Leave Us in Ruins

Finalizada em: 20/12/2022

Capítulo Único

Era surreal.
As ruínas da catedral, emolduradas pelo branco da neve que se estendia dos gramados até o céu pesado de inverno. O frio invadindo seus ossos. A quietude no ar.
Mas a paisagem não tinha nada a ver com as lágrimas que pesavam em seus olhos, ou com a tremedeira das mãos, muito menos com a pulsação acelerada. Era ele. Parado ali, minúsculo contra a St. Andrews, o sorriso aberto contra o vento gelado.
O sorriso que hesitou ao ver o assombro no rosto dela.
- O que foi? Não... Não é o que você esperava? – Ela o viu murchar. Tratou de tentar se recompor, a cópia de um sorriso nos lábios e umas piscadas rápidas para afastar as lágrimas. Lágrimas por causa do vento frio e cortante, e nada mais.
- Não, . É... Mais. – Estúpida, estúpida . Fez um gesto vago com as mãos, tentando compreender tudo aquilo à volta deles. – Eu nunca achei que ia estar aqui de verdade.
Ele estendeu um sorriso demorado, deixando que o alcançasse e agarrou o cotovelo dela, firmando-a quando a neve quase a derrubou. Andaram juntos em silêncio, um apoiado no outro, absorvendo a beleza daquele cenário. Não era particularmente desconfortável, como nada nunca foi com ele, mas ela queria falar alguma coisa. Precisava falar alguma coisa.
- Está bem longe de um trabalho da sexta série, de fato. – disse por fim, com um riso preso na voz, o cotovelo batendo na cintura dela como uma provocação. Foi o suficiente para plantar de novo o sorriso sincero em seu rosto e jogá-la nas lembranças.
Não eram amigos quando a Escócia surgiu pela primeira vez na vida deles. Nunca tinham trocado uma palavra. Ela era nova na escola e ele não tinha facilidade para fazer amigos. Não conseguia acertar uma bola nem que fosse para salvar a própria vida, e o futebol parecia ser a cola que unia a maioria dos colegas de turma. foi o segundo da classe a sortear um país: Escócia. Aquele seria seu tema de estudos pelo resto do semestre, e só faltava descobrir quem seria a sua dupla. Ficou aliviado a cada colega que tirava um tema diferente. Faltavam ainda três alunos quando sorteou o mesmo tema da caixinha cinza do professor de Geografia. Ela leu em voz alta o país e procurou sua dupla pela sala, oferecendo um sorriso hesitante quando o encontrou com o braço erguido. Quando o professor pediu que as duplas sentassem juntas, levou sua cadeira até a mesa dela.
De início eles levaram a relação quase que de forma profissional, só falavam sobre o que tinham encontrado sobre a Escócia enquanto pesquisavam sozinhos. E então um deles fez a primeira piada. Até hoje não sabiam quem tinha sido, mas o trabalho pareceu menos opressor depois daquilo. Conversavam todos os dias, recortavam fotos do país em revistas de viagens, riam e frequentavam a casa um do outro. Foi um choque quando o semestre terminou e não precisavam mais continuar a convivência. Anos mais tarde, admitiu que tinha certeza de que ela não o procuraria depois disso, mas lá estava ela, depois das férias de inverno, na carteira logo ao lado da sua, esperando-o com um sorriso ansioso. Um chaveiro da cidade para onde viajara com a família sobre a mesa dele. Ele sorriu envergonhado. Tirou da mochila um cartão postal que tinha comprado para ela numa praia do nordeste e o depositou com cuidado em cima do caderno de .
- Um cartão postal! – reclamava até hoje. – Quem é que compra um cartão postal para a amiga de escola? Quantos anos eu tinha, 60? O que eu ia fazer em seguida? Te escrever e mandar uma carta por correio?
Ela tinha adorado. E naquele dia nasceu sua, agora enorme, coleção de cartões postais. , ela, outros amigos e sua família a abasteciam a cada viagem. Uma bolsinha especial tinha vindo para a Escócia com a única finalidade de se encher de mais postais. E todas as mochilas e malas de contavam com pelo menos um dos chaveiros presenteados por pendurado em algum lugar.
Quinze anos de amizade, mas eles nunca tinham se apaixonado. Talvez uma faísca quando ainda eram novos, mas não aquilo. Não o que sentiu quando o viu sorrindo para ela num dos pontos turísticos que eles mais tinham sonhado conhecer desde aquele trabalho. O aperto no peito e a constatação de que que finalmente tinha cumprido uma de suas metas. Fazer aquela viagem com o cara que amava.
Eles se amavam, sim. Diziam isso o tempo todo, quando ela mandava um vídeo particularmente engraçado, ou quando ele mandava um café para ela no meio do dia de trabalho. Quando a autoestima dela não estava muito boa, ou quando ele se fechava em sua concha. Mas não daquele jeito.
Deveriam estar fazendo aquela viagem em dois casais, não com ela sonhando em serem apenas um. E, ainda assim, sua pele se arrepiava de excitação pela proximidade dos dois, por ser o alvo dos sorrisos dele. As bochechas estavam vermelhas, e ela não tinha certeza se era só pelo frio, porque as sentia arder ainda mais quando ele a olhava em um silêncio empolgado. Eventualmente ele apontava para as ruínas com a mão que não permanecia em volta da dela.
- Eu realmente nunca entendi qual é o seu lance com construções abandonadas e em ruínas, mas olhando isso aqui... Eu sinto alguma coisa, sabe? – ele estudou uma das paredes ainda de pé e depois voltou o rosto para ela.
- Eu também sinto. – Ela soltou, e imediatamente quis puxar as palavras de volta, porque estavam pesadas com muito mais do que uma concordância ou validação. Estúpida. Como foi se apaixonar pelo melhor amigo?
sabia a resposta. Estar com era confortável, e a mergulhava num mar de calmaria, ele era gentil e atencioso, tinha decorado suas preferências e sabia lê-la como ninguém. Ele sabia exatamente a hora certa de um cafuné ou de uma guerra de petelecos.
Sempre foi um mistério para ela que seus relacionamentos não durassem. Em geral acabavam quase que antes de começarem, e abalavam de tal modo que ele passava dias sem conseguir olhar nos olhos dela. sabia que ele queria explicar os motivos, mas as palavras simplesmente não conseguiam escapar dos lábios dele.
- Do seu jeito. No seu tempo. – Ela dizia, provavelmente estourando pipoca e escolhendo um filme musical adolescente terrível dos anos 2000.
Agora, enquanto outros grupos de turistas chegavam às ruínas, ele a olhava como se soubesse exatamente o que ela falava. Como se também sentisse. Durou um segundo, e em seguida ele dava um sorriso debochado.
- Vem, vamos fazer um book antes que essa gente estrague nossas fotos. – Os dedos dele, gelados, se prenderam entre os dela. Estavam dividindo um par de luvas, as dela descansavam inúteis na mesinha de cabeceira entre as camas do quarto de hotel que compartilhavam.
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o amava. Talvez romanticamente, mas com certeza como seu melhor amigo, e agora afirmava isso entre risadas enquanto jantavam no restaurante perto de seu hotel em Edimburgo, olhando as fotos que tinham tirado até então.
- Ah, eu queria que isso fosse verdade. – Ele brincou, o rosto apoiado em uma das mãos, a outra servindo mais vinho na taça dela. virou o celular, mostrando uma das selfies dele, seu rosto em primeiro plano como se estivesse prestes a vomitar com a pose clichê que ela fazia ao fundo.
A mãe dela queria que os dois registrassem lembranças que pudesse colocar em um álbum de fotos e mostrar para as visitas em casa, mas a maioria das imagens eram caretas de e seus cliques em momentos inoportunos, pegando com os olhos fechados, no meio de uma frase, como um borrão ou espirrando. Ele não era um péssimo fotógrafo, na verdade. Tinha tirado fotos de uma qualidade quase impossível, imortalizando tanto quanto a paisagem tão perfeitamente que ela mal podia acreditar que não era um trabalho profissional, que aquelas fotos eram cruas.
- Não, eu te amo mesmo. – Com mais seriedade do que queria. Ela virou de novo a tela, mostrando uma foto mais do que decente dela em frente a um dos famosos castelos do país. – Eu estou... Quase completamente perfeita nessa foto. Quase uma deusa.
- Você é quase completamente perfeita. – ele se defendeu de um pedaço de pão que ela jogou na direção dele e deu de ombros. – Não faço milagres, .
- Sinto muito que você não tenha fotos tão boas suas para guardar. – ela já era péssima fotógrafa normalmente, mas com o frio e o sentimento recém-descoberto, tremia absurdamente toda vez que ia tirar uma foto dele. As luzes em suas fotos sempre saíam erradas, ou muito escuras ou estouradas. E sempre o fazia sair com uma cabeça muito maior do que realmente tinha.
- Tudo bem. O que vou fazer com fotos minhas, sozinho aqui? Ficar admirando minha beleza? Temos fotos da paisagem e de nós dois o suficiente para não me importar.
- Sim, para daqui 50 anos, quando formos tão rabugentos que vamos ter parado de nos falar, você olhar junto com a sua esposa e ter mais um motivo para reclamar de mim. – Ela mostrou a língua, já roxa pelo vinho. Ele a olhou com falsa indignação.
- Eu nunca faria isso. Você pode ser a senhora mais rabugenta do universo, mas eu vou sustentar o fardo de ser seu único amigo até o fim das nossas vidas. – chutou a canela dele por baixo da mesa, mas sorriu. Era fácil, ela decidiu. Só tinha que esperar a paixão passar. Já tinha acontecido muitas vezes antes. Sempre passava.
- Então nesse seu futuro eu me casei? – Ela perguntou, tentando se livrar dos próprios pensamentos. Ele estreitou os olhos, fingindo considerar a resposta.
- Três ou quatro vezes, sim. Todos uns malas. Eu incluso. – ela arregalou os olhos.
- Você se casou comigo?
- Sim, mas não deu certo. Você gargalhava toda vez que pensava em me beijar. – foi pega desprevenida e riu, um riso meio nervoso e surpreso. – Viu? Mais ou menos desse jeito.
- Mas não estou pensando em te beijar. – Mentira. Pensava nisso desde St. Andrews, e todo pequeno sorriso dele, todo olhar debochado, cada risada e sempre que ele chamava seu nome era um gatilho para aquele tipo de pensamento. Um sorriso se pendurou no canto da boca dele.
- Tem certeza? – A voz dele, baixa e rouca e um pouco arrastada por causa do álcool mandou um arrepio pelas costas dela. Ela forçou um revirar de olhos, como se não estivesse completamente afetada. Tentando disfarçar a tremedeira na mão, levou-a em direção à taça, mas ele segurou seus dedos antes que ela tocasse no vidro. – Por favor, sem mais vinho para você. Se o seu rosto ficar mais vermelho do que isso o próximo passo é eu te carregar até o quarto. De novo.
aceitou a sugestão, mas só porque o álcool já criava imagens indecentes em sua cabeça. Esperou que fosse só impressão, mas teve certeza de que arquejou com aquilo. Ela o olhava nos olhos, e permaneceu assim por mais tempo do que o necessário, até que sentiu que ele acariciava o dorso de sua mão com o polegar.
- Eu não me importaria. – ela se pegou dizendo, a mão suando contra a dele. Se não o estivesse encarando, não teria percebido o leve franzir das sobrancelhas dele, não surpreso, mas machucado.
- Você está bêbada, . – O tom era debochado, mas ela tinha visto aquele relance de emoção no rosto dele.
- Não o suficiente. – murmurou. Se estivesse realmente embriagada teria confessado rindo o sentimento que tinha descoberto. Mas só queria chorar e pedir desculpas porque sabia que aquilo seria a ruína da amizade dos dois.
Ele pousou as mãos dos dois sobre a mesa, ainda sem soltar, meio incerto. Como se a mão dela pudesse voltar automaticamente para o copo caso a largasse. Ela sentiu o lábio inferior tremer, e o mordiscou de leve para disfarçar. O olhar de se prendeu ali e ele suspirou alto.
- Você está sendo especialmente cruel hoje. – disse por fim. Não era acusatório, mas uma reclamação quase atormentada.
- Eu? – As sobrancelhas de quase se uniram com a curiosidade. Ela tentou manter um tom casual: – O que estou fazendo?
Ele bufou, e seu corpo se retraiu, mesmo que não tenha soltado a mão dela sobre a mesa. Agora ela podia ver mágoa em seus olhos.
- Eu sei que você percebeu. Não sei há quanto tempo, mas percebi o que mudou. – as bochechas dela pareceram pegar fogo. Ele não poderia saber. Poderia? – Mas não achei que brincaria com meus sentimentos dessa maneira.
Ela começou a sacudir a cabeça, querendo negar a dedução dele, mas parou de súbito. Os sentimentos dele?
- Eu não estou... Do que você está... O quê? – Não sabia se era uma brincadeira dele, e estava nervosa demais para respirar direito. Suor brotava nas palmas de suas mãos e os olhos ardiam com lágrimas. Sentiu quando a primeira delas escapou junto com o soluço arquejado.
- Você não...? Ah não. – Ele soltou a mão dela, e cobriu o rosto com as duas mãos. – Seja sincera. Por que está estranha de alguns dias para cá, ?
- Porque eu... – ela esfregou as palmas na calça jeans, secando-as, e fungou enquanto tentava se livrar das lágrimas. Inspirou profundamente. – Porque eu acho que vou estragar nossa amizade.
- Você não conseguiria fazer isso nem se tentasse. – ele disse, uma mão ainda cobrindo parte do rosto, mas a encarando novamente, com o que parecia ser a tentativa de um sorriso tranquilizador.
- Conseguiria. Porque percebi que não o quero como amigo. – as lágrimas voltaram a se acumular e ela percebeu tarde demais como aquilo o atingiu. Ele recuou na cadeira como se ela o tivesse estapeado. – Não! Claro que o quero, mas... Credo, como isso pode ser tão difícil? Não acho que você seria um dos meus futuros ex-maridos, . – Ele estava perdido, sabia. – Não... Porque não acho que vou gargalhar quando... SE for beijar você. Porque quero fazer isso agora e estou apavorada, e sei que vai dizer que só estou falando isso porque bebi demais, mas quero beijar você desde que vi o seu sorriso em St. Andrews, e penso nisso em todos os momentos desde então, e estou estranha porque acho que nossa amizade não vai sobreviver a essa paixão, porque sei que você acredita que minhas paixões passam rápido, mas nenhuma delas foi você antes e tenho essa certeza dolorida e gelada no fundo do meu estômago de que vai demorar muito tempo para eu curar o meu coração da sua rejeição.
Ali estava. Tão rápida e dolorosa quanto arrancar um curativo, sua confissão.
Ela o viu piscar, absorvendo o choque de suas palavras. Ela tinha oferecido um quadro, mas pela expressão no rosto dele, parecia mais um quebra-cabeças com peças faltando.
Então ele riu. Gargalhou. E, antes que a expressão dela pudesse se deixar afetar pela tristeza e humilhação, saltou da própria cadeira e se agachou ao lado dela, olhando-a tão de perto que era quase desconfortável. As mãos dele estavam em suas bochechas e ele mexia discretamente a cabeça de um lado para o outro.
- Como você pode me ver tão bem e não me enxergar nem um pouco? Você realmente achou que eu a rejeitaria? , faz anos... Anos que eu tento suprimir meus sentimentos por você, que espero que você finalmente perceba o que eu sinto e coloque um fim nessa agonia de não saber como você vai reagir. Eu sinto muito que nunca tenha tido a coragem de te falar, mas faz muito tempo mesmo que me sinto assim. Foi no ensino médio que me senti atraído por você pela primeira vez, mas eu era um moleque e... Mas depois de um tempo eu entendi que ninguém mais era você. E isso me matou um pouco, e o medo de perder você, caso não sentisse o mesmo... Eu não podia arriscar, . Mas às vezes parecia que você sabia, e entrava nas minhas brincadeiras para me provocar. E agora saber que você nunca nem suspeitou... Eu não sei se estou maravilhado com a minha atuação ou decepcionado com a sua percepção.
riu, sentindo as lágrimas molharem os dedos dele em seu rosto, e sentiu os lábios tremerem quando sussurrou:
- Então, só para eu ter certeza... Você também...?
Ele revirou os olhos e a risada era incrédula quando ele soltou:
- Ai, ! – e antes que ela pudesse questionar, a beijou. Ele sentiu quando os lábios dela se esticaram e tremeram e, com a boca colada na dela, implorou: – Por favor, não faça.
Mas ela gargalhou. Não porque a ideia de beijar o melhor amigo fosse cômica, mas porque a deixava feliz. E o sorriso dele no dela, as mãos em seu rosto, o silêncio cúmplice entre eles, tudo aquilo era certo.
Era surreal.




FIM.



Nota da autora: Sem nota.
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