Lights Up

Finalizada em: 11/09/2021

Capítulo Único

Sexta-feira, 18h20, decidiu que já podia encerrar seu expediente e não demorou a desligar o notebook em cima da mesa. Ajeitou os papéis soltos em cima dela e trancou sua gaveta de arquivos confidenciais, apagando as luzes e fechando a porta em seguida.
Enquanto passava pelo corredor do andar, notou que a maioria das salas estavam apagadas, e a de não era uma delas. Deu duas batidinhas na porta de vidro, que estava aberta, apenas para atrair a atenção dela. tirou os olhos da tela e o encarou por cima dos óculos.
- Sabe, pelo meu relógio você já devia estar longe daqui. - olhou teatralmente para o relógio em seu pulso. - Desliga isso, o pessoal já está nos esperando para o Happy Hour.
- Eu não vou. - sorriu sem mostrar os dentes.
- Vamos lá, ! Nem me lembro mais da última vez que tivemos a sua presença em um dos nossos Happy Hours. - tentou argumentar, sabendo no fundo que não adiantaria.
- Eu não posso, está me esperando, não tinha falado com ele. - ela justificou e apenas assentiu.
- Espero que sua presença esteja confirmada para a nossa festa daqui há duas semanas, hein? - alertou com o sorriso brincalhão que quase nunca deixava seu rosto.
- Claro que sim. - mentiu.
- Eu estou falando sério, você sabe que é sua presença é praticamente obrigatória esse dia, afinal não é todo dia que se recebe um prêmio pelo trabalho desenvolvido neste jornal. - a relembrou.
- Sei sim, estarei lá. - repetiu e fechou a tela do notebook em seguida.
- Bom, te vejo segunda então. Bom final de semana! - desejou antes de deixá-la.
- Para você também. - se despediram com um aceno de cabeça.
já estava esperando o elevador chegar ao seu andar quando teve vontade de conferir a lista de presença do evento do jornal, só assim notou que não estava com o seu celular e enquanto voltava para buscá-lo cruzou com no corredor. Fez o caminho novamente, não a encontrando mais ali, assim como o elevador. Apertou novamente o botão para chamá-lo e então acessou a lista.
- Mentindo para o seu chefe na cara dura, hein, ? - falou sozinho e entrou no elevador.

não reconhecia mais a amiga de época da faculdade, eram praticamente duas pessoas. tinha sido sua caloura no curso de jornalismo na Universidade de Boston, eles já tinham se visto e conversado por alto em algumas das festas, mas os dois se conheceram melhor quando ele reprovou em uma matéria e se matriculou na turma dela.
Acabaram por formarem uma dupla para os trabalhos, pois ela sempre levava tudo na brincadeira, assim como ele, mas era muito inteligente e tinha paciência com a lerdeza dele, o que rendeu sua aprovação ao final do semestre.
Desde então eles tinham sido amigos, quando se formou ele tinha uma ótima oferta de emprego no Boston Globe e era sua meta conseguir levá-la para lá quando ela se formasse. Ele era bom no que fazia, e os chefes escutaram sua recomendação sobre e a contrataram. E agora, quase cinco anos depois, ele era editor-chefe e ela era repórter.
No entanto, enquanto suas vidas profissionais estavam em ascensão a amizade entre eles entrou em declínio, e sabia que tudo tinha começado a ficar estranho depois que ela assumira o namoro com o tal . Não foi de imediato, mas era a única coisa diferente na vida dela que podia justificar as mudanças.
Logo que ela passou a ser repórter e ele tinham mais reuniões e projetos juntos, quem os visse diria, com certeza, que ela era a chefe e não ele. Estava sempre impecável, maquiada, sempre de salto e com as unhas feitas, agora ela só usava batom. Nada mais de salto ou unhas sempre feitas.
Eles não saiam mais juntos, nem mesmo para almoçar durante o dia de trabalho, e aos poucos foram deixando de saber um da vida do outro também. Passaram de amigos a meros colegas.
Até tentou se distrair com os outros colegas durante o encontro no bar naquele dia, mas a situação de não saiu de sua cabeça. Se ela não fosse na confraternização do jornal, seria um fiasco, pois grande parte dependia dela, de fato. E foi então que lembrou-se de sua irmã. Ela era psicóloga, tentaria falar com ela e esperava que ela não colocasse a ética em jogo e fosse útil.

deixou o prédio onde o Boston Globe funcionava pouco tempo depois de se despedir de . Ela odiava mentir e isso estava martelando em sua cabeça. A verdade é que ela já tinha mencionado o evento do jornal algumas vezes com , mas o assunto sempre acabava em discussão e ela acabava desistindo de chegar ao final da conversa.
Ela sabia muito bem da importância que seu emprego tinha em sua vida, e também do valor que ela tinha para o jornal. Sabia que precisava estar lá, e mais que isso, queria que quisesse estar lá com ela e apoiá-la. Mas ele não enxergava dessa forma, achava desnecessário ela se expor para os outros num vestido de gala, assim como não via a necessidade de que ela aceitasse a promoção que era especulada.
Se dependesse de , nem mesmo trabalharia. Ele vivia lembrando que ele ganhava o suficiente para mantê-los e manter a casa deles, e que ela poderia viver para cuidar do local. Mas ela não aceitaria, ela podia abrir mão de muitas coisas em razão do amor que sentia por ele, mas não seu emprego.
Fez o caminho todo em automático e só percebeu isso quando terminou de estacionar o carro. Sabia que precisava falar com , mas não seria naquele dia… não quando ele tinha aquele sorriso no rosto e a esperava na porta da casa deles.

chegou ao trabalho na segunda-feira com um sorriso no rosto, o que fez um dos estagiários comentar e alto e bom som que a noite do chefe tinha sido boa. Ele não fez a menor questão de negar, apenas deu um de seus famosos sorrisos e deixou que tirassem as conclusões que quisessem. Até porque ele não falaria o verdadeiro motivo para ninguém.
Sua irmã tinha retornado sua ligação no dia anterior e depois de uma longa conversa ele tinha aceitado que o mais provável era que ela estivesse em um relacionamento abusivo, mas que não se dava conta. A primeira reação de foi negar, afinal sempre fora uma mulher forte, ela não estaria numa situação daquela. Mas quanto mais sua irmã dizia, mas as coisas pareciam fazer sentido.
Assim que a ligação foi encerrada ele buscou por relacionamentos abusivos no Google. Parte dele ainda não queria que fosse verdade e a parte que sabia que era provável que aquela fosse a situação real e queria encontrar uma forma de ajudá-la. Afinal, como sua irmã dissera, se estava difícil para ele aceitar aquilo, como faria com que aceitasse?
E como se seu cérebro entendesse que deveria continuar trabalhando enquanto ele dormia, acordou com uma solução em mente. Estava se sentindo um gênio e seu bom humor era por isso. Caminhou ainda sorrindo até a máquina de café, escolhendo um duplo e sem açúcar. Notou que ainda não tinha chegado quando passou pelo corredor, e mais tarde ligaria para ela e a convocaria para uma reunião.

- Ah, oi, . Tudo bem e com você? - respondeu ao telefone. - Claro, vou só concluir uma matéria aqui e vou aí. - desligou em seguida e suspirou.
O editor-chefe não parecia chateado com ela, talvez nem mesmo tivesse a ver com a mentira da semana anterior, mas esse era o único motivo que ela conseguia pensar para querer conversar com ela na sala dele. E pensando nisso ela acabou gastando mais tempo para terminar o que estava escrevendo e adiando ao máximo que pode o momento de encará-lo.
- Sente-se, . - indicou uma das cadeiras a sua frente e se levantou, indo fechar a porta. Não queria que ninguém ouvisse a conversa entre eles. - Como foi seu final de semana? – perguntou, apenas tentando organizar os próprios pensamentos sobre como abordar o assunto.
- Normal. - ela respondeu, um pouco incerta.
- Ótimo! - sorriu. - Te chamei aqui porque estamos com umas ideias novas para umas novas matérias e tem uma que o tema é importante e eu queria que você a fizesse.
quase soltou um suspiro de alívio, mas se limitou a sorrir.
- Claro, ! Fico feliz que ainda goste tanto do que eu escrevo como era quando me trouxe para cá.
- Você é brilhante, ! E não sou só eu que acho isso. - fez questão de frisar. Sua irmã tinha lhe dito sobre destacar pontos fortes nas pessoas nessa situação.
- Obrigada! - sorriu verdadeiramente. - Sobre o que é essa matéria?
- Sobre relacionamentos abusivos. Pelas notícias que Nelly tem escrito, os índices de violência contra a mulher têm subido e na reunião passada concordamos que seria importante para a sociedade se o jornal publicasse sobre o assunto. - explicou.
- Entendi. - abriu sua agenda e anotou algumas palavras-chave.
- Ah, e o formato vai ser um pouco diferente do que você geralmente faz. - ela levou os olhos da caneta para . - Nós queremos algo bastante abrangente. Queremos que você trabalhe não só com o que já foi noticiado, queremos algo que sirva de alerta. Desde a definição do que é até alguns depoimentos, caso você consiga coletar. Se conseguir entrevistar algum psicólogo ou especialista, acho que seria um diferencial para nós.
- Uhum. - voltou a escrever em sua agenda.
- E só mais uma coisa. - ele atraiu a atenção dela mais uma vez. - Eu te escolhi, mas não quero que fique na cara para os outros que te dei preferência. - fez uma careta como se sentisse culpado, mas não caía naquele teatro. - Então se você precisar de algo, fale comigo antes, por favor.
- Não comentar com ninguém. - ela falou lentamente enquanto anotava a frase em letras garrafais no topo da página. - Mais alguma coisa? - o olhou, divertida.
- Não, acho que falei tudo.
- E qual o meu prazo?
tentou não fingir surpresa, mas ele nem mesmo tinha pensado sobre isso e nem se de fato publicariam, na cabeça dele aquilo não passava de uma intervenção. Lembrou-se do evento em duas semanas, mas não poderia pressioná-la dessa forma.
- Não tem uma data prevista. Veja o andamento no começo e me avise quando tiver uma previsão.
- Ok. – respondeu, achando um pouco estranho.

estava em sua sala há algum tempo e de todas as formas que ela pensava não encontrava uma forma de conseguir depoimentos de leitores e ainda sim ser algo meio secreto. Pegou sua agenda e voltou à sala de sem nem mesmo saber se ele estaria lá. Bateu antes de entrar e apesar de estar ao telefone ele acenou para que ela entrasse e aguardasse um pouco.
- O que houve, ? - questionou ao ver o semblante preocupado da repórter.
- Estou pensando no que você me pediu e de todas as formas eu precisaria divulgar o que estamos fazendo, em alguma rede social ou em alguma página da internet. - explicou e parecia confuso. - Você disse que era algo meio sigiloso, certo?
- Não é sigiloso. - apressou a dizer.
- Mas é algo que não era para mostrar por aí. - ele confirmou. - Hoje em dia a maior interação que temos com os leitores do jornal é através do Instagram. Acredito que teríamos bastante respostas e colaboração com o tema se fizéssemos uma postagem por lá, só que acaba com o fato de ninguém saber.
- Você está certa. - ele disse, sério, e passou a mão pelo rosto. Claramente o seu plano perfeito tinha mais falhas do que ele pensava.
- E o que faremos então? – questionou, determinada a encontrar uma solução.
- Você realmente acredita que o Instagram é a melhor forma de interação?
- No momento sim, o alcance é bem grande.
- Então o “sigilo” - repetiu a palavra que ela havia usado - vai ser apenas em relação a quem estará cuidando da matéria. No caso, você.
- Estou ouvindo. - queria saber o que ele tinha pensado.
- E se nós criássemos uma conta paralela no aplicativo? Pensa comigo, você vai ser responsável por essa conta sem que ninguém saiba. E você monta o post como achar melhor para ser postado e eu o enviarei a equipe responsável em meu nome.
- E nesse post eu redireciono para a conta específica para o assunto! – concluiu, satisfeita. - Obrigada, ! Você é um gênio! - puxou o saco dele.
- Eu sei, por isso eu sou o editor-chefe. – sorriu, convencido.
- Tinha esquecido do tamanho do seu ego. - provocou.
- Me mande quando estiver pronto. Garanto que vamos sair na frente em relação aos nossos concorrentes. Você ainda gosta de uma competição, né? - tentou resgatar nela memórias do passado dos dois. Talvez ela se lembrasse de como era antes e percebesse que algo não estava certo.
- Nós sairemos na frente. – disse, com convicção, e deixou a sala mais uma vez.
Enquanto pensava nas informações essenciais para a postagem em nome do jornal, criou uma conta nova para quem quisesse deixar os depoimentos. Depois acessou os contatos de psicólogos que já tinha entrevistado anteriormente e por não se lembrar se eles tinham alguma área específica de atuação, enviou mensagem a todos questionando se poderiam conversar sobre o tema. Esperaria pela resposta de todos, caso nenhum deles estivesse disposto a conversar com ela sobre o tema, precisaria mencionar também na postagem.
Nem viu a hora passar, tinha caminhado um pouco em relação ao que precisava ser feito, organizado as ideias e percebeu que há muito tempo não se empolgava com algo no trabalho. A proposta de algo diferente realmente tinha a motivado.
- O que tanto você olha nesse telefone? - perguntou, com um meio sorriso ao ver que ela sorria e não prestava mais atenção ao filme.
- Ah, nada demais. - desconversou e bloqueou a tela.
- Me conta! Você estava super concentrada. - sorriu sem graça. - Fala a verdade, era meu presente de aniversário?
- Seu aniversário é só mês que vem, ! - negou com a cabeça.
- Eu sei, então o que era? - insistiu mais uma vez.
- Só umas coisas para o trabalho. Estou trabalhando num projeto novo. - contou e cruzou os braços e bufou.
- Parou de assistir ao filme comigo por coisa de trabalho? – perguntou, descrente. - É sério isso, ? - ela não disse nada. - Achei que a gente já tinha conversado sobre isso.
Ele desligou a tv e jogou o controle no sofá assim que se levantou.
- Aproveite sua noite sozinha. - ela suspirou e fechou os olhos.

Dois dias tinham se passado e ainda estava a ignorando. No entanto, o foco no trabalho vinha amenizando o sentimento de culpa que ela insistia em sentir sempre que se lembrava da briga boba. Tinha conseguido conversar por vídeo com uma das psicólogas que tinha entrado em contato, e agora estava concentrada em transcrever as coisas importantes que foram faladas, para recortá-las e inserir na matéria.
- Que susto! – praguejou, sozinha, colocando uma mão no peito quando o telefone tocou. - Alô?
- ! - estava agitado. - Você já olhou o instagram que você criou?
- Ainda não, estava trabalhando em outra parte, por quê? – perguntou, procurando o aparelho entre os papéis na mesa.
- Temos muitos likes e muitos comentários, se tivermos metade disso de depoimentos… - ele estava feliz, e então depois de alguns segundos de silêncio sua voz era outra. - Significa que muita gente passa por coisas horríveis. - ele concluiu e estava em choque.
- É… Mas faz parte do trabalho. Noticiamos todos os tipos de tragédias e tristeza, nesse, pelo menos, vamos focar em abrir os olhos das pessoas. - ele concordou com um murmuro. - Vou dar uma olhada depois e te informo do nosso alcance. Até mais.
Pegou o celular e entrando na conta recém-criada ela viu que tinham dois depoimentos. Não os leu, preferiria trabalhar neles quando finalizasse o que estava fazendo e voltou a transcrever as falas da profissional.

- É como tirar o direito dos outros. Colocando regras e posicionamentos seus no outro, tirando a liberdade de expressão e de comportamentos. Querer controlar de forma exagerada o outro. - terminou e salvou o arquivo.
Da parte de pesquisa, estava tudo certo. Entre todas as definições que tinha se informado, tinha gostado bastante de duas que contrastavam. Trinta anos se passaram entre uma e outra serem escritas e se tratavam da mesma coisa. As releu.

Para Arendt (1985) a violência surge como última alternativa possível para manter o poder sobre o outro. Nas relações abusivas, o poder está no cerne da questão, ela demonstra a desigualdade existente entre as forças do abusador e do sujeito que sofre o abuso. O poder é então uma via pela qual a força física ou simbólica será aplicada, no intuito de atingir determinado objetivo.

Barretto (2015) definiu esses relacionamentos como aqueles em que há excesso de poder e de controle, culminando no sentimento de posse, na objetificação do outro.

Com certeza não era um tema fácil e ela preferiu encerrar o expediente por ali, estava se sentindo esgotada, como há muito não sentia. Precisava relaxar e ocupar sua cabeça com outras coisas pelo menos até o dia seguinte.

Terminou de revisar o que tinha até o momento no arquivo e o enviou por e-mail a , juntamente com a informação de que tinha pouco mais de cem DMs no instagram e que ela começaria a trabalhar com essa parte.
As primeiras mensagens elogiavam a iniciativa, diziam o quanto era importante aquilo ser trabalhado e outras coisas parecidas. Foi apenas a partir da quinta mensagem que os depoimentos começaram e logo sentiu seu estômago revirar lendo aquelas atrocidades. Como eram capazes de tais coisas com outro ser humano?
Já tinha lido alguns e ela percebeu que a maioria dos relatos não tinha a ver com abuso sexual, embora tivesse lido duas ou três sobre. Começou a fazer a primeira triagem, separando as potenciais histórias e as transcrevendo para um novo arquivo.

Meu ex tinha vários perfis fakes para mostrar o pênis para outras mulheres. Em uma das vezes que o confrontei ele me trancou de fora do quarto e me mandou dormir no chão, pois ele não deixaria uma “vadia” dormir na cama que ele comprou.

riu, incrédula. Era tão absurdo ler algo assim. Esperava que ela tivesse dormido no sofá, pelo menos e não no chão como o indivíduo tinha dito.

Meu ex era mestre em tortura psicológica. Um dia cheguei ao meu limite, peguei minhas coisas e quando fui sair de casa ele me puxou de volta, me prendeu contra a parede e esfaqueou meu braço. Depois me puxou até o banheiro e foi fazer um curativo como se não fosse nada demais. Disse que me amava demais e eu era a culpada por ele ter feito aquilo.

- Como é que é? - se expressou em voz alta e releu. - Ainda bem que virou ex, quer dizer que conseguiu se livrar desse psicopata. - balançou a cabeça em negação e abriu a próxima mensagem.

Cheguei de viagem um dia e meu ex-marido estava com um chupão no pescoço, fui perguntar o que era e ele me chamou de maluca, que eu estava delirando e inventando coisas, que eu não dava um dia de paz para ele, que eu vivia para arrumar briga. Me senti tão mal e acabei pedindo desculpas por ter desconfiado dele.

- Está na cara que ele estava errado e mesmo assim ela pediu desculpas… Inacreditável! - falou sozinha novamente.
A verdade era que não sabia o que esperar desses relatos, e estava constantemente sendo pega de surpresa. Era surreal imaginar quantas mulheres viviam um relacionamento tóxico.

Meu ex não me deixava ter redes sociais. Durante todo o tempo que ficamos juntos eu usava um celular que só mandava sms enquanto ele tinha smartphone e usava todas as redes sociais.

- Direitos iguais para quê?
- Falando sozinha, ? - tinha colocado a cabeça dentro da sala dela e ela nem mesmo tinha reparado.
- Você nem calcula quanto absurdo eu estou lendo.
- Mas isso é bom para a matéria, certo? – questionou, incerto.
- Estou filtrando, mas acho que sim. Talvez você tenha que me pagar um tratamento psicológico depois que tudo acabar, mas isso é outra história. - ela brincou, mas sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Será que o plano já estava surtindo efeito?
- Mas você está bem? - a sondou.
- Claro, ! Só estou brincando com você. - riu da cara dele.
- Boa sorte, então! Estou indo para uma reunião, te vejo amanhã. - se despediu e ela acenou, e então ele fechou novamente a porta.
- Aonde eu estava mesmo? - rolou a página procurando as mensagens ainda não lidas.

Meu namorado me chamou de vagabunda no meio de um evento infantil na escola do meu filho porque eu estava usando uma blusa com um decote e, segundo ele, aquela não era roupa de mãe, nem de mulher decente. Não estou mais com ele.

Imediatamente se lembrou do dia em que criticou a roupa de sua melhor amiga, dizendo que era vulgar demais para uma mulher ir para a balada com um vestido curto e decotado como aquele. Ela tinha um igual e nunca mais usou, inclusive nem deixou que visse.
Mas não era a mesma coisa, nunca tinha xingado .

Uma vez ele disse que tinha vontade de vomitar quando lembrava que transava comigo, então eu disse que era só ele limpar. Ele disse que naquela casa quem limpava era eu, que ele só olhava eu fazer.

Várias cenas começaram a pipocar na cabeça dela, de todas as vezes que pedia para ela limpar alguma coisa, de todas as vezes que ele nunca a ajudou com nenhuma das poucas tarefas de casa, já que eles tinham uma pessoa que limpava a casa. respirou fundo, começando a se sentir incomodada.

Meu ex não gostava que eu tivesse amigos, brigava comigo porque eu conhecia muita gente, se um amigo me cumprimentass,e ele já perguntava logo se nós já tínhamos ficado.

Ele me fez acreditar que eu não precisava de mais nada além dele e do amor dele. Não precisava da minha família, dos meus amigos, nem do meu trabalho. Os surtos de raiva e ciúme eram seguidos de pedido de desculpas, dizendo que eu tinha que entender e aceitar que ele era o suficiente para a minha vida.

A sensação incômoda de antes aumentou. sentia um aperto no peito e sua cabeça girava. Ela não estava numa situação daquelas. Ela não poderia estar…
Em relação ao emprego, deixava claro que não via necessidade, que aquele dinheiro não os faria falta e que ele preferiria que ela ficasse em casa. Não era assim desde o início do relacionamento, ela não saberia precisar quando ele começou a implicar com o trabalho dela.
Não se lembrava da última vez que tinha saído com seus amigos, há tempos nem mesmo sabia notícias deles. Pensando bem, até sobre , que ela via quase todo dia, ela não sabia mais nada a respeito. Como ela conseguiu se deixar afastar de todos? Quando foi que sua vida passou a ser resumida na vontade de ? Aquilo era assustador.
Isso sem mencionar o tempo que não visitava seus pais no interior. Sempre que pensava em ir em algum feriado ou final de semana, o namorado acabava convencendo-a de outros planos e ela acabava deixando para depois.
Fechou a tela do notebook com força e sem nem saber que horas eram ela foi embora.

não saberia precisar o que estava sentindo, sua cabeça não parava um segundo sequer. tinha chegado a pouco do trabalho e ela não conseguia olhá-lo por muito tempo. Era como se agora conseguisse vê-lo como ele realmente era ao mesmo tempo em que conseguia ver tudo na vida dela que ela tinha deixado para trás ao longo dos anos.
Não precisou mentir que não estava se sentindo bem e foi logo para a cama, mas não dormiu nem por dez minutos aquela noite. Continuou fingindo até a manhã seguinte e só se levantou ao ouvir a porta da frente sendo trancada. Tomou um banho rápido e colocou algumas mudas de roupa numa mochila. não sabia o que faria ou para onde iria, mas sabia que para chegar em qualquer conclusão ela precisaria estar longe daquela casa e longe dele.

se despediu do novo contratado como fotógrafo do jornal e esperou até que ele entrasse no elevador para voltar para a sua sala. Viu então a sala de com todas as persianas fechadas, algo definitivamente não estava certo. Ele nem mesmo se lembrava de ela tê-las fechado alguma vez antes. Bateu duas vezes na porta, anunciando sua entrada e então se deparou com chorando. Ela não moveu um músculo, nem mesmo tentou limpar as lágrimas.
- O que aconteceu, ? - perguntou com a voz suave, se sentando em frente a ela.
- Você sabia, não sabia? - ela fungou.
- Sabia o quê?
- Você não me escolheu para esse projeto porque você gosta do meu trabalho. – riu, amarga. - Esse projeto pelo menos existe? - não conseguiu mentir e o choro dela aumentou.
foi até ela e a abraçou como pôde. Ela retribuiu e ele não se importou com sua camisa sendo molhada.
- Eu sou uma péssima pessoa. - ela falou depois de um tempo, já mais calma.
- Claro que não, .
- Eu afastei todos, você percebeu a situação e não teve nem como conversar comigo. - enxugou o rosto com as mãos.
- Eu não sabia como… - confessou. - Foi difícil para eu aceitar que isso estava acontecendo com você. Eu só sabia que tinha que tentar te ajudar.
- Eu… eu não consigo trabalhar hoje, . Eu sinto muito. - ele notou uma mochila grande no chão.
- Você saiu de casa? - não achava que todas as coisas dela caberiam ali, mas sabia também que os pais dela não moravam em Boston. - Ele fez alguma coisa com você? - perguntou em alerta.
- Não. Ele nunca encostou o dedo em mim. - negou prontamente. - Eu não tive coragem de falar com ele. Esperei ele ir para o trabalho e vim para cá.
- E para onde pretende ir? - ela deu de ombros. - Eu tenho uma ideia. Vem comigo. - ele se levantou, pegando a mochila dela em uma mão.
- O que você está fazendo?
- Confia em mim. - pediu e naquele momento ela sabia que ele era a única pessoa em que ela confiava. Então o seguiu para fora do lugar.

Ele insistiu para que ela não fosse dirigindo, mas ela garantiu que estava bem o suficiente para segui-lo. Dirigiram por uns trinta minutos, se afastando cada vez mais do centro de Boston. Estacionaram perto da praia de Castle Island e ficou boquiaberta ao ver entrando na enorme casa.
- Essa casa é sua? - deu um sorriso de canto. - Meu Deus, ! - ele entregou as chaves na mão dela.
- O que você está fazendo?
- Fique aqui até as coisas se ajeitarem. - e percebendo que ela recusaria, emendou. - Eu não moro aqui.
- Como é que é? - ela não sabia se estava mais surpresa com as informações que estava recebendo ou com a decoração impecável do local.
- Eu prefiro morar no apartamento, mais centralizado. Venho para cá só em algumas ocasiões. - explicou.
- Você é maluco. - afirmou e sorriu. Só o fato de estar num lugar novo e longe de tudo já parecia deixá-la com o coração um pouco mais leve.
- Não é a primeira vez que me dizem isso. Agora chega de papo, venha para o seu quarto. - a puxou pela mão, mostrando rapidamente os cômodos. - Coloque uma roupa mais leve para irmos à praia. Vai te fazer bem.
- Você vai ficar aqui comigo? – questionou, se sentindo uma criança pequena e insegura.
- Se você quiser.
Os dois passaram grande parte da tarde na praia, conversando sobre tudo, desde as coisas engraçadas da época da faculdade até as reflexões mais recentes de sobre a sua vida. Ela havia chorado outras vezes, mas havia sorrido também, sempre com o corpo encostado no dele. E não conseguiria negar para si mesmo que ainda sentia algo por ela, mas não era o momento.

estava determinada a voltar ao trabalho no dia seguinte, agora mais do que antes ela via a importância de alcançar mais pessoas que pudessem estar numa realidade como ela. Os relatos a tocavam mais do que antes, acabou por pensar o quão pior poderia ter sido sua situação e se sentia extremamente grata pelo que havia feito por ela, mesmo que ainda doesse.
tinha insistido para que ela não ficasse com o celular, pois procuraria por ela. acabou aceitando, sem questionar muito. Seu celular não fazia tanta falta, praticamente a única coisa que fazia com ele era conversar com e essa era a última coisa que ela queria fazer. Mas ele pensava completamente diferente.
- Onde você estava? - bateu à porta da sala de com força, causando um estrondo e trancando-a em seguida. - Por onde andou? Por que não foi para casa? Com quem você estava? - elevou o tom de voz e ela deu dois passos para trás.
- Eu precisei resolver umas coisas. - desconversou.
- Não podia me avisar? Eu fiquei que nem um trouxa, preocupado com você! - ele estava transtornado e ela nunca o havia visto daquela forma.
- Desculpa!
- Desculpa uma ova! - pegou o vaso de flores em cima da mesa e acertou na parede, ao lado do rosto dela. respirou fundo, juntando toda a força que conseguia para fazer o que precisava ser feito.
- Realmente. Desculpa uma ova. - falou com a voz firme e aquilo pareceu irritá-lo ainda mais. - Eu não preciso te contar cada passo do meu dia, olha só o escândalo que você fez por nada.
- Por nada? Por nada? – repetiu, quase gritando. - Você deveria estar em casa quando eu chegasse.
- Não, . Eu não devia nada. Eu não vou mais viver por você, eu tinha uma vida e vou recuperá-la. Olha o que eu me tornei, você está feliz com isso? - apontou para si mesma. - Porque eu não estou.
- Vamos para a casa, . Tem gente demais nos olhando. - ele tentou agarrá-la pelo pulso, mas ela puxou antes que ele a alcançasse.
- Não, eu não vou a lugar nenhum.
- Você tem outro, não tem? – riu, incrédulo.
- Você pelo menos se escuta, ? – devolveu, com raiva. - Olha só o absurdo que você está me dizendo. Como ousa achar que eu estou te traindo! É por causa de comportamentos desse tipo que eu não estou aguentando te olhar agora.
- Me desculpe. - ele disse parecendo triste e foi pega de surpresa. Nunca tinha ouvido essas palavras da boca dele. - Me desculpe, eu estava errado. Agora volta para casa.
- Não adianta falar da boca para fora. Eu não vou voltar atrás, ! Eu poderia, mas eu não quero. Não quero viver uma vida de acordo com o que você achar melhor para mim, abrindo mão de tudo por você.
- Eu não colocaria dessa forma. - tentou se defender. - Seria tão bom se as coisas continuassem como são.
E por mais doloroso que fosse, sentia uma luz de esperança em seu coração.
- Não seriam, agora eu entendi que nosso relacionamento não é saudável, não tem como voltar para a escuridão uma vez que vi a luz. Nós nem sabemos mais quem somos…
então conseguiu abrir a porta e finalmente entrar. Estava angustiado de ver tudo pelo vidro, temia pela segurança dela.
- Você está bem? - ela concordou com a cabeça.
- Eu sabia! É com ele que você anda dormindo? - voltou a gritar. - Eu sempre disse que era uma péssima ideia você trabalhar. Isso explica muito. - foi com as duas mãos na garganta de . foi ágil e acertou um soco no rosto dele. Os seguranças apareceram logo em seguida e a pedido de escoltaram para fora do prédio.
- Voltem ao seu trabalho. - o chefe ordenou a todos e as pessoas se dispersaram. - Vai ficar tudo bem. - afirmou ao abraçá-la.
- Eu sei que vai. - retribuiu o abraço e limpou algumas lágrimas que desceram. - Obrigada!

Dez dias depois aconteceu o grande evento da empresa, compareceu, recebeu a homenagem e fez um discurso, como esperado. Ela estava linda, mas a opinião de era pouco confiável no assunto. Ela, apesar de altos e baixos, sentia que estava caminhando na direção certa para retomar a sua vida. A terapia era sua maior aliada.
Uma semana depois o projeto foi publicado e não poderia estar mais orgulhosa do seu trabalho, e mais importante, o que ele significava na vida dela. A reação dos leitores foi maravilhosa e o Boston Globe estava novamente na frente da concorrência.
E ? Esteve ao lado dela durante todo o processo de recuperação, esperando pacientemente até que ela estivesse em condições de entrar em um novo relacionamento para que ele, finalmente, a pedisse em namoro.





Fim.



Nota da autora: Se você leu até aqui, espero que tenha gostado! Eu gosto tanto dessa música, que escolhi feliz e nunca pensei que seria tão difícil escrever algo com a letra dela. Eu comecei três histórias diferentes e nenhuma fluiu, até que a Anna me sugeriu essa ideia! Obrigada de verdade! <3
Foi difícil escrever sobre esse assunto, porque é algo pesado para mim, mas ao mesmo tempo reconheço que é algo que deve ser divulgado.
A história é fictícia, mas foi baseada em relatos reais postados em um Instagram chamado “Mas ele nunca me bateu.” Repito, se for um gatilho, não leia, tem coisas pesadas!
Beijos e até mais!





Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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