Capítulo Único
Ponto de partida
O suspiro forte trouxe certo alívio para o frio na barriga que sentia conforme caminhava em passos lentos aquele curto espaço que separava sua cama da porta do quarto. Agradeceu por passar ilesa em meio ao escuro e não bater seu dedo no pé da cama ou até mesmo de sua cômoda, os móveis que mobilhavam seu pequeno metro quadrado. Quando colocou a mão na maçaneta da porta, após um tempo tateando aquele canto específico, sentiu o frio na barriga novamente: a partir do momento que abrisse aquela porta, seu dia iniciaria – não literalmente, visto que era nove e meia da noite ainda. E não estava pronta para aquilo, mesmo que já fosse sua rotina há meses.
Tentou mais outro suspiro e girou a maçaneta, puxando a porta com a atitude automática de seu cérebro. Se colocou para fora, dando dois passos no curto hall entre seu quarto e o banheiro do pequeno apartamento que alugava. A única luz que vinha era pela janela deste tal hall, e aquela parte em questão sempre estava iluminada pela luz que vinha das ruas brilhantes da grande Seul. Sua indisposição para acender as luzes já era algo bem corriqueiro.
Caminhou para dentro do banheiro minúsculo e acendeu a luz, internamente travando aquela luta para viver mais 24 horas de sua rotina árdua em um plantão no hospital mais movimentado da cidade, a qual iniciava às 11 da noite por pelo menos 29 dias no mês – sim, ela não sabia o que era uma escala contendo pelo menos uma folga a cada seis ou sete dias trabalhados. Contudo, absorta na tentativa de cessar sua própria ansiedade, concentrou-se em tomar um banho quente para fazer com que pelo menos o frio físico pelo inverno coreano fosse contido.
Banho. adorava tomar banho, ainda era algo de sua rotina que, felizmente, não caíra no automático. O tempo gasto embaixo da água muitas vezes passava do recomendado e, por isso, ela se culpava e sempre pedia desculpas à mãe natureza. Sabia que o seu consumo excessivo de água era expressivo, mas ainda se permitia ser egoísta em certo ponto. Era algo que ainda a deixava mais animada e lhe recarregava as energias para ir trabalhar no local que passara a odiar de um certo tempo de sua vida em diante e onde agora passava mais tempo de sua vida do que o comum.
Não demorou muito, além do comum, para sair do banheiro enrolada em uma toalha e tentando conter os fios de cabelos com uma escova após lavá-los, tamanha era sua vontade de apenas prender e seguir a vida. Depois dessa batalha vencida, seguiu seu rumo para o guarda-roupas e pegou algo que ela chamava de “uniforme independente”, uma combinação de calças jeans e camiseta de manga comprida em qualquer cor. Claro que não deixou de vestir uma meia calça e um casaco de lã bem grosso para poder enfrentar os –2 graus no exterior de sua casa, presente de outono. Nos pés, colocou as botas de solado grosso e forro interno confortável, precisava esquentar os pés vestidos com meias e também era necessário tê-los confortáveis para dirigir por quase quarenta minutos o trajeto que ligava sua casa ao hospital.
Quando terminou de se vestir, ficou no dilema de secar ou não o cabelo e ao bater o olhar no relógio de pulso decidiu que apenas uma touca por baixo do capuz do casaco que iria vestir era o suficiente para até que entrasse no carro e estivesse sob o ar quente fornecido pelo mesmo. Após terminar de se vestir por completo, então, seguiu o rumo para a pequena sala, juntando partes do seu material espalhado e alguns livros. Uma vez que estava tudo dentro da bolsa que sempre carregava, checou uma última vez o ambiente, se lembrando de que deveria ligar para que Sohoo fosse fazer seu milagre de organização de limpeza por ali o quanto antes.
já não aguentava mais ouvir Hyun falar sobre como sua viagem para o ocidente tinha sido mágica e que salvar milhares de vidas que sucumbiam ao vírus "maldito" fora uma das coisas mais estupendas de toda a sua existência. Não que ela sentisse inveja ou estivesse entediada com as histórias, mas já era cansativo demais ter passado quase um ano completo refém de algo que causara tantos estragos, tantas perdas.
Foi um alívio para ela quando o residente, que havia sido enviado para a América do Sul como reforço no combate ao Coronavírus, finalizou a sutura do corte feito no peito do paciente inconsciente naquela mesa de cirurgia. Parabenizou o estudante pelo trabalho feito – mais um de seus gestos automáticos – e rumou para a saída. Retirou todo o seu equipamento individual de proteção e, depois de se higienizar, vestiu um kit novo para que pudesse voltar a caminhar nos corredores do hospital sem qualquer restrição. Sequer deu tempo de Hyun aparecer e destilar sua empolgação por sua viagem somada à cirurgia de correção para cardiopatia congênita feita no bebê de poucos meses.
Saiu do centro cirúrgico e caminhou tranquilamente para a clínica. Durante o caminho, fez o relatório da cirurgia feita no pequeno Kai, não deixando de refletir sobre mais um de seus pacientes. Em quase sete anos sendo médica atendente, com três chefiando o setor de cirurgias cardíacas, sempre tirava de alguma pessoa atendida – sobrevivente ou não – o que podia sobre a situação. No caso de Kai, ela continuava o mesmo questionamento que nunca lhe trazia respostas: "por quê?". Era um bebê de apenas três meses que havia passado pela sua segunda cirurgia de reparação, para que pudesse ter um tempo a mais de vida e, com muita sorte ou benção, o que preferissem, pudesse ser aproveitado mais por seus pais. Estes que com certeza sofreriam posteriormente ao encararem a dura realidade de enterrar um filho, que desde o princípio já teve sua longevidade contada para antes deles, com um caminho pesado por sofrimento.
E todo o contexto de Kai a deixava profundamente nauseada e esgotada: além de ter desenvolvido problemas cardíacos logo no útero de sua mãe, nasceu em um ano regado a uma pandemia que sequer despontava um final próximo, e, para sua sorte de principiante, teve de contrair o vírus logo em seu primeiro mês. Então a pergunta que não tinha resposta para a doutora englobava: por que nascer nessa beira de sofrimento, sendo usado como uma manobra para ensinar pessoas adultas alguma lição sobre a vida que muito provavelmente logo seria esquecida? Talvez também não estivesse mais ansiada por descobrir.
Deixou o tablet em cima da bancada da enfermaria da UTI pós-operatória com as instruções para a enfermeira de alguns pacientes que precisavam refazer exames e seguiu, finalmente, para a clínica de atendimento 24h. Claro que praguejou toda a existência de Ahra por tê-la colocado naquele lugar, de tantos médicos disponíveis, ela tinha que escolher justamente para o trabalho mais torturante de qualquer cirurgião daquele hospital?
Verificou o movimento e respirou aliviada ao certificar-se de que estava tranquilo. Conversou brevemente com a enfermeira encarregada ali e recebeu um relatório dos pacientes que já haviam sido atendidos e os que ainda aguardavam. Um deles logo lhe chamou a atenção pelo nome no prontuário: Jung Hoseok. Tudo bem que desde sua chegada a Seul já havia visto muitos nomes parecidos, mas os detalhes adicionais sobre endereço e idade completavam a ideia de que era seu vizinho quem estava ali, aguardando atendimento. E se ela bem recordava, Hoseok tinha um câncer de tireoide do tipo anaplásico, raro como seus sorrisos nos últimos meses.
Assim que entrou na sala em que ele estava, já vestida com luvas e a roupa de proteção necessária, recebeu seu olhar tranquilo, acompanhado de outro – que ela lembrou vagamente de já ter encontrado no elevador do prédio em que moravam.
— Olha só se não é minha vizinha mais quieta que os filmes do Chaplin! — A voz cansada de Hoseok tinha um leve tom de brincadeira e ela apenas o olhou sorrindo de forma automática. Ele sempre tentava arrancar sorrisos das pessoas do prédio.
— O que temos aqui, senhor Jung? — se limitou ao seu profissionalismo e perguntou enquanto checava a quantia de oxigênio que estava sendo enviada pelo cateter colocado no nariz dele e a medicação no soro.
— Você pode me chamar de Hobi, doutora... — Ele respondeu, sua voz estava um pouco mais cansada. — Sem limites pelas formalidades, somos vizinhos há tempos.
— Vamos nos limitar ao que está acontecendo aqui então, ok? — tentou soar um pouco mais dura. — Vi em seu prontuário que teve uma crise forte de asma. Não está usando sua bombinha, Hoseok?
— Ele usa, mas apenas quando encontra. — A voz do terceiro corpo presente naquela sala se fez presente e o olhou rapidamente, antes de tornar a encarar seu paciente.
— Ah, qual é, Namjoon! — Hoseok exclamou revirando os olhos, em seguida, não aguentou segurar a tosse e precisou da ajuda da médica para conseguir se livrar do nó em sua garganta causado pela tosse.
— Vamos devagar... — suspirou e o ajudou a se sentar, começando a usar seu estetoscópio para ouvir sua respiração, surpreendendo-se com o que ouviu. — Você precisa levar mais a sério o quesito "se cuidar"... — ergueu o olhar para Namjoon e, completamente séria, já tendo noção do que Hoseok estava tendo, disse: — Não precisa de muito para saber que ele está com pneumonia. — Suspirou, levando o objeto para a parte frontal do tronco de Hoseok. — O peito dele está cheio... temperatura acima de trinta e oito graus, dores no peito e essa tosse carregada. Iremos fazer o teste para Covid, com certeza, mas acredito que este seja o diagnóstico.
— Então ele vai ficar aqui? — Namjoon questionou.
— Ahn... Eu não acredito que seja o ambiente mais seguro. Mas também não confio que ele vá para casa e fique sozinho. — Se afastou de Hoseok e cruzou os braços.
— Eu não preciso de babá. — Ele resmungou.
— Se não precisasse, não estaria aqui três da manhã nesse estado.
— Bom, eu posso ficar com ele, doutora, mas acredito que seja necessário fazer uma higienização na casa dele antes de levá-lo embora. — Namjoon se levantou, um pouco mais sério desta vez.
— Eu posso deixá-lo aqui por mais algumas horas após os exames, confirmando o resultado, e você volta para buscá-lo. — sugeriu já se preparando para sair dali.
Namjoon apenas confirmou positivamente e ela se despediu para sair da sala. Parou na enfermaria pegando o tablet, prescrevendo mais medicação e solicitando exames com maior emergência. Não conteve a irritação pelas irresponsabilidades de Hoseok quanto à sua condição.
Se bem recordava, Jung Hoseok havia descoberto seu carcinoma anaplásico alguns meses antes, logo no início de 2020 talvez. Infelizmente ele fora pego por um câncer de tireoide totalmente raro e fatal, com poucas chances de cura. Felizmente, até onde sabia, por ter um tumor nem tão grande, a tireoidectomia seguida de radioterapia fora feita com sucesso e a retirada total da glândula ainda não havia apresentado nenhum quadro reverso.
Mas ela novamente se questionava: por quê? Se estatisticamente e comprovadamente aquela medida drástica de intervenção do tumor serviria apenas como uma contenção temporária, por que conter o sofrimento que viria depois? Adiar o inevitável era algo que a deixava sempre irritada. Hoseok era o típico vizinho alegre que respeitava a vizinhança e era sempre o comunicativo do elevador. Poucas foram as vezes que se sentiu desconfortável dividindo o espaço com ele. Chegou a cogitar um certo tempo que deveria ter aproveitado mais as conversas sobre o tempo ou as ruas cheias da cidade enquanto subiam ou desciam, antes de ter sido obrigada a se isolar no hospital e posteriormente em seu quarto acompanhada de sua depressão desenvolvida por todo o estresse de seus meses enfrentando aquela rotina nem um pouco animadora.
concordava consigo mesma que deveria ter aproveitado muito mais e refletido mais sobre muitas coisas; teria o feito se soubesse que seu presente – que um dia fora o futuro – teria sido tão duro assim. Agora lhe restava apenas tentar sair daquele afogamento. Mesmo que sozinha.
— Tchau, doutora ! Tenha um bom descanso e boa folga.
sorriu para a enfermeira que sempre era simpática com ela e que insistia em não gravar o nome. Passou pelo corredor extenso de desinfetação e quando alcançou seu armário na sala de médicos atendentes, logo tratou de se vestir e pegar o rumo para o estacionamento. Assim que chegou em seu carro, suspirou aliviada, mais um plantão havia acabado e mais uma vez ela tinha saído viva, mas não sem pensar no contrário.
Decidiu que iria passar na cafeteria mais próxima no caminho para casa, mas mudou de ideia só de pensar que teria de estar em um ambiente com outras pessoas, que muito possivelmente estariam animadas em plena quinta-feira às quatro da tarde. Então foi direto para casa, faria um chá e comeria alguma torrada que tinha em seu armário. Precisava do seu tempo embaixo do chuveiro e queria correr para sua cama que lhe esperava da mesma forma que havia deixado.
Se tivesse sorte, não seria chamada para resolver algum problema ou atender algum paciente durante seu período de folga e voltaria a trabalhar apenas no sábado à noite.
Se tivesse sorte.
O caminho pelas ruas movimentadas de Seul foi como sempre. Pessoas ocupadas demais em suas rotinas individuais para prestarem atenção no momento exato que o semáforo fechava ou abria para pedestres. Imersos em seus telefones durante a caminhada, ou em seus livros enquanto sentados, como se o mundo fosse apenas aquilo que tinham consigo mesmos. Ou seria a desinformada que ainda não havia compreendido absolutamente nada, mesmo com os meses a fio enfrentando o que seria um dos maiores desafios da população mundial quanto a cuidados sanitários?
Ela não entendia como que um momento onde muito fora tirado e pouco dado – de forma material – ainda era subestimado por tanta gente.
Quando estacionou o carro em sua vaga na garagem subterrânea saiu do veículo em mais um de seus movimentos automáticos. E, novamente, sem ter conhecimento sobre nada à sua volta, fez o caminho até o elevador social, tomando todos os devidos cuidados sanitários. Do elevador, entrou no apartamento pela cozinha e sem muito rodear, seguiu direto para seu banheiro. Se despiu com os movimentos tão ansiosos quanto o do dia anterior e talvez menos que do dia seguinte.
Sempre tinha a preocupação ambiental por gastar tempo demais no banho, mas não conseguia se sentir mal por completo, já que era o momento em que descontava toda sua ansiedade e agradecia mentalmente ao que tivesse que agradecer por ter o privilégio de um chuveiro bom, potente e com água quente, e, claro, poder pagar a tarifa alta de energia.
Quando terminou sua rotina e se alimentou do pouco que conseguiu – anotando um lembrete em sua geladeira de pedir itens do mercado –, seguiu para seu quarto. Não fez questão de arrumar a cama ou até mesmo de colocar o carregador na tomada. Ligou o ar quente e se colocou embaixo de suas cobertas, sem demorar a dormir.
Não parecia que tinha dormido tanto, mas a dor no corpo por tanto tempo deitada denunciava que a aparência sempre engana. E então a campainha fora ouvida, de forma estridente, não a deixando continuar seu momento relaxante naquele escuro. Levantou procurando por sua saída de banho e a vestiu no caminho até a porta, sendo iluminada pela luz da rua que vinha da janelinha – como sempre. Passou a mão pelo rosto e quando alcançou a porta, olhou através do olho mágico, tendo a visão de Namjoon inquieto do lado de fora, prestes a tocar novamente a campainha. abriu a porta.
— Ah, que bom! — Namjoon exclama ao ver a mulher em sua frente. — É o Hobi... Eu preciso... Ele precisa da sua ajuda. — Suas palavras soavam rápidas demais e ela ainda estava muito sonolenta pra entender.
— Mas... O quê? — Pressionou os olhos confusa.
— Doutora, o Hobi está passando muito mal! — Ele estava ofegante e o tom desesperado logo acordou para o entendimento natural de que Namjoon estava pedindo ajuda para seu amigo.
— E o que ele tem?
Ela não se preocupou em fechar a porta, apenas foi em direção à caixa de máscaras e luvas descartáveis, pegando as duas e seguindo Namjoon pelo corredor sem nem fechar sua porta. Desceram os dois lances de escadas enquanto ele a dizia sem muita convicção o que viu o amigo sentir. não se poupou em fazer nada engessado, seus anos de experiência contribuíram para que tudo saísse automático e ainda assim com excelência.
— Hoseok, estou aqui! — Disse calmamente entrando no quarto, o encontrando na cama, suado e com os cabelos desgrenhados. — Consegue me dizer o que está sentindo? — Tocou levemente em seu braço descoberto, sentindo um pouco de sua temperatura corporal.
— Ele está com muita falta de ar, frio e suando. — Namjoon se apressou a situá-la.
— Ok, são sintomas comuns da pneumonia, Namjoon. — Respirou séria. — Ele iniciou ontem com o antibiótico e outros remédios, deu o para febre?
— Erm... não. — O rapaz coçou a cabeça se sentindo péssimo por ter esquecido desse detalhe.
— Foi comprado?
— Foi, foi sim, doutora!
— Coloca quarenta gotas em menos de um dedo de água para ele. — Olhou mais uma vez para a cama, após ver Namjoon sair do quarto.
Não soube explicar nem para si mesma como aquilo aconteceu, mas ao bater o olhar em Hoseok, percebeu que o mesmo estava em uma crise de ansiedade, talvez fosse o olhar assustado do mesmo que lhe causara isso. Ou talvez ela já estivesse mesmo em um nível de alto conhecimento sobre a saúde de seus pacientes, mesmo que fosse a parte mental. E, até mesmo ou, fosse sua empatia por reconhecer aquela temperatura fresca em um corpo todo suado enquanto o batimento cardíaco estava a mil, parecendo estar queimando corporalmente acima dos trinta e nove graus; era como ela se sentia quando tinha suas crises no meio da noite, de plantões, no caminho para casa, ou em qualquer outro momento que surgisse do nada – com o trabalho incessante de sua mente sobre assuntos que a causavam um certo medo, no excesso de passado, peso do presente e falta do futuro.
Por sua empatia, ao saber que poderia estar certa sobre seu diagnóstico de Hobi, decidiu não dizer de imediato para Namjoon que o amigo acamado estava passando por uma crise de ansiedade absoluta. Isso deixaria o outro preocupado e poderia lhe causar alguma dúvida sobre ser o culpado por tal ocasião, afinal, era ele quem estava sendo responsável por Jung Hoseok. Reparou que em cima do balcão da pequena cozinha – assim como era no seu apartamento – estavam os remédios, mas no rápido caminho que fez até o quarto notou a ausência de uma caixinha, justamente a para curar a febre de Hoseok.
Pensar estrategicamente e rápido fora algo que lhe custou a aprender, mas que os anos de experiência dentro de centros cirúrgicos, aprendendo com cirurgiões renomados e exigentes, lhe coube muito bem. E sua estratégia de pedir que Namjoon trouxesse um remédio que provavelmente não tivesse sido comprado renderia minutos de conversa com Hoseok. O que poderia lhe fazer muito melhor do que ser dopado de mais remédios na situação de saúde física em que já se encontrava.
— Doutora, não tem remédio... — Não demorou muito para que a voz grossa se fizesse presente novamente na porta do quarto.
— Ele precisa...
— Se você puder ficar por aqui enquanto vou na farmácia, posso ir comprar rapidinho. — Ele a corta, dando-lhe uma solução.
— Eu fico.
Não precisava de muito para a convencer, era exatamente o que ela queria. Por baixo da máscara seria possível ver um sorriso fino em seus lábios por ter parte de seu plano correndo bem. Se estivesse mesmo com um olhar clínico aguçado, aquilo poderia valer a pena.
Namjoon lhe deu as costas e resmungou algo sobre voltar logo, havia essa farmácia na esquina de uma terceira quadra depois da deles. Ela pouco esperou, puxou o banquinho próximo à porta e se sentou na lateral da cama, tirando suas luvas e higienizando suas mãos com o álcool em gel. Em seguida, foi surpreendida pela voz suave e rouca dele.
— 2020 não tem sido muito generoso com a gente, não é, doutora?
Ao mirar os olhos para a direção da cama, encontrou com os opacos de Hoseok. Não se lembrava de alguma vez tê-lo visto tão apagado, pelo menos em sua memória ele era aquela pessoa que poderia ser a personificação de vívido.
— Muitas coisas aconteceram em um curto espaço de tempo, Hoseok. — Ela disse cruzando seus braços, tentando não soar tão desesperada por soluções que nenhum deles poderia encontrar de repente.
— Na verdade, o tempo é apenas relativo, doutora-
— . — Ela o cortou apressada, não de forma mal-educada. — , mas pode me chamar de .
— Eu sei. — Hoseok se ajeitou na cama, olhando com o melhor sorriso que aquele momento ansioso lhe permitia. — Mas gosto de te chamar de doutora. Algum problema com isso?
soube compreender a pergunta em sua base. Não era algo como um flerte abusivo, em que Hoseok estava se opondo contra uma vontade sua; pelo menos o que o olhar e a voz dele diziam era que realmente gostaria de saber se aquilo a afligia de alguma forma. Ou, novamente em dúvida, talvez ela estava tão intimamente em busca de um lugar para esvaziar seu copo cheio até a borda em algum recipiente sem furos, para que não vazasse em exagero.
— Não.
Resolveu ser simples em sua resposta. estava ali apenas para atendê-lo como um paciente, era ele quem precisava ser cuidado naquele momento – não que fosse um regra padronizada de que ela estivesse bem em todos seus atendimentos, havia se tornado corriqueiro, parte do seu "diariamente", querer sair em direção às colinas.
Ouviu muito a expressão "fuja para as colinas" e se lembrava de ter ouvido em alguma música por aí que as colinas não possuem olhos, trazendo uma analogia muito interessante.
Mas mesmo que usasse uma máscara cobrindo metade de seu rosto, seus olhos estavam à mostra e pareceu ser o suficiente para que Hoseok lesse.
— Você não sabe mentir. — Novamente se moveu na cama. — Não sei como Namjoon acreditou em suas palavras, deve ser o nervosismo. — deu de ombros.
— O que você quer dizer?
— Bom, moramos no mesmo prédio e nos encontramos no elevador já faz um tempo considerável, . — Sim, ela tinha de concordar com ele. — Lembro quando te perguntei sobre um dia de Sol e você fez essa mesma ruga com os olhos ao dizer que amava um dia ensolarado. Novamente vi as rugas quando nosso síndico decidiu que iria realocar as vagas da garagem e você disse um simples "tudo bem". Eu vi que não estava nada bem, seu olhar furioso dizia o contrário.
Como era possível ele a conhecer assim? era uma pessoa de fácil leitura ou Hoseok sabia compreender e apreciar o alheio?
— E-e-e-eu...
— Eu vou perguntar de novo, é mais uma chance de você ser honesta consigo mesma — Piscou em sua direção. — Qual o problema em te chamar de doutora?
— Nenhum.
Hoseok não se convenceu, claramente. Apenas suspirou, ajeitando o cateter de oxigênio em seu nariz. Um simples movimento que novamente trouxa aquela atenção de aos detalhes. Ela queria muito encontrar respostas para todos os seus questionamentos, e ver Jung Hoseok dependente de algo tão pequeno lhe fazia pensar sobre a dependência.
Quando, como e por quê havíamos nos tornado tão dependentes de coisas que nos foram tiradas nestes últimos tempos? Por que dar e depois tirar? O arrependimento natural vinha em forma de punição humanitária?
— Vou pedir para um colega receitar algum floral para você, ajudará na sua ansiedade. — iniciou se levantando, sua cabeça parecia pesar quilos a mais com o tanto de coisa que se passava por ali. — Ninguém precisa ser legal e alto astral o tempo todo, Hoseok. Eu sei que não faço a mínima ideia do que você está passando, somos indivíduos e cada um com seus problemas é o clichê mais real possível.
Hoseok concordou em um aceno positivo com sua cabeça, observou voltar o banquinho para o lugar de origem e a ouviu dizer que lhe faria um chá.
— Eu me lembro de uma mulher mais sorridente, menos carrancuda e com pouca olheira apesar do trabalho cansativo em um hospital... O que aconteceu com ela?
A fila incomodava. O barulho da conversa entre os clientes da farmácia fazia com que sentisse aquele anseio por ir embora logo, estando em batalha com a determinação de comprar para Hoseok o floral que seu colega psiquiatra havia receitado. Depois de ter deixado o apartamento do vizinho, algumas poucas horas após o retorno de Namjoon, ela teve quase quatro dias para pensar e refletir a pergunta de Hobi. Uma questão que ela nem mesmo sabia buscar em si desde o zero, precisando que outra pessoa lhe apontasse.
O que havia acontecido com , afinal? Ela sabia mesmo o que estava se passando consigo? ainda se conhecia o suficiente para enxergar alguma alteração no seu próprio eu interior assim como um estranho havia o feito? Porque não havia como Hoseok ser totalmente conhecido de seus traços, a não ser por observar o outro tão incisivamente, o que ela nunca havia dado oportunidade a ele para tal.
E as dúvidas foram tão contrastantes, que pela primeira vez ela sentiu o "não estou bem" bater extremamente forte.
Precisou de um certo tempo para compreender que seu anseio era realmente uma ansiedade generalizada resultante de seu estresse com a rotina. E precisava agradecer a Hoseok por lhe te tirar a venda dos olhos.
Sabia que para um tratamento de ansiedade dar certo, era necessário um passo a passo de paciência. E testou muito isso enquanto estava naquela fila para o caixa. Desviou a atenção para a televisão que estava ligada no noticiário, contando sobre o falecimento da namorada de um dos maiores ídolos do Kpop, Kim Taehyung. Não deixou de sentir o quão trágico aquilo podia ser, havia se acostumado a ver tanta tristeza com as perdas no hospital, que podia sentir em si aquele peso do luto – principalmente com uma pandemia tão estarrecedora.
E era isso também que precisava trabalhar em si: o autocuidado. Até que ponto foi benéfico receber o outro e esquecer de si? Por hora, sua resposta era nada.
A mesma reportagem contava como Taehyung, também conhecido como V, tinha se abatido com a chegada do vírus que parou todo um planeta, se tornando dependente de algumas substâncias. prestou atenção até se dar conta de que a palavra reabilitação era usada com tanta facilidade, como se quisessem estampar que o cuidado era fácil.
Muitos não fazem ideia do quão difícil é se recuperar daquilo que te levou a alguma profundeza sombria.
Quando sua vez de pagar chegou, se sentiu agradecida por ser rápido e logo estar em direção ao seu condomínio. Se permitiu observar as ruas que agora se recuperavam da neve e, claro, do apagão sofrido pela pandemia. Mesmo que fosse necessária uma nova forma de viver o dia a dia, estava tudo voltando para o lugar como em um novo normal. E isso poderia ser suficiente em um ponto de vista mais realista.
No ponto de vista de .
Depois de chegar da rua, tomar um banho e se trocar, foi direto para o andar de Hoseok e logo estava batendo na porta. Segurou firmemente o pacote em sua mão coberta por luvas e franziu o nariz preocupada e pouco incomodada com a máscara que lhe apertava o nariz. Estava preparada para dizer ao vizinho o que seu eu interior gostaria de ter dito dias atrás. E quando ele abriu a porta, encarando-a confuso, ela disparou:
— Também queria saber o que houve com . — Disse rápido demais. — Digo, você está certo. Algo aconteceu e eu tive esses últimos dias para pensar sobre.
— Então encontrou respostas. — Ele respondeu ajeitando o cateter de oxigênio no nariz. Ela apenas assentiu. — Quer compartilhar? — Abriu um pouco mais a porta para que ela tivesse espaço para entrar.
sorriu, mesmo que não pudesse ser visto. Hobi sabia que ela estava com os lábios bem abertos por conta das rugas nos cantos de seus olhos.
— Com licença — Disse entrando.
Tudo estava como ela se lembrava do outro dia que esteve ali. Até mesmo a organização dos remédios.
— Eu tenho complexo com organização... — Hoseok a explicou, entendendo seu olhar.
— Ah... Queria ter o mesmo. — Murmurou, ainda parada na entrada do apartamento.
— Vem cá, estava fazendo um café, você gosta? Prefere chá?
percebeu como ele se movia tranquilamente mesmo que carregasse um cilindro de oxigênio para todo canto em um carrinho pequeno. Parecia tão acostumado, como se aquele objeto que lhe garantia uma certa parcela da sobrevivência, fosse parte de si.
E tão logo quanto apareceu, espantou o "por quê?" que surgia.
— Aceito um chá. — Sorriu simples.
— Pode tirar sua máscara se quiser, doutora. — Hoseok disse se colocando atrás do balcão que separava a pequena sala da pequena cozinha. — Eu fico por aqui e você aí. Sem problemas. — Sorriu abertamente.
Ah, como Jung Hoseok sabia direcionar um sorriso cativante. Ela se lembrou disso neste momento. A primeira vez que o tinha encontrado no elevador a fizera ter um baile no estômago só pelo vislumbre daquele sorriso.
— Ah! Vou deixar seu floral aqui... Posso ir ao banheiro higienizar minhas mãos?
Hoseok assentiu e ela deixou o pequeno pacote em cima da mesinha no canto da sala. Não demorou muito dentro do banheiro, apenas o suficiente para lavar bem suas mãos e rosto, se sentindo mais higienizada para estar ali – mesmo que tivesse tomado um banho antes. Quando retornou, se deparou com uma mesa bonita de café para aquela tarde, com direito a flores em cima da mesa.
— Exagerado?
— Não, achei adorável. — sorriu se aproximando e sentando na cadeira que havia lhe sobrado.
— Fique à vontade, .
A xícara em sua frente estava cheia com um chá de aroma agradável. O ar fresco que entrava pela janela aberta da sala fazia com que se lembrasse de sua infância na Suíça, seu país natal. Se sentiu acolhida como sempre sentira nas vezes que ia tomar um chá à tarde na casa de sua avó.
— Você é como uma caixinha de música, a gente precisa dar a corda para que toque. — Hoseok a pegou de surpresa, dizendo com seu tom divertido.
— Não, desculpa... Eu estava me lembrando de quando morava na Suíça e ia da minha casa para a de minha avó tomar chá de pitaya com ela. — respondeu nostálgica.
— Sua família toda mora lá ainda?
— Sim. Pelo menos o que sobrou dela. — Riu fraco. — Minha mãe e meu pai ainda são vivos, mas meus avós dos dois lados já faleceram. Causas naturais. — Deu de ombros, já fazia tanto tempo que não se sentiu mais incomodada ao mencionar tal fato.
— Como você consegue viver sozinha aqui?
E isso era algo que nunca havia parado para pensar: como ela estava mesmo vivendo em um lugar sem sua família, completamente sozinha?
Seu círculo de amizades resumia-se a colegas de trabalho, os quais encontrava apenas no hospital e, em um atrevimento repentino, poderia dizer que Hoseok era o mais próximo de companhia que ela tinha. Mesmo que os encontros no elevador houvessem cessado devido ao isolamento obrigatório.
— Bom, eu fui me acostumando com as companhias que ia conseguindo pelo caminho. — Torceu os lábios. — No trabalho, na padaria, no elevador...
Hoseok sorriu fraco, bebericando novamente de sua xícara. Então um pensamento surgiu em sua cabeça. Mesmo que estivesse em uma certa zona de risco perante à crise sanitária mundial, Jung Hoseok não aguentava mais se guardar por tanto para nada. E ele apreciava a companhia de , até mesmo quando ela pouco o notava logo que se mudou para o condomínio. Gostava de como ela o encarava sem o olhar de pena por ser o solteirão morando sozinho e dependente de remédios fortes por uma condição de saúde pífia.
E o pensamento que lhe acometeu era, no mínimo, de fácil negação para a mulher em sua frente, porém valia a tentativa.
— Eu vou te convidar para um jantar e você não irá negar. — Tentou o seu melhor sorriso, novamente ajustando o cateter. Ela apenas o encarava sem esboçar reação. — , aceita um jantar comigo?
— Não podemos sair, é muito arriscado para você que está numa zona de risco maior...
— E quem disse que vamos para outro lugar? — Ele a cortou. — Esteja pronta às oito em ponto e com sua melhor roupa empoeirada pela pandemia de tanto tempo guardada.
Era um jantar no terraço.
Era um jantar no terraço com .
Era mais um jantar no terraço com , a pessoa com quem Jung Hoseok estava dividindo as vinte e quatro horas de seus dias nos últimos três meses – a maior parte virtualmente, já que ela trabalhava e também tinha extremo cuidado com a prevenção da saúde dele. Para ele, aquilo soava excepcionalmente gratificante, pois ela era o que mais lhe fazia ter uma certa força para superar aquele tédio da vida que estava tendo.
Todos os dias passava para conversarem e tomar um chá, e rotineiramente tinham o jantar no terraço do prédio em que moravam. SeokJin, um dos amigos mais próximos de Hoseok, era um cozinheiro de mão cheia e se comprometia a levar para o amigo um menu caprichado, para que Namjoon arrumasse tudo em perfeita ordem para eles.
Os amigos de Hoseok eram, em resumo, o que moviam todo o ânimo dele. Era como uma troca incessante de forças; por tão de repente ter de parar com o trabalho árduo em estúdio produzindo músicas, todos concordaram que deveriam apoiar o mesmo. E ele não recusava, sabia muito bem de seus limites e até onde precisava ou não de uma forcinha. Jung Hoseok era o que pode ser chamado de sensato, incluindo sobre sua própria vida.
E era por ser assim, uma pessoa tão aberta, observadora e ao mesmo tempo sensível, que se sentia confortável em sua presença. Desde o primeiro jantar que tiveram no terraço ela não soube mais como se deixar levar e aprofundar na escuridão do próprio apartamento. Portanto, os jantares eram no dia de sua folga. E vale ser dito também que pouco ela via de sua casa, pois quando não esteve descansando, apreciou a companhia de Hoseok.
E o que deixava Hoseok tenso quanto a este jantar em específico? A atmosfera que ele recebia pela noite fria, às vésperas do Natal e a forma como estava se sentindo por . Então, quando ela chegou ao terraço, sorridente, de acordo com o possível de seu estado de espírito, ele se permitiu sentir aquele leve acelerar dentro do peito – não o confundindo com uma falta pela ausência do oxigênio. Não, Hoseok estava bem e não precisava daquele carrinho naquela noite. Mesmo que estivesse de tirar o fôlego com aquele brilho no olhar e o vestido midi vermelho e de mangas longas.
— Uau. — Até a voz dela, pouco mais viva, diferente do rígido tom que emanava de sua boca poucos meses antes, estava de lhe tirar o fôlego. — Isso aqui foi o Namjoon que fez? — ele acenou positivamente, a acompanhando com o olhar e mantendo as mãos nos bolsos.
Ela não o cumprimentou formalmente e nem de modo informal, apenas seguiu direto para o varal de luzes que estava esticado por cima da mesa e observou tudo ao redor. A mesa quadrada tinha uma toalha branca de detalhes vermelhos e dourados e por cima duas taças para vinho e outros dois copos para água, com os pratos bem colocados e talheres alinhados, em perfeita sincronia com o ambiente, tendo aquecedores direcionados a eles.
Estava tudo tão harmônico, até mesmo com o smoking preto de Hoseok – o que ele chamava de traje empoeirado pela falta de uso por conta da pandemia.
— Então esse era o seu melhor traje empoeirado? — Ela o perguntou.
— Gostou? Estive guardando para essa ocasião. — Ele deu uma volta nos próprios calcanhares e parou novamente na mesma pose.
— Está muito elegante.
— Não tanto quanto você com essa leveza. Tem algo para me contar, senhorita ? — Hoseok deu alguns passos se aproximando, ansiando por tocar qualquer centímetro de pele de .
Mas ele não podia, pouco havia tido esse privilégio. Ela se recusava a gastar muito tempo fisicamente com ele, para evitar qualquer perigo de estar com o vírus no corpo e o contaminar. se descobrira egoísta demais para correr o risco de ficar sem a presença dele por um simples capricho momentâneo – o que acentua a vontade mútua dela de também tocar nele.
— Pedi afastamento hoje. — O contou sem rodeios, tirando a máscara e mostrando seu sorriso.
Isso para Hoseok significava muitas coisas. Para ela, era um sentimento ampliado de tudo. Afastar-se do trabalho não havia sido fácil para ela, com certeza, ele sabia como ela estava presa nesse casamento com o que fazia. Salvar vidas era sua maior paixão, mas estava a levando por um caminho do esquecimento. estava esquecendo de se cuidar, deixando com que seu teto de vidro trincado começasse a soltar os estilhaços.
— Um bom momento para o vinho, então... — Compartilhou o sorriso com .
— Sim!
Em um ato, sem muito pensar, Hoseok se aproximou mais, quebrando o espaço entre eles, e a tomou em seus braços. O abraço foi tão forte que parecia que os dois iriam fundir-se um ao outro. E quando se separaram, os rostos estavam bem próximos, a ponta do nariz separadas por centímetros quase inexistentes. E isso era o suficiente para que tanto quanto Hobi sentissem aquele friozinho na barriga; ela não conseguia parar de pensar em como gostaria de provar o toque dos lábios dele e que se fossem tão macios quanto o de suas mãos, ela muito provavelmente estaria encrencada. Hoseok sentia o mesmo, talvez até um pouco mais.
Ele queria assinar embaixo daquele sorriso que tinha encontrado depois de muito tempo apagado, queria continuar elevando o estado de graça de para que ela enxergasse o quão suficiente já era para si. Era como a gasolina para que ele mesmo se encaminhasse todos os dias para fora do monótono. E como ele gostaria de poder ser quem iria compartilhar daquela extensão da felicidade dela.
— Eu vou te beijar agora, doutora. — Sussurrou colocando a mecha de cabelo solta do rabo de cavalo para trás de sua orelha.
— Hobi, não posso arriscar... — E ela realmente estava nessa luta interna.
— , você faz exames regularmente. — O sorriso tentador dele deu lugar a um menos aberto. — E eu confio em você. Até mesmo por que vale a tentativa de qualquer forma. E eu não quero mais viver como se todo dia fosse o mesmo; hoje precisa ser melhor que ontem, mesmo que não vá superar o amanhã.
— Hobi... Eu... Eu quero muito, mas... — Umedeceu os lábios, continuando presa no olhar dele.
— Eu prometo que vou ficar bem. Nós vamos ficar bem.
Ela não se opôs mais, apenas fechou os olhos ao sentir estar ferrada por aquela maciez e delicadeza ao ser tocada. Assim como era com Hoseok desde que se permitiu abrir-se para o modo incisivo dele de se preocupar consigo. gostaria que ele soubesse como havia sido aquela peça importante para que ela se enxergasse novamente, para que pudesse compreender como o quebrado também podia ser bonito.
Eram bebês de extrema fofura. encarava os berços transparentes pelo vidro todo decorado daquela maternidade. O que não era fofo naquele cenário era o tanto de fio plugado naqueles mini seres humanos. Muitos deles que nasceram extremamente fora do tempo. Mas não podia se deixar voltar para sua lista de porquês, levou um certo tempo para que conseguisse se desprender disso e apenas apreciar cada detalhe da vida. Até mesmo os mais trágicos – afinal, Hoseok havia a ajudado a encontrar um novo olhar para a vida, a ensinando que ser grato vale mais do que prender-se ao que não parecia ser certo, até porque não tem como saber exatamente sobre tudo e o todo.
Suspirou ao lembrar de como havia ido parar ali. Meses depois de se afastar do trabalho ela estava de volta ao hospital, mas desta vez como acompanhante. Estava acompanhado Hobi, o homem com quem estivera dividindo sua nova fase da vida, contudo sem rótulos. E infelizmente era por uma razão a qual não lhe deixava estar tranquila.
Hoseok havia piorado. O tumor havia voltado. Uma nova intervenção médica havia sido feita, mas ele ainda estava desacordado e as novidades não eram tão boas. Não havia mais o que ser feito e agora ele estava na estaca zero de um tratamento sem cura, apenas contenção momentânea.
Isso assustava . Ela não conseguia se imaginar sem ele em sua rotina, sem os jantares no terraço, sem sua companhia no geral. E ela queria evitar questionar-se porquê, pois isso deixaria Hoseok frustrado. Ele havia se empenhado muito para que saísse de sua zona caótica, o mínimo que ela poderia fazer naquele momento era se segurar para que ele ao menos não se sentisse um peso.
Ela não estava feliz, mas também não poderia dizer que estava consumida pelo olhar trágico da situação. E isso era com toda certeza o resultado de Hoseok e os meses que já estava ativamente em sua vida.
O celular em seu bolso vibrou e, com a mão que não estava na base de sua barriga, pegou o aparelho do bolso. Seu coração parou por alguns segundos, era uma mensagem de Namjoon, o nome dele brilhava com a mensagem embaixo dizendo "ele acordou". Obviamente que queria estar com ele quando abrisse os olhos, mas aquele momento que tirou para si enquanto ele esteve dormindo foi de extrema importância. Tinha muito o que se pensar.
Caminhou pelos corredores de volta para a UTI, o andar em que Hobi estava, e a cada passo parecia que seu corpo se enfraquecia mais e suas pernas passaram a mover-se pelo automático. Ele não estava sozinho, seus pais e Namjoon o faziam companhia, mas ela estava com pressa.
Encontrou Namjoon parado na porta do quarto quando chegou e logo os pais de Hobi saíram do quarto, sorrindo confortantes para ela. Era o momento de conversarem sozinhos.
se aproximou da cama, segurando a mão dele e o observando tão pálido como nunca.
— Oi, doutora. — E então ele iniciou. — Eu fiquei pensando como iniciar essa conversa, porque ela vai definir o nosso "daqui para frente".
— Hobi... — Ele já chorava copiosamente.
— Não iremos contar com o calendário, ok? — Ele continuou, sua voz estava bem baixa e fraca. — Eu preciso que você me prometa continuar de onde está, desse ponto de partida e seguir adiante. Não olhe para o que ficou no meio do caminho, apenas vá. E saiba que eu fui o homem mais feliz do mundo enquanto tive o privilégio de ter estado com você. — Suspirou e levou a mão até a barriga dela, sorrindo da forma como ela sentia o fôlego se perder. — Sei que irá cuidar bem do nosso filho, mas quero que cuide de si também.
apenas concordou. Era isso: Hoseok fora seu trampolim para sair daquele abismo em que havia se metido internamente. Agora ela precisava ser o que lhe confortaria no que restava.
Ela queria que ele entendesse como a havia convencido de que o imperfeito era perfeitamente moldado para o que tinha de ser.
O suspiro forte trouxe certo alívio para o frio na barriga que sentia conforme caminhava em passos lentos aquele curto espaço que separava sua cama da porta do quarto. Agradeceu por passar ilesa em meio ao escuro e não bater seu dedo no pé da cama ou até mesmo de sua cômoda, os móveis que mobilhavam seu pequeno metro quadrado. Quando colocou a mão na maçaneta da porta, após um tempo tateando aquele canto específico, sentiu o frio na barriga novamente: a partir do momento que abrisse aquela porta, seu dia iniciaria – não literalmente, visto que era nove e meia da noite ainda. E não estava pronta para aquilo, mesmo que já fosse sua rotina há meses.
Tentou mais outro suspiro e girou a maçaneta, puxando a porta com a atitude automática de seu cérebro. Se colocou para fora, dando dois passos no curto hall entre seu quarto e o banheiro do pequeno apartamento que alugava. A única luz que vinha era pela janela deste tal hall, e aquela parte em questão sempre estava iluminada pela luz que vinha das ruas brilhantes da grande Seul. Sua indisposição para acender as luzes já era algo bem corriqueiro.
Caminhou para dentro do banheiro minúsculo e acendeu a luz, internamente travando aquela luta para viver mais 24 horas de sua rotina árdua em um plantão no hospital mais movimentado da cidade, a qual iniciava às 11 da noite por pelo menos 29 dias no mês – sim, ela não sabia o que era uma escala contendo pelo menos uma folga a cada seis ou sete dias trabalhados. Contudo, absorta na tentativa de cessar sua própria ansiedade, concentrou-se em tomar um banho quente para fazer com que pelo menos o frio físico pelo inverno coreano fosse contido.
Banho. adorava tomar banho, ainda era algo de sua rotina que, felizmente, não caíra no automático. O tempo gasto embaixo da água muitas vezes passava do recomendado e, por isso, ela se culpava e sempre pedia desculpas à mãe natureza. Sabia que o seu consumo excessivo de água era expressivo, mas ainda se permitia ser egoísta em certo ponto. Era algo que ainda a deixava mais animada e lhe recarregava as energias para ir trabalhar no local que passara a odiar de um certo tempo de sua vida em diante e onde agora passava mais tempo de sua vida do que o comum.
Não demorou muito, além do comum, para sair do banheiro enrolada em uma toalha e tentando conter os fios de cabelos com uma escova após lavá-los, tamanha era sua vontade de apenas prender e seguir a vida. Depois dessa batalha vencida, seguiu seu rumo para o guarda-roupas e pegou algo que ela chamava de “uniforme independente”, uma combinação de calças jeans e camiseta de manga comprida em qualquer cor. Claro que não deixou de vestir uma meia calça e um casaco de lã bem grosso para poder enfrentar os –2 graus no exterior de sua casa, presente de outono. Nos pés, colocou as botas de solado grosso e forro interno confortável, precisava esquentar os pés vestidos com meias e também era necessário tê-los confortáveis para dirigir por quase quarenta minutos o trajeto que ligava sua casa ao hospital.
Quando terminou de se vestir, ficou no dilema de secar ou não o cabelo e ao bater o olhar no relógio de pulso decidiu que apenas uma touca por baixo do capuz do casaco que iria vestir era o suficiente para até que entrasse no carro e estivesse sob o ar quente fornecido pelo mesmo. Após terminar de se vestir por completo, então, seguiu o rumo para a pequena sala, juntando partes do seu material espalhado e alguns livros. Uma vez que estava tudo dentro da bolsa que sempre carregava, checou uma última vez o ambiente, se lembrando de que deveria ligar para que Sohoo fosse fazer seu milagre de organização de limpeza por ali o quanto antes.
já não aguentava mais ouvir Hyun falar sobre como sua viagem para o ocidente tinha sido mágica e que salvar milhares de vidas que sucumbiam ao vírus "maldito" fora uma das coisas mais estupendas de toda a sua existência. Não que ela sentisse inveja ou estivesse entediada com as histórias, mas já era cansativo demais ter passado quase um ano completo refém de algo que causara tantos estragos, tantas perdas.
Foi um alívio para ela quando o residente, que havia sido enviado para a América do Sul como reforço no combate ao Coronavírus, finalizou a sutura do corte feito no peito do paciente inconsciente naquela mesa de cirurgia. Parabenizou o estudante pelo trabalho feito – mais um de seus gestos automáticos – e rumou para a saída. Retirou todo o seu equipamento individual de proteção e, depois de se higienizar, vestiu um kit novo para que pudesse voltar a caminhar nos corredores do hospital sem qualquer restrição. Sequer deu tempo de Hyun aparecer e destilar sua empolgação por sua viagem somada à cirurgia de correção para cardiopatia congênita feita no bebê de poucos meses.
Saiu do centro cirúrgico e caminhou tranquilamente para a clínica. Durante o caminho, fez o relatório da cirurgia feita no pequeno Kai, não deixando de refletir sobre mais um de seus pacientes. Em quase sete anos sendo médica atendente, com três chefiando o setor de cirurgias cardíacas, sempre tirava de alguma pessoa atendida – sobrevivente ou não – o que podia sobre a situação. No caso de Kai, ela continuava o mesmo questionamento que nunca lhe trazia respostas: "por quê?". Era um bebê de apenas três meses que havia passado pela sua segunda cirurgia de reparação, para que pudesse ter um tempo a mais de vida e, com muita sorte ou benção, o que preferissem, pudesse ser aproveitado mais por seus pais. Estes que com certeza sofreriam posteriormente ao encararem a dura realidade de enterrar um filho, que desde o princípio já teve sua longevidade contada para antes deles, com um caminho pesado por sofrimento.
E todo o contexto de Kai a deixava profundamente nauseada e esgotada: além de ter desenvolvido problemas cardíacos logo no útero de sua mãe, nasceu em um ano regado a uma pandemia que sequer despontava um final próximo, e, para sua sorte de principiante, teve de contrair o vírus logo em seu primeiro mês. Então a pergunta que não tinha resposta para a doutora englobava: por que nascer nessa beira de sofrimento, sendo usado como uma manobra para ensinar pessoas adultas alguma lição sobre a vida que muito provavelmente logo seria esquecida? Talvez também não estivesse mais ansiada por descobrir.
Deixou o tablet em cima da bancada da enfermaria da UTI pós-operatória com as instruções para a enfermeira de alguns pacientes que precisavam refazer exames e seguiu, finalmente, para a clínica de atendimento 24h. Claro que praguejou toda a existência de Ahra por tê-la colocado naquele lugar, de tantos médicos disponíveis, ela tinha que escolher justamente para o trabalho mais torturante de qualquer cirurgião daquele hospital?
Verificou o movimento e respirou aliviada ao certificar-se de que estava tranquilo. Conversou brevemente com a enfermeira encarregada ali e recebeu um relatório dos pacientes que já haviam sido atendidos e os que ainda aguardavam. Um deles logo lhe chamou a atenção pelo nome no prontuário: Jung Hoseok. Tudo bem que desde sua chegada a Seul já havia visto muitos nomes parecidos, mas os detalhes adicionais sobre endereço e idade completavam a ideia de que era seu vizinho quem estava ali, aguardando atendimento. E se ela bem recordava, Hoseok tinha um câncer de tireoide do tipo anaplásico, raro como seus sorrisos nos últimos meses.
Assim que entrou na sala em que ele estava, já vestida com luvas e a roupa de proteção necessária, recebeu seu olhar tranquilo, acompanhado de outro – que ela lembrou vagamente de já ter encontrado no elevador do prédio em que moravam.
— Olha só se não é minha vizinha mais quieta que os filmes do Chaplin! — A voz cansada de Hoseok tinha um leve tom de brincadeira e ela apenas o olhou sorrindo de forma automática. Ele sempre tentava arrancar sorrisos das pessoas do prédio.
— O que temos aqui, senhor Jung? — se limitou ao seu profissionalismo e perguntou enquanto checava a quantia de oxigênio que estava sendo enviada pelo cateter colocado no nariz dele e a medicação no soro.
— Você pode me chamar de Hobi, doutora... — Ele respondeu, sua voz estava um pouco mais cansada. — Sem limites pelas formalidades, somos vizinhos há tempos.
— Vamos nos limitar ao que está acontecendo aqui então, ok? — tentou soar um pouco mais dura. — Vi em seu prontuário que teve uma crise forte de asma. Não está usando sua bombinha, Hoseok?
— Ele usa, mas apenas quando encontra. — A voz do terceiro corpo presente naquela sala se fez presente e o olhou rapidamente, antes de tornar a encarar seu paciente.
— Ah, qual é, Namjoon! — Hoseok exclamou revirando os olhos, em seguida, não aguentou segurar a tosse e precisou da ajuda da médica para conseguir se livrar do nó em sua garganta causado pela tosse.
— Vamos devagar... — suspirou e o ajudou a se sentar, começando a usar seu estetoscópio para ouvir sua respiração, surpreendendo-se com o que ouviu. — Você precisa levar mais a sério o quesito "se cuidar"... — ergueu o olhar para Namjoon e, completamente séria, já tendo noção do que Hoseok estava tendo, disse: — Não precisa de muito para saber que ele está com pneumonia. — Suspirou, levando o objeto para a parte frontal do tronco de Hoseok. — O peito dele está cheio... temperatura acima de trinta e oito graus, dores no peito e essa tosse carregada. Iremos fazer o teste para Covid, com certeza, mas acredito que este seja o diagnóstico.
— Então ele vai ficar aqui? — Namjoon questionou.
— Ahn... Eu não acredito que seja o ambiente mais seguro. Mas também não confio que ele vá para casa e fique sozinho. — Se afastou de Hoseok e cruzou os braços.
— Eu não preciso de babá. — Ele resmungou.
— Se não precisasse, não estaria aqui três da manhã nesse estado.
— Bom, eu posso ficar com ele, doutora, mas acredito que seja necessário fazer uma higienização na casa dele antes de levá-lo embora. — Namjoon se levantou, um pouco mais sério desta vez.
— Eu posso deixá-lo aqui por mais algumas horas após os exames, confirmando o resultado, e você volta para buscá-lo. — sugeriu já se preparando para sair dali.
Namjoon apenas confirmou positivamente e ela se despediu para sair da sala. Parou na enfermaria pegando o tablet, prescrevendo mais medicação e solicitando exames com maior emergência. Não conteve a irritação pelas irresponsabilidades de Hoseok quanto à sua condição.
Se bem recordava, Jung Hoseok havia descoberto seu carcinoma anaplásico alguns meses antes, logo no início de 2020 talvez. Infelizmente ele fora pego por um câncer de tireoide totalmente raro e fatal, com poucas chances de cura. Felizmente, até onde sabia, por ter um tumor nem tão grande, a tireoidectomia seguida de radioterapia fora feita com sucesso e a retirada total da glândula ainda não havia apresentado nenhum quadro reverso.
Mas ela novamente se questionava: por quê? Se estatisticamente e comprovadamente aquela medida drástica de intervenção do tumor serviria apenas como uma contenção temporária, por que conter o sofrimento que viria depois? Adiar o inevitável era algo que a deixava sempre irritada. Hoseok era o típico vizinho alegre que respeitava a vizinhança e era sempre o comunicativo do elevador. Poucas foram as vezes que se sentiu desconfortável dividindo o espaço com ele. Chegou a cogitar um certo tempo que deveria ter aproveitado mais as conversas sobre o tempo ou as ruas cheias da cidade enquanto subiam ou desciam, antes de ter sido obrigada a se isolar no hospital e posteriormente em seu quarto acompanhada de sua depressão desenvolvida por todo o estresse de seus meses enfrentando aquela rotina nem um pouco animadora.
concordava consigo mesma que deveria ter aproveitado muito mais e refletido mais sobre muitas coisas; teria o feito se soubesse que seu presente – que um dia fora o futuro – teria sido tão duro assim. Agora lhe restava apenas tentar sair daquele afogamento. Mesmo que sozinha.
— Tchau, doutora ! Tenha um bom descanso e boa folga.
sorriu para a enfermeira que sempre era simpática com ela e que insistia em não gravar o nome. Passou pelo corredor extenso de desinfetação e quando alcançou seu armário na sala de médicos atendentes, logo tratou de se vestir e pegar o rumo para o estacionamento. Assim que chegou em seu carro, suspirou aliviada, mais um plantão havia acabado e mais uma vez ela tinha saído viva, mas não sem pensar no contrário.
Decidiu que iria passar na cafeteria mais próxima no caminho para casa, mas mudou de ideia só de pensar que teria de estar em um ambiente com outras pessoas, que muito possivelmente estariam animadas em plena quinta-feira às quatro da tarde. Então foi direto para casa, faria um chá e comeria alguma torrada que tinha em seu armário. Precisava do seu tempo embaixo do chuveiro e queria correr para sua cama que lhe esperava da mesma forma que havia deixado.
Se tivesse sorte, não seria chamada para resolver algum problema ou atender algum paciente durante seu período de folga e voltaria a trabalhar apenas no sábado à noite.
Se tivesse sorte.
O caminho pelas ruas movimentadas de Seul foi como sempre. Pessoas ocupadas demais em suas rotinas individuais para prestarem atenção no momento exato que o semáforo fechava ou abria para pedestres. Imersos em seus telefones durante a caminhada, ou em seus livros enquanto sentados, como se o mundo fosse apenas aquilo que tinham consigo mesmos. Ou seria a desinformada que ainda não havia compreendido absolutamente nada, mesmo com os meses a fio enfrentando o que seria um dos maiores desafios da população mundial quanto a cuidados sanitários?
Ela não entendia como que um momento onde muito fora tirado e pouco dado – de forma material – ainda era subestimado por tanta gente.
Quando estacionou o carro em sua vaga na garagem subterrânea saiu do veículo em mais um de seus movimentos automáticos. E, novamente, sem ter conhecimento sobre nada à sua volta, fez o caminho até o elevador social, tomando todos os devidos cuidados sanitários. Do elevador, entrou no apartamento pela cozinha e sem muito rodear, seguiu direto para seu banheiro. Se despiu com os movimentos tão ansiosos quanto o do dia anterior e talvez menos que do dia seguinte.
Sempre tinha a preocupação ambiental por gastar tempo demais no banho, mas não conseguia se sentir mal por completo, já que era o momento em que descontava toda sua ansiedade e agradecia mentalmente ao que tivesse que agradecer por ter o privilégio de um chuveiro bom, potente e com água quente, e, claro, poder pagar a tarifa alta de energia.
Quando terminou sua rotina e se alimentou do pouco que conseguiu – anotando um lembrete em sua geladeira de pedir itens do mercado –, seguiu para seu quarto. Não fez questão de arrumar a cama ou até mesmo de colocar o carregador na tomada. Ligou o ar quente e se colocou embaixo de suas cobertas, sem demorar a dormir.
Não parecia que tinha dormido tanto, mas a dor no corpo por tanto tempo deitada denunciava que a aparência sempre engana. E então a campainha fora ouvida, de forma estridente, não a deixando continuar seu momento relaxante naquele escuro. Levantou procurando por sua saída de banho e a vestiu no caminho até a porta, sendo iluminada pela luz da rua que vinha da janelinha – como sempre. Passou a mão pelo rosto e quando alcançou a porta, olhou através do olho mágico, tendo a visão de Namjoon inquieto do lado de fora, prestes a tocar novamente a campainha. abriu a porta.
— Ah, que bom! — Namjoon exclama ao ver a mulher em sua frente. — É o Hobi... Eu preciso... Ele precisa da sua ajuda. — Suas palavras soavam rápidas demais e ela ainda estava muito sonolenta pra entender.
— Mas... O quê? — Pressionou os olhos confusa.
— Doutora, o Hobi está passando muito mal! — Ele estava ofegante e o tom desesperado logo acordou para o entendimento natural de que Namjoon estava pedindo ajuda para seu amigo.
— E o que ele tem?
Ela não se preocupou em fechar a porta, apenas foi em direção à caixa de máscaras e luvas descartáveis, pegando as duas e seguindo Namjoon pelo corredor sem nem fechar sua porta. Desceram os dois lances de escadas enquanto ele a dizia sem muita convicção o que viu o amigo sentir. não se poupou em fazer nada engessado, seus anos de experiência contribuíram para que tudo saísse automático e ainda assim com excelência.
— Hoseok, estou aqui! — Disse calmamente entrando no quarto, o encontrando na cama, suado e com os cabelos desgrenhados. — Consegue me dizer o que está sentindo? — Tocou levemente em seu braço descoberto, sentindo um pouco de sua temperatura corporal.
— Ele está com muita falta de ar, frio e suando. — Namjoon se apressou a situá-la.
— Ok, são sintomas comuns da pneumonia, Namjoon. — Respirou séria. — Ele iniciou ontem com o antibiótico e outros remédios, deu o para febre?
— Erm... não. — O rapaz coçou a cabeça se sentindo péssimo por ter esquecido desse detalhe.
— Foi comprado?
— Foi, foi sim, doutora!
— Coloca quarenta gotas em menos de um dedo de água para ele. — Olhou mais uma vez para a cama, após ver Namjoon sair do quarto.
Não soube explicar nem para si mesma como aquilo aconteceu, mas ao bater o olhar em Hoseok, percebeu que o mesmo estava em uma crise de ansiedade, talvez fosse o olhar assustado do mesmo que lhe causara isso. Ou talvez ela já estivesse mesmo em um nível de alto conhecimento sobre a saúde de seus pacientes, mesmo que fosse a parte mental. E, até mesmo ou, fosse sua empatia por reconhecer aquela temperatura fresca em um corpo todo suado enquanto o batimento cardíaco estava a mil, parecendo estar queimando corporalmente acima dos trinta e nove graus; era como ela se sentia quando tinha suas crises no meio da noite, de plantões, no caminho para casa, ou em qualquer outro momento que surgisse do nada – com o trabalho incessante de sua mente sobre assuntos que a causavam um certo medo, no excesso de passado, peso do presente e falta do futuro.
Por sua empatia, ao saber que poderia estar certa sobre seu diagnóstico de Hobi, decidiu não dizer de imediato para Namjoon que o amigo acamado estava passando por uma crise de ansiedade absoluta. Isso deixaria o outro preocupado e poderia lhe causar alguma dúvida sobre ser o culpado por tal ocasião, afinal, era ele quem estava sendo responsável por Jung Hoseok. Reparou que em cima do balcão da pequena cozinha – assim como era no seu apartamento – estavam os remédios, mas no rápido caminho que fez até o quarto notou a ausência de uma caixinha, justamente a para curar a febre de Hoseok.
Pensar estrategicamente e rápido fora algo que lhe custou a aprender, mas que os anos de experiência dentro de centros cirúrgicos, aprendendo com cirurgiões renomados e exigentes, lhe coube muito bem. E sua estratégia de pedir que Namjoon trouxesse um remédio que provavelmente não tivesse sido comprado renderia minutos de conversa com Hoseok. O que poderia lhe fazer muito melhor do que ser dopado de mais remédios na situação de saúde física em que já se encontrava.
— Doutora, não tem remédio... — Não demorou muito para que a voz grossa se fizesse presente novamente na porta do quarto.
— Ele precisa...
— Se você puder ficar por aqui enquanto vou na farmácia, posso ir comprar rapidinho. — Ele a corta, dando-lhe uma solução.
— Eu fico.
Não precisava de muito para a convencer, era exatamente o que ela queria. Por baixo da máscara seria possível ver um sorriso fino em seus lábios por ter parte de seu plano correndo bem. Se estivesse mesmo com um olhar clínico aguçado, aquilo poderia valer a pena.
Namjoon lhe deu as costas e resmungou algo sobre voltar logo, havia essa farmácia na esquina de uma terceira quadra depois da deles. Ela pouco esperou, puxou o banquinho próximo à porta e se sentou na lateral da cama, tirando suas luvas e higienizando suas mãos com o álcool em gel. Em seguida, foi surpreendida pela voz suave e rouca dele.
— 2020 não tem sido muito generoso com a gente, não é, doutora?
Ao mirar os olhos para a direção da cama, encontrou com os opacos de Hoseok. Não se lembrava de alguma vez tê-lo visto tão apagado, pelo menos em sua memória ele era aquela pessoa que poderia ser a personificação de vívido.
— Muitas coisas aconteceram em um curto espaço de tempo, Hoseok. — Ela disse cruzando seus braços, tentando não soar tão desesperada por soluções que nenhum deles poderia encontrar de repente.
— Na verdade, o tempo é apenas relativo, doutora-
— . — Ela o cortou apressada, não de forma mal-educada. — , mas pode me chamar de .
— Eu sei. — Hoseok se ajeitou na cama, olhando com o melhor sorriso que aquele momento ansioso lhe permitia. — Mas gosto de te chamar de doutora. Algum problema com isso?
soube compreender a pergunta em sua base. Não era algo como um flerte abusivo, em que Hoseok estava se opondo contra uma vontade sua; pelo menos o que o olhar e a voz dele diziam era que realmente gostaria de saber se aquilo a afligia de alguma forma. Ou, novamente em dúvida, talvez ela estava tão intimamente em busca de um lugar para esvaziar seu copo cheio até a borda em algum recipiente sem furos, para que não vazasse em exagero.
— Não.
Resolveu ser simples em sua resposta. estava ali apenas para atendê-lo como um paciente, era ele quem precisava ser cuidado naquele momento – não que fosse um regra padronizada de que ela estivesse bem em todos seus atendimentos, havia se tornado corriqueiro, parte do seu "diariamente", querer sair em direção às colinas.
Ouviu muito a expressão "fuja para as colinas" e se lembrava de ter ouvido em alguma música por aí que as colinas não possuem olhos, trazendo uma analogia muito interessante.
Mas mesmo que usasse uma máscara cobrindo metade de seu rosto, seus olhos estavam à mostra e pareceu ser o suficiente para que Hoseok lesse.
— Você não sabe mentir. — Novamente se moveu na cama. — Não sei como Namjoon acreditou em suas palavras, deve ser o nervosismo. — deu de ombros.
— O que você quer dizer?
— Bom, moramos no mesmo prédio e nos encontramos no elevador já faz um tempo considerável, . — Sim, ela tinha de concordar com ele. — Lembro quando te perguntei sobre um dia de Sol e você fez essa mesma ruga com os olhos ao dizer que amava um dia ensolarado. Novamente vi as rugas quando nosso síndico decidiu que iria realocar as vagas da garagem e você disse um simples "tudo bem". Eu vi que não estava nada bem, seu olhar furioso dizia o contrário.
Como era possível ele a conhecer assim? era uma pessoa de fácil leitura ou Hoseok sabia compreender e apreciar o alheio?
— E-e-e-eu...
— Eu vou perguntar de novo, é mais uma chance de você ser honesta consigo mesma — Piscou em sua direção. — Qual o problema em te chamar de doutora?
— Nenhum.
Hoseok não se convenceu, claramente. Apenas suspirou, ajeitando o cateter de oxigênio em seu nariz. Um simples movimento que novamente trouxa aquela atenção de aos detalhes. Ela queria muito encontrar respostas para todos os seus questionamentos, e ver Jung Hoseok dependente de algo tão pequeno lhe fazia pensar sobre a dependência.
Quando, como e por quê havíamos nos tornado tão dependentes de coisas que nos foram tiradas nestes últimos tempos? Por que dar e depois tirar? O arrependimento natural vinha em forma de punição humanitária?
— Vou pedir para um colega receitar algum floral para você, ajudará na sua ansiedade. — iniciou se levantando, sua cabeça parecia pesar quilos a mais com o tanto de coisa que se passava por ali. — Ninguém precisa ser legal e alto astral o tempo todo, Hoseok. Eu sei que não faço a mínima ideia do que você está passando, somos indivíduos e cada um com seus problemas é o clichê mais real possível.
Hoseok concordou em um aceno positivo com sua cabeça, observou voltar o banquinho para o lugar de origem e a ouviu dizer que lhe faria um chá.
— Eu me lembro de uma mulher mais sorridente, menos carrancuda e com pouca olheira apesar do trabalho cansativo em um hospital... O que aconteceu com ela?
A fila incomodava. O barulho da conversa entre os clientes da farmácia fazia com que sentisse aquele anseio por ir embora logo, estando em batalha com a determinação de comprar para Hoseok o floral que seu colega psiquiatra havia receitado. Depois de ter deixado o apartamento do vizinho, algumas poucas horas após o retorno de Namjoon, ela teve quase quatro dias para pensar e refletir a pergunta de Hobi. Uma questão que ela nem mesmo sabia buscar em si desde o zero, precisando que outra pessoa lhe apontasse.
O que havia acontecido com , afinal? Ela sabia mesmo o que estava se passando consigo? ainda se conhecia o suficiente para enxergar alguma alteração no seu próprio eu interior assim como um estranho havia o feito? Porque não havia como Hoseok ser totalmente conhecido de seus traços, a não ser por observar o outro tão incisivamente, o que ela nunca havia dado oportunidade a ele para tal.
E as dúvidas foram tão contrastantes, que pela primeira vez ela sentiu o "não estou bem" bater extremamente forte.
Precisou de um certo tempo para compreender que seu anseio era realmente uma ansiedade generalizada resultante de seu estresse com a rotina. E precisava agradecer a Hoseok por lhe te tirar a venda dos olhos.
Sabia que para um tratamento de ansiedade dar certo, era necessário um passo a passo de paciência. E testou muito isso enquanto estava naquela fila para o caixa. Desviou a atenção para a televisão que estava ligada no noticiário, contando sobre o falecimento da namorada de um dos maiores ídolos do Kpop, Kim Taehyung. Não deixou de sentir o quão trágico aquilo podia ser, havia se acostumado a ver tanta tristeza com as perdas no hospital, que podia sentir em si aquele peso do luto – principalmente com uma pandemia tão estarrecedora.
E era isso também que precisava trabalhar em si: o autocuidado. Até que ponto foi benéfico receber o outro e esquecer de si? Por hora, sua resposta era nada.
A mesma reportagem contava como Taehyung, também conhecido como V, tinha se abatido com a chegada do vírus que parou todo um planeta, se tornando dependente de algumas substâncias. prestou atenção até se dar conta de que a palavra reabilitação era usada com tanta facilidade, como se quisessem estampar que o cuidado era fácil.
Muitos não fazem ideia do quão difícil é se recuperar daquilo que te levou a alguma profundeza sombria.
Quando sua vez de pagar chegou, se sentiu agradecida por ser rápido e logo estar em direção ao seu condomínio. Se permitiu observar as ruas que agora se recuperavam da neve e, claro, do apagão sofrido pela pandemia. Mesmo que fosse necessária uma nova forma de viver o dia a dia, estava tudo voltando para o lugar como em um novo normal. E isso poderia ser suficiente em um ponto de vista mais realista.
No ponto de vista de .
Depois de chegar da rua, tomar um banho e se trocar, foi direto para o andar de Hoseok e logo estava batendo na porta. Segurou firmemente o pacote em sua mão coberta por luvas e franziu o nariz preocupada e pouco incomodada com a máscara que lhe apertava o nariz. Estava preparada para dizer ao vizinho o que seu eu interior gostaria de ter dito dias atrás. E quando ele abriu a porta, encarando-a confuso, ela disparou:
— Também queria saber o que houve com . — Disse rápido demais. — Digo, você está certo. Algo aconteceu e eu tive esses últimos dias para pensar sobre.
— Então encontrou respostas. — Ele respondeu ajeitando o cateter de oxigênio no nariz. Ela apenas assentiu. — Quer compartilhar? — Abriu um pouco mais a porta para que ela tivesse espaço para entrar.
sorriu, mesmo que não pudesse ser visto. Hobi sabia que ela estava com os lábios bem abertos por conta das rugas nos cantos de seus olhos.
— Com licença — Disse entrando.
Tudo estava como ela se lembrava do outro dia que esteve ali. Até mesmo a organização dos remédios.
— Eu tenho complexo com organização... — Hoseok a explicou, entendendo seu olhar.
— Ah... Queria ter o mesmo. — Murmurou, ainda parada na entrada do apartamento.
— Vem cá, estava fazendo um café, você gosta? Prefere chá?
percebeu como ele se movia tranquilamente mesmo que carregasse um cilindro de oxigênio para todo canto em um carrinho pequeno. Parecia tão acostumado, como se aquele objeto que lhe garantia uma certa parcela da sobrevivência, fosse parte de si.
E tão logo quanto apareceu, espantou o "por quê?" que surgia.
— Aceito um chá. — Sorriu simples.
— Pode tirar sua máscara se quiser, doutora. — Hoseok disse se colocando atrás do balcão que separava a pequena sala da pequena cozinha. — Eu fico por aqui e você aí. Sem problemas. — Sorriu abertamente.
Ah, como Jung Hoseok sabia direcionar um sorriso cativante. Ela se lembrou disso neste momento. A primeira vez que o tinha encontrado no elevador a fizera ter um baile no estômago só pelo vislumbre daquele sorriso.
— Ah! Vou deixar seu floral aqui... Posso ir ao banheiro higienizar minhas mãos?
Hoseok assentiu e ela deixou o pequeno pacote em cima da mesinha no canto da sala. Não demorou muito dentro do banheiro, apenas o suficiente para lavar bem suas mãos e rosto, se sentindo mais higienizada para estar ali – mesmo que tivesse tomado um banho antes. Quando retornou, se deparou com uma mesa bonita de café para aquela tarde, com direito a flores em cima da mesa.
— Exagerado?
— Não, achei adorável. — sorriu se aproximando e sentando na cadeira que havia lhe sobrado.
— Fique à vontade, .
A xícara em sua frente estava cheia com um chá de aroma agradável. O ar fresco que entrava pela janela aberta da sala fazia com que se lembrasse de sua infância na Suíça, seu país natal. Se sentiu acolhida como sempre sentira nas vezes que ia tomar um chá à tarde na casa de sua avó.
— Você é como uma caixinha de música, a gente precisa dar a corda para que toque. — Hoseok a pegou de surpresa, dizendo com seu tom divertido.
— Não, desculpa... Eu estava me lembrando de quando morava na Suíça e ia da minha casa para a de minha avó tomar chá de pitaya com ela. — respondeu nostálgica.
— Sua família toda mora lá ainda?
— Sim. Pelo menos o que sobrou dela. — Riu fraco. — Minha mãe e meu pai ainda são vivos, mas meus avós dos dois lados já faleceram. Causas naturais. — Deu de ombros, já fazia tanto tempo que não se sentiu mais incomodada ao mencionar tal fato.
— Como você consegue viver sozinha aqui?
E isso era algo que nunca havia parado para pensar: como ela estava mesmo vivendo em um lugar sem sua família, completamente sozinha?
Seu círculo de amizades resumia-se a colegas de trabalho, os quais encontrava apenas no hospital e, em um atrevimento repentino, poderia dizer que Hoseok era o mais próximo de companhia que ela tinha. Mesmo que os encontros no elevador houvessem cessado devido ao isolamento obrigatório.
— Bom, eu fui me acostumando com as companhias que ia conseguindo pelo caminho. — Torceu os lábios. — No trabalho, na padaria, no elevador...
Hoseok sorriu fraco, bebericando novamente de sua xícara. Então um pensamento surgiu em sua cabeça. Mesmo que estivesse em uma certa zona de risco perante à crise sanitária mundial, Jung Hoseok não aguentava mais se guardar por tanto para nada. E ele apreciava a companhia de , até mesmo quando ela pouco o notava logo que se mudou para o condomínio. Gostava de como ela o encarava sem o olhar de pena por ser o solteirão morando sozinho e dependente de remédios fortes por uma condição de saúde pífia.
E o pensamento que lhe acometeu era, no mínimo, de fácil negação para a mulher em sua frente, porém valia a tentativa.
— Eu vou te convidar para um jantar e você não irá negar. — Tentou o seu melhor sorriso, novamente ajustando o cateter. Ela apenas o encarava sem esboçar reação. — , aceita um jantar comigo?
— Não podemos sair, é muito arriscado para você que está numa zona de risco maior...
— E quem disse que vamos para outro lugar? — Ele a cortou. — Esteja pronta às oito em ponto e com sua melhor roupa empoeirada pela pandemia de tanto tempo guardada.
Era um jantar no terraço.
Era um jantar no terraço com .
Era mais um jantar no terraço com , a pessoa com quem Jung Hoseok estava dividindo as vinte e quatro horas de seus dias nos últimos três meses – a maior parte virtualmente, já que ela trabalhava e também tinha extremo cuidado com a prevenção da saúde dele. Para ele, aquilo soava excepcionalmente gratificante, pois ela era o que mais lhe fazia ter uma certa força para superar aquele tédio da vida que estava tendo.
Todos os dias passava para conversarem e tomar um chá, e rotineiramente tinham o jantar no terraço do prédio em que moravam. SeokJin, um dos amigos mais próximos de Hoseok, era um cozinheiro de mão cheia e se comprometia a levar para o amigo um menu caprichado, para que Namjoon arrumasse tudo em perfeita ordem para eles.
Os amigos de Hoseok eram, em resumo, o que moviam todo o ânimo dele. Era como uma troca incessante de forças; por tão de repente ter de parar com o trabalho árduo em estúdio produzindo músicas, todos concordaram que deveriam apoiar o mesmo. E ele não recusava, sabia muito bem de seus limites e até onde precisava ou não de uma forcinha. Jung Hoseok era o que pode ser chamado de sensato, incluindo sobre sua própria vida.
E era por ser assim, uma pessoa tão aberta, observadora e ao mesmo tempo sensível, que se sentia confortável em sua presença. Desde o primeiro jantar que tiveram no terraço ela não soube mais como se deixar levar e aprofundar na escuridão do próprio apartamento. Portanto, os jantares eram no dia de sua folga. E vale ser dito também que pouco ela via de sua casa, pois quando não esteve descansando, apreciou a companhia de Hoseok.
E o que deixava Hoseok tenso quanto a este jantar em específico? A atmosfera que ele recebia pela noite fria, às vésperas do Natal e a forma como estava se sentindo por . Então, quando ela chegou ao terraço, sorridente, de acordo com o possível de seu estado de espírito, ele se permitiu sentir aquele leve acelerar dentro do peito – não o confundindo com uma falta pela ausência do oxigênio. Não, Hoseok estava bem e não precisava daquele carrinho naquela noite. Mesmo que estivesse de tirar o fôlego com aquele brilho no olhar e o vestido midi vermelho e de mangas longas.
— Uau. — Até a voz dela, pouco mais viva, diferente do rígido tom que emanava de sua boca poucos meses antes, estava de lhe tirar o fôlego. — Isso aqui foi o Namjoon que fez? — ele acenou positivamente, a acompanhando com o olhar e mantendo as mãos nos bolsos.
Ela não o cumprimentou formalmente e nem de modo informal, apenas seguiu direto para o varal de luzes que estava esticado por cima da mesa e observou tudo ao redor. A mesa quadrada tinha uma toalha branca de detalhes vermelhos e dourados e por cima duas taças para vinho e outros dois copos para água, com os pratos bem colocados e talheres alinhados, em perfeita sincronia com o ambiente, tendo aquecedores direcionados a eles.
Estava tudo tão harmônico, até mesmo com o smoking preto de Hoseok – o que ele chamava de traje empoeirado pela falta de uso por conta da pandemia.
— Então esse era o seu melhor traje empoeirado? — Ela o perguntou.
— Gostou? Estive guardando para essa ocasião. — Ele deu uma volta nos próprios calcanhares e parou novamente na mesma pose.
— Está muito elegante.
— Não tanto quanto você com essa leveza. Tem algo para me contar, senhorita ? — Hoseok deu alguns passos se aproximando, ansiando por tocar qualquer centímetro de pele de .
Mas ele não podia, pouco havia tido esse privilégio. Ela se recusava a gastar muito tempo fisicamente com ele, para evitar qualquer perigo de estar com o vírus no corpo e o contaminar. se descobrira egoísta demais para correr o risco de ficar sem a presença dele por um simples capricho momentâneo – o que acentua a vontade mútua dela de também tocar nele.
— Pedi afastamento hoje. — O contou sem rodeios, tirando a máscara e mostrando seu sorriso.
Isso para Hoseok significava muitas coisas. Para ela, era um sentimento ampliado de tudo. Afastar-se do trabalho não havia sido fácil para ela, com certeza, ele sabia como ela estava presa nesse casamento com o que fazia. Salvar vidas era sua maior paixão, mas estava a levando por um caminho do esquecimento. estava esquecendo de se cuidar, deixando com que seu teto de vidro trincado começasse a soltar os estilhaços.
— Um bom momento para o vinho, então... — Compartilhou o sorriso com .
— Sim!
Em um ato, sem muito pensar, Hoseok se aproximou mais, quebrando o espaço entre eles, e a tomou em seus braços. O abraço foi tão forte que parecia que os dois iriam fundir-se um ao outro. E quando se separaram, os rostos estavam bem próximos, a ponta do nariz separadas por centímetros quase inexistentes. E isso era o suficiente para que tanto quanto Hobi sentissem aquele friozinho na barriga; ela não conseguia parar de pensar em como gostaria de provar o toque dos lábios dele e que se fossem tão macios quanto o de suas mãos, ela muito provavelmente estaria encrencada. Hoseok sentia o mesmo, talvez até um pouco mais.
Ele queria assinar embaixo daquele sorriso que tinha encontrado depois de muito tempo apagado, queria continuar elevando o estado de graça de para que ela enxergasse o quão suficiente já era para si. Era como a gasolina para que ele mesmo se encaminhasse todos os dias para fora do monótono. E como ele gostaria de poder ser quem iria compartilhar daquela extensão da felicidade dela.
— Eu vou te beijar agora, doutora. — Sussurrou colocando a mecha de cabelo solta do rabo de cavalo para trás de sua orelha.
— Hobi, não posso arriscar... — E ela realmente estava nessa luta interna.
— , você faz exames regularmente. — O sorriso tentador dele deu lugar a um menos aberto. — E eu confio em você. Até mesmo por que vale a tentativa de qualquer forma. E eu não quero mais viver como se todo dia fosse o mesmo; hoje precisa ser melhor que ontem, mesmo que não vá superar o amanhã.
— Hobi... Eu... Eu quero muito, mas... — Umedeceu os lábios, continuando presa no olhar dele.
— Eu prometo que vou ficar bem. Nós vamos ficar bem.
Ela não se opôs mais, apenas fechou os olhos ao sentir estar ferrada por aquela maciez e delicadeza ao ser tocada. Assim como era com Hoseok desde que se permitiu abrir-se para o modo incisivo dele de se preocupar consigo. gostaria que ele soubesse como havia sido aquela peça importante para que ela se enxergasse novamente, para que pudesse compreender como o quebrado também podia ser bonito.
Eram bebês de extrema fofura. encarava os berços transparentes pelo vidro todo decorado daquela maternidade. O que não era fofo naquele cenário era o tanto de fio plugado naqueles mini seres humanos. Muitos deles que nasceram extremamente fora do tempo. Mas não podia se deixar voltar para sua lista de porquês, levou um certo tempo para que conseguisse se desprender disso e apenas apreciar cada detalhe da vida. Até mesmo os mais trágicos – afinal, Hoseok havia a ajudado a encontrar um novo olhar para a vida, a ensinando que ser grato vale mais do que prender-se ao que não parecia ser certo, até porque não tem como saber exatamente sobre tudo e o todo.
Suspirou ao lembrar de como havia ido parar ali. Meses depois de se afastar do trabalho ela estava de volta ao hospital, mas desta vez como acompanhante. Estava acompanhado Hobi, o homem com quem estivera dividindo sua nova fase da vida, contudo sem rótulos. E infelizmente era por uma razão a qual não lhe deixava estar tranquila.
Hoseok havia piorado. O tumor havia voltado. Uma nova intervenção médica havia sido feita, mas ele ainda estava desacordado e as novidades não eram tão boas. Não havia mais o que ser feito e agora ele estava na estaca zero de um tratamento sem cura, apenas contenção momentânea.
Isso assustava . Ela não conseguia se imaginar sem ele em sua rotina, sem os jantares no terraço, sem sua companhia no geral. E ela queria evitar questionar-se porquê, pois isso deixaria Hoseok frustrado. Ele havia se empenhado muito para que saísse de sua zona caótica, o mínimo que ela poderia fazer naquele momento era se segurar para que ele ao menos não se sentisse um peso.
Ela não estava feliz, mas também não poderia dizer que estava consumida pelo olhar trágico da situação. E isso era com toda certeza o resultado de Hoseok e os meses que já estava ativamente em sua vida.
O celular em seu bolso vibrou e, com a mão que não estava na base de sua barriga, pegou o aparelho do bolso. Seu coração parou por alguns segundos, era uma mensagem de Namjoon, o nome dele brilhava com a mensagem embaixo dizendo "ele acordou". Obviamente que queria estar com ele quando abrisse os olhos, mas aquele momento que tirou para si enquanto ele esteve dormindo foi de extrema importância. Tinha muito o que se pensar.
Caminhou pelos corredores de volta para a UTI, o andar em que Hobi estava, e a cada passo parecia que seu corpo se enfraquecia mais e suas pernas passaram a mover-se pelo automático. Ele não estava sozinho, seus pais e Namjoon o faziam companhia, mas ela estava com pressa.
Encontrou Namjoon parado na porta do quarto quando chegou e logo os pais de Hobi saíram do quarto, sorrindo confortantes para ela. Era o momento de conversarem sozinhos.
se aproximou da cama, segurando a mão dele e o observando tão pálido como nunca.
— Oi, doutora. — E então ele iniciou. — Eu fiquei pensando como iniciar essa conversa, porque ela vai definir o nosso "daqui para frente".
— Hobi... — Ele já chorava copiosamente.
— Não iremos contar com o calendário, ok? — Ele continuou, sua voz estava bem baixa e fraca. — Eu preciso que você me prometa continuar de onde está, desse ponto de partida e seguir adiante. Não olhe para o que ficou no meio do caminho, apenas vá. E saiba que eu fui o homem mais feliz do mundo enquanto tive o privilégio de ter estado com você. — Suspirou e levou a mão até a barriga dela, sorrindo da forma como ela sentia o fôlego se perder. — Sei que irá cuidar bem do nosso filho, mas quero que cuide de si também.
apenas concordou. Era isso: Hoseok fora seu trampolim para sair daquele abismo em que havia se metido internamente. Agora ela precisava ser o que lhe confortaria no que restava.
Ela queria que ele entendesse como a havia convencido de que o imperfeito era perfeitamente moldado para o que tinha de ser.
Fim.
Nota da autora: Olá! Primeiramente, gratidão por ler e, se possível, não esqueça de comentar. É muito bom saber o que você achou da história.
Segundo, eu acho que você não deveria perder a chance de ler a “continuação” logo ali, em When It's All Blue & Grey. Comenta aqui e vai logo lá, vai que alguma coisa muda, huh?
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