer isso em voz alta, deixe o trabalho sujo e as revoltas grandiosas para a Gina e o Longbottom.
Girei a carta da rainha de copas entre os dedos. Aquilo era simplesmente genial. Quem quer que estivesse manuseando o detector de segredos na entrada da escola não teria tempo de verificar cada uma das 52 cartas do baralho uma de cada vez.
— Mas… o que vamos falar? Como vamos ter certeza de que não seremos identificados?
— Vamos usar codinomes, claro, e o ouvinte precisa acertar a estação e a senha de acesso. Além disso, vamos usar uma frequência trouxa protegida por barreiras mágicas, então não vamos poder ser encontrados por trouxas nem por Comensais da Morte.
— Uau, com essa engenhosidade toda me admiro que você não tenha ficado na Corvinal… ou até mesmo na Sonserina.
Fred fingiu uma ânsia de vômito que me arrancou uma gargalhada.
— Tô falando sério!
— Vou fingir que não me senti mortalmente ofendido com o que você acabou de me dizer, e vamos nos encaminhar pros finalmentes — ele disse, e fiquei vermelha com a conotação da última palavra. — Quer dizer…
— Eu entendi, pode continuar.
— Todos os nossos codinomes são com R: Rômulo é o do professor Lupin, porque é o nome do gêmeo de Remo na mitologia romana; River é o do Lee porque o sobrenome dele é o nome de um rio; Royal é o de Shacklebolt porque o primeiro nome dele começa com “King”; Rapier é o meu, porque… Bom, porque eu achei que soava bem.— Ele ergueu as sobrancelhas repetidamente, sapeca. Revirei os olhos. — Imaginamos que você fosse querer algo parecido…
— Pode ser Reina.
Era a palavra em espanhol para “rainha”, e me lembrava de Castelobruxo. Quando anunciei meu intercâmbio para Hogwarts, uma de minhas colegas, Serena Gonzalez, disse que eu seria a rainha do castelo, uma vez que, apesar do nome, nossa escola estava mais para um templo. A piadinha me fez sorrir.
— Perfeito, Reina — ele brincou. — Vamos fazer nossa primeira transmissão na próxima quarta-feira, dia 3 de outubro, tudo bem pra você?
— Perfeito. Mas preciso que você me ensine a mexer no rádio antes, pra que eu possa transmitir também.
— Ah, claro. Funciona como um rádio mágico normal: você gira os botões para ajustar a frequência; o esquerdo transmite e o direito ajusta também o volume. Agora veja. — Fred pegou o objeto da minha mão e o colocou sobre a carta da rainha de copas. Apoiando a varinha logo em cima, ele disse: — Maldito dito.
O rádio sumiu, e me debrucei para olhar o desenho da carta. No colo da rainha, lá estava o retângulo colorido.
— Essa é a frase para escondê-lo de novo. Para pegá-lo é só dizer…
Juro solenemente não dizer nada de bom. Isso me soa estranhamente familiar — comentei. — Harry tem um mapa com o mesmo mecanismo, não?
— Por Merlim, você também conhece o Mapa do Maroto?! — Ele arregalou os olhos, o sorriso se alargando abobadamente. — Por favor, repito meu pedido: casa comigo?
Em vez de ficar envergonhada de novo, apenas ri e o abracei. Fred era daquele jeito; gostava de flertar, mas eu sabia que era algo até inocente. Ele sabia que eu estava comprometida e me parecia o tipo de cara que respeitaria aquilo. A menos, claro, que ele soubesse quem era meu namorado…
Era sobre isso que eu estava refletindo quando ele tinha acabado de beijar delicadamente minha têmpora, e a porta se escancarou, me causando um sobressalto. Sob o umbral, estava um furioso Draco Malfoy.
Draco POV

Deixei cair a caixinha de sapos de chocolate que acabara de comprar para ela na Dedosdemel, minha oferta de paz, e me abaixei para pegar da forma mais digna e não intimidada que pude. O abraço dos dois se desfez, mas Fred ainda enlaçava a cintura de .
Merda. Antes de eu abrir a porta, bem que Pansy me dissera que ela e o estúpido gêmeo ruivo estavam bem próximos. A princípio não acreditei; imaginei que ela estivesse implicando comigo, sádica como era. Infelizmente, as mentiras sonserinas de Parkinson não tinham levado o crédito dessa vez.
— Malfoy — ele disse, quase alegremente.
— Weasley — cumprimentei de volta, mas com muito mais desprezo do que havia em seu timbre.
Fred inclinou a cabeça para o lado, como se analisasse meu rosto.
— Parece que seu nariz se curou bem, depois de Jorge dar uma reformada nele — comentou.
— Ora, seu…
Draco — falou , num tom leve de alerta.
O ruivo franziu levemente a testa e seguiu meu olhar na direção de , que me encarava de volta quase vidrada. Um lampejo de compreensão pareceu acender em seu rosto quando ele escorregou a mão que estava na cintura dela para seus ombros. Deu dois tapinhas e abriu um sorriso.
— Acho que Malfoy quer dar uma palavrinha com você, .
— Eu… — ela começou, mas a cortei sem muita delicadeza.
— Sim, e agradeço se você puder nos deixar sozinhos.
Ele olhou para a garota, como se estivesse buscando a permissão dela para se afastar, e se inclinou para cochichar algo no ouvido dela. A proximidade fez meu sangue ferver, ainda mais quando percebi que tremeu levemente, mas o Weasley saiu pela porta, trombando no meu ombro.
— O que você pensa que está fazendo? — esbravejei antes que ela pudesse abrir a boca, fechando num estalo ruidoso a porta com a sola do sapato.
— Não faço ideia do que você está falando.
, não me provoca.
— O quê? — o canto do lábio dela tremeu em um riso incontido. Ela estava se deliciando com aquilo, com o meu ciúme irracional.
— Vai negar que estava abraçando ele, que estava com as mãos na sua cintura, que você já dormiu na casa dele, que… que… — Travei como um idiota, num misto de raiva e confusão, imagens que eu não queria nem cogitar eram intrusas na minha mente.
abriu um sorriso falso de desagrado.
— Você quer ler a porra da minha mente, é isso?
— Talvez eu devesse fazer isso mesmo — soltei, sem pensar. — Considerando a sua necessidade patológica de mentir pra mim…
O rosto dela perdeu toda a emoção, boa e ruim, e ela me olhou nos olhos, erguendo as sobrancelhas.
— Pois então leia.
Eu sabia que ela não estava falando sério. Sabia que era um desafio, sabia que a resposta certa seria negar, dizer que eu confiava nela. Mas meu ciúme falou mais alto, ribombando tão alto dentro de mim quanto as batidas do meu coração, que lançavam sangue com pressão e deixavam meu rosto quente e vermelho. Relutante, ergui a varinha e murmurei Legilimens.
Como era de se esperar de uma boa Oclumente, as lembranças de eram incrivelmente organizadas. Viajei por imagens dela irritada comigo, que estavam logo no topo, e comecei a cavar a procura dos cabelos ruivos do alvo do meu ciúme. Os dois se conhecendo na casa dos Weasley, a vez que se encontraram na ala hospitalar de Hogwarts quando Ronald foi envenenado por hidromel, o casamento de seu irmão… Mas essa fugiu depressa de meu alcance, sendo sobreposta por outra.
A atitude dela me levara a acreditar que eu não iria ver nada preocupante, então minha surpresa foi dez vezes maior quando apareceu aquela cena, de um sonho que parecia ser recente, dada a nitidez e os detalhes. Era ela, deitada numa cama… com Fred Weasley chupando seus seios, com dois dedos dentro da boca dela, enquanto eu estava deitado de bruços na cama, meu rosto entre suas coxas, e ela gemia e se contorcia como se estivesse sentindo a melhor sensação do mundo.
Meu braço da varinha fraquejou, e o feitiço se desfez.
MAS QUE PORRA?
Meu primeiro instinto foi de berrar, mas me contive em tempo. Bom, aquilo não tinha realmente acontecido. Era só um sonho… Mas ela escolhera me permitir ver aquilo. Sendo uma Oclumente habilidosa como eu já vira ela ser, poderia muito bem ter ocultado aquilo da minha visão, mas ela optou me mostrar algo que nem ao menos era real. Por quê? Era um mistério. Eu estava tão chocado e furioso que demorei a ter discernimento suficiente para balbuciar:
Mas que porra… foi essa?
Minha namorada cruzou os braços.
— Eu não controlo as coisas que eu sonho.
— Tá de sacanagem, né, .
— Ué, eu…
— Você é boa em Oclumência… sabe perfeitamente como fechar sua mente e organizar pensamentos indesejados. E mesmo assim essa MERDA aconteceu enquanto você dormia. — Passei a mão no rosto, me controlando para não gritar. — Você por acaso tem alguma coisa para me contar?
Ela franziu a testa e abriu um sorriso zombeteiro.
— Eu não te devo satisfações do que eu fiz quando não estávamos juntos, Malfoy.
Ah, não.
— Você transou com Fred Weasley?!
— E se tiver?
Sacudi a cabeça, incrédulo.
— Se foi antes do verão, você estava no meio da sua missãozinha de merda pra me seduzir, e enquanto isso ia pra cama com outro. Se foi depois, você deu pra ele já com a Marca Negra no braço. Eu honestamente não sei o que é pior.
— Tá putinho assim por quê? Não é possível que você realmente ache que foi meu primeiro.
Óbvio que eu não achava isso. Não teria como eu ter sido o primeiro dela, sendo que na nossa primeira vez ela pediu pra eu botar com força, sem sentir dor, e não ficou super insegura como uma virgem ficaria. Mas o pensamento incomodou no fundo do meu cérebro. O problema não era ela ter transado com pessoas antes de mim; o problema era ela ter transado com Fred Weasley sendo que ela já me conhecia e possivelmente eu já tinha sentimentos por ela. Era um ciúme irracional e irrefreável, um dragão se remexendo no meu estômago prestes a cuspir fogo que me sairia pelo nariz.
— Eu não tô nem aí pra quem você deu antes de mim — rosnei. — Eu só tô puto porque você aparentemente continua pensando nisso a ponto de aparecer nos seus sonhos!
— Você tá falando como se eu tivesse sonhado só com ele — ela retrucou. — Você estava lá também.
Foda-se que eu também estava lá. Isso só queria dizer que ela não me achava suficiente pra satisfazê-la, que ela precisava de mais um lá pra completar o que realmente desejava.
— Só me responde uma coisa — Dei um passo na direção dela, quase colando nossos troncos. — É nele que você pensa quando se toca?
Os lábios dela se entreabriram, mas não tive tempo de ouvir sua resposta, nem de ler a expressão a ponto de saber se ela estava com medo de responder que sim ou ultrajada com a sugestão porque a resposta era não. Uma dor dilacerante se espalhou por meu antebraço esquerdo, e pelo arfar surpreso dela, a sensação espelhou-se em sua própria pele.
O Lorde das Trevas estava convocando seus Comensais.
enrolou depressa sua manga comprida para cima e viu os contornos da tatuagem em carne viva, como se tivessem acabado de ser queimados. Ela esfregou o local com a outra mão, e senti um arranhão leve passar por minha própria Marca.
— O quê…? — sussurrei, confuso.
— Acho que devíamos voltar para o castelo — disse ela, soando como um pedido. Ao contrário de segundos antes, em que estávamos discutindo de forma tão inflamada, a voz dela estava carregada de medo.
— Vamos então — concordei.
Saímos os dois de dentro do estoque da Gemialidades Weasley, irritados e assustados. Vi o rosto de Crabbe se desviar na direção de , registrando cada nuance de emoção que passava pelo rosto dela. Algo se remexeu dentro de mim. Cada vez ficava mais difícil de manter ele e Goyle sob meu controle, e eu tive quase certeza de que ele daria algum jeito de espalhar aquela informação até que caísse nos ouvidos dos Carrow e Snape.
Essa não era a questão principal, no entanto. O Lorde das Trevas estava nos invocando? Por quê? Ele estendera o chamado até Hogwarts, mas seria o chamado também para mim ou só para os professores? O fato de a queimação não ter sido tão intensa quanto a que eu estava acostumado a sentir me deu a pista de que a segunda opção era a correta.
Outro ponto que me preocupara fora o toque de na própria Marca, a ponta da unha que raspou no desenho e que eu senti em minha própria pele. Não era assim que as Marcas Negras funcionavam; eu não conseguia sentir o que acontecia com as tatuagens de outros Comensais. Obviamente a de era diferente, mas como exatamente? E quais seriam as implicações disso?
Com tantos pensamentos na cabeça, nem reparei que tínhamos chegado a Hogwarts e eu ainda apertava com força o punho dela, pois estivera ajudando-a a caminhar pela lama sem escorregar. Seu rosto se vincou em desconforto.
— Pode me soltar já, eu não vou sair correndo para os braços do Weasley, não — falou acidamente.
Encarei a garota. Sua expressão era de enfado, mas o medo não estava totalmente oculto nos olhos . Expirei com força e balancei a cabeça, apontando a escadaria com um gesto pra que ela fosse logo para sua sala comunal, já que parecia estar incomodada com minha presença. Vi trincar a mandíbula e se afastar a passos duros, pulando os degraus rumo à Torre da Grifinória.
Meu rumo, porém, era outro. Eu precisava entender o que havia de peculiar sobre a Marca Negra de minha namorada, porque, apesar de estarmos no meio de uma crise, magia das trevas era algo muito sério para eu simplesmente ignorar em uma picuinha idiota de casal adolescente. Por isso, desci para as masmorras até entrar na sala comunal da Sonserina e encontrar em meu malão o caderno de couro que minha tia Bellatrix me dera quando voltei para casa depois de Dumbledore ser morto. Dias depois de ter sido torturado por meu fracasso, meu corpo ainda tremia com espasmos remanescentes do uso da Cruciatus quando ela me entregou o presente de aniversário atrasado. “Para te animar”, ela dissera, “sei o quanto você gosta de estudar sobre a magia das trevas, e seu conhecimento poderá ser de grande uso ao Lorde.”
Sim, eu realmente gostava de entender o assunto, mas de uma forma diferente da que meu pai e ela se interessavam. Eu via as Artes das Trevas como algo belo e mortal, como um inferno ardente cujas chamas são convidativas de um jeito cruel. Já ela… tia Bella não se importava nem um pouco em dançar com o próprio demônio.
O caderno todo preenchido e decorado com fios de prata era o diário de Bellatrix Lestrange, na época Black, desde sua formatura em Hogwarts em 1968 até pouco depois da primeira derrota do Lorde das Trevas, por volta de 1982. Talvez fosse menos um diário e mais um registro de relatórios, pois continha anotações detalhadas de todos os feitiços das trevas, formas de tortura e maldições criadas pelos Comensais da Morte.
As páginas tinham estado praticamente intocadas por mim desde que eu recebera o presente, salvo pelas vezes em que eu o folheara febrilmente à procura de encantamentos de localização para encontrar , à época presumida morta. Abri o caderno na primeira página preenchida, depois dos dizeres “Bellatrix Druella Black” elegantemente pintado na folha de rosto. Era uma entrada de 29 de junho de 1968.

Minha formatura e ritual da Marca Negra. Estou extasiada. O Lorde me disse o quanto está orgulhoso de mim e, como prometido, dançou comigo no baile depois da cerimônia de graduação.

O que ela escrevia sobre a própria vida era sempre daquele jeito: frases curtas, sentimentos definidos em palavras únicas e menções especiais a cada instante que o Lorde das Trevas lhe dava qualquer migalha de atenção. Já as anotações sobre a magia em si eram feitas com esmero, pontuando todos os aspectos e etapas do procedimento ao qual ela fora submetida naquele dia. Ler uma descrição tão específica e fria do ritual pelo qual eu mesmo tinha passado me revirou o estômago, mas sabia que precisava ler.

Primeiro de tudo, um pentagrama rúnico deve ser traçado no chão com uma poção de tintura, composta por mercúrio e peçonha de víbora. Uma vez desenhado, o novo Comensal deve posicionar-se ao seu centro, diante de uma base de pedra, na qual estão posicionados os objetos a serem utilizados na etapa a seguir.
O ritual começa com a declaração de consentimento. Milorde explicou como isso é essencial para que a Marca seja efetiva. Nada mais natural: sei que rituais de magia das trevas que envolvem a virgindade como elemento corruptível precisam do consentimento, e funcionam mesmo em bruxos ou bruxas que já tenham tido relações sexuais, mas que não foram consentidas.
Essa declaração é feita, obviamente, com sangue. Nada mais apropriado, considerando que é por sua pureza que vem o verdadeiro poder. O aspirante a Comensal deve cortar a si mesmo, demonstrando sua livre e espontânea vontade, com uma adaga de prata forjada por duendes; mais especificamente, uma de cabo cravejado de ônix que foi dada de presente ao Lorde por meu pai, e que foi devolvida a mim, herdeira dos Black, após o ritual. O corte deve ser feito sobre a linha da vida da palma da mão, e o sangue que brotar deve ser derramado cuidadosamente, gota por gota, na taça dourada que pertence a milorde.
Uma vez cumprida essa etapa, é necessária a introdução do elemento corruptível, comum a todos os rituais de magia das trevas. Quando estava elaborando a tatuagem e o processo para implantá-la, o Lorde me contou que cogitou várias opções: flores-de-lis brancas, dentes de leite ou até mesmo a virgindade em si. No entanto, encontrou problemas em todas elas: respectivamente, eram inespecíficas demais; difíceis de conseguir, pois nem todos os pais guardam os dentes de leite dos filhos por décadas; e, bom… Obviamente, alguns Comensais já eram casados ou tinham cometido o erro de se relacionar antes do casamento. (Considero uma ofensa absolutamente grave e irresponsável fazê-lo, uma vez que especialmente jovens de sangue puro poderiam acabar gerando bastardos indesejados e sujos, de parentesco repreensível). Por isso, o elemento corruptível escolhido foi uma lembrança.


Por um instante, senti meu coração errar uma batida. Eu tinha perfeita consciência disso. Lembrava de ceder uma lembrança quando tatuei minha Marca Negra… mas aquela memória fora esquecida, perdida, corrompida por magia das trevas e recolocada em minha pele e não mais em minha mente. Naquele momento, senti uma espécie de luto por algo que eu nem sabia mais o que era.

Quanto mais feliz e pura a lembrança, mais eficaz é o ritual, pois dá mais espaço para que a magia penetre. (E, honestamente, não ligo para o que abri mão; que memória idiota poderia valer mais do que a aliança com o bruxo mais poderoso da história?). A lembrança em sua forma magiplasmática é derramada sobre o sangue dentro da taça, e todos os Comensais presentes se reunem em volta do objeto e conjuram Fogomaldito para atear fogo às substâncias, criando uma espécie de pira. Com isso, o próprio Lorde das Trevas enuncia o encantamento da Marca Negra (“Morsmordre”) e o contorno da tatuagem se desprende em fogo no ar. O novo Comensal deve estender seu antebraço esquerdo e, com a mão direita, direcionar a figura ardente para queimar a própria pele. A dor é desagradável, mas aguentei bem: minha vontade de me unir à causa superou qualquer desconforto físico. Enquanto o bruxo mantém o fogo desenhado sobre o braço, deve manter sua mente aberta a milorde, que utiliza Legilimência para vasculhar seus pensamentos, à procura de indícios de uma possível traição. Uma vez pronta a análise, o Fogomaldito é dissipado pelos Comensais e o ritual está pronto.
Cada Marca Negra tem sua própria assinatura mágica, e, portanto, é completamente única. Essa característica foi desenvolvida de maneira a evitar compartilhamento tátil, ou seja, que as tatuagens ficassem interligadas e seus portadores tivessem sensações compartilhadas.
Como qualquer tipo de magia, a Marca não é uma exceção à Segunda Lei Fundamental da Magia formulada por Adalberto Waffling, podendo ser revertida unicamente pela palindromização do ritual, isto é, sua execução na ordem exatamente inversa. Devem ser utilizados os mesmos objetos e participantes para tanto. No entanto, isso se mostra inviável devido à natureza do elemento corruptível: por ser uma lembrança e, portanto, extremamente volátil, esta deveria ser substituída por uma de ainda maior felicidade e pureza, o que é impossível considerando a concentração de magia negra infusionada no Comensal. Essa também é a explicação para o fato de Comensais da Morte serem incapazes de produzir Patronos. (Mais uma vez, algo totalmente irrelevante. Quem liga para bichos idiotas de luz prateada quando os próprios dementadores se curvam ao meu mestre?).


Engoli em seco e fechei o caderno. Eu nunca conseguira produzir um Patrono, porque quando comecei a cursar o N.I.E.M. já estava com a Marca Negra, tendo, portanto, magia das trevas demais para permitir uma magia tão pura quanto um feitiço daqueles. Meu conforto era que também nunca conseguira… apesar de eu ter tido a impressão de que ela usara um para chamar Snape quando Potter quase me matou no banheiro da Murta. Não sabia, porém, sua forma ou nem mesmo se era corpóreo; naquele momento, eu só queria que tudo passasse… que tudo acabasse… e parecia digno que acabasse nos braços dela.
No entanto… Tia Bella enfatizara muito a questão do consentimento. Será que foi isso? Fazia sentido. A ausência do consentimento causara um defeito na assinatura mágica, duplicando-a e proporcionando a seus portadores um indesejado compartilhamento tátil. Apesar da gravidade daquilo, no fundo senti vontade de rir diante da situação: sem saber, conseguira burlar um encantamento arquitetado pelo próprio Lorde das Trevas… com puro amor. Amor que ela sentia por mim e que eu sentia por ela e que parecia ter-nos condenado em vez de redimido.
Coloquei o caderno debaixo do travesseiro; mais tarde, quando fui deitar à noite, a lombada dura e as pontas revestidas com pequenos triângulos de prata espetaram minha nuca, mas não era aquilo que me mantinha acordado. O que me preocupava era que talvez aquele não fosse o único problema de sua Marca. E o funcionamento da pulseira de pedra azul também era um mistério para mim. Onde a conseguira? Quais eram suas propriedades?
No dia seguinte, no café da manhã, os alunos do sétimo ano foram avisados pela professora McGonagall que os professores Carrow estariam ausentes de Hogwarts durante aquela semana por motivos de força maior, e que por isso as aulas deles seriam substituídos por períodos extras de Feitiços e Transfiguração. Sendo assim, me encaminhei para a sala do professor Flitwick logo depois do café da manhã, sentindo uma comichão de ansiedade sob a pele.
Então a queimação que eu e tínhamos sentido na Marca Negra no sábado realmente era um chamado de Voldemort para Hogwarts. Mas por quê?
— Hoje, daremos uma pausa nas atividades práticas de canalização por cristais — começou o professor de Feitiços —, já que a maioria dos senhores já obteve algum sucesso nos encantamentos.
estava sentada várias fileiras à minha frente, mas mesmo de longe pude ver que ela ficou tensa. Era uma das poucas que não tinha conseguido realizar nem um mísero Feitiço de Levitação usando alguma das pedras, e eu sabia que aquilo feria profundamente seu ego. Coloquei um Chicle de Baba e Bola na boca, já antegozando o que iria fazer.
— Abram seus livros na página 139 e podem ler o capítulo todo — disse Flitwick. Percorri a ponta do dedo pela lombada do livro, mastigando o chiclete e observando pelo canto do olho. Sim, eu estava prestes a ser imaturo, mas ela merecia. sabia jogar e apreciava uma vingança tanto quanto eu, e apesar de toda a raiva que sentira naquele dia na biblioteca, em meu íntimo aquela briguinha era quase… revigorante.
Li páginas e páginas sobre as propriedades de cada cristal: a tranquilidade das ametistas, a destruição radical que a moldavita poderia causar em um bruxo despreparado, e o poder desconhecido e incerto dos diamantes mágicos, diferentes das meras pedras bonitas usadas em joias trouxas. Passei folhas finas como papel, examinando figuras sem muito interesse, até chegar exatamente ao meio do capítulo, pois assim eu saberia que estaria absorta o suficiente no volume, diante da ânsia de conseguir por em prática aquela teoria.
Levantei com discrição, fingindo ajeitar a capa, e fui em direção ao canto direito na frente da sala, onde uma lata de lixo ocupava boa parte de uma prateleira. Distraída pela leitura, nem ela e nem ninguém notou quando apontei a varinha em sua direção e sussurrei Auris Sonorus. Joguei o chiclete mascado na lixeira e voltei ao meu lugar com toda a calma. Era difícil distinguir se o gosto doce em minha boca era da goma ou da vitória iminente.
— Eu estava pensando — comecei, com a voz mansa, e pulou na cadeira — no que eu faria com você quando te levasse à Mansão Malfoy pela primeira vez.
Ela estremeceu com o susto e virou a cabeça para o fundo da sala. Sorri para ela, maldoso e malicioso, enquanto observava ela juntar as peças em sua mente. Meus lábios formavam as palavras, mas o som não atravessava a sala até ela; na verdade, soavam dentro de sua cabeça.
— Eu te foderia em cada móvel da minha casa.
cruzou as pernas.
— Primeiro eu ia começar na minha cama. Bem devagar, bem fundo, até você estar choramingando e implorando pra eu botar com força, igual você pediu na Sala Precisa…
Ela puxou o colarinho da camisa e olhou de esguelha para mim. Apenas continuei falando, sabendo que só ela me ouvia, lendo meu livro como se nada estivesse acontecendo.
— Então eu te levaria para o andar de baixo, para o salão de baile, e te deixaria sentar em mim no banco do piano, enquanto você fica toda suada e vermelha como sei que está agora. Você fica mil vezes mais gostosa quando monta no meu pau,
Ela levou as duas mãos ao rosto, tentando esconder a óbvia vergonha, e mudou de posição na cadeira.
— Quando você gozasse, eu te levaria para a biblioteca, já que você me deixou na vontade no outro dia, e te comeria por trás contra uma estante, puxando seu cabelo e ouvindo você gemer alto, até você não aguentar mais ficar em pé…
Vi os dedos dela se fincarem na carne da coxa.
— Eu só te daria um intervalo quando meus pais aparecessem para o jantar. Mas até nisso eu pensei, sabia?
Minha pele começou a esquentar um pouco, o sangue subindo escaldante pelo pescoço, mas não chegava nem perto de como ela estava: mal parava quieta, tentando se aliviar contra o assento duro da cadeira.
— Eu poderia botar a sua calcinha para o lado e te dedar por baixo da mesa, sentindo o quão molhada a sua boceta estaria, já com saudade do tanto que eu te fodi mais cedo. Te interromperia enquanto você estivesse contando ao meu pai como nos conhecemos ou qualquer porra desnecessária do tipo… E você teria que fingir que se engasgou com o vinho dos elfos, mas na verdade são os meus dedos que te fazem perder o ar, não é?
Mesmo de longe, vi os dedos trêmulos de abrirem o botão da capa do uniforme e a deixaram escorregar por seus ombros, visivelmente acalorada. Ri baixo.
— Ah, olha só pra você… Toda vermelha e incomodada… Com calor, amor?
Ouvi ela me xingar em português, descruzando as pernas só para cruzá-las de novo.
— Porque eu ainda estou longe de terminar… Quando terminasse a sobremesa, minha mãe te levaria para o quarto de hóspedes, mas eu conheço você, … Mesmo toda inchada e dolorida, ia querer mais, e ia dar um jeito de escapar para o meu quarto de madrugada, e eu ia te comer de novo enquanto você chupa meu dedo para não gritar. E chupa do jeito que eu quero que você faça no meu pau.
se levantou abruptamente da cadeira, atraindo os olhares de toda a turma.
— Srta. , está tudo bem? — o professor Flitwick questionou, encarando-a com preocupação.
— Não estou me sentindo bem, professor.
Murmurei “Finite” e me levantei também.
— Professor, sou o monitor chefe, posso acompanhá-la à Ala Hospitalar.
— Claro, claro — Flitwick fez um gesto displicente com a mão.
— Não precisa, Malfoy — ela resmungou entredentes, colocando o material na mochila.
— Ah, por favor, eu insisto. — Caminhei até sua carteira. Minha mão esbarrou no dorso da dela, que se afastou bruscamente. — Vamos.
Assim que estávamos longe o suficiente, agarrou minha gravata e me puxou para trás de uma coluna de pedra, ocultando nós dois dos eventuais passantes.
— Que porra foi essa? — ofegou, puta da vida.
— Você achou mesmo que eu ia aguentar calado o que você fez comigo na biblioteca? — Falei mansamente enquanto minha mão subia por baixo de sua saia, sentindo o suor entre as pernas. — Ou a sua provocaçãozinha patética com o Weasley?
— Draco…
— Eu já conheço seu corpo, . E eu sei que você quer o meu… — Dedilhei a costura da calcinha dela e deslizei para baixo da roupa íntima. Ela fechou os olhos para conter a súplica, e a expressão de prazer torturado dela me deixou duro na hora. — Na verdade, eu sei que você precisa do meu.
— Você precisa do meu também — arfou, puxando-me para perto dela pelo cinto, sentindo minha ereção prensada contra sua coxa, agonizantemente perto de onde ela queria que eu me enterrasse. — Por favor…
— Implorando, ? — impliquei, sentindo sua excitação melar meus dedos.
— Malfoy, para com isso…
— Você quer aqui? — Bruscamente, colei meu tórax no dela, apertando seu corpo na parede. — Agora?
— Não importa… Eu só... — Interrompi sua frase, bem como disse que faria, enfiando dois dedos de uma vez dentro dela. Seu corpo se contorceu contra o meu, num espasmo indeciso entre tentar se libertar e buscar mais contato. — Ah, por Merlim...
— Agora me fala… em quem você pensa quando está com tesão? Em mim ou no…
— Cala a boca — ela rosnou, mordendo meu lábio inferior com força até eu gemer de dor.
Ela era tão má quanto eu e isso me deixava maluco.
— Porra, como você fica molhada rápido… — grunhi em seu ouvido, mexendo os dedos dentro de e lhe arrancando um gritinho baixo. — Você quer que eu te foda aqui, ?
Ela conseguiu forças para apanhar a varinha e lançar um Abaffiato ao nosso redor, e fez que sim com a cabeça, inebriada com meu toque.
— Ah, é? Você vai precisar ficar bem quietinha… Será que você aguenta? — A resposta dela não saiu; só um gemido fraco soou.
Não posso negar que minha cabeça girou com a vontade de arrancar a calcinha dela e deixá-la tão dolorida quanto eu queria fazer em todos os lugares da minha casa. E senti-la daquele jeito, encharcada em volta dos meus dedos, me apertando a cada contração de prazer, era um verdadeiro teste ao meu autocontrole... Ainda mais por estar tão rendida, tão entregue, tão minha... Como nunca estivera.
Mas se tinha uma coisa que eu gostava mais do que gozar com , era ganhar o jogo de . E foi por isso que, quando vi que ela estava quase em seu limite, tirei as mãos dela e dei um passo para trás.
— Não… — protestou, incoerente. — Não, não…
— Sim — contrariei, segurando-a pelo queixo enquanto chupava os dedos que estiveram dentro dela havia pouco. — Sim, porque você fez o mesmo comigo, e ainda me botou ciúmes de propósito.
— Eu não… Amor, por favor…
— Ah, agora você lembra que eu sou seu namorado? — debochei, voltando a prensar seu corpo contra a pedra, de forma que o volume duro em minha calça se pressionou num ponto que fez ela expirar com força. — Boa sorte se virando sozinha, amor. E quando você se tocar, espero que pense só em mim a partir de agora.
Com um sorriso vitorioso, peguei sua mochila e a coloquei em seus pés, sumindo a passos largos pelo corredor.


Capítulo 11

POV

Mesmo dois dias depois, eu ainda estava puta da vida com Draco Malfoy.
Tudo bem, seguindo algum tipo de lógica deturpada da cabeça dele, talvez eu realmente tivesse merecido ter sido deixada na mão, porque, afinal de contas, quem começou aquele jogo fui eu. Mas mesmo assim eu estava furiosa. Furiosa de ter pedido pra ele me tomar ali, naquele corredor, naquela posição, e ele ter olhado nos meus olhos e tirado as mãos de mim. O brilho frio que se acendeu nas íris prateadas, o gelo que se sublimou em vapor escaldante de vingança assim que ele notou meu desespero e o quão rendida eu ficara por seus dedos e palavras… Tudo me fazia querer berrar.
Não foi diferente na aula seguinte de Feitiços, na quarta-feira. Era a data normal da disciplina, e para meu desagrado, tínhamos voltado às aplicações práticas. Quando Draco conseguiu realizar um maldito Feitiço Abridor de Portas com um pedaço de ônix, o mesmo que eu tentara usar em aulas anteriores, só faltei soltar um rosnado de ódio, que se exacerbou ainda mais quando o professor Flitwick concedeu cinco pontos à Sonserina pela proeza.
— Pelo visto você não se concentrou na aula passada, não, ? — O desgraçado ainda teve a pachorra de me provocar, pousando a pedra negra que encantara em cima de meu livro aberto. — Precisa de aulas particulares?
— Deixe ela em paz, Malfoy — rebateu Neville, que estava do meu lado na carteira.
Draco se virou para meu amigo com um sorriso preguiçoso no rosto fino, mas os lábios vacilaram. Parecia ter se lembrado de algo ao olhar para Longbottom, e desistiu de continuar a conversa. Pegou seu cristal preto de cima de minhas anotações e se afastou.
— Eu sei que vocês ficam e tudo o mais… não que eu tenha nada a ver com isso, não me entenda mal… mas ele está perdendo a noção — resmungou Neville, ainda fitando Draco com uma expressão de irmão superprotetor, que antes daquele verão eu certamente diria que não condizia nem um pouco com ele.
Apenas acenei devagar com a cabeça. Concordava, mas sabia que a chama daquela confusão fora acendida por mim.
Saí da aula mais cedo do que nos outros dias da semana, porque quarta era meu dia com mais horários livres, almocei no Salão quase vazio e fui em direção à biblioteca. Draco continuava distante, Neville e Gina viviam confabulando e os demais alunos estavam totalmente assoberbados de conteúdo, então ficarmos de papo não era uma opção no momento. A melhor companhia — e a mais proveitosa nas circunstâncias — seriam os livros.
Tirei de minha mochila a pilha de livros que pegara da última vez, sem saber exatamente por onde começar e como qualquer um deles poderia ter relação com… bom, com o que quer que fosse que Dumbledore queria me dizer com o livro dourado.
Enquanto eu organizava as folhas nas quais vinha anotando as diferentes informações e referenciando de onde eu tirara cada uma, Lilá Brown chegou e se sentou na outra ponta da longa mesa onde eu estava. Ela me cumprimentou com um aceno de cabeça sem graça, que eu retribuí no mesmo entusiasmo, e foi buscar algum livro nas prateleiras.
Eu me sentia mal por Lilá, mesmo. Ela claramente ficara triste com toda a situação de Rony e Hermione do ano anterior, e eu provavelmente tinha alguma parcela de culpa naquilo: queria muito que meus amigos ficassem juntos, e precisava admitir que fora um tanto babaca com ela quando Harry estivera sob o efeito da Felix Felicis. E agora… eu conseguia enxergar o quão mexida ela ficara com tudo aquilo. Apesar de eu, Gina, Neville e Luna termos ideia, em diferentes níveis, do que motivara o trio de ouro a evadir Hogwarts em seu último ano, Brown permanecia no escuro. E eu tinha minhas dúvidas a respeito do status de seus sentimentos por Rony Weasley; provavelmente estavam longe de ser extintos.
A despeito de tudo aquilo, Lilá ainda tentava manter algum vestígio de normalidade: ainda usava suas faixas de cabelo lilases, usava perfume de bebê e pintava as unhas com aplicações intrincadas de borboletas. Naquele dia, sua tiara era ornamentada com flores frescas de lavanda. O aroma característico se entranhou na minha mente e acabei decidindo por começar lendo um dos livros que separara, Guia celta das propriedades mágicas de gimnospermas, uma escolha bem aleatória e provavelmente a mais chata de todas, mas precisava começar de algum lugar.

Gimnospermas são plantas que, como o próprio nome (que significa “semente nua”) indica, não possuem frutos envolvendo as sementes. Já as angiospermas (“sementes na bolsa”) produzem flores e frutos e suas sementes ficam em seu interior — os exemplos mais notáveis para o preparo de poções e rituais de encantamento são crisântemos, asfódelos e narcisos (esta última flor tendo especial simbolismo mágico devido ao mito de sua criação).

Parei já no primeiro parágrafo da introdução. Mito de sua criação. Então eu realmente estava no caminho certo. Talvez realmente a flor tivesse alguma coisa a ver com aquilo.
Meus olhos se desfocaram brevemente, transformando os blocos de texto em borrões difusos enquanto meu cérebro usava as ilustrações às margens da página como plano de fundo para novas ideias. Por que a resposta para aquele enigma não podia ser como uma semente nua daquelas, que começava como algo pequeno e complexo, mas já tinha como predestinação criar raízes, ramos e folhas de árvore?!
Árvore… Árvore. A palavra “narciso” impressa a tinta preta na página saltou novamente a meu olhar, e fiz a primeira conexão que fez o fôlego voltar a meus pulmões.
Com uma expectativa eletrizante subindo pelo peito, voltei à mochila e peguei os outros livros, procurando entre eles até encontrar o que queria. Era um exemplar encadernado em couro preto e ricamente adornado com ouro, e suas folhas eram mais grossas do que a dos outros exemplares. Na lombada, o título Toujours Pur: a tradição de pureza sanguínea na Europa dividia espaço com o número 2 do volume e os dizeres “Idade Moderna a Contemporânea”. Abri o livro e comecei a ler a introdução.

O termo “sangue puro” refere-se a uma família ou indivíduo que não possua sangue trouxa (não mágico). Tal conceito é geralmente associado a Salazar Slytherin, um dos fundadores da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, cuja aversão a ensinar qualquer um com parentesco trouxa culminou em sua ruptura com os outros três fundadores, bem como seu afastamento da instituição.
A discriminação de Slytherin com base em parentesco era considerada uma visão incomum e errônea pela maioria dos bruxos de seu tempo. A literatura contemporânea sugere que bruxos nascidos trouxas eram não somente aceitos, como frequentemente considerados particularmente notáveis e detentores de um dom especial.
A opinião pública bruxa passou por uma considerável revolução quando o Estatuto Internacional de Sigilo foi efetivado em 1692, quando a comunidade mágica entrou na clandestinidade voluntariamente como consequência da perseguição de trouxas. Tal cisma configurou um período traumatizante para bruxos e bruxas, e casamentos com trouxas caíram aos níveis mais baixos já registrados, principalmente por conta do medo de que casamentos mestiços ocasionariam inevitavelmente em quebra de sigilo e, por conseguinte, séria infração da lei bruxa.
Sob tais condições de incerteza, temor e ressentimentos, a doutrina sangue puro começou a angariar seguidores. De maneira geral, aqueles que a adotaram eram os mesmos que vigorosamente se opuseram ao Estatuto Internacional de Sigilo, pleiteando em vez disso uma guerra contra os trouxas. Cada vez mais bruxos pregavam que a casamentos com trouxas não somente representavam uma possível quebra do Estatuto, mas também que tais uniões eram vergonhosas, não naturais e provocariam “contaminação” do sangue mágico.


Fiz uma careta. A aula patética de Aleto Carrow fora uma exata citação daquela crença nojenta.

Na realidade, de acordo com a Tratado de Genética Mágica de Dunce Tinman, publicado em 1859, o contrário parece ser verdadeiro. Quando famílias aderiam consistentemente à prática de casamentos interfamiliares ou dentre um grupo muito restrito de bruxos, incapacidades físicas, mentais e mágicas pareceram resultar.
Haja vista que casamentos entre trouxas e bruxos tinham sido comuns durante séculos, aqueles a partir de então autodescritos como “sangues puros” dificilmente teriam uma proporção maior de ancestrais mágicos do que aqueles que não o faziam. Chamar-se de sangue puro era mais precisamente uma declaração sociopolítica, em que demonstrava-se rejeição a qualquer tipo de interação consanguínea com trouxas, considerando-a repreensível, e não uma afirmação de cunho biológico.


Virei a página com vontade de rir. Acho que o cérebro de Draco implodiria se ele descobrisse que provavelmente um bruxo mestiço como Harry tinha tanto sangue mágico quanto ele.

Numerosos trabalhos de procedência duvidosa, publicados no início do século XVIII e bebendo da fonte dos escritos do próprio Salazar Slytherin, fazem referência a supostos indicadores de pureza de sangue, além do registro de árvores genealógicas. Os mais comumente citados eram: demonstração de habilidades mágicas antes dos três anos de idade, manejo eficiente precoce (antes dos 7 anos) de vassouras, aversão a porcos ou a quaisquer indivíduos que tendessem a tais criaturas (por serem consideradas notoriamente não-mágicas e difíceis de encantar), resistência a enfermidades tipicamente infantis, notável beleza física e uma repulsa a trouxas mesmo em bebês sangue puro, o que seria alegadamente observado por sinais de medo e nojo em suas presenças. Estudos sucessivos produzidos pelo Departamento de Mistérios do Ministério da Magia britânico provaram que tais supostos sinalizadores da pureza de sangue não possuem qualquer embasamento empírico ou científico, mas os apoiadores da doutrina supremacista continuam a citá-los como evidência de seu status superior dentro da comunidade bruxa.
No início dos anos 1930, a Recensão da Pureza Sanguínea foi publicada anonimamente na Inglaterra, que listava as 28 famílias de sangue verdadeiramente puro, conforme julgadas pela autoridade que compôs o texto. Seu objetivo era “ajudar as grandes famílias a manter a pureza de suas linhagens. As denominadas “Sagradas Vinte e Oito” tinham a Casa dos Black como mais a proeminente e a unificadora de quase todas as outras.
As famílias listadas na Recensão que se declararam abertamente contra o “título”, afirmando com orgulho que se relacionavam e se união com trouxas, foram consideradas “traidoras do sangue”, estigma que perdura até os dias atuais.


Fui para a página seguinte, onde uma lista das 28 famílias estava impressa e adornada com ouro nas laterais da página. Ao passar novamente, havia uma página dupla com uma intrincada árvore genealógica. Isso. Como pude ser tão burra? Árvores genealógicas!
No topo, o título era “A Nobre a Mui Antiga Casa dos Black”. Meus olhos imediatamente desceram pelo ramo que eu sabia que daria em Draco, mas não encontrei seu nome lá. Estranhando, busquei a prima dele, Ninfadora Tonks. Também não estava lá. Assim, voltei para a folha de rosto do livro e chequei o ano da edição; era 1963. Nenhum dos dois era nascido ainda.
Eu já conhecia bem o lado Black de Draco, então folheei o volume até chegar à página da árvore genealógica da família Malfoy. Lá estava, bem no final, Abraxas Malfoy, unido a Linnea Malfoy (née Selwyn), tendo dado origem a Lúcio Malfoy… e Pandora Malfoy.
Estranho. No meu dossiê recebido para a missão não constava essa tia de Draco. E o nome me soava estranhamente familiar…
Meu coração se acelerou subitamente. Sim, óbvio que o nome era familiar. Estava no meu livro dourado de mitologia; uma breve menção no fim do conto sobre o nascimento de Atena.
Peguei o volume de novo, folheando o mais rápido que podia com as pontas dos dedos trêmulas. Isso. Pandora fora criada por Hefesto e Atena, e tentada por Zeus com uma caixa que continha todos os males do mundo. Sua curiosidade a fizera abrir o recipiente e liberar tais moléstias pela Terra, mas o arrependimento imediato a permitiu manter a esperança ainda presa.
Mas o que caralhos isso queria dizer?
Tirei meus olhos cansados da página e me concentrei em respirar fundo para diminuir os batimentos cardíacos. Ok, havia um padrão se repetindo ali. Já era o segundo nome de alguém da família de Draco que eu encontrava no livro: primeiro sua mãe, agora sua tia, cuja existência eu nem ao menos sabia… Isso queria dizer que a chave para derrubar um regime supremacista de sangue estava nas próprias famílias sangue puro? Nada parecia fazer sentido, tudo me soava contraditório e já estava na hora de meu treino de quadribol.
Aliviada por já ter algum progresso, mesmo que eu ainda não conseguisse compreendê-lo, fui até Madame Pince e devolvi todos os outros livros que tinha pego quando fizera a busca por “narciso”. Coloquei o exemplar de Toujours Pur dentro da mochila e fui trocar de roupa no dormitório.
O treino não foi tão bom quanto o último tinha sido; estava tão distraída que acabei levando um balaço na cabeça. Massageei o couro cabeludo fazendo uma careta para Coote, que me deu um sorriso encabulado em resposta. Pelo menos Gina fez um bom trabalho ao fazer as vezes de apanhadora rival para que eu pudesse simular a sensação de efetivamente disputar o pomo com outra pessoa.
Depois de um bom banho e de remoer sob o chuveiro se eu deveria ou não engolir meu orgulho e ir procurar Draco no dormitório da Sonserina, preparei minha mochila com os materiais necessários e saí da sala comunal da Grifinória pouco antes da meia noite, em direção ao ponto mais alto de Hogwarts, a torre que fora palco da morte de Dumbledore.
A aula de Astronomia no nível NIEM consistia em um ano só, então os alunos podiam escolher cursá-lo no sexto ou no sétimo ano. Como no ano anterior eu estava focada na missão e planejava fazer meu último ano em Castelobruxo, não me inscrevera na disciplina, então agora queria cursá-la na vã esperança de conseguir uma resposta à minha profecia.
Era evidente como todos os alunos pareciam pouco à vontade, indecisos entre colarem as costas às paredes ou tentarem se aglomerar ao centro da torre, certamente cada um montando na cabeça sua própria versão de como os fatídicos acontecimentos daquela noite tinham se desenrolado. Teria Dumbledore confiado em Snape e sido atingido covardemente por uma Maldição da Morte a suas costas? Teria o diretor sido empurrado e atingido o chão antes de morrer, sentido a dor de todos os seus ossos quebrando? Teria Draco assistido tudo sem remorso? Teria ele confessado a Dumbledore algo que pudesse mudar seu próprio destino?
Apesar de rigidez ainda se manter entre os discentes, a professora Sinistra orientou a todos que buscassem assentos e se revezassem para usar o telescópio principal. Sacudi a cabeça para espantar a espiral de devaneios quando senti dedos leves me tocarem o cotovelo. Luna Lovegood abriu seu sorrisinho etéreo quando me virei em sua direção.
, vem, sente-se aqui comigo — ela convidou, apontando para a mesa comprida que permanecia intocada exceto por sua presença. O motivo era óbvio: ficava logo de frente para o ponto destruído do guarda-corpo por onde Dumbledore caíra.
Assenti, espalhando meus materiais sobre o tampo: luneta, pergaminho e o livro de mitologia. Batuquei com as unhas na capa enquanto Luna divagava sobre a tentativa de seu pai de recriar o diadema de Rowena Ravenclaw, uma antiga relíquia da fundadora de Hogwarts que dera o nome à sua casa. Sabia que provavelmente eu deveria estar atenta a minhas anotações de Astronomia, comparando o céu atual com o mapa do instante de meu nascimento ou qualquer outra atividade inicial que a professora tivesse passado, mas não conseguia focar. Numa fantasia tola de menina, me imaginava usando a bela coroa de Ravenclaw, feita com os diamantes irmãos da pedra que repousava em meu pulso, as joias finalmente completas, conferindo-me a sabedoria necessária para me ajudar a desvendar a profecia. Porém, Lovegood notou minha inquietude.
— Pode ficar com minha lição — Ela escorregou um pedaço de pergaminho em minha direção, um mapa perfeito datado de 15 de janeiro de 1991, o alinhamento impecável e impressionante de sol, ascendente e lua em Capricórnio, o signo regido por Saturno.
— Obrigada — balbuciei. Queria perguntar o que tinha acontecido naquela data e hora tão peculiar, tão marcada pelo planeta que revelava tanto sobre medo, mas também sobre resiliência. No entanto, ela já estava ocupada demais regulando sua luneta e olhando para o ponto longínquo no céu oposto ao que o resto da turma olhava.
Abri o livro dourado, apertando os olhos para enxergar direito na penumbra da meia-noite, e reli mais uma vez o conto de Eco e Narciso, mas sabia que era inútil. Já tinha obtido dali todas as respostas que eu podia. Virei a página com cuidado. O título era “O Jardim das Hespérides”, cuidadosamente adornado por uma gravura de uma flor. Passei os dedos sobre ela, sentindo o discreto relevo causado pelo riscado de uma pena…
Espera. Não era uma gravura. Era um desenho. Um desenho feito com tinta.
Meus lábios se partiram. Levei meu polegar à boca, lambi a ponta do dedo e esfreguei bem de leve por cima de uma das pétalas, que borrou bem pouquinho. Não era uma gravura! Alguém tinha desenhado aquela flor ali.
Olhei ao redor para checar se ninguém estava prestando atenção em mim, e acendi a ponta de minha varinha com um discreto Lumos. A flor era um desenho simples, mas feito com cuidado. Suas três pétalas levemente pontudas eram acompanhadas por três folhas e três estames, e achei curioso aquele cuidado todo com a morfologia de um desenho rabiscado, quando meu estômago despencou. Era um trílio branco. Um trílio branco, a flor que nascia nos jardins de Castelobruxo, a flor que era minha preferida, a flor sobre a qual Dumbledore me perguntara na noite antes de morrer.
Um zunido tomou meus ouvidos, abafando o som de alunos cochichando, a professora tirando dúvidas, instrumentos delicados de metal clicando uns contra os outros. Apesar de sentir a ansiedade dominando meus dedos das mãos, continuei lendo.

O Jardim das Hespérides, situado às margens do rio Oceano, continha a árvore dos pomos de ouro, guardado pelo dragão Ládon. As Hespérides personificam o final da tarde, transição entre o dia e a noite.

Me sobressaltei tão bruscamente que esbarrei com o cotovelo em minha luneta, que em efeito dominó derrubou um tinteiro, meu estojo e pelo menos uns três rolos de pergaminho.
— Precisa de ajuda, srta. ? — perguntou a professora Sinistra.
— Não, tudo bem, desculpe pela interrupção, professora.
Quando a astrônoma desviou sua atenção de mim e retomou as explicações, continuei a ler as linhas seguintes do mito assinalado por Dumbledore com uma avidez avassaladora.

Hera recebera de Gaia lindos pomos de ouro como presente de seu casamento com Zeus e mandou plantá-las em seu longínquo jardim, no extremo Ocidente. Ela deu às Hespérides, ninfas do entardecer e filhas de Atlas, a função de proteger este jardim. Quando as ninfas começaram a usar os frutos de ouro para próprio benefício, a fim de obter a vida eterna, foi necessário um guardião mais confiável. Assim Ládon, o dragão com um corpo de serpente e cem cabeças, passou a proteger o jardim e a árvore com os pomos.

— Srta. .
Ergui a cabeça. A professora me encarava como se já tivesse repetido meu nome mais de uma vez.
— Oh… Desculpe.
— É sua vez — disse ela suavemente, indicando com a cabeça o centro da torre.
Sentindo meus batimentos cardíacos reboando nos tímpanos, meus olhos encontraram a ocular do telescópio, e me lembrei da noite no ano anterior em que eu encontrara Draco ali. “Aqui”, ele me indicara a lente, e me debrucei para olhar. "Se chama Draco. Pelo visto é um dragão que guardava um jardim estúpido ou algo assim. E virou meu nome. É uma tradição da família da minha mãe, todos têm nomes de estrelas”.
Quase bati a cabeça ao me levantar bruscamente, e cambaleei de volta para meu assento ao lado de Luna. Fechei o pequeno livro num estalo, sentindo a boca secar. Foi o primeiro sinal; depois, veio a tontura enjoada que, apesar de minha última refeição ter sido por volta das oito da noite, quase trouxe a comida de volta pela garganta.
O ataque de pânico chegou, como eu imaginei que chegaria, sem que eu pudesse fazer nada para contê-lo. Hiperventilando, só consegui dar um aceno desesperado com a cabeça para Luna, que veio ao meu encontro, surpreendentemente segura sobre o que fazer. Segurou minhas duas mãos, apertou os dedos contra os meus, as falanges se dobrando em volta das minhas enquanto minha glote quase fechava.
Minha profecia. Dumbledore me deixara o livro para que eu desvendasse a profecia. A garota além mar era eu, mas isso sempre fora uma certeza. Eu acenderia as chamas do fim; por mais que ainda estivesse relativamente obscuro, eu teria algum papel importante no desenrolar da guerra… mas, considerando a dança delicada e mortal em que eu havia me metido, isso significava a vitória de quem? De Harry, O Menino que Sobreviveu, meu amigo, um leão assim como eu? Ou do Lorde das Trevas, cuja marca insípida maculara minha pele sem que eu consentisse, num paradoxo perturbador em que a pureza de meu amor trouxera aquela profanação?
A cobra maligna era ele. Voldemort, ou Tom Riddle, como Harry contara a mim, Rony e Hermione no ano anterior. A continuação do verso dava algum alento, predizendo uma derrota: “sem jamais obtê-las”, referindo-se a estrelas… estrelas que davam nome à família Black. Estrelas que eram a família Black.
Apesar de meu corpo tremer e tudo ao meu redor parecer enevoado e excessivo, meus pensamentos eram claros. Então era isso. Minha profecia não era só minha. Também era de Draco. A cobra maligna… a cobra maligna queria as estrelas… queria Draco. O dragão. O dragão Ládon que guardava os pomos de ouro… pomos de ouro que davam a vida eterna… assim como os pedaços da alma, criados e precedidos por um rastro de assassinatos… pedaços da alma de Lorde Voldemort, Tom Marvolo Riddle, encerrados em relíquias dos fundadores de Hogwarts, o único lar que ele conhecera… e entendi. A esclarecida coroa de minha profecia… era o diadema de Ravenclaw, que naquele momento estava sendo recriado pelo pai da garota que segurava minhas mãos enquanto eu deslizava na direção do desmaio e percebia a resposta ao meu destino.
Draco Malfoy ia guardar uma das Horcruxes.

Capítulo 12

Draco POV

Palindromizar um ritual de magia das trevas era difícil, ou pelo menos era o que diziam os livros abertos à minha frente. Eu tinha outra opinião: palindromizar um ritual de magia das trevas era impossível.
Ok. O diário de minha tia atestara claramente que a Marca Negra não seria exceção à Segunda Lei Fundamental da Magia, podendo ser revertida pela execução do ritual na ordem exatamente inversa: mesmos objetos, mesmos participantes, mesmo elemento corruptível. Eu conseguia entender vagamente como poderia fazer isso para minha Marca, mas não para a de . Talvez removendo a minha, a dela também sumisse… Mas como ter certeza? Como limitar um aspecto tão decisivo da vida dela em um mero achismo?
Esfreguei as têmporas. Sangue, lembrança, fogo. E a taça. O problema era a taça. Como caralhos eu deveria conseguir o objeto de volta? Certamente havia algo de especial sobre aquilo.
Tinha acordado ridiculamente cedo para me dedicar à leitura do máximo de material que pudesse antes de minhas aulas regulares do dia. A Sessão Restrita da biblioteca já tinha perdido sua restrição para mim havia tempos; monitor chefe, Comensal da Morte, aluno do último ano… Razões para isso não faltavam. Eu tinha acesso a toda a teoria que poderia ter, acrescida ainda do valioso material fornecido pela irmã de minha mãe. Precisaria de quanto tempo fosse possível para vasculhar tudo.
Bem me fazia falta, em horas como essa, uma Penseira. Talvez assim conseguisse identificar mais precisamente alguns detalhes do ritual da Marca Negra que eu performara meses antes. Sabia que teoricamente havia uma em Hogwarts, provavelmente no escritório do diretor, mas não seria sábio buscar usá-la.
Algo um tanto surpreendente, no entanto, era a questão da lembrança. É fato que eu não sabia do que tinha aberto mão; afinal, a felicidade fora deturpada durante o ritual para dar origem à Marca. No entanto, sabia que seria simples conseguir uma lembrança “de ainda maior felicidade e pureza”, conforme escrevera tia Bella: até meus momentos mais corriqueiros com seriam o suficiente para aquilo…
Uma batida baixa porém firme soou em minha porta. Empurrei com o pé para debaixo da mesa a pilha de livros que estivera consultando, com o diário no topo, e fui atender a porta.
Era Snape.
— Temos assuntos de seu interesse a conversar — disse o professor, sua capa enfurnada atrás de si quando entrou no meu quarto e ficou de pé a alguns metros na cama, parecendo deslocado. — Prometo ser muito breve.
Fiquei parado no umbral alguns segundos a mais do que deveria, tentando registrar o contexto que se desenrolava. Em quase 7 anos de estudo em Hogwarts, nunca um professor entrara no meu dormitório, nem mesmo Snape que era chefe da Sonserina. Era inegável o gosto que Snape tinha pelas grandes cenas e efeitos dramáticos; não era a toa a peculiaridade de suas características vestes. Mesmo assim, meu coração veio na boca com a perspectiva do que aquilo significava.
— Que assuntos? — Fechei a porta às minhas costas com cuidado, bem devagar, subitamente consciente demais de como minha postura tensa estava perto de me delatar.
.
Fodeu.
Minha mente se tornou um grande branco, com essa única palavra alarmante piscando em luzes vermelhas de emergência, como as do Torneio Tribruxo, como fogos de artifício que anunciavam errônea e ironicamente uma tragédia. Caminhei até a cama, sem saber como me portar diante da pronúncia de Snape do nome e sobrenome que eu queria manter desvinculado de mim o máximo possível, ainda mais frente a ele e quaisquer outros Comensais.
Pigarreei, me concentrando para que a voz não tremesse.
— Sei que ela tem dado trabalho na Grifinória, professor, mas não há muito que eu possa…
— Não perca seu tempo com rodeios, sr. Malfoy, os senhores Crabbe e Goyle já tiraram a necessidade de seu teatro há muito tempo. Já é de conhecimento difundido a sua relação com a intercambista.
Minha garganta se fechou como se eu estivesse no início de uma reação alérgica, só que pior. Sei dizer pois em uma aula de Herbologia do quarto ano entrei em contato com uma linhagem de urtigas que me deixou todo empolado e sem respirar por 15 minutos, até que Madame Pomfrey chegasse e aspirasse minha pele com feitiços e me oferecesse uma poção particularmente fedida.
Mas agora poção ou feitiço algum me curariam daquele medo.
— Como assim… difundido?
Snape inspirou, cruzou os dedos e inclinou levemente a cabeça para o lado, estudando minhas reações.
— Questão de semanas até que a informação chegue no círculo íntimo do Lorde das Trevas. Sua família não sabe, mas os próximos dos pais dos seus colegas já ouviram o nome dela vinculado a você — ele declarou, e senti o ar fugir mais ainda —, o que é, no mínimo, alarmante.
Puta que pariu. Chamar aquilo de alarmante era como descrever uma explosão de Fogomaldito no Salão Principal dizendo que um fósforo aceso caíra no piso de pedra.
— A própria presença dela aqui e o showzinho que ela fez questão de exibir no início do ano letivo já despertaram indagações, sendo que ela era bem próxima a Potter, Weasley e Granger no ano passado. Há quem tenha levantado a possibilidade de raptá-la para tentar conseguir informações sobre o paradeiro dos três… — Snape hesitou, como se estivesse ponderando se me revelava algo ou não.
Comecei a suar frio. As cortinas pesadas de veludo verde da cama de dossel pareciam paredes sólidas que a qualquer momento se fechariam ao redor, me esmagando. Só queria que a porra do invasor do meu quarto calasse a boca porque eu já estava nervoso o suficiente, mas ele pareceu optar por continuar falando:
— E você, apesar de nunca ter presenciado, certamente já ouviu o que a Ourobor…
Ah, não.
— Chega, já entendi — o cortei, minha visão enevoada, meus pulmões parecendo achatados e queimados. — Vou ficar longe dela.
— Não é apenas isso, Draco. — Os olhos negros de Snape pareciam faiscar na minha direção, como se ele quisesse transmitir uma urgência que fosse além das palavras que enunciava. — Você precisa ocultá-la e distanciar-se dela ao máximo. Faça ela sair do time de quadribol, deduza pontos da Grifinória pelo comportamento dela, afaste ela de Ginevra Weasley. E se possível, tire ela de Hogwarts de vez no recesso de Natal.
Reuni o resto de fôlego que ainda não tinha sido arrancado de meus pulmões para protestar:
— Não posso mandar ela de volta para o Brasil, você não entende, ela não…
— Ou é de volta para o Brasil, ou é para a Mansão Malfoy, e te garanto que o cômodo que ela ocupará não será um quarto com você. — O diretor se levantou, ajeitou as dobras da capa e pareceu profetizar em tom solene: — Será bem mais abaixo.
Eu deveria ter tentado retrucar mais alguma coisa, mas não consegui. Deveria ter ao menos feito algum esforço para mascarar o quão exasperado eu ficara com a presença e palavras de Severo Snape no meu quarto, não ameaçando mas me alertando que a mera associação do nome de com o meu poderia custar sua vida. Mas fiquei parado, o rosto rígido, enquanto ele saía pela porta e me deixava sozinho, pensando se já havia algum tipo de suspeita sobre a Marca Negra de , pensando em como eu poderia contornar aquela enrascada, pensando na sala de armas do meu pai.
E você, apesar de nunca ter presenciado, certamente já ouviu o que a Ouroboros faz com quem entra nela, essa era a frase que eu o impedira de continuar falando, pois não queria nem cogitar aquela possibilidade. Me sentindo quase febril, agachei para alcançar o diário de Bellatrix sob minha escrivaninha e folheei rapidamente as páginas até encontrar a entrada que queria. Nela estava descrito o que eu já sabia, mas preferia não refletir sobre.
A Ouroboros era um dos muitos artefatos das trevas que compunham a coleção de Lúcio Malfoy na Mansão da família. O nome original se deve a um antigo símbolo alquímico de uma serpente engolindo a si mesma, representando a unidade de todas as coisas, que nunca desaparecem mas sim mudam de forma perpetuamente, no eterno ciclo de destruição e recriação. Soa bonito, mas algum Malfoy achara uma boa ideia transformá-la em uma máquina de morte.
Basicamente o objeto ao qual Snape se referira era uma gaiola entremeada por uma enorme serpente de prata de duende, que podia ser acionada pelo comando de um ofidioglota ou por gotas de sangue, sangue puro da minha família. Era usada muitos anos atrás como entrada do cofre da propriedade, mas o Lorde das Trevas a ressignificara durante sua primeira ascensão, e agora retomava seu uso. Simplificando sua atuação, era um instrumento de tortura que drenava por difusão todo o sangue da vítima se esta não tivesse em suas veias a mesma linhagem que eu: Malfoy. Já parece terrível apenas falando, mas o som que aquilo fazia era simplesmente excruciante: o torturado emitia sons que se assemelhavam a uma mistura de afogamento com dissolução em ácido.
A mera perspectiva de encerrarem ali dentro...
Apertei os olhos. Uma pontada de dor de cabeça me furou a têmpora, como uma flecha entrando por detrás dos globos oculares na enxaqueca que tinha se tornado minha velha amiga. Era estresse, era abstinência, eu precisava de Poção do Sono. Precisava de mais: mais entorpecentes, mais uma rota de fuga, mais tempo.
Meus dedos pareceram ter vida própria ao tatearem o malão em busca do que queriam, e só me dei conta de ter encontrado quando os tremores de minhas mãos fizeram os frascos de vidro tilintarem ao escolherem um ao acaso. Sabia muito bem que as poções mais recentes que eu produzira provavelmente estavam uma merda — a irritabilidade e angústia em busca de amainar o vício me faziam ser desleixado, apressado, pouco exigente. Mas não importava. Não queria realmente dormir, só queria amenizar um pouco a ansiedade que desencadeara a abstinência. Uma vez que o líquido descesse pela garganta, tudo voltaria a ser macio e fazer um pouco mais de sentido. Ou pelo menos era o que eu tentava convencer a mim mesmo.
Foi já dentro da milenar biblioteca de Hogwarts, cheia de suas estantes tão altas que mais pareciam torres e o ar quase palpável cheirando a pergaminho, que percebi o quão irremediavelmente enganado eu estava. Sombras dançavam nas paredes de pedra nos cantos da minha visão, como se as próprias rochas tivessem ciência do meu estado mental. A poção batera, eu provavelmente cairia adormecido no decorrer da hora seguinte e nem ao menos conseguia lembrar do trajeto que acabara de percorrer até ali.
Cambaleei da forma mais discreta possível pelos corredores mais estreitos formados pelas paredes de livros, minha visão cada vez mais borrada enquanto tentava decifrar os títulos nas lombadas gravadas em ouro, ferro quente e escamas de criaturas que eu não me atreveria a imaginar. Minhas mãos falhavam e gotas peroladas de suor escorriam do meu rosto para minhas palmas, que eu erguia à minha frente numa tentativa vã de me estabilizar. Ok, dessa vez eu tinha exagerado. Minhas próprias veias pareciam pesadas, protestando contra a insistência de pegar volume atrás de volume nas estantes, somente para descartá-los sobre as mesas momentos depois, em pura e exacerbada frustração.
Pesquei um exemplar que parecia interessar ao meu intento, cuja capa era ornada por intrincados desenhos de uma roseira com espinhos, e uma superfície espelhada no centro me fez sobressaltar. Meus olhos estavam vermelhos e injetados, o que ficava ainda mais evidente com as manchas escuras que os rodeavam. Um fantasma que ainda vivia.
Dei um passo em direção à cadeira mais próxima, os pés parecendo imersos em lodo ou piche. Me sentia prestes a cair no abismo da inconsciência, mas combati a sensação de queda com o máximo de determinação que consegui reunir.
— Vamos lá, porra — murmurei, como se a voz fosse despertar a mim mesmo. — Precisa estar aqui em algum lugar.
As folhas finas como cascas de cebola pareciam travar diante de meus olhos, por mais que eu estivesse passando-as adiante febrilmente — era minha visão falhando e pregando peças. Senti meu coração acelerar; precisava encontrar antes que a poção me arrastasse e clamasse por meu corpo por completo. Já não sabia há quanto tempo estava lá. Poderiam ser segundos ou dias inteiros. Tudo passava muito rápido… e então muito devagar… Água de luz da lua… Parecia possível. Parecia cada vez mais real. Uma fita de seda… Um fragmento de pergaminho… O som do rasgo pareceu em si mesmo rasgar o ar da biblioteca. Que Madame Pince não o tivesse ouvido, por Merlim… Aquilo era tudo… Era a minha luz no fim do túnel… Nossa luz… o suave reluzir do ouro…
Encontrei.
E por fim me permiti ser levado pelas águas da inconsciência, nas quais eu mesmo escolhera mergulhar e assumira o risco de me afogar.
Água de luz da lua…
Fita de seda…
Metal fundido….
Laços de sangue… Laços de alma. Costuras que nunca mais poderiam se soltar.

Recobrei a consciência antes de abrir os olhos, sentindo minhas pálpebras ásperas por dentro, como se durante meu sono elas tivessem sido transfiguradas em lixas. Depois notei a sensação de minhas costas empapadas de suor, a camisa colada na pele de um jeito incômodo e um pouco humilhante, a poça de baba que umedecia minha bochecha direita e o livro aberto sob ela.
Quando permiti que a luz entrasse por minhas pupilas, pude registrar meus arredores: a biblioteca, mas agora sem aquelas grotescas e imaginárias sombras sentientes que povoaram minha visão periférica antes de apagar. O coração reverberava nos lados do meu pescoço, forte e rápido, quando registrei o relógio. Tinham se passado 5 horas desde que Snape estivera em meu dormitório.
Merda. Eu perdera o almoço e todas as aulas do dia até ali.
Briguei com meus próprios pés para ficar de pé, a cabeça ainda girando levemente com os resquícios de meu… exagero.
— balbuciei sozinho, a voz rouca como se as cordas vocais estivessem inutilizadas há dias.
Subitamente o pedaço de pergaminho rasgado em minha mão pareceu pesar uma tonelada. Era possivelmente o atalho para escapar de ao menos um dos problemas mais emergentes que iríamos encarar.
Saindo de dentre as estantes, ganhei os corredores a passos largos, sem saber ao certo onde ir; deveria tentar encontrar em alguma aula em comum? No Salão Principal? Na Torre da Grifinória? Ou… na sala do diretor… ou de algum dos Carrow?
Optei inicialmente pela primeira opção. Pelo horário disposto nos grandes relógios que adornavam as parede dos corredores, aninhados entre os milhares de quadros com retratos dançantes e tagarelas, eu estava apenas 5 minutos atrasado para uma aula dupla de Transfiguração, a última disciplina do dia.
Corri até a sala de McGonagall sentindo a cabeça pulsar, um óbvio indício de que eu ainda não estava bem o suficiente para fazer tanto esforço físico quanto estava fazendo, mas não importava. Já tinha perdido quase o dia todo. Entrei um tanto esbaforido, procurando com os olhos, mas os cabelos escuros e o uniforma da Grifinória em sua silhueta perfeita não estavam em nenhum lugar à vista.
Sentei-me sob o olhar reprovador da Professora Minerva, mas honestamente estava pouco me fodendo; tinha coisas mais relevantes a pensar ali. Onde estava ? Ela nunca perdia Transfiguração. Fazia parte da graduação que ela precisava para… Bom. Não é como se ela precisasse delas para ser auror, uma vez que ela já era uma auror-juvenil… Mas fazia parte da graduação que ela desejava, sabe-se lá para seguir qual profissão.
Tal ideia me causou uma sensação estranha no estômago, como se as entranhas tivessem sumido e sobrado um espaço oco. Eu não fazia ideia do que queria fazer de sua vida depois que se formasse, e isso tinha um motivo no mínimo trágico: provavelmente ela não sabia se sequer chegaria viva ao fim dos estudos.
Acho que deveria existir algum tipo de regra silenciosa sobre a tolerância dos professores de Hogwarts à inércia dos estudantes que fizessem parte do círculo do Lorde das Trevas, pois fui absurdamente inútil durante todo o decorrer da aula sem receber uma reprimenda sequer e continuei mais estático do que uma vítima petrificada de basilisco depois de sair da sala, até me chocar contra um corpo pesado que dobrava à esquerda.
Primeiro os olhos de Neville Longbottom se arregalaram de surpresa para depois se estreitarem num misto de raiva e suspeição.
— Malfoy. — O tom era frio.
Sacudi a cabeça para tentar fazer com que parasse de girar de uma vez. Eu poderia tripudiar e fazer algum comentário jocoso sobre como acabara de sair da aula de Transfiguração, para a qual Longbottom não conseguira aprovação nos NOMs, mas não consegui juntar energia suficiente para tanto.
— Preciso ver … ela está bem? Sabe onde ela está?
O grifinório cruzou os braços, assumindo uma postura que estava longe de ser a mesma desengonçada de antes; agora era imponente, protetora, ameaçadora.
— Ela teve um longo dia ontem. Aula de Astronomia. Você deveria deixá-la descansar.
Não pude evitar de pensar, pela forma como ele falou, que ele quisera dizer “Você deveria deixá-la em paz”.
— Mas eu tenho que…
— Não, Malfoy, você não tem que fazer nada. Ela está exausta e não precisa de nenhuma carga adicional de estresse, ainda mais vinda de você.
Minha frustração ferveu quente sob a pele.
— Por quê você sempre presume coisas ruins sobre minhas intenções com ela?
O garoto riu.
Caralho, por quê será? — debochou. Não esperava o sarcasmo vindo dele. — Não estou presumindo coisas ruins. Estou protegendo minha colega de casa e minha amiga.
— Você não precisa protegê-la de mim, há ameaças muito maiores dentro e fora deste castelo.
— Claro. Ameaças estas com as quais você compactua e alegremente dividiria uma mesa e receberia em casa, certo?
Ele estava certo. Óbvio que estava. Era por isso que estava no meio daquela confusão, afinal.
Um músculo tenso saltou da minha mandíbula quando me vi trincando os dentes, sem palavras. Era nítida a surpresa de Neville ao ver que eu não retrucara, e isso pareceu quebrá-lo. Passou a mão na nuca e suspirou, enquanto refletia se me dava a resposta que eu pedira desde o início ou não.
— Está bem. Você não é o único preocupado, sabe… não costuma faltar aulas, e as meninas que dividem o dormitório disseram que ela não dormiu lá de ontem para hoje. — Vi que ele hesitou e cogitou falar apenas aquilo, mas algo o impeliu a completar: — A última pessoa que a viu foi Luna, e ela hoje à noite estará dando tutoria aos alunos de Astronomia do nível NOM… — Seus olhos amoleceram com carinho ao falar da garota. — Mas não diga que eu não te avisei quando ela te enxotar.

* * *

Empurrei a porta pesada de madeira da Torre de Astronomia sem conseguir evitar um calafrio. Não era pela temperatura baixa, eu sabia bem. Era por estar de volta, mais uma vez, ao ambiente que povoara meus pesadelos desde aquela fatídica noite de junho. Meus passos ecoaram pelo chão de pedra do vasto espaço, mas o som não despertou Luna de seu foco sentada à ocular do telescópio, olhos fixos no céu. O suave halo dos corpos celestes banhava sua pele e cabelos claros numa luz macia que a fazia parecer ainda mais etérea que o normal.
— As nuvens estão atrapalhando um pouco a visibilidade das estrelas hoje — disse ela, desviando os olhos do aparelho e me encarando. — Você também está procurando uma, certo?
Como sempre, a garota falava em enigmas. Eu já caçoara muito dela e de seu pai pela forma sempre calma de falar asneiras impensáveis e críticas no mínimo arriscadas que faziam ao governo em edições prévias d’O Pasquim, a revista patética mantida por Xenofílio Lovegood… Como as coisas mudam. Agora ali estava eu, profundamente desconfortável no ambiente, tendo que recorrer a ela para tentar me acalmar.
— Longbottom me disse que você foi a última pessoa a encontrar com .
Ela virou a cabeça para cima, encarando o teto vazado do observatório.
— As luas de Saturno estão particularmente visíveis esta noite. Não é comum que isso aconteça, sabe… Os equipamentos trouxas nem ao menos conseguem vê-las.
Cerrei os punhos para conter a irritação. Por quê caralhos ela não conseguia ser direta e objetiva uma vez na vida?
— Você já reparou como estrelas cadentes brilham mais do que as não caídas? Veja só.
Ela indicou a ocular com a cabeça e me vi sem saída senão ir olhar o que quer que ela estivesse querendo me mostrar.
— Veja como essa estrela cadente, que na verdade é um meteoro, vai se dividir — ela explicou enquanto eu acompanhava exatamente o que ela dizia pelas lentes que exploravam o céu. — As coisas não são o que parecem ser… e por vezes se multiplicam. Se você não entende essa beleza, nunca vai entender as outras estrelas.
Fiquei quieto, me mantendo o mais parado possível para que ela continuasse falando e deixasse soltar alguma informação de meu interesse sobre .
— Segredos são como astros; alguns brilham intensamente, outros permanecem ocultos na vastidão da noite. Às vezes, uma constelação que parece escondida sempre esteve ali, logo antes do amanhecer, visível somente a quem souber olhar…
O quanto isso era uma divagação de Lovegood ou uma resposta críptica ao que eu queria saber? Estaria ali, oculta a plena visão? Continuei escutando enquanto erguia lentamente a postura para fitar o rosto de Lovegood. Seu queixo continuava a apontar para o teto, mas a voz soava clara e decidida.
— Às vezes pessoas nos escondem coisas para proteger a nós ou a si mesmos… ou até mesmo ambos. Pensam que é melhor desta forma.
Ela abaixou o rosto e olhou nos meus olhos, intensamente.
— Mas as estrelas têm sua forma de nos guiar à verdade, mesmo quando não consegue-se enxergá-las.
Luna vez um movimento estranho em minha direção: ergueu o braço e tocou levemente, por cima de meu ombro, uma mecha de meu cabelo. Ao mesmo tempo, com a outra mão ajeitou seus próprios fios atrás da orelha. Sob a luz da lua, parecíamos… parecidos.
— Mas as estrelas não se escondem para sempre. Elas se revelam àqueles que buscam com o coração aberto.
Pus-me de pé, mas ela não pareceu se desconcertar quando me desvencilhei de seus dedos. Apenas sorriu levemente e sussurrou, antes de voltar-se novamente ao estudo do céu:
— Ela voltará pela manhã.
Compreendi que era o máximo de resposta que ela me daria. Esperava que a resposta ao enigma fosse o sorriso de no café da manhã.

Capítulo 13

POV

[N.A.: ALERTA DE GATILHO – Este capítulo conta com cenas gráficas de tortura e assédio sexual.]

A mulher em minha frente é alta, bonita e traja um lindo vestido cinza. A mulher em minha frente segue meus movimentos, fala minhas palavras. A mulher em minha frente usa uma pulseira idêntica à que eu mesma uso, com o grande diamante azul e prata de duende. A mulher em minha frente está refletida no espelho.
Ela (e me refiro assim porque sei que ela não é, propriamente, eu) encara o próprio reflexo com os lábios comprimidos e testa franzida. Desce os olhos pelos bordados em seu busto, os intrincados desenhos com ramos de oliveira e águias de asas abertas de ponta a ponta, em fios reluzentes de bronze. Busca respostas sobre o caminho que deve seguir nos belos fios da costura, mas sabe que seu destino está traçado desde o instante em que deixara a cobiça dominá-la.
— Querida?
A mulher se vira rapidamente, os cabelos longos e escuros arrumados em tranças chicoteando o espelho agora atrás de si. Vê sua mãe de pé sob o arco de pedra que divide seus aposentos com os dela. O vestido é quase idêntico, mas o cinza que recobre seu corpo é azul no que adorna sua mãe. Mas não é só a cor que as diferencia. Ela sabe o quão difícil é para a mãe manter-se de pé, ainda que curvada, enquanto para ela manter-se ereta é como respirar. Sabe o quanto o espírito altruísta da mãe é o que mais atrai todos ao redor, enquanto em si própria a beleza exterior mascara o veneno de sua ganância.
— Sim, mamãe.
— Pode me ajudar a fechar estas vestes?
Ela se pergunta o porquê de a mãe não admitir a perda. O porquê de não admitir que está definhando e continuar insistindo em fingir aquela normalidade aos outros três. O porquê de não admitir que estava errada ao lhe fazer acreditar cegamente que o espírito sem limites é o maior tesouro do homem, pois o maior tesouro do homem era a peça de prata de duende e diamantes azuis que estava oculta dentro do compartimento encantado de seu espartilho, que fazia o perfeito conjunto com a pulseira que repousava em seu braço.
Enquanto seus dedos tecem as fitas que fecham as vestes com barbatanas da mãe, ela pensa se deve dizer um adeus. Se aquele último momento será lembrado por sua mãe com amor ou rancor. Se ao rumar ao sul todos entenderão que levara consigo o que mataria sua mãe, fosse a joia ou si mesma.
— Pronto — Sua voz não é mais alta que um sussurro.
— Obrigada — a mãe agradece e se volta mais uma vez para mirar a filha. Os olhos cinzentos e emoldurados por rugas na pele alva se estreitam com o sorriso terno. — Vou ao castelo ter com Helga, ela parece ter um novo planejamento para os aposentos de seus alunos e gostaria de… como ela chama?… minha “iluminada opinião”.
Ela desvia o olhar da mãe para que não sejam vistas as lágrimas que se acumulam. Bem sabe que as ideias da mãe nunca mais serão tão iluminadas quanto eram antes, por sua culpa. Sorri, disfarçando.
— A senhora realmente é brilhante, mamãe.
Apoiando-se na parede, a mais velha se aproxima da filha, que agora fita o chão. Sente o toque quente dos dedos da matriarca no metal frio de sua pulseira. Seu presente. O que lhe fora dado de bom grado, e mesmo assim a fizera querer mais.
— Minha doce Helena. O que seria de mim sem você?
A mãe sai dos aposentos lentamente, enquanto a filha olha novamente para o espelho e chora, dilacerada de culpa.
Nesse instante, me sinto mais como ela do que como a mim mesma.


Acordei assustada com o despertador se esgoelando. A desorientação inicial foi inevitável; o ambiente no qual eu acordara era sem dúvidas diferente de onde eu estivera segundos antes no sonho, mas havia algo estranhamente familiar entre os dois, uma similaridade oculta que me deixou confusa por mais tempo do que deveria… Até que eu olhasse em volta e me fincasse de fato na realidade: eu tinha aula e estava atrasada. Não havia mais nenhuma colega de quarto no dormitório, e o relógio já marcava 8 horas.
— Merda, merda, merda!
Enfiei o uniforme pelo corpo de qualquer jeito, sem me preocupar se as peças estariam sujas ou amassadas. O primeiro tempo era de Defesa Contra as Artes das Trevas, e sabia que não podia contar com a benevolência de Amico Carrow. Apesar dos protestos de meu estômago, que roncava audivelmente, pulei o café da manhã e fui direto correndo para a sala de aula.
Enquanto vencia os corredores na maior velocidade que podia, ia resgatando em minha mente fragmentos do sonho que acabara de ter, mas estes escapavam do meu alcance como água que escorre por entre os dedos. Só lembrava da pulseira, da sensação apertada no peito de estar ocultando algo e da voz da mulher mais velha, cheia de ternura, dizendo Helena. Não tinha tempo para pensar naquilo no momento, porém. Teria que esperar até o fim do dia letivo, quando eu poderia até mesmo discutir aquilo com Draco…
Draco. Não o vira desde o momento tenso na aula de Feitiços, quando Neville me defendera dele. Parecia anos atrás… mas tinha sido apenas dois ou três dias antes. Antes da aula de Astronomia, antes de Luna me socorrer em minha crise de pânico, antes de eu desvendar o significado dos versos que vinham ditando meu futuro desde que eu os ouvira pela primeira vez… E que agora eu sabia que falavam de Malfoy também.
Parei de frente à porta da sala de DCAT e respirei fundo para normalizar meu fôlego antes de abri-la.
— …erupção de pústulas particularmente dolorosas por toda a extensão da… ah, olá, srta. .
O professor interrompeu sua inflamada explicação sobre a Maldição Furunculosa para me receber em sua aula. Os olhares de todos os alunos do sétimo ano recaíram sobre mim, mas não só deles; na frente da sala, de pé atrás de Amico Carrow, havia seis ou sete alunos mais novos — poderia jurar que uma delas era uma assustada primeiranista da Sonserina —, com as mãos amarradas por grossas cordas encantadas e que me fitavam como se suplicassem por ajuda.
— Acho que agora já temos nossa modelo para a última das Maldições que estudaremos hoje.
O giz branco dançou sobre o quadro negro, escrevendo claramente: Maldição Cruciatus.
Depois de um único som de espanto emitido por uma aluna da Lufa-Lufa no fundo da sala, o silêncio dentro do aposento era sepulcral. Desviei o olhar de Carrow e busquei o de Draco. Os olhos prateados que me encararam de volta queimavam com raiva; ele pressionava os dentes e a lateral da mandíbula saltava. Vi seus punhos apertados sobre a mesa, os nós dos dedos brancos. Apenas acenei levemente com a cabeça de um lado para o outro, um claro por favor, não faça nada.
— O próprio nome sugere a quando remonta a criação da Maldição Cruciatus: foi desenvolvida pelos feiticeiros romanos como uma alternativa à crucificação de seus criminosos. Como os animais que são até hoje, os trouxas da época realizavam um método de castigo e execução de forma muito dispendiosa, demorada e que demandava muitos equipamentos, como o flagrum, usado para a flagelação dos condenados; os pregos e cordas, que eram necessários em grande quantidade, e a cruz propriamente dita. — Carrow deu uma risadinha. — Sem contar toda a sujeira que fazia.
Senti meu coração começar a golpear minhas costelas. Estava muito fresca na minha memória a dor excruciante que eu sentira na noite em que Hogwarts fora invadida e a Marca de Draco fora duplicada em minha pele; lembrava claramente de ter pensado que uma Cruciatus não poderia ser pior do que aquilo. Mas mesmo se fosse apenas próxima da sensação… A perspectiva já me aterrorizava.
— Como mencionei, os romanos faziam uso do flagrum, uma espécie de chibata, antes da prática efetiva da crucificação, causando lacerações profundas na pele e tecidos subjacentes. Os membros, por sua vez, eram fixos na cruz com uso de pregos de pelo menos dez a quinze centímetros, que transfixavam a região dos punhos e tornozelos anteroposteriormente, o que causava lesão irreversível de importantes nervos, com espasmos musculares. — Ele mirou a classe. — Algum de vocês já viu esta maldição em ação?
Não se ouvia um som. Vi Neville, na terceira fileira, tão vermelho quanto era possível ficar, uma veia marcada intensamente sob a pele na têmpora.
— Caso não tenham visto, terão a oportunidade de praticar em breve. Mas de todo modo, caso nenhum de vocês seja capaz de lançá-la, saibam que a Cruciatus causa uma fasciculação generalizada dos músculos, que culmina em aumento da temperatura do corpo, fadiga extrema e dores insuportáveis. Muitas vezes, devido a essas contrações, ocorre fratura de inúmeros ossos, ou a vítima perde a força da musculatura respiratória e o oxigênio para de chegar ao cérebro. — Ele sorriu docemente. — Por isso, há quem convulsione… ou fique demente pelo resto da vida.
Lágrimas de puro ódio desceram dos olhos de Neville. Os pais dele eram o exemplo exato do que Carrow acabara de falar daquele jeito tão chulo, e certamente o Comensal sabia muito bem disso.
— Muito bem! Agora repitam comigo, mas ainda sem empunhar as varinhas: Crucio!
Apenas quatro vozes enunciaram junto ao professor, mas em diferentes volumes: Crabbe e Goyle, com bastante animação; Blásio Zabini, num tom quase sarcástico, e Draco Malfoy, num timbre logo acima de um sussurro.
— Excelente! Sr. Crabbe, deseja fazer as honras?
O garoto levantou da cadeira como se Carrow tivesse acabado de lhe oferecer um doce irrecusável. Atrás dele, podia ver a careta de desgosto de Daphne Greengrass, a testa franzida de Pansy, a animação de Goyle e a inexpressão de Draco. Ele parecia não acreditar que o colega seria capaz de me amaldiçoar, e eu tentava me agarrar nessa ideia.
— Nossa querida srta. chegou na hora certa para nos servir de exemplo, não é mesmo?
Meu peito sacolejou como se o coração estivesse tentando escapar de sua inevitável sina. Eu sabia muito bem de que tipo de exemplo Carrow queria me fazer. Era uma declaração do que aconteceria com todo e qualquer um que desafiasse seus ideais, como eu fizera. Olhei nos olhos de Vincent Crabbe, tentando transparecer indiferença frente ao que estava prestes a acontecer, mas minha respiração acelerada me traía. Ele notou e ergueu o canto da boca em um sorriso maldoso.
— Pode começar.
Crabbe ergueu a varinha.
— Crucio.
E nada aconteceu.
— Crucio!
Nada.
— CRUCIO!
Fechei os olhos, aliviada. Ele não conseguira. Virei o rosto para Draco. Ele quase sorriu.
— Bom — Carrow soou desapontado —, de fato, não é um encantamento simples. Vamos arrumar a sala para que os demais alunos possam praticar as outras maldições nos calouros da detenção, e enquanto isso o sr. Crabbe prossegue com suas tentativas.
Filho da puta. Então era isso. Aqueles canalhas estavam usando os alunos jovens que haviam supostamente transgredido regras como cobaias para os filhotes de Comensal praticarem Artes das Trevas… E tudo sob o aval de Snape.
— E se eu me recusar? — Neville ficou de pé antes que o professor pudesse mudar as carteiras de lugar para o treinamento. — Não vou lançar uma Imperdoável.
Amico Carrow direcionou os olhos pretos para Longbottom, se aproximou dele a passos lentos e largos, e desferiu um soco tão forte que o garoto tombou de lado no chão, segurando a lateral do rosto e grunhindo de dor.
— Mais alguém?
O silêncio se manteve. As mesas e cadeiras flutuaram placidamente pelo ar até se encostarem às paredes, deixando o centro da sala livre. Neville levantou-se devagar com o máximo de dignidade que pôde reunir.
— Não existem maldições imperdoáveis, pois o único perdão que vocês necessitam é o do Lorde das Trevas. E ele lhes concederá se seguirem seus preceitos. Agora pratiquem.
Vagarosamente, duplas de setimanistas foram se organizando em volta de cada calouro aterrorizado; vi Daphne e Pansy se postarem ao redor da menininha do primeiro ano, que tentava conter seus soluços. Meu coração se partiu ao ver que ela usava meias estampadas de desenho animado por baixo dos sapatos pretos: era nascida trouxa.
Crabbe e Goyle eram a dupla que me atacava, o que foi um grande alívio. O que tinham de grandes e maus, tinham de inépcia em magia. Virei-me para observar Draco, que lançava um Levicorpus em um garoto lufano, e seu olhar quase tranquilo encontrou o meu…
— Crucio.
Até que meu mundo virou do avesso.
Ouvi o ruído do impacto súbito da parte de trás do crânio contra o chão duro, mas nem consegui sentir a pancada: a dor tomava tudo. Nem ao menos sabia descrevê-la. Era como se meus próprios músculos quisessem quebrar os ossos que envolviam e fugir de dentro das amarras da minha pele, meus nervos queimassem e congelassem em uma alternância enlouquecedora, e eu só queria morrer. Queria implorar pela morte, mas não ouvia nada, via nada, era só a dor…
Até que cessou. Pisquei algumas vezes para dissipar a neblina que se instalara em meus olhos e cérebro, e vi o sorriso lascivo de Carrow, a expressão entusiasmada de Crabbe e os braços de Goyle agarrando Draco com toda a força para impedi-lo de ir na direção do sonserino que me amaldiçoava. Ele conseguira. Aquele filho da puta nojento conseguira.
— Será que foi sorte de principiante?
Só queria sair de dentro do meu próprio corpo e deixar aquela casca para trás. Porque agora era isso que eu sentia que era: uma casca inútil que se rachara com a primeira tortura. Não conseguia conceber como Alice e Frank Longbottom poderiam ter saído daquilo com vida…
— Acho que só tem um jeito de descobrir, professor. Crucio!
E veio tudo de novo. Dessa vez minha garganta pareceu se desinibir e passou a liberar gritos.
Eu me perguntava como era possível aplicar aquela maldição sabendo na pele o que seu efeito causava. Não era humano que alguém fosse capaz de friamente inflingir aquilo a outro ser depois de experimentar aquele sofrimento…
E então cessou. Inspirei fundo, mas antes que minhas costelas pudessem voltar à posição e deixassem o ar sair de meus pulmões…
— Crucio. E recomeçou.
Eu era pura agonia. No fundo de minha mente, eu escutava os protestos de Neville, Ernesto MacMillan, Lisa Turpin, Terêncio Boot, que eram calados um a um por maldições ou agressões físicas do professor. E tive uma pausa.
— Crucio.
Meus gritos agora eram rascantes, roucos, pois as cordas vocais não aguentavam mais. Isso pareceu rachar algo dentro de Draco, pois ouvi o som de mesas sendo derrubadas e ele se desvencilhando de Goyle.
A dor parou.
Quando consegui abrir os olhos novamente e os sons que ouvia voltaram a fazer algum sentido em minha mente, vi que ele encarava Carrow enquanto o professor ria. Crabbe apertava o punho de sua varinha em movimentos nervosos. Algo mudara no ar da sala.
— Está bem, Malfoy, não precisa querer sabotar a diversão de todo mundo. Podemos dar um descanso à srta. , se o senhor apontar outra aluna para que possamos continuar a prática.
Minha visão ainda estava borrada, mas ouvi as súplicas de Mandy Brocklehurst quando Draco a escolheu para tomar meu lugar e pude ver os vultos de ambos quando ele se posicionou em sua frente e apontou a varinha.
— Crucio — sussurrou ele.
Escutei quando Brocklehurst desmontou no chão. Turpin, sua colega de casa, soluçou, mas não tive forças para virar meu rosto e procurá-la.
A tortura desperta algo egoísta em quem a sofre. Antes de experimentar aquilo, eu certamente seria a primeira pessoa a se oferecer para ser alvo da maldição no lugar de outro aluno inocente, mas agora… Agora eu não era nem ao menos capaz de me sentir mal pela aluna da Corvinal que Malfoy amaldiçoava. Só estava grata por não ser em mim.
Senti Carrow cutucar minha coxa com a ponta do sapato, o que gerou uma extensão involuntária do músculo em resposta; tudo doía. As mãos do professor me agarraram pelos quadris e me rolaram no chão. Eu me transformara numa massa inerte, incapaz de reagir àquele toque que me despertava tanto nojo só de pensar. Draco cessou a tortura de Mandy e veio ajoelhar-se ao meu lado, tateando por meu corpo como se procurasse por ossos quebrados.
— Ah, veja só. — Carrow riu. — Malfoy não poderia manter suas mãos para si mesmo, não é? Diga-me, sr. Crabbe, quando foi a última vez que o senhor teve uma garota diante de si assim, completamente a sua mercê, incapaz de se defender ou lutar de volta?
Fechei os olhos novamente. Estava tão cansada… Tanta dor… tanto sofrimento.
Quase não senti o corte leve em minha perna quando Crabbe murmurou Diffindo. As risadas do professor e dos garotos sonserinos, porém, machucaram muito mais. Logo entendi.
Tinham cortado minhas roupas.
Queriam me deixar nua.
Ouvi o som da primeira pancada, que anunciou o pandemônio que se seguiu. Reuni todas as forças que me restavam para virar o pescoço e enxergar o que acontecia.
Draco estava sobre Crabbe derrubado no chão, as respectivas varinhas caídas; sangue respingava em seu rosto e cabelos claros a cada golpe que ele desferia contra o rosto do sonserino que outrora fora seu amigo.
Meu peito se apertou. Crabbe era muito maior; Draco não deveria entrar em uma briga que nitidamente lhe apresentava desvantagem física. No entanto, era o oposto que se via ali: meu prévio algoz — agora vítima — erguia e sacudia os braços grandes em movimentos cegos, mas que pareciam apenas despertar mais fúria nos olhos de Draco, que queimavam como se fossem engolir toda a sala em um prateado Fogomaldito.
— Draco! Você vai matá-lo! — berrava Pansy.
Eu podia ouvir claramente o som dos dentes se quebrando sob o punho de Malfoy, a cartilagem do nariz estalando e perdendo forma. Crabbe conseguiu acertar o rosto do agressor de forma que sangue começou a verter também de suas narinas, o que não mudou em nada a raiva com que os golpes eram proferidos; pelo contrário.
Foda-se, PORRA! — rugiu Draco. Sua voz era um grunhido gutural, tomado por ódio. Cada ruído enfurecido que ele emitia era pontuado por um soco mais forte que o anterior.
O som gorgolejante que seu oponente emitia era grotesco. Os dedos do garoto estavam disformes e inchados, como se tivessem sido pisoteados com muita força logo que ele caíra ao chão.
— Chega! Malfoy, por favor! — suplicou Daphne.
Agora até Mandy pedia que a briga parasse, com a voz fraca e amedrontada, mas Draco só parou quando um Estupefaça certeiro de Zabini o acertou. Ele caiu ao meu lado no chão, o rosto e punhos rubros pelo sangue de sua vítima, e foi a última coisa que vi antes de apagar de novo.
Acho que flutuei no limbo entre consciência e inconsciência por algumas vezes, pois quando Daphne me acordou com um vigoroso Renervate a aula já tinha acabado. Draco estava sentado ao meu lado, ainda ensanguentado, suor piorando tudo e grudando a sujeira em sua face. Senti minha mão esquerda aninhada entre os dedos dele. Agora havia sangue também nos meus.
Um círculo de alunos fora formado ao nosso redor. Os calouros previamente amarrados já haviam sido liberados, ao que parecia. Crabbe estava deitado a alguns metros de mim, o rosto irreconhecível, gemendo agonicamente. Pansy segurava um lenço contra a testa do colega, que respirava audivelmente pela boca.
Carrow virou-se para mim e Draco, olhando-nos de cima como se fôssemos duas criaturas deploráveis sentadas no chão.
— Detenção, vocês dois. Voltem à minha sala mais tarde. — Dirigiu-se ao resto da turma: — Classe dispensada. Srta. Parkinson e Sr. Goyle, por favor, façam a gentileza de escoltar estes transgressores para suas respectivas salas comunais.
— Mas professor, eles precisam da Ala Hospitalar, tenho certeza que Madam…
— Não pedi sua participação na decisão de como devo coordenar meus alunos, srta. Greengrass. Aliás, a senhorita deveria estar reivindicando atendimento da curandeira para nosso pobre sr. Crabbe, que foi brutalmente agredido.
Draco soltou o ar como se estivesse prendendo uma risada sarcástica. Daphne, para impedir uma retaliação, prontamente se dispôs a levar o colega de casa espancado a Madame Pomfrey e conjurou um feitiço para que ele flutuasse suavemente a seu lado, como se posto em uma maca invisível.
Senti meu corpo perdendo a gravidade e saindo do chão: Pansy enunciara o mesmo encantamento de Greengrass para me levar flutuando até a Torre da Grifinória, mas aos poucos fui baixada de volta ao chão por ordem do professor.
— Não. Ela vai andando.
Apertei a mão de Draco para que ele não protestasse e só piorasse nossa situação. Concentrei todo o meu esforço em pôr parte de meu peso sobre o braço, e emiti um ruído quase animalesco ao fazê-lo. Todo o meu corpo tinha virado gelatina. Rapidamente, porém, fui erguida pelos braços fortes de Neville, que com todo o cuidado do mundo me acompanhou a firmar os pés no chão e apoiar nos ombros de Pansy. Começamos a sair juntas da sala, e no instante em que virei as costas ouvi o som de uma lâmina cortando carne; Amico passara uma faca no rosto de Longbottom, fatiando seu queixo e fazendo sangue jorrar. A palma de meu amigo rapidamente pressionou-se contra a própria face, e ele saiu pisando duro para longe dali, deixando todo o material para trás.
Havia tanto que eu precisava conversar com Draco, mas depois daquele momento, tudo seria diferente. Ele deixara claro para todos os presentes que éramos mais que simplesmente dois alunos de casas rivais que estudavam no mesmo ano… Mas não o culpava. Aliás, não poderia ser mais grata a ele por ter me livrado daquele tormento. No entanto, tudo o que tínhamos para discutir — o sonho que eu tivera naquela noite, eventuais descobertas sobre nossas Marcas Negras e, acima de tudo, as revelações sobre a profecia — teria que ficar para depois. Não pude continuar ali para ver os desdobramentos. Meu corpo pedia trégua.
Enquanto eu tentava vencer o corredor atrás de Pansy (que com dificuldade segurava boa parte de meu peso), consegui ouvir uma última pequena comoção.
Os olhos de Daphne Greengrass e Gregory Goyle brilhavam em alerta, os lábios identicamente apertados em linhas finas enquanto nenhum deles ousava se intrometer no que se desenrolava. Respingos de sangue rubro e escuro pintavam as pedras sob os sapatos do grupo, mas era difícil dizer de quem vertia o líquido, apesar de para eles não haver diferença: de qualquer maneira, era puro, mas mesmo assim estavam um contra o outro. Draco empurrara Crabbe contra uma parede, longe da visão de Carrow, e deu um aviso final:
— Se você encostar nela qualquer outra vez na sua vida, eu vou te matar com as minhas próprias mãos.




Continua...



Nota da autora: OLÁ, QUERIDAS!!
Quem aqui ama Draco Malfoy surtando pra defender nossa querida ? Acho que esse é um momento crucial para trajetória dele, uma virada de chave que mostrou que é isso que acontece com quem ele ama se ele continua se eximindo. O problema é: será que essa atitude impensada e enfurecida não vai acabar piorando tudo de vez?
Sei que esse capítulo foi consideravelmente mais pesado do que os anteriores, e já adianto que o próximo seguirá na mesma vibe ou até mesmo um pouco mais intenso. Por isso, alerto desde já que se você é sensível a tópicos violentos, talvez seja uma boa ideia não ler com o seu nome no lugar do nome da PP e/ou pular as descrições mais gráficas. Sua saúde mental deve ser sempre prioridade! Esta fic é classificada como +18 não só pelos hots, mas também por essas outras questões.
Eu sempre estou aberta a bater um papo com vocês no Instagram (link abaixo) e vou adorar saber por lá ou aqui pelos comentários o que vocês acharam dessa atualização!
Mais uma vez: é um grande prazer estar de volta e dividir essa história tão especial com o mundo. Beijos com sapos de chocolate,
Bella Nottrix.





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