Long Black Veil

Última atualização: 01/09/2020

Capítulo Único

A madrugada caía fria fora daquelas grossas paredes de pedra do apartamento que era a única ligação concreta de com a cidade natal, naqueles tempos. Todo o resto parecia irreal, porta afora, para além da madeira maciça que ornava o pórtico do espaçoso loft que tia Daisy deixara para ele em testamento um par de anos atrás.
A mulher de cachos largos enroscou-se mais contra seu corpo, buscando algum calor a mais, enquanto fitava pelas enormes janelas a madrugada que se entendia escura e frígida, ocultando a calidez do emaranhado de lençóis que os envolvia.
Não podiam enxergar mais do que a pálida luz que a lua minguante deixava cair sobre o centro da pequena cidade e a fraca e solitária luminária que repousava em frente ao prédio da prefeitura – numa vã tentativa de iluminá-la decentemente à noite. , deixando-se dominar pelo pensamento por apenas alguns segundos, riu internamente daquela tentativa de impor certa magnificência à construção; tudo ali parecia tão tolo desde que ele se mudara para Nova York.
Aquilo não tinha importância nenhuma agora, nem pra o riso. Ele, então, voltou-se para a beldade sentada ao seu lado, também admirando a escuridão que os ocultava, e depositou um beijo demorado em um de seus ombros expostos.
Queria morar na maciez daquele corpo, no gosto daqueles beijos, na paz daquelas conversas furtivas. A mulher passou os braços por seu corpo, parecendo que tentava fundi-los, tocando-o quase desesperadamente; quase. Se não pudesse ver seus olhos.
Os olhos dela diziam o contrário de seu corpo, quase arredios. Pior do que arredios – conformados. evitava aquela conformidade intrínseca ao olhar dela. Ele sabia que os olhos nunca mentiam.
Exceto quando estavam fazendo amor. Então, e só então, não restava um único traço daquela languidez de quem se entregara à vida em uma cidade pequena de um país grande. Os olhos nunca mentiam.
Puxou-a firmemente para si, querendo apenas fazer com que aquele olhar desaparecesse, querendo substituí-lo pelo olhar que sabia ser só seu. Deitou-a sem cuidado demais nos lençóis ainda tépidos e buscou por sua boca vorazmente. Ela só podia corresponder, naquele ritmo quase desesperado, queria-o mais perto, mais quente, mais fundo, queria sempre mais.
Quando estava mordiscando seu maxilar, extasiado com os pequenos e contidos gemidos de prazer que ela emitia, ouviu-se um estrondo – alto e claro, parecia próximo. Suspirando em decepção, o homem tentou – inutilmente, ele já sabia – averiguar o que havia causado tamanho barulho e uma pequena comoção, agitando sombras contra a silhueta do prédio mal iluminado da prefeitura.
Ela apenas tocou-o de leve com aquelas mãos que poderia jurar serem plumas contra sua pele, os olhos brilhando de desejo, convidando-o irresistivelmente a voltarem ao que estavam fazendo antes do estrondo.

‘-Vem’ – ela convidou, baixinho. Qualquer coisa que saía de sua boca soava como a mais doce melodia aos ouvidos calejados do homem – ‘Devem ser as crianças... E aquelas malditas bombinhas que o Robert trouxe para a mercearia’ – riu de leve, alcançando o ouvido do parceiro e sussurrando ao mesmo tempo que o sentia arrepiar-se inteiro.

Como era agridoce amar aquele riso – era tudo que conseguia pensar.
Ele acordara com os primeiros raios da manhã para lençóis vazios e gélidos que não guardavam qualquer resquício que remetesse à madrugada de plenitude. Espreguiçou-se e deixou-se dormir por mais algumas horas antes que viessem acordá-lo.
Um par de dias depois, rotineiramente, como se mais uma daquelas noites furtivamente esplêndidas não tivesse acontecido, abotoava o paletó e ajeitava cuidadosamente o cabelo, preparando-se para uma visita que devia há meses ao seu melhor amigo de infância. Estacionou o Ford conversível no extenso gramado frontal da propriedade, admirando a casa imponente que se erguia magistralmente entre os pinheiros verdejantes, como um sonho em tons pastéis – bem diferente de sua vida em preto e branco, observou enquanto subia os degraus brancos da varanda a fim de alcançar a aldrava na porta da frente.
foi de encontro ao amigo mais que depressa, vindo saudá-lo calorosamente. devolvera o abraço camarada; era sempre estranha a sensação de que nada havia mudado entre eles mesmo depois dos últimos anos em que tinham passado mais tempo separados do que juntos.

‘-, querida, venha ver quem finalmente resolveu nos visitar’ – chamou o marido, genuinamente empolgado com a visita do amigo ator, que não tinha mais tempo para as pequenezas daquela cidade – ‘Por que não me escreveu antes dizendo que estaria na cidade por esses dias? Eu teria encerrado a viagem mais cedo.’ – agora dirigia-se ao amigo, saudoso de sua companhia.
‘-Me perdoe, . A vida em Nova York é tão atribulada que só consegui escrever quando cheguei aqui.’ – deu de ombros, desculpando-se, enquanto encarava o amigo nos olhos. Nos de só havia sinceridade enquanto que nos dele próprio sentia haver omissões demais para qualquer tentativa de ser completamente sincero.

O anfitrião servia um bom whisky envelhecido em carvalho, direto dos barris da fazenda de seu próprio pai, quando despontou nas escadas ajustando o fino penhoar que trazia sobre as vestes.

‘-, seja bem vindo’ – a mulher cumprimentou-o cordialmente, baixando os olhos. ergueu o copo baixo de whisky em resposta, sorrindo de leve para ela.
‘-, é um prazer te rever.’ – replicou na mesma cordialidade, mas os olhos não negavam a rigidez que o tempo tinha imposto entre os dois.
‘-Vamos lá, querida, o é um amigo de muito tempo, não há necessidade de tratá-lo pelo sobrenome.’ – riu, invariavelmente feliz, querendo apenas disfrutar da companhia de duas das pessoas que mais amava na vida.
‘-A não ser que queira que te trate por Sra. .’ – ofereceu, o sorriso enviesado em provocação enquanto beijava-a na bochecha.
‘-Basta, , .’ – pediu, os olhos frios, acenando em negação para os homens à sua frente. Pareciam exatamente os mesmos rapazolas que tinha visto crescer.

admirou-a, fria e pálida, resignada. Ainda que eles três tivessem crescido juntos, brincando através dos bosques da pequena cidade, muita coisa mudara quando deixara a terra natal para tornar-se ator de cinema mudo em Nova York.
A relação de e ele, principalmente. fora sempre mais seu irmão do que os de sangue e constituía-se na única figura fraterna que possuía; tinham sido família, desde sempre. , entretanto, ressentia-se muito de sua partida e entristecia-se com isso. Houvera um tempo em que os três tinham sido uma verdadeira família, compartilhando laços de amor que os unira quase de maneira uniforme.
Até mudar-se e e casarem-se. Fora a quebra de todos os pactos de infância.
Era, também, o principal motivo da recusa de em visitá-los mais. , por sua vez, tentava apenas ignorar aquela aura estranha entre o melhor amigo e a esposa para poder continuar vivendo alegremente sua pacata vida do interior em tons pastéis.
, altiva, nem ao menos tentara incluir-se nas discussões masculinas que sempre muito lhe apeteceram. Pegou, portanto, um bastidor com um bordado inacabado e esgueirou-se para uma poltrona no canto, próxima à lareira. não conseguia não desviar o olhar para sua figura, de quando em vez, ainda que estivesse bastante entretido na conversa com – a quem cada vez que se aprofundavam mais na conversa ele recordava amar mais que a um irmão.
Ainda que aquele amor revolvesse os dois antigos amigos, esperava ansiosamente pelo fim daquela visita e pelo fim de mais uma estadia na cidade. Só alguns dias mais e poderia voltar para a insonsa calmaria que chamava de vida. Não havia nada para ele além daquilo; tudo que poderia ter havido ficara no passado junto à decisão de tia Daisy de fazê-lo ator.

‘-Meu amor, faça companhia a nosso visitante, sim?’ – pediu carinhosamente o marido, tocando de leve o braço da esposa – ‘Eu vou até a cabana buscar um pouco de whisky de verdade para ele levar; Nova York pode ter tudo, menos isso.’ – piscou um olho enquanto explicava-se, dando um beijo no topo da cabeça da esposa e seguindo para os fundos da casa em direção ao quintal de trás da extensa propriedade, onde abrigavam alguns barris de carvalho já curados, advindos da fazenda do sênior.
‘-’ – chamou, incerto. Aquele apelido antigo escapara furtivamente de seus lábios.
‘-, por que tornar isto mais difícil do que já é?’ – inquiriu ela, sisuda. Embora brava, lágrimas acumulavam-se nos cantos de seus olhos.
‘-O que isso significa?’
‘-Que eu quero paz, ao menos na minha casa.’
‘-Perdoe-me, eu deveria tê-lo chamado para um bar na cidade. Você sabe como é seu marido’ – alfinetou com um olhar enigmático – ‘Ele insistiu para que eu viesse vê-los.’
‘-Nos ver, no plural. Sempre no plural.’ – ela bufou, limpando os cantos dos olhos antes que escorressem.
‘-...’ – ele falou, quase num suspiro, chegando mais perto – ‘Eu queria que pudéssemos ter continuado todos amigos.’ – desabafou, acariciando o rosto de outrora uma amiga com delicadeza.
‘-Eu prefiro que continue com as conclusões dele sobre a nossa briga.’ – ela baixou os olhos, tirando a mão de de seu rosto. Apesar do gesto, seus movimentos eram delicados.
‘-, sobre aquele dia...’
‘-Têm coisas que não podem ser ditas dentro destas paredes, .’ – relembrou-o com mais pesar do que, de fato, demonstrava. Treinara bem sua pose durante todos esses anos enquanto aceitava, conformada, o que a vida havia preparado para ela.

voltara para um clima estranho entre os outros dois ocupantes da sala de estar, como sempre nos últimos anos. Ele nunca entendera bem o que se passara entre as duas pessoas que um dia foram tão amigas quanto ele e o próprio , mas presenciara uma briga, certa vez, que usara como pretexto para aquilo, embora sempre tentasse convencê-los a relaxarem perto um do outro, carregando a vã esperança de que algum dia tudo seria como quando tinham quinze anos.
agradecera pelo whisky e pela recepção, recebendo alguns abraços emocionados do amigo até conseguir trespassar o pórtico para, finalmente, deixa-los. enfim respirou aliviada, sabendo que aquela tortura que acontecia em espaços largos de tempo estava acabada, por hora. Ela se manteve firme ao lado do marido, segurando gentilmente seu braço, enquanto ele acenava em adeus para seu amigo mais caro.
Deitou a cabeça na curva do pescoço de , suspirando. A vida deles era tão tranquila sem por ali. Ela podia, então, ser apenas uma dona de casa preocupada com as viagens do marido, com as refeições, com as fitas de seus vestidos.
Por muito tempo sonhara com esta vida simples e corriqueira.
passara os últimos dias no apartamento do centro da cidade refletindo sobre uma porção de coisas, inclusive sua ida precoce para uma cidade grande e a súbita carreira de ator. Já visitara quem tinha de visitar, colaborara com o pequeno comércio local e refizera seu estoque de coisas que só eram ofertadas ali, agora restava-lhe aproveitar a vista das enormes janelas que se dividiam entre o centro da cidadezinha e as colinas beijadas pelo sol. Era irrefutavelmente lindo, até ele podia admitir.
O sol estava caindo atrás das colinas, inclusive, quando ouviu batidas nervosas na porta. Um copo com líquido avermelhado em uma das mãos, foi direto de seu bar em direção aos barulhos. Ela mal deixou-o abrir e jogou-se para dentro, cerrando a madeira pesada atrás de si.
olhou para a janela clara, sem entender nada.

‘-O que você está fazendo aqui?’ – inquiriu surpreso para a moça de cachos largos, naquele momento cobertos por um véu escuro.
‘-Você precisa ir embora, ’ – disse baixo, alarmada, livrando-se do véu que usara para chegar até ali – ‘Hoje, agora, se possível.’
‘-Calma’ – pediu, confuso, sentando-a no estofado da sala de estar e pegando uma bebida para ela também – ‘Por que eu preciso ir? O que ele descobriu?’
Ela balançou os cachos em negação – ‘Aquele disparo que ouvimos...’ – começou, trêmula – ‘Disseram que foi você. Eu ouvi os burburinhos quando visitei meu irmão, Robert, na mercearia hoje mais cedo.’ – ela tinha lágrimas nos olhos, mas ainda estava confuso em demasia.
‘-Meu amor’ – disse, esperando tranquilizá-la de alguma maneira – ‘Nós sabemos que não fui eu, não há com que se preocupar.’
‘-Nós dois! Apenas nós dois.’ – soltou em um fio de voz – ‘Há testemunhas, . Todas as testemunhas alegaram ter visto alguém com suas características.’
‘-E o que tem de mais nisso? Se o prefeito quiser me chamar, eu converso com ele e resolvo essa situação.’ – deu de ombros, puxando-a para mais perto de si, no sofá que compartilhavam.
‘-É um assassinato, ’ – as lágrimas finalmente escorreram – ‘O padre está morto.’

retesou-se, a feição ainda mais surpresa.

‘-O padre, você disse?’ – inquiriu, envolvendo-a mais em seus braços e limpando cuidadosamente as lágrimas da amada.
‘-O padre Redwood. Você e ele nunca se deram bem, além de tudo.’ – ela murmurou tão baixo que ele não teria escutado se não estivessem tão entrelaçados um no outro.
‘-Fique calma’ – pediu, tentando colocar a cabeça no lugar – ‘Amanhã é um novo dia e vou esclarecer tudo.’ – ele, afinal, era um ator de cinema de certo renome, conhecido na cidade. Racionalmente não havia com o que se preocupar.
‘-Eu não tenho um bom pressentimento sobre isso, ’ – ela desabafou, encarando-o com olhos brilhantes.

O homem correu as mãos pelos cachos largos dos cabelos longos com carinho, tentando tranquilizá-la.

‘-Você pode parar de me chamar de , quem sabe melhore’ – provocou de leve, subindo os carinhos para o rosto da mulher aflita à sua frente.
Ela sorriu minimamente, desacreditada – ‘Do que você quer que eu te chame?’ – inquiriu baixinho.
‘-De qualquer coisa que não me traga de volta para a realidade’ – ele sorriu de lado – o sorriso de galã que fora feito para o cinema, pelo qual ela se derretera desde sempre.
‘-Meu amor’ – ela disse, soando tão verdadeira quanto poderia, enquanto afundava em seus braços – ‘me prometa que vai tomar cuidado.’
‘-Qualquer coisa que você me peça’ – prometeu, beijando a mão da moça que segurava – ‘Amanhã tudo isso estará resolvido. Já está escurecendo, por que você não fica?’ – propôs, manhoso, sem soltar a mão delicada e pálida.
‘-Não posso. Preciso voltar para casa.’ – respondeu apática, o olhar novamente inundado por aquela resignação e aquele conformismo já conhecidos – ‘E prometi que levaria algumas coisas da mercearia para meu pai antes de anoitecer.’ – justificou-se, apontando as sacolas esquecidas perto da entrada.

, então, tratou de puxá-la para si e beijou demoradamente seu pescoço, tentando sorver a essência daquele amor.
Ele não sabia como, mas tinha sido levado, concomitantemente aos primeiros raios de sol, junto ao juiz da cidadezinha; mal tivera tempo de vestir o paletó e a gravata. Passara boa parte do dia aguardando o julgamento, que seria público – uma vantagem para ele, pensara, que também era uma pessoa pública. Tudo estaria a seu favor e dentro de alguns dias estaria indo em direção a Nova York para muito possivelmente nunca mais voltar. Aquele lugar só lhe trazia problemas.
O juiz, diferentemente de quase toda a cidade, não era um velho conhecido seu. Tinha sido transferido recentemente da cidade vizinha, um homem de meia idade que parecia reconhecer-lhe apenas das matinês de cinema.
Enquanto a acusação era tecida, quase não podia acreditar. Era muito irreal, mas as coincidências eram inegáveis: ele morava próximo da prefeitura, cultivara desavenças com o padre local desde a infância e as testemunhas descreviam alguém tenebrosamente parecido com ele.
Tudo passava pela cabeça de naquele momento, inclusive a possibilidade de uma armação, mas ele conhecia algumas das testemunhas – que não se conheciam entre si e não teriam justificativas para isso. O fato era um só: o assassino que fugira na calada da noite parecia-se muito com ele. Ele respirou fundo com a tranquilidade dos inocentes, ainda não chegara sua vez de falar.

‘-Filho, qual é seu álibi?’ – inquiriu o juiz, cansado desse julgamento que sabia em seu âmago ser de uma pessoa inocente – ‘Se você estava em outro lugar, não precisa morrer.’

A pena para um assassinato a sangue frio daqueles era a morte – a verdade inegável caíra como uma pedra em seu estômago. abriu a boca, mas fechou-a instantaneamente, tentando digerir o onirismo da situação que, de repente, encontrava-se. Em momento algum sua cabeça fora tão longe a ponto de chegar à pena de morte.
Em um instante estava inebriado pela mulher de sua vida em seus braços, quando ouviram juntos o disparo, e duas madrugadas depois já tinha sido acusado de assassinato e estava prestes a ser julgado perante toda a cidade. Acusado de um assassinato que ele não cometera, o juiz podia ver em seus olhos. Os olhos nunca mentem.
A cidade toda se apinhara na sala de audiências, diminuindo ainda mais a paciência do bondoso juiz Deacon. Era para ser um caso rápido; nada era, no ponto de vista dele, conclusivo naquele caso. Só dependia das palavras do jovem sentado no banco de madeira a alguns metros dele e tudo estaria acabado logo. Quem sabe, pensou o juiz, ainda teria tempo de levar a esposa à uma matinê em que estariam exibindo um dos filmes do jovem galã e ririam disso.
e encaminharam-se para lá, também, logo que ouviram as notícias. No meio do alvoroço, conversava energicamente sobre o absurdo que era aquilo com conhecidos enquanto a esposa permanecia calada e distante, sentada muito reta enquanto encarava o nada, os olhos vidrados.
focalizou os dois amigos de infância no meio da multidão antes que pudesse responder à pergunta do juiz, reconhecendo nos dois as duas pessoas que mais amava e as únicas pessoas que realmente importavam que sobraram em sua vida. Seus olhos se chocaram aos de ; ela não chorava, encarava-o com os olhos fixos e a boca firmemente crispada para que não tremulasse.

‘-?’ – inquiriu o juiz, tirando-o do transe – ‘Você tem um álibi, meu rapaz?’ – reforçou, piedoso.

Ainda com o olhar preso em , só pôde baixar os olhos, sem dizer uma única palavra que refutasse sua sentença. Ele estivera nos braços da esposa de seu melhor amigo.
O juiz suspirou, derrotado, ansiando para que dissesse qualquer coisa, qualquer coisa, que pudesse inocentá-lo. O choque na sala de audiências foi tanto que levou alguns minutos para que o juiz pudesse proferir qualquer sentença. Estavam todos absortos pela decisão que pairava no ar. abriu a boca para emitir um sonoro ‘não’ quando as palavras e o ar lhe faltaram, entendendo que poupara o melhor amigo, seu atencioso e amoroso marido, daquela dor tão grande da dupla traição. Resignou-se, mais uma vez na vida, a apenas conter-se e fechar os olhos – sem poder nem ao menos derramar uma única lágrima delatora.
Misturada à noite escura pelo longo véu negro, subia lentamente as colinas que a acolhiam em sua solitária excursão sob a escuridão. O vento norte soprava forte e gelado enquanto ela seguia sua sina colina acima até alcançar, em um canto esquecido daquele cemitério, a lápide solitária de uma esquecida promessa do cinema.
Eles pertenciam às madrugadas, ela habituara-se a isso desde a tenra idade – quando então era apenas uma jovem esposa que amava o amigo de infância que deveria tê-la escolhido, não à carreira. Amara-o todos os dias, mesmo que furtivamente. Era o fardo mais pesado de carregar, principalmente no que concernia ao marido maravilhoso que a vida lhe dera. preferira pagar com a própria vida para que o casamento deles permanecesse imaculado, preferira ir de bom grado para os braços da morte do que admitir a traição a seu mais caro amigo.
Ninguém sabia, ninguém via. Envolta por aquela reconfortante escuridão, que ao mesmo tempo ocultava algumas coisas enquanto esclarecia tantas outras, há dez anos subia solitária e sorrateiramente para poder chorar em paz sobre os ossos de seu amado, que fora sem nunca realmente ter sido.
a vira subir incontáveis vezes aquelas colinas, que tinham sido sua última vista decente da cidade antes de partir, ao longo daqueles dez anos. Discrição, sempre tinha sido boa nessa arte; desde que começaram aquela relação tinham acordado furtiva e silenciosamente em nunca machucarem , que lhes era a ambos muito caro. Nada naquele romance fora planejado; quebrara, sem se dar conta completamente, o coração da amada quando partira em busca do sonho de sua tia, que tinha sido cantora de ópera em seus dias. Ele não vira, na época, outras opções para sua vida. Precisava de um emprego e não via mais nada naquela cidadezinha para ele, quando aceitou a nada usual proposta de um velho amigo de Daisy.
Sabia que sonhava com estabilidade, com um bom casamento e uma vida pacata na cidade em que nasceram e cresceram – ele, como ator naquela atribulada vida de Nova York, não poderia oferecer-lhe nada daquilo. não queria poupar-lhe nada do que ela tinha sonhado, amava-a tanto que queria apenas que fosse feliz, ainda que casada com seu melhor amigo.
Aquela felicidade, infelizmente, durara pouco quando ambos perceberam que não poderiam viver um sem o outro, mesmo que relegados apenas à encontros furtivos e espaçados. nunca agradecera tanto pelas viagens de negócios do marido, eles sempre foram muito cuidadosos e evitavam – cada vez mais, com o passar do tempo – os encontros em trio. A esposa tinha pavor do que o marido poderia ver nos olhos de ambos. Os olhos nunca mentiam.
O único deslize deles havia sido aquela aparente briga acalorada que surpreendera já em seu desfecho. ficara gelada até a alma, mas agradecera pela interpretação do marido, que usara como pretexto para não precisar encontrar tantas vezes e justificar seu comportamento frio perto dele. Nem ela nem o amante poderiam descrever a tortura que era estarem no mesmo ambiente sem estarem nos braços um do outro.
Levando o segredo para o túmulo e condenado a vagar velando à distância a aflição da amada, ficariam eternamente relegados às madrugadas, mesmo dez anos depois. Ninguém saberia, ninguém veria – além dele.

Nobody knows, nobody sees. Nobody knows, but me.


Fim.



Nota da autora: Esta shortzinha é baseada na música Long black veil, que ficou famosa na voz do Johnny Cash (minha versão favorita - inclusive recomendo ouvirem, é muito boa). Ela se passa nos anos 20, bem curtinha e cheia de drama hehe espero que tenham gostado! Se sim, me contem (:
Ps.: se alguém também for fã de country/southern rock me chama, vamos trocar playlists hehehe
Beijo, L.

Outras Fanfics:
Forgetful

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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