Finalizada em: 28/11/2019

Capítulo Único

Eu poderia começar essa história contando que tive uma carreira linda no futebol, que fui a atacante mais bem paga da época, meu nome foi superreconhecido, assim como poderia dizer que agora, após a recente aposentadoria, estou fazendo exatamente o que queria. Mas essa não é a verdade.
Neste exato momento acabo de ter a maior discussão da história do Real Madrid porque meu ex-técnico, e quem eu achei que fosse meu amigo, simplesmente disse não para o apoio que pedi sobre a ONG.
Certo, isso ainda está um pouco confuso, mas não se preocupe, vou esclarecer. Tudo começou assim...

11 de Abril – Madrid, Espanha

O Sol estava alto no céu na manhã de quinta-feira, todos estavam animados com a possibilidade de uma disputa com o Barcelona, afinal, enfrentar nossos maiores rivais em casa era digno de festa. Nina, minha melhor amiga e uma das artilheiras do último campeonato se aproximou. Eu já havia organizado todo material que precisaria para o treino e agora amarrava as chuteiras.
- E aí, bonita. – Me saldou como de costume, dei risada.
- Fala, meu bombom, tudo certo por aqui e você? – Ela deu de ombros e ocupou um lugar ao meu lado. – Ah, não vai dizer que o Diego não te ligou ontem à noite e você tá boladinha? – Impliquei.
Diego Gatti, ou Di, como costumávamos chamá-lo, era um renomado empresário do ramo alimentício que, há mais ou menos três anos, mantinha um pseudo - relacionamento com minha colega de time. Os dois eram incríveis juntos, o problema é que ela não queria assumir o relacionamento e ele queria pedi-la em casamento, o que, definitivamente, não a deixava nem um pouco animada. Não que ela não gostasse dele, o problema é que Nina sempre prezou sua fama de intocável, a mulher do coração de gelo ao qual nenhum homem teria acesso.
Bem, ela foi muito bem sucedida até encontrar o italiano na festa de aniversário do meu noivo. Os dois tinham tantas coisas em comum que eu fiquei chocada em como eles não haviam se conhecido antes. Por fim, depois de tanto tempo juntos e sem algum sinal de que ela fosse ceder, eles viviam aos trancos e barrancos como diria minha mãe.
- Não, idiota, ele ligou... Eu que não quis atender. – Respondeu com um resmungo, revirei os olhos. – Ah, , dá um desconto.
- Eu quem deveria te pedir um desconto, Nina, vocês estão nesse chove e não molha há mais de três anos, se você não quer ficar com ele por algum motivo relevante, te entendo, te apoio, ok. – Virei-me para olhá-la melhor. – Mas esse negócio de “Preciso manter a fama de durona” não tá valendo de nada. Fala sério, você é durona com ou sem namorado, acredite em mim. – Sorri na tentativa de confortá-la e levantei, logo Juan chegaria gritando para nos expulsar de lá. Caminhamos apressadas para o gramado onde as demais já treinavam, o assistente do técnico sorriu ao nos ver e acenou, retribuí o gesto e fui começar a sessão de alongamentos.
Vinte minutos depois Ramirez nos dividiu em dois times, um time de colete outro sem, eu estava com colete. Após o apito começamos a jogar, todas estavam determinadas a provar seu valor, afinal, aquele treino aparentemente inocente serviria para definir quem jogaria na próxima partida como titular. Tudo estava correndo perfeitamente bem, alguns passes, várias arriscadas, mas ainda zero a zero. Foi aos vinte e oito minutos que Jane arrancou com a bola pela direita, driblou duas jogadoras e encontrou Nina, que de pronto aceitou a bola, deu uma caneta em uma das adversárias e me localizou próximo aos traves, com aceno de cabeça recebi a bola, tive que brigar com duas zagueiras antes de recorrer ao único lance que salvaria e definiria o gol. Uma bicicleta, perfeita e com preciso, acertei o meio da rede... A gritaria tomou conta do time, mas no momento eu só conseguia pensar em como levantar depois de cair com tanta força.
- Levanta e vem comemorar. – Chamou-me Jane, tentei me colocar de pé a dor que me atingiu fez um grito que eu sequer sabia que estava preso, sair.
E foi assim que eu consegui lesionar o joelho com o que os médicos chamaram de ruptura do ligamento cruzado anterior e também do menisco externo do joelho esquerdo. Recebi a notícia de que precisaria de ao menos quatro meses de tratamento intenso para sequer pensar em voltar a jogar. O problema é que eu já havia planejado me aposentar ao final da temporada, seria feito o anúncio assim que a primeira partida fosse finalmente decidida.
Aparentemente, as coisas precisariam ser adiantadas.

Dias atuais...

Se passara cinco meses desde este fatídico dia. Eu havia me reunido com a equipe, exposto a situação e recebido muito apoio. Anunciamos para imprensa e os fãs surtaram, alguns ainda me mandavam mensagens pedindo meu retorno, outros apoiavam a minha decisão. Mas todos, sem exceção, adoraram o projeto ao qual eu aceitei me tornar apoiadora.
- , amor, não precisa se chatear desse jeito. – A voz de Sergio chegou antes que eu pudesse vê-lo, respirei fundo ao ouvir sua frase. Se eu tivesse ganhado um euro por cada vez que escutei essa frase desde que deixei o CT do Real até chegar em casa, estaria irritada em Milão.
- Sergio, é sério, Juan foi meu técnico por três anos, eu o considerava um amigo. – Respondi saindo do banheiro, me aproximei da cama e larguei as muletas para poder sentar no colchão. Ele aproximou para pegar os apoios. – Eu só pedi que ele liberasse a visita das meninas no CT, é importante para elas ver outras mulheres jogando, saber que esse sonho é unilateral. – Ele me olhou por alguns segundos em silêncio, sabia que eu estava certa.
O motivo dessa conversa é que, após me aposentar, eu decidira apoiar uma ONG voltada para garotas que sonham em se tornar jogadoras de futebol. Como estava impossibilitada de ajudá-las, fui pedir ajuda à Juan, para que as meninas pudessem ver um treino de perto e tirar suas dúvidas a respeito da profissão, que para muitas ainda era um tabu. Ramirez, com seu coração de pedra respondeu com um redondo não, o motivo verdadeiro por trás da negativa é que ele não aceitou o fato de que eu quis pendurar as chuteiras, segundo sua concepção e algumas informações que recebi por intermédio de entrevistas, é que eu havia desfalcado o time e o deixado na mão.
Pelos céus, eu não poderia jogar de qualquer forma, apenas tornei oficial minha decisão. Me aposentar como jogadora não me tiraria do mundo futebolístico, pelo contrário, me aproximaria mais. Eu queria estudar, me tornar auxiliar, técnica, conselheira... Queria ajudar mulheres a chegar onde eu cheguei.
- Talvez eu possa...
- Nem tenta, Sergio. – O cortei antes que ele prosseguisse. – Se quer me ajudar, fala com seus amigos, com suas amigas jogadoras, mas não ouse tentar falar com Juan, se ele quisesse ajudar já teria feito. – Aceitar que meu noivo intervisse seria motivo para mais burburinho e comentários maldosos que eu estava de saco cheio. Como aconteceu no dia em que fui retirar os pontos após a cirurgia...

Clínica médica - 17 de Abril – Madrid, Espanha

Estávamos na sala do médico aguardando seu retorno, o mesmo havia sido chamado para responder uma emergência e pedira que aguardássemos. Sergio estava impaciente, a cirurgia havia sido um sucesso e agora os pontos precisavam ser removidos.
- Eu vou ver se vai demorar, já volto. – Tentei convencê-lo a não ir, mas dizer para Sergio Ramos não fazer algo era o mesmo que o mandar fazer. Então dei-me por vencida e foquei minha atenção num jogo ridiculamente viciante que minha irmã havia baixado em meu celular.
A porta fora deixada aberta, então quando dois rapazes passaram comentando sobre como uma mulher poderia ter conseguido uma lesão assim não foi exatamente difícil ouvir. Foi no momento em que um deles comentou que eu só poderia ter uma lesão como aquela por usar um salto alto demais, e outro, que depois de rir horrores disse algo como “ela é noiva do Sergio Ramos, toma cuidado” que eu me revoltei.
Total e completamente.
Pigarreei bem alto para atrair suas atenções e os vi empalidecer ao me notarem. Arqueei a sobrancelha e sorri, cínica.
- Gostaria que algum dos dois pesquisasse por meu nome no Google, e quando aparecer jogadora de futebol artilheira e titular, vocês podem clicar porque sou eu mesma. – Seus olhos dobraram de tamanho diante de minha fala. – Quando se referirem a mim que seja por meu nome, ou minha profissão, não porque sou noiva de Sergio Ramos. – Eu conseguia ver o suor se acumulando em suas testas.

Dias atuais...

Um mês havia se passado desde aquela reunião com meu ex-técnico, o projeto com as garotas estava de vento em polpa, e graças a alguns contatos consegui o apoio de empresários para levar a ONG a outro nível. Hoje, eu já estava sem as muletas, recebendo apoio apenas de uma bengala, mas o mais importante não é isso... Meu noivo, com a ajuda de seus companheiros de time, que preciso dizer, ficaram mais do que animados em ajudar as garotas, marcaram um leilão beneficente onde poderiam arrecadar fundos e incentivá-las através de alguns discursos que, como o de Marta, as motivará a persistirem em seus sonhos.
- O esporte é uma ferramenta muito poderosa para alcançar a igualdade de gênero. – Ela sorriu doce diante do público que a assistia com atenção. - No Brasil, meninas que passaram pelo programa One Win Leads Another, um programa conjunto entre a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e o COI, transformaram suas vidas e mudaram a realidade em torno delas. Temos histórias de meninas que completaram o programa e agora estão jogando em equipes profissionais.
Ouvir aquilo da mulher que durante anos foi meu exemplo em campo era incrível, porém, mais do que isso, ver sonhos surgindo para milhares de garotas que foram desacreditadas, criticadas e apontadas por escolherem e amarem um esporte que muitos acham que pertence apenas ao meio masculino é maravilhoso.
No momento em que todos aplaudiram e se sentaram, eu soube que era minha vez. Enquanto caminhava para falar a todas aquelas pessoas, sentia o peso de minhas decisões. Eu havia me aposentado como jogadora, brigado com pessoas que achei conhecer para defender um ideal, lutado com unhas e dentes para mover um projeto que muitos deram por falido.
- Boa tarde a todos. – Recebi um coletivo “boa tarde” que me fez rir. – Vou ser breve, por que tudo o que precisava ser dito, foi dito. – Sorri para mesa onde Marta, Formiga e Cristiane estavam sentadas. – Fazer parte deste projeto foi a realização de um sonho que eu nem sabia que tinha, ver garotas lutando por seus objetivos e recebendo amparo me fez querer fazer mais e melhor. – Senti os olhos de Sergio sobre mim e ao olhá-lo vi o orgulho que borbulhava ali. – Recebi apoio de amigos, familiares e do meu noivo, que durante toda a minha recuperação não me deixou cair, me apoiou sem precisar pensar e ajudou para estarmos aqui hoje. Com isso eu só quero dizer que, poder sonhar em grupo é muito melhor, com pessoas que acreditam no seu potencial e estão dispostas a lutar ao seu lado. – Ramos piscou para mim, balancei a cabeça, mas não pude prender o sorriso que escapou. – Espero que hoje todos possam sonhar juntos por igualdade no futebol. Mas também na vida, no trânsito, em cargos... Enfim, que todos possam viver em igualdade e buscando sempre o melhor.
Os aplausos estouraram enquanto eu deixava o palco e recebia o abraço de minhas ex-companheiras de clube. Percebi então que, nem todos estariam dispostos a comprar minhas ideias, por melhores que fossem, assim como nem todos poderiam ter os mesmos sonhos que os meus. Mas aqueles que podiam, e queriam sonhar estavam ali. Dispostos a batalhar por uma igualdade que chegaria, ainda que demorasse, ela existiria se dependesse de nós.





FIM.



Nota da autora: PS: O discurso da Marta é o original feito para ONU.
Olá, galera! Venho agradecer muito por poder participar desse especial, peço desculpas pela história, foi menor do que eu planejava, mas espero de coração que vocês gostem. Comentem, por favor e nos veremos em breve.
Donna Sheridan.




Nota da beta: Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.


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