CAPÍTULOS: [1][2][3][4][5][6][7][8][9][10][11][12.1][12.2][13][14][15][16][17][18][19][20][21][22][23][24][25][26][27][Extra][28][29.1][29.2][30][31][32][33][34][35][36][37][38][39][40]









Capítulo 1


O começo do ano letivo na escola de Aplicação Val Campestre, da rede pública do estado, começava anualmente três dias depois das particulares e de algumas municipais. Os testes de bolsas de estudos e as matrículas causavam alvoroço, já que, infelizmente, nem todos os alunos carentes conseguiam vagas. O prédio imenso, tomando toda rua da cidade universitária, pertencia à Universidade de Campestre, no interior, e abrigava o colégio em pavilhão distinto. O funcionamento do Val acontecia somente pela manhã, com os seiscentos alunos, do ginásio ao Ensino Médio.
Dentre eles, três amigas inseparáveis: Luana Diniz, e Maria Giulia Mendes.
está com medo à toa — disse Luana a Giulia, que atravessava a segunda grade do prédio como se pudesse ser atacada a qualquer momento.
Com a mochila nas costas, seu cabelo longo e castanho solto, a garota ponderou.
— Até parece que é novata. Só porque foi à cidade grande, esqueceu as origens humildes?
— Nada a ver! — defendeu-se. — É que nem todos os alunos são comportados e inofensivos.
Luana revirou os olhos.
— Estamos numa escola, não na cadeia. Estudamos aqui desde que fizemos o teste para o 6° ano. Sabe que o Val Campestre não é um desses colégios sujos, cheio de gente estranha e... — Parou de falar ao visualizar uma atitude suspeita, e Giulia arqueou a sobrancelha em sua direção. — Aquilo são crianças tentando salvar o gato da árvore. Muito solidário, não? — Afastou-se delas e andou até eles.
Escutando música pelos fones de ouvido, não notou a voz aguda de Giulia chamando-a.
A mais alta teve que tocar seu ombro.
?
— Que? — Tirou um das orelhas. — Chamou para ficar me encarando?
— Não, pra você olhar se meu cabelo tá assanhado.
— Não está.
— Esqueci meu espelho. O banheiro é muito longe, eu não que...
— Seu batom tá ok e não tem nenhuma sujeira nos dentes. — Voltou a pôr o fone. — Relaxa! É o primeiro dia. Todo mundo dá um desconto.
Ela suspirou, tentando se acalmar. O primeiro dia, mesmo não sendo novata, lhe causava o típico frio na barriga; a ansiedade drenando seu cérebro, que a motivava a se preocupar demasiadamente com detalhes pequenos.
— Vamos procurar as salas?
— Pensei que não fosse chamar nunca. — Seguiu calmamente pelo largo corredor, indo ao lado oposto aos pavilhões usados pela faculdade, à biblioteca e ao prédio novo. — Será que mudaram as turmas?
— Contanto que Lu e eu estejamos juntas, tanto faz. A minha turma do ano passado foi a que mais deu trabalho. Bando de pirralho que não entendeu que estamos no Ensino Médio e algumas brincadeiras devem ser esquecidas, ou, no mínimo, evitadas. — Fez descaso, passando os dedos entre as mechas do cabelo.
Alheia ao falatório, continuava escutando 'Chasing Cars', em volume baixo, dando uma trégua aos seus tímpanos por ser de manhã. Mantinha o cabelo curto, repicado, na altura da nuca, com sua velha mecha azul e a franja penteada de lado. Os fios negros eram constantemente usados com bandanas ou “rabo de cavalo’’ em cima e solto embaixo. Não usava batom, pintava as unhas de esmalte claro e tinha olhos pretos, expressivos, contrastando com o tom da sua pele.
Despedindo-se de Giulia, adentrou o outro corredor contendo três salas; as dos terceiros anos.
Entrou na espelhada, e o ar-condicionado estava ligado, levando-a a pôr o casaco sobre a farda. Tirou a mochila, marcando o lugar na carteira perto da parede, e sentou-se ao lado de .
— Pera aí! — Ele checou sua playlist do celular. — Melhor que a música que você me enviou.
Ela sorriu.
— Meu gosto é peculiar.
— Como foram as férias? Viajou?
— Sem dinheiro, a gente só dá uma voltinha na praça e torce para o cachorro-quente ser dois reais.
— Dois, só se for no podrão.
— Nojo.
— A menina tá fresca... — zombou, recebendo uma careta. — Eu viajei.
— Para a casa do seu pai, no outro bairro? — Soltou uma risadinha debochada, vendo-o dar de ombros. — A propósito, meu tio está bem?
— Ele garantiu que não beberia mais nenhuma gota de cerveja.
— E as demais bebidas?
— Começou pelas cervejas... Tinha que começar de algum jeito, não é?
suspirou.
— Como estão meus tios? — quis romper o silêncio.
— Minha mãe tá fechando com a cara da sociedade toda vez que abre a lanchonete no centro. Até cogita mandar uns funcionários para vender lanche na grade. E meu pai conseguiu uma promoção na loja. Agora, é gerente.
— Fico contente por eles. Merecem muito!
Ela concordou.
— Alguma namorada de verão?
— Umas paqueras... Nada demais. — Abriu o caderno, folheando as páginas em branco.
— Sério?
— Por que não seria? — Ergueu a sobrancelha. — Mas não passaram de casos de verão. Nem mantemos contato.
— Para de mentir, cara! Que feio! — provocou.
— Ué! Não posso ter arranjando alguém?
— Mudar o estado civil nesta Campestre é tão impossível quanto eu me apaixonar e por você. Tipo, nós dois assim não rola.
Antes de ela ter concluído a explicação, já preparava a piadinha sobre exemplificar a amizade dos dois em termos românticos. Conhecia-a desde os onze anos, quando ela tinha dez, e ambos prestaram o teste para as novas vagas do 6° ano, em 2007, estando, exceto por um semestre, na mesma turma de lá até hoje.
Neste ano, porém, o último do colegial, muitas decisões precisariam ser tomadas, e nem sempre estamos, com pouca maturidade, aptos para abrir a porta do futuro tão incerto.

***


— Ficaram na mesma sala?
As amigas, sentadas à mesa no refeitório, lanchavam a comida servida pela cozinha, apelidada de “cantina dos pobres’’; exceto por Giulia, que detestava as refeições dali.
— Não. — Luana lamentou. — Fomos correndo, interrogar a diretora, mas ela disse que a quantidade de alunos reprovados da nossa turma no ano passado foi decepcionante.
— Como se a culpa fosse somente nossa. Não é estranho que mais de 25% dos alunos do primeiro ano tenham repetido? — Giulia inquiriu.
assimilou.
— E agora?
— Estamos em salas vizinhas, ao menos.
— Vejam o lado não tão bom disso, é melhor que nada: sou um ano mais velha que vocês. Nunca conseguiríamos estudar juntas, a não ser que eu repetisse e, neste caso, meus pais me jogariam na pior pública do meu bairro.
Luana concordou.
— Estamos bem.
— Nossa amizade não acaba por causa de uma parede.
sorriu.
— Então, o que fizeram nas férias? Não conversamos tanto.
— Passei um mês em Recife, aproveitando o mar. Até me queimei bastante.
— Eu fiquei dormindo.
— Trinta dias na cama? — Giulia olhou para Luana.
— Virava a noite, acordava tarde e comia algo. Depois, já estava anoitecendo, então eu voltava à cama. Pus as séries em dia. Isso não durou os trinta dias porque o curso técnico retornou antes.
— Querem saber o que fiz?
— Conta logo, .
— Nada. Nem assisti séries. Tive que arranjar um emprego e dividir funções com minha mãe na lanchonete. Ela estava precisando diminuir o número de funcionários, devido aos gastos.
— Você não teve férias?
— Entre o curso técnico, o de Inglês e o trabalho, além de cuidar do meu irmão, uns sete dias.
— Nunca mais reclamo na vida — falou Giulia, pesarosa.
— Nós deveríamos fazer uma vaquinha e pagar uma viagem de férias para você. É seu último ano na escola.
— Este ano tá focado no vestibular. Obrigada, mas não se preocupem comigo. Logo estarei lançando moda em Paris.
O intervalo encerrava às 10h20, com um sinal semelhante ao do hospício, segundo às más línguas.
As três levantaram-se, sorrindo e notando que dois novatos levaram um susto na mesa ao lado.
A zeladora, Bernadete, reclamava com os espertos que deixavam para comprar lanche somente quando deveriam voltar às salas; gesticulava, guiando todos para dentro das grades e pedindo que esvaziassem a cantina, além das filas no refeitório.
— Bora, bora, bora! Isso é hora, menino? — Luana imitou a funcionária, dando tapinha em seu relógio de pulso.
sorriu.
— Engraçado como todo ano torço para que um gatinho esteja na minha turma. — Suspirou Giulia, em desânimo.
— Mas olha o tanto de gato espalhado neste campus. Quer adotar quantos?
— Não é de um felino que me refiro...
— Maria Giulia, você tá querendo desencalhar? — Surpreendeu-se. — Quem diria?! Meu Deus! Ainda tô aqui para presenciar isso!
— Nem vem, ! É tu que não quer alguém para chamar de seu. Renunciou o amor. Sou muito nova para tanto e obcecada por ele.
— Tá me chamando de velha? Ó o respeito, Gigita!
— Ah, não, Gigita é o cúmulo!
Luana soltou uma risada, apertando as bochechas da amiga.
— Gigita é bonitinho, vai.
— Calada, Lulu! — Esboçou uma careta, afastando as mãos dela.
— Prefiro Luluzinha — disse .
— Luana, e só, não inventem.
Despediram-se mais à frente, no final do corredor, e entrou em sua sala.

***


— Como eu amo a professora Luci — comentou , sonhador. — Que didática, voz...
bateu levemente em sua cabeça.
— Acorda, cara! Ela não vai te dar moral!
— Não tô pedindo isso, violenta — resmungou. — Estava demorando o primeiro tapa.
— Para de ser fracote, Zé Bonitinho.
— Aí tu me ofende.
riu.
— Qualquer semelhança são os genes.
— Perde o amigo, mas não perde a piada. — Ergueu o polegar, fingindo chateação, e acelerou os passos.
— Ah, , pera aí! Mesmo diante das falhas estéticas, somos amigos.
— Até parece que olhar para você não me causa dor no estômago.
reprimiu a piadinha sobre isso.
— Vamos caminhando?
— Você tem carro? — respondeu mais ríspido que o esperado.
— Minha nossa! Não aguenta as zoações?
— Não. — Suspirou. — Desculpa. Você tá apelando agora.
— Estou?
— Parece até que nenhuma garota poderia se apaixonar por mim porque tenho uma porrada de defeitos.
— Sua cara realmente é parecida com a de quem leva uma porrada todo dia.
Ele arqueou a sobrancelha, segurando a alça da mochila.
— Porrada da vida — explicou risonha. — Relaxa. Deve ter alguma menina maneira na praça, esperando o Zé Bonitinho dá o ar da graça.
— Tudo bem, tamborete de forró, apressa esses pés de formiga porque quero chegar em casa hoje.
— Zoar meu tamanho é fácil, quero ver calçar 34.

Capítulo 2


Giulia observava, com um livro aberto sobre a mesa, o fluxo de alunos adentrar a biblioteca — a porta sendo aberta e fechada a cada curto espaço de tempo, entre estudantes do Val e universitários. As aulas da estadual começaram há uma semana, e os trotes já haviam sido aplicados.
Não se interessava pelos caras da faculdade. Uma vez, seu crush do ônibus estava beijando outra boca na porta da estadual e a magia se esvaiu.
Nunca mais prestou atenção neles.
Até se deparar com um veterano louro das íris castanhas.
Ele não a notou, mas seus olhos o observaram desde a entrada cuidadosa, a troca de livros e o sentar à mesa atrás da sua.
Suspirou, balançando a cabeça, e tornou a ler.
Leu o mesmo parágrafo dez vezes. Dispersa, imaginou seu pedido de namoro, o casamento e os filhos com a cor dos olhos dele. Seriam tão bonitos, pensou. Morariam em Amsterdã, já que era um de seus objetivos, enquanto zelava pela saúde mental de crianças, sendo psicóloga delas.
Com um arrastar de cadeira e reclamações pelo incômodo, despertou rapidamente.
Era bobo idealizar tudo isso e, mais ainda, com aquele estudante de Física. No mínimo, deveria ser maluco. Mas cuidaria da maluquice dele.
Luana sentou-se ao seu lado, sem que percebesse.
— O que você tá lendo?
— As Desvantagens de Ser Invisível.
Ela estranhou, levantando a capa do livro.
— Achei que fosse lançamento.
— Bem que poderia ser... Me ajudaria a usar minha capa de invisibilidade para algo útil.
— Você não é invisível.
— Que seja.
Luana olhou ao redor.
— O sinal de início das aulas vai tocar em cinco minutos.
— Já vou para a sala.
— Quer que eu te espere?
— Não precisa. — Levantou-se. — Vamos. Mais tarde volto aqui. Amanhã a biblioteca é fechada para nós, pobres alunos de colegial.

estava com o corpo inclinado, o rosto escondido pelos braços, sobre a carteira do canto; cochilava com os lábios entreabertos.
?
Não escutou.
? — Sentiu seu braço mexer. Depois, uma mão acariciar a cabeça. Enquanto sibilava, o toque tornou-se frenético e indelicado.
Assustada, abriu os olhos.
— Senhorita ?
Ela ergueu os braços, alongando o corpo, seus olhos sonolentos.
a olhava, sentado na cadeira ao lado, com os lábios discretamente curvados. tomou consciência da realidade e levou a mão à boca para conferir se havia resquícios de baba.
— Acordou? — a professora perguntou irônica. — Bom dia.
— Dia. — Respirou fundo. — Tem sujeira no meu rosto? — questionou, em voz baixa, ao garoto.
Ele apontou para o canto dos olhos.
— Obrigada.
— Formem duplas, por favor. Estudaremos Introdução ao Estudo da Filosofia. Para quem não me conhece, meu nome é Judith, sou mestranda em Filosofia pela estadual daqui, professora universitária e do Ensino Médio no Val. Abri essa brecha para tentar preencher a lacuna que falta de professores formados na matéria e que realmente estejam em sala de aula para partilhar conhecimento. É um estudo de via dupla; ensino a vocês e aprendo com vocês. Nossas aulas serão ministradas às terça-feiras no primeiro horário. Teremos alguns slides, vídeo aulas e muitos debates. Quero todos expondo opiniões.
— Saco! — reclamou , que detestava falar em público.
— Em parceria com a professora de Português, faremos redações a cada quinze dias sobre temas atuais. Pedi que formassem as duplas para a primeira atividade do ano: ler a apostila e responder as questões. Esta apostila... — Ergueu os papéis presos no clipe. — Foi preparada por mim, e isso significa que as respostas não são óbvias e não estão prontas no texto. Prestem atenção na minha aula e não terão problemas comigo.
ainda estava com sono, coçando os olhos.
— O que aprontou ontem, tamanho 34?
Ela bocejou.
— Tive que cuidar do meu irmão. Tentei tirar o atraso do sono, mas só consegui dormir tarde.
pôs o braço ao redor do seu ombro, trazendo-a para perto, sem jeito, numa ação carinhosa.
Era estranho ter este gesto específico entre eles. Porque poderiam falar sobre tudo, porém não demonstravam afeto em público.
acabou apoiando a cabeça no ombro dele. Por um instante, fechou os olhos.
— Não dorme — aconselhou baixinho, analisando-a de esgueira. — ?
— Tô acordada, cara — sussurrou. — Para de falar.
— Se eu parar, tu cai no sono.
cruzou os braços sob o moletom.
— Manda essa mulher abaixar a voz.
A professora explicava o assunto, e ela abria um olho às vezes, tentando mantê-lo aberto por tempo suficiente para que a aula acabasse.

***


Na pausa entre a segunda e a terceira aula, até que o professor da próxima matéria chegasse, Luana, Giulia e uma colega de turma conversavam no banco de concreto do corredor:
— Meus irmãos detestam ler — a menina corpulenta comentou —, então meu pai mandou que cada um lê-se um livro por semana e escrevesse um resumo. No início, era pra instigá-los, mas o mais velho enrolava bastante e fazia garranchos.
— O exercício da leitura deve ser estimulada desde a infância. É mais simples lidar com uma criança, neste caso, porque ela formará sua personalidade baseada no que vê, sente e aprende. Só que nunca é tarde para pegar um bom livro e se isolar do mundo. — Giulia disse.
A menina assimilou.
— Eles estudam aqui?
— Não, nós moramos no Projeto. O Jonas tem que ajudar meu pai, durante a manhã, na roça, e à tarde vai pra escola.
— Quantos anos eles têm?
— O Jonas tem 17, e o Joaquim, 6.
Giulia ficou em silêncio.
— Você é novata? — Luana perguntou.
— Sou. Consegui uma vaga com a coordenadora do outro colégio onde eu estudava no Projeto. Ela disse que eu deveria vir, mesmo que fosse longe, pois mereço um futuro com possibilidades.
— Isso é ótimo. Seja bem-vinda!
— Obrigada.
Duas garotas passaram em frente ao banco, esbanjando celulares modernos, perfumes doces e maquiagem nos rostos.
Giulia percorreu com o olhar todo o caminho que elas traçaram, vendo-as entrarem na outra turma do segundo ano.
— O professor está vindo. Vamos.

puxava o capuz do moletom de , enquanto ela caminhava à sua frente, escutando música.
— Você deveria sentar comigo na mesa dos meus colegas. Às vezes, falam umas besteiras, mas quem nunca?
Ela virou a cabeça.
— Não, obrigada.
— Onde estão suas amigas?
— Lá fora, comprando lanche.
colocou as mãos dentro dos bolsos, tateando, à procura do celular.
— Temos que tirar xerox da apostila.
— Amanhã a gente faz isso, antes de entrarmos.
— Os caras querem atravessar a ponte no skate. Bora?
— Depois da aula?
— É.
— Tenho que correr para casa. — Desanimou.
Ele também.
, tu tem que relaxar. Manda todo mundo ficar zen, mas é a primeira a não fazer isso. Estamos só no começo do ano letivo. Daqui a pouco, nem teremos tempo para sair.
— Não posso. Você não entende. Tenho que ajudar meus pais. As aulas nos cursos começaram.
— Nem comentei que meu pai pagou o primeiro semestre no AL Fontoura. A primeira aula é hoje à tarde.
Ela suspirou.
— Estou animada por você. De verdade, espero que o cursinho faça jus à propaganda que as pessoas fazem.
— Lá em casa não se fala em nada que não seja a respeito disso. Meu pai tá apertado por conta dessa matrícula, e eu preciso dar retorno.
Ela segurou seu braço.
— Olha, relaxa. — Sorriu junto com ele. — Vai dar tudo certo.

***


— Ai, vamos à biblioteca. Tenho que terminar de ler o livro. — Giulia pediu, arrastando Luana entre o fluxo de alunos.
A loura, de cabelo amarrado, a deteve.
— Tô comendo.
— Termina logo, então.
— Você tá com copo de suco, não vai entrar. — Viu-a beber num único gole o restante. — O que diacho tem lá?
Giulia deu de ombros.
— Espere na escada.
— Ficar esperando no meio de um bando de universitário? Era só o que me faltava.
— Por favor, amiga!
— Gigita, Luluzinha! — chamou . — O clube tá formado.
— Faltava a anã.
— Seu nome é soneca. — Luana alfinetou.
— Meu nome é preguiça e sou formada na arte do sono. Meu salário são sonhos e meu trabalho é dormir. Meu chefe é meu corpo e meu inimigo a falta de tempo — lamentou. — Enfim. Vamos sentar?
— Tô tentando convencer a moça aqui a ir comigo à biblioteca.
— Além dos livros, o que... Ah! Saquei! Os gatos. — Revirou os olhos, maliciosa. — Não é dos felinos que me refiro — imitou um comentário de Giulia, que enrubesceu.
— Ficou vermelha. — Luana sorriu. — Respira, Gigita. Vai com a lá, adotar um desses gatos humanos.
— Vem, . — Levou a de mecha azul.

A biblioteca, ao contrário das expectativas alheias, não esvaziava neste horário. O intervalo servia para que alguns alunos do Val fizessem pesquisas nos computadores disponíveis, ou fingissem com maestria, lessem, menos dialogassem. Os universitários, por sua vez, iam estudar em grupos e sozinhos, ocupando as mesas.
Havia uma única mesa desocupada entre as demais, no canto.
Giulia caminhou pelos estudantes, concentrados em outras atividades, e buscou o livro, que ela leu, na prateleira. Seu olhar vagou pela sala, à procura de uma cabeleira loura ou de outra cabeleira e olhos mais chamativos.
— Ele está aqui? — questionou, distraída, jogando no celular.
Ela sentou-se ao seu lado.
— Não.
— Ficaremos até o sinal tocar?
— Por favor, os bíceps dele naquela camisa branca ficam uma coisa absurda. — Com um risinho, complementou: — Absurdamente gostosa.
não conseguiu segurar a gargalhada alta, que chamou atenção da maioria dos presentes. Geralmente, não ficaria pálida e com vergonha, mas corou, o tom vermelho forte escurecendo as bochechas, constrangida.
Por estar de cabeça baixa, permaneceu assim, como se nada tivesse acontecido, tentando controlar a respiração.
Giulia, em sua mente, estava a dez palmos do chão, enterrada, longe dos olhares atentos e repreensivos.
— Tire-me daqui.
— Correr me parece uma boa ideia — sussurrou .
— Ainda bem que o crush não faz parte da galera.
Alguém parou à mesa delas, em pé, segurando uma mochila.
ergueu a cabeça, deparando-se com um estudante de aparência juvenil, barba por fazer, óculos de grau e cabelo despenteado. Os olhos escuros por detrás das lentes sorriam, tal como seus lábios finos, mas não tinha certeza se estava rindo.
Provavelmente, sim, já que viram sua pele atingir a cor de um tomate maduro.
— Posso pegar esta cadeira ou vocês estão esperando alguém?
A voz dele não possuia nada de incomum.
— Não estamos — respondeu.
Ele apanhou e afastou-se rapidamente.
— Ainda dá tempo de ninguém gravar nossa fisionomia. Vamos. — Giulia levantou-se, e foi atrás.

Capítulo 3


Naquela manhã de fevereiro, antes do feriado de Carnaval, cantarolava uma canção nacional, tendo a ideia de montar sua própria banda de garagem.
— Oi — despertou-o , com duas apostilas em mãos. — A moça não cobrou caro.
— Deu desconto, foi?
— Chorei um pouquinho. — Entregou-lhe um. — Este é seu. Temos que fazer a atividade. Responderemos as questões via whats, depois a gente anota no caderno.
— Sabe o que eu tava pensando?
— Não me comunico por telepatia.
ficou calado.
— Fala logo.
— Esquece, é besteira.
Ela olhou para ele, erguendo as sobrancelhas.
— Estou escutando.
— Em montar uma banda de garagem. Poderíamos tocar num bar, no Depósito, em eventos... Conseguiríamos uma grana extra. Quero ajudar meu pai.
— Conseguir formar a banda é que será puxado.
— Posso falar com meus colegas.
— Eles são estranhos.
— Nós também e, nem por isso, somos os excluídos.
— Certo. O que você fará nessa banda?
— Tocar baixo e vocal. Segunda voz.
— Que bom que é realista para admitir que não sabe cantar — provocou.
— Eu não disse isso. Constatei apenas que quero ser a segunda voz. Minha voz é rouca. Parece até que vivo com um caroço na garganta. Mas, de qualquer forma, não gosto de ser o centro das atenções e de falar em público, quem dirá cantar.
— É só de meninos ou eu sou exceção?
— Tu não toca nada e sua voz é baixa, tal como seu tamanho 34.
deu um soquinho no ombro dele.
— Isso é inveja da oposição.
— Baixinha.
— Falou o Dwayne Johnson.
— Que? — Dobrou a orelha. — Fala mais alto que daqui eu não te escuto.
revirou os olhos e apressou os passos, deixando-o rindo atrás.

Luana entrou na sala, segurando a mochila no ombro, e notou que a de Giulia não estava no lugar em que costumavam sentar; havia sido posta na parte da frente, entre as carteiras do meio, e não tinha lugar vazio ali.
— Você não guardou uma carteira para mim. — Viu-a entrar com outra garota, sorrindo por algo que ela dizia.
— É que você demorou a chegar, então pensei que não seria justo guardar o lugar de quem não viria. Dei a Saíra.
Luana deduziu que fosse a de cabelo liso — ou pranchado? — na altura da bunda. Nunca soube analisar, até pelo simples fato de não se importar com isso e com qualquer detalhe estético alheio.
Saíra Mongis era uma das duas garotas que passaram com o celular moderno e que provavelmente fazia parte do grupo da minoria rica, ou do grupo da maioria pobre metido a rico.
Praguejou baixinho esse último grupo.
— Tudo bem. — Afastou-se, dando de ombros. Reprimiria a surpresa e o incômodo de vê-las agindo como amigas de longa data.
Giulia maneou a cabeça e sentou-se com Saíra, engatando logo uma conversa sobre cursos, esmaltes da tendência e gatos humanos.
Aos 16 anos, Luana não tinha certeza de praticamente nada na vida. E não pela pouca idade, pois considerava-se madura. Era um tanto assustador, para ela, ter que decidir uma carreira e planejar os próximos quatro ou cinco anos. Concluiria o curso técnico de Eletromecânica, no ano que vem, pelo Senai, e teria como estagiar ou trabalhar numa empresa de manutenção e automação industrial, laboratórios de controle de qualidade, de manutenção e pesquisa, ou concessionárias de energia. Mas ser técnica não era o que almejava, nem o que esperava do futuro. Se queria algo e deveria ser planejado, planejava ser feliz.
Abriu o caderno, rabiscando uns desenhos aleatórios, enquanto o professor não aparecia.

sentou-se sobre a mesa redonda da área aberta perto da sua sala e dos bebedouros. Os colegas estavam acomodados nos bancos fixos, esperando-o explicar por que diabo acordar às seis da manhã deixava-o bem-humorado.
— Caras, vamos montar uma banda de garagem e nos apresentar em eventos.
É o que, homi? — Du, baixo e magro como um palito, disse com seu sotaque forte do interior.
— Se faturar alguns reais no fim de semana, gostei. — Isac falou enquanto digitava no celular. Participava de mil e um grupos no whatsapp; respondia com o gesto da paz ao receber todos os desejos de bom dia, tarde e sono. — Como é o esquema das apresentações?
Du lhe deu um tapa no pescoço.
— Presta atenção! Nem formamos a banda ainda.
agradeceu.
— É o seguinte: tenho pesquisado nomes e estilo musicais. Apresentaríamos com covers de músicas que fizeram sucesso nos anos 90 e 2000.
— Eu sei cantar em Inglês, escuta — pediu Isac, entonando uma voz feminina: — At first, I was afraid, I was petrified, tantan, Kept thinkin' I could never live¹, tantan, o Eduardo viu o bofe tomar banho e... — Alguns deram risada da enrolação, e Du ironizou.
— Na boa, deixa quieto. — pôs os fones no ouvido.
— Não, pode falar. Foi mal.
— Haverá audições para decidir quem fará parte da banda, amanhã, às 18h, na garagem da minha casa.
— Por que à noite? Você mora longe pra cassete!
— À tarde, eu estudo no cursinho, e é só uma audição. Os ensaios serão nesse horário e nos fins de semana.
— Quem vai julgar?
— Meu pai e eu.
— Estarei lá com minha guitarra emprestada.

No toque do sinal para o intervalo, Giulia seguiu Saíra e Saíse, gêmeas dizigóticas², e descobriu o nome da outra irmã delas, conhecendo-a logo depois. Selena, a caçula, era dois anos mais nova. Semelhantes fisicamente, não duvidavam dos seus laços sanguíneos.
Na última aula, Saíra havia chamado Giulia para sentarem à mesma mesa do refeitório ou caminharem pelo pavilhão da faculdade, que utilizavam poucas salas, para que desse a sorte de topar com o namorado, de surpresa, ou encontrá-lo às escondidas.
A supervisora não permitia saliência dentro do prédio.
— O nome dele é Matheus, cursa Fisioterapia — comentou enquanto comprava sua coxinha na área.
O modo como falava nele lhe dava uma pontada de “inveja branca’’ e ar de satisfação à Saíra.
O fato de namorar alguém mais velho devia causar isso.
— Namoram há muito tempo?
— Sério há dois meses. A gente se conheceu através do meu melhor amigo, que é amigo dele, começamos a conversar bastante e a ficar. Aí ele me pediu em namoro no dia do meu aniversário. Não é fofo? Ele me apoia e até me dá um reforço em Biologia.
— Seus pais sabem?
— Claro que não, boba. Até pensei em contar à minha mãe, mas ela não para em casa e nem se importa, e meu pai acha besteira fazer jantar de apresentação. Ele só quer que eu tenha cuidado, se estiver de rolo, e não me esqueça dos estudos.
— Minha mãe me mataria, caso eu escondesse dela.
— Meu pai, provavelmente, mataria a Selena, se ela estivesse namorando.

Incomodada e um tanto irritada, Luana encontrou , que estava com na fila da cozinha.
— Oi, vocês — disse, forçando um sorriso.
— O que aconteceu? — perguntou. — Onde a Gigita se meteu?
— Ah, ela fez novas amizades. Virou best friend... — Imitou uma voz afetada. — Das gêmeas S. Eu diria que virou capacho, porque sou dessas sinceras. Troquei de sala com uma aluna da sala da Giulia.
— E eu que achei que ela não gostava delas. Bom, fica com a gente. Pego seu prato.
contou sobre as audições do dia seguinte.
— Qual é o estilo? — Luana perguntou.
— Rock nacional.
— Meninas podem ingressar ou é banda de testosterona?
riu, arqueando a sobrancelha para o amigo.
— Claro que podem, é até melhor. Muita testosterona acumulada causa irritabilidade.
— Isso soou como se nós fossemos ajudá-los a se livrar disso.
— Não. — Moveu-se na fila dos garotos, explicando: — É que um bando de macho no mesmo ambiente é pesado para os olhos.
Luana trocou olhares com .
e eu estaremos lá. Toco guitarra desde que me entendo por gente. Tenho uma setlist de músicas nacionais nesse estilo.
— Esperaremos vocês.

Na hora da saída, Giulia, com a mochila e segurando um livro, esperou que aparecesse entre os alunos que saíam da sua sala no corredor do terceiro ano. Observava o relógio de pulso, notando que faltavam poucos minutos para sua mãe chegar.
— chamou, vendo a de mecha azul se afastar com seu amigo —, hum, posso falar com você rapidinho? Preciso de um favor.
Ela assentiu, despedindo-se de .
— Pois não?
— Minha intuição diz que é para eu ir à biblioteca agora.
— Provável que seja por ter alugado o livro e não ter certeza do prazo de entrega. — Brincou, tocando seus ombros. — Esquece esse calouro, Gigita. Não cria expectativas diante disso. Nem sabe quem ele é, se tem namorada...
— Mas quem não esqueceu ele foi você. Somente vou devolver este livro e alugar outro. As meninas foram embora, e eu não quero ir sozinha, vai que... Tropeço na escada e rolo no chão... Amigas servem para dividir micos e estender a mão.
— Conta outra.
— É sério, juro!
— Vou escutar um monte de reclamação de demora por sua causa, mas bora. — Puxou sua mão. — Depressa.

A biblioteca estava parcialmente vazia. Alguns universitários, que facilmente contariam nos dedos a quantidade, sentaram-se em mesas espalhadas, e três ou quatro alunos do Val trocavam livros no balcão de devolução.
A porta foi aberta, e um garoto gritou, antes de sair da sala, pedindo que o outro guardasse seu assento no ônibus.
Enquanto mantinha a atenção na capa do livro que ela devolvia, apoiando o rosto na mão, Giulia desembaraçava o cabelo com os dedos, olhando para a porta todas as vezes em que era aberta.
— Você não me engana — disse , em voz baixa, num tom de repreensão. — Escolheu o novo livro?
— Quero um romance. Deve estar nas prateleiras de cima. Vi uma vez. Espera. — Andou até a estante alta, tocando os livros, seus olhos vagando pelos nomes e autores. — Ativa seu cartão de leitor, .
— Estou cheia de deveres e assuntos para estudar. Não conseguiria entregar a tempo.
Um dos estudantes encostado no balcão, afastado, olhou para ela rapidamente, como se estivesse averiguando quem era a garota com casaco e blusa do FERA 2014, sem se importar de fato.
— Onde estão os livros da Jane Austen?
A funcionária pediu que outro aluno assinasse o cartão.
— Na parte de cima à sua esquerda. Qual é o nome do livro?
— Orgulho e Preconceito.
— Aqui. — Uma mão o pegou no alto da prateleira, parando ao seu lado com o livro estendido. Nem ao menos notara sua presença discreta.
— Temos dois exemplares — a atendente disse.
— Obrigada. — Gigita falou, sem conseguir manter contato visual.
Era estranho receber gentileza.
O universitário afastou-se dela com outro livro em mãos e uma capa de documento azul, e sentou-se à mesa onde uma garota fazia anotações.
Aquele era o louro de olhos castanhos e ele foi apenas gentil. Porém, para uma boba de coração livre, significava que, vendo-o por vezes durante este semestre, acabaria passando-o do nível de crush para — paquera? — o que vem depois disso.
— Achou? — a despertou.
Ela respondeu enquanto fingia ler a contracapa:
— Sim, levarei este e Anna e o Beijo Francês.

¹O nome da música é 'I Will Survive', da Gloria Gaynor, de 1978, e fizeram uma paródia citada pelo personagem. O nome dessa paródia é: “Eu não nasci gay.”
²Gêmeos dizigóticos ou fraternos não se assemelham muito entre si, podem ter ou não o mesmo fator sanguíneo e podem ser do mesmo sexo ou não. Também são conhecidos como gêmeos diferentes.

Capítulo 4


Às 17h30, a primeira possível integrante da banda de garagem chegou à casa de . Com sua mecha azul, sapatenis e casaco, atravessou o portão aberto, deparando-se com ele sentado sobre o capô do carro do pai, dedilhando as cordas do seu violão.
— Nada mal.
sorriu, sem olhar para ela, e terminou de tocar. Não se sentia à vontade para fazer isso na frente dela.
usava a farda do curso técnico — uma blusa gravada ADMINISTRAÇÃO e calça jeans.
— Cansada? — Ergueu os olhos para os seus.
— Eu aguento. — Deu de ombros, suspirando, e tentou sentar ao seu lado.
— Sabe que isso é terminantemente proibido, não é? O seu Elias vai dar uns cascudos na gente.
Ela desistiu, jogando-se no encosto.
— Acha que essa ideia de banda dará certo?
— Se todo mundo colaborar, sim.
— Toda banda precisa de gerenciamento. Estive pensando nisso e concluí que eu posso me tornar empresária de vocês.
balançou a cabeça, achando graça.
— Calma lá! Nem temos a banda e você já está pensando em ser nossa caixa registradora?
— Alguma mente esperta tinha que checar isso.
— Beleza, espertinha, mas temos que entrar em consenso. Por mim, tudo bem.
O baque de uma bicicleta caindo no chão interrompeu qualquer novo comentário.
— A correia tá quebrada, e eu não tenho cinco conto para consertá-la. É bom que essa banda me renda verba. — Isac chegou, reclamando, e voltou para erguer a bicicleta vermelha com pena.
— E aí? Preparado? — perguntou.
— Meu amigo, eu nasci pronto. Trouxe minha guitarra. — Tirou o instrumento encapado das costas, pondo-o em cima de uma tábua.
— Vou pegar a chave do carro para tirá-lo daqui. — desceu do capô, deixando o violão com , e seguiu pela lateral da garagem, até desaparecer na porta.
— O que você vai tocar? — quis saber.
— É surpresa.
— Skank?
— Não, do Isac.
Ela revirou os olhos.
Alguns passos próximos à entrada da garagem foram escutados, e os dois viraram naquela direção.
Luana estava corada e ofegante, segurando sua guitarra encapada. Acabou jogando-se no colo de , devido a falta de assento e a calça ser branca.
— Sair da Vila Mariana para vir aqui é como ter que rodar a cidade inteira.
, traz água para a Luluzinha!
Isac soltou uma risada baixa, de costas.
— Essa é boa.
! — Luana reclamou. — Só arranjo amiga com defeito de fábrica.
— O seu defeito é o peso. — Empurrou-a levemente, fazendo-a levantar.
apareceu com uma jarra com água e dois copos.
— Obrigada. — Luana bebeu, respirando fundo. — , você decidiu o que vai cantar?
— Fiz melhor: resolvi empresariar a banda. Não tenho tempo de vir aos ensaios e não toco nem meu dedo do pé.
— E a voz é da altura de uma formiga — disse , antes de entrar no carro e girar a chave —, literalmente.
— Tudo na é pequeno.
— Aí eu não sei. Não quero me comprometer.
Isac conectou a guitarra à caixa de som.
— As mulheres é que vivem juntas no mesmo banheiro.
— Pera aí! Não é da conta de vocês o tamanho dos meus atributos físicos. Tira logo esse carro, .
— Tá afobada³? — Acelerou, assustando-a. — Relaxa, , as baixinhas são retadas.
Luana riu, e Isac mostrou um sorriso incrivelmente não sacana.
Os outros integrantes foram chegando com o passar dos minutos e, às 14h30, todos que confirmaram a ida marcaram presença, portando instrumentos, ou apenas a coragem, como no caso de Du.
O primeiro a posicionar-se diante deles, de uma roda de olhares cobertos de expectativa e consoladores, foi Luana. Não porque era a mulher entre os protótipos de homens, mas por vontade própria — sua coragem poderia se esvair, caso não fizesse a apresentação logo. Enquanto ajustava o cabo da guitarra azul, os outros tiravam o palitinho para ver quem seria o próximo.
Ao som de 'Malandragem', da Cássia Eller, ela começou. Os acordes soavam. A melodia em sua voz forte, imponente, reverberando com uma ou outra falha vítima do nervosismo:
Quem sabe, eu ainda sou uma garotinha... — Arrastou a última vogal. — Esperando o ônibus da escola sozinha. Cansada com minhas meias três-quartos. Rezando baixo pelos cantos por ser uma menina má. Quem sabe o príncipe virou um chato... — Olhou para a lâmpada na parede. — Que vive dando no meu saco. Quem sabe a vida é não sonhar...
Os sentados em cadeiras de plástico cantaram o refrão junto com ela:
Eu só peço a Deus um pouco de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade... Eu sou poeta e não aprendi a amar.
Mais algumas estrofes, e Luana finalizou, curvando a cabeça.
— Mandou bem, Luluzinha! — As primeiras palmas vieram de . Em seguida, os garotos a encheram de elogios pomposos, deixando-a sem graça.
— Valeu, pessoal!
chamou o próximo candidato: Du, com nome de batismo Eduardo.
— Tá, né. — Levantou-se, caminhando devagar para o meio da roda. — Esqueci meu violão. É o nervoso. — Entregaram a ele, rindo, e Du agradeceu. — Minha vaga não é para ser o vocal, que fique claro. Nem adianta. Sei que meu vozeirão é foda, tenho plena convicção disso, mas não. — Dedilhou as cordas, assumindo um ritmo lento.
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. — Sua voz era suave. — Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
— Não era anos 80 para cima? — Isac questionou.
— Deixa o cara, ele ficou nervoso.
No fim dessa canção e das demais audições, que foram cinco, Isac cantou 'Eduardo e Mônica', do Legião Urbana, contabilizando a última do dia — era a primeira fase de testes, em que provariam suas habilidades musicais. A segunda, no sábado, seria em dupla, com a presença do pai de , para decidir os vocais, guitarristas, o baterista, que não tinham, e como a organização seria feita. Por ora, aquilo era o suficiente.
Meio caminho andado.
Já estava tarde quando, enfim, foram se despedindo, depois de palhaçadas, rango e muito barulho, que resultou em reclamações de sua mãe.
Apressados, os garotos foram embora, carregando os instrumentos, com skates e bicicletas.
— Mainha está vindo. — Luana avisou a , em pé, retornando do jardim. — Quer carona?
— Sim.
havia deixando-as sozinhas por um instante para tomar banho.
— Gostei daquele bando. Parecem mulheres falando sobre o que lhes convém.
Deitada sobre o encosto, sorriu.
— Eles foram maneiros.
— Você não os conhecia?
— O me apresentou à maioria, mas não passamos o intervalo juntos.
— Não morre mais. — Olhou para o garoto atravessando a porta, vestido com camiseta gasta e bermuda.
— Então, moças, não querem assistir TV por enquanto?
— Não, valeu!
— A mãe dela tá vindo.
Ele assentiu. Vendo Luana afastar-se, entretida com o celular, virou a cabeça para .
— Se quiser ficar, eu te levo em casa mais tarde.
— Se eu não tivesse que cuidar do meu irmão, seria um convite irresistível. Porém, ele é tentador.
— Minha tia ainda cisma com nós dois? Ela não sabe que você me vê como uma mulher?
— É impossível te ver como uma mulher — disse e riu de uma piada interna —, mas te tenho como irmão, só que é complicado para mainha entender isso.
Ele concordou mecanicamente.
Mais simples que entender que a relação deles baseava-se restritamente em fraternidade não existia.
— Vamos, . Tchau, ! Queremos te ouvir cantar no sábado, hein! — Luana avisou, apanhando a guitarra.
— Pode deixar... — Se a vergonha me deixar também. — Vai logo, , ou elas vão embora.
— Aí você me leva. — Enrolou.
— Não quero mais. Tô cansado.
levantou-se, pôs a alça da mochila no ombro e andou até ele. Com um toque rápido de lábios em seu rosto, ficando na ponta dos pés, lhe deu as costas.
Assim que o carro saiu de vista, os dedos rapidamente tocaram a face beijada, o formigamento — uma sensação esquisita — tomando a região e incomodando.
Ela não fazia isso frequentemente porque sabia que ele ficava constrangido com beijos no rosto.
Estava constrangido agora, mesmo que não pudesse vê-lo.
Fechou a garagem e apagou a luz.

³Afobado(a) é uma gíria que significa impaciente/apressado/aborrecido etc.

Capítulo 5


nunca se incomodou com sua postura, a altura baixa, o corpo de curvas proporcionais ao seu tamanho — ou nem tanto, desde que sentia-se cheia, mesmo não sendo e, quando engordava, ficava aparentemente inchada, fofa —, e nem era tão vaidosa quanto às outras garotas. Como Giulia, por exemplo. Tinha um estilo próprio, que refletia sua personalidade, mas ser aceita e se aceitar nunca foi tarefa fácil nesta idade. Até para ela.
Cabisbaixa, com os fones, a música no último volume, atravessava o corredor, que parecia interminável.
— chamaram distante. — !
Ela não escutou, continuando a caminhada.
— Pés de formiga, tamborete de forró — chamou —, tamanho 34! — Aumentou a voz.
olhou para trás.
— Ah, você gostou do apelido. — Miguel provocou. — Vai acabar surda antes da velhice.
Me deixa. — Virou-se, voltando a andar.
Ele percebeu que o humor um tanto negro dela havia ficado em casa. Por algum motivo que a incomodava.
Adiantou-se. Os passos mais largos do que as pernas dela poderiam alcançar.
— Você está bem?
Ela virou a cabeça.
— Estou tentando escutar a canção, mas você tá atrapalhando.
— O que aconteceu? Não conseguiu dormir? — Ignorou seu resmungo.
— Só durmo seis horas por dia.
— Mas não acorda irritada — reforçou, completando: — Às vezes, sim, só que é raro.
— Se o seu intuito for me fazer sentir melhor, pare porque não tá funcionando.
— Gostaria de saber o que houve. — Deteve-a no meio do trajeto, ficando à sua frente. — Não existem segredos entre nós. Vamos, diga.
— Eu não quero falar sobre isso — desconversou impaciente, pausando a música.
— Isso que você tá sentindo? — Juntou as sobrancelhas, sua atenção causando nela certo desconforto.
Falar a respeito de sua aparência era tornar real o problema que milhares de garotas sofrem diariamente: achava-se despadronizada e sentia receio como nunca antes.
Tudo começou ontem.
— Vou tentar adivinhar. Olha o que você faz comigo. — Mordeu o lábio, pensativo. — Ontem estávamos animados com as audições. Despedimo-nos e você foi embora. Tudo ocorreu nos conformes, mas...
, você me acha gorda? — perguntou tão rápido que o assustou.
A demora dele serviu como uma confirmação para ela.
— Não — conseguiu responder. — Não, , você não é gorda, é baixinha. — Sorriu. — Vem cá. — Abraçou-a pelos ombros, e agarrou-se nele de uma maneira como quem procura abrigo. — Escute o que vou te dizer, porque não repetirei, e você sabe que não minto: você é bonita demais com sua forma, e o seu jeitinho é o que me cativa. — Beijou-a na cabeça, afastando-se.
Os olhos de estavam úmidos.
— Obrigada, cara.
— Só não peça para repetir, é demais para mim. — Coçou a nuca. — Amigos são como âncora. Apoie-se em mim quando quiser.
Ela assentiu e os dois seguiram lado a lado, em silêncio, assimilando tamanha intimidade.

A primeira semana de aula serviu para que os livros didáticos fossem entregues aos alunos quando eles buscaram numa sala reservada. Feito a atividade de Filosofia, ficou com a cabeça encostada na cadeira, praticamente deitada, prestando atenção. Mesmo que as palavras de tenham penetrado sua vulnerabilidade, não estava com saco para conversar. Nada relevante vinha à mente e não queria contagiá-lo com seu humor afetado.
— Sua coluna vai doer pra caramba — ele disse baixo com o corpo inclinado.
— Depois passa.
— Vai ficar choramingando pelos cantos, e eu juro que não te levarei nos braços.
— Não estou te pedindo nada.
fingiu ter se ofendido com a resposta atravessada.
— Ôpa. — Colocou a mão no peito. — Alguém ainda está de mau humor. Qual é, ! Hoje não é dia de ficar pra baixo. Deixa para quando as provas vierem.
Ela fechou os olhos, e seus lábios se curvaram involuntariamente.
— Droga. Para de fazer isso.
— O quê?
— Tentar me fazer sorrir.
— Eu consegui.
endireitou-se.
— Não conseguiu, não. Estou brava.
— Comigo?
— Comigo — explicou. — Com essa merda de padrões estéticos! Nunca liguei para isso...
— Exatamente. Você não liga para essas baboseiras. Então pare.
— É complicado. As pessoas apontam o dedo para suas falhas...
— Escuta, enquanto estiverem apontado um dedo, haverá uma mão contra elas. Não estamos imunes às críticas, mas temos que aprender a lidar. E se aceitar é o primeiro passo. Quando você está confortável consigo, as opiniões alheias deixam de surtir esse efeito.
— Vou me lembrar disso.
— É isso aí! — Começou a escrever no caderno. — Agora, olhe para a lousa e veja o que você perdeu.
virou a cabeça, deparando-se com o quadro negro lotado de palavras, e a professora estava com o apagador em riste.

***


— Memórias Póstumas de Brás Cubas é o nome do livro — disse Giulia, apoiada ao balcão de devolução da biblioteca.
A funcionária morena, esposa de um dos professores do Val Campestre, pesquisou agilmente no computador.
— Possuimos dois exemplares. Um foi reservado, e o outro está no corredor E, em cima.
— Obrigada. — Afastou-se com sua mochila aberta e pendurada no ombro, e uma chama de esperança acesa dentro de si.
Não tinha a certeza do porquê.
— Você consegue ser patética — falou sozinha, achando graça. Conferiu os livros da prateleira, passeando os dedos sobre eles, até erguer os pés e apanhar o paradidático; seria de uso para uma atividade avaliativa.
— Gigita, o que tu procurando desta vez? — A voz grave e repentina de Luana a assustou.
— Ai, menina, quer me matar de susto?! — Balançou a cabeça, passando por ela com o livro em mãos.
A maneira como a tratou foi indiferente.
— O professor chegou e pediu que formássemos duplas. Eu vim do banheiro. Coloquei sua carteira ao lado da minha.
— Lá atrás? — Entregou o livro à funcionária. — Detesto sentar no fundão, Luana, e, provavelmente, Saíra fará comigo.
— Na verdade, Saíra está sentada com a irmã. Acha mesmo que ela a trocaria por você?
— Somos amigas.
— E elas são gêmeas. Se conhecem há dezesseis anos.
— Eu entendi — resmungou, dando de ombros. — Obrigada, Rosa. — Caminhou para a mesa dos computadores.
— Não vai entrar na sala?
— Mudei de ideia. Vou ficar aqui e ler, e fazer uma pesquisa.
— Não temos nada marcado.
— Olha, não se preocupe comigo. Vá para sua aula.
— Sabe que se te acharem, você tá perdida.
— Ninguém sabe que me perdi. — Arqueou a sobrancelha, incisiva. — Além de você.
Luana captou a mensagem por trás de sua expressão facial.
— Farei o trabalho sozinha. Que seja.
— Não precisa por meu nome. Tchau.
Ela fechou a porta.
— Eu não iria.

combinou de organizar o trabalho de genética, que contaria como ponto extra para o primeiro teste da disciplina em duas semanas, na casa de . Os capítulos eram grandes, e o tempo, corrido, assim como a semana deles.
— É para entregar até o dia 11, então a gente marca para o fim de semana.
— Sábado tem a segunda fase de audições lá em casa.
— Podemos dar início depois dela. Ou no domingo.
— Domingo é o meu dia de descanso. Eu sou filho de Deus.
— Falou quem só fica de barriga para cima.
— Você tá de brincadeira?
— Estou. — Sorriu, seu humor mais receptivo. — Então façamos semana que vem. Esqueci que tenho um teste de bolsa no sábado.
— Onde?
— É para um cursinho no Centro, o Poli alguma coisa — desconversou.
— Nunca ouvi falar. É bom?
— Hum... É pra ser. O primeiro lugar recebe uma bolsa integral, e o segundo, semi.
— Você vai conseguir.
— Espero. — Soltou um suspiro resignado. — Mas, se não der certo, tudo bem. Estou atolada de afazeres... Não sei como conseguirei conciliar tudo.
— Dá-se um jeito. Vem, vamos à quadra.

Enquanto Luana retornava à sala, sentando-se irritada na cadeira, Giulia, especialmente rabugenta nesta segunda-feira, em plena 08h05 da manhã, navegava na internet distraidamente.
Ninguém estranhou sua presença, tal como a de um garotinho da quinta série, provavelmente, que lia gibi, sentado à mesa.
Ela jogou a mecha do cabelo para trás, apoiando o rosto na mão.
Poucos estudantes vagavam pela biblioteca neste horário, cedo demais para queimar neurônios.
— Qual é a senha do wifi, moça? — um jovem universitário com a camisa do curso de História perguntou, acomodando-se na mesa de computadores, ao seu lado. Pegou um livro e caneta sem o bico, e jogou a mochila no chão.
Giulia olhou discretamente para o sujeito.
— Tá colado na mesa.
— Ah, sim. — Averiguou, tirando uma foto pelo celular. — Obrigado. Minha cabeça tá meio avoada.
— É de tanto andar comigo. E eu sou o cara das exatas — outro universitário disse, tirando onda, perto dele, e o olhar tranquilo de Giulia tornou-se hesitante.
Os lábios finos curvaram-se enquanto ele sentava-se ali.
— Poxa! Aqui não tem espaço pras minhas contas. — Levantou-se. — Falou, irmão. — Com um tapinha em seu ombro, seguiu para a área das mesas.
Surpreendida estava Giulia, que não o acompanhou com os olhos porque o amigo dele estava sentado ao seu lado.
Pigarreou, percebendo que o sujeito parecia concentrado nos estudos.

O professor de Matemática chamou o nome de Giulia duas vezes, e Luana teve vontade de admitir onde ela estava, mas isso soaria como fofoca. E, se ela queria se prejudicar, que fosse sozinha. Respondeu que não havia chegado.
Saíra virou de lado na carteira.
— Eu jurava ter visto Giulia, hoje, quando cheguei.
— Onde ela estava? — sua irmã perguntou.
— No corredor perto do pavilhão da faculdade. Você sabe onde ela está, Luana?
— Não vi nem a sombra dela. Você não escutou o que eu disse ao professor? E as novas amigas dela são vocês.
Saíra ficou chocada com o desaforo.
— Você tá precisando de um namorado. Eu, hein.
— Agradeço a sugestão, mas discordo.

provou sua solidariedade quando se prontificou a ajudar uma colega de classe que estava caída no chão da quadra, depois de torcer o pé no jogo de futebol. Carregou-a pelos ombros, com a ajuda de outro garoto, pondo-a no canto.
Sentada na arquibancada, escutando música, observava.
Ele atravessou a quadra, aproximando-se dela, o olhar estreito devido ao sol no rosto.
— Só eu vi? — perguntou.
— A queda? Acho que não.
— O motivo dela.
— Ela correu e torceu o pé. — Deu de ombros, olhando para a amiga. — Não foi engraçado.
— Dayana forçou toda a cena para que tivesse garotos salvando-a. Quer dizer, um garoto.
— Nem foi premeditado. — Divertiu-se com sua especulação. — Não cisma com isso.
— Ela é a fim de você.
— De mim? — Estranhou, o semblante surpreso e sério como ele era na maioria das vezes.
— Você é lerdo, cara. Como não percebeu isso?
— Não vi os sinais. A gente nem senta junto e conversa. Ela deve premeditar que se apaixonará por mim até o final do ano.
— Aí se joga no chão para que você a salve. Faz sentido. — gargalhou. — Alguém gosta do .
— Você não?
— Não como ela.
— Para de plantar a semente da dúvida em mim.
sorriu, admirando a linguagem corporal dele.
— Você pode tirá-la.
, não. Se alguém estiver realmente a fim do — disse —, não é ele quem tem que adivinhar.
— Tudo bem. Eu descubro pra você.

Dentro da biblioteca há uma hora, Giulia, enfim, tomou coragem para deslogar no computador e ir sentar-se à mesa. Acomodando-se silenciosamente no meio, deixou o estojo cair, chamando atenção de três estudantes, e suas reações pareciam aéreas, como quando estamos num universo paralelo, nos livros de Karl Marx ou em Cálculo III, de um trabalho ou projeto do TCC, cansados, então alguém derruba algo e os desperta. E foi preciso somente de um barulho qualquer para eles. Para ter o pretexto de olhar para o lado, perdendo tempo, por culpa da pirralha do Val Campestre.
Os alunos do colégio não tinham boa fama entre alguns universitários.
— Sua borracha tá no chão, moça — o estudante de História avisou, sentado à mesa do amigo à frente da sua. — Ali. — Apontou para o pé do louro de Física. — Pega aí, Digão, pra ela.
Ele parou as anotações e inclinou o corpo, buscando o objeto laranja, sem olhar para Giulia.
— Obrigada.
Pelos próximos minutos, a biblioteca ficou em silêncio, a luz do sol adentrando pelas aberturas compridas. Giulia checou o horário, e passava das nove.
Abriu a conversa com Saíra, perguntando se o professor havia chegado:

[Hoje, 09h12]
Saíra: Vem logo, maluca! Onde tu tá?
Giu Mendes: Na biblioteca! Vou depois do intervalo.
Saíra: Tá cheio de gatinhos e livros, ou gatos humanos e mais livros aí?
Giu Mendes: Tudo junto, miga! É minha perdição! D:
Saíra: Se rende! hahaha mas isso não dá futuro. Vem logo!

Ela demorou a responder:

Giu Mendes: O crush tá aqui.
Saíra: Ele deve estar atolado de assunto, e vc tbm!

Giulia concordou, apanhou a mochila e saiu de fininho.
Definitivamente, tentaria esquecer aquele universitário.

***


Luana viu Giulia entrar na sala, logo quando o intervalo acabou, rindo, junto às gêmeas, e sentando-se ao lado de Saíra. Ela maneou a cabeça em sua direção, mas não puxou conversa. Durante as duas últimas aulas, principalmente, no término da de Geografia, Luana teve a certeza de que a amizade delas estava desmoronando.

Capítulo 6


Sem tocar no assunto de ontem, e caminhavam lentamente pela calçada do novo prédio da universidade, enquanto os ônibus faziam a curva na rotatória para pararem no ponto, que ficava ao lado de uma faculdade particular, e os alunos vinham separados, em menor quantidade, com preguiça.
— Mainha quer que eu vá para a UCA ano que vem. — falou. — Porém, não tem o curso que eu almejo na cidade.
lamentou.
— Meu pai espera me ver na federal. Lá tem Direito. Estou entre Direito e Economia.
— Ela falou para eu arranjar um emprego após o estágio, quando concluir o curso técnico, e estudar numa faculdade à distância.
— Não acho que seja uma alternativa boa.
— Nem eu, mas necessito de dinheiro para custear meus gastos, e meus pais precisam de mim.
— Assim como você precisa do apoio deles.
nunca entenderia exatamente o perrengue que era a vida dela porque simplesmente não a vivia.
Ele tinha problemas financeiros, sofria com o vício do pai, a pressão absurda nele, mas não a noção do aperreio de .
O curso dela, nem ao menos para favorecer, estava entre os demais nas faculdades de Campestre.
— Vai abrir mão do seu maior objetivo, ?
— Meu maior objetivo é tirar meus pais desta vidinha mais ou menos que levamos.
Ninguém estendeu o diálogo.

Mais tarde, durante a visita de estudantes do quinto período de Fisioterapia e Nutrição às salas dos primeiros e segundo anos, coletando questionários e medindo o peso dos alunos para pesquisa acadêmica, Saíra recebeu um sorrisinho discreto, sem ter visto no primeiro momento.
Quem percebeu que olhavam para a garota, enquanto a colega explicava a vinda deles, foi Giulia, sentada ao lado dela.
Saíra sorriu de volta.
O seu namorado era um veterano de boa aparência, vestindo jaleco, de cabelo escuro e lábios cheios, com seus vinte e um anos. Se era “boa pinta”, Giulia não saberia dizer.
— Bom dia, pessoal! Estarei entregando este questionário ao primeiro da carteira e peço que, por favor, pegue um e repasse aos demais. São perguntas rápidas, sem pânico, sobre o dia-a-dia de vocês. — Matheus dividiu com um colega os papéis e começou a entregar.
Parando diante do corredor entre as carteiras, deteve-se na segunda, dando a Giulia e, em seguida, perto da outra do lado, estendendo à namorada.
Saíra tentou puxar, e ele afastou a mão, encostando os lábios nos seus rapidamente. Depois, seguiu, deixando-a encabulada.
Giulia sorria. Porque, para ela, tudo aquilo — ter um namorado, gostar de quem corresponde nosso sentimento — era uma experiência desconhecida e atraía sua curiosidade.
No entanto, nem só de rosas vive o amor, quem dirá a demonstração dele:
Relacionamentos.

***


Luana estava farta. As duas primeiras semanas de aula se foram, e Giulia continuava disposta a cativar as novas amizades, esquecendo as velhas. Assim, restava a ela ir atrás das suas. Conversou com duas meninas no corredor, que eram de outra turma, e aproximou-se de uma da mesma sala. Por sorte, sempre tratou bem seus colegas e fazia questão de ir para os grupos de trabalho deles, mesmo que Giulia não fosse bem recebida por eles.
No intervalo, sentava-se com e o amigo dela; às vezes, à mesa do segundo ano.
— Não estou reconhecendo a Gigita. Será que tenho liberdade para chamá-la assim agora? — perguntou, comendo cuscuz.
— Sinceramente, não.
Alheio à conversa, digitava no celular a cada minuto.
— Tá marcando o esquema com uma doidinha da nossa sala.
Luana maliciou.
— Nem, tô solucionando um problema aqui. — Digitou com a colher numa mão.
— Cheio dos segredos...
— Relaxa. Quando eu sair com ela, você será a primeira a saber. Se não por mim, pelo povo.
olhou para ele.
— Vai mesmo ficar com ela?
— Calma lá! Nem saímos ainda.
— O que você acha que acontece nesses encontros?
— Qual é, ?! Vai dizer que nunca beijou?
Ele e Luana encararam , o silêncio oferecendo-lhes indagações.
— A cara de vocês foi cômica. Eu não tenho boca virgem. Isso soou estranho, mas é a verdade. Querem saber com quem e como foi meu primeiro beijo?
— Não.
— Conta. — Luana pediu.
— Tapa os ouvidos, . — Soltou uma risadinha. — Aconteceu aos 14 com meu primeiro rolo. Ele morava na minha rua e nós viramos amigos. Quem tomou a iniciativa foi ele.
— Por que vocês não assumiram?
— Eu era travada. Não me sentia confortável. Meus pais não sabiam sobre nós, e nunca suportei esconder algo deles. Sem contar que era terminantemente proibido falar em namoro antes dos 16. E quando eu atingisse a idade, dobrariam a meta. — Sorriu. — De qualquer forma, foi nojento. Muito.
— Vou ali dar uns beijos e depois volto para contar a vocês como foi enfiar a língua em outra boca. — levantou-se, na brincadeira, segurando a bandeja, e o puxou.
— Senta aí, cara.
Ele permaneceu perto dela, os ombros agasalhados encostando-se — mania de alguns estudantes das salas dos terceiro anos estarem com roupas quentes por terem ar-condicionado —, e Luana olhou para cada um.
— Que é? O tá me dando língua?
— Eu não faço nada pelas suas costas — refutou. — Faço olho no olho. — Virou-se, mostrando a língua, e balançou a cabeça.
— Vocês parecem dois amigos ocultando o que está subentendido.
Ao mesmo tempo, eles a encararam, como Luana e fizeram com , intrigados e um tanto assustados.
— Que a me ama? Tá tatuado na testa dela. — fez graça.
— O é bobo, às vezes, e só eu percebo porque ele guarda esse lado apenas pra mim.
— Vocês acabaram de provar que minha teoria está correta. E, talvez, eu não tenha noção da dimensão disso.
franziu a testa.
— Não entendi essa linguagem. Explica.
— Deixa quieto. — Desviou o olhar para a comida amarela em seu prato. — Isso que eu vi virá à tona. Tenho que voltar à sala. Tchau, casal... — E completou: — De amigos.

Giulia combinou com Saíra de mostrar o bendito calouro de Física, enquanto, depois de comprarem o lanche na cantina, irem atrás de Matheus.
O estudante estava sanando a dúvida de dois calouros na grade que separava o prédio velho do novo e que localizava-se no final do corredor.
Ao vê-los indo embora, Saíra abraçou o namorado por trás, e ele afagou seus braços.
— Oi. Esta é minha amiga Giulia.
— Tudo bom, Giulia? Eu a vi na sua sala mais cedo. — Pôs o braço ao redor de Saíra. — O que estão fazendo deste lado?
— Atrás de um universitário bonitão.
— Eu?
— Não, Theus, você é o meu universitário bonitão, mas estamos atrás do da Giulia.
— Ele não sabe que é seu?
Giulia sorriu.
— Ele não é meu.
— Por enquanto. Você vem com a gente procurá-lo?
— Caçar o... Como é mesmo que vocês chamam?
Crush.
— Tenho que guardar o jaleco e comer. — Vendo a insistência da namorada, ponderou: — Você venceu de novo, mas só vou se me der um pedaço dessa coxinha e me esperar guardar o jaleco.

***


Matheus olhou para Giulia, caminhando ao lado deles, antes de entrar na biblioteca, quando elas terminaram de comer.
— Qual é o nome dele?
— Não sei.
— Como ele é? Está aqui?
Ela vagou o olhar pela sala, à procura de uma cabeleira loura.
— Não. Porém, aquele ali é amigo dele. — Apontou com a cabeça para o estudante de História numa mesa com várias garotas.
— Bendito seja entre as mulheres. — Recebeu um tapa leve de Saíra. — Não o conheço. O cara é estudante de História? Calouro?
— É de Física e, provavelmente, veterano.
— Isso tá muito engraçado. Bora sentar, gente. — Saíra andou até a primeira mesa vaga, acomodando-se. — A Giulia estava com vergonha.
— Eu ainda tô.
Matheus cruzou os braços.
— Sério? Por quê? Virou até normal esse interesse das meninas do colegial nos caras da faculdade.
— Resumindo: novinhas de olho nos viris. — Saíra salientou.
— Por aí. Mas não se engane. Muitos saíram do Ensino Médio, e o Ensino Médio não saiu deles. Brincam com o sentimento alheio, manipulam e cometem canalhices quando veem uma garota indefesa. Toma cuidado, hein.
— Tomarei.
Logo engataram uma conversa em voz amenizada sobre amenidades, conhecendo uns aos outros e cultivando o laço fraterno. Em meio às risadas tapadas por mãos, Giulia até esqueceu o motivo pelo qual estava ali.
Foi enquanto estava distraída que um cara alto, magro e de cabelo louro apareceu.

preferiu esquecer a indagação de Luana, culpando sua mente fértil, se realmente era o que entendera, após pensar a respeito. Ocupando a cabeça com pensamentos a respeito do teste de bolsa no sábado, plugou o fone no celular e escolheu uma das músicas da sonolência, enquanto o professor do quarto horário não chegava.
havia ido falar com seus amigos no lado de fora.
— Oi, . Posso te chamar de , não é? — Uma voz feminina a trouxe ao presente.
— Pode.
— Então, nem sei como perguntar isso, mas minha amiga pediu... — Dayana sentou-se na cadeira de . — O é solteiro?
— Que eu saiba, sim.
— Vocês não são amigos com benefícios?
— O único benefício é de ter companhia na hora de voltar para casa.
Dayana sorriu.
— Entendi. Vou dizer a ela. — Saiu.

Giulia notou a presença dele bem no momento em que o sinal tocou. Saíra arqueou a sobrancelha, e os alunos dos sextos e sétimos anos foram embora.
— O sinal tocou — enfatizou Saíra quando um deles abriu a porta e o som a alcançou.
— Tenho mais vinte minutos livres, meninas, porém preciso voltar ao prédio.
Giulia concordou.
— Estão vendo aquele cara louro atrás de mim? Na mesa lateral?
— Sim. É ele?
— É. — Sorriu. — Ele não é lindo?
Saíra riu.
— Tá apaixonadinha pela beleza dele. Saquei.
Matheus levantou-se.
— Esperem aí.
Vendo-o afastar-se, Giulia sentiu o peito apertar e as entranhas revirarem dentro de si. Merda! E agora?, pensou. Imaginava como seria ser apresentada a alguém, mas não a um cara mais velho e justo por quem se interessara.
Matheus voltou, acompanhado do estudante de Física, que usava uma camiseta azul, e tocou o ombro de Giulia.
— Esta é minha amiga Giulia. Giulia, ele é o Diego, conhecido como Digão.
Giulia ergueu os olhos lentamente, esboçando um sorriso fechado e nervoso.
— Oi.
— Prazer em conhecê-la. — O estudante estendeu a mão, e Giulia apertou, sem jeito.
— E aquela é minha namorada.
Ele aproximou-se de Saíra, que levantou-se, cumprimentando-o.
Giulia sentiu vontade de desaparecer.
— Vocês se conhecem?
— Quem não conhece esse galego? É gringo.
Diego riu.
— Que nada! Sou do sertão.
— É humilde. — Matheus brincou. — Senta com a gente. Vamo jogar conversa fora.
— Bixo, eu até queria, mas tenho que enviar meu projeto para o orientador e adiantar os estudos. Amanhã tem três provas.
— Ferrou! Vai lá, então. — Estendeu a mão.
— Mas, ó, eu e a galera estaremos no bar amanhã à noite, chorando pitangas. E sábado tem o churrasco do Marcelino lá na ilha. Apareçam!
— Veremos.
Ele despediu-se e retornou à mesa em que estava, abarrotada de livros.
— E aí? O encanto se quebrou? — Matheus sentou-se e questionou a Giulia.
— Ele continua sendo lindo e o sotaque dele é de explodir ovários.
Saíra gargalhou, e Matheus, rindo, fez uma careta.
— Só que é estranho.
— Claro, o caro é das exatas. Quem em sã consciência escolhe Física?
— Não, a situação é estranha.
— Bom, eu fiz minha parte. Quarta-feira o pessoal de Fisio vai ao cinema. Se vocês quiserem ir, é só avisarem.
— Eu vou. — Saíra disse. — Mas, agora, vou pra sala. Você vem comigo, dona Giulia. Nada de filar aula por causa de macho!
— Já? Vem cá, então. — Segurou seu rosto, seus lábios se tocando.
Giulia revirou os olhos e pigarreou.
— Tô indo.

***


— Eu falei.
virou a cabeça, pairando o olhar sobre a figura menor que ele, na grade do colégio.
— Dayana é arriada¹, os quatro pneus e o estepe, por você.
— De novo isso?
— Ela me perguntou se você era solteiro e disse que a curiosidade é da amiga.
— E não pode ser?
— Não.
Ele bufou, contrariado.
— Mesmo que não seja, eu não sou a fim dela. Dá pra parar de falar nisso?
— Hoje dá. Tô com fome, então não posso gastar minha energia com saliva, mas amanhã...
— repreendeu-a.
— Você é lento e chato, Zé Bonitinho. — Deu uma risadinha, adiantando os passos. — Tinha certeza que alguém dá praça ia querer sua graça.
— Obrigado, tamanho 34. Você é muito engraçada. Vou fechar um contrato contigo. — Atravessou a rua, e observou, dando-se por vencida e indo atrás dele em seguida.

¹Arriado(a) é uma gíria com ínumeros significados; dentre eles, caído/exausto/apaixonado.

Capítulo 7


Na última sexta-feira antecessora ao Carnaval, a roda de amigos do comentava apenas sobre o segundo dia de testes — as audições teriam início às 14h30 do sábado na garagem dele.
Nesta sexta, ele chegou atrasado.

[Hoje, 07h45]
Zé Bonitinho: Bernadete tá dando lição de moral. Tá mto cedo pra isso! D:
Zé Bonitinho: Tem gente fugindo pelo outro prédio.
Zé Bonitinho: Lá vai ela atrás dos moleques...
Zé Bonitinho: CORREU!

Ele não enviou nova mensagem.
ria, imaginando a cena. A grade que separava os dois prédios provavelmente estaria trancada àquela hora.

Tamborete: E aí?
Zé Bonitinho: Ah, tu visualizou. Achei que não quisesse saber o fim da trama. Tô perdendo que assunto?
Tamborete: O professor não tá na sala.
Zé Bonitinho: Eles se lascaram. Bernadete quase arranca suas orelhas miúdas.

aproveitou a ausência do professor e foi ao banheiro no outro pavilhão para esticar as pernas. Durante o percurso, esbarrou na mochila preta de alguém que estava na porta do banheiro feminino.
Não era uma moça.
— Foi sem querer — disse baixinho somente para sentir que agiu corretamente, já que o errado era ele em ficar com a cabeça ali, aéreo ao redor.
— Esses alunos do Val Campestre não têm educação mesmo.
— Nenhum pingo! — a morena, lá dentro, terminando de lavar as mãos, concordou.
Aquilo era um alfinete bem pontudo dado a , aproveitando a circunstância dela estar sozinha em meios aos lobos.
Calada, fechou a cabine.
— Você viu?
— Nem se importe, o pessoal acha que é perca de tempo.
O rapaz deu de ombros, afastando-se da porta para lhe dar espaço. Ao seu lado, andaram em direção ao outro pavilhão.
Logo depois, saiu do banheiro, enxugando os resquícios de água na calça azul escura da farda, e viu o movimento na grade, onde Bernadete liberava os atrasados.
jogou o casaco no ombro, revirando os olhos para tanta burocracia.
— Quantas assinaturas desta vez? — perguntou quando ele notou sua presença encostada à pilastra, com os braços cruzados.
— Nenhuma. Burlei o sistema.
— Garoto rebelde. — Seus lábios se curvaram. — Definitivamente, você não tem cara de quem faz isso. É um falso.
— As aparências enganam.
— Mas ninguém engana a Bernadete. — Acompanhou-o de volta à sala. — Não poderei ir amanhã às audições.
— É o dia da seletiva, não é?
— Também.
— O que mais?
— Combinei com a minha tia de cuidar do bebê. Serei uma babá temporária e que fatura com isso. Estou juntando dinheiro.
— Ah, é?
— Tu sabe, completarei 18 anos em dois meses, então pretendo abrir uma poupança e uma conta.
— É uma boa estratégia em economizar, . — Levou a mão ao bolso. — Tem algo em mente?
— Como assim?
— Planeja adquirir alguma coisa específica com esse dinheiro?
— Se os bolsos apertarem... O banco nos folga — desconversou. — É uma medida de precaução.
— Eu sei. Tenho uma poupança, apesar de estar falida desde que abri. — Riu. — Com o cachê da banda, se tivermos uma garantia, pretendo reverter essa situação. Aí dará para investir nas despesas de casa. Eu não gasto muito.
— O Davi perguntou sobre você — lembrou-se, e esboçou um sorriso meio débil.
Era completamente arriado por crianças e, principalmente, por Davi, o irmãozinho dela.
— Poxa... Nunca mais o vi. Tenho que dar uma passada na sua casa.
— Você vai segunda-feira para fazermos o trabalho. Ele vale metade da nota da matéria, então não esqueça. — Ergueu o dedo. — Tô falando sério.
— Esse dedo minúsculo nem faz cócegas. — Gargalhou, e ela revirou os olhos.
— Ria, Zé Bonitinho, minhas unhas vão te fazer chorar. — Piscou.

O primeiro trabalho do semestre do segundo ano seria em grupo de cinco pessoas; dentre eles, cada aluno estaria responsável em chamar os integrantes. Luana e a menina corpulenta, de nome Elineide, combinaram de ficar no mesmo e convidaram outra pessoa.
Giulia olhou para trás, observando-a, como se quisesse oferecer uma vaga, mas mudando de ideia ao notar Saíra e Saíse chamando mais colegas.
— Vocês brigaram? — Elineide perguntou um tanto hesitante.
Luana balançou a cabeça.
Pra falar a verdade, nem eu sei. Às vezes, amizades se perdem e não nos damos conta.
Elineide assentiu.
— Você tem a mim. — Sorriu. — Pode contar comigo.
— Valeu.

Em determinado momento, notou que a atenção de uma colega de classe estava em sua direção — mais, na verdade, do seu lado, em —, e os olhares formavam uma mistura melosa de esperança e saliência. E deveria ser constrangedor, porque estava começando a ficar constrangida.
Não duvidava que estivesse alheio a situação embaraçosa.
Dayana desviou o olhar quando a professora reclamou com um garoto perto de si.
— Essa garota não vai arredar do seu pé.
franziu a testa, encarando .
— Quem?
— Dayana. É possível que tu não tenha visto o que eu vi, mas é incompreensível. Como consegue arranjar alguém dessa forma?
— Eu não quero alguém e posso conseguir sozinho.
— Nunca duvidei da sua capacidade de se relacionar, mas você é lento demais para isso.
. — Cruzou os braços, contrariado. — É sério que você quer discutir esse tema enquanto tá todo mundo em silêncio?
Ela vagou os olhos pela sala cheia, retornando aos dele, .
— Somos estranhos. Quem se importa?
EU! CALA A BOCA, !’’, um dos alunos próximo a eles pediu em voz alta. “OBRIGADO!’’.
riu baixinho da sua linguagem corporal contida.
— Terminamos esta conversa no intervalo — sussurrou .

***


Giulia estava retocando a maquiagem no banheiro, usando um batom rosa escuro, blush e delineando a sobrancelha com o lápis de olho quando Luana e Elineide entraram.
Ela notou a figura loura de Luana visualizá-la pelo espelho e preocupou-se apenas em terminar de aplicar.
— Giu, quer que eu compre seu lanche ou te espere? — Saíra perguntou, diante da porta, com Saíse e Selena.
— O dinheiro tá aqui. — Buscou no bolso, entregando-lhe.
— Encontro você na escada.
Luana esperava as cabines esvaziarem, enquanto Elineide usava uma.
— Você mudou.
Giulia demorou a responder e entender que ela falava naturalmente consigo. As últimas semanas serviram para afastá-las, mesmo que julgasse que isso não era problema seu. Elas apenas escolheram conhecer outras pessoas e justamente com quem a outra não tinha afinidade, e nem se identificava.
Acontece.
— É a maquiagem.
— Não foi essa pintura que te mudou. Só serviu para esconder defeitos e realçar a beleza, mas tu mudou quem eu conhecia.
Giulia abriu a torneira.
— O ser evolui.
— Alguns não.
— Desculpa, não posso agradar a todos. É humanamente impossível.
Luana diminuiu a distância até a pia.
— Esta não é a Giulia que eu conheço. A Gigita nunca trocaria o nosso trio, o que construímos, por duas gêmeas amostradas.
— Que bom que não sou, porque detesto esse apelido ridículo.
Elineide optou por sair da cabine logo.
— Vem, Luana. Se você ficar, vai perder a comida.
— Até a carne de charque, que odeio, vale mais que você.

teve que tapar a boca de , certa hora, para que ela mudasse o rumo da conversa.
— Eu avisei que iríamos terminá-la aqui. — Sentada à mesa comprida do refeitório, comia arroz com carne.
— Na boa, não quero focar nisso. A banda e o cursinho são minhas prioridades. Mulher é trabalho extra pesado.
— Engraçadinho.
roubou carne do seu prato.
— A moça já não põe muita, e você ainda furta — reclamou. — Não furtarás o lanche do amiguinho.
Luana apareceu com Elineide em seu encalço e, antes que ele pudesse refutar, falou:
— Meu casal de amigos me enche de orgulho quando estão sendo civilizados.
— Só porque sentou com a gente uma vez acha que pode nos zoar? Respeita os mais velhos, Luluzinha. Vai procurar seu clube.
Elineide riu, e sorria nasalado.
— Você faz parte dele, anã. Respeite os mais altos.
gargalhou.
— Justo.
— Fica na sua cara, cara. — Trouxe sua carne ao prato. — Ninguém mexe no que é meu.

Giulia encontrou as irmãs no local combinado, sentada nos degraus e navegando na internet enquanto comiam.
— Olha ela. — Saíse disse, erguendo o olhar admirado. — Amei sua maquiagem. Você tá uma gata humana.
Saíra soltou uma risada.
— Arrasou, amiga. Toma seu pastel. — Estendeu o saco de papel.
— Então você foi apresentada ao boy magia — começou Saíse —, e aí?
— Ela ficou morta de vergonha e quase sofreu um espasmo.
— Não foi dessa forma. — Enrubesceu. — Ele tem o sotaque do interior mais bonito de toda Campestre e íris castanhas num tom de...
Saíse riu.
— Estou me referindo à conversa de vocês. Rolou troca de telefones?
— Nada, a não ser um aperto de mão — lamentou, em parte. — Mas ele nos convidou para irmos amanhã à ilha, que eu não sei qual, e aparecer no bar da frente.
— Desiste. Você é de menor. Não dê trela pra esses convites. Sem brincadeira.
Saíse manteve-se pensativa.
— O Matheus vai chamá-lo para o cinema. Tu vai, não é?
— Não sei. Vou falar com mainha.
— Já tô até vendo no dia em que esse cara te chamar pra sair. Vai ter que ser um encontro da porta da sua casa para a calçada. — Saíse comentou.
— Eu não minto para os meus pais.
— A pergunta que não quer me calar é: e se seus pais te proibisse de sair com esse cara?

***


Na saída, seguindo o fluxo de alunos indo embora, lotando os corredores, encontrou o estudante universitário que a criticou e, no ímpeto, andou até ele, que conferia uma pasta em frente à porta da diretoria.
— Com licença, seu almofadinha, você perdeu algo mais cedo no banheiro.
Ele assustou-se com a presença pequena, o nariz erguido, numa posição de ataque desnecessário ao seu ver.
— Não senti falta de nada. O que é?
— Sua coragem em me criticar diretamente.
— Se você não fosse uma pirralha, eu até cogitaria seu estado mental alterado por ter enchido a cara. Mas você não me parece ser uma dessas novinhas precoces — iniciou o discurso. — De qualquer forma, isso não te dá o direito de me tachar covarde. É calúnia.
Me processe.
— Tenho pena dos seus pais, que terão que arcar com o excesso de coragem da filha — ironizou. — Qual é o seu problema? Nem te conheço.
— Meu problema é ter que escutar calada as falácias sobre o meu colégio e quem estuda nele!
— O seu colégio reside na universidade em que eu estudo. Ele não me pertence. E a gente fala verdades. Tu se doendo à toa. Não é esse nariz em pé e as broncas em mim que farão alguma diferença.
cruzou os braços.
— Ó, quer um conselho? — ele perguntou, pegando o papel certo e dirigindo-se à maçaneta. — Fica de boa. Vai pra casa, almoçar. A fome ataca a razão e nos deixa cometer idiotices. Mas tudo bem enquanto a isso, porque é provável que nem lembrarei amanhã. Aproveite seu fim de semana. — Girou, entrando e fechando a porta em seguida.

esperava um tanto impaciente, no outro lado da rua, perto do estacionamento.
— Que cara é essa?
— É a que eu nasci — respondeu ríspida.
— O que fizeram contigo?
— Eu quero bater a cabeça de alguém na parede.
— Não vou pagar o pato. — Afastou-se.
— Pode ser a minha. — Aproximou-se da árvore, já na esquina da rua, e teve que impedi-la, segurando seu braço e levando-a embora.

Capítulo 8


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

O sábado ensolarado, pós-chuviscos, trouxe o cheiro de terra molhada às áreas das residências de Campestre. Durante a manhã, dormia, enquanto sua mãe faxinava a garagem e, ao meio-dia, acordou indisposto, arrastando-se para o banheiro e para a cozinha.
Somente teve consciência das horas quando Isac tocou a campainha, portando sua guitarra e a bicicleta.
— Mãe, abre a porta aí! — pediu, mastigando biscoito cream cracker.
— Levanta essa bunda da cadeira e vai abrir! — reclamou, passando o ferro nas roupas. — Arrume o quarto. Se alguém for lá, se assustará.
deixou o biscoito no prato, limpando os farelos, e andou até a porta, atendendo o garoto ansioso à sua frente.
— Acordou agora, logo previ. — Isac disse, analisando seu rosto sonolento e a preguiça.
— Virei a noite estudando. Entra. Quer água?
Atravessaram a área, adentraram a casa e seguiram para a cozinha pequena.
Isac apoiou-se no balcão.
— Chamei duas pessoas para virem. Tocam bateria.
— Beleza. — Entregou o copo a ele. — Eu levo a garrafa pra garagem. Bora!
Enquanto instalavam o sistema de som, conectavam a guitarra à caixa e acomodavam-se em cadeiras e encosto, os outros candidatos foram chegando, portando seus instrumentos emprestados, e alguns, agasalhados — se caísse uns pingos do céu e o tempo esfriasse minimamente, haveria quem sentisse frio, mesmo à temperatura ambiente.
— Arranjei a bateria na Escola de Música Paroquial. É da igreja em que eu ensaio e posso usar quando quiser — um dos garotos convidados por Isac avisou.
Afastados deles, três estudantes mexiam nas cordas das guitarras, tocando uma melodia aleatória, para afiná-las.
— Sua guitarra ainda tá arranhando. — Luana comentou a Isac, que estava concentrado. — Deixe-me ajustar.
— Consigo sozinho.
— Seu mané, deixa a menina tentar — o outro garoto, um amigo, retrucou.
Isac ignorou-o.
— Nem sempre haverá uma alma caridosa para fazer isso por você.
— Exatamente. Eu me viro. — Moveu-se de lado, e Luana revirou os olhos.
Dali, com o portão da garagem aberto, via mais pessoas entrarem e, dentre elas, confuso, encontrou uma tiara de laço vermelho sobre o cabelo escuro e lábios pintados de batom vinho.
Incrédulo, franziu a testa para sua vinda inesperada.
— Oi, minha gente! — Sorria. — Fui convidada para ser a plateia.
Os olhares pairaram nela, sem se importarem com isso.
se importava.
— Quem te convidou? — Aproximou-se cauteloso de Dayana.
falou sobre um ensaio, e eu...
— Veio assistir — concluiu puto. Suspirando, forçou um sorriso. — Sente-se em qualquer canto. O show vai começar.
O primeiro a cantar e tocar foi Pedro Lucas, com seu teclado — ele tocou mais que soltou a voz —, não necessariamente nessa ordem. Depois dele, Isac e seu amigo deram uma palhinha marota de Nando Reis. Em seguida, dispensando o palitinho, Luana cantou 'Do Lado de Cá', do Chimarruts, encantando os ouvidos de quem a assistia:
Se a vida muitas vezes só chuvisca, só garoa, e tudo não parece funcionar, deixa esse problema à toa pra ficar na boa, vem pra cá... — Sua voz imponente suavizava na melodia. — Do lado de cá, a vista é bonita, a maré é boa de provar. Do lado de cá, eu vivo tranquila, o meu corpo dança sem parar... — Sorriu, ainda que não tivesse motivo específico. — Do lado de cá tem música, amigos e alguém para amar. Do lado de cá... — Puxou o “u’’. — A vida é agora, vê se não demora... Pra recomeçar. É só ter vontade de felicidade, pra pular pro lado de cá.
Com o salve de palmas, um tanto contrariadas no canto da garagem, vindas de Isac, ela sentou-se. O silêncio tomou o ambiente, o canto dos pássaros no lado de fora.
— Essa Luana é muito boa — o pai de comentou com o filho, afastado, rabiscando uma prancheta. — E agora? Quem é o próximo?
Os mesmos olhares conhecidos voaram para a figura encolhida de ao lado do pai. Ele engoliu em seco e tocou o pescoço.
Repentinamente, a garagem ficou muito menor e abafada.
— Falta alguém?
— Eu, você, o Paulo e o Diney — respondeu Du, sentado no chão. — Tiramos o palitinho. O seu foi o menor.
Assentindo, levantou-se, buscando seu violão em cima da tábua, e caminhou para o meio da roda mal feita, tornando a sentar no banquinho de madeira.
Eles esperavam ansiosos e animados, mas não aflitos como estava. Cantar pela primeira vez para alguém seria desastroso ou surpreendente. Oito ou oitenta.
— Escolhi uma canção — disse e pigarreou — do Djavan. Na verdade, não a escolhi, mas foi a que me lembrei agora. Escutei um dia desses. — Mordeu o lábio, manuseando as cordas do instrumento e, com isso, aproveitando para respirar e se concentrar, a postura curvada. — Você disse que não sabe se não, mas também não tem certeza que sim. Quer saber? Quando é assim, deixa vir do coração. — Sua voz saiu fraca, suave e arranhada em certas notas, devido a falta de preparo emocional. Suspirou, tentando manter-se calmo. Como iria montar uma banda e fazer parte dela, sem que conseguisse se apresentar ao menor público que tivera? — Você sabe que eu só penso em você. Você diz que vive pensando em mim. Pode ser, se é assim, você tem que largar a mão do não. Soltar essa louca, arder de paixão. Não há como doer pra decidir, só dizer sim ou não. — Balançou a cabeça. — Eu levo a sério, mas você disfarça. Você me diz à beça, e eu nessa de horror. E me remete ao frio que vem lá do Sul, insiste em zero a zero, eu quero um a um. Sei lá o que te dá, não quer meu calor. São Jorge, por favor, me empresta o dragão. Mais fácil aprender japonês em braile... — Sorriu. — Do que você decidir se dá ou não — finalizou, ciente de muitas indagações.
Uma delas, inclusive, foi a falta de palmas imediatas. Os rostos presentes o observavam quietos.
— Mandou bem, . — Luana, enfim, falou, rompendo o estranhamento. — Conseguiu interpretar a música direitinho. É muito bonita, aliás.
— Obrigado. — Ergueu-se, guardando o violão. — Quem vem agora?
Ao término das apresentações, com o resultado em mãos, seu pai analisou a ficha e cada candidato.
— Antes do anúncio, tenho que parabenizá-los pela participação, o empenho e talento. Vocês são grandes. Talvez a música não seja a porta que se abrirá para o futuro de alguns, mas é uma janela para passar o tempo de quem quiser. Aproveitem-na. Nós discutimos alguns pontos, porém eu, que não possuo qualquer laço com vocês, dei a palavra final. São seis integrantes. — Sentiu o ar escapar no cômodo, a tensão pairar sobre eles. — A primeira e única garota da banda vem para o lado de cá! — Sorriu para Luana, que suspirou, ficando de frente para os demais. — Pedro Lucas, podemos por seu nome artístico de Pe Lu?
O garoto forte concordou freneticamente com a cabeça.
— Vem, então, e traz seu teclado.
Os outros o acompanharam com o olhar.
— Paulo, vai ter que trazer a bateria para os ensaios. Dá seu jeito.
— Porra, tio, quase morro aqui! — Soltou uma risada nervosa, prostrando o corpo no chão.
— Temos que ter mais um guitarrista. Tu se garante, Isac?
— Claro. Eu nasci tocando. — Rapidamente, ficou ao lado de Pedro Lucas.
, você é meu orgulho. Sua linguagem corporal diz muito sobre o que a música faz contigo.
agradeceu, e Dayana bateu palmas.
— Por último, não menos importante, Eduardo, precisamos de você.
Du assentiu, levantando-se.
— Aos que não foram nomeados, não esqueçam o que eu disse. Nenhum de vocês deve esquecer. Agradecemos a intenção de cada um.
puxou as palmas, e os outros reforçaram.
— Agora, a banda necessita de um nome.
— The Nacionais.

***


Na segunda-feira, bem cedo, os alunos atravessavam as grades, lamentando o fim do domingo e partilhando o que aprontaram durante ele. Enquanto escutava uns gritos, praguejando ter esquecido o fone em casa, imaginava como aquela garota estaria quando idosa e histérica.
O seu fim de semana fora usado para ter essa aberração sobre o nariz.
— Combinou com você. — Luana sorriu, encontrando-a na curva da entrada.
— É óculos de descanso. Vista cansada.
— Por que não foi ao ensaio? Perdeu o resultado.
— Prestei o teste da bolsa, fiz uns exames e cuidei dos homenzinhos em casa. A banda já tem um nome?
— O havia escolhido desde o início. Sou uma nova integrante do The Nacionais.
— Luluzinha formou outro clube.
Luana pôs o braço ao seu redor.
— Cola em mim, que é sucesso! — garantiu, rindo. — cantou no sábado. Ele e seu violão são uma dupla e tanto.
— Não acredito que perdi de provocar sua voz entupida.
— Para, , a voz rouca dele é uma graça.
revirou os olhos teatralmente.
— Quando os ensaios começarão?
— Pós-feriado. Alguns viajarão.
— Não posso me dar esse luxo. Vá dormir lá em casa. Faremos uma maratona.
— Que dia?
— Pode ser na sexta. — Despediu-se num abraço de lado e entrou na sala do terceiro ano.

estava conversando — com quem foi intrigante. A garota sorria a cada minuto, como se cada palavra dele fosse especialmente articulada.
sentou-se ao lado de sua mochila.
Ele, então, notou sua presença, prestando atenção nela e finalizando o papo com Dayana.
— Bom dia, hein! — Encarou-o com o celular em mãos quando ele não disse nada e nem respondeu. — Que bicho te mordeu?
— Não tô com vontade de discutir agora. Depois nos falamos. — Levantou-se, no intuito de sair da sala.
! — chamou.
— Depois.

A felicidade plena, para um X números de pessoas, é acreditar e ser feliz em situações até inoportunas. Sentindo-se animada e esperançosa, Luana partilhava os detalhes das audições a Elineide, acomodadas no “fundão’’.
Giulia nem se deu ao trabalho de parabenizar por qualquer novidade; agia como se nunca tivessem se conhecido na vida.
— O Matheus garantiu que o lourinho vai ao cinema.
— Eu não garanto ir — lamentou. — Meu pai tá desconfiando.
— Posso passar na sua casa. A gente vai de carona com a galera.
— Verei.

Evitada em todas as aulas por , mesmo sentada ao lado dele, o que era ridículo, finalmente desistiu de cobrar satisfação.
— Bipolar do caramba! — resmungou quando ele saiu com os colegas.
Mais tarde, eles dois estariam fazendo o trabalho de genética em sua casa, e isso seria o argumento usado para prendê-lo.
— Vocês brigaram? — Dayana perguntou, no outro lado da sala, vendo-a esvaziar.
— Não, amigos se desentendem, às vezes.
— Posso falar com ele, se quiser.
Que intimidade é essa?, quis questionar.
— Viraram amigos?
— O é um cara gente boa.
— Ele é só um garotinho que chupa o dedo. — Bufou incomodada. — Nem saiu das fraldas.
Dayana sorriu.
— Ele cantou tão bem ontem.
— Você esteve lá? — Franziu a testa.
— Sim, notei que poderia ser da plateia.
— Tenho que encontrar uma amiga agora. — Levantou-se. — Tchau.

***


Aparentemente, estava perambulando pelo prédio com seus amigos, e teve que se contentar em sentar à mesa sozinha, à espera de Luana, que não demorou, com Elineide.
— Hoje vai cair um toró — avisou Luana. — O não está aqui.
— Ele tá com raivinha por algum motivo bobo. Não tenho paciência pra isso.
— Não quero meter a colher na relação de vocês, mas façam as pazes. O melhor do término da briga é correr para o abraço.
— Digo o mesmo a você e a Gigita. Ah, não importa que ela tenha mudado, sempre a chamarei assim.
— Eu não consigo nem me aproximar dela sem sentir raiva. Cheguei a esse nível.
— Este ano já pode acabar.
— Ainda tem muito chão. Temos que segurar as pontas. É nós! — Tocou sua mão e a de Elaneide, e elas sorriram.

foi detido por Dayana na volta à sala de aula, e seus amigos lhes deixaram a “sós’’.
Dentro da sala, ele esperou entrar.
Ela sentou-se ao seu lado, calada, e depois arqueou a sobrancelha em sua direção, desafiando-o a dizer algo.
— Bora mudar a reunião do trabalho. Não posso hoje.
— Não pode ir à minha casa porque está com raivinha?
— É que surgiu um imprevisto.
— Você tem um compromisso comigo, . Nós combinamos.
— lamentou falar o apelido —, a entrega é para depois do feriado. Teremos tempo de sobra. Não se estressa com isso. Se for o caso, cada um faz sozinho. Ou eu faço e ponho seu nome.
— AULA VAGA, GENTE! — alguém avisou, em pé, diante das carteiras.
— Não tem substituto?
— Não, e o professor nem deixou atividade. As duas últimas aulas são de História, então vamos embora.
— Quer saber? Que se dane! — exasperou com , que guardava os pertences, e, furiosa, arrastou a bolsa para fora.
Com os trocados no bolsinho, resolveu esperar o ônibus. Faria urgentemente seu cartão eletrônico, mesmo que tivesse que caminhar mais um bocado até chegar à sua casa.
O mormaço, a chateação e a preguiça tornaram o trajeto cansativo.
Atravessou as duas ruas da cidade universitária, andando em frente aos quiosques fechados e passando pela faculdade particular, com um ou outro universitário na porta. Sentou-se no banco de concreto sob a sombra perto da papelaria e do ponto.
Nem onze da manhã era.
Largou o corpo de qualquer maneira, pondo a bolsa no colo e lembrando-se da falta dos fones de ouvido.
— Bosta — resmungou, e o universitário, que estava tirando xerox na papelaria, sentou-se no banco, observando-a de relance.
— Tá achando ruim eu acabar com sua folga?
ergueu o olhar, a testa franzida, e os traços do rosto dele vieram à memória; reconheceu-o vagarosamente, detestando ter feito.
Com indiferença, manteve-se quieta.
— Estou me lembrando dessa mecha azul — ele comentou, minutos depois, encarando o nada, seu olhar estreito devido ao sol. — Engraçado, porque eu garanti que não me lembraria dela.
— Na boa, dá pra calar a boca? Tô tentando ser racional para não cometer uma idiotice que aprendi contigo.
Ela realmente não esperava que ele fosse gargalhar.
— Mais que corajosa, é uma pirralha petulante.
— E você é um velhinho almofadinha. Cuidado para não morrer ranzinza.
— Tu cismasse comigo, hein. Nunca te fiz nada.
navegou na internet, ignorando sua presença indesejada.
— Não quero ser seu amigo, nem nada, mas gostaria de saber o nome da garota que defende o colégio com unhas e dentes.
— A garota não está interessada nem em bater papo com esse universitário pé no saco.
Ele deu uma risadinha, achando engraçado como a espontaneidade dela sobrepunha a agressividade. Talvez não fosse natural, mas proposital.
— Tu tens um ponto, e temo dizer que a metade da razão.
— Lá vem ele com a melhor amiga. — Abriu aspas. — Não estou interessada em conhecê-los. Cara, pega teu ônibus e segue seu rumo.
— Ainda é autoritária. Meu amigo, me lasquei! Como é que alguém te atura?
Vendo o ônibus da linha que a levaria ao seu bairro fazer a curva na rotatória, teve a vontade de erguer o dedo do meio e subir. No entanto, seria muita imaturidade cometer uma ação e fugir da consequência dela.
— Meu nome é “Fui’’.

Capítulo 9


No outro dia, faltou aula, Dayana perguntou por ele, e desejou ter ficado em casa. O resultado da seletiva do cursinho estava exposto na sede, e sua mãe fora lá, assim que abriu, imediatamente telefonando para avisar que ela não havia conseguido uma bolsa.
Com a garganta seca, o ardor nos olhos e a sensação do primeiro fracasso estudantil, desejou com mais força não ter vindo e nem feito o teste. Seus pais não reclamariam, mas ela se sentiria derrotada por desapontar a si, a eles e colocado à prova sua capacidade.
— Quer desabafar? — Luana perguntou carinhosamente.
— Não — respondeu baixinho. — Ficarei bem.
— Não faço ideia do que rolou, mas saiba que você é melhor que qualquer coisa. Eu torço e acredito em você.
— Obrigada. — Abraçou-a. — Você é a minha melhor amiga.
— E você é a minha, baixinha retada.

***


Às 15h00 em ponto, enquanto cochilava na cama, com a porta entreaberta do quarto, escutou alguém dar leves batidas e acordou sobressaltada.
— O está na sala. Não quis deixá-lo vir porque sua mãe é casca grossa em relação a isso — o pai explicou num tom baixo.
Entre os dois, dona Eliana definitivamente tinha excessiva proteção, independentemente de serem apenas amigos e estar longe de casa.
— Obrigada. — Suspirou, esfregando o rosto e arrastando-se para fora do colchão. — Pede a ele que espere um minuto.
— Certo. Tenho que voltar à lanchonete. Seu irmão tá lá com ele. — Apontou o dedo. — Juízo, mocinha.
— Pode deixar. — Acabou sorrindo, indo pelo corredor estreito, até o banheiro.

estava sentado no sofá, com as pernas afastadas, prestando atenção no diálogo de Davi com os bonecos que eram apresentados a ele.
— Este é o Max Steel. — Balançou o boneco, sua voz enfática. — E aquele ali, ó... — Alcançou o menor. — É o Ben 10. Enjoei do desenho porque já assisti todas as temporadas com a minha irmã.
— A assisti desenho com você?
— Todos os que eu quero. Ela gosta dos Padrinhos Mágicos e Hora de Aventura — revelou baixinho como se fosse um segredo.
sorriu.
— O que é que as crianças estão cochichando aí? — apareceu na sala com uma calça de moletom e regata cinza.
— Assuntos de homem. — Piscou para Davi, arrumando seu cabelo numa tentativa desprovida de sucesso.
— Quer deixar meu irmão com sua juba? — provocou tranquilamente e cruzou os braços. — Eu penteei hoje.
— Mas faz tempo — confessou Davi.
— O senhorzinho tá me dedurando? Olha aqui, quem te atura sou eu! — Brincou, erguendo-o num abraço apertado em que ele ria e ficava vermelho.
bom, bom. — Deu uma gargalhada gostosa que fez sorrir de uma orelha a outra. — Eu me rendo, .
deteve-se.
— Dá um beijo. — Formou um bico nos lábios, vendo-o imitá-la e segurar seu rosto. — Na bochecha agora.
Davi estalou a boca nela.
— Liberado. — Colocou-o no chão. — E você, , tá acessível?
olhou para ela.
— Você convidou Dayana para assistir a audição, sem me comunicar. Imaginei ter deixado claro que não a queria, e você não respeitou isso.
— Mas eu não a convidei.
— Ela disse...
— Dayana mentiu ou se enganou. Deve ter me escutado comentar com outra pessoa.
Ele esticou-se no sofá.
— Desculpa. Percebi uma coisa nisso tudo: ela tá envolvida.
— Eu avisei. — Revirou os olhos para a constatação óbvia e foi à cozinha com atrás. — Achei que não viria hoje. Faltou aula...
— Estive resolvendo um problema em casa. Podemos começar o trabalho agora?
— Antes, vou derreter chocolate, porque sair da rotina é permitido.

Acomodados no chão da sala, com a cartolina e o notebook sobre a mesinha de centro, ambos pesquisavam a respeito do DNA, RNA, Daltonismo e afins. Concentrados nisto, enquanto Davi assistia a TV, deitado no sofá, mordeu o lábio.
— Soube que tu finalmente cantou em público.
balançou a cabeça.
— Até recebeu elogios. — Olhou para ele. — Bem que você poderia cantar para o Davi dormir.
Ele realmente pensou que ela fosse dar uma trégua na língua afiada.
— Se eu recebi elogio, é a prova de que minha voz entupida serve. — Resolveu levar na esportiva.
— Sua voz rouca vai explodir os ovários das futuras fãs... — Manuseou a seta. — E meus tímpanos.
— Tô começando a achar que você quer me ouvir cantar.
— Ah, não, eu não possuo plano de saúde, caso eles estourem.
— Não vou cantar para você, ! — Sorriu, o corpo inclinado na mesinha.
— Então tá.
Permaneceram em silêncio por longos minutos, adiantando o trabalho; terminando o slide e colando as gravuras na cartolina, que iria para uma ação beneficente em prol do Dawnismo.
— Como foi seu teste? Quando o resultado sai?
hesitou.
— Em quinze dias.
— Você gostou?
— Algumas matérias foram mais fáceis de lidar... O assunto favoreceu.
— A bolsa é sua — falou com tanta firmeza que não a desfaria e nem se convenceria do contrário.
— O chocolate já está frio. — Pegou a panela no canto. — Pus castanha. Vamos dividir a gordice.
— Não sou o maior amante disso aí.
— Isto é uma delícia. — Sujou seu nariz com chocolate, e , tentando tirar a panela da sua mão, acabou sendo mais sujo. — Come um pouquinho, vai.
Ele limpou o rosto no seu, de lado, e reclamou:
— Tá desperdiçando chocolate, é contra lei. Pague a fiança.
— Qual seria? — Afastou o cabelo dela da bochecha melada.
— Abre. — Ergueu a colher cheia em direção à sua boca um tanto carnuda.
bufou, entreabrindo os lábios, e ela enfiou a colher.
Ele segurou o cabo.
— É enjoativo.
discordou:
— As castanhas quebram o doce em excesso. Terminamos por hoje?
— Acho que terminamos tudo. Você pode dar uma conferida depois?
— Claro.
levantou-se.
— Vai embora?
— Vou ao banheiro. — E, antes de desaparecer no corredor, disse: — Meu violão não tá aqui.

Dentro do quarto, deixava o notebook e a cartolina na escrivaninha. Distraída, demorou a sentir a presença de conferindo suas pelúcias na prateleira.
— Já sei o que dar a você em dois meses. — Sorriu, virando a cabeça para vê-la. — Cadê seu óculos?
— Aí não cabe. Tá ali.
Ele lamentou, afastando-se e indo sentar na cadeira giratória da escrivaninha.
Colocou o óculos dela.
— O seu quarto ainda é terreno proibido? Se bem me lembro, segundo os códigos de conduta da minha tia, eu estar aqui não é aceitável.
— Ela não tá em casa.
...
riu.
— É brincadeira, Zé. Você tá muito rebelde ultimamente. Cuidado. Mainha vai me proibir de andar contigo.
— Lá vem ela com esse “Zé”. — Revirou os olhos, inconformado. — Sua mãe me adora. Sou uma ótima influência.
— É porque ela não faz ideia do que você anda aprontando fora do colégio. Nem eu.
deu de ombros.
— Nada que envolva polícia, só algumas garotas.
— Tá tirando o atraso? — provocou.
— Ô!
, painho chegou! — Davi avisou, aparecendo na porta. — Tu não tem curso de Inglês?
— Leva o com você. Tenho que me arrumar. — Empurrou o amigo para fora, e Davi segurou metade da sua mão, tentando puxá-lo.

***


Faltavam dois dias para o início do feriado, e o Val Campestre já estava sendo decorado com máscaras coloridas cheias de glitter customizadas no mural pelos alunos do sexto ano. Na sexta-feira, haveria aula somente até às 10h e, depois, a quadra estaria disponível para a folia.
, que conversava com Luana e Elineide no banco de concreto, fitou com a mochila.
— Posso falar com você?
— Já volto, meninas. — Levantou-se, seguindo-o para distante delas.
— Vi a lista no cursinho. O teste seletivo foi para o AL Fontoura.
sentiu-se humilhada por aquela descoberta boba, por não ter alcançando êxito, por ele saber e a observar pesaroso.
— Pare de me olhar com julgo — pediu. — Você viu, eu não consegui a bolsa. Sou uma idiota que achou que teria chance, mas fracassei, eu... — Sentiu os braços dele ao seu redor, o calor do seu corpo e os lábios tocarem sua cabeça.
, shhh, você não é nada disso. Está certa em ter tentado. Tinha chances. Esse foi o primeiro não, mas não será o último, e nós temos que estar cientes disso e aprender a conviver.
— É humilhante.
— Quer estudar comigo? Empresto o material do cursinho. Vou à sua casa, você vai à minha. A escola pública é fraca, e os alunos precisam correr atrás do prejuízo. Não dá pra sentar e esperar uma reforma. Existem exceções, é claro. — Enxugou seus olhos úmidos. — O que me diz?
fungou.
— Obrigada. — Abraçou-o pela cintura, pegando-o desprevenido. — Eu quero. Você é bom demais pra ser de verdade.
sorriu, movendo a mão entre seus fios de cabelo, num cafuné, deixando-a mole.
— Se você permitir, meu lado bom cobre muitas habilidades... Tô aqui.
Ela estreitou o abraço, sentindo a barriga lisa dele se mexer com a risadinha.
— Eu também.

***


Giulia resolveu ir ao shopping com Saíra e os amigos do namorado dela. Disse a mãe que daria uma volta por lá, depois do colégio, com uma amiga, o que não era mentira, mas ocultou quem mais estaria com elas. Levou uma muda de roupa na bolsa de colo e foi embora com as gêmeas para a casa delas.
Mais tarde, passeando pela praça de alimentação pouco movimentada, em direção ao cinema, Saíra e Giulia sentaram-se à mesa em que Matheus e três amigos estavam.
— Oi, gente! — Saíra falou e beijou rapidamente o namorado.
— Esta é Saíra, minha namorada, e aquela é Giulia, nossa amiga. — Matheus apresentou. — Meninas, estes são Neto, Vinícius e Paola. Tá faltando o restante.
— Prazer em conhecê-los — disseram quase na mesma hora.
Giulia sentou-se ao lado de Paola, e Saíra se acomodou perto de Matheus.
— Então, vocês estudam na UCA? — Paola perguntou.
— No colégio.
— Ah, sim. Pretendem cursar o que?
— Ciências Biológicas. — Saíra disse, e Matheus pôs o braço ao seu redor.
— Que ótimo, porque tem no campus daqui. Você não vai ter que me largar.
Ela sorriu, beijando-o na bochecha.
— E você, Giulia?
— Psicologia.
— Não tem o curso no nosso campus, infelizmente. Surgiram boatos de que abririam na rural em Nova Formosa.
— Espero que seja verdade, até eu me formar.
Um dos garotos, o moreno de cabelo razoavelmente cacheado e olhos cor de mel, ficou olhando para Giulia, observando-a falar e engatar uma conversa sobre amenidades, interessado, mas contido, como sua personalidade exigia.
— Que foi, Netinho? Tá calado. Tímido você não é.
Ele balançou a cabeça.
— Viajei aqui. — Tirou a carteira de dentro do bolso da calça. — Vou comprar meu ingresso. Quem vai?
— A gente já comprou — disse Paola, e Saíra falou que ela e a amiga ainda não.
— Vou com você — prontificou-se Giulia, levantando-se, com seu vestido floral.
Visual romântico ou não, estava sentindo-se confortável, e o estilo combinava com quem ela era. Fora a maquiagem básica.
Neto a achou linda. E não se importava com o que as garotas viviam preocupadas.
Eles caminharam lado a lado para o cinema, detendo-se na bilheteria.
— Qual é o filme? — Giulia questionou, averiguando o painel.
— Invasão a Londres é o único disponível e que será exibido em meia hora.
Ela assentiu, e Neto pediu três ingressos à atendente. Pago, retornaram à mesa. Em seus lugares estavam um casal de amigos e, aproximando-se da mesa, Diego.
Giulia sentiu o coração disparar e a tensão a conduzir.
Sua reação a ele era típica de uma adolescente com fogo no rabo, segundo Saíse.
A verdade é que, provavelmente, Saíse estivesse certa. Não sabia lidar quando estava a fim de alguém.
— E aí, bixo?! — Diego cumprimentou Matheus e foi apresentado aos outros, e, chegada a vez de Giulia, estendeu logo a mão. — Tudo bom?
— Tudo. — Apertou.
Neto a chamou para sentar na cadeira vaga do lado dele.
Pelos próximos minutos, todos conversavam, interagindo de alguma maneira, e Giulia respondia monossilábica às perguntas de Neto, furtando olhares para o galego na mesa.
— Hora de irmos pra sala. — Paola avisou. — Faltam cinco minutos. Vai lotar.
Eles levantaram-se, posicionando as cadeiras, enquanto Diego digitava uma mensagem no celular.
— Vão indo. Tenho que comprar meu ingresso e o de outra pessoa.
— Beleza. Não demora, Digão, senão vai perder.
Giulia frustrou-se, e Saíra soltou uma risadinha, chegando à fila de entrada, enquanto os homens buscavam a pipoca.
— Aproveita o filme, Giu. Ele deve ter chamado um amigo.
— Ou amiga.
— Qualquer possibilidade é possível, então foca no filme. Vou me sentar ao seu lado.
— Para que eu segure vela? Nem a pau.
Saíra riu.
— Tá achando que venho pra dar uns pegas na última fileira? Às vezes. Quando o filme é chato.
Ela resmungou, e os outros retornaram. Neto lhe entregou o saco de pipoca.
— Obrigada.
Parando para análise, os olhos de Neto eram seu ponto forte. O tom da pele, cabelo, tamanho.
— Vamos? — chamou à sua frente, enquanto os outros atravessavam o corredor escuro da sala.

Na primeira parte do filme, sentada nas fileiras do meio, distante dos demais, porque gostava de assistir ali e, aparentemente, Neto também, Giulia viu a figura branca de Diego na escuridão, pela luz do telão, subindo os degraus da lateral, e ficou inquieta.
Apoiado na poltrona, parcialmente deitado, Neto olhou para ela.
— Você tá bem? Tá confortável?
Mesmo que não estivesse, nada poderia ser feito em relação a isso.
— Tô.
— Tá gostando desse filme? Achei que você não curtiu a ideia de assistir ação.
— Tô, sim. — E as respostas abreviadas não paravam. — Eu gosto.
Ele virou a cabeça, mastigando. Depois, tornou a olhá-la.
— Você e aquele cara têm alguma coisa? Um rolo, qualquer coisa?
— Não. — Infelizmente, quis completar. — Nem nos conhecemos direito.
— Então eu tenho vantagem. — Abriu um sorriso que Giulia conseguiu notar. — Sei mais sobre você que ele.
Ela afirmou.
— Tudo o que você sabe é o que eu contei.
— Porque você não me deu a chance de descobrir o resto. Se permitir, saberei até seu nome do meio.
— Mendes.
Eles voltaram atenção ao filme por um breve período.
— Não valeu.
— Foi mal. — Soltou uma risadinha.
Ao fim da sessão, saíram da sala, encontrando os amigos em frente à praça.
— Pessoal, esta é minha namorada — começou Diego, segurando a mão de uma garota da altura dele, loura, os olhos verdes —, a Jade.
Como um balde de água fria, Giulia teve que controlar o queixo para ele não cair.
O crush era comprometido.
E, apesar de tudo, o encanto não se esvaiu, só perdeu força.

Capítulo 10


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

O sinal nunca pareceu tão longínquo para os seiscentos alunos nesta sexta antecessora ao feriado de três dias, que, emendado ao fim de semana, seriam cinco dias sem aula. Correndo e falando alto, com seus pertences, os alunos andavam pelo corredor largo e comprido, deixando o pavilhão do colégio para trás e seguindo pelo asfalto, no pavilhão aberto da universidade, à quadra, aparentemente, escondida. Os pequenos estavam fantasiados, segurando guarda-chuvas coloridos do frevo e espuma de carnaval. Algumas garotas mais velhas usavam spray artificial no cabelo e jogavam confetes nos outros — em quem passava por elas, para ser exata, como , levado sob pressão por .
Ele se esquivou, e as garotas riram de sua expressão irritada.
— Você tá no Carnaval do Val Campestre! Sorria! — uma delas gritou.
bagunçou seu cabelo mal penteado.
— Para com isso, — suplicou.
— Tô tentando tirar os confetes. Elas têm razão.
— Desde quando você gosta de Carnaval?
— Não gosto de pular em bloco e usar abadá¹, mas curto a zoeira. E você tá na minha mira.
— Olha a minha cara de felicidade. — Bufou, achando a ideia de participar daquilo muito péssima. — Sério, vou embora.
, relaxa. — Afastou-se rápido, buscando um recipiente de espuma, e o escondeu atrás do corpo.
Ele observava as pessoas, como um ou outro professor, se divertirem no meio da quadra, em meio à confetes jogados no ar, o axé tocando nas caixas de som e os pequenos brincando entre si.
! — chamou alto, devido ao som, e pressionou o spray, espumando seu rosto. Bem na boca.
— Ah, — tentou falar, cuspindo e limpando —, tu de sacanagem.
gargalhou.
— Tô me divertindo.
— É mesmo? — Pegou a espuma da boca, sujando seu cabelo. — E agora?
— Eu revido! — Chacoalhou o recipiente, apertando novamente em seu rosto, cabelo, pescoço, jogando para cima e rindo, vendo-o se esquivar.
Ele até ria, depois de um bocado de espuma atrapalhar sua visão e, limpando os olhos, tomou o spray da mão dela. Inclinou a cabeça, melando sua blusa da farda, e segurou-o pelos ombros, apoiando-se em seu corpo.
levantou-se com ela jogada no ombro.
— O que é que eu faço com você?
— Solte-me — respondeu, tendo os braços estendidos e o cabelo no rosto.
— Tem certeza?
cruzou suas pernas ao redor dele, no torso, e sua bunda ficou para cima.
, o que tu fazendo, criatura?
Ela erguia-se, segurando-o pela blusa, agora, até descer um pouco, ofegante e corada.
a encarava, intrigado, com uma vontade oculta no olhar e interrogações.
Arqueou a sobrancelha.
— Eu não estou te segurando. — Elevou as mãos.
Ela maneou a cabeça, o rosto sobre o seu, e curvou o corpo para trás, vendo os braços dele se moverem para detê-la.
— Para com isso. — Trouxe-a mais perto.
Algumas estudantes observavam, e outros concluíam que eram namorados.
Estavam agindo como se fossem.
— Vai me olhar a manhã toda? — brincou afoita.
Era uma provocação amigável.
— O que você quer que eu faça?
— Solte meu corpo.
Ele tirou os braços lentamente, e ela folgou as pernas, mas não descruzou, deslizando e, agora, seus rostos estavam na mesma altura e os membros superiores tocavam-se.
— Você gosta de me provocar, mas não tô entendendo este novo tipo.
— Não polua sua mente, .
controlava a respiração e os olhares furtivos em qualquer direção inapropriada sua.
— Seu cabelo tá molhado. — Moveu os dedos nas mechas da testa dele.
— O seu também. — Virou a cabeça, avistando Luana caminhando no asfalto. — Ela vai tirar conclusões precipitadas. ...
— Dayana parou de olhar? — Virou-se. — Pode me soltar.
Ele folgou os braços, e alcançou o chão.
— Vou embora. — avisou, andando para fora da quadra.
, espera! — chamou e teve que correr até o garoto. Segurou seu braço, mas ele soltou-se, deixando-a parada.
Luana aproximou-se.
— Ele tá zangado. O que você fez, ?
— Droga! O entendeu errado.
— Deixe-o refletir, então. Se for o caso, o voltará para se redimir. Você o conhece.
— Essa festa acabou, pra mim.
— Nada disso. Acabei de chegar. Vamos jogar spray nos moleques! Vem!

Giulia esperava a mãe chegar, sentada no banco de madeira encostado à parede do pavilhão aberto. De um lado, as mesas da cantina e, do outro, alguns carros e motos de funcionários da faculdade cobriam o asfalto. Os galhos das árvores balançavam, o vento alcançando seu cabelo longo amarrado numa trança embutida.
— A Saíra já foi? — Matheus perguntou, despertando-a do transe. Com uma mochila, em pé, ao lado do amigo moreno, que reconheceu como Neto, esperava sua resposta.
— Foi. O celular dela descarregou.
— Imaginei. — Bufou, lamentando, e pediu a Neto: — Espere aqui, pô, só vou resolver uma papelada na diretoria.
— Tá certo. Demore não. — Nem se importaria se durasse o resto da manhã. Sentou-se no banco, descansando os cotovelos sobre os joelhos e, de soslaio, olhou para Giulia. — Tá sozinha por quê? Tô vendo um monte de gente da sua idade se divertindo.
— Esperando carona.
— Mas gosta dessa muvuca?
— De jeito nenhum. Você curte?
— Passei dois carnavais seguidos em Salvador, e isso deveria significar alguma coisa, mas fui no intuito de curtir praia. Para mim, tanto faz.
— Você tem família lá?
— Eu nasci lá e minha família paterna mora em Ondina. Meus pais se divorciaram, então acabei me mudando pra cá. Mas foi difícil me acostumar com Campestre.
Giulia sorriu com os lábios fechados.
— Gosta daqui?
— Gosto. É um contraste com minha cidade. E gosto mais ainda das pessoas.
— Então você gosta de mim.
Ele sorriu, os dentes demasiadamente brancos.
— Gostei muito de te conhecer. Deveríamos manter contato. Fuja não.
— Pode ser.

***


resolveu tirar a blusa da farda, ficando com uma regata preta, e se arrependeu de não ter feito isso antes. Saiu toda melada de espuma e confete da quadra, com Luana em seu encalço, e, segurando o spray quase vazio e mantendo a blusa na cintura, caminhou pelo trajeto de volta, até subir no piso do pavilhão. Apertou outra vez em Luana, enquanto duas alunas jogavam nelas, rindo, e a música alta vinha da quadra, como plano de fundo.
Com isso, sujou algumas universitárias, que andavam apressadas, e elas levaram um susto, sorrindo em seguida entre si.
pediu desculpas.
Até que acertaram um cara de barba por fazer e óculos de grau sobre o nariz, com sua camisa do curso de Biomedicina, e o dito cujo não levou na esportiva. Não achou graça. E, talvez, estivesse estressado.
— Foi mal, cara — disse sinceramente. — Não vimos você.
— É porque sou transparente demais pra isso. — Limpou a camisa, irônico. — Só poderia ser um bando de menininhas.
— Menos, adulto! — refutou Luana, o cabelo louro pintado de mechas rosas. — Isso sai com água.
— Quer que eu tire minha camisa pra você lavar?
— Aqui tá escrito “empregada”? — Apontou a testa. — Vai catar coquinho.
— Você é chato todo dia?
Ele franziu o semblante para .
— Devo ter feito algo de muito ruim para topar toda semana contigo — criticou, subindo o óculos. — Tu tens a língua afiada, hein. Um dia, eu ainda a corto.
— Cara, cala a boca.
— Quem você pensa que é? Quero ver alguém me calar.
Tomada de constrangimento e irritação, não mediu consequência, nem imaginou se ele tentaria algo, apenas ergueu os pés e forçou seus lábios nos finos dele.
Neste momento, vinha pelo lado oposto do corredor com Du e Isac e presenciaram a cena.
O universitário arregalou os olhos, sem reação imediata, e quem assistia vaiou alto.
Ele a afastou pelos ombros.
Uma pirralha beijando-o na boca era só o que lhe faltava, além de ter pegado DP no semestre mais puxado.
— Para de me assediar, criança.

Capítulo 11


Depois do colégio e, mais especificamente, do episódio, e Luana foram para a casa dela no ônibus. O primeiro dia de feriado começou tarde com duas adolescentes sonolentas despertando no quarto roxo.
De baby doll, bocejou, deitada na cama, enquanto Luana usava uma camiseta velha e uma calça de moletom, enrolada no lençol do colchão.
— Você é maluca — sibilou Luana com a voz arrastada —, . Beijou o cara de repente. Aquele filho do Eike Batista.
riu baixo.
— Foi apenas um selinho. Esquece isso.
— O viu.
— Viu? — Ergueu o corpo. — Mas ele havia ido embora.
— Ele estava indo com uns garotos da banda. Ficou chocado.
— Até eu. — Deitou, resolvendo mudar de assunto: — O que vamos fazer hoje?
— Recebi uma mensagem dele. Haverá uma reuniãozinha na garagem. — Checou o celular no chão. — Em duas horas.
— Não recebi nada. E olha que sou a empresária.
— Nossa caixa registradora. — Sorriu, levantando-se e dobrando os lençóis. — Vai comigo.

***


O portão marrom da casa amarela e branca estava aberto, e três garotos trocavam ideias, sentados em cadeiras na garagem — um deles com seu violão em mãos.
Elas entraram na casa e atravessaram a área vazia.
— Cheguei! — Luana avisou, vendo os olhares sobre si.
Atrás dela, hesitava.
— Olha ela! — Brincou Du, erguendo a mão para que a loura batesse. — O que é que a menina tem?
— É .
— E eu disse o que? — Franziu a testa. — , se aprochegue, ninguém morde. A não ser o Isac, mas ele prometeu conter seus caninos.
Isac revirou os olhos.
estava com vergonha de olhar para , após o mal entendido na quadra.
Ele ignorava sua presença.
— Quero água...
— A garrafa tá ali. — Du apontou para a mesa de plástico.
— ...E ir ao banheiro.
Não havia nenhum fora da casa e, mesmo conhecendo-a, não iria simplesmente adentrar a sala, tal como o dono da casa não instruiria. Mas, naquele momento, estava tentado a fazer exatamente isso.
Ele praguejou mentalmente e entregou o violão a Luana, levantando-se em seguida. Sem esperar , seguiu para a única porta na garagem e a abriu.
— Primeira porta à direita. — Apontou, de cabeça baixa.
fechou a porta atrás de si.
— Eu sei onde fica.
— Nós dois sabemos que sim. Você só quer brincar mais um pouco comigo, enquanto estivermos a sós, para me deixar vulnerável. Não quero provar esse novo tipo de provocação.
Ela assentiu.
— Você entendeu errado o que aconteceu na quadra.
— Que você me usou para causar ciúme?
— Eu estava naquela posição... — Ruborizou suavemente. — E, então, vi que Dayana nos encarava. O que fiz não foi premeditado.
suspirou, sem vontade de estragar a tranquilidade da reunião.
— O banheiro continua sendo no mesmo lugar.
— Não quero ir ao banheiro — admitiu. — Quero que você diga que está tudo bem entre a gente. Se não estiver, resolveremos agora.
— Está tudo bem. — Beijou sua testa. — Venha.

A finalidade da primeira reunião oficial do The Nacionais foi para acertar todos os detalhes sobre a organização da banda.
— Os ensaios serão aos sábados, e isso já foi dito no início, a partir de 14h. A garagem será equipada com os instrumentos de cada um, então busquem e deixem aqui. Vamos manter sob a lona. Os equipamentos de som necessários serão doados por um cliente do meu pai. Nós não temos a primeira voz, porque todo mundo acha que cantarei sozinho. Isso não vai acontecer. Luana, você pode ser a primeira voz em algumas canções? — questionou esperançoso.
— Eu adoraria.
, você estava falando sério quando disse que queria se tornar nossa empresária?
— Estava — respondeu sentada sobre a tábua.
— É muita responsabilidade e requer tempo disponível.
— Dou meu jeito.
— Você precisa arranjar espaço para nós no mercado musical. Pode fazer isso?
— Contem comigo — garantiu, inconformada com tantas questões rebatidas, mesmo ciente de que a intenção era pela banda.
— Confesso que estou receoso.
— Se, em um mês, eu não conseguir nenhuma apresentação no barzinho do Toin, me demito.
— Estão ouvindo: teremos um mês de ensaio para nossa primeira aparição pública como banda. Du, você é criativo e desenvolve conteúdo na internet, então está responsável por criar nossa página oficial e nosso canal no Youtube. Precisamos de uma assistente/assessora... Tenho alguém em mente. Luana, tu é a mediadora. Trará seu ar feminino para dar cor aos nossos ensaios.
— Sem veadagem — acrescentou Isac.
— Isac, você só tem que vir a todos eles. Vamos acertar o figurino no decorrer das semanas. Pedro Lucas, seu pai tem uma empresa de publicidade... Poderia nos patrocinar? Pergunte a ele. E, a respeito de patrocínios, temos que correr atrás.
— Podemos gravar os ensaios para analisar os erros. — Luana sugeriu. — Vamos compor algo para lançar?
— Provavelmente. Todo dinheiro arrecadado será administrado pela nossa empresária.
Isac chiou algo inaudível.
— De acordo?
— Sim — responderam todos.
— Estão liberados. — Encheu o copo com água e bebeu. — Sábado que vem, primeiro ensaio, estejam aqui.
Eles foram se despedindo e indo para casa, e, no caso de Luana, ela esperou a mãe.
saltou da tábua.
— Trabalho duro pela frente em pleno ano de vestibular.
— Dá tempo de desistir. — a lembrou.
— É impressão ou você tá dificultando?
— Coitada de você, se eu dificultasse. Não seria benéfico para ninguém.
Ela assimilou.
— Meu padrasto é quem vem me buscar e ele já entrou na rua. Vamos, ?
— Vamos.

Capítulo 12 - parte I


Na volta às aulas pós-feriado, o Val Campestre estava cheio e barulhento. A primeira prova do terceiro ano seria aplicada naquele dia, e a professora de Biologia esperava que os alunos tivessem aberto o livro, lido o assunto certo e extraído algo.
— Com esse espelho de chão na sala, mudarei os lugares. Virem suas cadeiras em direção a ele e afastem uma da outra.
Sendo duas aulas da matéria pela frente, os alunos teriam tempo para responder calmamente todas as questões.
— As provas são diferentes. Fiz quatro modelos! — explicou, entregando em cada fileira. — Boa sorte!

Durante a marcação do gabarito, após meia hora de prova e tido respondido todas as questões, que eram objetivas, devolveu. Em seguida, dois garotos e Dayana.
Nos últimos minutos da primeira aula, já que preferia sair por último, sem pressa, entregou à professora.
— Faltam dois alunos — respondeu a pergunta de uma colega de classe. Seus olhos procuraram , que estava encostado à mesa redonda de ferro, com os braços cruzados, junto aos amigos e uma garota. — Dayana.
Ela virou a cabeça.
— Você me chamou?
olhou para .
— Não. — Afastou-se mais, indo pelo corredor. Colocou os fones no ouvido e esqueceu o mundo.

Giulia tinha um encontro. Seu primeiro encontro. Conheceu um cara mais velho, educado, gentil e que gostava dela como amiga — por enquanto, era o que achava. Teve certeza do interesse de Neto quando, trocando telefone, ele fez questão de ligar para conferir se não era pegadinha, tomou a iniciativa de conversarem no whatsapp durante boa parte do feriado, conhecendo-se e descobrindo interesses em comum, como morar em outro país, e a chamou, ontem à noite, para sair. Porém, ela ainda preferia agir sem outras intenções.
Resolveu contar à mãe sobre Neto e a ida deles ao Amazônia Mix:
— É só um açaí — explicou quando ela iria rebater. — Nós somos apenas amigos.
— Você gosta dele de outra maneira?
— Não.
A mulher assimilou.
— E ele?
— Não sei.
— Está escondendo algum detalhe, Maria Giulia.
Mulher, se a pessoa não fala, não tem como adivinhar.
— Quantos anos Neto tem?
— 19.
— Tudo bem. Vou te deixar lá e, assim que você terminar o açaí, ligue para mim. Nada de pegar carona com esse Neto. Não o conheço, e ele é mais velho...
Giulia riu.
— É depois do colégio — mentiu.
— Não vai. Se for depois do colégio, não.
— Eu tenho 16 anos!
— E eu tenho 43! Quem é mais experiente aqui?
— A senhora. — Conteve o riso. — Estava brincando. Já confirmei com ele.

***


sentou-se à mesa do refeitório sozinha, e apareceu de repente.
— Para de se isolar, .
— Não estou me isolando. Quero comer em paz — retrucou.
— Quer que eu saia?
— Não.
Ele apoiou os braços na mesa azul.
— Não vai comer?
— Comprei hoje.
— Você e Dayana estão próximos. Nem parece que brigou comigo por causa dela.
Ele coçou os olhos.
— É que Dayana será nossa assistente.
— Uma faz tudo?
— Por aí.
pensou no cargo.
— Podemos começar nossos estudos no final da tarde quando eu voltar do cursinho. — comentou.
— Segunda-feira.
— Nossa, , deixa de preguiça.
— Me viro nos trinta e ainda tenho que escutar isso...
Ele bagunçou sua franja, arrastando-a para trás.
— Para de me enrolar.
— Juro que segunda estarei lá.
— Tá bom, então. Vai assistir nosso ensaio?
— Claro, sou a empresária. Tenho que saber se vocês são talentosos. Não posso vender meu peixe estragado.
sorriu, contemplando-a de lado.
— Engraçadinha.

Ainda durante o intervalo, Giulia e as gêmeas Saíra e Saíse estavam sentadas na escada do pavilhão universitário, perto da biblioteca, ocupadas com amenidades.
Giulia optou por não contar sobre Neto e o fato de eles estarem se conhecendo, por dois motivos: a) ela não sabia qual era a real intenção de Neto; e b) poderia ser caçoada. Não que Neto fosse feio, mas não era Diego, o cara pelo qual se interessara.
— Você não fala mais com suas amigas do ano passado?
A pergunta de Saíra a pegou desprevenida. E o modo como a frase foi construída soou de uma forma rude, em que Giulia teria usado as amigas por um ano e o prazo de validade acabou.
— Raramente. Falo mais com a .
— Quem é essa? — Saíse desviou os olhos da tela do celular.
. Ela é do terceiro ano.
Saíra ficou calada por um minuto.
— A lourinha, meio machão, é da nossa sala.
— Luana.
Incomodou-se, em seu interior. Perguntava-se se todos da sala concordavam que sua personalidade livre, o jeito pouco feminino e a falta de trejeito fossem o suficiente para tanto.
— Cada um tem sua personalidade. Não adianta lutar contra.
— Concorda comigo?
— Hum... Eu realmente nunca prestei atenção.
E era metade de uma mentira.
Aceitava e respeitava Luana como era, tal como Luana e a amavam, mesmo sendo tão diferente das duas.
— No início, achei que fosse coisa da minha cabeça, mas — dizia Saíra —, alguns dias depois, quando nós mudamos para sua sala e você começou a andar conosco, notei que Luana sempre me encarava com raiva; pelas costas ou não, como se sentisse vontade de te puxar e por ao lado dela. Muito primitivo. — Fez descaso. — Então percebi olhares para você, vindos do fundo da sala, e eram completamente diferentes. Isso é estranho. Ela é estranha, pra falar a verdade. Deve me odiar por ter roubado sua melhor amiga, a garota por quem é apaixonada.
O silêncio interferiu entre elas e ao redor, num lento zunido ensurdecedor.
— O que você disse? — Saíse perguntou cética.
Giulia pigarreou.
— Deus me livre! Para de brincar com isso! Luana não é lésbica.
— Ela é sapatona, sim. Quer pagar pra ver? Se você a encurralá-se, tiraria a dúvida.
— Ela não resiste a uma perereca. — Riu Saíse. — Isso é um babado forte.
— Os olhares tinham algo especulativo. Olha, eu realmente tô cagando e andando pra ela. Só que ela vive com a cara azeda para mim, então tive que desabafar. Posso estar errada, mas eu vi.
— Luana mudou, nas últimas semanas, depois de se tornar amiga da gordinha.
— Talvez seja sua namorada. Deve ter percebido que Giu é hétero demais pra si.
Giulia manteve-se quieta e pensativa.
— Nós podemos montar uma cena — sugeriu Saíra.
— Prefiro conversar assim que eu tiver digerido tudo isso.
— Estaremos aqui, amiga.

Dentro da sala de aula do segundo ano, os alunos retornavam vagarosamente, enquanto Luana e Elineide já estavam em suas carteiras, entretidas.
Giulia e as gêmeas entraram atrás de um grupinho, e a de cabelo escuro resolveu ir até a loura, com a ansiedade lhe causando relutância e pedindo a si cautela.
— Podemos conversar na hora da saída?
Luana assustou-se com sua inesperada vinda e maneou a cabeça.
— Ótimo. É uma conversa séria. — Afastou-se.

Capítulo 12 - parte II


Luana esperou que a maioria dos seus colegas deixassem a sala porque notou que Giulia guardava lentamente os pertences na mochila. Provavelmente, a conversa seria ali. Despediu-se de Elineide, que precisava correr para não perder a vã que a transportaria ao Projeto, e fingiu checar as unhas com esmalte descascado.
Apoiou uma perna na carteira e digitou uma breve mensagem para .
Daí, viu Giulia sair sozinha e não entendeu nada.
— Achei que fôssemos conversar seriamente — comentou atrás dela, com sua mochila nas costas, e a morena diminuiu os passos, observando-a sobre o ombro.
— Vamos, mas não na frente de todo mundo.
Caladas, atravessaram o corredor, seguindo para o banheiro do pavilhão. Giulia entrou, tocando as mãos na pia, e observou, por uns segundos, a figura loura de Luana parada diante da porta.
— Quer conversar dentro deste banheiro imundo?
— A moça da limpeza limpou há pouco.
— Engraçado... Foi exatamente aqui que brigamos naquele dia — comentou, dando passos para dentro do banheiro vazio, e encostou o ombro na parede, cruzando os braços.
— Quando você insinuou que me odeia. Eu me lembro — disse nesta posição.
— Não, falei que a carne valia mais que você, mas, se serviu de outra maneira...
— Mudou de opinião?
— Voltou a ser quem era? — contrapôs.
Giulia suspirou.
— Para que me chamou? Até onde sei, não somos mais amigas.
Ela virou-se, fechando a porta e posando um passo à frente, aproximando-se.
— Gosto de você — admitiu, interpretando. — Não da forma que achei. Isso é vergonhoso. Nós éramos amigas.
Luana empertigou-se, a mente exercendo domínio mais que o comum sobre si. Franzindo a testa, cética, perguntou:
— Como mulher?
— Às vezes, me sinto confusa... — Mordeu o lábio. — Ah, Luana, pare de me olhar assim!
— Mas é você quem está me olhando diferente. Isso é novo, eu não...
Giulia pegou as mãos dela, pondo sobre seu quadril e, desafiando a si, chegou perto, não o bastante para se tornar constrangedor em sua visão, porém o suficiente para encabular Luana, que enrubesceu, inerte, a respiração detida.
— Maria Giulia, o que deu em você?
A última coisa que viu, antes de fechar os olhos, foi que Giulia havia tocado seus lábios. Na verdade, ficou tão perto deles que teve a sensação de que seria beijada.
Grudada à parede, com as mãos sobre seu corpo, abriu os olhos rapidamente, deparando-se com os de Giulia abertos.
— Eu não te beijaria — explicou, o hálito tocando o rosto da mais alta, que, nesta posição e circunstância, tornou-se pequena. — Esperava isso, não é? Arrisco dizer que gostaria. Não sou como você, Luana. Não gosto de mulheres, se é que me entende. — Afastou-se.
Outra vez, o rubor abordou a pele alva de Luana. Abruptamente, segurou seus braços, empurrando-a contra a parede oposta.
— Você é uma idiota! — rosnou de uma maneira que Giulia desconhecia.
O aperto foi intensificado em seus braços magros.
— Está me machucando!
— Escute o que vou dizer: você não tem o direito de tentar algo contra mim. Maria Giulia, você é uma vaca, e seu intuito era descobrir minha sexualidade, mas, veja bem, ela não te diz respeito! Se quisesse sanar a curiosidade, se tinha dúvidas, por que simplesmente não agiu com coragem para me perguntar? Por que tentou me constranger? — Aumentou o tom de voz. — Ridícula! Foi eu quem tomou suas dores, e você pretendia me esnobar para me causar sofrimento... — Tocou-a na nuca, investindo o corpo de encontro ao seu, sem espaço, como segunda pele. — Eu poderia te beijar à força só para que sentisse meu gosto. Ou para dar provas de que, mesmo te beijando neste banheiro, não é de mulheres que me afeiçoou sexualmente. Talvez nem seja com homens. E isso não importa a você!
Os olhos de Giulia encheram d'água; por ter agido de má fé e pelo machucado que ultrapassava o físico.
— Achei que estivesse apaixonada por mim, que escondesse e, por isso, se afastou.
— Não, você se afastou! Alguém alimentou essa ideia na sua cabeça!
Giulia tentou soltar-se. Seus braços a empurravam inutilmente, e Luana exercia força contra ela.
— Esperemos suas novas amigas. — Escutaram o barulho de tênis no piso. — As gêmeas S.
Giulia tornou a empurrá-la, sem conseguir abrir e manter distância.
— Giu? Você tá aí ainda? — Era a voz de Saíra, e o risinho de Saíse e Selena.
Luana encarou os olhos escuros e percebeu que Giulia estava com as mãos no bolso, enquanto mantinha as próprias em sua nuca. Ao notar a maçaneta girar, grudou os lábios maiores nos macios dela e não fechou os olhos, desta vez. Nem ela, atônita.
— Giu? — Saíse chamou. A porta trancada. — Giulia?
— Por favor — pediu baixinho contra sua boca.
Luana forçou os lábios, com raiva e, abruptamente, afastou-os, apanhando a mochila e retirando-se em seguida.
Silenciosas e, na situação de Giulia, respirando dificultosamente, de cabeça baixa, e limpando a boca, demorou tempo suficiente para que uma delas, a morena e as gêmeas, se pronunciasse:
— Ela te agarrou?
— Ela não... Luana me odeia de verdade. — Buscou a mochila. — Tenho que ir.

Sentada no banco de concreto da entrada do prédio, sozinha, ouvia música, o corpo esticado e a cabeça sobre a mochila. A maioria dos alunos foram embora, e ela esperava Luana.
— Dá pra se ajeitar ou tá difícil?
não escutou.
— Moça, perguntei se dá pra sentar no banco ou é complicado entender isso. — O estudante puxou seu fone.
Ela ergueu a cabeça, incapaz de entender o problema dele.
— O que você quer? — Usou o tom ríspido.
— Sentar-me — explicou casualmente como se nada, além de se acomodar neste banco, importasse.
— Procura outro lugar vago. — Tornou a deitar, e ele, em reflexo, tirou sua mochila, sentando-se, e a cabeça de descansou em seu colo.
— Você é folgada.
Irritando-se, levantou-se, tomando a mochila e descendo do banco.
— Vai arredar o pé. Menininha proativa. Se bem que só pedi um espaço. Não tem do que reclamar.
Sem conter o ânimo, andando para o outro banco perto da grade, mostrou o dedo do meio por detrás do corpo.
— Gesto obsceno pra uma moça.
— Pensei que, em sua concepção equivocada, eu fosse criança — refutou, deitando-se lá, antes de pôr os fones.
— Não é. Talvez, pré-adolescente. Estou dando um crédito.
— Você tá discutindo com uma pré-adolescente... Quem é a criança aqui? Vai se catar.
Ele não pôde deixar de rir. Lembrou-se, então, do ocorrido antes do feriado.
— Deve ter virado motivo de falatório depois de ter me agarrado contra minha vontade.
— Cara, não precisa me agradecer por ter tirado seu BV. Aquilo foi um selinho. Não sabia que seria inesquecível pra você.
— Na verdade, fiquei imaginando que tu poderias ter me beijado de verdade, mas somente encostou os lábios... Muita inocência. Aí cheguei a conclusão de que você nunca fizera isso. Mas não se acanhe.
gargalhou, o começo forçado.
— Alguém tá deixando implícito o fato de que queria que uma pirralha o beijasse.
— Não trabalho com entrelinhas. Comigo não funciona.
— Tá, que seja. Cala a boca agora. Deixe-me escutar a voz doce do meu amado.
— Seu namorado? — Enrugou a testa.
— Bem que eu queria esse ruivo. É um cantor.
— Ah, sim. — Pensou por um curto instante. — Qual o seu nome, fera?
— Não digo a estranhos.
— Mas nos falamos algumas vezes.
— Você continua sendo um.
— Beleza. — Deu de ombros e cruzou os braços. — Para desfazer isso, meu nome é Carlos.
— Carlos de que?
— Não é necessário um segundo nome.
— A maioria dos Carlos têm nome composto.
— Bem, eu não tenho.
— Sem graça.
— E o seu nome? Vai me dizer ou fará charminho juvenil?
— Você fala como se fosse idoso. Eu, hein. Tem a cara do meu irmão, e ele só está com cinco anos.
— Ninguém nunca disse que possuo carinha de bebê... — Limpou o óculos na camisa do curso. — Até deixo minha barba crescer.
— Barbas são nojentas.
Carlos reprimiu um comentário mal intencionado.
— Não arranje um namorado com uma, então. Evitará problemas.
— Sou seletiva.
Ele sorriu nasalado.
— Também sou. Ou era.
— Não estou te perguntando nada — respondeu insolente, mas tapando a boca.
— Ih! Já vi que tu gostas de confrontar. Guarda suas defesas. Eu guardei minhas ofensas.
Luana finalmente abriu a grade e desceu a ladeira da entrada.
— Foi mal a demora, ! Meu padrasto tá na esquina. Precisamos correr!
Ela colocou a mochila nas costas e a seguiu, ciente de ser analisada pelo universitário. Ao dar a volta nas grades menores do paredão, gritou um “adeus!” para Carlos.

Capítulo 13


No sábado pela manhã, houve reposição de aula de Sociologia para os terceiros anos e, como raramente, o prédio estava praticamente vazio. De chinelos e vestindo a farda, segurava apenas um caderno, com a caneta, grafite e borracha no bolso, deixando a sala de aula às 10h. faltou por não acordar a tempo, e ela se contentou em ir embora de ônibus. Poucos universitários, em relação à semana, vagavam pelo prédio velho. Antes de caminhar para o ponto, resolveu visitar a biblioteca e reservar os paradidáticos de Literatura, os dos vestibulares e um para , porque sabia que ele mal entrava ali.
Esperou pacientemente no balcão de reserva, fazendo o cadastro e adquirindo, com isso, seu cartão de leitor. Lembrou-se de que o de Giulia era lotado de títulos de livros.
— Primeira prateleira, querida. — Rosa instruiu.
— Obrigada. — Andou até os livros organizados e seus dedos tocaram cada um, achando os quais procurava. Não para . Ergueu os pés, na ponta, esticando-se para cima, tentando, a todo custo, apanhá-lo.
— Quanto tem de altura? — Um estudante de camiseta rosa levantou o braço e pegou o livro com tamanha facilidade que enraivou e, depois, sentiu leve inveja.
— Não sei, mas tenho noção que não passa de 1,60 metros — lamentou.
Carlos entregou-lhe o livro.
— Queria ter tanto tempo livre pra ler todos esses livros.
— Eu não tenho, mas preciso arranjar. — Deu as costas a ele.
— Minha nossa! Tu és sempre espontânea a esse ponto?
— Qual?
— Sair andando quando está no meio de um diálogo. Como se cagasse pra quem está falando.
— Contanto que seja você, sim — admitiu tranquilamente e estendeu os exemplares à funcionária.
Carlos bufou, contrariado.
— Isso é falta de educação, não é, dona Rosa? Esses adolescentes de hoje não tomam jeito.
— Esses jovens adultos se acham exemplos. — Bocejou forçadamente. — Ah, me poupe.
Rosa deixou uma risadinha escapar.
— Obrigada, Rosa. — Apanhou os livros que ela devolvia. — Tchau.
Vendo-a fechar a porta, Carlos pegou o caderno na mesa, livro e canetas, jogando na bolsa e saindo em seguida.
— Isso é perseguição — avisou , sentindo sua presença distante. — Vou te denunciar!
— Cassete! Você é uma mutante.
gargalhou, virando-se.
— Larga do meu pé, senhor Carlos! Tenho idade pra andar contigo não.
— Ah, é? Isso implica não beijar os mais velhos...
— Você tá recordando de novo aquilo? Tá na seca? É isso? Tô começando a achar que está querendo que a pirralha repita. Mas eu não sou uma, portanto esquece.
— Não é nada disso. Falando sério, fui rude com você. Talvez sua defesa seja devido a isso. É que eu havia acabado de receber uma nota e estava lascado. O estresse influenciou a recepção.
— Não me importo.
— Qual é o seu nome? — Abriu a grade para ela.
— Para que você quer saber?
— Para te stalkear depois. — Reprimiu o riso, vendo-a olhar para si. — É brincadeira. Tu sabes o meu.
— Porque você me disse. Eu não perguntei e não estava interessada em saber. E, se te interessa, você continua sendo um estranho almofadinha, para mim. De verdade, vai brincar de ser adulto com gente da sua idade. Tchau! — Deu as costas outra vez, atravessando a rua e andando em direção ao ponto.

***


Na tarde deste sábado, a garagem de foi ocupada pelos instrumentos e aparelhagem de som. O carro conservado do seu pai teve que passar os dias fora para que tudo coubesse e sobrasse espaço para os seis.
Dedilhando as cordas do seu violão, com uma canção em mente, aéreo, demorou a reparar na presença bonita e arrumada de Dayana, que o cumprimentou com doçura, sentando-se na cadeira defronte.
— Estou empolgada com meu trabalho e animada em ajudar a banda — revelou.
— Todos estamos. — Maneou a cabeça, sendo examinado pelos seus olhos escuros, enquanto tocava.
— Qual é a música?
— 'Segredos', do Frejat — respondeu, embalando-se nos acordes.
Eu procuro um amor que ainda não encontrei... — ela iniciou, dando uma risadinha acanhada.
a encorajou silenciosamente.
Diferente de todos que amei... — Não tinha afinação, mas estava sentindo-se confortável em cantar, e isso bastava. — Nos seus olhos quero descobrir uma razão para viver. E as feridas dessa vida quero esquecer. Pode ser que eu a encontre numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar. Procuro um amor que seja bom pra mim. Vou procurar, eu vou até o fim... — Parou abruptamente ao ver Isac chegando, e continuou tocando.
— Cadê todo mundo? Corri feito doido na bicicleta, achando que chegaria atrasado.
riu.
— Bebe água. Estão vindo. Olha aí! — Avistou Luana saltando do carro preto parado em frente ao portão aberto.
Ela atravessou a área e entrou na garagem.
— Demorei?
Antes que negasse, Isac alfinetou:
— Em cima da hora.
— Ah, pelo menos, não tô atrasada. — Afastou-se para o fundo, buscando sua guitarra.
Du e Paulo vieram juntos, de skate.
— Paulo quase morre na ponte. Guri doido danado! — Empurrou-o fraco pelo ombro, e o outro arrumou o cabelo liso.
— O carro estava longe, pô! Meu skate rodaria, mas eu pulava.
— Vinte conto se você pular da ponte.
— Amanhã tô lá. Do rio, não passo.
— Vão afinando os instrumentos, que é mais lucrativo. As notas e cifras estão na pasta “covers’’ na prateleira. — avisou.
Cinco minutos atrasado, Pedro Lucas desceu do carro do pai com um envelope em mãos.
— Aqui tem um cheque — explicou, exibindo o papel e sanando a curiosidade deles — num valor significativo. Meu pai decidiu nos apoiar, mas só terá fundo após nossa primeira apresentação.
Eles concordaram mais apreensivos que anteriormente.
— Onde está nossa empresária? — perguntou Du em voz alta.
estava no ponto quando me ligou — disse Luana.
Eles resolveram começar o ensaio, desde que os integrantes estavam presentes. Cada um se dirigiu em direção ao seu respectivo instrumento, e Dayana ficou responsável, depois das instruções de Du, pelo som. A primeira música de abertura seria dos anos 2000.
— A setlist é vaga porque não sabemos o número de músicas que poderemos tocar no dia — explicou , sentado no banquinho de madeira no meio da garagem, ao lado de Luana.
— A lista de covers que você fez tem muito solo. Decidiu cantar? A Luana não se encaixa em todos — notificou Pedro Lucas, analisando a pasta.
se empertigou, coçando a nuca, como quando perdido, nervoso e/ou sem graça.
— Vou tomar Red Bull antes. — Brincou para relaxar.
— Vai se sair bem, ! — garantiu Dayana com tanto afinco, que ele preferiu acreditar.
— Espero. Todo mundo pronto? A bateria começa o show. Dá animação, esquenta a plateia. Depois, as guitarras e o teclado. Essa é a ordem. Em sincronia... 1, 2... — Ergueu a mão. — Calma. A música seguinte é 'Sutilmente'. A ordem muda. Eu começo com o violão. Daí, faremos diferente. Lento, agitado. Beleza?
Eles concordaram, e respirou fundo, procurando se concentrar.
— 1, 2, vai... — cantarolou, e os sons misturaram-se, arranhando na harmonia, numa nota. Pediu que parassem. Minutos depois, com um pequeno ajuste, retornaram. Pediu que parassem novamente. — Não tá funcionando.
— Vamos pelas guitarras — sugeriu Luana, e Isac observou calado. — O que acha?
— Beleza. 1, 2...
Ao som de 'Primeiros Erros', do Capital Inicial, cantou:
Meu caminho é cada manhã. Não procure saber onde estou. Meu destino não é de ninguém e eu não deixo os meus passos no chão. Se você não entende, não vê. Se não me vê, não entende. Não procure saber onde estou, se o meu jeito te surpreende. Se o meu corpo virasse sol... Minha mente virasse sol... Mas só chove, chove. Chove, chove. — Tomou fôlego. — Se, um dia, eu pudesse ver meu passado inteiro e fizesse parar de chover nos primeiros erros, ooh, meu corpo viraria sol, minta mente viraria sol, mas só chove, chove. Chove, chove.
entrou com um livro em mãos, e , que já soava frio, atiçou o nervosismo, pois ela mangava de sua voz, mesmo na esportiva e, definitivamente, a opinião dela tinha valor semi absoluto.
A garota cruzou os braços, seus lábios curvados.
— Quase peguei você cantando.
sorriu.
— Por pouco.
— Senta aí, , que a próxima música é maneira — aconselhou Luana.

Dentro da lanchonete Amazônia Mix, acomodados no canto da parede, Neto fazia o pedido ao garçom, enquanto Giulia parecia taciturna.
— Giulia? — ele chamou, com os braços encostados na mesa. — Ei, moça. — Tocou sua mão sobre o guarda-canudos.
Giulia olhou para ele, contemplando a cor dos seus olhos.
— Oi? Desculpa. Não estou sendo uma companhia boa.
— Claro que está. Em ter vindo, você atingiu metade do encontro. A outra metade é o proceder dele. Em que estava pensando? — perguntou mais preocupado que curioso.
— Tive um desentendimento com uma velha amiga. Ela me odeia. — Mostrou um sorriso deprimido. — Sabe a consciência? O peso é insuportável.
Neto assimilou a confessa.
— Fale com ela. Imagino que tenha tentado, sem conseguir. Continue tentando, mas, antes, perdoe a si para ser perdoada.
— Obrigada pelo conselho.
— Disponha.
O garçom serviu o açaí em tigelas para eles, e Giulia mexeu a colher nas bananas, sem vontade de por na boca.
— Não é justo que você o dispense pelo desânimo. Ele é curador. Confie em mim.
Ela levou a colher aos lábios.
— Acho que você tem razão. — Brincou, sentindo a áurea divertida e tranquila de estar com Neto retornar.
Justo não era trazer os problemas pessoais para seu primeiro encontro.
— Tenho a impressão de que sei menos sobre você do que você arrancou de mim. — Esboçou um sorriso galanteador.
— Aqui é stalker profissa, não perco oportunidades — disse tão calma e séria que, provavelmente, assustou o garoto. — Respira. É brincadeira. O que quer saber ao meu respeito?
Neto encenou um suspiro de alívio, a mão no peito, e ela sorriu com franqueza.
— Hum... O que estiver à vontade para me contar. Algo que não tenha comentado por mensagem. Devo ser advertido da existência de uma Maria Giulia rueira?
— Não, sou tranquila. Tenho um segredinho, porém você terá que descobrir. Não adianta adivinhar.
— Ah, Gi, quebrou meu barato! — resmungou, achando graça e especulando os motivos para que se tornasse segredo, e o que seria. — Nenhuma colher de chá?
Ser chamada pelo apelido novo vindo justamente dele era diferente e Giulia aprovou, tal como muitos traços seus.
— Eu não deveria ter falado nele. — Abaixou a cabeça, ruborizando.
— Calma aí. É algum segredinho sujo? — Ficou surpreso.
— É o segredo mais inocente que possuo — contou, decidindo não entrar em detalhes. — O que mais quer saber?
— Minha sogra é gente boa?
Giulia riu.
— Pensei que “tia” caísse mais adequado.
— Tá falando sério? — Ergueu as sobrancelhas, cético.
— Bem, a verdade é que eu só sei que estou num encontro contigo e que tá divertido. O que vem, além disso, é consequência.
Neto tomou uma colherada do açaí, calado.
— Não é verdade?
— Em partes. — Deu de ombros. — Quero dizer, dá pra imaginar o resultado disso.
— E qual será?
— Sei o que eu quero, e você?
Giulia queria ter tamanha certeza do que queria. Esperava aproveitar algumas horas da noite com ele.
— Quero que sejamos amigos — falou cautelosa, vendo-o deter a colher. — Que possamos sair mais vezes e deixar acontecer naturalmente.
Neto assentiu.
— Mas, se você fugir e se esquivar de outro encontro, vou atrás de você e te peço em casamento. — Brincou. — Ficou vermelha.
— Não me diga. — Abaixou a cabeça, e ele a ergueu pelo queixo.
— Deixa de vergonha. É só a gente. Eu e você.
Giulia tocou a mão que segurava seu rosto.
— Onde você esteve escondido esse tempo todo? Por que não te encontrei na biblioteca?
— Não era a nossa vez. — Acariciou a bochecha dela. — Raramente frequento a biblioteca da estadual. Prefiro ir almoçar em casa e estudar por lá mesmo.
— Que bom porque tem muita estudante bonita... — Deixou a frase incompleta, à mercê de interpretações.
— Sei disso. Tem uma bem na minha frente e, agora, meus olhos estão cravados nela. — Sorriu maroto. — Ela ficou vermelha de novo.
— Argh!
— É bonitinho, relaxa.
Giulia mudou o assunto e eles prolongaram, até terminarem o açaí. Pago a conta, seguiram para a rua lado a lado, parando próximo ao carro do pai de Neto. As mãos deles roçavam uma na outra, mas nenhuma tomou iniciativa de se unir. O vento frio arrepiou os pelos de Giulia, que cruzou os braços, e Neto, na falta de casaco, se ofereceu para esquentá-la num abraço — breve, porque o celular de Giulia tocou, notificando uma chamada perdida e uma mensagem da mãe.
— Minha tia? — Sorriu nasalado, encostando-se na lateral do veículo, e a observou com seu vestido florido, de cintura marcada, e o cabelo solto, penteado para o lado.
Giulia encerrou a ligação, guardando o celular na bolsinha e tornando a cruzar os braços.
— Quer outro abraço?
— Não, mainha tá vindo.
Ele respeitou.
Giulia era adolescente e recatada, dificilmente cederia quando tentada e demonstraria vontade.
Neto teria que entender, como já o fazia. Tinha consciência dessas imposições antes. No entanto, moldaria alguns, seguindo o ritmo dela.

Ao fim do ensaio, no início da noite, a mãe de serviu janta para todos, que comeram na mesa da sala de jantar. Sua mãe sorria para as piadas contadas por Du, apelidado carinhosamente de Dudu por ela, e perguntava se queriam mais, até que foram para casa.
Restaram apenas e , que seria levada pelo pai dele mais tarde.
— Trouxe aquele livro para estudar? — ele perguntou, sentado com as pernas afastadas, no piso da garagem, sob o céu escurecido.
balançou a cabeça.
— Até me esqueci dele. Peguei emprestado da biblioteca pra você.
— Obrigado.
Quietos e distraídos, olhavam para o chão, o teto, o portão fechado.
descansou a cabeça em seu ombro, suspirando.
— Tá com sono?
— Continue falando para eu não fechar os olhos — pediu gentilmente.
pensou.
— Como foi seu dia?
— Como Tom e Jerry. Um tal de Carlos deu pra pegar no meu pé. Ele é da faculdade.
— Hum.
?
— Que é?
— Você cantou bem.
Ele sorriu nasalado.
— Mesmo com essa voz rouca?
— A beleza está nela.

Capítulo 14


Suspirando, teve seu humor alterado bruscamente e sentou-se no banco de concreto sob a árvore na entrada do prédio utilizado pelo Val Campestre.
— Bom dia. — Carlos disse. — Não vai sentar em outro lugar?
— Não, senhor Carlos. — Colocou a mochila sobre as pernas.
— Só não deite no meu colo — censurou tranquilamente, o olhar sonolento por detrás do óculos de grau.
— Não vou te dar esse gostinho.
Ele riu nasalado.
— Sono danado.
— Deveria estar na sala de aula.
— Você também, mas, veja, está aqui. E sou universitário. Não é como se tivesse que dar satisfações a uma inspetora. Passei dessa fase.
— Depois que saímos da escola é um game over atrás de outro.
— Não queria te assustar, mas é mais ou menos assim. — Olhou para ela, que estava sem fone. — Você não escuta música a essa hora.
— Esqueci meu fone em casa.
— Eu até emprestaria o meu, só que vou escutar agora. — Abriu o bolso da mochila, buscando o fone preto.
revirou os olhos.
— Sem graça.
— O que você disse? — Franziu a testa, ouvindo a música alta. — Pode repetir?
— Ai, me erra.
— Então tá. — Virou a cabeça, apoiando-a no banco, e esticou o corpo.
— Vai acabar com sua coluna.
Ele pareceu não escutar porque nem moveu um músculo.
— Quantos anos você tem? 11?
Carlos pausou a música e corrigiu a postura.
— Tu fazes isso todo dia e quando estou falando contigo. Não é chato? — Viu-a arquear a sobrancelha. — Quer ele?
— Não.
— Tudo bem. Eu tenho 23 anos.
não disse nada.
— E você, moça?
— Agora, eu sou crescidinha? Tenho 17. Completo 18 em dois meses.
— Faz questão de ressaltar que vai virar maior de idade? — Soltou uma risadinha baixa. — Coitada. Só vem responsa.
— É inevitável.
Carlos inclinou o corpo para frente, colocando os cotovelos sobre os joelhos.
— Seu prédio funciona do lado. Por que está aqui?
— Tenho um seminário para apresentar às oito neste prédio e tô esperando uma amiga.
permaneceu calada pelos próximos minutos, e ele também, com sono.
— Meu nome é .
Carlos assustou-se com sua fala repentina.
— Mas não vou dizer meu apelido, é para os amigos.
— Prefiro . — Sentiu um empurrão leve e acabou sorrindo. — é diferente.
— Não é comum.
Carlos a encarou, analisando seus traços e deixando-a encabulada.
— Combina contigo.
— Receberei como um elogio vindo do almofadinha.
— Ah, tu não vais esquecer nunca o lance do banheiro?
— A primeira impressão é a que permanece.
— Tive uma má impressão ao seu respeito, mas acho que mudei de ideia. Eu te dei essa chance. Fui arrogante naquele dia, e tu não fosses nem um pouco mansa.
— OK.
— Ok?
— Prazer, . — Estendeu a mão, e ele, sorrindo mais que sorri num dia, apertou a mão menor e macia.
— Carlos. O prazer é meu.

Giulia respondia a mensagem de Neto, contente, e Saíse trocou olhares com a irmã dentro da sala.
— Olha o sorrisinho dela. Alguém desencantou do galego.
Giulia deu de ombros.
— Se estiver se interessando por outra pessoa, faz bem. Vira a página.
— Ele é muito gentil e paciente — falou sobre Neto, sem que elas soubessem de quem se tratava.
— Giu, tu não contou o que realmente rolou no banheiro naquele dia. — Saíra lembrou-se. — Ela é sapatona?
— Não, Luana não é. — Quis mudar o assunto, pois a dita cuja estava sentada no “fundão”. — Esqueçam isso. As aparências enganam.
— Mas ela é apaixonada por você?
— Ela me odeia! Isso tira a sua dúvida?
O tom ríspido usado, desconhecido quando se vinha de Giulia, chocou as gêmeas, que não falaram mais nada sobre.

***


Desde a segunda-feira, quatro dias haviam se passado e, neles, os estudos de e aconteciam diariamente, no final da tarde ou logo depois do colégio, quando iam juntos à casa do outro. A relação dela com Carlos estreitava todas as vezes em que se esbarravam no corredor da faculdade, na biblioteca e, raramente, no ponto de ônibus, já que ela ia a pé. Ele a adicionou no Facebook, certa vez, e considerou o interesse. Além disso, não tinha certeza se era sua imaginação fértil, mas Carlos flertava consigo, sutilmente, há um dia.
Numa manhã nublada e fria, mesmo sendo março, devolvia um dos livros emprestados da biblioteca, o com menos páginas, que conseguiu finalmente finalizar, a Rosa, no balcão de devolução. Prestes a sair, quase foi derrubada por dois brutamontes de Matemática, e eles pediram desculpas, tocando seu ombro como se ela fosse pequena demais e indefesa, semelhante a uma criança.
Conteve o revirar de olhos, desculpando-os, e bateu a porta ao deixar o ambiente. Sentindo a troca de calor no lado de fora, avistou um garoto com a camisa do curso de Biomedicina atravessar a grade do prédio novo e pensou que fosse quem conhecia. Subiu os degraus da escada, seguindo pelo corredor.
Mais à frente, saindo da diretoria da faculdade, tendo uma pasta em mãos, Carlos vestia uma bermuda escura e uma camiseta de algodão.
Sua boca curvou-se ao vê-la.
— Procurando por mim? — Chamou atenção dela.
Mal sabia que analisava discretamente sua aparência.
Ele era um rapaz bonito e atraente, e seu óculos de grau lhe oferecia um charme. Alto — detalhe não seguro, já que, praticamente, todas as pessoas eram maiores que ela —, de barba feita — mantinha-a por fazer durante o semestre, quando cansado, mas, para , tornava-se desleixo. Não entenderia a influência —, rosto afilado, mandíbula proeminente e humor sacana.
— Acaso.
— Poxa! Não acredito nele. — Aproximou-se, enquanto ela vinha. — Se você não fosse menor de idade, te convidaria para uma festa no sábado.
— Não vou a essas festas, é distante do meu estilo.
— Tu já fosses a alguma?
— Não preciso disso.
Carlos concordou.
— Nem eu curto muito, mas uns amigos me chamaram, então verei no que vai dar.
fez uma careta, teatralmente indiferente.
— Era só isso?
— Esperava que eu insistisse para que uma adolescente fosse comigo? Quero dizer, estaríamos infringindo as leis, e tu dissesses que não gosta.
— Relaxa, senhor Carlos. Entendi. Você poderia ser meu responsável, mas nem mesmo se responsabiliza por si — provocou.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Ah, é, dona ? — Brincou, vendo suas expressões faciais desaparecerem. — Tudo bem, é sábia para pouca idade.
— Sabedoria é uma virtude que poucos têm. O que posso fazer?
Carlos mordeu o lábio.
— Sair comigo.
Ela surpreendeu-se, iluminando as feições. Abriu a boca e fechou.
— Para onde?
— Não levei um fora de uma novinha — comemorou brevemente, sorrindo, e acompanhou. — Para o boliche. É um local público, divertido e dá pra gente conversar.
— Como agora? — Cruzou os braços, estupefata em vê-lo realmente interessado nela, que, anteriormente, em sua visão, era uma pirralha. Porém, independentemente do ocorrido, Carlos provou ser alguém agradável.
— Sim, mas com privacidade. — Passou a mão sobre o rosto. — Você não quer?
— Domingo?
— Combinado.

Giulia dobrava a curva para o pavilhão universitário, sentando-se sobre o piso, quando escutou alguém chamá-la. Neto estava caminhando para perto dela com a mochila no ombro e vestindo a camisa do curso de Fisioterapia.
— Oi. — Acomodou-se ao seu lado, as pernas afastadas. — Pensei se teria sorte de te encontrar neste pavilhão enquanto vinha por aqui.
— Resolveu atravessar todo o corredor ao invés de sair pela entrada do prédio em que estava?
— Não dá pra dispensar oportunidades.
Giulia mal acreditou nisso.
— Por que não pediu para que eu viesse?
— Queria encontrá-la às cegas, sabe? Nada planejado.
Ela assentiu, sorrindo fraco.
— Tá tudo bem?
— Está.
Neto examinou os grandes canteiros em círculos espalhados pela área aberta; nos distantes havia árvores e, nos próximos, samambaias.
— Então eu te devo um segundo encontro. — Giulia rompeu o silêncio.
— Na verdade, você não me deve nada, mas eu gostaria disso.
— Eu também — assumiu. — Aonde iremos?
— Tenho um lugar em mente. Você vai gostar.

***


Numa cidade relativamente pequena, em crescimento, ampliando bairros, construindo shoppings centers, lazer e educação, facilmente ocasionaria em encontros românticos de pessoas conhecidas no mesmo lugar. E, num caso específico e indelicado, duas mulheres armaram para dar o flagra no namorado de ambas dentro do Hilton's Bowling Bar. Resultou em tiro, porrada e bomba — ou quase isso, se o próprio Hilton não contivesse a situação, alegando que a rua era pública e aberta para escândalos, mas não aquele estabelecimento de descontração.
Ajudando a jogar boliche, Carlos ria quando ela arrancava com velocidade e força na pista, mas não derrubava um pino.
— Não se estressa. A perícia é mais importante que a força física. — Tornou a virá-la de frente para a pista, pondo seus dedos dentro de uma bola vermelha e tocando seu braço para guiá-lo com leveza. — Faça este movimento. — Demonstrou. — Não é difícil.
, que mordia o lábio, entusiasmada, deu três passos, curvou o corpo e arremessou a bola.
A bola derrubou menos da metade.
— É um ótimo recomeço. — Carlos encorajou risonho. — Você quer beber outra coisa?
— Coca zero — pediu. Levou as mãos à cintura e tornou a apanhar outra bola. — Agora vai. — Respirou fundo e lançou, reclamando a si por não ter sido fraco. — Quase! — Sorriu para o rapaz, recebendo a lata de refrigerante.
— A gente tem tempo até você deixar, ao menos, só uma lá. Vem.
— Tá duvidando, é? — Sorveu um gole da bebida, seguindo-o.

Sentados no canto do estabelecimento, numa mesa com assentos de estofado em lados opostos, decidiram comer algum lanche dali, enquanto Carlos contava uma piada que a fez gargalhar. Depois, conversaram sobre eles, de formas separadas, seus objetivos, hobbies, e muitas descobertas fizeram a respeito de cada um. No meio do assunto, comendo hambúrguer e batata frita, falaram sobre eles, de forma junta, em palavras claras e objetivas:
— Não funciono com controle remoto e não tenho medo disto aqui. — Apontou para os dois, e observava com um canudo na boca. — Eu não viria se não quisesse realmente estar contigo, sabe?
Ela maneou a cabeça, pondo a lata sobre a mesa.
— Tá com medo de levar um fora da novinha?
Carlos negou.
— Quero deixar claro minha intenção. Posso ter o humor sacana, mas sou um cara responsa.
— Entendo. Não terei medo de aceitar uma carona para casa. — Brincou.
— Ah, mas eu nem ofereci. Vai pegar carona com quem? — rebateu divertido.
— Então minha boca será beijada por outro.
Repentinamente, os lábios de Carlos pararam perto do hambúrguer, e o rubor tomou a pele alva de , que quis fortemente não ter dito aquilo.
— É para eu fingir não ter escutado ou posso partir para o ataque? — Quis romper o gelo que se formou em volta dela, pelo embaraço, com uma brincadeira.
— Você quem sabe. — Voltou a beber, rindo. — Vamos jogar.
— Vamos, sim, pra acalmar os ânimos. — Levantou-se com ela.

De volta à pista, pegou uma bola, e Carlos escolheu outra, oferecendo a vez a ela, que arremessou, e a bendita derrubou a maioria.
— Ôpa! Mandou bem! — Ergueu a palma da mão, tocando a dela. — Aprende comigo como fazer um strike. — Lançou a bola preta com leveza e em linha reta, observando-a ir até os pinos e restar um.
— Aquele 1% vagabundo. — riu. — Calma aí, que eu o derrubo. Agora. — Recolheu mais uma bola, sentindo seu peso e andando na pista. Inclinou o corpo, balançou o braço e arremessou. — Isso! — Virou-se, levantando os braços e sussurrando um “strike em dupla!” para Carlos, que gargalhou, abraçando-a pela cintura e tirando-a do chão.
— Tu estás de parabéns! Quer o nosso prêmio?
sorriu com os lábios fechados, e ele aproveitou para puxar o inferior entre seus dentes, antes de perder-se na boca dela.

Capítulo 15


? Você tá distraída.
sentiu o toque no braço esquerdo e encontrou o olhar especulativo de , no refeitório.
— Pensativa, eu diria.
— Sobre os vestibulares? Abriu as inscrições para o da UCA.
— Não sabia. Valeu!
Ele voltou a tomar a vitamina.
— Ficou com bigode. — Ela sorriu.
limpou agilmente com o guardanapo.
— O que você tem?
— Lembra que eu comentei sobre o Carlos? Nós estamos nos conhecendo.
Ele se ajeitou no banco anexado à mesa, bebericando a vitamina, sem senti-la descer na garganta. Perdera a vontade, curioso sobre o que dizia significava.
— Tivemos um encontro ontem. Foi bem legal.
maneou a cabeça.
— Desencalhou.
— Fala como se eu estivesse à procura incessante de namorado.
— Ah, já viraram namorados? Que cara rápido! — crivou discretamente.
— Não, estamos permitindo que siga sem pressão. Nada de rótulo, por enquanto.
— Tá aí algo que eu não lidaria bem. Não consigo.
— Mas eu e ele não nos importamos com isso. É só um título.
estreitou os olhos para , que o olhava de soslaio.
— Por que está assim, como se não tivesse certeza sobre o que tá fazendo? Veja bem, não estou afirmando que tu não sente nada por esse sujeito, mas não é difícil de notar que tem algo errado aí.
— Não há nada de errado comigo.
— Graças a Deus!
suspirou.
— Estou tendo problemas em casa.
— Falta de apoio? — Fez uma careta. — , se você quiser, eu...
— Nada disso. Me viro sozinha — interrompeu-o.
— Ainda assim, você tem o meu apoio.
— Obrigada.

***


As propagandas das novas chapas para o Grêmio Estudantil tiveram início na manhã do dia seguinte, com três chapas formadas por estudantes do segundo e primeiro ano, possuindo tesoureiros, líder, vice, organizadora, entre outros. A chapa 3: Circuito Revolucionário mantinha as garotas na posição de líder e vice, e elas eram Luana e Elineide.
— Não voto na 3 — avisou Saíse. — A líder odeia você.
— Aposto que a namorada dela também. — Saíra complementou.
Impaciente, com o rosto apoiado na mão, Giulia contrapôs:
— Não é argumento válido para não votar na chapa que melhor atender as nossas necessidades.
— Estamos segurando na mão da inimiga.
— Parem de implicar.
— Você gosta de se envolver com esse meio. Por que não se candidatou? — Saíra questionou.
— A única chapa que não estava completa era a delas.
— Votará nelas?
— Votarei na chapa mais inteligente.
— Deveríamos ter criado a nossa.
— Você não serve para defender algo, só exigir — provocou a irmã. — Não funciona sem diálogo. É diferente do seu relacionamento com o Matheus.
— Eu não mando nele. Nós somos livres e respeitamos a escolha contrária do outro.
— Então o meu cunhado soube domar a fera. O que ele fez? Cortou suas garras?
— Saíse, calada! — Sorriu, desarrumando seu cabelo longo, e a gêmea segurou a mão dela. — Otária.
— Também amo seu temperamento agridoce.
A votação seria realizada na sexta-feira e somente os maiores de 16 anos poderiam votar.

Te ver e não te querer é improvável, é impossível. — Os braços corpulentos a abraçaram por trás e Carlos caminhou com pelo corredor do seu pavilhão.
Ela virou, tendo que erguer os pés, e o estudante a trouxe para perto, pondo as mãos dela em seu pescoço.
moveu os dedos na sua nuca.
— Vamos fugir pra outro lugar, moça — sugeriu baixinho contra a boca delineada, que se curvou.
— Que proposta indecente. Tô perdendo aula.
— Tu estás com a mochila...
— Alguns alunos ficam com ela para não serem furtados. — Detestou ter que partilhar a falta de segurança deles. — Mas eu vou embora mesmo. Tô com dor de cabeça, enjoada...
— Logo notei seu olhar caído. — Beijou-a nas pálpebras. — Levarei você assim, até o ponto.
— Eu sou pesada.
— Não é, não. — Grudou os lábios nos seus.
— Já tá liberado?
— Estou de bobeira, doido pra chegar em casa. Vou ficar perto de você, então, que é para evitar que caia.
— Minha pressão tá regular.
— Mas seu corpo tá fraco. Se reclamar, te pego no colo e carrego até lá.
— Tá certo, senhor Carlos. — Sorriu e andou na frente, esperando-o alcançá-la com o braço ao redor do seu ombro.

***


estava com a toalha jogada no ombro, pronto para tomar banho, após chegar do cursinho, quando escutou sua mãe falar com alguém no portão.
Vozes conhecidas.
— Espere um momento. Irei chamá-lo. Você quer entrar?
Ele fechou a porta do banheiro e atravessou o corredor, descalço, indo à área da casa.
, você tem visita! — Apontou para a menina de cabelo solto e um sorriso hesitante.
— Dayana?
— Oi. Posso falar com você? É importante.
— Venha, vamos pra garagem. — Observou-a ir cautelosa, acendeu o interruptor e logo a encarou, de braços cruzados. — Senta.
— Não pretendo demorar. — Mordeu o lábio. — Vim aqui porque estou cansada das minhas tentativas acabarem falhando. Indiretas não funcionam, principalmente, com você, e não posso te condenar por isso. A verdade é que esconder não levaria a lugar nenhum, então decidir ser franca. Sou apaixonada por você, cabeça de vento. — Permitiu-se respirar e, somente neste momento, notou que detinha o fôlego. As mãos tremiam levemente, entrelaçadas. O coração palpitava tão ligeiro que teve receio do silêncio entregá-lo.
Atônito, coçou a nuca. O primeiro pensamento surgiu numa piada idiota sobre o novo apelido, mas iria constrangê-la, e ela não parecia confortável.
— Você não tem que falar nada. Eu não suportava mais ocultar isso. — Olhou para ele com uma intensidade desconhecida. — Não me trate diferente ou me evite com receio de me magoar. Você não é obrigado a corresponder. — Suspirou resignada. — Era o tudo o que eu tinha a dizer. Tenho que ir agora.
Ele maneou a cabeça, e Dayana caminhou para fora.
— Tchau.

Capítulo 16


Giulia foi barrada, de surpresa, por um corpo sapecado e um pouco maior que o seu, no corrimão da escada, enquanto tinha aula vaga.
— Filando aula, é? Não é essa a garota que eu conheci. — Neto brincou, subindo mais um degrau e detendo-se diante dela, que manteve a mesma altura. — Tudo bom?
— Melhor agora.
— Gi flertando... Acordei com a bunda virada pra lua! — Sorriu, fazendo-a gargalhar. — Essa versão é interessante.
Giulia ficou vermelha.
— Essa é muito mais.
— Tirou o dia para me deixar com vergonha?
— Um professor adoeceu e avisou só às três da manhã. O que diacho ele aprontava a essa hora não sabemos, mas, que ficamos putos, não tenha dúvida.
— Bem, pelo menos, avisou. A minha nem teve a consideração. É um descaso danado!
— Pior que é. Eu te entendo. — Beijou-a na testa.
O gesto ocorreu tão despretensiosamente que Giulia nem estranhou.
— Fiz mal? — Neto desceu um degrau. — É melhor mantermos esta distância segura.
Ela balançou a cabeça.
— Você é medroso e fofo.
— Falta completar que sirvo na friend zone. Vai me fazer chorar! — gracejou. — Ninguém nunca alegou que me falta coragem. O que eu não fiz que te levou a essa conclusão? — Apoiou o peso do corpo no corrimão, indagando.
— Nada.
— Algo foi, certeza. Diz pra mim.
— Esquece.
— Ajo cauteloso com você porque não quero te afastar. O que estamos construindo é especial, sabe? E sinto que piso em ovos. Então, se quer que eu faça algo, terá que verbalizar. Tomar a iniciativa.
Giulia compreendeu. Decidida, insinuou:
— Mas e se eu der essa brecha?
— Aí eu entro em ação. — Tornou a subir o degrau, vendo-a apertar os dedos no corrimão.
— Você não... — Mordiscou o lábio, insegura.
Ele sorriu.
— Eu já sei... — Tocou seu rosto, envolvendo um lado. — Seu segredinho inocente.
Giulia ergueu a sobrancelha.
— Você descobriria de outro jeito.
— Não faz diferença, para mim.
Ela examinou ao redor.
— Vem comigo. — Neto a levou à área aberta do pavilhão onde estavam, atravessando-a, até o outro piso. Desceram os degraus da escada, viraram o corredor e pararam numa parede. Atrás deles haviam portas fechadas. Os pavilhões tinham duas vias e aquele ficava vazio, e mais escuro. — Suspeitei dele desde o dia em que saímos da lanchonete.
Giulia enrubesceu.
— Gostaria de ter algum segredo inocente... Deixaria você menos desconfortável. — Sorriu nasalado, para quebrar o gelo. — Você tá livre pra ir quando quiser.
Ela suspirou resignada e, num ato de demasiada ousadia, tocou a boca na dele.
Neto surpreendeu-se, de olhos abertos.
A pressão suave de Giulia e a respiração comedida o fez segurar seu rosto para ter maior contato.
Afastou-se, segundos depois.
— Corromper sua inocência me torna um ser condenado — gracejou, pondo seu cabelo para trás da orelha, os lábios roçando. — Você é linda, minha menina. — Os dois sorriram. — A regra do primeiro beijo não se aplica ao segundo encontro?
— Encontramo-nos mais de duzentas vezes e eu sou exceção. — Sem nem ter noção de onde vinha tamanha desinibição, posou o polegar na covinha dele, e o outro acariciou seu rosto. — Beije-me de verdade agora.
— Estava esperando você pedir. — O riso morreu ao roçar os lábios mais um bocado nos seus, provocando a curiosidade e entusiasmo desmedido de Giulia, que deu uma mordidinha nele, enrubescendo quando ele encarou-a nos olhos e sorriu. Neto demonstrou o ato com destreza, puxando seu lábio inferior entre os dentes e, satisfazendo a vontade de ambos, cobriu a boca dela com a sua.
Giulia quis afastá-lo só por um momento, pelo primeiro contato novo, a língua penetrando, à procura da sua, que não sabia o que fazer. Mas tranquilizou-se, e as mãos foram aos braços dele, que a seguravam pela nuca.
Neto lhe deu vários selinhos, o último mais demorado, soltando-a.
— Escutei o sinal tocar.
— Eu não escutei nada. — Riu. — Vamos.
Andaram lado a lado e ele deslizou a mão pelo seu pulso, entrelaçando os dedos nos seus.
— A propósito, tenho, sim, um segredo inocente. Se eu te contar, talvez, você não acredite. Terá que desvendar sozinha.

esfregou os olhos, sentado no banco de concreto, e teve um vislumbre do olhar de Dayana pairado sobre si. Pigarreou, buscando o celular dentro do bolso do moletom, e digitou uma breve mensagem para , que desaparecera de repente ao ir beber água.
Seu celular tocou.
— Alô?!
Oi, querido! — A voz de sua mãe parecia tensa, e o tom o manteve alerta. — Você está no meio da aula?
— Não, no corredor. Fiz prova hoje. Aconteceu alguma coisa? Estão todos bem?
Elias saiu de casa mais cedo, logo quando você foi ao colégio. Pegou aquela bicicleta velha e disse que iria espairecer, mas não voltou até agora.
— Acha que ele está no bar?
Provavelmente esteja. Costumava acordar às seis para beber pinga, não é? Você sabe onde fica esse bar. Dê-me o endereço.
— Aquele ambiente não é pra senhora.
Ele vai morrer! — Apavorou-se, embargando a voz. — E que me levar consigo! Dê-me, !
inventou uma rua fictícia e contou que a fachada estava escrita em letras garrafais; porém, na verdade, fora apagada. O bar deveria ter sido fechado há muito tempo.
Obrigada, meu anjo. Falo com você quando você chegar em casa. Não se preocupe com seu pai. Vou trazê-lo comigo.
O garoto quis dizer que, se não fosse para preocupá-lo com o paradeiro dele, não deveria ter telefonado. No entanto, agradecia por estar comunicado a respeito disso. Iria atrás de Elias e o arrastaria para casa. Agora, sentia medo e raiva, numa oscilação que lhe causava falta de reação e exaustão emocional. Levantou-se rapidamente do banco e entrou na sala, pedindo licença à professora. Apanhou a mochila e saiu.
Dayana o observou pálido.
andava agilmente pelo corredor, dobrando na curva, passando por pessoas desconhecidas e digitando outra mensagem para .
Não ligaria para ela, que tinha os próprios problemas pessoais. Enquanto terminava de digitar e enviou, o toque “olha a mensagem!” soou afastado, em outro celular. O mesmo toque de chamada da . Erguendo os olhos para analisar, a encontrou com a mão no bolso de trás da calça da farda, braços envolvendo seus quadris largos e alguém rindo junto dela pelo toque de mensagens ser aquele.
Ela pegou o aparelho, conferiu a tela e guardou.
Então sua boca foi tomada pelos lábios ávidos de Carlos.
Nem ao menos leu a mensagem do melhor amigo.
continuou andando, passando por eles, com um balanço de cabeça, incrédulo, e seguiu para o corredor da grade.
— Para ir embora, é necessário ter a permissão da coordenadora no papel — o novo porteiro avisou a uma aluna pequena. — Peça a ela.
— Está bem. — Revirou os olhos, virando-se e retornando todo o trajeto que fizera anteriormente.
Nem a pau, iria. Abriu a grade, e o porteiro o barrou.
— Foi liberado? Por quem?
— Sim, por . — Deu o fora, ignorando suas reclamações. Estava preocupado em salvar a pele do pai e não em ter uma conversinha com a coordenadora.

***


— Vote na chapa 3, ! — pediu Luana assim que o último sinal tocou.
A menor concordou, respondendo uma mensagem e enviando outras três — para dar ênfase, sempre fazia isso.
— Onde está o ?
— Ele foi embora. Enviou uma mensagem. Não tá me respondendo agora.
— Detesto quando fazem isso.
— Eu também. — Bufou, guardando o celular no bolso da frente. — Ele é desligado. Mas não vamos falar dele. Quais são as promessas de intervenção do Circuito Revolucionário? É esse o nome, não é?
— É, sim. Nós estamos planejando melhorias viáveis. Nosso panfleto não tá pronto, mas posso ir falando a você.
— Estou escutando. — Sorriu para sua animação.

Longe dali, dentro da biblioteca, Giulia trocava os livros que leria no mês de março. Entusiasmada com os acontecimentos do dia, nem se importou com a demora em ser atendida pela bibliotecária. Olhou para unhas pintadas de rosa nude, enrolou uma mecha do cabelo e apoiou, por fim, o rosto na mão. Pegou os livros e os levou à mesa, onde sentou-se de lado, aguardando.
Não esperava, e acreditava ter se desencantado, a presença de Diego naquele horário.
Ele segurava a mochila numa mão e uma pasta na outra. As vestes largadas, estilo básico. Quando pôs sobre a mesa seus pertences, desembaraçou o cabelo com os dedos.
Giulia virou a cabeça, encarando os próprios tênis, incapaz de vê-lo sem que o achasse todos os adjetivos verbalizados uma vez. O fato de ele ter uma namorada não inibiu sua opinião, mas reprimiu seu objetivo de tê-lo.
— Giulia, não é? — O sotaque continuava sendo charmoso.
Ela assentiu, olhando para as íris castanhas claras.
— Tudo bom?
— Tudo ótimo, e com você? — respondeu por educação.
— Cansado. Tô pedindo pra sair da faculdade logo. — Sentou-se à mesa dela, numa cadeira próxima.
Giulia ajeitou-se.
— Você se forma este ano?
— Deus te ouça! — A boca rosada curvou-se. — Meio do ano estarei colando grau. Termino meu TCC até maio.
— Licenciatura?
— Bacharelado. Planejo me especializar em Física Nuclear. Tenho muito que pesquisar e estudar ainda.
— Hum... Boa sorte! — desejou sinceramente.
— Obrigado. Ampliarei meus horizontes, mas voltarei a Campestre quando estiver com uma bagagem cheia.
— Aonde pretende ir? — questionou, sem conter a língua.
— Primeiro, São Paulo. Arranjarei uma bolsa de pós-graduação na Unicamp ou na USP. De lá, não sei. Visitarei a Coreia do Norte e a Irlanda, onde minha mãe mora.
— Sua mãe é nativa?
— Não, mas meus avós maternos são. Ela mora lá há sete anos.
Giulia sentiu certa resistência dele em falar abertamente sobre a família.
— Deve sentir muita a sua falta. Meu sonho é viver em Amsterdã e, só de imaginar largar tudo aqui, me dá saudade.
— Nós tivemos uma discussão na última vez em que nos vimos há onze meses. Estamos bem agora. Ela é minha loura, mulher da minha vida! — Sorriu, e Giulia o acompanhou.
— Nossas mães são as mulheres das nossas vidas.
— Elas não nos traem, nem manipulam. Bizarro alguém manipular outra pessoa como se o ser fosse um robô, oco por dentro, incapaz de ser amado.
Giulia teve compaixão por tais palavras, porque compreendia que eram a descrição de um cara solitário, de coração quebrado. Talvez, ele.
— Você?
Diego a encarou com uma intensidade que a deixou de pernas bambas.
— Eu não permito que me usem e descartem como objeto.
A bibliotecária chamou Giulia.
— Que bom que não é você. Se conhecer alguém assim, ofereça um café forte, que é para o sujeito acordar.
Ele soltou uma risada.
— Tu possui uma energia boa. Gosto demais de estar ao redor de gente assim.
— Obrigada. — Levantou-se e apanhou os livros.
— Haverá um churrasco no meu aniversário. A galera se juntou e decidimos fazer. Será na ilha, nesse fim de semana. Apareça! Leve quem você quiser, mas vá.
— Quantos anos você completará?
— 25.
— Tá, verei quem levar — mentiu.
Ao dar o fora, pôde respirar direito e acalmar os ânimos. Cinco minutos perto do galego foram o bastante para apagar o fato de ter dado o primeiro beijo. A porcaria de cinco minutos que a fez quase torcer os dedos dos pés.
Iria convidar Saíra, ou Saíse, se a gêmea não fosse, ou Neto. Mas Neto, provavelmente, não iria.
O aniversariante tem namorada e é praticamente dez anos mais velho, Maria Giulia!, sua consciência lembrou, infelizmente, e a animação caiu por terra.


Capítulo 17


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

Quando não apareceu no colégio no dia seguinte, perdeu a dúvida da gravidade do acontecimento. A mensagem dele do dia anterior não lhe dava nenhuma garantia de que conseguiria resolver, se precisava de algo e, o mais importante, o que era. Porém, para ele ter faltado aula, o vício do tio Elias seria a provável causa.
Na volta para casa, tomou banho, trocou de roupa, calçando sua sapatilha preta, de camurça, e vestindo um vestido. Poucas vezes usava esta peça de roupa — sua mãe comprava muitas, tendo em mente que, se substituísse as demais por vestidos, estaria forçando-a a usá-los porque restariam apenas eles. Penteou o cabelo curto e jogou a mochila no ombro, contendo o conteúdo perdido por .
A casa dele ficava no bairro vizinho, o que rendia uma caminhada penosa, entre atravessar ruas, avenidas e terreno baldio. Optou por pegar um ônibus, ainda que descesse distante.
Subindo a calçada do garoto, ergueu os pés para alcançar a campainha, e quem atendeu foi a mãe dele:
! Tudo bom, querida? O tá no quarto, trancado.
— Posso ir até lá? Ele deveria estar indo ao cursinho, não?
— Perdeu a hora. Se você conseguir arrastá-lo para fora, compenso com sanduíches de queijo.
— Ele vai sair — disse, sem convicção disso. Bateu na porta marrom, e o garoto não respondeu de imediato. — ?
— Minha perna tá quebrada. Não consigo chegar até a porta.
— Sou eu, a ! — Assustou-se pela realidade dele.
Escutou o som de pés contra o piso e, depois, a porta destrancada.
terminava de vestir a camisa de frio.
— Não me lembro de você ter perdido algo no meu quarto.
— Trouxe o conteúdo que tu perdesse.
Ele lhe deu espaço para entrar e fechou a porta em seguida, trancando-a.
ergueu a sobrancelha.
— Meu quarto, minhas regras — explicou, sem emoção no rosto. Acabou caindo na cama, no canto da porta, e pondo os braços atrás da cabeça. — O que eu perdi?
— Exercícios de Química e o assunto da prova de Física. — Sentou-se na cadeira giratória e abriu a mochila, sendo observada atentamente por ele. — Tirei xerox da atividade para você.
— Quando eu te devo?
— No dia em que eu cobrar R$ 0,40 centavos a você é porque estou de mudança pra debaixo da ponte.
— Tá bom. Deixa os resumos aí em cima, e eu darei uma olhada mais tarde.
— Não vai ao cursinho?
— Olha a minha cara de quem tá a fim de ir — ironizou.
— Você foi mordido por um cão? Porque sua raiva me parece contagiosa. Já estou ficando com raiva de você, pela indiferença, e de mim, por ter vindo.
— A chave da porta tá na fechadura.
levantou-se num pulo, estupefata e farta. Guardou os pertences dentro da mochila e caminhou para a porta do quarto.
— Não vai me emprestar o que trouxe?
— Vou te emprestar meu dedo do meio — respondeu ríspida, batendo com um pouco de força ao deixar o quarto. — Tia, ele tá indomável. Permita que o cavalo fique sozinho, e logo estará calmo.
Lavando os pratos, Edna riu.
— Não fale assim do meu filho, !
— Mas ele tá dando coice! O que posso fazer? — Suspirou. — Vou embora. Até logo!

***


No meio da tarde, a campainha da casa de tocou insistentemente e, estando somente ela e Davi, teve que ir atender. Diria um monte ao ser impaciente.
Abrindo a porta, irritando-se, lá estava , de camiseta e calça, seu cabelo úmido e comportado.
— Oi.
— Oi? — soltou uma risada repleta de sarcasmo. — O que você quer? Que eu saiba, não perdeu nada na minha casa.
— A apostila. Você iria me emprestar.
— Também iria emprestar este dedo. — Ergueu o do meio. — Você foi grosso.
— Eu tô lidando com o vício de um homem de 46 anos. Minha cabeça estava quente. Insinuei aquilo mais cedo e, por isso, vim pedir desculpas. — Coçou a nuca. — Não quis te ofender, nem ser estúpido.
— Você não é estúpido! Ei!— Suavizou as feições e segurou sua mão, trazendo-o para dentro. — Vem aqui, Zé. — Abriu os braços.
— “Zé” é de lascar. — Abraçou-a, acabando por rir nasalado, enquanto gargalhava contra seu pescoço. — Você me paga, tamborete.
— Com juros?
— Pode apostar. — Afastou-se, tendo o cheiro dela impregnado em seu nariz; do cabelo, perfume.
— Quer estudar comigo? Começarei agora.
— Hoje só quero a apostila.
Ela respeitou, guiando-o para a sala, onde Davi assistia TV. Enquanto buscava no quarto, conversava com Davi, que o deu uma injeção de ânimo, sem ter noção disso.
— Painho tá planejando uma festa para a — confessou o garotinho, pondo o dedo sobre a boca, num pedido de silêncio. — É surpresa.
sorriu das expressões enfáticas dele.
— Onde será?
— No quintal. Vai ter um bolo gigante e muito doce. A é doida por brigadeiro.
— Eu sei. Você a acha gorda?
— Que? Não! — Deitou a cabeça no sofá, em pé. — Minha maninha é bonitona.
— Ela poderia ser uma gordinha bonitona.
— Mas ela não é gordinha, é só bonitona — explicou. Em seguida, sentou-se no sofá. — Você não acha?
Ali, trocando uma ideia com aquele garotinho de 5 anos, sentiu como se fosse seu irmão mais velho.
— Acho.
deteve-se na entrada da sala.
— Calma! Não escutei os segredos dos rapazes! — Riu, notando o olhar temeroso de e o sorriso sapeca do irmão. — Davi, você mexeu na minha mochila?
— Não.
— Sumiu com minha apostila, ? Tá querendo que eu passe o resto da tarde aqui? — gracejou.
— Amanhã eu levo ao colégio.
— Vamos procurar. — Levantou-se. — Davi, você procura pela sala. Sua irmã deve ter andando com a bolsa aberta, e as coisas dela criaram pernas e se esconderam, ou alguém... — Tornou a olhar para ela. — Escondeu de propósito.
deu de ombros.
— Davi, cuidado pra não derrubar nada.

Dentro do quarto roxo, remexeu nos artigos da escrivaninha, enquanto , perito, conferia embaixo do seu travesseiro, da pelúcia de caveira e, em seguida, abriu a mochila dela, derrubando os materiais sobre a cama.
nem se alterou, sentando-se na cadeira giratória.
— Já procurei nela.
Repentinamente, ele começou a gargalhar alto e com gosto.
— Sob o colchão é um bom esconderijo realmente. — Puxou a apostila.
Ela enrubesceu.
— Deve ter ficado preso quando eu me sentei.
— Acredito em você, de verdade. — Guardou os pertences dela calmamente e rindo.
— Isso foi ridículo.
— Foi engraçado. — Gargalhou. — Se quer que eu fique, por que não me disse?
— Eu te chamei para estudar, e você recusou.
— Mas não estou me referindo a uma tarde de estudo.
— É o que tentei fazer. Iria te animar com algo.
pôs sua mochila no canto e sentou-se na cama.
— Estou esperando.
— Eu te desafio no karaokê online. Se você ganhar, faço sua sobremesa favorita e, se eu vencer, você faz a minha.
— Não sei cozinhar.
— Existe receita e internet.
— Por seu plano ter falhado, mas a intenção ter sido boa, eu encaro o desafio. Agora, escolho a música que você vai cantar.
— É aleatório e nós cantaremos juntos. O sistema soma os pontos de cada adversário. Preparado?
— Não lido bem sob pressão.
— Você tá sendo pressionado por um mousse de morango com sorvete? Eu tô me sentindo pressionada pela minha delícia de abacaxi. Ou será que mudei a preferência?
, tá bom! Isso tá me dando fome. Você tem que alimentar a visita.
— Desde quando você é visita, estranho? O microfone do fone tá aqui e tem um microfone maior na segunda gaveta do guarda-roupa.
Ele encontrou, fechando-a, e desenrolou o fio.
— Este é meu.
— Tudo bem. — Conectou a entrada na CPU e esperou a janela abrir. Concordou com os termos, fechou as janelas desnecessárias e alerta de vírus, até realizar o login.
— Você joga sozinha?
— Com o Davi e, quando a Luana dorme em casa, com ela. Podemos escolher a primeira música e existe um bônus em cada rodada. Geralmente, é uma canção conhecida. Você escolhe uma dessas músicas da lista. — Mostrou a ele.
sentou-se na cadeira, descendo a barra de rolagem.
— Música internacional não vale.
— As músicas estão misturadas. Será na sorte.
— A sorte não costuma estar ao me favor. — Deu de ombros e levantou-se.
Os avisos de que a batalha começaria apareceram na tela, a contagem de cincos segundos e, então, o toque teve início, soando pela caixa de som do computador.
— Conhece?
— Escuto essa música.
— Então canta. Tu perdendo! — Soltou uma risada, em pé, ao lado dela, que usava o headfone.
Eu nunca fiz questão de estar aqui, muito menos participar, e ainda acho que o meu cotidiano vai me largar. Um dia, eu vou morrer. Um dia, eu chego lá — cantavam de forma desafinada e pouco sincronizada 'Piloto Automático', do Supercombo — e eu sei que o piloto automático vai me levaaaar... acabou rindo da própria voz desastrosa. — Eu devia sorrir mais, abraçar meus pais, viajar o mundo e socializar. Nunca reclamar, só agradecer. Tudo que vier eu fiz por merecer. , por que parou de cantar?
— Eu queria te ouvir — respondeu com franqueza, mas o empurrou de leve, pressentindo que gozava dela. — É sério.
...Viajar o mundo e socializar. Nunca reclamar, só agradecer. Fácil falar, difícil fazer. Quase toda vez que eu vou dormir não consigo relaxar. Até parece que meus travesseiros pesam uma tonelada.
Eu devia sorrir mais, abraçar meus pais, viajar o mundo e socializar. Nunca reclamar, só agradecer. Tudo o que vier eu fiz por merecer.
A batalha encerrou. Enquanto os níveis de alcance das notas oscilavam acima da média uma ou outra vez, e abaixo, todas as outras vezes durante o embate, com 63%, venceu.
— Como eu não estava muito disposto, imponho revanche.
— Chato! — Sentou-se na cadeira, apertando o botão de “próxima música”. Aleatoriamente, a canção soou, e tornou a ficar de pé.
viu as letras em Inglês na tela e reclamou.
— Essa música é linda e fácil de cantar. Do you hear me? I'm talking to you (Você me ouve? Estou falando com você). — o fitou. — Across the water, across the deep blue ocean, under the open sky. Oh, my baby, I'm trying (Através da água, através do profundo oceano azul, sob o céu aberto. Oh, meu amor, eu estou tentando).
Boy, I hear you in my dreams (Garoto, eu ouço você em meus sonhos). — Ele pigarreou. Tinha noção do significado de algumas frases, juntando o que conhecia em cada uma, e pronunciá-las era uma tarefa complicada, devido à rapidez das palavras. — I feel your whisper across the sea. I keep you with me in my heart. You make it easier when life gets hard (Eu sinto o seu sussurrar através do mar. Eu trago você comigo em meu coração. Você faz ser mais fácil quando a vida fica difícil). Por que estamos cantando separados?
Lucky. I'm in love with my best friend (Sortuda. Estou apaixonada pelo meu melhor amigo). — tentou acompanhá-la. — Lucky to have been where I have been. Lucky to be coming home again. Ohhhohhhohhho (Sortuda por ter estado onde eu estive. Sortuda de novamente voltar para casa).
Novamente, a batalha encerrou; desta vez, com 50%, houve um empate.
— Quer desempatar com outra música? — perguntou.
— Não. Considere-se vencedora. — Deitou na cama dela e colocou um braço atrás da cabeça.
— Algo de errado com você?
— Estou bem. — Fechou os olhos.
deslogou a conta e desligou o computador.
— Com fome?
balançou a cabeça e virou, abrindo os olhos.
Ela acomodou-se do lado dele, deitada, as pernas cobertas por uma calça de moletom, encolhidas pela posição em que a cama estava.
— Como foi ontem com seu pai?
— Eu o busquei no bar. Ele estava sentado sozinho. Havia uns dez copinhos vazios de cachaça no balcão em que ele bebia o décimo primeiro, aparentando um retardo mental. Fiquei com pena e tanta raiva dele! Desse vício maldito! O casamento dos meus pais está por um fio.
— Tia Edna é apaixonada por Elias e, para ter suportado as crises e recaídas, o ama muito. O amor tudo perdoa, não é? — Ergueu o olhar, encontrando o dele abalado. — Vem, põe sua cabeça no travesseiro. — Sentou-se, encostando-se à parede, e trouxe a pelúcia para amortecer o apoio e o travesseiro para o colo.
afundou a cabeça ali, respirando profundamente como um menino perdido. Os dedos dela deslizaram pelo seu cabelo, num cafuné que o obrigou a fechar novamente os olhos.
— Você beijou um estranho no Carnaval — comentou, e esperou que desenvolvesse a fala.
— Foi apenas um selinho para calar a boca dele. De amigo.
— Deu certo?
Ela sorriu.
— Ele me chamou de criança, mas correu atrás de mim semanas depois. O mundo capota.
— Você nunca me deu um selinho. — Abriu o olho. — Como pode dizer que foi de amigo se nunca fez isso?
não soube lidar com o questionamento repentino. Ela e se tratavam estritamente como irmãos. O laço fraterno era estreito demais para dar brecha a intenções contrárias.
Este é , seu irmão de pais diferentes.
— Nunca precisei calar sua boca.
— Se é um beijo inocente, então não muda nada — retomou.
— Exatamente. Você significa mais.
— Não é o que parece. Você colocaria anos de amizade no bolso de trás da sua calça do colégio por esse Carlos.
ajeitou-se.
— Eu não trocaria meu melhor amigo por um ficante. O que pensa que sou? — exasperou.
— Desculpa.
— Você vai me escutar agora, e eu vou fazer isso. — Grudou os lábios nos seus, suave e rápido. — Fim de papo.
começou a rir.
— Tu é sinistra, furiosa.
— Obrigada.
Permaneceram em silêncio pelos próximos minutos, a mão dela cobrindo-o com ternura através do cafuné, e a preguiça invadindo o corpo dele.
— Tô quase dormindo — confessou com voz sonolenta e virou-se de lado, distraindo-se com a cordinha solta da calça de .
Ela tocou os dedos em sua sobrancelha, desenhando-a. Queria livrá-lo de todas as complicações pesadas demais para um garoto da sua idade; amenizar o fardo. Inclinou o corpo, chamando atenção de , e desceu o rosto para perto do seu, umedecendo os lábios.
Ele ficou muito quieto, ciente, o olhar escurecendo.
Os narizes se tocaram, os movimentos delicados, e os lábios roçaram nos dele, que se partiram. manteve os olhos fechados e as mãos no colchão. Encaixava a boca entre a sua e afastava-se, conhecendo. Mas não cedeu. Enterrou o rosto em seu pescoço, suspirando, e colocou o braço ao seu redor.
— Pode sair de cima de mim agora? — perguntou, instantes depois.
— Está bem.
— Eu vou pra casa. — Ele pôs as pernas para fora da cama.
— Você pode ficar. — Não seria rude em concordar.
— Não, eu não posso. — Buscou a apostila sobre a escrivaninha e saiu do quarto, da casa, com o cheiro dela consigo.

Capítulo 18


Dois dias se foram e já era sexta-feira outra vez. Giulia não contara a Neto sobre a festa na ilha, Luana e Elineide estavam entusiasmadas com a votação do Grêmio Estudantil, e se tratavam igualmente, porém havia certa distância entre eles. E, dadas às circunstâncias, agiam como se absolutamente nada tivesse acontecido. Porque, realmente, nada aconteceu.
— Votem na chapa 3, nunca pedi nada! — argumentou Luana, brincando com e , no corredor.
— Aprovo suas ideias, então meu voto é seu. — assumiu. — Vão lá e arrasem!
Elas agradeceram.
— As votações serão feitas no final do corredor. A mesa e a urna estão posicionadas. Eu tô nervosa. — Mostrou a mão levemente trêmula.
— Relaxa, Luluzinha! Seu clube é popular.
Elineide riu.
— Vamos, Neide, a gente tem que garantir que não rolem boicotes. Tchau pra vocês!
viu-as ir, e colocou as mãos dentro do bolso frontal do moletom.
— Amanhã é dia de ensaio...
— Você tem um mês pra arranjar um show para a banda.
— Eu não esqueci.
— Nem eu, mas não custa lembrar. Você tem menos de um mês, pra falar a verdade.
entrou na sala, e Dayana aproveitou para se aproximar do garoto.

***


Giulia dormiu com o grito de vitória da chapa 3. Acordou feliz da vida em ter sido convidada por Diego. Ele fora enfático em tê-la em seu churrasco. Ligou para Saíse, que prometeu acompanhá-la e, juntas, descobriram que era a Ilha do Fogo, ao norte de Campestre.
Pela primeira vez, em 16 anos, mentiu para a mãe.
O aniversário seria de uma “amiga”, não haveria bebidas alcóolicas e terminaria antes das dez da noite. Sendo que estava saindo de casa às onze da manhã.
Saíse a encontrou, racharam o táxi e seguiram o trajeto de 3 km.
Giulia teve que quebrar o cofre para poder comprar o presente, já que sua mãe comprara um kit de produtos estéticos, e ela deu a Saíse, por estar indo.
Ao descerem na calçada da ilha, um patrimônio público na zona urbana, com quiosques à beira da lagoa, pedalinho, grama, campo de futebol e árvores, atravessaram a ponte de madeira, deparando-se com incontáveis carros estacionados no meio-fio na rua, e examinaram as vestes dos demais convidados chegando ao lugar.
Estavam vestidas apropriadamente.
— Armaram cabanas lá atrás, depois do campo. — Saíse notou. — Aposto que é motel disfarçado. A noite vai esquentar.
— Não estaremos aqui à noite.
— Que pena. Já vi tanto gatinho. São felinos dóceis.
— Aqui tem bebida. Onde tem bebida envolvida, rola encrenca. Não se mete no meio delas.
— Olha o galego... — Maliciou, fazendo Giulia se virar para ver Diego vestido com calça e camisa, as mangas dobradas até os cotovelos. O cabelo louro jogado para trás, de um jeito propositalmente desarrumado que lhe dava o ar despojado.
O campestrino de sotaque misturado e voz melodiosa estava mais bonito que em todas as semanas anteriores.
— Para de babar. — Saíse reproduziu uma risadinha. — Ele ainda tem namorada.
— Olhar não arranca pedaço. — Puxou sua mão, guiando-a para perto do aniversariante, que era cumprimentado por um casal.
— Obrigado, meus amigos! — Abriu os braços, rodeando ambos. — Vocês são lindos.
O homem riu, batendo fraco nas costas de Diego e, de mãos entrelaçadas com a provável namorada, afastou-se em direção ao quiosque movimentado.
— Você veio! — Antes que Giulia dissesse algo, ele a reconheceu e um sorriso animado curvou seus lábios. — Giulia.
— Isso. Parabéns! — Abraçou-o, as narinas inalando o perfume gostoso dele. — Espero que alcance todos seus objetivos. Esta é minha amiga Saíse.
Saíse cumprimentou-o com um rápido abraço.
— Este é o nosso presente. — Entregou-lhe uma caixa pequena, e ele balançou com cuidado e curiosidade. — Não é nada extravagante, porque não sabíamos o que dar a você. Embora seja estudante de Física, isso não ajudou. — Sorriu. — Então pensei na Coreia e na Irlanda, e...
— Obrigado, Giulia. — Envolveu-a nos braços repentinamente, e Giulia tocou seus ombros, embriagada com tanto contato físico. — Depois me mostra como usá-lo.
— Claro.
— Curtam o churrasco sem crise com a balança. Vou atender aos outros, mas volto já!
Diego demorou a voltar. Muito. Do tipo de duas horas, mais ou menos. Entre atender convidados, cumprimentar os sentados à mesa, tirar fotos e beliscar os pratos, finalmente, apanhou um cheio e procurou uma cadeira vaga, acabando por sentar, de supetão, com elas.
— Eu disse que voltaria. Garçom, traz uma cerveja, por favor! — pediu ao garçom que passava com uma bandeja perto da mesa deles. — Vocês não estão bebendo álcool, não é?
— Atacamos os coquetéis — admitiu Saíse, dando de ombros e bebericando o líquido rosa com o canudo.
— Só os capetas¹ sem álcool — frisou Giulia.
Diego assentiu, mastigando. O garçom pôs um copo de chope sobre a mesa e o serviu.
— Cerveja, senhoritas?
— São de menores.
Ele balançou a cabeça e se retirou.
— Como é estar completando 25 anos? — Saíse perguntou.
— É o mesmo que ter 24, sem carro, diploma e liso.
— Até parece.
Ele deu de ombros, e um moreno aproximou-se da mesa.
— Diego, já tem bêbo se jogando na lagoa. É uma presepada só! Estão filmando. Bora lá?
— Bixo, deixe-me terminar de almoçar. Leva as moças contigo.
— Querem ir? — O moreno encarou Saíse, que maneou a cabeça, chutando Giulia sob a mesa. — Você vem?
— Daqui a pouco.
Diego permaneceu comendo, calado e, então, sorveu um gole da cerveja, olhando para Giulia.
— Jurava que você não viria. Chamei de última hora.
— Estava de bobeira neste fim de semana. Seu churrasco caiu como uma luva.
— Tô contente em te ver.
— Eu também... Onde sua namorada está? — Necessitava tirar essa dúvida.
— Ah, a Jade é minha ex. Nós rompemos há um ano, na última viagem juntos. Eu a levei para conhecer minha família na Irlanda. Brigamos feio lá por algo que a envolvia aqui. Pediu uma segunda chance, e eu, que estava amarrado nela, lhe dei, crente que se ajustaria, mas me enganei. Não nascemos com valores compatíveis, então não deu certo.
Giulia nem escutou o resto. Seus ouvidos captaram apenas o que lhe convinha.
— Reataram no cinema?
— Não. Ela tentou. Troquei meu número e pedi que me esquecesse.
A adolescente conteve a onda de euforia.
— Sinto por isso.
— Não sinta. Estou bem.
No decorrer da comemoração, eles conversaram um pouco mais, se afastaram, reencontraram, enquanto anoitecia no lado de fora. Muitos convidados estavam com copos cheios de bebida e outros riam alterados. Teve gente tirando a roupa e pulando seminu na lagoa, o vento congelante, e teve os que pularam vestidos.
— Giulia! — chamaram a garota, que virou para trás e, no segundo seguinte, emergia na água, o rímel preto borrando seu olhar. Tossiu uma vez, e uma cabeleira loura apareceu em seu campo de visão.
— Você! — Jogou água em seu rosto.
— Desculpa. — Diego riu. — Final de festa acontece isso... — Passou os dedos sobre as mechas na testa. — Está tudo bem?
Os olhos dele tinham um tom avermelhado, de quem chora ou bebe demais.
— Tudo. — Moveu as pernas. — Vou morrer de frio.
— Eu te esquento. — Envolveu seu corpo esguio nos braços; braços estes que Giulia adorava de longe e, agora, tocava suavemente, até que o aperto dele se intensificou, e ela segurou seus ombros com fervor.
O nariz de Diego deslizou no dela, e os lábios encostaram nos seus, sendo tomados com avidez. Giulia o abraçou pelo pescoço, segurando a nuca, os dedos enterrados nos fios do cabelo. Ele a levantou, pondo suas pernas ao redor da cintura, e desceu beijos pelo pescoço da adolescente, que se empertigou, corada.
— Todo mundo está observando.
— Eles já viram e fizeram mais que isto. São um bando de safados — sussurrou. — Vamos fugir daqui.
Então estavam deitados na barraca e Giulia quis explicar como funcionava o globo, mas Diego não deixou que completasse a frase, tomando posse de sua boca, colocando a mão dentro de seu vestido, tocando a coxa e erguendo-a até o quadril.
Ele havia bebido alguns copos de cerveja, e Giulia, pela falta de raciocínio ligeiro, suspeitava de ter álcool nos capetas sorvidos.
Droga! Quero ir pra casa! Saíse!
O corpo de Diego subiu no seu, o peso encaixado entre suas pernas.
— Você quer parar? Devagar?
— Devagar. — Não tinha certeza disso.
Por não ter, deveria ter parado imediatamente.

***


No primeiro dia da semana, terminava uma lista de exercícios de Física, valendo um ponto na média. Com tantas provas, seria bem-vindo. Concentrada, demorou a notar a presença de no outro lado da mesa vazia do refeitório.
— Veio para secar minha beleza?
— Não, é que, quem nunca copiou o exercício, antes do professor chegar, não sabe o que é desespero.
Ela acabou sorrindo, de cabeça baixa.
— Não é cópia.
cruzou os braços.
— Fiz o que você me aconselhou. Insistiu tanto que cedi.
— O quê?
— Dayana e eu sairemos hoje.
terminou de escrever e fitou o amigo.
— Enfim, desencalhado.
— É. — A boca curvou-se. — Vamos nos conhecer primeiro... Ver no que dá. Ela merece essa chance.
— Espero que consiga retribuir os sentimentos que ela certamente nutre por você.
— Eu também. — Maneou a cabeça. — Mudando de assunto, se inscreveu para o vestibular da UCA?
— Ainda não.
— Pare de adiar. Você vai esquecer.
— Vira essa boca pra lá! Assim que eu chegar em casa, farei a inscrição.
— Acha que eu devo levar flores?
— Não. — Deixou uma risadinha escapar. — Quer dizer, se você tiver dinheiro e souber as flores que ela gosta... A maioria prefere rosas vermelhas. Existe algo de romântico nisso.
— Qual é sua flor favorita?
— Orquídeas.
Desde o sexto ano, pensou ele.

¹Capeta é uma bebida feita com nescau/nesquik, leite condensado e guaraná, com gelo.

Capítulo 19


No final de março, Giulia evitava as mensagens de Neto e o contato com ele se perdia a cada falta de resposta. Certa manhã, aflita e taciturna, como andava há dias, chorava sobre a carteira, contra seus livros. Quando questionada o motivo pelas gêmeas, limitou-se a uma curta frase:
— É a TPM. Não se preocupem comigo.
Enquanto isso, os ensaios da banda aconteciam todo fim de semana e progrediam notavelmente em grupo, individualmente, na gestão, habilidades — cresciam unidos. A primeira apresentação se aproximava, e a ansiedade dominava cada integrante, além de , que conseguiu convencer, insistentemente, Toin a abrir uma vaga para eles.
— São talentosos e esforçados — dissera.
O cachê era pouco, mas valia a oportunidade de subirem no palco pela primeira vez. O seu outro alvo seria o jornal local — se aparecessem na TV, tornaria a banda conhecida ao público em geral e não somente restrita a quem frequentasse o barzinho.
Daria a notícia a eles no outro sábado. Naquele, iria a um show de eletrônica com Carlos.
tocava o violão de Pedro Lucas, a pedido dele e insistência de Dayana, sentado sobre a mesa do pavilhão. Alguns alunos do terceiro ano estavam ao redor, cantando:
...De dizer que andei errado e eu entendo. As suas queixas tão justificáveis, e a falta que eu fiz nessa semana... Coisas que pareceriam óbvias até pra uma criança.
O olhar de foi de encontro ao de Dayana.
Por onde andei, enquanto você me procurava? Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?
Eles bateram palmas enquanto cantavam:
Amor, eu sinto a sua falta, e a falta é a morte da esperança, como um dia que roubaram o seu carro deixou uma lembrança: que a vida é mesmo coisa muito frágil; uma bobagem, uma irrelevância, diante da eternidade do amor de quem se ama. Por onde andei, enquanto você me procurava? E o que eu te dei foi muito pouco ou quase nada? E o que eu deixei? Algumas roupas penduradas. Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?
Os alunos se dispersaram, e Dayana caminhou até , tocou seu rosto e o beijou sutilmente.
Não foi o primeiro beijo deles e tampouco seria o último.

***


— Consegui a primeira apresentação da banda — desabafou a Luana —, mas não é pra espalhar. Direi na semana que vem.
— Quando será? Meu Deus, , você é a melhor empresária menor de idade! — A loura a abraçou de lado com força.
riu.
— Todos sabem que meu prazo tá acabando, mas não têm ideia de que eu acabei com ele antes. O Toin concordou em recebê-los na noite de sábado.
— Meu coração vai sair pela boca. Mal posso esperar!
— Nem eu. — Avistou Giulia atravessando o corredor, cabisbaixa. — A Gigita tá diferente... Não possui mais aquele brilho ofuscante.
Luana virou a cabeça.
— As gêmeas, provavelmente, chutaram a bunda dela. Acho é pouco.
— Não seja má. Nós cometemos erros. Somos humanos demais para sermos perfeitos.
— Ela é uma vaca. — Deu de ombros. — Perdi o humor.
— Aí tem coisa mal resolvida...
— Eu só não suporto o que ela fez.
— Mas não estamos falando do fato de ela ter nos trocado. O que houve?
— Você não vai acreditar.

Naquele dia, ocorreu uma palestra sobre Educação Sexual no auditório. No meio da explicação, Giulia levantou-se do assento, passando pelas pernas alheias, e caminhou para fora. Seguiu apressada e emocionalmente aluída para dentro do banheiro. Segurou firmemente a pia e forçou vômito. Então lavou o rosto e desligou a torneira. Em seguida, encostou-se na parede, deslizando e sentando no chão. Dobrou os joelhos e chorou.
Durou apenas alguns minutos, até passos aproximaram-se, a voz conhecida de Saíra chamando-a na porta, e Saíse entrando primeiro.
— Ai, meu Deus! Giulia, o que aconteceu? — Chegou perto dela, agachando-se à sua frente. — Giu, fala comigo.
— Amiga, olha pra mim — pediu Saíra, sentando-se ao seu lado. — Ficarei aqui, até que sinta vontade de desabafar.
Ela soluçou.
— Você ficou triste, do nada. É comunicativa, doce e alegre.
— Giu, aconteceu algo entre você e o Diego? Lembro-me de termos nos separado na festa dele. Procurei você por um longo tempo, aí apareceu descalça e fomos embora sem falar nada.
— Vocês se separaram? Saíse!
— Um amigo do Diego a derrubou na lagoa, e ela e o galego se pegaram. Eu não seguraria vela. — Observou a figura encolhida de Giulia. — Vocês sumiram de repente.
— Nós fomos para as barracas. Fomos e transamos. — Enxugou os olhos. — Ele bebeu algumas cervejas antes, e acho que estava fora de mim. Não parecia quem sou. Então aconteceu. Não usamos camisinha.
— Droga, Giulia! — Levantou-se, dando voltas. — Você fez o teste? Falou com ele? Não tomou a pílula do dia seguinte.
— Tô chocada — disse Saíra, balançando a cabeça. — Que vacilo.
— Eu tô ferrada! Minha vida acabou!
— Respira. — Tornou a se agachar. — Sua adolescência foi prejudicada, mas não temos certeza se você está grávida.
— Vou esperar o mês acabar e o meu ciclo. Ele é desregular, então ocorrem atrasos. Às vezes, não vem. Não quero fazer o teste agora. Esperarei os sintomas.
— Se for positivo, contará ao Diego, não é?
— Vou me atirar da ponte, até lá. Estão achando que terei essa criança aos 16 anos? Minha mãe me matará! Também existe essa possibilidade.
— Presta atenção! Você não vai cometer suicídio! Tá louca?! Precisa encarar as consequências.
— Não comente com seu namorado, Saíra. — Olhou para a gêmea ao seu lado. — Isso não diz respeito a terceiros.

***


.
O garoto estava sentado nas últimas fileiras, numa poltrona ao lado da de Dayana, enquanto a palestra continuava para os segundos e terceiros anos.
O lugar de era no lado vago dele.
Dayana falava algo que o fez rir com o punho interceptando a voz. Seu outro braço estava sobre o apoio da poltrona, a palma virada para cima e os dedos entrelaçados nos dela.
— Ah, oi, . — Virou a cabeça para a amiga, com um sorriso nos lábios.
— Hoje não vai dar pra eu ir à sua casa. Tenho um show com o Carlos.
— Ok. Também não poderei ir à sua porque preciso estudar a matéria atrasada.
— A gente se reúne outro dia.
Ela se acomodou, buscando uma posição confortável e acabando por deslizar as costas. Teve vontade de encostar a cabeça no ombro de , mas ele e Dayana pareciam ser um casal, e isso, talvez, a incomodaria.
Ao término da palestra, com um salve de palmas educadas, a cabeça de Dayana descansava no ombro dele, e deixou o auditório logo, assim que viu Luana entre outros alunos.
Os dois levantaram, com as mãos roçando, e Dayana segurou a sua, caminhando para fora.
— Vocês têm reuniões fora do colégio?
— São reuniões como os da banda, mas falamos sobre estudos. É meio entediante.
— Ela tem namorado?
— A tá ficando com um carinha da faculdade. Isso é tudo o que sei a respeito disso.
— Não tenho o direito de intervir, embora seja estranho o fato de vocês se encontrarem todos os dias fora do colégio e sozinhos.
deteve os passos, segurando a outra mão dela.
— Nunca rolou nada entre a gente. Nossa amizade está acima de qualquer impossível envolvimento romântico. E, enquanto a ficarmos sozinhos, não dou motivo pra desconfiança.
— Eu sei, mas, se ponha em minha posição e perceberá que é aceitável se sentir assim.
— Insegura?
— Não... Um pouquinho, talvez — reconheceu, sem graça. — Estou aprendendo a lidar.
— Está se saindo muito bem, se serve de incentivo. — Beijou sua bochecha e voltaram a andar.
— Quer fazer algo hoje? Pior que é fim de unidade. Resta “comer” livros.
— Ainda tenho cursinho pra me ocupar, mas sobra um espaço para você, não surta.
Ela riu baixo.
— Pensei que você fosse surtar com tantos afazeres.
— Tento administrar meu tempo de acordo com meus deveres e necessidades. Quase fico louco, às vezes, mas valerá a pena no final.
— Vai, sim. Você alcançará a vaga na federal. Acredito em seu potencial!

Capítulo 20


You make me feel that
La la la la la


As caixas emitiam o som numa intensidade que acreditava ensurdecer uma hora após chegar ao Depósito. Estavam próximos a elas, e o ambiente fechado com muitas pessoas dançando e circulando lhe deu falta de ar. Não era nenhuma claustrofóbica, mas descobriu que não suportava estar no meio de uma multidão. Imaginava um acidente acontecendo neste local, simplesmente pela incapacidade humana de entender que o Depósito não deveria abrigar essa quantidade de pessoas; jovens fumando, bebendo, pulando, gritando e soltando as feras dentro deles.
não moveu nenhum músculo.
No início, tentou. Mexeu os braços, cabeça, enquanto Carlos cumprimentava os amigos na pista. Ele comprou bebidas, oferecendo-lhe coca zero, sua favorita, e continuou conversando.
A adolescente penteou a franja com os dedos. Usava maquiagem leve — lápis de olho e gloss. O vestido escuro a deixava mais velha, e o salto, alta. Sorveu um gole, segurando a mão dele e o trazendo a si. Colocou os braços ao redor do seu pescoço.
— Fica comigo.
— Fico, gatinha. — Beijou os lábios dela, o gosto de cerveja penetrando a boca de . — Tá gostando da festa?
— Não é a minha praia, mas é a sua, e quero estar nela.
— Você é uma moça linda, gostosa... — sussurrou, fazendo-a enrubescer —, e sou um puta cagado por te ter na minha.
riu.
— Acho que tirei a má impressão que eu tinha sobre você — revelou pensativa, propositalmente.
— Estamos na mesma linha, então. — Beijou-a novamente. — Bora dançar. Mexe seu traseiro pra mim.
Ele nunca havia usado um linguajar chulo com ou perto dela.
concordou, sem graça, por estar sentindo-se deslocada.
Carlos a levou para frente, perto do palco, onde o DJ tocava 'Wake Me Up', do Avicii, e a galera ia à loucura, se é que, na concepção de , o estado de espírito deles já não fosse esse. O rapaz ergueu os braços da adolescente, movendo-se colado ao seu corpo, rindo e tentando beijá-la inutilmente.
— Você faz isso parecer tão fácil — resmungou.
— É porque é. — Ele afastou-se um passo. — Observe todos vivendo como se nada importasse fora daqui. O agora é o que importa. Você só tem que se mexer um pouco. Fez isso uma vez. Pode fazer de novo.
— Posso. — Movimentou os quadris de um lado e do outro, mordendo o lábio.
— Tu estás tentando me seduzir?
— Tô conseguindo?
— Você me seduz desde que me enfrentou no corredor. Defendeu seu colégio e provou ser grande pra pouca altura.
Ela sorriu e ficou séria de repente.
— Ok, você me tinha até a parte do “grande”. O resto foi desnecessário. Quebrou meu momento.
Carlos a envolveu nos braços, sussurrando em seu ouvido:
— Tudo em você é de um jeito que não precisaria de muito para me ter agora.
— Você tá soltinho. — Empurrou-o. — Dança aí que eu quero ver.
Carlos mostrou seus passos meio desengonçados, para fazê-la rir. O álcool em seu organismo lhe oferecia desinibição, o que, por natureza, ele tinha. Se fosse maior de idade, compartilharia dessa fonte.
— A coca acabou! — falou em voz alta para fazê-lo escutar, e Carlos inclinou o corpo. — Eu disse que a minha coca acabou. Vou comprar outra.
— Ah! Eu compro pra você!
— Não, fica aqui! Já volto! — Virou de costas, afastando-se em meio aos jovens alterados.
O bar do Depósito estava a uma curta distância da entrada e uma longa de onde vinha. Ela caminhou ágil, quase tropeçando nos pés de desconhecidos, até que, enfim, deteve-se no balcão.
A equipe de barman, contendo uma barmaid, estava ocupada, atendendo aos pedidos.
Ao chegar sua vez, pediu uma coca zero e uma cerveja para Carlos — a dele, provavelmente, estaria esvaziando. Pagou e voltou pelo trajeto anterior, demorando mais, desta vez. O preço dos comes e bebes era um absurdo e viraria uma nota mental para a lista de “por que não vou a este tipo de festa?”. Nem ao menos era incluso no valor da senha.
Avistou a figura de Carlos, porém não anunciou sua volta. Porque seus olhos não acreditavam que ele dava em cima de uma morena peituda. Os seios dela eram pequenos, mas por que essa tara por peitos? Pensando em várias possibilidades e, ao mesmo tempo, obtendo nenhuma conclusão, teve vontade de atirar o latão na cabeça dele e derramar a coca nela, que, por mais zangada que estivesse, não era uma vadia, desde que Carlos, supostamente, ocultou o fato de estar acompanhado.
A ficha de caiu.
Não tinham um compromisso, portanto trocavam saliva entre si e poderiam beijar outras bocas.
Ninguém disse nada sobre esse detalhe.
Carlos falava no ouvido da garota, que sorria, de cabeça baixa.
ergueu o latão de cerveja e virou entre os lábios. O gosto ruim tocou suas papilas, garganta, e a cabeça girou. Bebeu até não restar nenhuma gota.
Acabou arrotando e rindo desse deslize.
Iria embora dali. Porém, antes, acabaria com aquela palhaçada.
— Olha aqui, seu cafajeste, trouxe esta porra pra você, e você tá dando mole para outra! Qual é o seu nome? — perguntou à garota, que afastou-se um pouco.
Poderia não ter escutado nada do que dissera, mas juntou os pontos e percebeu que era encrenca.
— Ana .
gargalhou, tocando o ombro de Carlos e fitando os olhos arregalados dele. Inclinou-se para o lado do seu rosto.
— Você me trocou por uma . Faça bom proveito do projeto de nome. — E mudou a rota.
Sentia tontura, enjoo e vontade de se teletransportar para seu quarto, a cama quente, o travesseiro macio. Aquele salto estava causando-lhe calos e bolhas.
Pegou um táxi e seguiu para casa na zona oeste.

***


Era meia-noite e cinco quando adentrou a porta da sala, na ponta dos pés, segurando as fivelas dos saltos, e a luz acendeu no quarto dos seus pais. Sua mãe chamou seu nome, repreendendo pela hora tardia, sendo que uma festa começava a ficar legal neste horário, e pôde bater a porta do quarto ao final do discurso.
Agora, de pernas cruzadas sobre a cama, ainda com o vestido, vomitava dentro de um saco de papel kraft e era duas e meia da manhã. Notou o relógio vintage no criado-mudo para ter certeza se sua visão não a enganou.
Buscou o celular ao lado e discou um número conhecido.
O toque se estendeu por várias chamadas. Desligou e ligou novamente. Chamou duas, três, até a voz sonolenta soar:
Alô?! ... afundou o rosto no travesseiro. — Não se meteu em confusão, não é?
— Oi. Foi mal te acordar, eu... — Enterrou a cabeça no saco. — Estou sem sono.
Ufa! Achei que quisesse que eu fosse te buscar na delegacia. Estou com muito sono. — De olhos fechados, bocejou. — Aliás, é por isso que eu tava dormindo. São duas e pouca. Onde você está?
— Em casa.
Por que está sem sono?
— Eu bebi hoje. Tô vomitando num saco. Só vejo cuscuz aqui dentro.
Não vou mais comer cuscuz no café. — Escutou-a rir debilmente. — Quanto tu bebeu?
— Um latão. Pior sensação da minha vida.
Tá esperando meu sermão?
— Ah, , já estou me sentindo péssima... — choramingou.
Odeio quando você mete os pés pelas mãos, mas é sua vida, não posso comandá-la.
fungou.
Você tá chorando? Por quê?
— É um resfriado — mentiu, começando a chorar. — Ele deu em cima de outra garota e deve estar beijando-a agora.
pausou a linha de raciocínio.
Deve estar muito bêbada. — Esfregou o rosto. — Ele é um cuzão.
— E um almofadinha idiota, filho da mãe, cafajeste... Não vale nada assim como a droga de todos os homens!
A Dayana nunca reclamou de mim. Sinto muito, , mas existe exceção para sua regra.
— O que a Dayana viu em você?
Aquilo que alguém, provavelmente, não se atrairia se olhasse apenas uma vez.
— Um sinal de nascença, por exemplo? Você tem uma manchinha no olho e no peito.
sorriu, fechando os olhos.
Não exatamente. O meu jeito retraído e sério com os outros. Não sou arrogante, mas posso afastar outra pessoa sem querer. Entende?
— Entendo. Foi o que vi no Carlos. Sua teoria tá provada. Acho que ele viu o mesmo em mim. — Deitou-se no colchão, apagando um minuto depois.
?
O aparelho dela estava solto na mão.
Ah, , você me acorda pra depois te ouvir dormir e ficar sem sono? Me deve essa!
respirava profundamente, em outra dimensão.

Capítulo 21


acordara com uma dor de cabeça terrível, fruto da ressaca da noite anterior. O saco de papel kraft estava no chão, e o celular, ao lado da sua mão. Pegou-o, destravando a tela e encontrando uma mensagem de recarga da operadora. Não recordava muitos acontecimentos da festa, a não ser os relevantes. Neste momento, eles não tinham tanto peso. Lembrava-se de conversar por telefone com e de ter balbuciado um “tchau!”, antes de apagar.
No entanto, não tinha certeza disso.
No primeiro dia da semana, a última do mês e a da primeira aparição pública do The Nacionais, revitalizada, amarrava as mechas de cima do cabelo num pompom e escutou seu nome ser chamado (lê-se: gritado) por Luana.
— Tá tendo reunião da banda.
responderia se não fosse por Carlos ter aparecido na curva do corredor da entrada e tocado seu braço.
— Podemos trocar uma palavra?
Luana esperou a amiga.
— Vai indo. Encontro vocês daqui a pouco. — virou-se para o rapaz, e ele a levou para distante, onde pudessem conversar a sós, sentados a uma das mesas usadas pela cantina. — O que você quer?
— Não atendeu minhas ligações ontem. Fiquei preocupado. Tá tudo bem entre a gente?
Ela riu com ironia.
— Quem não deve, não teme.
— Exatamente. É por isso que tô preocupado. Porque eu, francamente, não me lembro de estar em débito.
— Fala sério! — Revirou os olhos, encostando-se na cadeira de plástico. — Carlos, se você não se lembra do que fez, não há motivo para estarmos discutindo a essa hora. Sinceramente, não temos nada. Você fica com quiser, certo?
— Errado. Estamos juntos, curtindo...
— Um relacionamento aberto.
— Eu deixei claro que não tenho medo de me envolver. Não menti. E, até onde sei, é entre duas pessoas.
— Teoricamente, sim.
— Olha, você tá abusando do seu sarcasmo, e não tô entendendo o real motivo. Se fiz algo de errado, me desculpe. Bebi além da conta e me lembro de acordar com uma ressaca braba, apenas.
— Eu também bebi.
— Cerveja?
— Sim. Você tá me pedindo desculpas por algo que não recorda. É como se o fizesse por peso na consciência. Só que, veja bem, você tomou umas cervejas e não tinha plena lucidez do que ocasionou. Logo, não está arrependido. A gente se fala em outro momento. — Levantou-se, apanhando a mochila.
— Tu estás terminando comigo?
— Como eu poderia? Não temos nada.

***


Os integrantes da banda se dispersavam, quando chegou ao pavilhão do colégio. estava sendo beijado por Dayana, as mãos na nuca do garoto, o sorrisinho nos lábios.
pôs o cabelo para trás da orelha e entrou na sala, evitando interrompê-los.
— Atenção, pessoal! — Lewis, um dos representantes desta turma desde o oitavo ano, pediu, em pé, diante deles. — Hoje escolheremos a comitiva para a formatura. Por meio de votação, cada turma elegerá dois nomes. Alguém se candidata?
— Eu. — Dayana, que entrava à frente de , disse.
— Mais alguém? A coordenadora avisou que, caso não nos envolvermos, ela será a responsável por montar tudo de acordo com o que considerar ok. E o que ela acha legal não estará ok para a gente. Teremos uma meta de juntar três mil reais. Podemos vender salgados, sortear cestas... Basta que vocês se envolvam.
— Põe meu nome aí — outra garota pediu — e o da Angelina.
— Outro candidato?
— Bota o meu! — um garoto falou. — Teremos que organizar no meio da aula?
— Algumas vezes sairão no meio delas, mas é assunto rápido, acredito. O ruim é quando enrolam e não entram num consenso. Perde até o tesão de ter uma festa de formatura.
— Quem não quiser a festa pode pagar só a colação? — perguntou.
— Claro. Fecha um acordo com a coordenadora. Aliás, haverá uma reunião com os pais para discutir essa questão do contrato.
Segundo as votações na lousa, Angelina e o garoto ganharam.

Sentado à mesa do refeitório, sozinho, mastigava enquanto resolvia um impasse pelo celular. De soslaio, notou se acomodar ao seu lado com um prato.
— Onda sua namoradinha se meteu?
— Está com as amigas, tia. — Sorriu com os lábios fechados, travando a tela e virando a cabeça para ela. — Não precisamos ficar grudados o tempo todo.
— Eu e você andávamos grudados.
— Mas, agora, há pessoas ao nosso lado que cobram nossa atenção. Só que eu e você é diferente, e não tem nada de errado nisso.
— Porque eu vim antes — gabou-se.
— Também. A gente não quer perder a amizade de infância.
— É verdade. Você é meu irmão mais velho e ocupa o mesmo espaço que o Davi.
tocou a comida com o garfo.
— Não tenho irmãos de sangue, mas tenho você. O meu calçado 34 serve.
riu.
— Zé Bonitinho.
Ele bagunçou seu cabelo.
— Me diz, tá pensando em não ter festa de formatura?
— É um gasto que meus pais não poderão arcar. Ainda dividindo em parcelas, a despesa é alta.
— Nós vamos vender alguma coisa por aqui. Dá-se um jeito.
— Veremos! — Suspirou.
— Quer me falar algo?
— Não, eu tô legal. — Engoliu o macarrão. — Esqueci-me de agradecer por ter me ouvido na madrugada enquanto aturava meu porre.
— É um pedido de agradecimento por ter me deixado falando sozinho depois também? Você desmaiou no meio da ligação. — Fez uma careta, rindo fraco em seguida. — Quis invadir seus sonhos.
— Você esteve nele. Você e o Carlos.
— Já vi que deu treta.
— Quase. Ele cismava com nós dois. — Revirou os olhos. — Não está com direito de reclamar nada.
— Ah, é, ele é um cuzão.
— E não se lembra de, absolutamente, nenhuma merda feita. O álcool lavou minha raiva, mas a cara de pau dele não. Estamos de boa. Quero dizer, cada um na sua.
...
deixou o garfo de lado.
— O pior é que eu gosto dele. De verdade. Aprendi a gostar. Tô enlouquecendo por dentro!
suspirou.
— Você o perdoou uma vez. Talvez, se realmente sente isso, segue o exemplo. Porém, como seu amigo e possuindo uma visão de outro ângulo, espera a poeira abaixar. Tenha paciência. Ele virá atrás de você se estiver a fim. Se for importante.
— É o que você sente pela Dayana? Sabe tão mais que eu sobre sentimentos. Não consigo lidar com os meus nessa clareza.
— Ela me conquista, a cada dia, e consegue me distrair consigo e no que é nosso. São paixões... Vão e voltam. Mexe com a gente. Eu me rendo.
— Não há como fugir disso.
— É difícil.

***


Giulia viu Neto entre as gêmeas e Matheus, mudando rapidamente o percurso e andando para o banheiro. Na escada, ponto de entretenimento delas, Neto perguntou a respeito de Giulia.
— Está lotada de trabalho, de cabeça quente... Seja paciente com essa frieza dela. É uma justa causa. — Saíra explicou metade da verídica resposta.
— Ninguém tá sendo justo comigo. Ela tá me dando gelo há quase um mês! Não dei corda e deixei quieto. Respeitei seu silêncio, mas foi uma puta falta de consideração!
— Giulia não pediu que a deixasse em paz?
— Não, só parou de responder de repente.
— Então ela não conseguiu ser direta.
— Giulia está me evitando e tenho o direito de saber o que fiz. Não vai conseguir por muito mais tempo. Mesmo que seja pra levar um fora, quero conversar com ela.
— Posso fazer essa ponte.
— Saíra! — Saíse repreendeu. — Não é pessoal — disse a Neto.
— Valeu, Saíra!
Giulia havia comprado o teste de gravidez e iria fazê-lo na semana seguinte.

Capítulo 22


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

A semana correu.
Estavam nos últimos dias do mês, sábado à tarde, em que a banda ensaiava na garagem. Distraídos, tocando uma e outra canção, sentiram a falta de , que deveria estar ali, com eles, dando apoio moral e exercendo sua função de caixa registradora, o que, na verdade, não era somente a parte administrada por uma empresária.
sabia disso e procrastinou para chegar à casa de . Do tipo que o deixou a imaginar motivos — mantinha uma bronca na ponta da língua.
Ela apareceu com as mãos nos bolsos de trás da calça skinny.
— Até que enfim, . — Isac expressou rabugento, e arqueou a sobrancelha, vendo-o levar uma resposta atravessada de Luana.
— Continuem ensaiando duro. A vida de rockstar é fruto disso.
tocava lentamente as cordas do violão, encarando-a.
— Mais uma vez. Começaremos de novo e novamente, caso necessário.
— Qual é, ! Ela nem ao menos cumpriu seu papel de empresária! Nós depositamos confiança nessa daí. — Isac reclamou.
Luana lhe deu uma cotovelada, e ele curvou o corpo.
— Você é louca?
— Fica na sua.
— Quero ouvi-los — disse . — A setlist está pronta?
— Hum... Não exatamente. Nós ensaiamos várias músicas, até pegar sincronia. — Du respondeu.
— Está. — corrigiu. — Podemos tocar três dessas músicas.
sentou-se.
— Vocês podem tocar quatro. É um número limite.
— Por que não cinco?
— Gosto de pares — desconversou, e ele franziu a testa. — Andem, não temos todo o tempo disponível. Quero dizer, o ensaio encerra às 17h30.
— Estenderemos. Relaxa.
— Não! Preciso tomar banho antes.
— Você tá enrolando a gente. O que está escondendo?
— O Toin abrirá as portas para o The Nacionais tocar no sábado. — Ergueu os braços.
A banda agitou-se, em comemoração, assobiando e sorrindo.
— Tipo, hoje, às 20h.
É o que, homi? — Pedro Lucas e Du falaram quase ao mesmo segundo, fazendo-a rir fraco.
— Vocês ouviram. A empresária fechou um acordo com o seu Toin. Uma apresentaçãozinha para aquele bando de beberrões. O cachê, quando dividido, será pouco, mas é o início.
, é perfeito. Nosso primeiro show, TNs! — vibrou , levantando o braço e batendo a mão na dela. — Mandou bem, tambore...
— Calado, Zé! — Soltou uma risada constrangida. — E obrigada.
Luana assobiou com os dedos na boca.
— Sua demora está justificada. , 1. Oposição, 0.
— Besteira. — Isac comentou em voz baixa.
— Chupa, Isac! — falou, olhando para ele, que reprimiu as expressões e acabou rindo nasalado quando ela virou o rosto.
Os instrumentos foram guardados nas capas, e o pai de , que passara o dia em casa, levaria no carro para o bar — bar esse que virou uma espécie de barzinho, renovando a clientela e o espaço, apesar de não poder ser comparado com nenhum outro de Campestre.
Escolheram vestes escuras para essa noite e combinaram o encontro nos bastidores — saída de emergência — uma hora antes da apresentação.

***


Assim que adentrou o quarto e pôs o celular sobre a escrivaninha, escutou-o vibrar e a tela se acender, revelando o nome de Carlos. Ignorou-o, deixando o cômodo. Quando retornou, viu uma mensagem dele e abriu, lendo rapidamente o conteúdo:

[Hoje, 19h30]
Carlos Andrada: Pode falar agora?

Ela correu para comer, tomar banho e se arrumar com um vestido preto, soltinho, de cintura marcada, uma botinha de couro sintético e maquiagem escura para os olhos, marcando o olhar negro. Caprichou no rímel, adorando usá-lo em festas, depois que conheceu Carlos.

: ...

Pensou na sorte dele por o celular não simular um dedo do meio via sms.

O barzinho do Toin, ou Bar da Gela, escrito em letras garrafais numa fachada convincente, localizava-se na zona leste de Campestre. A rua ficava coberta de carros e movimentada pelos próprios clientes. Porém, esses clientes não eram os donos dos carros — contávamos nos dedos a quantidade. O fluxo era pequeno, o cheiro de cerveja, misturada com fumaça de cigarro e o odor de alguns homens, tornava o ambiente um tanto pesado. Toin, pelo menos, nesta noite, limpou tudo — as mesas estavam alinhadas, o chão encerado, e o palco, montado na lateral do caixa, com luzes LEDs apontando para ele. Os instrumentos dos garotos, a banda contratada para tocar, foram trazidos há poucas horas por um senhor que sentou-se no banco anexado ao balcão e bebeu dois shots de 51, pondo na conta da casa, e essa conta seria quitada, é claro, diretamente no cachê da banda.
Toin era experiente no quesito “ser mais esperto que os cachaceiros”. Muito provável que gastaram e gastavam suas economias com bebidas.
— Vocês têm cinco minutos — avisou ao grupo no canto do bar razoavelmente cheio.
Du pôs o braço ao redor dos ombros de Pedro Lucas e respirou fundo, enquanto o loiro queimado do sol fechava os olhos, tentando se concentrar. Encostado à parede, de cabeça inclinada, meditava, e Isac estralava os dedos. Luana, por sua vez, mantinha-se calma.
— A não chegou.
Luana olhou para Isac.
— Você não aprende?
— Tá falando comigo? — Esboçou uma careta, encarando-a. — Lourinha, você tem sérios problemas.
— Não me chama de lourinha! O meu único problema é ter que aturar um pivete na banda. Bem que pensei em propor o limite de idade. Você só tem 10.
— Só se for meu irmão adotado. Tenho 17.
— Faltam três minutos. — Toin disse.

abriu a porta frontal e deparou-se com alguns clientes espalhados pelo local, bebendo e dialogando; até que alto, já que não conseguia discernir o que discutiam. Vestida a caráter, varreu o olhar pelo bar, encontrando os garotos do outro lado, e nem deu tempo de dar o primeiro passo, pois uma mão a deteve pelo pulso.
— Chega desse joguinho de gato e rato, não acha? — Carlos perguntou, materializando-se atrás dela, com toda sua altura e braço para trás. — Tu estás me enrolando há dias.
— Eu disse que conversávamos depois. Minha noção de tempo é mais extensa que a sua.
— Não tenho tempo a perder.
— Engraçado, nem eu.
— Tu me falastes sobre essa apresentação, certa vez, então vim, porque assim não haveria escapatória.
— Você não desiste. — Balançou a cabeça, inconformada. — Meus amigos estão me esperando.
— Tudo bem, também estou te esperando. — Levou o braço para frente, revelando um buquê de rosas vermelhas. — Patético, né?
acabou sorrindo.
— Não vai me ganhar com rosas.
— Eu sei. A finalidade delas são outras. Vim por um segundo motivo. Na verdade, ele quem me trouxe com a cara e a coragem. Você deixou claro que não tínhamos nada. Nada sério, pelo menos. E eu quero que tenhamos algo. Vamos rotular seja lá o que tínhamos. Chegou a hora. — Estendeu o buquê. — Quer ser minha namorada?
Ela colocou o cabelo atrás das orelhas. Uma guerra se formou dentro de si, entre o que acreditava que havia acabado, o que buscava e o que sentia antes e agora, e o agora pesava.
— Isso tá patético.
— E eu não sei? Nós somos ridículos quando nossas emoções nos guiam. Mas, neste caso, tenho o direito de me exceder.
— Droga. Por que você tinha que vir? Tô tão confiante e animada com a banda...
— Porque não meço esforços pra te convencer de que você é especial.
— Me convencer ou provar? Está tentando convencer a mim ou a você disso? Uma mente ansiosa é capaz de criar laços e refazer cenas onde poderíamos ter mudado nosso caminho. Assim, não estaríamos revivendo Tom e Jerry.
Carlos riu fraco.
— Estou irreversivelmente convencido de nós. Confie.
— Certo. — Suspirou. O calor tomando seu peito; talvez, pela ansiedade da apresentação, por revê-lo e aceitá-lo. — Eu quero.
Ele alargou um sorriso fugaz, entregando o buquê, que ela segurou numa mão, e curvou o corpo para que seus lábios tocassem os dela brevemente. Sem se conter, guiou uma mão para o seu rosto, e a outra, à nuca, aprofundando o beijo.
— Com vocês, The Nacionais!
Uma salva de palmas foi ouvida, interrompendo-os, e Toin, tendo um microfone, apresentou a banda, que havia subido no palco, testando seus instrumentos.
Sentado no banquinho alto de madeira, no meio do palco, colocava a alça do violão por cima da cabeça.
— Aquele é o seu melhor amigo? — Carlos perguntou contra a orelha de , abraçando-a pela cintura, com ela virada para o garoto.
— É o . — Mordeu o lábio, nervosa.
— Ele tá tranquilo. Vão se sair bem. Fica calma, amor.
se desmanchou numa euforia e sorriso ternos, apoiando as costas no peito dele, enquanto sentia um o outro beijo em seu ombro, até o som da bateria soar e as luzes baixarem. Em seguida, as cordas do violão, os dedos ágeis de dedilhando um tanto trêmulo — e ele suava frio. Ergueu a cabeça, aproximando a boca do microfone, e Luana fazia a segunda voz na melodia, quando cantou:
Assim, ela já vai achar o cara que lhe queira como você não quis fazer. Sim, eu sei que ela só vai achar alguém pra vida inteira como você não quis.
A primeira música escolhida do repertório foi 'Acima do Sol', do Skank.
Tão fácil perceber que a sorte escolheu você, e você, cego, nem nota. Quando tudo ainda é nada, quando o dia é madrugada, você gastou sua cota. Eu não posso te ajudar, esse caminho não há outro que por você faça. — Abriu os olhos, percebendo que os fechou depois da primeira estrofe, observando a garrafa na mesa de um cliente. Varreu o olhar pelo local, e novas estrofes vieram: — Eu queria insistir, mas o caminho só existe quando você passa. Quando muito ainda é pouco, você quer infantil e louco um sol acima do sol. Mas quando sempre é sempre nunca, quando ao lado ainda é muito mais longe que qualquer lugar... — Fixou o olhar nas sombras de clientes afastados, sem ter como distinguir suas fisionomias. — Ôo! Um dia, ela já vai achar o cara que lhe queira como você não quis fazer.
A setlist formada por quatro músicas continuou, no rock nacional, e a plateia assobiou, batendo mais palmas.
Carlos apertou o abraço, mexendo-se de um lado ao outro, sem sair do lugar, com .
— Ele é bom. Tem futuro no ramo. Só precisa se soltar mais.
— O interpreta com muita verdade a canção, mas ele não quer seguir carreira.
— Não? O que ele quer? Ser jogador de futebol? Nessa idade, é o que os garotos preferem. Medicina é modinha também.
— Na verdade, está indeciso entre Direito e Economia. Talvez, os dois.
— E você?
— Engenharia... Meu pai gostaria que eu cursasse porque eu poderia continuar em Campestre...
— A minha pergunta foi o que você quer.
— Moda.
— Uma estilista criadora de tendências?
— Mais ou menos.
Carlos a beijou no rosto.
— Dará tudo certo.

Após a última música, a banda agradeceu a oportunidade e deixou o palco, numa despedida rápida. Pareciam aliviados, nervosos e eufóricos com a experiência. Dayana, que cuidou do som, aproximou-se de , abraçando-o com alegria.
Ele a envolveu nos braços, sorrindo, e sentiu seu cheiro.
— Você gostou? — perguntou em voz baixa. — Tremi da cabeça aos pés. — Soltou uma risada contagiante.
— Foi tudo nos conformes. Você superou nossas expectativas. É claro que eu e todo mundo gostou.
— Ganhei a metade que faltava da noite, então. — Segurou seu rosto ternamente e a beijou de leve. — Vou comprar refrigerante. Quer um?
— Água, por favor.
— Volto já! — Afastou-se, entregando o violão a Du, e seguiu para o bar. Enquanto ia, lá vinha na direção dele.
— Parabéns, ! Você arrebentou! — Abraçou-o rapidamente. — Este é o Carlos, meu namorado.
Carlos estendeu a mão, sendo apertada pela dele.
— Mandou bem, cara. A banda tem futuro. Comentei isso com a .
— Obrigado. — Ele visualizou, discretamente, a aparência de . — Você tá bonitona.
sorriu, sem graça.
— O Davi aprovaria — complementou. — Vou ao bar. A gente se vê!
— Até segunda!
— Até. Tchau! — Deu um tapinha no ombro de Carlos e se foi.
Na hora de receber o pagamento, quando fora chamado com um aceno do dono do barzinho, andou até o caixa e apanhou o envelope — abriu e conferiu ali.
— Tem algo errado?
As feições dele mudaram. A ruga de ceticismo entre as sobrancelhas.
— Não foi este o combinado.
— Acontece que um sujeito que toma conta de vocês veio mais cedo e consumiu a bebida da casa. Pediu para por na nossa conta, mas é claro que não existe conta nossa para esse bando de cachaceiro. Eles nunca pagam. Então, descontamos daí.
A ira e a chateação domaram o garoto, que abaixou a cabeça e mordeu o lábio com força. Virou-se, avistando, por sobre o ombro, os amigos cansados e entusiasmados, o que já perdera a vontade.

***


Giulia caminhava com livros nos braços, para que a mochila ficasse leve, o cabelo penteado numa tiara e as olheiras abaixo dos olhos. Dispersa, nem prestou atenção nos alunos ao redor e em quem a vigiava de longe, andando com determinação em sua direção, vindo do pavilhão da faculdade.
Ele desistiu de tocar seu braço e pigarreou.
Giulia virou o rosto, sentindo o ar escapar, porém sem demonstrar expressão.
— Você está bem? — Neto notou suas olheiras mal cobertas com corretivo.
— Estou ótima, saudável e com sono. — Deu um sorriso forçado, repleto de ironia, tornando a caminhar.
Gi, espera. — Apertou um lábio no outro. — Desculpe. Giulia. Escapou. Tô tentando compreender seu sarcasmo, que não lhe convém. Mas, poxa, não consigo, assim como não entendo o porquê, de repente, você fingiu que eu havia morrido. Perguntei-me o que fiz de errado, até cair em mim e concluir que não fiz nada, você é quem cansou.
— Então já tem sua resposta: eu cansei. Não quero morrer de amores como uma adolescente boba faria. Cometemos erros absurdos quando isso acontece, e é trágico — desabafou, seus olhos cheios d'água. — Finja que eu morri, tal como fiz contigo, e você, idiota, não se tocou. — Virou-se para o corredor, e ele a puxou pelo braço, com força contida, trazendo o corpo para perto do seu.
— Você tá brincando comigo. Posso até parecer este cara tranquilão, mas ninguém me ofende de graça. Onde está a Giulia doce que eu conheci? Eu me amarrei nela. Não sabia que você era uma garotinha esnobe disfarçada. Enganei-me tragicamente. É o que acontece quando nos envolvemos, não é?
— É isso mesmo. — Engoliu em seco, evitando o contato visual. — Dá para me soltar?
— Mais uma pergunta: o que aconteceu com você?
Giulia mordeu o lábio trêmulo e fechou os olhos.
— Nada.
— Giulia, diga.
— Não posso falar aqui, agora, eu...
— Quer fugir de todos os olhares curiosos?
— Não vai adiantar. — Limpou a bochecha e ergueu a cabeça, encontrando o olhar cor de mel preocupado e atencioso, como se existisse apenas ela. — Solte meu braço. Preciso ir. Por favor. — Fungou. — Já está sendo muito complicado, e você dificulta mais...
Neto esfregou a barba por fazer, que deveria ter tirado nesta manhã.
— Não é a minha intenção atrapalhar seja lá o que for. Quero que divida isso. Sabe que pode contar comigo.
— Você não é o pai dessa criança. — Levou a mão ao rosto. — Estou grávida.
Ele se empertigou, os lábios entreabertos, completamente pasmo, e soltou sua mão. Depois, fechou a boca, umedecendo-a, e esfregou o rosto com força. As palavras ecoavam em sua própria mente, o significado delas parecia não ter sentido. O ato, em si, não. Até ontem, Giulia era uma menina moça.
— Há um mês, nem havia beijado uma boca e, agora, só não beija, como dá — falou ríspido e arrependeu-se do dito.
Giulia o analisou com lágrimas nos olhos.
— Você não tem nada a ver com para quem abro minhas pernas. Não é por que te dei meu primeiro beijo, que daria minha primeira vez!
— Até porque, se tivesse dado, não estaria grávida aos 16! Não sabe dos métodos contraceptivos?
— Cala a boca!
Ele balançou a cabeça, decepcionado, e se deslocou num passo para trás.
— Você tem razão. Não sou o pai dessa criança e não tenho nenhuma responsabilidade. Não é minha obrigação escutar suas grosserias. Espero que o pai assuma se não for um moleque. — Virou-se de costas e seguiu de volta para o prédio novo.
Giulia chorou mais e alto, abafando o soluço nas mãos e correndo para o banheiro.

Capítulo 23


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

O aniversário de estava chegando.
Março e abril haviam ido embora, e maio despedia-se das últimas semanas, carregando seus dias quentes. O meio do ano oferecia inverno, férias e São João. As “férias”, no colégio público, não passavam de um recesso camarada de 15 dias, em que você dormia num dia e acordava no décimo quinto. E com sono. Entretanto, independentemente disso, o aniversário dela estava logo aí, dia 10 de junho, que cairia no domingo. Particularmente, não se dava bem com festanças, mas gostava quando se lembravam dela, menos as tias, que inventavam que estava grande e crescendo, quando, obviamente, não deixaria a casa do 1,60 m. Não que a altura fosse um ponto inconformado da sua vida. Só que o lembrete desse ponto específico a incomodava.
Neste ano, não fazia ideia do que ganharia, onde festejaria, se preparariam almoço, como no ano passado, e se completar 18 anos seria legal. Já foi à festa, teve o primeiro porre e não trabalhava. Não começaria com o pé direito, porém se tornaria maior de idade, e isso, de fato, a assustava.
, meu presente tá guardado — contou Davi, sentado ao seu lado no sofá. — Você sabe que eu não deixaria seu aniversário passar em branco.
Ela sorriu, trazendo-o para seu colo e enchendo-o de beijos por toda face.
— Moleque, tu é o meu irmãozinho favorito.
— Só tem eu mesmo. — Riu.
— É aí que você se engana. O também é meu irmão. Eu o considero como membro da família.
— Ele não tem nosso sangue.
— É verdade, embora, às vezes, nossos amigos tornam-se irmãos da gente, e os próprios irmãos não são nossos amigos. Entende?
Davi encostou a cabeça em seu braço.
— Eu e você somos, não é?
— Até você se casar e se esquecer de mim.
— Você se casará primeiro que ele — o pai de ambos comentou, aparecendo na sala e sentando no sofá defronte.
— A vai se casar com o namorado dela?
arrumou o cabelo dele.
— O futuro Deus proverá, maninho! Nossa irmandade é para sempre, tá escutando? Não existe nada que fique entre nós dois.
Davi maneou a cabeça, levantando-se e abraçando-a forte com seus pequenos braços.

Pós-primeira apresentação, a banda de garagem fora convocada para abrir uma festa da socialite, com acústicos, e o cachê, desta vez, serviu para encher os bolsos dos integrantes, que saíram felizes e satisfeitos, parando, até, para comer numa lanchonete aberta 24 horas.
Era quinta-feira, o dia seguinte não haveria aula, devido a qualquer uma dessas desculpas que o corpo docente arranjava para faltar e, por tal motivo, estavam sentados à mesa, às nove da noite, no lado de fora do estabelecimento.
Lado a lado, e Dayana virados de costas para a rua, Luana e Du juntos, e Isac de frente para Pedro Lucas.
Paulo havia desistido da banda. Não que tê-lo, para eles, agora, fosse relevante.
— A não quis vir comemorar? — Du perguntou, digitando no celular, e a maioria das risadas cessaram para que alguém pudesse responder.
— Ela enviou uma mensagem afirmando que não daria para assistir porque aproveitaria seus pais em casa. Faz tempo que não passam um dia juntos. — Luana explicou.
mordeu o crepe.
— Preciso arranjar uma namorada. O dia 12 tá batendo na porta. — Du confessou.
— Pensei que os garotos terminavam um mês antes, para não ter que gastar dinheiro. Você acaba de quebrar esse paradigma. — Luana comentou.
Ele riu baixinho.
— É brincadeira. Óbvio que não irei gastar o dinheiro que não tenho. É por isso que tô forever alone.
— Feio e liso, é de lascar realmente. — Isac provocou, recebendo um pedaço de pão de forma no rosto.
— Isac deve ter uma fila de mulher ao seu dispor.
— Tá pensando que sou mole? — Cruzou os braços, apoiando-se à borda da mesa.
Luana arqueou a sobrancelha.
— Se você se incomoda...
— Tá legal. Entendemos que esse joguinho é mais excitante que preliminares, mas todo mundo sabe como termina. — Du tornou a dizer, dando de ombros.
Luana voltou a comer displicentemente.
— Bobagem — finalizou Isac, buscando seu celular no bolso.

Giulia manteve-se deitada na cama, os braços erguidos e as lágrimas deslizando pelas bochechas. Horas atrás, forçava a barriga, apertando-a com cinta e panos, na tentativa fracassada de maltratar o que lhe causava enjoos, dores de cabeça, inchaço e falta de apetite — provavelmente, adoeceria, antes de completar os noves meses de gestação. Durante os três primeiros meses, escondeu a barriga saliente, sendo levada à força e através de ameaças amigáveis pelas gêmeas ao ginecologista-obstetra; fizera seu pré-natal, checando o período gestacional e a própria saúde. Sentia os efeitos da gravidez numa intensidade que, por vezes, e deveria confessar, tinha vontade de sumir!
— O bebê nem nasceu e você está assim... — falou Saíra, certa vez, pelo telefone.
— Eu tô obesa! Pareço uma ogra! Parei de comer, ultimamente, senão iria me odiar quando olhasse no espelho e comentariam...
— Maria Giulia, chega! Você será mãe! Não tem noção do significado dessa posição, mas imagine sua própria mãe parando de alimentá-la por causa da porcaria da aparência! Está na hora de contar.
— Não. — Balançou a cabeça. — Tenho que desligar. Falo com você depois.
Agora, torcia o lençol entre seus dedos, pensativa. A mãe chegara a casa desde que escutara a porta bater.
— Giulia? Filha, tá dormindo ainda?
Ela ergueu o corpo, limpou o rosto e levantou-se.

***


— Vem aqui. — Luana pediu ao ver chegar ao colégio, na semana seguinte, sentada num banco de concreto do pavilhão do refeitório.
O garoto tirou o fone do ouvido e desejou bom dia.
— Dia. O aniversário da será em poucas semanas, e o pai dela entrou em contato comigo, avisando sobre a festa surpresa. Eu faria uma se não tivesse. O que quero dizer é que estive pensando numa outra surpresa para ela e preciso da sua ajuda.
— Qual é a ideia?
— Montarmos um vídeo com fotos e momentos da vida dela nesses 18 anos. Você a conhece há mais tempo e deve ter alguma relíquia guardada.
— Sim. — Deu uma risadinha criteriosa. — A matará a gente.
— O espírito de aniversário estará nela, então não sofreremos as consequências. Quero que você passe para um pen drive tudo o que tiver, dando maior importância ao que for importante para você, e o resto deixa comigo.
— Darei uma olhada e trarei amanhã. Será que posso checar o resultado antes de todo mundo?
— Não, desculpa. — Levantou-se. — Valeu!

Com os braços cruzados sob a cabeça, cochilava na sala de aula, usando a aula vaga. Seu cabelo ocultava os traços do rosto, a não ser pelas sobrancelhas à mostra, e o capuz a deixava aquecida.
saiu duas vezes para falar com os amigos e esticar as pernas, retornando à carteira do lado dela. Ultimamente, sentava-se perto de Dayana, ou Dayana vinha sentar ao seu lado. Tinha que se dividir em dois para atendê-las e, justamente hoje, Dayana faltou.
— Ela tá doente? — perguntou, abrindo os olhos e afastando o cabelo do rosto, revelando a bochecha marcada pelo braço.
— Dor no estômago. Tem gastrite nervosa.
— As apresentações não pioram o quadro dela?
— Ela disse que não.
ergueu a cabeça e coçou os olhos.
— Você a chama por algum apelido carinhoso? Chamo o Carlos de “almofadinha” nas horas de raiva, de “senhor” nas provocações e de “Carlinhos” quando quero alguma coisa.
soltou uma risada descrente.
— De “Day” nos momentos de grande paixão.
esboçou uma careta discreta que não passou despercebida por ele.
— Por que estamos contando isso?
— Você quem começou.
— Mudemos de assunto. Vamos estudar hoje?
— Todos os dias.
— Tô morrendo de sono. — Bocejou.
— Dorme lá em casa. Vai voltar comigo. Trouxe roupa?
— Tô com jeans por baixo e regata.
— Pronto. Para de arranjar desculpa. Sei que é cansativo, mas valerá a pena todo seu esforço.
— O nosso. — Voltou a deitar a cabeça. — Acorde-me quando esta aula acabar.

Infelizmente, Luana esbarrou em Giulia fora da sala do segundo ano quando dobraria no corredor do outro pavilhão, resolvendo casos do Grêmio Estudantil na coordenação, que não servia apenas de local onde a coordenadora trabalhava, mas também a sala dos professores.
Abatida, Giulia desviou o olhar quando a viu.
A língua de Luana coçou para perguntar o estado dela. Passou pela garota e, depois, virou o corpo, dando-se por vencida:
— Está tudo bem, Maria Giulia?
Giulia endireitou a postura, tornando-se tensa.
— Estou ótima — respondeu num fio de voz, sem olhar para ela. — Não se preocupe.
— Eu não estou, só fiquei curiosa... Parece que não dorme há dias.
— Costumo assistir séries até tarde.
— Você dorme cedo. Dormia, pelo menos. — Entortou a boca. — Já não tenho certeza. Passar bem! — Andou rapidamente para a sala dos professores e abriu a porta.

***


destrancou a porta da casa, usando sua chave, e a gata branca com manchas pretas miou, desfilando pelo corredor do hall.
assustou-se, agachando em seguida.
— É sua?
— A funcionária do centro a resgatou de um abrigo, e ninguém quis adotá-la. Estava em recuperação, e trouxemos para casa. Agora, Blue tá se adaptando. — Acariciou o pelo cor de neve e sedoso da felina, que fechou os olhos de íris azuis. — Você não se dá bem com gatos.
— Não são meus animais favoritos. — Levantou-se, e deixou Blue no chão.
— Ela tá prenha.
O olhar de se iluminou e a garota tocou a cabeça da gata com cuidado.
— Blue é muito dócil. Eu poderia criar uma assim. — Sorriu, afastando a mão.
atravessou o corredor da sala e cozinha, detendo-se na segunda porta, e abriu a porta. , que vinha em seu encalço, entrou, pondo a mochila no chão e contemplando a cama arrumada no canto da parede.
O garoto riu nasalado.
— Deita. — Buscou um lençol no guarda-roupa. — Vou ver o que tem para o almoço.
— Onde minha tia tá? — Sentou-se no colchão, tirando o tênis e as meias. Em seguida, a blusa da farda e abaixou a calça.
virou-se de lado, colocando o lençol na cama.
— Ela saiu. Quando você falou que estava com jeans por baixo, não imaginei que fosse short.
revelou as pernas pálidas, de quem evita tomar sol, possuindo muitas calças no armário.
— É que esquenta demais. — Dobrou a peça de roupa, dando de ombros e guardando dentro da mochila.
— Já volto!
Ela deitou na cama, afundando o rosto no travesseiro macio, pondo os braços embaixo e liberando um suspiro longo. O cheiro de amaciante estava impregnado no lençol, mas o perfume de tomava o travesseiro em resquício, quantidades pequenas, e se aventurou em descansar os olhos e inalar.
— O almoço tá servido. — Ele colocou a cabeça para dentro do quarto, a mão na maçaneta, e a analisou dormindo. Então fechou a porta e foi comer.

despertou, meia hora depois, escutando o silêncio do cômodo, tanto dentro como fora, e bocejou. Ergueu-se logo, encontrando o computador de ligado, a tela apagada, e sentou-se na cadeira giratória, movendo o mouse. Havia duas janelas abertas — a primeira, do Facebook, e a outra, do arquivo de imagens. Fechou uma e conferiu as fotos da pasta.
Fotografias, que ela nem se lembrava, da infância. A da Olimpíada de Matemática, quando concorreu e ganhou a medalha de prata, e o parabenizou com um beijo no rosto — tinham cerca de 12 anos. A primeira tirada em 2007, fantasiados de índio, e disso recordava-se vagamente — sorriam para a lente da câmera, o braço de em volta dela. Aos 14, quando teve seu primeiro romance, e ele não entendia como uma menina poderia mudar da água para o vinho por causa disso. E de como paixões são passageiras, já que, no ano seguinte, nem tocava nesse assunto. Estreitaram a irmandade e fizeram promessas silenciosas de que nada interferiria na amizade deles, a partir dali. No ano de debutar, dançou envergonhadamente valsa com , mesmo que tenha sido dentro do quarto dela e tenha durado menos que uma canção inteira — a mãe da garota não permitia que ficassem sozinhos por muito tempo. Não tiraram fotos dessa data, mas gravaram o dia na memória. Encontrou uma foto sua, sem os dentes do meio, os de leite, seu cabelo arrepiado, e deixou uma risada alta escapar, fungando — furtou de alguma pasta pessoal.
Na maioria das vezes, nossos melhores amigos tornam-se nossos irmãos.
Havia foto deles comendo pizza, lambuzados, aos 16, como duas “crianças” famintas, e dela sorrindo sozinha com o cabelo longo; pois, , até o nono ano, deixava os fios crescerem — naquela vez foi uma aposta feita entre ela, Giulia e Luana, e provou que conseguia manter o cabelo grande o bastante para cortar depois. Desde então, não permitiu que crescesse tanto. Esta foto não deveria estar ali, mas sentia-se orgulhosa e melancólica do feito.
Desceu a barra de rolagem, visualizando distraidamente as demais imagens, até que a porta foi aberta e entrou.
— O que são todas essas fotos? — questionou, sem olhar para ele.
— Nossas lembranças.
Emocionada, não conseguiu falar e sorriu.
— Por que tem fotos minhas de infância?
— Nós crescemos juntos. — Sentou-se na cadeira ao seu lado, sem graça.
Ela via as do amontoado de fotografias que ele escolheria para produzir o vídeo.
— Quero dizer, de 10 anos atrás, de quando eu não te conhecia.
— Do seu cabelo longo. É a minha favorita — admitiu.
— Foi um choque para todo mundo. Mas eu me acostumei com meu cabelo curto.
Por um instante, ele a contemplou.
— Eu também.
limpou os olhos e abraçou-o repentinamente, forte e terno.
— Você é o melhor. — As lágrimas deslizaram. — Obrigada por fazer parte da minha vida desde os dez.
a envolveu apertado, movendo os dedos em seu couro cabeludo.
— Não me agradeça. Eu não iria embora depois de te conhecer.
posou o nariz sobre o seu ombro, de olhos fechados.
— Não dorme.
Ela riu baixinho, afastando-se.
— Estou muito acordada. — Mordeu o lábio inferior. — 18 anos. Vou tirar minha carteira de motorista.
— Ah, é! Será mais rápido que eu.
— Dá um friozinho na barriga.
concordou.
— Todo dia.
— O nome disso é paixão — explicou, rindo. — Vai passar o meu aniversário comigo?
— Se você quiser. O dia é seu.
— Eu quero, claro. — Deitou a cabeça ali, em seu ombro, e ambos comentaram sobre as imagens.

Capítulo 24


— Porque você não conhece meus pais — disse —, e eu não conheço os seus.
— Tu és minha namorada. Que mal há nisso?
Ela entortou a boca, e Carlos pressionou um lábio no outro, de braços cruzados, diante dela, no corredor.
— Seu aniversário tá chegando.
— Eu sei.
— É só um fim de semana...
— Não dá. Eles não permitiriam que eu fosse.
— Assim fica difícil. — Suspirou. — Podemos dar uma volta hoje? Está a fim de sair? Tem me dado mais desculpa que pecador em confessa.
riu fraco e posou os braços ao redor do seu pescoço.
— Olha o drama! — Beijou carinhosamente a mandíbula rígida dele. — Depende aonde você quer me levar.
— Garanto que é um local de família. — Apertou sua boca sutilmente, formando um bico, e grudou os lábios nela. — Quero conhecer seus pais. Três meses já.
— Meu irmão gostaria de saber quem roubou meu coração. — Soltou uma risada.
— Quantos anos ele tem?
— Cinco. Falei do Davi a você.
— É verdade. Minha cabeça tá cheia de assunto da faculdade.
— Eu os vejo no café e novamente no jantar, às vezes, porque demoram a voltar para casa. Não os dois. E é notícia de manchete quando conseguimos nos reunir.
Carlos beijou seu rosto, deslizando pela bochecha e alcançando o pescoço. contraiu o corpo, sentindo mais cócegas que arrepios.
— Tô conversando contigo.
— Pode continuar. Ouço e faço isto. — Sugou a pele perfumada. — É mais interessante. Você tá tensa.
— Não tô, não. — Afastou-se corada. — Estamos no meio do colégio, seu maluco! Quer me ver na detenção?
— Saco! — Ele sorriu e desamassou a gola da sua blusa. — Tá escondido.
— Droga.
— Relaxa. Não marquei a pele. Tá avermelhada, mas voltará ao normal.
— Aonde vamos?
— Comer na ilha. Os quiosques de lá servem muita comida boa. Busco você?
— Quer conhecer meus pais, não é? Então, sim.
— Acho que adiarei para a volta. Seu pai é bravo.
assentiu.
— Tá certo. Preciso correr pra minha aula. Até às oito?
— Isso.

Luana caminhava para o banheiro do pavilhão do refeitório quando escutou uma conversa numa tonalidade menor que a habitual, aparentemente, sigilosa, de dentro.
Atenta, deteve os passos.
— Ela ordenou que eu arranjasse um emprego. Quase me batia, mas se conteve na hora, e chorou. — Giulia fungou. — Ver minha mãe chorar foi terrível. Nem a dor física se compara a vê-la naquele estado. Eu preferiria levar uma surra.
Encostada na parede, Saíra entortou a cabeça.
— O que mais?
— Tô à procura de um emprego agora. Não tenho muita experiência, só que há cursos de Informática no centro, e é para lá que irei hoje. — Enxugou os olhos com um lenço oferecido por Saíra. — O Neto falou algo sobre...
— Não — lamentou. — Ele sumiu, na verdade. Nunca mais o vi. Quer que eu pergunte ao Matheus?
— Não é necessário. Ficou muito claro tudo. Não existe nenhuma chance... Ele não é... Não é obrigado a isso. A se envolver com isto. — Tocou a barriga enfaixada.
— Não se refira a ele ou ela por “isto”, Giu. É seu...
Duas meninas entraram no banheiro, e Luana teve que dar passagem.
— Eu sei — finalizou Giulia.
A loura apareceu no campo de visão delas, que a observaram surpresas e tensas.
— Com licença! — pediu a Giulia e fechou a porta da cabine.
Saíra mordeu o lábio, desencostando-se, e disse uma palavra inaudível à amiga.
— Não faço ideia! — respondeu Giulia em tom igual.
— Ajeita a blusa!
Luana destravou a porta, dirigindo-se à pia, e girou a torneira.
— Vamos! — Saíra chamou.
— Vou usar o vaso. Espera. — Entrou na cabine.
No lado de fora, sentada num banco, a loura caiu em si, meia hora depois, quando elas passaram pelo corredor.

***


— Você sabia que a Giulia está grávida?
paralisou, em pé, franzindo o cenho.
— Não. É uma pegadinha? Abril já passou.
— Vocês raramente se falam, mas é mais do que eu e ela temos. Achei que soubesse. Pelo visto, não saberíamos nunca.
— Explica esse escândalo direito. Não tô acreditando. É a Giulia.
— A Giulia desnaturada! — Suspirou chateada. — Escutei uma conversa dela com a gêmea mais velha.
— Deus do céu! — Levou as mãos à cabeça. — A Gigita... Grávida. Tem absoluta certeza do que escutou?
— Elas não terminaram, porque foram interrompidas, mas tenho consciência de que a palavra que faltava era 'bebê'. Giulia e a mãe brigaram.
deixou um suspiro frustrado escapar.
— Minha nossa! Vou sondar e perguntar se ela precisa de alguma coisa. Que merda, cara!
— Das grandes! Tô me sentindo impotente.
— Assim que eu souber de algo, aviso, tá? — Abraçou-a rápido. — Vou entrar agora.

abraçou forte Dayana e tocou os lábios em sua têmpora, fazendo-a se desmanchar num sorriso terno. Estavam, há pouco mais de dois meses, juntos, com isto: uma relação afetuosa completamente deles; leve, despreocupada e com sabor de pousada. Viraram cúmplices em pouco tempo. Ele, que não se dava ao trabalho de demonstrar afeto em público, abrindo raras exceções, começava a reverter esse aspecto tão espontaneamente que, se não prestasse demasiada atenção, acharia que sempre fora desinibido.
— Tá cuidando da gastrite?
— Eu a enviaria para o orfanato sem pensar duas vezes. — Dayana tentou gracejar. — Estou. Tive uma consulta com o gastroenterologista, e ele receitou remédios. Beber comprimido nunca me pareceu tão difícil.
— Quantos?
— Oito por dia — choramingou, e tornou a tocar os lábios nesta região.
— Sinto muito por isso. É por uma boa causa.
— Com certeza. Tô tendo que fazer terapia também e hidro pra relaxar.
— Que ótimo. Se tu precisar de ajuda, se distrair, sei fingir que faço massagem. — Sorriu.
— Vai ter que por esse fingimento à prova. — Virou-se de costas, sentindo-o envolver seus ombros com as mãos; enfiou entre a abertura da gola, afastando um pouco para ter espaço e acesso. Daí, moveu os dedos, retendo toda a tensão. — Vou te contratar para serviço integral.
— 0800?
Ela o olhou por sobre o ombro.
— Quanto você cobra?
— O preço de um beijo, e isso porque sou bonzinho. Como não faço tão bem, é barato.
Dayana riu.
— Deixa de mentira.
— Aposto outro beijo que você faz melhor que eu.
— Espertinho. — Virou-se para ele. — Vai.
virou, e ela retirou seu casaco, vestindo-o em seguida, sob sua visão, com o cheiro e o calor dele no tecido, e pôs as mãos em seus ombros. Acabou dando um beijo na nuca, sentindo-o arrepiar.
— Não fiz isso em você. É golpe muito baixo.
— A gente usa as armas que têm — provocou, massageando-o e cobrindo a pele da nuca com a boca; em beijos molhados, quentes, sutis.
— Você venceu. — Movimentou a cabeça, aproveitando.
Dayana finalizou a massagem, notando-o calado, e rodeou os braços em torno dele. Para , o ato anterior durou o tempo de mantê-lo com uma dose pequena de euforia.
— Vamos comer. Hoje, você passa o intervalo comigo. A gente pode revezar, só que sem nossos amigos. — Dayana entrelaçou a mão na sua.
— O que tu quiseres.

A última aula chegou e, em meio a ela, Giulia ergueu a mão, pedindo à professora para ir ao banheiro. Levantou-se rapidamente e bateu a porta atrás de si. Observando a ação, rabiscando o caderno, enquanto Elineide respondia o exercício avaliativo, que deveria ser entregue nesta manhã, Luana deu um jeito de fugir; sair sem permissão, deparando-se com o corredor vazio, vozes vindas das salas com janelas, e atravessou-o, à procura de Giulia.
Achou a garota dentro do banheiro do pavilhão delas, logo quando a viu deixar a cabine, minutos depois, com a expressão abatida e uma mão sobre a barriga. Mantinha, abaixo da blusa, a cinta.
Giulia assustou-se com a presença da loura lavando as mãos.
— O que tá fazendo aqui?
— Como não costumo usar maquiagem, sobram duas alternativas: o número um ou o número dois. Sabe as necessidades fisiológicas? Tem o três também.
— Que seria me perseguir. — Suspirou cansada, tomando o lugar diante da pia. — Pensei que me odiasse.
— O três é fazer o que você fez.
Giulia a observou pelo espelho.
— Sentar na tampa do vaso e trocar mensagem?
— Vomitar.
— Comi algo estragado esta manhã.
Luana maneou a cabeça.
— Geralmente, enjoos a esta hora são ocasionados por uma gravidez.
— Ah, é? Tá esperando um bebê?
— Se eu fosse você, sim.
— Deus me livre! — Secou as mãos com o papel toalha.
— Não gostaria de estar na sua pele. Em nome de todos os anos de amizade que você esqueceu, quero que saiba que tô disposta a te dar apoio.
Os olhos de Giulia lacrimejaram.
— Para que exatamente?
— Essa cinta não vai poupar os comentários, a barriga crescer e os olhares tortos, e isso não importa. O que você carrega dentro do útero é o motivo mais importante da sua vida agora.
— Você tá louca. Não dou ouvidos a quem me odeia.
— Eu me decepcionei, existe um abismo de diferença, com esta versão fútil da Maria Giulia durante o semestre, mas gosto da Giulia dos primeiros dias e dos anos anteriores, e é pra ela que ofereço meu apoio, e por seu bebê, que não tem culpa de ter sido um descuido. Não irei te repreender e nem xingar, só estarei aqui, caso precise de mim.
Giulia não conseguiu conter as lágrimas.
A sensação de afogamento dentro do peito e as oscilações de humor, devido aos hormônios, deixavam-na sensível e exausta.
— Além do mais, neutralizamos o ódio com amor.
— Acho que preciso disso — disse e sorriu — para o meu bebê. Não tenho sido uma mãe boa.
— Você é uma mãe prematura, é compreensível. Tenho certeza que há muito afeto aí dentro, e o nascimento dele te transbordará.
— Prematura... — Riu baixinho. — Você acaba com o ego de uma adolescente grávida.
— Desculpe.
— Eu quem devo pedir desculpas. Perdão pela maneira como te tratei, por ter sido influenciada a cometer idiotices. Nós experimentamos coisas novas e esquecemos as velhas, sem ter noção de que elas estiveram com a gente por muito tempo por algum motivo. Você é essa “coisa” velha, a metáfora que dá sentido a amizade, e espero continuar aprendendo muito contigo. E meu bebê também! — acrescentou, sorrindo abertamente e vendo-a retribuir. — Obrigada.
Luana aproximou-se, soltando os braços e abraçando-a suavemente, emocionada.
É a partir da convivência que a amizade nasce. É depois de fazer as pazes que ela renasce.¹
— Tudo bem. Não carrego mágoas comigo. — Beijou sua bochecha e afastou-se. — Contatou o pai?
— Não.
— Terá que me contar essa história. A sabe da gravidez, então é melhor nos reunirmos pra você não ter que tocar no assunto de novo.
— É um tanto desconfortável. Foi numa festa... Nunca mais bebo capeta.

***


— Podemos te ajudar de alguma forma? Que saudade da nossa Gigita! — sorriu, abraçando-a de lado.
Giulia e Luana trocaram olhares cúmplices.
— Gigita não.
— Gigita, sim. — Atacou sua bochecha saliente. — Quando o bebê nascerá?
— Está previsto para novembro.
— Ainda bem que o Enem deste ano será em outubro. Já imaginou entrar em trabalho de parto no dia da prova?
— Eu digo é valha.
— Como está em casa? — Luana perguntou.
— Hoje vou atrás de emprego. Fiz meu currículo. Inglês médio deve servir pra algum cargo mais ou menos.
— Posso arranjar um lá na lanchonete. Tenho que falar com a minha mãe antes, até porque houve corte de funcionários neste semestre. Talvez, no semestre que vem, surjam novas vagas. Não custa tentar.
— Ai, seria maravilhoso dividir a cozinha com os quitutes dela.
concordou.
— Cuidado pra não exagerar, mocinha.
— Eu sei. — Suspirou. — Preciso ir. Até amanhã!
Luana envolveu ambas num abraço coletivo.
— É nós!
— Sim, é nós.

¹Frase retirada da minha shortfic One Last Chance escrita anos atrás.

Capítulo 25


— Meu casal favorito juntem-se. — Luana pediu, ajustando a lente da câmera semiprofissional, que pegara emprestado da mãe.
Ao final do ensaio, restando apenas ela, e Miguel na garagem, os dois amigos se entreolharam e aproximaram-se.
— Miguel, coloque seu braço ao redor dela.
Ele pôs, sem entender.
— Digam dezoito.
— Seu número da sorte? — questionou.
— Vocês se conheceram quando tu tinhas 10 anos. São oito anos de amizade, que, somados, dá a idade que você fará no dia 10. Tá vendo? — Analisou ambos pela lente, registrando a primeira foto. — Agora, use isto, Miguel, e você beija o rosto dele, . — Entregou-lhe uma medalha de prata.
encostou os lábios na bochecha do garoto, que se embaraçou.
— Miguel tá conforme o esperado. — Sorriu, gravando mais esta imagem. — Pronto. Valeu!
— Treinando para ser fotógrafa?
— Exatamente — desconversou. — Revelarei as imagens para vocês.

***


Com um jornal do estado em mãos, o pai de sentou-se na poltrona da sala, analisando a filha deitada no sofá de dois assentos, as pernas para cima.
— Se sua mãe ver isso, você vai ouvir pelo resto do dia. — Subiu o óculos de grau sobre o nariz e folheou o jornal.
tirou as pernas dali.
— Está doente?
— Não. Por quê?
— Você não para. — Observou-a por cima da armação. — Problemas?
— Acho que a falta deles é que me preocupa.
— Como está na escola?
— Bem. Tenho me dedicado e tirado boas notas. O boletim será entregue semana que vem. — Amassou a almofada sob a cabeça. — Prestaremos um simulado.
— Decidiu qual Engenharia cursará? Existem algumas opções por aqui.
— Ainda não.
Seu pai ficou calado, por um instante.
— Você e o tal do Carlos estão firmes. Confesso que achei que fosse um “rolo’’. É assim que chamam?
— São sinônimos. — Riu fraco. — O que o senhor achou dele?
— Aparentemente, ele te trata como deve. Porém, respeita você longe do meu olhar crítico? Responda a si. Fiquei com um pé atrás com esse rapaz.
— Sim. Temos ideais que se chocam, às vezes, e atitudes completamente discordantes.
— Não faz mais que a obrigação dele.
— O Carlos é mais velho e quer se casar quando estiver estabilizado, o que demorará para eu conseguir. Depois da nossa última briga, tudo tem acontecido com cautela, mas não parece espontâneo. A vontade mútua tornou-se um peso nesse namoro, e tô me sentindo sobrecarregada. Não estava preparada para isso. Daqui a pouco, ele estará me pedindo em casamento.
— A tá fazendo o painho de terapeuta. — Davi entrou no cômodo, interrompendo-a, e segurou seu braço, trazendo-o para deitar consigo.
— Quieto.
— Você não gosta desse rapaz o bastante para se permitir planejar um futuro com ele — o pai deles fez uma ressalva.
— Quero sentir o amor como o seu e o da minha mãe.
— Então suas dúvidas serão sanadas quando você aceitar que é a falta disso que te impede e que esse amor é cativado pela convivência. Ele se forma quando estamos distraídos. Não adianta forçá-lo a penetrar-nos.
— Sou muito nova pra pensar nisso.
— Minha professora disse que o amor não escolhe idade, — refutou Davi.
sorriu, movendo os dedos em sua cabeça.
— Ela tem razão. Eu é que sou frouxa.

Mais tarde, trancou-se no quarto, iniciando uma conversa com Carlos sobre amenidades, e ele a enviava emojis apaixonados. O som de uma mensagem, em outra janela do whatsapp, soou, com o apelido de Miguel. Abriu automaticamente, deparando-se com um vídeo engraçado e uma foto dele segurando um filhote recém-nascido da Blue. Enquanto digitava, Miguel enviou uma de todos os quatros filhotes da gata deitados com ela, e não pôde deixar de zoar a primeira, mesmo emocionada, devido ao tamanho do seu cabelo.
Sorrindo, engatou um diálogo sobre qualquer meio, até o tempo esfriando, porque não importava o que estivesse falando, os dois entendiam.
Carlos perguntou sobre o que achava de irem ao boliche, onde tiveram o primeiro encontro, e ela concordou.

***


— Tchau.
bateu a porta da sala, caminhando para o quarto, e tirou as sapatilhas. Jogou-se na cama, seu cabelo emaranhado, e levou as mãos à barriga. Havia um monte de objetos no canto da estante, esperando-a guardá-los: um varal de lâmpadas em formato de bolinhas; barbante; papel cartão; fita adesiva; tesoura; minis pregadores e alfinetes. Levantou-se, pondo as pernas para fora do colchão, e seguiu para o amontoado. Apanhou as lâmpadas, desenrolando-as, e colocou sobre a cabeceira da cama. Como seu quarto era branco, sem papel de parede, resolveu pendurar fotos na parte de cima, pelo barbante, enquanto cortava um pedaço. Cortou ao redor de cada foto, prendendo-as com o uso dos pregadores pretos.
Apagou a luz, conectando as lâmpadas à tomada, e foi dormir.

Capítulo 26


Relutantemente, Giulia se conformou com a gravidez, parou de usar a cinta, que ocultava sua barriga proeminente, substituindo a calça da farda pela calça legging para ficar confortável. As gêmeas tocaram-na, enchendo-a de carinho, e Luana a cumprimentou no hall de entrada do colégio com um afago na barriga e um beijo na cabeça.
— Voltaram a se falar? — Saíra perguntou ao ver a loura seguir pelo corredor largo.
— Posso ser amiga de todas vocês, me dividindo — disse e sorriu com os lábios fechados. — Meu bebê terá muitas tias para mimá-lo.
Ela concordou.
— Oi. — abraçou Giulia com ternura. — Bom dia! Você tá bem?
— Eu tô me sentindo acolhida. Obrigada, .
— Disponha. Amigos são como âncoras. O me disse isso uma vez. Apoie-se em mim quando precisar.
Giulia retribuiu o abraço.
— Ele é uma graça.
— A Luana vivia dizendo.
— Você não presta atenção nele.
passou de mão dada a Dayana, lendo um panfleto e rindo, enquanto ela olhava de lado para ele, contando uma piada, provavelmente.
— Mas eu dou toda corda a esse garoto, e ele faz isso. Tu visse?
— Estava distraído.
recordou a conversa anterior com o pai. Despedindo-se, colocou as mãos dentro do bolso frontal do moletom e caminhou para a sala.

(Clique aqui para abrir a música da cena. Sugiro que escute!)

Atrás, onde Giulia permaneceu com Saíra, a de cabelo com luzes (feitas recentemente) avistou a figura de cachos desfeitos e escuros, vestindo uma camisa branca, certamente do curso de Fisioterapia, já que a garota à sua frente, tocando-o no pulso, demasiadamente perto e diante da grade do prédio novo, vestia a mesma camisa — afastados, em público, como estiveram um dia. Era a primeira vez que Giulia via Neto, em três meses. Independentemente da distância, tinha certeza que era ele: Antônio, o soteropolitano de sorriso lânguido, olhos cor de mel e personalidade tranquila.
Irrevogavelmente diferente de Diego.

***


Uma turma do terceiro ano ligou a caixa de som, partilhando o tecnobrega, com 'Ex Mai Love', da Gaby Marantos, juntando um monte de meninas de braços entrelaçados, cantando a plenos pulmões. Em seguida, sertanejo universitário e o ritmo da “sofrência’’. Enquanto isso, vendiam salgados trazidos de casa, no pavilhão, a preço em conta, se levado em consideração a finalidade da venda.
assustou , tapando sua visão por um minuto, até que ela descobrisse de quem se tratava. Bagunçou seu cabelo, tocando o ombro no dela, que comia o salgado daquela turma.
— Quer um pedaço? — estendeu o pastel de forma.
— Eu não recuso comida... — Mordeu. — Sabe disso.
— Vive filando bóia¹ lá em casa.
— Que culpa eu tenho se sua mãe é dona de uma lanchonete? E você come por nós dois quando vai estudar na minha casa. Pão dura!
gargalhou.
— Você é de verdade?
— Claro, ué! Trisca em mim. — Ergueu o braço.
Ela o beliscou de leve.
— Só porque tirei um pedaço da sua comida, não desconte com um da minha pele.
— Fresco. — Revirou os olhos teatralmente. — Vá ficar com sua namoradinha.
mordeu o lábio.
— Fico todo dia. Não que eu canse disso, mas ela sabe me dividir.
— Se eu fosse ela, não faria isso.
— Sou inofensivo pra você. “Amigas”, né?
— A não ser que você tenha uma vagina, sim.
— Eita.
— Dayana não sente ciúme?
— Ela tem certo cuidado, assim como tenho com ela, e é natural. Mas nada de paranoia. Não dou motivo.
— Você vingou esse romance.
— Duas pessoas dispostas dão muito certo. Os distraídos que me perdoem, não sabem o que estão perdendo, só complicam.
— Achei que você fosse um deles. Acabou sobrando pra mim.
— Mas você tá namorando o cara da faculdade...
— Não estou apaixonada. Prefiro não falar sobre isso com você, me desculpe.
entortou a boca.
— Ele não obedece à regras. Sabe, nossa fábrica de sentimentos. Sei que não é uma tarefa fácil lutar contra. Você pode vir se apaixonar de repente.
— Perdi a fome. — Deixou o salgado no banco. — O que sinto é pouco pra tanto sentimento que cabe em alguém. Não consigo levar adiante se me falta o principal. Sou movida a tomar decisões que mudarão o meu futuro de alguma forma. Sou um pouco abestalhada, racional e posso não ter nenhum bem material, mas quero sentir o que une meus pais. — Limpou as mãos.
— Esse amor vive em torno de quem nem se dá conta.
— Não acho que o Carlos me ame. E não é um problema a ausência dele.
— Mostre a direção que tu desejas ir, e ele colocará na balança se vale a pena te acompanhar, mas não deixe de fazer ou sonhar algo por causa disso. Nossas amarras são nossas próprias escolhas. Se tô com a Dayana é por vontade nossa.
— Garoto sabido. — Desarrumou seu cabelo, de baixo para cima.
— Lavei-o nesta manhã, e você tá sujando. Assim força a amizade. — Segurou seus braços. — Já conseguiu.
beijou sua bochecha.
— Você ainda fica sem graça. Pensei que a puberdade te mudasse.
iria soltá-la, porém terminou puxando-a pelo ombro, mantendo-a de lado contra seu torso, e retribuiu o gesto.
— Tá corada por quê? Tem medo de um beijo inocente? Não é proibido para menores de 18. — Retirou o braço ao redor dela.
levantou-se.
— Cabeção, nada a ver! Vou me encontrar com meu namorado. A Dayana deve estar procurando você. O intervalo acabou.
— Agora, sou cabeção? — deu uma risadinha. — Então tá, baixinha, irei atrás dela. Vai embora comigo hoje?
— Talvez.
— Já vi que não vai. Espero você em casa, e não se atrase! Sério! — Afastou-se pelo trajeto oposto.

***


— O programa se chama Ensino Sem Fronteiras, realizado pelo governo estadual, em que estudantes das turmas de Inglês e Espanhol, do segundo ano e da rede pública de ensino do nosso estado, concorrerão a uma bolsa de estudos no exterior. Para participar, basta trazer a autorização dos pais ou responsáveis e obter a média, em Português e Matemática, no mínimo, 7. É uma bolsa de seis meses no High School. Para os alunos da turma da língua inglesa, o destino
será o Canadá ou Estados Unidos, e para alunos da língua espanhola, Nova Zelândia, Chile, Argentina ou Espanha. Mais informações serão dadas através de uma reunião com os pais, ou responsáveis, e filhos no auditório, dia 25 às 19h30! — a coordenadora avisou, visitando as salas dos segundos anos.
— E nossos tablets que não são tablets?
Os estudantes riram da pergunta de um deles.
— Deveriam ter sido entregues. Está previsto para o mês que vem. Aguardemos. Não se esqueçam de mostrar a notificação aos seus pais!
Luana virou-se para Elineide, escutando-a dizer:
— Nem mostrarei ao meu. Ele não vai permitir.
— Tenta! Você não tem nada a perder.
— Morro de medo de andar de avião. — Fez uma careta. — Tremo só em pensar! Deus me livre!
— Provavelmente, seja fobia e deve ser tratada. Precisamos superar.
— Faz sentido, mas, mesmo assim, não vou.

Após voltar à sua casa, telefonou para , sem conseguir ser atendida, e para sua residência, avisando que estudaria nesta tarde com ele, e quem se prontificou a dar o recado foi Dayana.
— Ele não esta aí?
O saiu com minha sogra. Seu celular ficou no quarto, carregando — respondeu educadamente.
— Aconteceu alguma coisa com meus tios?
Não exatamente. Desculpe-me, , é tudo o que posso dizer.
— Sou a melhor amiga dele.
E eu sou a namorada, e, nem por isso, estou jogando na sua cara. Deveria saber onde ele está. Hoje é um dia de mudanças.
— O que quer dizer?
Quer deixar outro recado?
— Não. — Irritou-se. — Você é uma ótima secretária. Lembre-me, por favor, de pedir que te promova. Quanto cobra para afastar possíveis ameaças?
Dayana suspirou.
Querida, não existe concorrência. Passar bem!
escutou a ligação ser finalizada e teve vontade de telefonar outra vez e dizer um monte a namorada dele, ainda que tivesse sido educada. E sutilmente sarcástica. Como ela. Pós-Carlos.

¹Filando bóia é uma gíria usada quando um conhecido/parente vai à casa do outro no horário da refeição só para comer.

Capítulo 27


encontrou e o acertou com um tapa, depois outro, e mais um, até que o garoto, assustado e sem entender bulhufas, deteve o ataque repentino, segurando-a pelos braços.
— Perdeu o juízo?
— Estou com raiva. — Respirou fundo.
não compreendeu a grosseria.
— E daí? Está descontando suas frustrações na pessoa errada.
— Tô mais aliviada, obrigada — alfinetou.
— Você me ligou para que?
— A Dayana não deixou recado?
— Que você ligou, sim.
— Avisar que eu não iria estudar e perguntei se aconteceu algo com meus tios. — Entortou a boca. — Ela não quis responder.
— Você tá muito irritada, não dá pra defender.
maneou a cabeça, assimilando.
— Tudo bem. Meu nome é , não sou uma garota frágil.
— Essa imagem não está vendendo. O que aconteceu?
— Terminei meu namoro.
Ela prestou atenção nele, em sua fisionomia, notando sua linguagem corporal enrijecer discretamente, e teve que se perguntar se foi impressão.
— A culpa não é minha se você não consegue segurar um homem.
E isso porque ele nem sabia que fora Carlos quem rompeu.
— Você é meu amigo. Pensei que poderia buscar consolo.
— Acontece que não estarei disponível até você se dar conta — disse e pigarreou — de que a minha vida não gira em torno de você.
— Você é um insensível, seu idiota! — Deixou escapar a incredulidade, com a voz firme, repleta de decepção, dando passos para trás, a mão na alça da mochila, e desaparecendo do seu campo de visão.

Luana resolveu ir atrás de um livro na biblioteca — há meses não entrava nela. Abriu um e outro, folheando as páginas, sentou-se à mesa e começou a ler. Ergueu os olhos quando arrastaram uma cadeira e reprimiu um palavrão.
— Oi — disse Du —, lourinha.
— Até você, Eduardo?
Du deixou uma risadinha esperta escapar.
— Desculpa. Sei que a pergunta é besta, mas por que você tá isolada do mundo do rosa e do batom?
— Não uso batom e detesto rosa. Não faço parte desse mundo fantasioso da sua mente fértil. — Tornou a ler. — E o que você tá fazendo na biblioteca?
— Ler é o paraíso para mim. Quase toda semana estou aqui, trocando de livros. Achou que eu fosse um ignorante?
— Confesso que sim. — Sorriu, olhando sua careta ofendida por cima do livro. — O que vai ler agora?
— As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift.
— Li quando pequena.
— Sabe... — Abriu o livro. — A leitura é um estágio do inferno para o Isac, principalmente quando são os clássicos, mas ele lê e tira notas razoáveis nessas matérias.
— Por que está me contando isso?
— Porque o cara manja da bruxaria, por isso tira notas altas nas exatas.
Luana riu fraco.
— Mas isso não é do seu interesse. Nem sei por que toquei no nome dele. Ele é presença, né?
— É um retardado.
— Ave Maria! Para que tanta agressividade? É só um bicho do mato. A gente doma os cavalos, não é? O Isac precisa ser domado.
— Não trabalho levando coices. Sorry not sorry.
— Vai se inscrever para o Ensino Sem Fronteiras?
— Já me inscrevi.
— Eu quase passei. Droga! Por décimos! Deu uma frustração do caramba! Faltei aula no dia em que viajaram. Depois, descobri que eles também faltaram.
Luana gargalhou, arrependendo-se em seguida.
— Ainda é chato?
— Não mais.
— Nós superamos. Às vezes, perdemos a chance de agora e, depois, conseguimos outra, após um período de aprendizado.

***


(Clique aqui para abrir a música da cena. Sugiro que escute!)

A turma do segundo ano foi liberada mais cedo, e as gêmeas, junto com Giulia, seguiram reto no corredor, passando pelo hall de entrada e dirigindo-se à grade do prédio novo, onde funcionava mais de 60% da UCA. Atravessaram a grade, pisando no asfalto cheio de pedra e resquícios de areia, e subiram uns degraus, avistando a frente do campus, com janelas laterais enormes, e continuando o caminho para o portão.
— Eita! — verbalizou Saíse, analisando o grupinho defronte formado por homens e mulheres.
— Que é?
— São os amigos do Matheus. O moreninho tá ali.
Saíra sorriu, avistando seu namorado e indo até ele, que veio ao encontro dela.
— Ele cortou o cabelo.
— Foi. — Giulia não conseguiu desviar o olhar de contemplação. Neto era bonito, tanto por dentro como por fora, e a cativou de uma maneira que tornou-se insubstituível. — Tirou os cachos.
— Mas continua bonito. Como pode ter deixado um cara desses escapar?
— Porque eu não estava interessada na beleza dele.
— Agora está?
— Agora, estou grávida. — Adiantou o caminhado.
— Cuidado, Maria Giulia. — Tocou sua mão.
Afastados, Neto e outro rapaz observavam as estudantes do Val Campestre; um com secreta compaixão, e o outro, com curiosidade.
— Ei, Giulia! — chamou Matheus, de braços dados à namorada. — Vem aqui.
Ela trocou olhares com Saíse e retornou.
— Francamente, você é uma das grávidas mais formosas que eu conheço. Não é pra massagear seu ego, é fato.
— Ele quer tocar sua barriga — explicou Saíra.
Giulia ergueu a blusa da farda, revelando a saliência da barriga.
— Descobriu o sexo?
— Não.
Matheus afastou a mão.
— Você cogitou tirar?
— Num lapso, sim. — Abaixou a blusa. — Nem sei o porquê não levei adiante.
— Sabe — refutou Saíse.
— É o meu bebê.
— E do galego. — Matheus respirou fundo. — Você foi à festa dele, não? Formei o quebra-cabeça.
— Que seja. — Virou-se para se afastar, vendo, de soslaio, Neto chegando perto deles.
O olhar dele realçava o quão saudável estava, com uma camiseta que contrastava o tom da sua pele e a cor dos olhos, tornando-os misteriosamente esverdeados. Além da altura, nem uma semelhança com o rapaz da grade.
— Quantos meses de gestação? — A pergunta veio do seu amigo.
— Quase quatro.
— É menino ou menina?
— Acho que será menino.
— Você é forte.
— Obrigada. — Mostrou a metade de um sorriso, tornando a se virar e andar.
Neto a seguiu com o olhar.
— Está apertando o punho porque quer amassá-la ou beijá-la? — Matheus questionou a ele em voz baixa.
O amigo escutou.
— A primeira é inviável por causa do bebê.
— Vocês não valem nada. Eu tô me debatendo por estar sentindo toda essa confusão de sentimentos que essa menina me deixou, e o que esses machos querem é safadeza.
— Falando sério, Netinho, a falta que ela te faz já é motivo pra você ir resolver isso. O filho não é seu, e tudo bem. Graças a Deus! Você só tem 19 anos. A única responsabilidade sua é buscar o que falta. Vai lá! — Maneou a cabeça.
Ele esfregou o rosto, a pele lisa sob os dedos e, contrariado, deu as costas aos amigos por um segundo, virando-se em seguida e caminhando com passos determinados para fora do campus. Atravessou a rua, diminuindo a euforia e tentando organizar a confusão, porque ela estava logo ali, do outro lado, sob a tenda, onde funcionavam quiosques à noite, esperando um ônibus.
Saíse despediu-se de Giulia, alegando que iria chamar a irmã, enquanto a garota assentia, notando, depois, a presença de Neto.
O coração se contraiu tão apertado que lhe faltou ar.
— Cuidado. — Ele a sustentou suavemente. — Melhor?
— Não aparece de repente, por favor. Assim, você me mata.
— Deus é pai! Não haveria como termos esta conversa. Acho que te devo uma, não é?
— Você não me deve nada, mas eu gostaria disso — repetiu as palavras ditas por ele meses atrás, e o olhar de Neto se iluminou, os lábios curvando preguiçosamente.
— Bom, eu também. — Suspirou, assumindo a seriedade necessária. — Nossa última conversa foi mega desagradável.
— Cheio de mágoas.
— Eu senti raiva, mas não pude descontar em você, então me frustrei, e a notícia tomou um peso maior.
— Não fui honesta contigo. Errei feio nesse ponto.
— Sim. — Não desviou os olhos dos dela. — Porém, tanta novidade aconteceu na sua vida, que lidar com elas, aparentemente, sozinha, foi um baque. Admiro sua força.
— Eu também.
Neto tocou a boca com os dedos, pensativo.
— Contou ao pai do seu filho?
— Não.
— O que está esperando?
— Ele não lidará bem com essa notícia.
— Você lidou? No início.
— Eu quis me jogar da ponte e fugir, mas pus a mão na consciência e percebi que a culpa é nossa.
— Concordo. Dos pais. Nenhum filho é feito sem os genes do outro.
— Vou dizer quando estiver pronta, não se preocupe.
Neto deu um passo para frente.
— Conheci alguém. Uma mulher que mexeu comigo no primeiro momento, com sua lábia culta e postura, e sou o tipo de pessoa que não foge. Gosto de somar meu eu com que quer ser somado. Ela tem 23 anos, tá na faculdade e não espera um filho. Seus problemas são mais leves. Além de se trazer, dividiu sua história de vida comigo, e fiz o mesmo. Nós saímos algumas vezes e deu tão certo quanto dois amigos que têm “coisas” em comum, mas não há química. O encantamento que me deixou virado do avesso por uma moça grávida, mais nova e que dividiu uma primeira vez comigo.
Giulia sorria. Os olhos úmidos.
— Se você não falasse sobre mim, eu iria desmaiar.
Neto a envolveu nos braços, e ela respirou seu cheiro; de perfume, pós-barba.
— Senti sua falta.
— Senti muita falta sua, Gi... — Encostou a testa na dela. — Minha menina.
Giulia roçou os lábios nos seus entreabertos, mais experiente que na primeira vez, cobrindo, ainda que nervosa, a boca dele.
Neto a tocou na nuca, reconhecendo o encaixe, o gosto e aprovando o modo como era beijado — com saudade.

***


estava na defensiva — poderia culpar o término do seu primeiro relacionamento sério, a indiferença de ou a si. Na dúvida, culparia a si. Afinal, se todo seu “mundo” desabou sobre sua cabeça foi devido às próprias decisões racionais tomadas. Ou seria um pouquinho, oculto, emocionais? Em incessante busca do sentimento que unia os pais e pelo interesse ter virado pólvora, não tinha certeza de mais nada. A não ser que foi chutada da vida de Carlos. E que, apesar do orgulho ferido, sentia-se bem; aliviada.
Não o enganava e não mentia para sua verdade.
— Você quer carona? — Luana a trouxe ao presente. — Ou vai com o ?
— O foi pra puta que pariu.
Luana arregalou os olhos.
— De novo?
— Nunca o mandei pra lá. Nem em pensamento. Mas, hoje, ele mereceu.
— Essa briga tem nome?
levantou-se, jogando a mochila no ombro.
— Não.
— Parece que a tensão está soltando faíscas, até o momento de explodir. Não sei como conseguem aguentar essas quedas.
— Muita paciência.
— Com certeza — resmungou, ciente de que não entendia. — Vai sangrar e, provavelmente, doer de uma forma que você pedirá para parar, mas será necessário.
olhou, por um longo momento, para a loura.
— Eu vou chorar? — Deu uma risadinha debochada. A briga com não era a primeira discussão deles. Amanhã estariam de pazes feitas. — Você bebeu hoje.
— Ambos vão chorar. é sentimental demais.
— Tem um coração de pedra aquele filho da mãe.
— Fala isso não.
— Certo. — Suspirou. — Vamos esquecê-lo.

Capítulo extra


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

— Tu quis me ver — disse Carlos, contente pelo interesse ser recíproco.
Ultimamente, nenhum deles gastava muito tempo juntos, e a relação esfriava.
— Pois é. — pigarreou, sendo beijada demoradamente com um selinho. — Preferi não atrapalhar seus estudos.
— Não, tá tudo bem, amor. — Sorriu, segurando sua mão e tocando os dedos dela, sentados na área de lazer do prédio em que Carlos morava.
No sétimo andar ficava seu apartamento, dividido com três pessoas: irmão mais velho e dois amigos. Sua família vivia em Recife, cidade natal de todos eles. O condomínio era constantemente alugado por outros estudantes de fora.
— Não quer subir?
— Não. — Mordeu o lábio. — A vista daqui poderia ser para o rio.
Ele sorriu.
— Eu me mudaria para a orla, quando estivesse formado, se fizesse parte dos meus planos permanecer no interior. Talvez, na velhice, dê vontade. Por enquanto, gosto de agito e de estar perto da minha família.
— Você nunca me contou.
— Dividi metade dos meus desejos contigo. Isso foi exceção.
— Mas é importante. Então há um prazo de validade para nós?
— Não, se tu for comigo. — Entrelaçou a mão na sua, encostando os lábios nela. — Este é o ano da sua formatura no colégio. Ano que vem estará indo para a faculdade, e quero que preste vestibular para lá. Podemos morar juntos... Tá, não, mas tu podes morar com uma amiga minha, que estuda em Recife. Ela é prestativa, gente fina...
— Carlos, que ideia é essa, seu maluco?
— Tu me acusas de maluquices, só que não há nada de absurdo nisso. Nós estamos namorando, e a distância é a causa de uma porcentagem dos rompimentos dos relacionamentos. Temos menos de meia semana para nos vermos, ainda que estudando no mesmo campus, imagina longe!
— Eu nunca conseguiria convencer meus pais. Mal querem escutar sobre Moda.
— Falta falar a língua deles. Foi assim com meu irmão. Ele almejava Administração, e meus pais, um filho médico. Não deveriam direcionar seus anseios e frustações em nós. Não somos robôs e não temos obrigação nenhuma de nos tornamos adultos frustrados como eles.
— É um tanto egoísta pensar apenas em mim.
— Pois eu chamo de egoísmo ser usado para satisfação pessoal. Eles acabaram se conformando com um administrador de empresas em casa e estão gratos por terem dois filhos na faculdade. Somos seres capazes de opinar, amor. Tu não serás uma adolescente por toda a vida. Terá que caminhar com as próprias pernas uma hora.
posou a testa na mesa. As mãos do namorado foram à sua cabeça.
— Não vim aqui pra termos este tipo de conversa. Só me faz ter menos coragem e mais certeza de que o certo é o que está na ponta da minha língua, provando o errado em nós.
— O que há de errado? Não me diga que a diferença de idade te fez ter peso na consciência. Isso é besteira, para mim.
— Você vai se mudar, e não tenho perspectiva de uma vida fora de Campestre. Não enquanto for dependente. Você planeja um futuro maravilhoso para alguma garota que se contenta com o que a vida dá. Quero que o mundo me conheça! Não ficarei numa cidade pelo resto dela, sobrevivendo ao estresse e matando meus sonhos.
— Tu sendo dramática. — Umedeceu os lábios. — Só me mudo em dois anos. Possuo muitos projetos de me jogar no mundo e dar uma volta por todos os continentes. Sabe disso, . Tá tentando enganar quem?
— O que quer dizer?
— Não é necessário tanto para notar que, de desculpas, sua mente está cheia. Tu queres algo que, na sua cabeça, eu não poderia dar, mesmo que tentasse.
— Você me entende?
Carlos ergueu as sobrancelhas.
— Entendo que, infelizmente, há uma menininha medrosa na minha frente.
abriu e fechou a boca.
— Não sei se te mando embora ou beijo. Se me bato por ter te conhecido, praguejo o dia em que você me atacou, e aquilo atiçou uma curiosidade em mim, ou por ter perdido tempo nisto. — Apontou para os dois. — Cassete! É difícil usar a honestidade?
— Não me fale sobre caráter quando você cometeu atitudes que provam a falta dele!
— Eu não te traí! Não me lembro disso... — Esfregou o rosto. — Achei que fosse passado. Tu estás remoendo o que já se foi.
— Existem muitos nós. Por que não dissemos antes que tornar tudo sério seria um desastre?
— Porque tu querias uma confirmação de que eu não estava brincando.
— Você está arrependido dessa droga de namoro frio — desabafou.
Carlos cruzou os braços.
— Não afirme o que não foi dito. Aja como uma moça crescida e assuma que cansou. É simples. Cada um segue seu rumo.
— Eu não quero brigar. Não peço que sejamos amigos...
, sou eu quem está terminando com você. — Levantou-se abruptamente. — Vai pra sua casa.

Capítulo 28


[Hoje]
Nova mensagem de .

travou a tela do celular e pôs sobre a escrivaninha do quarto. A maneira agressiva como ela o tratou o irritou o suficiente a ponto de não abaixar a guarda facilmente. Não era assim que funcionava — descontar no primeiro que visse pela frente.
A mão de Dayana tocou seu peito, o corpo dela, esguio, movendo-se inconscientemente para mais perto do seu. A porta do quarto estava fechada, pois a mãe de não se importava em dá-los intimidade, contanto que não tornassem a residência um motel. Ele escutou a respiração serena contra seu ouvido, o cabelo castanho escuro cobrindo o rosto de traços suaves.
Acariciou, com os dedos, o braço ao redor da sua barriga, perdendo-se no gesto por minutos, até ela o segurar, abraçando-o com considerável força para alguém que dormia profundamente.
— Mexe no meu cabelo — pediu sonolenta. — Você tem o dom.
— É prática. — Sorriu com a boca fechada, beijando-a na testa demoradamente e envolvendo a outra mão em seu couro cabeludo.
... — Abriu os olhos e ergueu a cabeça, fitando seu olhar atento. — A cada dia, eu me apaixono mais.
— É recíproco.
Dayana sorriu, voltando a deitar a cabeça, e ele colocou a sua sobre o braço. Virou-se, encarando o celular, que vibrou há pouco. Buscou-o, destravando a tela e tocando na foto de um amigo. Em seguida, após breve leitura, conferiu a mensagem deixada há cerca de uma hora:

Tamborete: Vc não é um idiota. Eu sou.

Realmente era. E ele mais ainda por estar averiguando seu estado arrependido através dos emojis enviados pela garota. Entretanto, cansado estava de pensar, então apenas bloqueou qualquer empecilho que adiava seu sono da tarde. Deixou a imaginar fatalidades, enquanto adormecia nos braços da namorada.

***


Luana ligou para , avisando sobre a ida ao clube aquático à tarde para aproveitar o dia de folga relâmpago. Os integrantes da banda iriam e levariam um violão — esse seria , que não a respondera no dia anterior. Ela estava se perguntando o quão besta foi o desentendimento, parando para refletir a respeito. Afinal, uma amizade de oito anos não se estremece pela menor das causas.
Correu para o banho, visto que o horário não contribuía, trocou de roupa, vestindo um short jeans perdido entre as demais peças e uma blusa solta, já que as regatas marcavam suas banhas imaginárias, e calçou a rasteirinha. Alcançou os produtos necessários para uma exposição ao sol, antes de espalhar certa quantidade de protetor solar pelo rosto, colo, braços e passar rímel à prova d'água nos cílios para espantar o olhar caído e de preguiça. Jogou tudo numa capanga, usou o óculos de sol da mãe e saiu direto para o ponto de ônibus.

No clube, em meio a poucos visitantes, sentados à mesa de aço sobre a grama, Du e Isac conversavam trivialidades, vestidos com roupas básicas.
Du levantou-se, abrindo a bermuda e deixando os chinelos de lado. Enquanto isso, o outro avistou Luana retornar da piscina com um biquíni acomodando seu corpo pálido. Não imaginava vê-la vestindo pouca roupa e desviou o olhar, dando de ombros.
— O tá chegando. Foi buscar Dayana em casa! — notificou Luana, dando um abraço na amiga, ao se enrolar na toalha. — Você tá sem rouba de banho?
assentiu.
— Não vou cair na piscina.
, estamos num clube pra se divertir. Não tem que ter vergonha. É só imaginar que Eduardo e Isac são gays.
— Ei! Alto lar! — defendeu-se Du. — Não vou “secá-la”. Meus instintos estão controlados.
sorriu.
Eduardo era uma gracinha.
— Não faz mais que sua obrigação! Oras! De qualquer forma, não tô a fim.
— Mas trouxe um maiô? — Luana insistiu.
— Sim.
— Então pode mudar de ideia. — Chamou o garçom, que servia outra mesa.
Do outro lado havia duas piscinas — uma rasa, e a outra, funda, os tobogãs ligados e crianças escorregando com os responsáveis.
Escutaram passos aproximando-se atrás deles e viraram a cabeça, encontrando um casal de mãos dadas.
— Demoraram. Estavam se pegando no carro? — A incisividade provocativa de Isac ocasionaria guerras.
A não ser que fosse verdade.
— Não — respondeu , sério.
Dayana pôs a bolsa de palha sobre a mesa, sua saia longa sendo assoprada pela corrente de ar e a blusa de renda cobrindo o biquíni florido.
— Bora pular todo mundo junto. — Du sugeriu.
Luana deixou a toalha na cadeira, Isac tirou a roupa, e Du caminhou para a área das piscinas. Dayana deslizou a saia pelas coxas, revelando a melanina bronzeada, livrou-se da blusa e guardou o óculos de sol.
puxou a camisa pelas costas, passando-a por sobre a cabeça, e estendeu a mão à garota.
— Você não vem, ? — Luana perguntou.
— Não. Vão. — Sentou-se, e o garçom serviu a mesa deles com batatas fritas, molho e refrigerante.
Os quatro andaram em direção à área das piscinas, aproximando-se de Du, que estava em pé na borda. Contaram até três, assumiram velocidade e pularam, despejando água para fora, em meio a gritos.
Viu-os emergirem e tomou um gole da coca zero.
Pedro Lucas sentou-se na outra cadeira, trazendo consigo o cheiro de protetor solar, que a lembrava maresia.
— Esses caras são uns putos. Só chamam em cima da hora.
— Né?
— Por que tu aqui? Cartão vermelho?
o encarou um tanto surpresa e horrorizada por estar sendo perguntada sobre isso por ele.
— Tô de cartão verde. — Riu fraco. — A água tá fria...
— Conta outra. — Serviu-se com guaraná. — A Luana tá vindo, e eu tô indo.
A loura deteve-se à mesa, beliscando as batatas fritas, e enxugou-se. Enrolou o corpo na toalha e sentou-se de frente para .
— A água tá quentinha, uma delícia, e isto também. — Mastigou.
— A Dayana é a personificação da atração física. — avistou a morena pulando na piscina.
— Ela tem o corpão. Nem parece com uma garota de 17. — Deu de ombros. — Os únicos olhos voltados para ela são os de , que tá caidinho.
— Formam um casal bonito.
— Você acha?
— Sim, veja. — Maneou a cabeça para a piscina em que Dayana flutuava com os braços ao redor do pescoço de .
— Isso te incomoda?
— De jeito nenhum. É meu melhor amigo.
— Apesar do título, é uma pessoa que poderia mexer com você, se houvesse brecha. O que quero dizer é que ele está namorando, e você tem que dividi-lo com ela e com a família dela agora.
— Não vivo em prol do que o faz. Tenho uma vida. Até há pouco tempo, tive um namorado. Ele continua sendo parte dela, e isso é o que importa a mim.
— Ok.
— Não é como se ela fosse roubá-lo.
— Não é — concordou. — Está com ciúme? Parece incomodada com a afeição deles.
— Ele me ignorou. Estou tentada a socá-lo.
— Vocês discutem com frequência.
— O tá me irritando, e tô menos paciente.
— Por que vocês não têm uma conversa franca? Falta diálogo. Ao invés de usarem força bruta, falem e escutem. Não é tão difícil.
— O que ele tem a me dizer? Um pedido de desculpas?
— Por ter aguentando seus tapas? — refutou impiedosa.
— Você mudou de lado, linda?
Luana revirou os olhos.
— Tenho 16 anos e ajo com maturidade o suficiente pra assumir a droga dos meus erros. São inúmeros defeitos, falho constantemente, mas não tento culpar o outro, porque ele é meu amigo, e nem desconto o término do meu namoro nele.
— Você tá brincando? Não culpo o por eu ter terminado com o Carlos, até porque foi o Carlos quem terminou comigo, e o não possui nenhuma relação com isso. Você enlouqueceu.
— Joguei a dúvida no ar, e você a alcançou.
— Não tenho nenhuma dúvida. — Zangou-se. — Ainda gosto do meu ex, mas não nos merecemos. O que sinto pelo é completamente diferente; fraterno.
— Sabe que não precisa confessar isso e nem se estressar. Não quero comprar uma briga. Porém, se está desabafando a respeito, , por favor, apenas preste atenção. Não diga tudo o que vem à sua mente, antes de ter clareza.
— Eu não consigo enxergar com clareza.
— Avisei que iria sangrar, e a ferida nem se abriu ainda. — Terminou de comer. — A Dayana está vindo.
visualizou a morena andar até elas.
— Acho que tá na hora de ir pra casa.
— Eduardo, vem aqui! — Luana gritou o garoto, que olhou para ambas e saiu da piscina.
Ele atravessou o espaço vazio, pisou na grama e caminhou para a mesa.
— O que é, mulher?
— Tenho um plano pra você.
— É diabólico? Não me envolva.
Luana negou, levantando-se, e apontou para . Ele capitou rapidamente, aproximando-se da mais baixa, e balançou a cabeça.
— Não, não, não, não! Eu trouxe só esta roupa e voltarei no ônibus.
— Tem carona.
— Estou menstruada.
Du paralisou, e Luana tirou o óculos dela, pondo sobre o nariz.
— É mentira, e a água corta o fluxo. Vai, Eduardo!
— Calma! — Ergueu as pernas de , deixando as rasteirinhas caírem, enquanto Luana ajudava, e a colocou entre seus braços, correndo em seguida com uma escandalosa.
, cale-se ou nos deixará surdos! — Luana pediu, rindo, logo atrás.
Du nem parou, pulou com ela na piscina.
— Poxa! — emergiu, afastando as mechas molhadas no rosto.
— Tá tudo bem aí, ?
— Nem deu pra tapar o nariz! — resmungou, nadando para a borda.
Deram risadas.
— Vamos brincar de briga-de-galo.
— Eu vou embora.
— Você vai comigo, doida. — Sentou-se na borda. — Subo nos ombros de Du, e a escolhe entre Isac e , se forem brincar. São três rounds.
— Sou pesada.
— Não invente. — Entrou na água.
— Eu não quero. — Tomou impulso para fora, encharcada, e torceu a blusa.
apoiou os braços na borda, o cabelo grudado na testa, seu olhar muito transparente, o que não facilitava que uma pessoa distraída e leiga conseguisse discernir algo valioso.
o viu analisá-la e ruborizou. Pela primeira vez, sentiu vergonha por estar com as vestes molhadas. Como se estivesse seminua.
— Para de me olhar — pediu em voz baixa, erguendo o pé para empurrá-lo na piscina, e segurou sua panturrilha.
— Senta aqui. — Bateu na borda.
— Não me puxa, senão, eu te mato.
— Ursinha carinhosa — zombou.
— Bobão. — Agachou-se, sem por os pés na água. — O que você quer?
— Senta. — Virou-se de costas, apontando para os ombros. — Aqui.
— Sou gorda e vou afundar nós dois. Não tô me sentindo bem.
, nós já conversamos sobre isso — falava baixo. — Não há nada de errado com seu corpo. Seu físico é tão seu quanto minha vontade de comer muita pizza. E tô me importando com comentários ou olhares tortos? Acha que sou o gostoso do clube? Tem algo de errado contigo. Porque, comigo, tá tudo certo. Eu tô bem, minha namorada também, só falta minha melhor amiga se sentir assim.
— Mas você não engorda quando come umas trezentas fatias. Eu falto explodir!
mordeu o lábio.
— Aposto que, se eu comesse essas trezentas, também explodiria. Falando sério, nenhum de nós se importará se você quiser banhar de roupa, short, biquíni... Só se for sem nada, porque nem eu resistiria. — Brincou para vê-la sorrir. — Quero que ponha uma coisa na sua cabeça: não existe nada de errado em você.
— É a sua forma de dizer que me acha bonita?
não respondeu.
— Vamos brincar. — Acomodou as pernas nos ombros dele, sentando-se ali, e sentiu as mãos do garoto tocarem seus joelhos. — A Dayana tá olhando pra gente.
— Eu me resolvo com ela.
Brincaram por vezes, mudando de posições e dupla — trocou com Luana e, depois, trocou de ombro, sentando-se no de Isac. Em meio às trocas, Dayana veio, ficando no de , até cansar e pedir para irem embora. O sol estava reservado entre as nuvens quando, finalmente, se entregaram ao cansaço, finalizando o dia na piscina. Começaram a sair para comer, antes de partirem, e mergulhou uma última vez.
Ao emergir, viu a figura quieta e de rosto avermelhado, para uma pele dessa melanina, olhando-o.
— Quer discutir a relação? — gracejou.
balançou a cabeça.
— Temos brigado, ultimamente.
— Discutimos, às vezes... É besteira.
— Você me ignorou ontem e durante o dia inteiro.
— Estava evitando uma briga, se não percebeu meu lado. Francamente, , tive que aturar seu excesso de raiva, e isso me deu raiva, porque, além de você achar que tenho culpa dos seus problemas, desconta em mim.
— Não te culpo por nada.
— Então tá. — Afastou-se, subindo a escadinha. — Você não vem?
nadou para a borda, apoiando o corpo nela e vendo-o andar. Sentiu um nó no peito, como se a distância física entre eles, agora, equiparasse a entre suas almas — a ponte que os ligavam perdendo força nas cordas e caindo. Não foi assim com Carlos, quando teve que ir, e nem com qualquer outro cara, ou alguém, apenas com .
Cometeria loucuras em prol dele para fazê-lo feliz. E só cometia quando havia solidez — o amor.
Havia amor ali, rodeando, respirando, envolvendo e guiando ambos; de formas distintas, numa lonjura doída, mas estava lá.
Entre os dois.

Capítulo 29 - parte I


No dia primeiro de junho, faltando catorze dias para o aniversário de , ela estava convicta de que necessitava agir, e logo! Sem controvérsias, receio e/ou pretextos. e conversavam, porém a distância muda existia — palavras não externadas, vontades secretas, receio. Zelavam a amizade com todas as maneiras viáveis e forças, convencidos de que teria quer ser o suficiente, ou agiriam como estranhos no final da semana. Tentou falar tantas vezes, mas se aquietou, sem ter noção. Descobriu, e demorou a reconhecer, que sentia ciúme da relação dele, da atenção que direcionava à namorada, oferecendo a ela menos de um terço. Menos do que recebia quando era só dois.
Por isso, preferia números pares.
— Você tá assim por estar solteira e sentindo falta da atenção do seu ex. Carente de afeto. Não se confunda! — criterizou Luana, na manhã anterior, pelo telefone.
— Não é carência. — Colocou o travesseiro sobre o rosto. — Tô confusa. Nunca senti nada que não fosse fraterno por ele. Ciúme, para mim, não existia.
— Mas passou a se incomodar quando chutou da sua vida o cara da faculdade. Porque o virou uma possibilidade ou porque está tão cega que não enxerga o óbvio: você quer ser o centro dele; ter prioridade.
detestou ter ligado para Luana e, ao mesmo tempo, não, desde que sentia-se capaz de tomar uma decisão com o mínimo de clareza. E foi o que pretendia naquela segunda, revivendo os recentes momentos ao lado de — o dia no clube, a mensagem. Era ridículo! Voltou para casa, após não tê-lo visto no colégio, sozinha, estudou o dia inteiro, para compensar a negligência nos assuntos e mudar o foco dos pensamentos, roeu as unhas, lixou, arrancou o esmalte com os dedos, pintou, e as horas não passavam.
Seu pai a lembrou que ela estava livre, se quisesse ir à casa de , provavelmente, imaginando que havia algo de errado.
— Vão ficar bem?
— Eu gostaria.
Ela foi até a casa dele, é verdade. No entanto, somente à noite, quando refez todo um discurso.
Discurso esse que não serviu.

Capítulo 29 - parte II


estava tocando violão na garagem quando a mãe dele atendeu a porta. A luz acesa, e o garoto sentado num banco de madeira, com Blue perpassando em seus pés. O corpo curvado e os braços firmes apoiando o instrumento no colo.
— Entra — falou, de cabeça baixa. — Você demorou.
acariciava o pelo da gata, agachada, e se empertigou ao escutá-lo.
— Eu não disse que viria.
— Não disse, mas suspeitei. — Parou de tocar. — Afinal, só um cego não vê que estamos estranhos desde a semana passada.
— Então é óbvio.
— Não deveria estar impressionada. Você é mais lenta que eu. — Guardou o violão na capa, colocando-o sobre a tábua.
— Tu tens o direito de falar o que está pensando, e escutarei. Não ficarei ofendida se me achar uma vadia.
— Não pretendo manchar sua reputação. Provável que esteja toda errada, para ter vindo até aqui.
— Confesso; minha confusão, assumo que fui idiota, mas não vim para ser crucificada.
mordeu o lábio.
— Eu tô cansado. Quer mesmo ter esta conversa agora?
— Vai logo.
— Não sou eu quem veio em busca de respostas. Meus sentimentos sempre foram claros para mim.
Ela estreitou o olhar.
— Entendo.
— Não, você não entendeu.
— Acho que você está confuso como eu estou. Sinto ciúme, não quero ter que te dividir com outra garota e me irrita o fato de eu estar gostando muito do meu melhor amigo. Alguém que eu deveria proteger de mim. — Aumentou a voz. — Evitei, durante todo o tempo, me aproximar emocionalmente de você, porque havia esse risco. E eu não queria arriscar.
não parou de analisar cada traço do seu rosto oval — os olhos, a curva suave dos lábios, sobrancelhas franzidas.
— Eu não tive medo.
— Mas eu morro de medo de te perder! — protestou. — Poderia não ter dado certo, e nunca seríamos como antes.
— Não somos como antes. Nossa infância ficou para trás.
— Eu gostava do e da de onze e dez anos.
— Será que estariam orgulhosos da gente?
Após o silêncio sepulcral, ela confessou:
— Não. — Arrumou o cabelo, deixando atrás das orelhas. — Pode falar agora.
— Tu cismou que quer que eu admita. Eu fui apaixonado por você. Não sempre. Aconteceu. Estava a fim.
balançou a cabeça, estupefata, com os olhos enchendo d'água.
— Por que não me contou?
— Você teria me enxergado de outra forma? Teria dado uma chance ao que nascia dentro de mim? Adiantaria? Deixei subtendido. Tivemos oportunidade, mas não rolou. Acaso não se lembra do dia em que tentou me consolar?

Vi-a inclinar o corpo, chamando minha atenção, e descer o rosto para perto do meu, umedecendo os lábios.
Fiquei muito quieto, ciente do gesto, o olhar escurecendo.
Nossos narizes se tocaram, os movimentos delicados, e seus lábios roçaram os meus, que se abriram. manteve os olhos fechados e as mãos no colchão. Encaixava a boca entre a minha e se afastava, conhecendo. Tive que me conter para não segurá-la pela nuca e frear esta agonia. Poderia assustá-la com minha intenção. Não cabia a mim forçá-la a me beijar. Ela não cedeu. Enterrou o rosto em meu pescoço, suspirando, e coloquei o braço ao seu redor para me acalmar.


— Eu não saberia como agir no dia seguinte, se cedesse. O beijo, provavelmente, nos seguiria e confundiria nossas atitudes. Não sentia metade do que sinto agora. É injusto! Nós tivemos a chance na hora errada. Não sou obrigada a gostar de alguém e não consigo me desapaixonar quando quero.
— Ocorre nas melhores amizades. Não se desespere. Não foi a primeira e, certamente, não será a última. Surgirão outros, sabe disso. O que a gente poderia ter tido não descobriremos, mas o que possuímos agora é maior e real. Talvez, se tivesse noção antes, ainda teríamos ficado amigos. Você escolheria o velho ao invés do novo. Porque ele te assusta.
— Tô me sentindo péssima.
O garoto tocou seu ombro.
— Lutei contra durante meses. Doeu, sangrou, mas superei. Você vai superar, . Vai conhecer gente nova e esquecer essa história.
— É a nossa história. Não me peça para esquecê-la.
— Eu não sou mais apaixonado por você. — Engoliu em seco, sério. — Tenho uma namorada dormindo no meu quarto, agora, e eu estava lá com ela. Esperei esta conversa há tanto tempo que até parece bizarro que finalmente tenhamos tido. O que quer que eu te diga?
— Nada. — Mordeu o lábio trêmulo. — Sabe, foi o Carlos quem terminou comigo. Eu já não conseguia mais manter um relacionamento em que me faltava algo. Para mim, não tinha nome... Até hoje. — Encarou as íris de cores , num último desabafo silencioso. — Lamento por tudo...
— É passado. Continuo sendo o , desiludido, mas tô aqui e ficarei por muito tempo, se quiser.
apenas o abraçou apertado, desfazendo-se nos braços dele, chorando em voz baixa e permitindo que as lágrimas molhassem sua camiseta velha. Dobrou os dedos no tecido das costas e enterrou o rosto em seu pescoço, inalando seu cheiro. Quando a mão de posou em sua cabeça, não conteve o soluço mudo.
Ele a segurou por muitos minutos, enquanto aproveitava para se recompor, sem que desse atenção ao seu nariz vermelho.
— Volte lá... — Para sua namorada, concluiu para si. — Não conseguirei dormir.
— A Dayana vai embora quando acordar. Boa noite... — Beijou-a na cabeça. — . A gente se vê amanhã.

Capítulo 30


— Matriculei-me no curso de violão.
A mãe de olhou para a filha.
— E seus horários? Não ficará sobrecarregada?
— Seu marido prometeu me ajudar a administrar meu tempo e, muito provavelmente, largarei no meio. Só quero saber tocar até o dia do meu aniversário.
— Por que esse súbito interesse?
— Tenho me interessado por tanta coisa, que, se eu contar, mainha, a senhora não vai acreditar.

***


— Então você está tendo aulas de violão?
Luana arqueou a sobrancelha para , tomando sorvete no shopping.
Giulia analisava as vitrines das lojas, enquanto elas estavam sentadas, secretamente em busca de um presente de aniversário para .
— É o que você ouviu.
— Por que todo esse interesse?
revirou os olhos, dando de ombros.
— Todo mundo deu pra perguntar isso. Alguém não pode se matricular no curso porque quer?
— Você nunca quis. — Limpou a boca com o guardanapo. — O poderia ser seu professor.
— Tá ocupado, cuidando da própria vida.
— Você é a melhor amiga dele.
— Não quero que ele me ensine. Tenho uma música para aprender a tocar.
Luana a olhou fixamente.
— Que música é essa?
— Sobre a gente — confessou. — Tô usando óculos pra ver se, dá próxima vez, percebo o que está bem embaixo do meu nariz.
— Na verdade, o esteve ao seu lado — corrigiu, suspirando em seguida. — Você não é a primeira garota a fazer isso.
— Lembrarei-me disso quando for ensinar aos meus filhos.
— Ainda está confusa?
— Sim, tô gostando do meu melhor amigo. Meu cérebro vai dar pane.
— Você reconheceu. O estava apaixonado.
— Tu sabias?
— Eu via o modo como ele te olhava com os olhos parecendo os de uma criança numa hipnose com doce... — Soltou uma risada nasalada. — Aquilo durou, mas sumiu.
— É como falei a ele: não sou obrigada a retribuir. Não dá pra apontar uma seta e escolher fulano ou ciclano. Às vezes, me apaixono pelo cara do ônibus e não pelo meu melhor amigo. Droga.
— Relaxa, ! — Colocou o braço ao seu redor, beijando-a na bochecha. — Você não tá enganando ninguém e, da mesma maneira que conheceu seu ex, pode conhecer outro cara. O não tá cobrando absolutamente nada. Só não quer que fique esse clima estranho entre vocês, apesar de ser complicado. Ele é uma graça, e não digo à toa.
— Que seja.
Distante dali, Giulia conversava pelo telefone e deu uma risada, antes de entrar na loja.
— Ela tá bem, né?
— Nem parece a Giulia do início do ano, em todos os sentidos.
— O cara que ela tá ficando contribuiu.
— Ele é uma graça.
Luana sorriu.
— Qualquer semelhança com o é mera coincidência. São duas réplicas de garotos que não se reproduz mais. A não ser que tu passes a vida inteira procurando. Vocês tiveram uma senhora sorte. Duas cagonas!
— A Giulia, sim, após “quebrar a cara”.
— E você também, tman, depois de descobrir que arriou, os quatros pneus e o estepe, pelo . Parece que o jogo virou...
— ...Não é mesmo? — Achou graça. — tman é um apelido novo? Luluzinha, vou derrubar seu clube.
Luana a abraçou.
— Se eu ganhar a bolsa do Ensino Sem Fronteiras, sentirei muita falta sua. Quem é que vai encher meu saco?
— Sei lá. Nem quero pensar nisso. — Viu Giulia deixar a loja sem nenhuma sacola.
— E aí? Vamos assistir ao filme? Dispensei o Neto só pra passar a tarde com vocês.
— Estão cem por cento?
— Ele quer que eu resolva essa história com o Diego, mas no meu tempo. Estamos numa boa, devagar. Desta vez, o sentimento é mútuo.
— Fico feliz, Gigita. Estava na hora. — A loura tocou os braços de ambas e seguiram pelo corredor do shopping.

Em mais um ensaio, com show previsto num novo boteco na orla da cidade, estava deitada no encosto, a cabeça inclinada sobre o ombro de Luana, enquanto a loura tocava sua guitarra desconectada da caixa de som. A garagem ficou deserta, exceto por elas. e Dayana entraram há meia hora dentro da casa por algum motivo desconhecido. O desânimo de , devido a frieza da sua amizade com o garoto, mais o sono acumulado, a deixou cansada até para cogitar o porquê de demorarem tanto.
— Trouxemos lanche. — A voz de Dayana a despertou dos devaneios preguiçosos. — Vocês não querem?
— Não, obrigada.
deve estar doente para recusar comida — disse Luana, tocando na testa da amiga e levantando-se para se servir de sanduíches.
— Estou cansada. — Afundou o corpo no encosto, cruzando os braços. — Sem fome.
sentou-se ao lado da namorada, mastigando o sanduíche, e Luana fazia o mesmo.
— Tá muito bom — ele falou, fitando o pão na mão. — Muito mesmo.
fechou os olhos.
— Vai sobrar.
— Tem suco, — insistiu Luana.
— E sanduíche de atum. — Dayana avisou.
— Ela não gosta. — e Luana disseram ao mesmo tempo.
A loura riu.
— Mas tem de catupiry.
abriu um olho.
— Acho que posso abrir meu apetite. — Arrastou-se e levantou-se.
— Ela não resiste.
— Se o se vestisse de queijo, capaz da não resistir a ele. — Luana brincou, na inocência, como se fosse natural aquilo.
O silêncio durou pouco.
— Se fosse o Isac, eu teria um infarto. — engoliu o sanduíche, sentindo a leveza retornar.
Luana franziu a testa, com uma interrogação invisível na face.
— O Isac tem temperamento de um ogro. Ele é bem difícil de lidar. — Dayana comentou.
— É nada — contrapôs . — Ali é só falar a língua dele. Ele gosta de provocar. Como um mecanismo de interação, sabe? Ao invés de ser simpático, alfineta.
— O que acho a respeito dele, provavelmente, não faz diferença, mas ele é um abusado que precisa de pulso firme. — Luana explicou. — De qualquer maneira, não vamos detonar a criatura pelas costas.
— Vocês me deem licença, tenho que atender o celular. Só um minuto. — Dayana se ergueu da cadeira, caminhando para a área da casa.
— Vou virar uma baleia, de tanto comer.
— Lá vem a versão loira. Tudo que entra, sai. Arroche!
— Falou o malhadinho da academia.
— Tô mais para o nerdão sedentário. Não tenho tempo para malhar. A Dayana quer entrar e me levar, mas nem dá.
— Eu malho todo dia, carregando minha mochila para o colégio — disse , e eles riram fraco, concordando. — Falando nisso, tenho que revisar uns textos do curso. Seu padrasto vai demorar?
— Um bocado. Pegou engarrafamento na ponte.
esticou o corpo.
— Posso levar você, , quando eu for levar a Dayana.
— Ela mora onde?
— Atrás da banca.
— Espero o padrasto da Lu.
Seu bairro localizava-se mais distante da casa dele, o que, consequentemente, dariam a eles uns minutos dentro do carro sozinhos, com o constrangimento e a vontade explícita de abraçá-lo de um jeito novo.
Não conseguia controlar, porém disfarçava com mais perícia no assunto que .
— Então vamos quando vocês forem.

***


— Faltam cinco dias para o seu aniversário — comemorou Davi, comendo salgadinho no chão da sala, enquanto varria.
— Pois é! Sua mana tá se despedindo da fase aborrecente com glória. Mainha nem tem muito do que reclamar.
Davi ficou pensativo.
— Você pode dirigir e se casar com seu namorado.
— Ele não é mais meu namorado e, a respeito de dirigir, vou tirar minha carteira de motorista, só falta o carro.
— Vai demorar! — lamentou, deitando. — Case com o , então. Gosta de você, e você gosta dele. Não é o que os adultos precisam? Gosto de uma menina da minha sala e já disse que vou me casar com ela quando eu crescer.
— Você a pediu em casamento?
— Não, só avisei, para ela não escolher outro. — Deu de ombros, travesso. — Ela é muito bonita.
sorriu.
— O quanto gosta dela?
— Tanto que machuca — confessou com a sinceridade genuína de uma criança — quando ela me deixa de lado. Eu falo, e a menina nem me escuta, aí fico pensando se será sempre assim.
agachou-se ao lado do irmãozinho.
— Não será. Você vai crescer e conhecer outras meninas, que se tornarão mulheres, assim como você se tornará um rapaz. Irão te notar, tenho certeza. Você é muito bonito também e, o mais importante, atencioso. Meu ser adorável. — Mordeu sua bochecha. — Agora, pega o balde lá no quintal, que eu esqueci.

Capítulo 31


— Você tá pronta?
— Falta o brinco.
— Pode me dar uma carona? O carro não tá em casa.
— Claro! — informou Giulia pelo celular. — O Neto vem cedo. Uma hora antes, passamos aí. Esteja na porta.
— Valeu! — Luana se despediu.

O domingo de sol começou cedo para os moradores da residência Gusmão — o pai de esperou amanhecer para espalhar mesas de ferro no quintal, cobrindo com toalhas brancas e roxas. Os doces, salgados e o bolo foram feitos pela mãe dela, na lanchonete, personalizando um bufê simples e farto. Convidaram cerca de vinte pessoas, entre amigos do colégio, vizinhos próximos e um parente, que era o único que vivia na cidade. Ele inventou uma espécie de discoteca com TNT preto ao redor e CDs colados nele. Pôs jogo de luzes, fumaça artificial e globo no teto. Contratou, como presente de aniversário, um DJ. Por sua vez, dormia, após ter virado a noite com uma cifra e o violão do professor, tocando várias vezes, até ter certeza de que estava afinado, assim como sua voz e lição. Desligara o celular para o caso de receber alguma chamada de amigos parabenizando-a cedo. , provavelmente, seria o último, porque a visitaria com um embrulho mal feito ou de mãos vazias, alegando que daria o presente em outro dia. E ela entendia sua situação financeira. Importava apenas a presença dele no dia em que completava 18 fucking anos. Já era onze e meia da manhã, e Davi correu para fechar a porta dos fundos quando ouviu a do quarto de ser aberta — ela saiu com o cabelo desgrenhado, camiseta caindo no ombro e os olhos fechados.
— A acordou, painho! — disse eufórico e temendo que sua irmã descobrisse a surpresa antes da hora.
— Leve-a ao jardim.
— O que tem no jardim?
— Vão ver.
O jardim em si não tinha nada, além de plantas e uma grande roseira. Em cima de uma mesa redonda, de vidro, havia um envelope branco.
Puxando a mão da irmã, que arrastava os chinelos no piso, expressando o quão gostaria de estar dormindo mais, lhe entregou o envelope.
amarrou o cabelo e abriu com delicadeza desprovida num momento deste.
— Vejamos. — Conferiu o documento e levou a mão à boca, emitindo um gritinho animado. — O laudo para tirar a carteira de motorista. “Com amor, dos tios paternos, diretamente da Bahia”.
Davi a olhava curioso.
— O que é isso?
— Eu vou entrar na autoescola.
Ele sorriu.
— Ei! Você não me desejou parabéns! — Fingiu chateação.
— Feliz Aniversário, maninha! — Abraçou-a pela cintura. — Pode me levar pra escola quando tiver um carro.
— Provavelmente, você estará no Ensino Médio quando isso acontecer. — Ergueu-o, e ele a abraçou com as pernas. — Dá um beijo, que não tem presente melhor que esse.
Davi deu nas bochechas e na testa.
— Qual é o seu pedido?
— Que eu veja você crescer.

Era final da tarde quando a mãe de a presenteou com um vestido de baile, confortável o suficiente para dançar a noite inteira, se quisesse, mais um par de saltos novos. A garota colocou a caixa sobre a cama. O almoço havia sido trazido de um restaurante, e , achando que sairiam para algum lugar, arrumou-se por volta das seis e meia, maquiando-se diante do espelho do guarda-roupa, de roupão.
— Ninguém ligou — comentou indignada, aplicando blush rosado nas bochechas. — Nem mesmo meus melhores amigos.
A porta do quarto dela se abriu, revelando a figura bem arrumada de sua mãe.
— Nós temos que ir, ou perderemos a mesa que seu pai se esqueceu de reservar no novo restaurante de nome francês.
— Ah, mainha, vocês vão gastar uma fortuna para me levarem a um desses granfinos?! Não faço questão. Podemos ir à pastelaria de esquina, e eu estarei feliz em termos passado o dia juntos.
— Eu sei, meu bem, mas o presente é do seu tio rico. Lembra-se de que ele queria se tornar seu padrinho? Mandou felicitações.
— Obrigada. — Delineou os lábios com batom nude. — Só falta vestir o vestido e os saltos.
— Tem uma pessoa que quer te ver.
Dando passagem, entrou vestido com uma camisa escura, de manga comprida, enrolada nos cotovelos, calça e sapatos. A cor do traje realçava o tom da sua pele e olhos. O cabelo cheio estava cortado e despenteado para a esquerda. Nunca, em todos esses anos, o viu mais bonito. O garoto segurava uma caixa com um laço e outro presente pequeno nas mãos.
— Oi.
esboçou um sorriso de contemplação.
— Oi.
— Feliz Aniversário! — Sorriu de volta e suspirou, virando-se para mãe dela, que pediu licença e fechou a porta atrás de si. — Você não tá pronta.
— É o meu aniversário. Dá um desconto! — Revirou os olhos teatralmente, com um rímel, batom e pincel na mão. — Veio sozinho?
balançou a cabeça.
— Quer saber se eu trouxe minha namorada?
— Sim — respondeu com franqueza.
— Ela não veio. Vou encontrá-la daqui a pouco. Tu sabe que eu não deixaria de vir. Liguei pela manhã, mas seu celular estava desligado.
— Esqueci-me de ligar.
— São para você. — Estendeu os embrulhos. — Espero que cuide.
pegou a caixa maior primeiro, desfazendo o laço e abrindo-a. O olhar iluminou e os lábios formaram um terno sorriso.
— Ai, meu Deus! — Apanhou o filhote preto, pequeno, que miou em seus braços, as patinhas esticadas, observando ao redor.
— Você não é fã de gatos, mas não tem alergia, e notei a mesma reação quando tu viu a Blue prenha. Se não puder criá-lo, não tem problema.
— O nome dele será Nino. É ele, não?
— Ela só pariu machos.
— Cuidarei direitinho. — Apertou o corpinho contra o rosto. — Mainha acabará cedendo.
— Falta este aqui. — Entregou-lhe o embrulho personalizado.
pôs o gatinho na caixa e abriu o presente rapidamente, apanhando a caixinha vermelha aveludada. Ao abrir, encontrou uma correntinha prateada com uma âncora pendurada.
— Não precisava. — Foi abraçá-lo e deu um beijo firme em seu rosto. — Obrigada por ser este cara maravilhoso. Você é bom em tudo o que faz.
a segurou contra si, ciente do gatinho observando-os. Com um riso nasalado, afastou-se.
— Eu que agradeço; por ser esta garota e ser minha amiga, assim posso ficar perto. E, para não perder o costume, é claro, meu calçado 34 tá ficando velho.
— Coloca em mim. — Riu fraco e virou-se.
Ele roçou os dedos em sua nuca, enquanto fechava a corrente, e permaneceu quieta.
— Tem algo guardado pra você.
— O aniversário é seu, e eu quem ganho o presente?
— Posso te dar outro dia... — desconversou.
— Tem certeza?
— Estou atrasada para o jantar.
— Então vou indo. — Conferiu o relógio do celular. — A Dayana fica louca. Não se esquece de que, agora, você pode ser presa.
— Não vou me esquecer. — Fechou a porta quando ele se foi.

Davi, a mãe e entraram no carro do tio e foram na frente para o restaurante, que, aliás, localizava-se distante o suficiente, para dar tempo de todos os convidados chegarem. A festa estava pronta, mas faltava começar. O tema era livre. Havia lâmpadas roxas próximas ao bufê, oferecendo um ar clean a produção. O DJ chegara há meia hora, trazendo caixas de som e instalando os cabos, com um pen drive cheio de músicas diversas. Os primeiros convidados a entrarem foram Pedro Lucas, Luana, Giulia e Neto, que, por coincidência, desceram do carro no mesmo momento, dirigindo-se para o quintal da casa e acomodando-se à mesa. Em seguida, os três vizinhos, que levaram a família praticamente inteira à festa — convidaram os três por educação e por terem visto crescer, contribuindo de alguma forma para sua formação. O tio trouxe a namorada e a filha dela, o que os pais de não sabiam da existência. Du e Isac chegaram ao local da festa meio perdidos e logo foram chamados para sentar com o grupo deles. Uma prima de segundo grau de estava na festa, portando uma sacola da O Boticário e mexendo no cabelo de mechas escovadas. Tinha 21 anos e morava no Ceará. Desembarcara em Campestre há menos de seis horas, e seu padrinho, tio de ambas, convidou-a. Alguns amigos do curso técnico e o de Inglês de marcaram presença, completando, assim, um pouco mais do número previsto. Por fim, atravessou o corredor lateral, andando devagar, quando o pai de terminou a ligação, avisando aos convidados que a aniversariante estava a caminho. Pedira à esposa para enviar uma mensagem assim que estivesse no bairro e, com isso, eles apagariam as luzes.

Dentro do carro em que rodava, observando a iluminação na cidade do outro lado do rio, pela orla, Davi começou a passar mal, tocando a barriga e se contorcendo no banco de trás, ao lado dela. A mãe deles virou a cabeça, checando visualmente o estado inquieto do filho.
— O que foi?
— Eu tô com dor de barriga — choramingou. — Vai demorar pra chegar nesse restaurante?
— Um pouco.
— Pelo amor de Deus, mainha, não aguento mais! Não vou segurar!
deu uma risada nasalada.
— Vamos voltar. Se não conseguirmos a mesa, pedimos comida chinesa.
E eles voltaram.
Enviada a mensagem, as luzes da casa foram apagadas e todos ficaram em silêncio, ansiosos, na expectativa.

Demorou cerca de vinte minutos para escutarem o carro ser estacionado em frente à residência e a porta de correr ser aberta. Na penumbra, os amigos posicionaram as câmeras. O pai de enviou outra mensagem, pedindo à esposa para pegar a câmera e gravar. Ela saiu em disparada para o quarto, enquanto os filhos entravam na casa.
acendeu a luz da sala e caminhou para a cozinha.
Davi abriu a porta dos fundos, e ela mandou-o fechar.
— Pega minha bicicleta.
— Já vai. — Aproximou-se da porta, descendo o degrau atrás do irmão, e a mãe acendeu a luz do quintal.
Todos começaram a cantar 'Parabéns pra você'.
Os rostos sorridentes e câmeras apontadas para si a deixaram assustada, primeiramente, impressionada e muito alegre.
Seus amigos do colégio correram para abraçá-la juntos. Ergueram-na por um instante e cantaram, também, 'Derrama, Senhor'.
— A chuva cai, a rua inunda... Ô, , eu vou comer seu bolo... — Du puxou o coro.
riu, sendo colocada no chão. Sentiu braços a envolverem e o cheiro de invadir seu olfato.
— Eu não perderia isso por nada. Parabéns, ! — Deu espaço para Luana agarrá-la.

***


— O primeiro pedaço vai para mim, para evitar briguinhas. — Sorriu , cortando o bolo de dois andares. — O segundo para meu pequeno príncipe.
— Eu? — Davi colocou o dedo na boca, entortando a cabeça.
— Ninguém rouba sua posição.
Ele pegou o prato e foi sentar para comer.
Enquanto a mãe terminava de servir os demais convidados ao redor do bufê, e a maioria dos adolescentes aproveitavam a discoteca, enlouquecidos, bebia refrigerante e ria de algo que Isac contava sentados.
— Foi ano passado — finalizou Isac quando parou diante da mesa, com dois pratos.
— Para vocês.
— Obrigado. Os doces da sua mãe são divinos. — Ele fez um gesto engraçado com a mão.
— Posso roubar o por um minuto? Juro que devolvo.
— Ih! Se lascou! — Deu um soquinho no ombro dele. — Vá com fé, cara.
sorriu, levando o prato consigo e seguindo , que retornou para dentro da casa, passando pela sala e entrando no quarto para pegar o violão. Seguiram para a saleta ao lado. sentou-se no sofá de dois assentos e pediu para sentar no defronte. Respirando fundo, os dedos sobre as cordas corretas, dedilhando suavemente, fitou sua expressão confusa e curiosa.
— Você me viu cantar uma vez, mas não imagina o quão nervosa estou agora. Este é meu presente. Algo que eu não saberia dizer sem que uma canção me guiasse. A letra fala por mim. Pelo que meu coração está cheio.
Ele maneou a cabeça.
Você é assim, um sonho pra mim e, quando eu não te vejo, eu penso em você desde o amanhecer, até quando eu me deito.
tossiu, perdendo a vontade de comer e pondo o prato de escanteio, sem tirar os olhos dos dela. Apoiou os cotovelos sobre as pernas, curvando o corpo.
Eu gosto de você e gosto de ficar com você. Meu riso é tão feliz contigo. O meu melhor amigo é o meu amor.
Tiveram oportunidade, em horas distintas, considerada errada para cada um por motivos que nunca compreenderia. Não tinha medo de tentar — se acabasse afogado, ela seria sua salva-vidas. Se terminasse de forma inesperada, pelo menos, externou o que sentia na pele, no âmago, em cada movimento.
E a gente canta, e a gente dança, e a gente não se cansa de ser criança, da gente brincar, da nossa velha infância... mordeu o lábio. — Seus olhos, meu clarão, me guiam dentro da escuridão. Seus pés me abrem o caminho. Eu sigo e nunca me sinto só.
sentiu-se profundamente triste.
Você é assim, um sonho pra mim, quero te encher de beijos. Eu penso em você desde o amanhecer, até quando eu me deito. Eu gosto de você e gosto de ficar com você. Meu riso é tão feliz contigo. O meu melhor amigo é o meu amor. — Parou o violão, e o silêncio cobriu a saleta.
Ele enterrou o rosto entre as palmas das mãos, a respiração escapando numa lufada, enquanto tremia e não ousava se mexer.
A música era 'Velha Infância', do Tribalistas.
— Diz qualquer coisa ou vou fingir que isso não aconteceu.
a olhou.
— Não se brinca com sentimentos, . Você me parece confusa.
— Eu acabei de me declarar! Quer que eu grite?
— Não. — Entortou a boca. — De nada adiantaria. Você começou a gostar de mim quando terminou com seu ex. Isso me cheira carência. Tu não tem certeza, e só complica nós dois. Eu finalmente superei, e você diz que tá se apaixonando...
— Eu me fodi, sei. — Deu de ombros. — Não fingirei que sou oca por dentro. Você tem uma namorada, e respeito seu namoro.
— Respeito o que tu diz sentir também. Sabe que não te esnobaria, mas não posso alimentar essa ideia que existe na sua cabeça.
— Ela não tem nenhuma pretensão de se realizar. Você tá “de quatro” pela doidinha da sala. — Abraçou as pernas. — Esquecerei que um dia senti isso.
concordou e levantou-se.
— Porém, se me acha confusa, posso pedir que realize meu desejo de aniversário?
Ele pegou o prato e a olhou.
— Quero que me beije... — Ergueu-se. — Como eu deveria ter te beijado naquela tarde. Tire essa dúvida e acabe com minha insônia.
— Você está me comprometendo. Pensei que respeitasse meu namoro.
— Então eu irei, e esse assunto morre aqui.
— Não é assim que funciona.
— Um selinho... — Aproximou-se dele, que paralisou. — Nenhuma língua. Apenas assim. — Encostou os lábios nos seus, molhados e quentes, como na lentidão de um relógio de areia.
afastou-se.
— Serviu — disse . — Clareou as ideias. — Buscou o violão e deixou a saleta.

Capítulo 32


O dia dos namorados aqueceu os corações apaixonados e dominou o Val Campestre, sensibilizando os casais e tentando os solteiros. A floricultura teve que se virar para entregar, no decorrer da manhã, alguns buquês às alunas, a pedido de seus respectivos namorados. A tática de um deles foi completamente diferente — ele apenas comprou o buquê e uma caixa de trufas, levando na mão.
assistia a cena, com fones no ouvido, meio gótica suave.
estava sendo abraçado pela namorada, dois dias após ter se declarado para ele. E se arrependido de ter jogado a garota para cima dele.
Ele a beijou seguidas vezes e sentou-se com os lábios curvados e tingidos de gloss.
Os lábios que ela tocou nos seus há dois dias — não comentaria sua textura.
Colocou o capuz sobre a cabeça e rabiscou uma folha em branco, até a professora entrar na sala.
— Formem trios, por favor.
vagou o olhar.
— Faz com a gente, — chamou Angelina.
— Obrigada. — Ela virou a carteira.

O intervalo tinha sensação de alívio e desalento, para , que tentava, em vão, conseguir se desamarrar do que sentia por , podendo, somente assim, voltarem a ser próximos, sentando perto, dividindo o dia. Pediu ontem, na última vez em que se falaram, para suspender o estudo após as aulas. E nem precisou explicar o porquê. Ele concordou e disse que ajudaria a namorada, a partir de então.

— Meus colegas estão moldando a ideia de formar quadrilhas para o São João. Faz tempo que não tem no colégio. Estão formando pares. Provavelmente, o terceiro ano esteja de fora. — Luana disse.
— Eu não danço forró.
— Porque não sabe dançar?
— Não é meu estilo.
— Quando tocam Rastapé, dá vontade.
— E é? A senhorita vai dançar com quem?
— Não vou. A Giulia iria, mas a barriga a incomoda. Quero assistir. Será na quadra no final do mês.
— Eu tô a fim de fazer nada. Minha vida tá de cabeça pra baixo.
— Solta essa barra que é gostar de quem não corresponde mais. Você não pode viver de ré e nem precisa provar que tá bem quando, obviamente, não está, mas é necessário se esvaziar, . O esclareceu que sente apenas afeto e carinho.
— Eu me odeio. — Deitou-se no banco de concreto. — Quem sou eu?
— Minha melhor amiga dramática. Tira sua bunda daí e vamos!

***


— Dois pra lá e dois pra cá. — Du dava dois passos para a direita e dois para a esquerda, dançando no ritmo do forró, enquanto assistia a coreografia das turmas do primeiro e segundo ano.
A quadrilha seria formada com todos participando, reunidos na quadra.
...De manhã cedo já tá pintada, só vive suspirando, sonhando acordada. O pai leva ao “dotô” a filha adoentada; não come, nem estuda, não dorme, não quer nada...
Ela só quer, só pensa em namorar. Ela só quer, só pensa em namorar. — Luana apontou para Giulia, que negou. — Eduardo, você tá filando aula. Vai-te embora!
— Olha a teen me dando ordem. — Deu uma risada irônica, tocando seu “rabo de cavalo” louro. — Se orienta!
— Não pega no meu cabelo! É violação dos meus direitos.
Ele ergueu os braços, na defensiva.
— Oh-oh. Quanta frescura! Mas eu concordo. Não mexe no meu cabelo também. — Jogou as mechas de lado, afetado, para fazê-las darem risada. — Lourinha.
— Que fofo! — disse Giulia.
Du posou a mão sobre o peito.
— Fofo é vizinho do bonitinho, que é parente do feinho. Porra! Aí você força!
— Quem mais a chama assim?
— Ninguém.
— O Isac — contrapôs Du. — Ele atenta a Luana porque sabe que ela o ignora nos ensaios.
— Não tenho paciência.
— Luana e seus dois maridos. Amei!
Luana e Du encararam Giulia, com as sobrancelhas franzidas.
— Esqueçam. Vamos dançar! — Moveu-se com uma mão na barriga e a outra esticada.

***


Giulia encontrou-se com Neto em frente à biblioteca, sem combinarem — fora uma coincidência bem-vinda, que ambos aproveitaram os poucos minutos livres. De mãos dadas, avistaram a figura loura, magra e alta com uma camisa do curso de Física, ocupado com uma calculadora e a explicação do amigo.
— Você não vai fazer nada — avisou a Neto. — Não se mete.
— O cara tem que ser responsabilizado pela falta de segurança. Ele tem uns 25 anos!
— Só falta você me dizer que sou criança.
— Você é uma adolescente grávida de uma. Dou apoio, mas nós dois sabemos que ele é o pai. — Apontou para Diego.
Diego notou o dedo em riste e franziu a testa.
— Algum problema, bixo?
Neto quase amassou a mão de Giulia, que se empertigou.
— Tenho. Você é um otário.

Capítulo 33


— Pode repetir? Não ouvi direito.
As narinas de Neto inflaram, e sua habitual tranquilidade foi substituída por uma vontade de acertar as contas, ainda que não fossem suas.
Giulia pediu para que ele se acalmasse.
— É, playboy! — reafirmou. — Você corrompeu a inocência de uma adolescente dez anos mais nova que sua mente insana!
— Tu é um cara retrógado. Hoje, a idade não é um empecilho quando os dois querem. — Deu de ombros, andando para perto do casal. — Hipocrisia é foda. Você tá fazendo o que com ela? Ele é seu namorado?
— Sim. — Giulia respondeu em voz baixa.
— Tem mau gosto.
Neto desceu um degrau, peitando o louro.
— Ela teve o dedo podre em escolher você para sair, e você a usou! Giulia não é sua puta!
Diego deu risada.
— Com todo respeito, Giulia, não te obriguei a ir à minha festa e me dar uma chance. Aconteceu. A gente ficou, e só. Faz meses, bixo. Esquece! Você tá com ela, e eu continuo solteiro. Prefiro assim.
Neto colocou o dedo no peito dele, que tirou com um tapa leve.
— Vou enfiar esse dedo no meio da sua bunda.
— Morro de medo de um moleque vacilão feito você — disse em tom jocoso. — Acaso não vê o que sua falta de memória causou? Aquela festa rendeu mais que abundância e álcool. O filhinho de papai será pai! Parabéns!
O tom alvo do rosto de Diego tornou-se pálido, sem vida, quando assimilou o que a notícia implicaria. Posicionou as mãos sobre a cabeça.
— É pegadinha, né? Você não é louco, e ela não é minha puta. Isso não aconteceu. Usamos...
— Não.
Ele virou-se, esfregando a face e soltando um ruído desesperado e zangado.
— Puta que pariu! — Observou a saliência da barriga dela. — Tô ferrado! Diego do céu, o que tu fostes fazer?
Neto segurou a mão de Giulia.
— Quatro meses de gestação. Está previsto para nascer em novembro — a garota notificou.
— Você não iria me contar? Criaria esse filho sozinha? Enlouqueceu?! Um filho é uma despesa alta. — Fechou os olhos por um instante. Tornou a abri-los. — A ficha não caiu. Você tem absoluta certeza de que sou o pai?
Giulia assentiu.
Ele havia tirado sua virgindade numa festa.
— Tá avisado. — Neto tornou a falar. — Você não sabe o que ela passou e nem sofreu metade, mas, agora, tenha a decência de arcar com essa responsabilidade.

No final desta semana, foi ao último ensaio do The Nacionais; bateu palmas mais frenéticas e fortes que das vezes anteriores, emocionando-se com o desempenho deles, que conquistaram um espaço especial dentro dela.
— A quer dar uma palavrinha com a gente — disse Luana ao final do ensaio enquanto guardavam os instrumentos.
mordeu o lábio.
— Vocês são grandes; amigos, músicos e talentos. Aperfeiçoam todos os sábados e provam que merecem mais oportunidade, e alcançarão o sucesso, ainda que seja temporário ou que dure para sempre. Será eterno durante esse período. A banda tornou-se minha segunda família, e esta garagem, meu lar. A casa do me recebeu de braços abertos muito antes do The Nacionais existir. Eu me sinto grata por estar aqui, entre vocês, manifestando o quanto trabalhei nesse projeto e estou satisfeita com o resultado.
Eles prestavam atenção, em silêncio.
— Somos feitos de escolhas e temos momentos diferentes nas nossas vidas. Cabe a nós decidir para onde vamos depois daqui e agora. Eu escolhi ir embora. É uma das decisões doídas. Não estou mais satisfeita com o que faço, porque não me dou inteira nisso. Preciso me esvaziar e começo pela banda. Estou fora.
Luana sentou-se. Du, Isac e Pedro Lucas contestaram no mesmo segundo, causando um burburinho. manteve-se calado, sem reação, e até surpreso.
— Estando afastada, nomeiem outra caixa. Esta tá quebrada. — Reproduziu um riso fraco, sendo agarrada por Du, que a ergueu, e pelos outros.
— Sentiremos sua falta, .
— Engraçadinho.
Luana a beijou na cabeça.
— A não morreu, então acalmem os ânimos. Veremo-nos na segunda-feira e durante o semestre que vem.
andou até ela, que o fitou de modo questionador.
— Chegamos ao ponto de nos evitarmos...
— Para estancar o sangramento é necessário limpar a ferida e permitir que cicatrize. Não aprendi de outra forma.
— Você tá fugindo.
— Eu tô me rendendo, é essa a diferença. — Afastou-se.

Pelas semanas seguintes, São João se foi, montaram uma barraca para levantar fundos que seriam investidos na festa de formatura, houve lançamento de notas no sistema, para os apressados, entrega do boletim, e as férias chegaram logo na primeira semana de julho. Giulia completou cinco meses de gravidez, porém, infelizmente, até então, a posição do bebê não solucionava o enigma que tornou-se o sexo dele. Inclusive, tirou uns dias de folga, num fim de semana, para viajar para Recife, visitando a família, que soube há pouco tempo de sua gravidez. Não passaria muitos dias, já que poderia tirar as primeiras férias somente após um ano no emprego. Luana visualizava diariamente o site do Ensino Sem Fronteiras, projeto do governo estadual, ansiosa com a lista de aprovados, enquanto dividia os dias em séries para assistir. Os garotos da banda arranjaram uma festa para cobrir, no início do mês e, estando livres, foram curtir as duas semanas de recesso. Desta vez, viajou, e com a família da namorada, para o litoral baiano. Neto voltou a Salvador, perguntado por Giulia, e a tempestiva, confusa e determinada ficou em casa mais uma vez, menos atarefada, pelos dois cursos terem entrado de férias de trinta dias, e iniciou uma maratona de filmes históricos e leitura de livros para o vestibular da UCA e de outra universidade fora da cidade. Passeou com o irmão, levando-o ao cinema, parque e ao clube. Entrou na autoescola nos últimos dias de recesso.
Na penúltima noite de férias, acessou sua conta no Instagram e viu a foto de com Dayana no mar, suas bocas grudadas.
“Com amor, Diguel”.

Capítulo 34


— Bem-vindos de volta! Bom retorno! — a coordenadora desejava em frente ao corredor principal, monitorando os estudantes fardados andando e contando novidades sobre o recesso.
Giulia recebeu um pedido formal de namoro de Neto e o beijou, sendo impedida de manter pela coordenadora. Sorrindo, ambos afastaram-se e seguiram por lados opostos.
— Essas férias ren-de-ram! — soletrou Luana.
— E eu não sei? — Abanou-se teatralmente.
vinha devagar, com o cabelo trançado sobre a cabeça, de uma orelha a outra, e a franja penteada na testa. Carregava a mochila no ombro e um caderno novo no braço. Entrando na sala de aula, marcou a carteira, fitando a mochila de ao lado; tinha que ser dele — surrada e cor igual. No entanto, ele não sentava nesta carteira há meses — semelhante ao contato deles, que tornou-se vazio, sumindo consequentemente.
Deu de ombros, sentando-se e acomodando seus pertences de maneira que ficasse confortável. Pôs os fones nos ouvidos e ligou, no modo aleatório, as músicas novas. Colocou o óculos de grau sobre o nariz e navegou na internet.
Demorou a ver e Dayana. Nenhum dos dois apareceu quando o professor entrou e iniciou a aula, alegando que não poderiam perder tempo. Ainda faltando duas semanas para agosto, sendo a única rede de ensino de volta às aulas, não estavam adiantados das escolas particulares.
O casal bateu na porta, entrando de fininho; primeiramente, , vestido o habitual moletom, mas o marrom, os dedos entre o cabelo, um anel preto rodeando o anelar de uma mão, e um prata, fino, na outra. A melanina estava bronzeada, destacando o castanho dos seus olhos.
Disperso, ele sentou-se ao lado de e abriu o caderno.
— Oi.
Em transe, nem soube responder, perdendo o movimento da fala por estar demasiadamente pensativa a respeito do anel prata no dedo dele, o que representaria compromisso; sério, duradouro.
— Você não vai falar comigo? Mesmo?
— Oi.
— Tudo bem?
— Perfeito.
Ele maneou a cabeça levemente, escrevendo. Soltou um suspiro.
— Isto aqui é pra você. — Vasculhou a mochila, buscando um colar de conchas. — Comprei na Praia do Espelho em Ubatuba, onde a gente foi. Poderíamos juntar uma grana e fazer um mochilão pela região. Tanta ilha e cidade com uma história.
— Não gosto de sal e areia. — Tocou as conchas. — Estranho ver que alguém não se esqueceu de você, mesmo distante.
Você se afastou, e eu respeitei. Não forçaria minha presença para tornar nossos esbarrões desconfortáveis. Houve um momento em que você nem olhava na minha cara. A partir daí, percebi que, infelizmente, ainda te machucava, então evitei qualquer tipo de contato.
— Se eu quisesse...
— Foi você quem quis assim — contestou. — Não caiu a ficha de que eu venho fazendo o que tu quer há meses? Quando estive a fim de você, sufoquei meu sentimento para que não terminasse levando um fora. Só que deixei claro em todas as minhas ações. Ações essas que visaram o seu bem-estar! O meu vinha em segundo plano. Você foi a minha prioridade. Não havia vaidade ou posse. Era só algo que fugiu do meu controle. Então eu me convenci disso.
— Do que? — O peito de se contraiu com força. Independentemente de estarem tendo esta conversa em meio a uma aula, ao redor de vários alunos curiosos, sob a provável atenção da namorada dele, após discutirem esse assunto e, aparentemente, finalizado-o, não dava a mínima. — Você se convenceu de que não sente nada, além de carinho e afeto, por mim.
— Você ferrou com a minha cabeça, e a Dayana veio me consertar.
— A heroína da história salvou o príncipe da bruxa malvada. Ambas completamente apaixonadas por ele. — Desistiu de falar. — Saiba que não estou prestes a correr atrás de qualquer coisa. Estar sozinha me basta e diminui as complicações que estar contigo causam. — Escreveu a primeira frase da lousa. — Espero que não me entenda mal. Eu sou a prioridade na minha vida.
— Não duvido.

Luana entusiasmou-se quando a professora de Inglês avisou que o resultado do Ensino Sem Fronteiras estava disponível no site, porém poderiam checar apenas no intervalo. Obviamente, a loura pediu licença e saiu no corredor, esperando impacientemente a página carregar — quando finalmente abriu, cobriu a boca com a mão trêmula, os olhos cheios d'água e o sorriso curvando.
Canadá - Turma de Inglês - 2013 - Pré-selecionada.
Embarcariam em outubro.

terminava o dia de mau humor quando brigava. Não imaginava que a volta às aulas trouxessem tantas descobertas e uma reviravolta. Entretanto, não perderia tempo pensando e correndo o risco grave de ter surtos psicóticos como quando tirou a prova de que estava irrevogavelmente apaixonada. E fora exatamente o que disse a pela segunda vez. Lembrar-se-ia de que a prioridade da sua vida era estar mentalmente saudável, realizada e feliz.
— Minha linda, você está bem?
A voz da inspetora chamou atenção de .
— Estou. Dias nublados me deixam melancólica... Querendo tanto algo que não posso ter. — Sorriu para tornar verídico o que falava, que, em parte, era realmente. — Espero que a chuva venha e leve essa tristeza embora.
— O calor também. — Ela riu animada. Seu humor era um caso de oito ou oitenta. — A chuva trará água, porque é o que cai do céu, mas você pode pedir um milagre, se está desesperada. Ou, é claro, seguir em frente. Os dias ensolarados são o cartão-postal do sertão.
mordeu o lábio e cruzou os braços, cobrindo-se da corrente de ar fresca — um friozinho enjoado que eriçou os pelos.
— A senhora tem razão.
Luana tocou os ombros de , de supetão.
— Consegui a bolsa do Ensino Sem Fronteiras.
e ela deram gritinhos eufóricos, embora, por dentro, tivesse plena noção de que perdia seus melhores amigos.

Capítulo 35


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

A chuva, por fração de minutos, quase engarrafou o trajeto para a cidade universitária e suspendeu as aulas no campus — salas, do pavilhão utilizado pelo Val Campestre, continham goteiras e risco dos tetos desabarem, além de inundar os corredores, caso se tratasse de um grande volume de água. Até o nascer da manhã, chovendo desde a madrugada, não ocasionou acidentes. Contudo, após as primeiras horas, a chuva retornou como num toró, dilúvio ou qualquer semelhança de tal categoria. Chovia com direito a trovões. A coordenadora liberou os alunos para voltarem às suas casas quando a chuva desse trégua, no horário do intervalo. Alguns arriscaram se encharcar, outros usavam guarda-chuvas, e os demais esperavam dentro do prédio, observando o cair da água pela grade. O frio inóspito, desconhecido e indesejado à maioria deles, tomou posse.
Luana faltara aula, e não tinha com quem pegar carona, então esperou pacientemente, sentada sobre o banco ceraminado, no hall.
A chuva diminuiu devagar, garoando forte, e o fluxo de alunos esvaia — pulavam poças, atravessavam as ruas deslizantes e caminhavam em direção ao ponto de ônibus.
Bruscamente, uma das árvores da frente do prédio caiu, de raiz velha, levando consigo as fiações do poste e entortando-o.
Os estudantes se assustaram, e o porteiro aconselhou a irem pelo outro lado e que não brincassem de saltar. Teve os engraçadinhos que desobedeceram, para chamar atenção.
Abraçados de lado, trazendo o corpo de sua namorada, numa ação de demasiada segurança, atravessava a área com Dayana, que o agarrava pela cintura, detendo-se na calçada.
Ela plantou um beijo em seu queixo e foi embora com a irmã numa moto.
enfiou as mãos no bolso do moletom e seguiu. Atrás, vinha sorrateiramente pelo trajeto do hall à porta de muro pequeno, inutilmente fugindo da garoa, o casaco estendido sobre a cabeça e a mochila pendurada. Pisava nas poças menores, quando escorregou, acabando por sujar a calça.
O garoto olhou para trás, por reflexo ao barulho, avistando-a tentando levantar. Àquela altura, não havia ninguém perto o suficiente para que assistissem as reações e zoações com o desastre.
mancou.
— Cadê seu óculos?
Ela choramingava baixo, sendo molhada pelas gotas da chuva, e escutou a pergunta mal vinda dele.
— Aqui. — Apontou para dentro do olho e continuou caminhando lentamente.
— Você anda distraída desde o início do ano — comentou, sem vestígios de crítica. Aproximando-se dela, que se esquivava, segurou sua mochila, tirando-a de suas costas. — Seja uma menina obediente. Tu torceu o pé? — Agachou-se, erguendo a barra da calça e desamarrando seu cadarço. — É realmente pequeno.
afastou-se com o toque frio em sua pele morna.
— Eu calço 34, é claro que é. Amarra meu cadarço — pediu. — Não aguento por o pé no chão.
— Vem. — Pôs o braço dela em volta do seu ombro, tocando o pulso, e levou a mão à base de suas costas. — O tempo tá fechado, e as ruas, desertas. Você pode ser assaltada.
Andaram pela calçada do meio das duas vias, pisando na pista em seguida e parando sob uma tenda, notando a garoa engrossar.
— Tem moedas para me emprestar?
— Eu tô liso. — Tateou o celular no bolso. — Meu pai deve estar em casa ou bebendo. Mãe não sabe dirigir.
Ela sibilou.
— Consigo me arrastar até a minha casa. Não é tão longe.
— Não. — Cobriu-se com o capuz. — Vou ligar para o meu pai, para saber onde ele está.
hesitou e esperou que completasse a chamada. Encerrada, o garoto abaixou-se virado, mudando a posição da mochila.
— Não é necessário.
— Vamos nos molhar de qualquer jeito. — Entregou-lhe a mochila dela.
— Já estamos. — corrigiu, acomodando as pernas no seu corpo, cruzadas, e envolvendo os braços em seu pescoço.
Levantou-se com ela montada e respirou fundo, antes de ficarem sob a chuva.
A voz de foi cortada pelo vento e a água encharcando suas vestes. No início, correu, para atravessar a rua e, por naturalidade, ela se esqueceu da dor da torção, já que o pé estava protegido, e se viu rindo baixinho contra o ouvido dele.
— Ele disse que estará nos esperando na segunda placa — notificou , em vão, desde que o som da chuva e dos trovões o impedia de ser escutado.
— O que você falou?
— Eu vou correr agora.
— Não, antes.
virou a cabeça.
— Segura em mim! — alertou e saiu, correndo em disparada para a avenida.
obedeceu, inconscientemente adorando a proximidade depois da rejeição, fuga e relutância. Como quando ficamos longe de casa por tempo suficiente para sentir falta.
Sentia saudade do que eram há oito anos, do que foram até o começo do semestre passado e do que escapou por entre adiamentos do inevitável, a falta de coragem — para admitir que o sentimento é dedicado a quem nem se dá conta e reconhecer que o seu amor pode estar do seu lado; há uma década, dias, fração de minutos ou neste exato segundo.
Aquele cara sem graça, que ninguém aposta um real, ou a menina dramática do quinto andar do seu prédio. O falso rebelde necessitado de atenção, a bonita insegura da faculdade... Alguém que está olhando você, e seus olhos insistem em se manter fechados.
— A gente somos tolos — sussurrou para si.
— Eu e você? — ouviu.
— Não, eu e os amantes desafortunados.
— Essa história de novo?
— . — Sentiu-o deter os passos e parar num rompante, do outro lado da placa. — , não é isso que você...
— Cala a boca.
se empertigou, seus lábios trêmulos e sem cor, estremecendo de frio.
— Eu tô cansado.
— Não precisa me carregar mais. — Visualizava seu olhar perdido, a boca avermelhada e os cílios pingando.
Ele tirou o capuz, as mechas do cabelo grudadas na testa.
— Cansei de recuar — confessou em voz baixa, à procura de proteção para o que vinha com força dentro de si.
segurou seu rosto, os dedos tocando a pele da nuca.
— Não me esqueço do dia em que nosso beijo poderia ter acontecido. — Ele descansou a testa na sua, deslizando o nariz sobre o dela, os lábios roçando.
Um carro passou pela rua, do lado deles, levantando a poça d'água e despejando neles, que soltaram risadas.
ficou na ponta dos pés e tirou o cabelo de sua testa, deixando um beijo terno nela.
— Teria sabor de atrevimento.
— Sem dúvida. — Esboçou um sorriso pequeno no canto da boca. — Tem amor, que não foi esquecido, em mim, e ele se sobrepõe a qualquer paixão. Ainda sou, honestamente, absurdamente e, para o nosso azar... — Viu-a rir. — Doido por você. Vamos nos dar essa chance. Precisamos repor todos os pontos nos is, conversar depois do temporal e ver no que vai resultar.
— Sim. — Tocou seu nariz com o dedo enrugado. — Aceito qualquer porém, meu amor.
beijou sua mão.
— Sou leal a quem confia em mim, então devo e quero resolver minha história com a Dayana.
— Eu te espero.

Capítulo 36


O sorriso extasiado formou-se nos lábios secos de , que retocou o hidratante, ansiosa para a vez em que falaria com . Eles foram embora, após as declarações e, desde então, até esta hora, não haviam tocado no assunto e se falado. Na verdade, o garoto chegou atrasado e sentou-se com a namorada, nem sequer olhando ou cumprimentando .
Na hora do intervalo, bebericando uma caixa de suco de uva e atenta ao corredor do refeitório, onde passavam alunos para todos os lados, torceu para que um deles fosse . E foi Dayana quem vinha em sua direção, determinada.
— Tudo bem? — Sentou-se ao seu lado e, sem esperar uma resposta, acrescentou: — Sabe por que o está perturbado nesta manhã? Estou preocupada. Ele não se abre comigo. Cogitei a possibilidade de você ter noção de algo porque seus pais são amigos.
estava impressionada. não falara com a namorada a respeito do ocorrido de ontem, da conclusão que tivera, e Dayana pedia sua ajuda, quando, um dia, implicou com ela.
Pra falar a verdade, não. Se ele tá mal, provavelmente, dirá no momento em que julgar ideal. É o direito dele.
— Sim, é. Respeito seu espaço. Só fiquei intrigada. Durante a nossa viagem, ele se mostrou muito receptivo aos meus familiares e tudo foi nos conformes. Divertimo-nos muitíssimo. Agora, ele tá estranho e chegamos a menos de uma semana. Arrisco dizer que é pessoal. Mas não sei o porquê estou explicando a você. Vocês nem são mais tão próximos — lamentou em parte. — Esqueça.
— Posso me inteirar disso... Averiguar o território... — Sugou um gole. — Mas você não precisa de mim. Tudo bem.
Dayana levantou-se.
— Até mais.

O decorrer das aulas, segundo o cronograma, ocorrera sem acontecimentos relevantes, exceto pelo anúncio do Chá de Bebê de Giulia. Na última sexta-feira, fez um ultrassom e finalmente descobriu que o sexo era feminino — a enxurrada de nomes a deixou muito ocupada em casa, pesquisando significados e origens. Seu novo namorado foi muito gentil e prestativo em ajudá-la. O pai do bebê sugeriu um nome de origem irlandesa, e Giulia anotou para analisar outro dia. O Chá seria realizado no fim de semana, em oito dias, e cada convidada levaria um utensílio a pedido dela.
Dentro do convite simples, de papel cartão, estava escrito em itálico:
A mamãe Maria Giulia e sua princesa agradecem a gentileza.
Luana releu e sorriu, melancólica.
— Não estarei aqui para vê-la nascer. — Guardou o cartão no envelope rosa. — É uma pena.
— Você estará curtindo a neve e socializando com outra cultura. Não tem preço. É uma bolsa irrecusável!
— De fato. Esperei o resultado dos exames para ter certeza, então, agora, devo me despedir da banda; por um semestre, se eles resistirem à ausência feminina. Porém, nunca fui esse tipo.
assentiu.
— Não mesmo.
— E não me arrependo de ignorar detalhes bestas dessa mulherada fresca. Para mim, menos é o equilíbrio.
— Você não parece ter 16. Às vezes me surpreendo com sua sagacidade e sabedoria. Não mete os pés no lugar das mãos, é resolvida e centrada. Uma adolescente rara.
— Meus excessos são controlados. Caio em tentação e erro feio, mas não sou tola de jogar a culpa na minha idade. Se possuo maturidade para morar fora do país, sem supervisão dos meus pais, então preciso provar isso.

Na saída, saiu na frente, pelo caminho conhecido de cor, e escutou chamá-la, alcançando-a quando ela virava na esquina do 73° Batalhão.
Corado, ele ofegou.
— Sou sedentário demais pra fazer maratona de corrida. — Viu-a subir o óculos de grau. — Não tive como me acertar com a Dayana. Ela simplesmente surtou em discutirmos a relação. Prometeu que seria mais paciente e atenciosa. Dayana é “perfeita”... Para alguém sem reservas, que não esteja com outra na cabeça, incapaz de se entregar. Haverá aquela distância curta que não sustentará a primeira briga. Aliás, nunca brigamos. Temos muito em comum. — Suspirou resignado. — Sinto por ter feito você imaginar besteiras.
balançou a cabeça.
— Ontem, ela não atendeu minha ligação, e eu não enviaria uma mensagem sobre o assunto. Tenho respeito e carinho por esses cinco meses juntos.
— Eu te entendo.
— Sabe, não importa que demorem sete dias ou sete semanas, é você.
— Sou transbordada pelo que tu sente, , e nem me dou conta de que não tenho como lidar sem cometer “bobices” ou ser incoerente.
— Você é uma deusa — declarou, sem disfarce ou receio de má interpretação. O objetivo era ser sincero.
ruborizou forte.
— Hum... Obrigada.
riu.
— Vamos. Seu pé tá melhor? — Começou a andar.
— Está ótimo.

***


Tarde da noite, resolvendo um exercício do curso de Inglês, esparramada de shorts de algodão e regata no chão do quarto, escutava a música que soava pela caixa de som do computador, da Jessie J, uma de suas favoritas. Traduzia o texto do livro em voz alta, pronunciando de maneira correta.
Uma das portas da casa foi batida, e ela ajeitou o óculos de descanso.
O pai deu dois toques em sua porta.
— Volte outra hora!
— É urgente!
bufou, erguendo-se vagarosamente e abrindo a porta posteriormente.
— Quem morreu?
— Uma pessoa quer falar com você. Está aparentemente muito calma. Não corremos o risco.
— Quem é?
— Disse apenas que é da escola.
Na saleta, a pessoa mantinha as mãos sobre o colo, tensa e enigmática. Havia uma rebelião de sentidos mantendo seus tendões tencionados e a cabeça fulminando. Por dentro, uma escola de samba se fazia presente.
— Hum. — pigarreou e franziu a testa, sem entender a razão provida da visita. — O que te traz à minha humilde residência?
Dayana visualizou o teto e o cômodo, com a expressão de discreto desprezo, somente para consolar seu orgulho pisado.
. — Levantou-se, e pediu que continuasse sentada porque não se importava. — Creio que saiba do motivo da minha vinda. Possuímos um interesse em comum.
caiu no sofá defronte, vagamente recordando do dia em que se declarou e descobriu a paixão desenfreada e inesperada por .
Recompondo-se, indagou:
— Ele trata-se de um investimento para você?
— Ele é meu namorado. É claro que investimos tempo, energia e abrimos mão de outras atividades para que o relacionamento dê certo. Mas quando existe alguém no meio, interferindo, é necessário reagir.
— Não tô entendendo.
— Estou me referindo a uma vadia. Vadias tentam roubar o que é nosso.
— Agora, o virou uma mercadoria... Saquei! Se você comprou o produto, ele, por direito, pertence a você.
— Não tente fazer piada. Não gosto que riem às minhas custas.
— Aprenda a rir de si mesma, é uma terapia. Aposto que vai te ajudar a superar um chute na bunda.
— Ainda somos comprometidos. — Mostrou o anel prateado no dedo. — Assumimos para minha família. Amaram o .
— É impossível não amá-lo, você sabe.
— Ele é um cara que merece o melhor desta vida, e acredito que seja uma questão de troca. Quero dizer, nesses cinco meses fomos provados, porém eu sabia que nosso teste decisivo seria, na pior das hipóteses, fatal, para seguirmos juntos. Esse teste foi você.
A respiração de falhou.
— O que tiveram, o que você representava para ele, e vice-versa. me deu o que poderia, tendo uma parte intocável dentro de si guardada para você. É ridículo estarmos tendo esta conversa, mas a receba como um aviso: se magoá-lo, , descerei do salto e o enfiarei na sua garganta. Não mexe com quem eu gosto.
A pose de Dayana revelava-se uma sutil divisão entre a vulnerabilidade e o traço predominante de quando temos que admitir que perdemos. Tenta-se além da capacidade comum, no entanto, simplesmente não vinga. Dayana mostrava-se aversa às garotas envolvidas em tretas no colégio, só que bem sabia e compreendia que sua reação viria agressiva, apesar do máximo dela ter sido externar o que estava detido, esperando inquietamente. E, por ser seu limite, não haveria um aperto de mão. Nem garantia de que seriam amigos — e ela —, de que não infernizaria a vida deles, dali em diante, e se realmente cumpriria a ameaça comovente.
— Ele me mantém firme.
— Esteja com isso em mente e que ele não seja ferido pelas suas garras, ladra de namorados.
— Você está me insultando, e não sou obrigada a escutar desaforo dentro da minha casa — avisou em igual tom. — O não é nosso, é tão somente dele. Está contigo, comigo, dividindo quem é, porque quer, e nós permitimos. Mas quando ele não quiser, sairá da forma que entrou: sendo honesto. O amor, às vezes, fere. A ferida dói, sangra, mas a pele cicatriza e, então, estamos prontos para amar de novo. Aprendi essa dura lição amando um cara que não me correspondia, e o cara que dizia gostar de mim teve que aprender também. Coitado! Não tinha noção de onde se metia. A verdade é que nenhum de nós tínhamos. Somos leigos para desvendar essa teia de mistérios. A escola não nos ensina a amar. O amor é quem nos dá uma aula.
Dayana engoliu em seco. O ruído do silêncio prorrogando.
— Ele nos pega desprevenidos — disse, apenas. — O recado tá dado, ! — Ergueu-se, colocando a bolsinha no ombro. — Até.

Dentro do quarto, revivendo a ocasião anterior, com o pulso na boca para não liberar um grito, pulava que nem uma menininha escandalosa. Sentou-se na beirada da cama, as mãos entre os fios do cabelo amarrado. Que raios de misericórdia é essa?, meditou. Foi preciso tamanhas intercessões e reviravoltas para o óbvio penetrar os corações de dois jovens trouxas, riu para si.
Deram duas batidas na porta.
— Ai, entra! — Coçou os olhos, enquanto a porta se abria.
A figura de , com uma mochila no ombro, a confundiu.
— É tarde, mas seu pai quer me ver passar de ano. Quer dizer, passar a filha. Vim para te ensinar Matemática. Acho que você tem dificuldades é nas humanas, não?
começou a rir com tamanha sensação de paz interior brotando na raiz do seu ser e tornando-a leve.
— Em todas as matérias. Vai ter que virar a noite aqui. — Segurou suas mãos, abraçando-o demoradamente.
sorria contra seu ombro descoberto, na região em que posou um beijo curto.
— Acertei-me com a Day. — Sentiu-a estática. De propósito, acrescentou: — Ela já sabe da gente. Acho que nunca foi segredo pra mentes menos distraídas.
— Que procuravam alguém que suprisse esse déficit de atenção.
— Isso não é mais importante. Estamos aqui, nus de fingimento e abertos para o que há neste círculo. — Desenhou uma roda no ar ao redor deles.
deslizou o nariz em seu pescoço cheiroso e notou o movimento da garganta dele.
— A propósito... — Iria contar a respeito da vinda de Dayana, os detalhes, mas preferiu não alarmar. — Ainda usa o anel?
— Eu o devolvi. Nós compramos na viagem, para selar nosso namoro. Ela pediu um tempo, mas fui enfático em esclarecer que não teria volta. Acabou.
retomou o deslize na pele quente e macia, inalando seu cheiro, a ponta gelada do nariz subindo para a orelha, em que beijou atrás do lóbulo e o mordiscou de leve.
Ele segurou seu rosto, afastando-se um pouquinho para olhá-la nos olhos expressivos.
— Tu tem alguma dúvida do que sente?
— Nenhuma. — Colou a boca na sua. — Meu amor.
— Então vou dizer outra vez o que eu sinto, pra que você tenha absoluta certeza. — Pigarreou, mexendo em seu cabelo. — Esse tempo todo, vaguei por uma estrada deserta, encontrando uma ou outra distração, porque as cidades costumam possuir atrativos. Mas eu não queria me distrair. Minhas emoções instruem o que faço, e não pude evitar me iludir com o momento em que você olharia diferente para mim. Como uma garota olha para o cara que ama. — Respirou profundamente. — Estive hospedado numa pousada. Aquela relação com sensação de passagem, que deu cor ao meu verão. Em determinado momento, chegou a hora de partir; pois, desde o início, estávamos livres para ir na hora certa, mesmo que não fosse a hora do outro. E, antes de terminar o check-in — dizia e sorriu por causa da palavra estrangeira —, disposto a trocar os lençóis e cultivar o que nascia ali, e floreceu, devo admitir, não foi exatamente conforme o planejado pelos dois, ou por mim. Eu sabia disso. Esperava essa frustração. Faltava alguma pétala, o aroma familiar, mãos menores que se encaixam nas minhas de forma despretensiosa, esse seu olhar, sorrisos que me encantam, abraços que me mantiveram esperançosos. Faltava meu coração. E não vivo sem ele. Não apenas por razões óbvias, mas pelo simples fato de eu ser movido a emoções. Ao que está aqui dentro. — Tocou o peito, e a voz embargou. — Daí, fui. Saí em busca disso. Não encontrei, é claro. Estava longe e, do mesmo modo, perto do que me faltava, só que não dava pra preencher o vazio. Na minha cabeça, ficou claro que, ainda que fosse uma bosta, eu ocultaria esse amor e me conformaria com o tipo fraterno que você me oferecia, embora jamais me esquecesse da estrada de volta. Não era de pousadas que eu precisava e, sim, da minha casa. Chegou a hora de ir para o meu lar. — Mordeu o lábio. — Meu coração esteve e está aberto à visitas suas, com toda bagagem que tenha. Só faça dele sua moradia.
— Eu sou a frouxa, e você é o sensível — provocou, sorrindo, pois era inevitável entre eles.
— Não sou cem por cento alguma coisa. Tentei ser racional quando fiquei com a Dayana e me envolvi, mas meu lado emotivo é frágil e estava vivo demais para ser ignorado. E, apesar de me trair, eu o perdoei, porque só um cego não vê que sou completamente arriado, os quatro pneus e o estepe, por você.
encheu-o de beijos por toda a face e o abraçou com as pernas e braços.
Provocando o roce dos lábios, inocentemente, sentindo prazer no momento que antecedia o ato de beijar, o viu sorrir. Numa dessas repetições, seguiu sua boca, que se esquivava, alcançando-a e enfiando uma mão nas mechas soltas na nuca, cobrindo finalmente os lábios com o seus, enquanto a mantinha firme.
— Assim seria naquela tarde — sussurrou.
suspirou, deixando-o tomá-la e correspondendo.
Perderam a noção de que a porta estava destrancada e os pais dela ou Davi poderiam aparecer no quarto.
Ele sugou seu lábio inferior, os olhos entreabertos, e finalizou com um selinho.
— Valeu a pena a espera. — Escutou-a dizer e sorriu zombeteiro.
— Dou conta do recado.
desceu do seu colo.
— Vamos estudar.
— Só se for Anatomia, meu amor.
Ela arregalou os olhos para ele, que caiu na risada, mais pela resposta de teor sexual que a palavra 'amor'. Ou amor, safadeza e na mesma frase.

Capítulo 37


— Comecei a arrumar as malas — disse Luana às duas amigas. — Teremos um curso da língua nativa.
— Isso é demais! — Animou-se Giulia. — Meu Chá é nesse sábado. Ai de vocês se perderem!
— Vou te dar dois sacos de fralda, pra você e a bebê. — Brincou .
Giulia revirou os olhos teatralmente.
— Eu consigo alcançar o vaso.
— Ah, bom.
Ela lhe deu um empurrão maroto.
— Tenho que ir. Vamos ao teatro, daqui a pouco, em Celeste.
— O teatro dessa cidade é bacana, só é um tanto menor em relação a outros. — Luana comentou.
— Infelizmente, o pessoal daqui não curte ir ao teatro. Acho que a produção pensa que a estrutura tá ok para o número de pessoas que frequentam. Vejo lotar quando algum ator famoso vem. — Giulia falou. — Adoro assistir peças.
concordou.
— É cultura. Tchau! Falo com vocês mais tarde!

A peça foi sobre o Golpe Militar de 1964, visto que, no ano seguinte, completaria cinquenta anos desde a opressão. As turmas já haviam assistido peças teatrais adaptadas de clássicos de Ariano Suassuna e Graciliano Ramos, como em Vidas Secas. A junção de conhecimento através do meio artístico era um método de oferecer o útil e o agradável aos desinteressados e carentes.
Ao retornarem ao colégio e entrarem nas salas de aulas, sentou-se ao lado de , como no início do ano letivo, enquanto os demais iam lanchar. Ela inclinou o corpo, lhe dando um beijinho na bochecha, e o garoto ficou parado.
— Que?
— Até ontem, eu a namorava — explicou. — Não vou ficar na frente dela. Não precisamos fazer isso.
— Ela esfregava na minha cara que vocês estavam juntos, todo dia.
— Você não se importava.
plugou os fones no celular e colocou nas orelhas. A música alta começou a sair das aberturas, e tirou.
— É assim que resolveremos nossas diferenças? Se tu chateada, então me mostra, discute comigo, mas não se cala. Não resolve depois, resolve agora.
— Está bem.
— Gostaria que entendesse que não sou de remoer passado. O que tive com fulana foi diferente de ciclana, e que ótimo, porque nós amadurecemos com essas experiências.
— Entendi... — titubeou.
— Entendeu mesmo? Eu sei que qualquer coisa que acontecer com a gente, por pessoas de fora, ou até se for difícil entre nós dois, vai tremer na base — escolheu rapidamente uma gíria — porque somos melhores amigos, crescemos juntos, e tudo acaba em perspectiva. Mas quero que continuemos firmes.
— Quando o semestre acabar e nos formamos?
— Evito pensar nisso. É uma questão de nos adaptar ao novo. Sairemos da nossa zona de conforto.
— Ele me assusta. Não é à toa que quase perdi a chance de ser feliz contigo.
esboçou um sorriso de canto.
— Também me assusto, às vezes. Somos um e, aonde um vai, o outro estará com ele, mesmo que em pensamento. — Beijou-a suavemente.
tocou seu queixo.
— Não podemos nos beijar aqui.
— Estamos praticamente sozinhos. — Abraçou-a. — Não há perigo.

***


A mão maior que a sua passeava lentamente entre seus fios de cabelo, enquanto a cabeça pendia sobre a barriga dele, deitados no chão do quarto de , após estudarem.
— ...Tu pode voltar para a banda. Não estamos com outra empresária mesmo.
Ela mordeu de leve seu braço.
— Na falta de opção, .
— Não é verdade. Você bem sabe que não é igual quando você não está lá. Conseguimos nosso primeiro show, graças a você.
— Não... — Ela ergueu o tronco. — Graças ao nosso esforço. Sem banda não haveria shows. — Afastou o cabelo da testa dele, os braços sobre seu torso, e sorriu. — A Lu estava certa. Sou sortuda. Tu é lindo por dentro e por fora.
— São seus olhos. — Ele tocou as mãos em suas costas, e a perna de ultrapassou as suas, sentando-se em seu colo. — Quer me arranjar encrenca com meu sogro?
— Só vejo você aqui. — Mordeu o lábio e esticou o corpo sobre o dele. — Mainha vai te intimar a vir jantar conosco para se inteirar das suas intenções. Seu sogro acha besteira, porque te conhece desde criança.
prendeu a respiração, zombeteiro.
— A gente não recusa comida, né? Eu venho se for pra ter direito a ficar no seu quarto em todas as vezes.
— Sinto informar que você está aqui porque ela tá trabalhando. Achou que iria melhorar, passando do estágio de BFF? — Soltou uma risada. — Bem-vindo à realidade .
— Aguentei por oito anos. Mais muitos não tem problema.

Capítulo 38


O ritmo de estudos de uma imensa parcela de estudantes acelerou; até daqueles que se esforçaram para alcançar um rendimento acima da média e os que se “garantiam” de estudar nas vésperas dos vestibulares — como se conseguissem aprender o conteúdo do ano inteiro. O primeiro vestibular veio da própria UCA (Universidade de Campestre), que antecedeu as datas para conseguir finalizar o calendário do semestre. Tendo mais dois para prestar, um em Campestre e o outro numa cidade relativamente longe, intensivou a rotina de estudos, focando somente nas matérias específicas e no que mais tinha dificuldade (com bastante revisões), para a reta final. Lera todas as obras, resumos e respondera infinitas questões, ciente de que poderia ter sido mais, cobrando-se demasiadamente e atraindo dores de cabeça frequentes — sofreu noites de insônia, ansiedade e tomou chás raramente, já que detestava. Por força de hábito, resolveu um teste de vocação que a levou ao cargo de Gerência. Pesquisou mais sobre o curso de Moda, as melhores universidades, o rendimento, remuneração provisória e em X anos. Estava completamente convicta de que era esse o curso da sua vida. Pelas suas contas, faltavam décimos para passar de ano na maioria das matérias do semestre, restando uns pontinhos a mais em duas disciplinas exatas. a ajudava como podia, oferecendo além do seu limite, estressado com a loucura do último mês, e apoiando um ao outro. Ela não sabia como faria para ir à outra cidade e prestar o exame em quinze dias.
O que mais assustava era o detalhe de que as semanas de outubro estavam passando muito rápido, e o Enem esperava os oito milhões de estudantes; sendo que esses estudantes esperaram por ele como se fosse a morte — do psicológico, físico e das unhas. Morte com sabor de tortura.
Os professores davam dicas, conselhos e revisavam durante as aulas, com alguns macetes. O cursinho particular de vendeu um aulão para os interessados, e outros cursinhos ofereceram gratuitamente.
compareceu a todos disponíveis.
Na quinta-feira anterior, as turmas do ESF (Ensino Sem Fronteiras) embarcaram rumo ao Canadá para passarem seis meses. A despedida de Luana ocasionou a presença da banda de garagem realizando a última apresentação com todos os integrantes reunidos. Ela prometeu entrar em contato via Skype quando estivessem ensaiando, antes de dezembro chegar.
Giulia estava no oitavo mês de gestação, tendo decidido o nome da bebê. O pai da criança, Diego, notificou que sua mãe comprara a passagem de vinda ao Brasil para conhecer a neta, que nasceria no mês seguinte. O barrigão de Giulia rendia inúmeras fotos e desenhos com hidrocores das amigas, que faziam corações, escreviam o nome da bebê e a duração da gestação. As dores de coluna, irritação e estresse controlavam a adolescente, que recebeu um apoio maior da mãe na reta final, acompanhando-a ao restante das consultas, tal como Neto, que foi ver a ultrassom.
frequentava mais a casa de , não apenas por serem namorados ou estarem estudando, mas por gostar de sua companhia, do silêncio confortável, das risadas gostosas e de como não precisavam arranjar um assunto para conversarem, visto que vinha naturalmente entre eles. Nunca, em hipótese e circunstância, deixariam de ser melhores amigos. A amizade fortalecia o amor e a cumplicidade. Viraram namorados, mas sem um pedido. Assim como sabiam que amava um ao outro sem verbalizar. Estava nítido aos olhos espertos, nos ouvidos atentos e no toque das mãos. Em um desses dias, ele caiu no sono na cama dela, enquanto estudavam, e tirou os livros, pondo o travesseiro sob sua cabeça e deixando-o dormindo.
Quando acordou, ela estava tomada banho e trazia dois cup noodles, e ele sentou-se meio desorientado.
— Nossa janta. A dispensa tá vazia. — Entregou-lhe.
— Dormi a tarde inteira?
— Metade.
— Por que não me acordou? Vou virar a noite acordado.
— Você precisa descansar. — Deu de ombros, sugando o macarrão. — Ainda não sei como farei pra viajar. O vestibular é semana que vem.
— Se ao mesmo tivéssemos parentes lá... Daremos um jeito.
— Tô nervosa.
— Você vai passar numa dessas universidades e vai pra faculdade ano que vem. Então será tudo novo.
— Nós dois longe, em cidades diferentes, conhecendo gente nova e fazendo amizades. Nossos horários vão se chocar, as conversas via internet não serão suficientes e acabaremos de modo previsível.
— Nossa, ! Vira essa boca pra lá! Você só pode estar brincando. — Olhou para ela. — Isso não é uma regra. Os dispostos vingam. Fazem da distância uma ponte para continuarem unidos.
— Só queria aliviar a tensão. Falo muita besteira quando ansiosa.
— Você é insegura, e eu amo todos seus defeitos, e...
sorriu.
— ...Só vai. Faz o que você quer. Estarei contigo.
— Vem aqui. — Segurou a ponta do macarrão na boca, esperando-o sugá-lo.
Ele arqueou a sobrancelha, e ficou vermelha.
— Tá bom. — Pegou o pedaço com a língua, e o coração da garota se contraiu.
Sempre acontecia nos momentos mais levianos, engraçados e como este.
— Eu sempre quis fazer isso.
acabou sendo mais rápido e colando a boca na sua.
— Seu fetiche?
— Que fetiche mais bobo, não? — ironizou.
— Não. Eu tenho uma curiosidade grande sobre algo, mas não vou falar o quê. Descobri que ainda me atrai recentemente. — Encostou-se no travesseiro com o copo de miojo.
— Fiquei curiosa. Ah, , isso não se faz!
Ele comeu distraidamente, pensativo, enquanto o imitava.
— Vai embora de ônibus?
— Já tá me expulsando sutilmente?
— Não. Por mim, tu dorme aqui. Não necessariamente no meu quarto.
sorriu.
— Se eu não dormisse no seu quarto, qual seria a graça? — perguntou sugestivamente. — Mas eu bem sei, e te conheço, que não dormiríamos cedo.
— Quando o Enem se for, você não me escapa.
— Nem quero. — Deixou o copo no chão, inclinando o corpo para alcançar, e pegou o dela, pondo no canto. Então, de joelhos, firmou os lábios nos seus, guiando seu corpo para trás. O cabelo de se espalhou no colchão, as pestanas bem abertas, e ela sentiu os dedos dele em sua pele desnuda nos flancos, acima do quadril, devido a blusa ter subido. a beijou, levando a mão ao seu braço e traçando arrepios nela. Os lábios deixaram beijinhos pelo pescoço, e , hesitante, enfiou as mãos por baixo de sua camiseta, sentindo a textura quente das costas nuas.
— Gosto das suas costas — disse, de olhos fechados. — Vai pra minha listinha de coisas que gosto em você.
— Você fez uma lista? — Pairou o rosto sobre o dela.
— Não tive tempo. Mas, se eu fizesse, estariam inclusas.
tornou a tocar seus flancos.
— Eu gosto disso. De verdade. Gosto do que é você. E isto é um pedaço seu.
— Para falar a verdade, detesto-os.
— Vou te ensinar a gostar tanto deles que sentirá ciúme quando eu disser que gosto mais.
— Não duvido. — Viu-o beijá-la e sentiu a mão dele ir por dentro da blusa e se deter na barra da calça de moletom. Então ele esperou e deu um aperto suave em sua bunda.
começou a rir.
— Essa era a sua curiosidade?
levantou-se um pouco, encabulado.
— Ela me atrai. Faz tempo. — Coçou a nuca. — As baixinhas são realmente retadas.
sorriu.
— Tu é uma graça.
— Já tá na minha hora. — Desceu da cama, buscando os livros na escrivaninha e a mochila.
— Não fica sem.
— Eu não estou. É que é estranho lembrar que seu pai tá ali fora, de vigia, provavelmente. — Riu nasalado, conformado que fora descoberto sua imensa curiosidade sobre esse músculo dela. — Até amanhã. Vou virar a noite estudando. Envio uma mensagem mais tarde. Cuide-se.
— Você também.

Capítulo 39


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

— Onde você tá?
Com o celular contra o ouvido, escutou a mesma pergunta em menos de cinco minutos. ligava para saber se ela estava chegando à rodoviária.
O vestibular fora da cidade seria amanhã, e o combinado era entrar no primeiro ônibus rumo à capital e, lá, se hospedariam num hostel por uma noite.
imaginava que o dinheiro gasto seriam os trocados que tinha, mais a economia guardada por . Porém, como ele vivia liso, o garoto apenas falou que os ajudaram.
Havia planejado criar um site para arrecadar fundos, mas um tio paterno o apoiou, depositando a metade da quantia necessária.

Sentado à mesa do refeitório, sozinho, mastigava enquanto resolvia um impasse pelo celular. De soslaio, notou se acomodar ao seu lado com um prato.

Sendo maiores de idade, comunicaram aos pais que passariam o dia longe de casa e que não fariam nenhuma merd*. disse que iria prestar o exame e queria que ela fosse. Cursar Moda não estava em debate na casa dos , no entanto, de qualquer forma, fora bastante enfática em demonstrar o quão importante era tomar sua própria decisão em relação a isso e que nada a faria desistir da ideia. Se não a apoiassem, arranjaria um emprego, com as experiências que adquirira no decorrer dos anos com o curso técnico, de Informática e o de Inglês. Assim, bancaria seus estudos. Moda lhe renderia uma estabilidade em X anos e conseguiria costurar suas roupas quando comprasse uma máquina de costura. Viveu reprimindo suas habilidades manuais e gastando energia com o que não a envolvia e nem deixava um sorriso nos lábios no final do dia.
O celular tocou outra vez.
— Onde você tá?
— Tô quase aí. Quando você piscar, cheguei.
— Eu já pisquei cem vezes! O ônibus vai sair!
apressou os pés, atravessando uma avenida. Dentro da mochila da escola, carregava somente o indispensável.
Os pais dela não concordaram com a ideia da viagem, nem abraçaram a causa. Relutantes, esperavam que não fosse. Tinham medo demasiado de que algo acontecesse.
Desceu os degraus da escada da rodoviária, dirigindo-se a concentração de pessoas, e encontrou .
— Cheguei — disse pelo celular, desligando-o. — Tá pronto?
— Sou eu quem pergunto... — Beijou sua testa. — Preparada? Porque, pra assumir esse risco com você, estou.
tocou seu rosto com as duas mãos, deslizando o polegar pelos fios ralos do que chamava de barba por fazer, que arranhavam seu dedo e pele em algumas ocasiões corriqueiras, porém não poderia pedir que tirasse porque gostava da sensação quando ele encostava os lábios em seu pescoço e brincava.
— Conheço esse olhar.
— Sabe que tô me lembrando da sua boca... — confessou naturalmente, sentindo a expressão de mudar momentaneamente, até ele abraçá-la mais, trazendo-a para perto.
— Engraçado que recordei o olhar que você me deu quando fiz coisinhas aqui. — Tocou, com a boca, seu pescoço, curvando a cabeça, e sorriu.
fechou os olhos, inclinando o corpo e fugindo, apesar de estarem distante dos demais passageiros.
— O motorista tá chamando a gente.
— Nem ouvi. — Afastou-se, apanhando a mochila dela, e segurou sua mão, entrelaçando os dedos. — Então, vai participar da “Aula da Saudade”?
— Não sei. O TN vai tocar?
— Surgiu uma proposta de tocarmos lá e na formatura.
— Legal. É o máximo, na verdade. Logo, The Nacionais será apenas páginas de uma história vivida por adolescentes aprendendo a lidar com a vida real. Vamos viver a última cena no colégio, virar essa página e encerrar o ciclo. — Apoiou a cabeça em . — Se você não estivesse comigo, não seria chato sair da escola.
a sustentou.
, nossa história como casal só está começando... De mim, você não escapa.
deu beijinhos no dorso da sua mão.

Dentro do ônibus, sentados lado a lado, observava os passageiros entrando e acomodando-se em seus respectivos assentos, e posou a cabeça no vidro da janela, as mãos enfiadas no bolso do cardigã. colocava um som para tocar no celular. Feito, virou-se um pouco e moveu o rosto de em sua direção, alcançando os lábios dela.
Neste momento, nenhum outro beijo era/foi/seria igual aos primeiros e tampouco ao último... Do dia. Como se quisesse provar que tinha habilidade, simplesmente virava o rosto dela e a beijava no dia a dia. Beijava seu pescoço, nariz, testa, pálpebras, boca, o conjunto , versão 18 anos, gravando os traços para quando se tornassem amadurecidos e enrugados.
A verdade secreta e coberta de humor era que compensaria a metade do ano em que passaram apenas dando abraços decentes, beijos na bochecha e uma ou outra olhada fugaz para a mordida de lábio e a bunda do outro.
Era gostoso manter esta liberdade de brincar entre si, pois continuavam melhores amigos, sendo que, agora, descobriam como aquece o coração ter um amor pra chamar de amigo e um amigo pra chamar de amor.
Tudo mudou e, ao mesmo tempo, apenas os detalhes.
parou de movimentar os lábios, e sorriu na sua boca.
— Você tá ficando fera nisso, hein.
O rosto dele ruborizou tão forte que ela achou que sua saliva provocou alergia nele.
— Amigos... — disse, ainda embaraçado, voltando a posição anterior. — Deixam a vergonha em casa e não perdem a piada.
penteou o cabelo dele com os dedos.
— Amiga promovida à namorada, então, não dá sossego. — Colocou as pernas no assento. — Foi um elogio, meu amor. Você é o cara.
sorriu nasalado.
— Tá, tu também não beija mal.
— Olha que eu faço greve de beiçada.
— Vamos beiçar muito na estrada. Sairemos com a boca inchada daqui. É hoje!
gargalhou.
O motorista anunciou a partida.
A consciência dela perdeu a noção e, quando retornou, sentiu-se imatura, inconsequente, corajosa, boba e, no final, acabaram descendo, na saída da cidade, com duas mochilas nas costas.

***


O choro de um recém-nascido preencheu o corredor da maternidade, as orelhas e olhos, que derramavam lágrimas entre as visitas.
— Uma mãe ao lado acabou de dar à luz — a obstetra explicou a Giulia, deitada desconfortavelmente na maca, o barrigão de menos de nove meses, exceto por alguns dias, sendo acariciado ternamente pela própria, que estava sonolenta.
A mãe de Giulia tinha uma bolsa com utensílios para o bebê no sofá e tentava se manter otimista e acordada o suficiente para monitorar tudo. Passava da meia-noite. A neta poderia nascer a qualquer hora.
— A mamãe entrará com você? — perguntou o que já sabia.
Ser uma adolescente grávida já era ruim, mas, para a doutora, não bastava, porque tinha que tratar Giulia como uma criança, sendo que a adolescente estava prestes a ter uma.
— Sim.
— Ok. Há uma pessoa que insistiu em vê-la. Você precisa descansar, porém eu a deixarei entrar.
Giulia maneou a cabeça, à espera, enquanto a médica atendia a visita.
— Não acredito...
adentrou a sala.
— Oi! Como minha barriguda favorita está? — Sorriu, aproximando-se com seu 1,60 m.
Giulia respirou fundo.
— Você não viajou?
— Mudei de ideia quando já estava indo. Deus sabe de tudo, né? Se fosse pra eu ir, teria sido com o acordo dos meus pais. Depois de amanhã, prestarei um exame para a estadual de Celeste. Eles acham que será pra estudar no campus daí, mas não tem o curso de Moda. Quero Moda. Ninguém tira da minha cabeça.
— Ai, , que bom que você veio! Caso mainha tenha um ataque antes do parto, você entra comigo? — suplicou.
— Claro... É... Contanto que eu esteja com tapa-olho. Ver sangue e continuar sã não é minha especialidade. A propósito, será normal?
— Sim, escolhi o melhor para a minha bebê.
— Boa sorte é uma palavra confortante? — perguntou baixinho, vendo-a fechar os olhos.
Giulia sorriu.
— Acho que não, mas tudo bem. Obrigada por vir, . Você e a Lu são as tias mais comportadas e sensatas, e invocadas, não posso me esquecer.
— Tá repetindo o discurso do Chá? É efeito da anestesia?
— Para de falar, . Tô cansada demais pra pensar numa resposta, abrir a boca e responder. Fica quietinha.
— Os papeis se inverteram. Pode isso, produção? — questionou à mãe de Giulia, que deu de ombros. — Não se preocupe, Gigita. Quando você acordar, estarei aqui. Espero para pegar seu neném no colo. Nunca a vi, mas a amo — notificou, mesmo ciente de que Giulia adormeceu.
Na madrugada do dia seguinte, Giulia foi levada ao quarto, e a família, vinda da capital, mais amigos, puderam vê-la. O parto ocorreu por volta da 0h15. estava presente, tal como , as gêmeas e a mãe delas. Os pais de Giulia eram divorciados, mas ambos estavam lá.
Até e, principalmente, os dois interesses amorosos dela.
Diego não recebeu autorização para assistir ao parto e respeitou a decisão de Giulia, por todo plano de fundo do descuido que tiveram, do breve caso, e Neto sabia que a sogra iria acompanhá-la. Ela não apenas viu ao vivo, como filmou o nascimento da neta. Diego chegou por volta das 07h30, depois de ir buscar a mãe e a avó no aeroporto. A mãe antecedeu a viagem ao Brasil para conhecer a neta e trouxe consigo mimos. Os sermões foram dados anteriormente, ao receber a notícia da gravidez, por Skype.
Neto havia escolhido ficar, ainda que não fosse necessário, e Giulia o convenceu de que retornar mais tarde seria proveitoso.
A bebê pesava 2,458 kg e media 48 cm.
— Olá! Você é a Maria Giulia Mendes, não é? — a mãe de Diego perguntou educadamente, cumprimentando a mãe de Giulia e apresentando a própria mãe. — Meu nome é Keila. Qual o nome da minha neta?
Giulia olhou para Diego, que observava a recém-nascida em seu colo, agasalhada, as mãozinhas movendo-se devagar enquanto mamava.
— Você considerou o nome composto? — Ele coçava a cabeça, visualizando a mamentação da filha.
— Será registrada como Laura Saoirse, de origem irlandesa, que significa “liberdade”.
— Estou aqui para oferecer minha ajuda com o que mais for necessário. — Keila disse.
— Nós não... — tentou argumentar Giulia.
— Eu ofereci. — Diego falou.
— Precisamos, sim, Maria Giulia! — refutou a mãe. — Alguém tem que quitar as despesas.
A médica deu alta a ela.

Dali a oito dias, a reunião de despedida, última “aula” do ano, foi realizada com um churrasco. Os terceiros anos, no início de dezembro, estavam livres do sistema de ensino escolar, por enquanto ou pelo resto da vida, caso tivessem sido aprovados por média. Independentemente disso, a maioria das turmas foram à “Aula da Saudade”.
, Pedro Lucas, Du, Isac, junto com um novo integrante, substituto de Dayana, tocaram um cover da Cassia Éller:
Mudaram as estações, nada mudou, mas eu sei que alguma coisa aconteceu... Tá tudo assim tão diferente...
— Queremos ouvi-los, galera! — pediu Pedro Lucas, permitindo somente o violão e apresentando.
Se lembra quando a gente chegou a um dia acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba? Mas nada vai conseguir mudar o que ficou. Quando penso em alguém, só penso em você, e aí, então, estamos bem. Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está... Nem desistir, nem tentar, agora, tanto faz... Estamos indo de volta pra casa.
Mesmo com tantos motivo pra deixar tudo como está... Nem desistir, nem tentar, agora, tanto faz... Estamos indo de volta pra casa.
— Para não mais voltarmos, ou, quem sabe, um dia, a saudade bata, e um bom aluno a escola forma e retorna. — Escutaram palmas.
não estava no churrasco. Preferiu ficar com a amiga e sua sobrinha. entendeu perfeitamente. No dia seguinte, a encontraria de novo. Talvez adiantasse a hora do encontro, sem alterar o relógio.
Ambos eram o ponteiro e funcionavam em sincronia.
— Uma vez TNs, sempre TNs! — algum estudante perdido gritou. — Valeu, banda!
— VALEU, FERAS 2014!

Capítulo 40


(Clique aqui para abrir a música do capítulo. Sugiro que escute!)

A formatura, para eles, acontecia à noite, com toda a pose de receber diploma e ir diretamente ao local da festa. O The Nacionais, como pedido e fechado o contrato, tocariam, nesta noite, para mais de 400 pessoas. O palco estava montado, a música eletrônica soava nas caixas de som, o público era caloroso e a festa acontecia desde cedo.
De vestido longo e caramelo, adentrou o local, acompanhada dos pais. Prestaram o exame na cidade vizinha e receberiam o resultado depois do Enem. Não gostou muito da prova, e Moda parecia tão distante agora. Engenharia seria uma válvula para não ouvir sermão durante o ano inteiro, caso a nota do Enem não resolvesse sua vida, e cursaria, para, quando formada, custear uma particular.
Isso não fazia sentido.
Perderia tempo com o curso que não se identificava, tendo dificuldade nas matérias exatas e tornando o ciclo acadêmico maçante. Não valia a pena! Nem mesmo ingressar e continuar estudando para o Enem porque ficaria sobrecarregada e renderia menos numa das áreas, sendo que estudaria integralmente, neste caso.
E tinha .
Indeciso em relação às duas faculdades, havia sido aprovado na particular da cidade, gostou da prova, apesar de achar um nível avançado, da realizada na cidade vizinha, e esperava o resultado dela e do Enem, para, então, decidir aonde iria.
Sabia que seu futuro começou desde que olhou para o lado e o enxergou.
Quando declararam que o sentimento que os unia era a plenitude do amor, mesmo que ferisse, sem querer, alguma vez, e que aquecesse o peito. Ainda que fossem jovens e, por serem novos, simplesmente descobriram o que haveria de ser, se não isso: mais amor, por obséquio.
Nos bastidores, Du e , sentados, visualizavam o tablet com a tela virada para cima.
Hi, guys!
Du reclamou com Luana, por estar abusando do idioma, e depois sorriu. virou o tablet em direção aos outros, e Luana, de moletom, desejou sorte a cada um, no Canadá.
— THE NACIONAIS, CADÊ VOCÊ? EU VIM AQUI SÓ PRA TE VER!
Eles se empertigaram, surpresos e ansiosos com a recepção calorosa dos outros formandos na pista de dança.
e trocaram olhares.
— EDUARDO, CADÊ VOCÊ? EU VIM AQUI SÓ PRA TE VER!
Du riu, dando um tapinha amistoso nas costas do amigo e líder da banda.
— É, as fãs me adoram.
— Vamos por este lugar pra sair do chão.
aproximou-se de .
— Eu tenho orgulho de você.
— Tenho de você também. Orgulho, admiração... — Foi enumerando com os dedos. — Tô me esquecendo de algum?
sorriu.
— Assistirei daqui. — Ergueu os pés para tocar os lábios na sua testa, e ajudou, inclinando-se. — Será o show!

— Feras, saiam do chão, que nós aqui não brincamos, não! — Du riu, virado de lado, para o próprio bordão. — Eu sou bobo mesmo. Bora lá!
Ao som de 'Tempos Modernos', a festa realmente aconteceu.
...Eu quero crer no amor numa boa, que isso valha pra qualquer pessoa... Que realizar a força que tem uma paixão. Eu vejo um novo começo de era; de gente fina, elegante e sincera com habilidade pra dizer mais sim do que não. Hoje, o tempo voa, amor... Escorre pelas mãos...
O coro se fez presente, gritos e assobios, e os garotos finalizaram a canção.
De repente, os alunos calaram quando pediu um tempo.
— Chamo para subir neste palco e cantar a canção para encerrar a noite, Gusmão. , cadê você?
! ! ! !
Acanhada e escondida, afastou-se, negando, na pista. Em determinado momento da apresentação, ela desceu.
— Ajuda a gente, galera! — Du pediu.
, CADÊ VOCÊ? EU VIM AQUI SÓ PRA TE VER!
foi arrastada pelos alunos, que a levaram no colo, para a escada, e a garota, envergonhada, fez uma careta para , avisando inaudivelmente que ele pagaria.
lhe entregou um microfone.
— Esta é minha melhor amiga, gente, e o meu amor.
Dayana virou-se de costas e saiu da pista.
— Não funcionou.
Ele riu.
— Permita-se pagar esse mico comigo — pediu baixinho. — Minha voz é como um desentupidor, né?
— Se a sua é isso, imagina a minha...
— 1, 2... — Maneou a cabeça para Pedro Lucas e os outros. — Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo. Todos os dias, antes de dormir, lembro e esqueço como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder...
Com 'Tempo Perdido', do Legião Urbana, despediam-se desta casa, escola, abrigo, oficina de talentos.

Longe dali, dois garotos sentaram-se à mesa, abraçados, e uma menina juntou-se a eles.
— Sofri bullying na escola, mas superei e me formei. — Sorriu um deles, sentindo as bochechas sendo apertadas pela menina. — Justamente por essas bochechas de Quico. Aprendi a me amar como sou.
Os dois ovacionaram.
— Não vou sentir saudade do colégio, mas de vocês.
— É dos amigos que fizemos que sentiremos falta. De acordar cedo, estudar em véspera de prova, escutar sermão..., não.
— Na faculdade piora... — Um deles suspirou. — Mercado de trabalho também.
— Vamos fazer o que?

A mão de tremia, e ela não conseguia simplesmente levar o microfone à boca. Tinha muita gente, muita luz, muito barulho.
Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sérioooo e selvaaaagem. Selvaaaagem, selvaaaageeeem. Veja o sol dessa manhã tão cinza, a tempestade que chega é da cor dos teus olhos . — Ele se permitiu alterar a cor para fazer jus ao de . — Então me abraça forte. Me diz mais uma vez que já estamos distantes de tudo. Temos nosso próprio tempo. Temos nosso próprio tempo. Temos nosso próprio tempo.
Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora. mais declamou que cantou. — Não consigo.
O que foi escondido é o que se escondeu, e o que foi prometido, ninguém prometeu... Nem foi tempo perdidooo. Somos tão joooovens. — Segurou a mão de .
Tão jooovens. Tão joveeeens.
A plateia ovacionou, e os garotos largaram os instrumentos e correram para a selfie do The Nacionais, que seria postada nas redes:



#acabou #somostãojovens #feras2014 #TheNacionais #noissevêporaí #abraçocoletivo #fechaolivro # #LuanaeIsacvaidarnamoro #Duéocara #PeLulindo
O último, acrescentado mais tarde, que esqueceram:

#Fim



Nota da autora: (22/01/2017) Cabô.
Na real, sempre invento de pensar na nota final antes de chegar ao fim, daí, quando chega, nunca sei o que escrever. Tipo, agora.
Sabe de onde vem Enrolados? Da minha vida real. Algumas experiências minhas, inventadas, de pessoas que conviveram comigo (distantes ou não) nesse colégio, que, na verdade, tem um nome parecido. A cidade também é minha, apesar de eu não tê-la fundado. Se eu tive um romance com meu melhor amigo? #descubra.
Brincadeira. Não tive, não, e ninguém que eu conheço. Sabem da novidade já, né? Novo livro no universo de Enrolados (Desconect@dos) vem aí!
Obrigada por darem uma chance, por acompanharem e comentarem! De coração, 6 são lindas! :')

Beijos,
Ray.




comments powered by Disqus




Qualquer erro nesta atualização são apenas meus. Para avisos e/ou reclamações, somente no e-mail.
Para saber quando essa linda fic vai atualizar, acompanhe aqui.



TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO SITE FANFIC OBSESSION.