Mal-entendido

Finalizada em: 12/01/2023

Capítulo Único

Eu olhei o canil, havia passado pela área dos gatos aquela manhã, eu me sentia desconfortável, como se não fosse certo estar ali após perder minha esposa e o nosso cachorro. Eu não suportava voltar para casa após o longo dia de trabalho e encontrá-la vazia, eu sentia falta deles o tempo todo, a casa havia se tornado apenas uma estrutura, o significado de lar havia se perdido, Liana e nosso cachorro Duque era o que dava aquela casa o sentimento de lar. Respirei fundo, era insuportável acordar a cada manhã e não encontrá-los, seguir em frente era doloroso, o luto não era uma tarefa fácil. Me abaixei diante um shitzu, aquele cachorro em específico lembrava minha esposa, sorri sem exibir os dentes tocando sua pelagem. Me coloquei de pé assim que ouvi passos se aproximando, não era comum homens cobertos de tatuagens estarem diante de cachorros tão fofos. Fingi estar analisando um bulldog alemão, eu queria adotar o shitzu, mas naquele instante em que passei a olhar com atenção ao bulldog eu senti que não poderia deixá-lo ali. O abrigo Montek estava doando os animais enquanto fazia arrecadação de mantimentos para os pets que estavam sendo reabilitados e os recém recolhidos, era uma instituição séria que resgatava os animais em estado de risco e nas ruas, cuidavam deles até que estivessem bem para serem adotados.

— Imaginei que te encontraria aqui, . Ana disse que você já havia passado pelos gatos, então tentei deduzir qual corredor cairia melhor com a sua personalidade. — Erick me saudou com sua expressão bem-humorada, a filha de Erick, Ana, era igualmente apaixonada por animais como ele, mas carregava o mau humor de sua mãe, atualmente ela ajudava na direção do abrigo.
— Sua filha não herdou nem um pingo de sua personalidade, meu amigo. — Ri enquanto me agachava para ficar na altura do cachorro.
— Eu sei, além da paixão pelos animais ela é minha esposa todinha, eu só servi para fornecer o material genético necessário para que ela fosse formada porque todas as características, Ana herdou da mãe. — Erick riu enquanto se abaixava também brincando com os dois cachorros no canil ao lado. — Como você está, ?
— Tentando lidar com tudo, mas estou melhor do que a última vez que me fez essa pergunta. — O respondi sinceramente, a pelagem do bulldog não era tão macia como a do shitzu, mas ele tinha seu próprio charme.
— Se precisar de algo…— O interrompi.
— É só te ligar, eu sei, você me ligou quinze vezes na última semana. — Ri enquanto me levantava após bater as mãos em minha calça espanando os pelos após ficar de joelhos no chão. — Eu vou levar o bulldog. — Apontei para o canil à minha frente.
— Ele é um bom garoto, vamos providenciar seu mais novo amiguinho. — Erick sorriu enquanto conversava com o cachorro, ele tinha jeito com qualquer animal que aparecesse a sua frente, meu melhor amigo nascerá para cuidar deles.

Balancei a cabeça rindo da conversa que Erick tinha com o cachorro, me sentia agradecido por ter um amigo como ele. Caminhamos juntos pelos corredores, Erick não parecia que iniciaria uma conversa já que sua atenção estava completamente voltada para o cachorro em seus braços, estava bem em ficar em silêncio, muitos me perguntavam se eu estava bem, tentavam manter diálogos, mas eu preferia o silêncio, era desgastante ficar dizendo como me sentia, eu entendia que meus funcionários estavam preocupados, mas tudo o que precisava era de algum espaço. Talvez fosse exatamente por isso que havia aceitado o convite de Erick para ir ao abrigo, meu amigo era sociável, mas sempre me dava todo o espaço que precisava.
Enquanto divagava em meus pensamentos, chegamos na recepção do abrigo, Erick seguiu para sua sala com o cachorro, para uma última consulta. Me sentei numa das cadeiras da recepção, eu podia ouvir as vozes distantes de crianças animadas, pais orientando seus filhos a não se afastarem demais deles, desconhecidos interagindo…a campanha estava dando certo, fechei os olhos, apoiando minha cabeça contra a parede, as horas de sono não foram suficientes, sentia o cansaço acumulado.

— Com licença, a sua esposa pediu para que você ficasse com ele enquanto ela cuidava da papelada.

Abri os olhos, surpreso, uma jovem mulher me encarava, um pouco ansiosa, segurando o shitzu que queria levar. Ela desviou os olhos para as tatuagens aparentes, havia um interesse sobre os desenhos e não o receio costumeiro ou aquele ar de flerte, ela parecia estar cumprindo seu trabalho como funcionária do abrigo.

— Eu acho que você cometeu um engano. — A respondi calmamente.
. — Erick saudou sua funcionária surgindo de repente. — Você decidiu levar dois cachorros? — Erick me questionou, curioso.
— Não é isso, Sr. Erick, a esposa desse senhor me pediu para entregar o cachorro a ele para que ela pudesse preencher os documentos de adoção. — respondeu meu amigo apressadamente, era nítido seu desconforto por estar em foco.
— Isso é impossível, . — Erick a respondeu sério.
— Eu juro que é verdade, ela apareceu me pedindo ajuda, ela está bem ali…— Sua voz esmoreceu após olhar sobre seus ombros, ela parecia sincera sobre o que estava dizendo.
, a esposa de faleceu esse ano. — Erick a respondeu sério, mas de uma maneira menos rude, ele parecia ver que sua funcionária estava sendo sincera.
— Eu juro…— Ela se sentou começando a tremer, sua voz estava embargando.
— Está tudo bem. — Agachei ficando na altura dela, segurei ambas as mãos dela. — Respire, está tudo bem, Liana não deve ter gostado por eu ter deixado esse carinha para trás, que era o que havia escolhido antes do bulldog. — Pisquei para ela, sorrindo calmamente.
— Você ia levar o shitzu? — Erick questionou, confuso.
— Esse carinha estranhamente me lembrou de Liana, acho que ela não gostou que eu o deixei para trás por causa de aparências. — Segurei o cachorro após sorrir para , tentando acalmá-la.
— Okay... Deixe-me fazer a última checagem, você pode providenciar os papéis e guias para que os leve para casa? — Erick pediu a sua funcionária antes de voltar para o seu consultório agora com o shitzu em seus braços.

balançou a cabeça em concordância se levantando rapidamente, mudei o bulldog para o outro braço antes de segurá-la. Por levantar muito rápido, se desequilibrou, seus olhos me observaram enquanto suas bochechas ficaram rosadas, a ajudei a se firmar.

— Obrigada e me desculpe. — Ela colocou o cabelo atrás da orelha olhando para o chão, suas bochechas ainda estava rosadas.
— Está tudo bem, . — Me aproximei dela dando uma batidinha em seu ombro sorrindo. — Agora me mostre o que eu preciso preencher para levar meus cachorros para casa. — Pisquei para ela, vendo-a rir timidamente e então seguir até o balcão da recepção se abaixando para pegar algo.

Ela me entregou duas guias assim que se levantou, pedindo desculpas, até que Erick retornasse, passei os minutos tentando tranquilizá-la puxando conversa sobre amenidades enquanto preenchia os papéis. Era estranho tudo o que havia ocorrido até ali, Liana havia me deixado no início do ano, estávamos na última semana de julho, sua morte completaria oito meses no dia 3 de agosto… não era um homem religioso, ou que acreditasse em superstições, mas de alguma forma minha mulher havia se tornado meu anjo, e mesmo que não estivesse viva estava cuidando de mim.

— Você tem interesse por tatuagens? — Questionei após flagrá-la olhando outra vez minhas tatuagens.
— Sim, eu sempre gostei, mas nunca tive coragem de fazer uma. — Ela virou a face envergonhada.
— Esse idiota tem pelo menos uns quatro estúdios de tatuagens. — Erick surgiu de repente, assustando-nos com sua presença.
— Erick. — Me virei para ele pronto para repreendê-lo, mas Ana se aproximou com uma face nem um um pouco amigável.
— Pai.
— Boa sorte. — Ri enquanto pegava o cachorro dos braços de Erick, antes dele seguir sua filha.

Erick soltou um palavrão num tom baixo, apenas para que eu pudesse o ouvir antes de se afastar. Ri ainda mais olhando para as íris do shitzu, aquele vazio deixado pela minha esposa doía um pouco menos, eu não sabia o que Liana queria me dizer, mas de alguma forma desconfiava que tivesse relacionado com . Olhei suavemente para a mulher a minha frente, eu não poderia dizer que estava bem, curado, levaria algum tempo até que eu pudesse amar outra pessoa, mas por alguma estranha razão eu sentia interesse por . Não era algo romântico, eu ainda amava somente Liana, mas desde que ela morreu não permiti ninguém se aproximar de mim, mas com e seu jeito tímido, eu me sentia tentado a me aproximar, fosse apenas uma amizade que eu cultivaria com ela, ou se o propósito dela se aproximar fosse criar algo além…Eu talvez me arriscaria.
— Me ligue se quiser uma tatuagem, eu posso te dar mais detalhes e tirar suas dúvidas, é um agradecimento por me trazer esse carinha aqui. — Pisquei para ela antes de colocar a guia no shitzu, o coloquei no chão ao lado do bulldog deixando as guias em uma mão enquanto com a outra segurava os papéis. — Não ligue muito para Erick, meu melhor amigo às vezes esquece dos limites socias, talvez seja por passar tempo demais socializando apenas com gatos e cachorros.
— Talvez, obrigada pela oferta, senhor . — Ela manteve o tom polido, suas bochechas voltaram ao tom natural de sua pele.
— Me chame de , me sinto um idoso com a palavra senhor. — Brinquei, notando sorrir em diversão.
— É apenas por questão de respeito. — Ela riu ao ver minha expressão de "ofendido".
— Nos vemos por aí, , obrigado. — Sorri uma última vez antes de seguir para fora do abrigo.

Entrei no carro, sentindo-me em paz pela primeira vez após a morte de Liana, minha esposa era realmente algo além do que podia compreender.

— Obrigado, Lia, sinto a sua falta, e permaneço te amando. — Olhei para os cachorros que ainda não havia encontrado um bom nome, ajustei o cinto de segurança antes de ligar o carro para enfim partir.

Parti com a sensação de novas oportunidades e recomeços…
Eu ainda amaria minha esposa até o último dia de vida, mas quem sabe um dia, poderia aprender a amar de volta?





Fim.



Nota da autora: A história trata sobre recomeços, muitas vezes as pessoas que perdem seus cônjuges são julgados ao encontrar uma nova pessoa para amar. O mundo tem sido muito cruel com eles, através dessa fic tentei trazer, mesmo que superficialmente um pouco sobre como essas pessoas se sentem ao encarar um possível novo amor.
Eu realmente espero que gostem da fic, foi um desafio limitado a 5 páginas, mas espero que apreciem ❤️



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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