Parte I: Tristes Trópicos
Prólogo
Prólogo
A ignorância é, de fato, uma benção. E ser formado em uma área de ciência pura é a pior das maldições. Os cinco anos dos cursos servem para que você conheça o mundo, de forma aprofundada, em todos os seus piores detalhes e que tal visão nunca mais saia de sua mente, como óculos que te obrigam a encarar todos os pormenores da realidade. E a realidade é uma desgraça - na maioria das vezes, pelo menos. , como cientista social, estava ciente que o amor é uma construção social, muito mais do que é uma reação química. Sim, há liberação de hormônios e isso altera nossa percepção sobre as coisas, mas o amor também é construído e cultivado socialmente. O amor não é uma necessidade fisiológica como se hidratar ou dormir, mas um luxo social que nos é oferecido e o qual não conseguimos recusar. Mas Natalie tentaria.
Estúdios de balé são uma instituição tão prolífica para o desenvolvimento de relações sáficas como as escolas católicas só para meninas. É claro que este não foi o objetivo quando sua mãe lhe insistiu que começasse a ter aulas de dança e Natalie levou um tempo até perceber que sua timidez no vestiário não era puramente timidez. Também lhe exigiu muita dedicação para tentar se convencer que beijar outra garota não significava nada, já que boca era boca e, portanto, não haveria diferença. Era isso que ela dizia para si mesma toda vez que entrava no metrô após sua “prática” com Isadora, 30 minutos depois do fim da aula. Era nisso que ela tentava acreditar após comprar o seu próprio hidratante labial sabor cereja - o sabor de seu treino com Dora. Foram meses disso, até uma pesquisa no Google e fotos discretas no Instagram, que levaram Natalie a compreender que para ela, sim, boca era boca e gênero não faria diferença. Nisso, quase seis anos se passaram e as duas cresceram juntas. Quando Dora foi promovida para um cargo na Rússia, Natalie soube que seus caminhos se separariam ali.
Ela tentaria pensar no amor como construção social e, mais especificamente, no seu amor como uma variação da propaganda hollywoodiana do que é amar. E focar em sua dissertação, pois isso possibilitaria ela chegar onde sempre quis. Ela seria a maior referência em Antropologia e construiria uma carreira na academia que supriria todos os seus desejos; ela seria alguém que não precisa ser apresentada. Isso, é claro, se ela conseguisse emprestar o único exemplar de Tristes Trópicos disponível na biblioteca. Após algum tipo de acidente envolvendo garrafas de água de dois litros, todos os exemplares do livro de Lévi-Strauss disponíveis na biblioteca foram perdidos - exceto por um: o que estava sob guarda de Natalie. É claro que, passados os dez dias de empréstimo, já havia uma longa lista de usuários esperando para pegar o único exemplar sobrevivente. Sendo uma universidade pública, levaria tempo até que a reitoria pensasse em substituir obras perdidas de Ciências Sociais, portanto, Natalie estava sendo obrigada a dividir o livro com outros vários alunos anônimos. Infelizmente, agora, ela sabia bem quem estava com o livro: Lisboa, seu colega de laboratório e o mais próximo de obstáculo que uma pessoa pode ser.
Talvez soe infantil para uma mulher adulta eleger um rival, mas se aproximava disso. A entrada de ambos no grupo de pesquisa foi algo inédito na história do laboratório: além do nível de exigência dos professores responsáveis, todos os pesquisadores deveriam estar, no mínimo, no mestrado. Até que Natalie resolveu ser ousada e aplicar para uma vaga inexistente - mas ela não foi a única. Naquele ano, dois alunos da graduação ousaram tentar entrar no grupo que lhes garantiria uma carreira acadêmica brilhante e talvez tenha sido essa ousadia que lhes garantiu um espaço no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura. , assim como ela, entrou no laboratório ainda como aluno de iniciação científica e, desde então, eles competiam silenciosamente por oportunidades oferecidas pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das maiores antropólogas da atualidade e orientadora de Natalie e . A sala do laboratório era ricamente mobiliada - anos de financiamento das pesquisas de Cecilia - e um bom espaço de estudos que, infelizmente, era compartilhado, na maioria das vezes, por Natalie e .
- Quando você vai devolver o livro? - Pergunta Natalie, espalmando a mão sobre o caderno de . - Eu preciso dele.
O rapaz olhou para ela com um sorriso. Os cabelos castanhos estavam grandes, quase no ombro, ondas macias sobre a testa dele. Sua expressão era despreocupada - ele adorava agir dessa maneira quando via Natalia estressada. Ele se levantou, ligeiramente mais alto que ela e aproximou-se do seu rosto.
- Quando eu terminar de usar, - começou ele, sussurrando - a biblioteca entrará em contato com a próxima pessoa na lista de espera. E assim por diante, até chegar em você, linda. Relaxa.
Natalie pousa a mão sobre o peito dele, tamborilando com os dedos levemente antes de afastar-se o empurrando. Ela evita pensar em como ele, apesar de tudo, é atraente.
- Por que você não usa um PDF? - Pergunta, de costas para ele.
- Eu posso te perguntar o mesmo. - Replica ele, se divertindo com a impaciência dela.
- Você pode se divertir o quanto quiser - começou ela, falando sério como se sua vida dependesse disso -, mas sou eu quem vai fazer o estágio em Oxford.
- Sim, é claro que vai - respondeu ele, ainda com o sorriso no rosto. O que ela não sabia é que ele foi sincero.
Estúdios de balé são uma instituição tão prolífica para o desenvolvimento de relações sáficas como as escolas católicas só para meninas. É claro que este não foi o objetivo quando sua mãe lhe insistiu que começasse a ter aulas de dança e Natalie levou um tempo até perceber que sua timidez no vestiário não era puramente timidez. Também lhe exigiu muita dedicação para tentar se convencer que beijar outra garota não significava nada, já que boca era boca e, portanto, não haveria diferença. Era isso que ela dizia para si mesma toda vez que entrava no metrô após sua “prática” com Isadora, 30 minutos depois do fim da aula. Era nisso que ela tentava acreditar após comprar o seu próprio hidratante labial sabor cereja - o sabor de seu treino com Dora. Foram meses disso, até uma pesquisa no Google e fotos discretas no Instagram, que levaram Natalie a compreender que para ela, sim, boca era boca e gênero não faria diferença. Nisso, quase seis anos se passaram e as duas cresceram juntas. Quando Dora foi promovida para um cargo na Rússia, Natalie soube que seus caminhos se separariam ali.
Ela tentaria pensar no amor como construção social e, mais especificamente, no seu amor como uma variação da propaganda hollywoodiana do que é amar. E focar em sua dissertação, pois isso possibilitaria ela chegar onde sempre quis. Ela seria a maior referência em Antropologia e construiria uma carreira na academia que supriria todos os seus desejos; ela seria alguém que não precisa ser apresentada. Isso, é claro, se ela conseguisse emprestar o único exemplar de Tristes Trópicos disponível na biblioteca. Após algum tipo de acidente envolvendo garrafas de água de dois litros, todos os exemplares do livro de Lévi-Strauss disponíveis na biblioteca foram perdidos - exceto por um: o que estava sob guarda de Natalie. É claro que, passados os dez dias de empréstimo, já havia uma longa lista de usuários esperando para pegar o único exemplar sobrevivente. Sendo uma universidade pública, levaria tempo até que a reitoria pensasse em substituir obras perdidas de Ciências Sociais, portanto, Natalie estava sendo obrigada a dividir o livro com outros vários alunos anônimos. Infelizmente, agora, ela sabia bem quem estava com o livro: Lisboa, seu colega de laboratório e o mais próximo de obstáculo que uma pessoa pode ser.
Talvez soe infantil para uma mulher adulta eleger um rival, mas se aproximava disso. A entrada de ambos no grupo de pesquisa foi algo inédito na história do laboratório: além do nível de exigência dos professores responsáveis, todos os pesquisadores deveriam estar, no mínimo, no mestrado. Até que Natalie resolveu ser ousada e aplicar para uma vaga inexistente - mas ela não foi a única. Naquele ano, dois alunos da graduação ousaram tentar entrar no grupo que lhes garantiria uma carreira acadêmica brilhante e talvez tenha sido essa ousadia que lhes garantiu um espaço no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura. , assim como ela, entrou no laboratório ainda como aluno de iniciação científica e, desde então, eles competiam silenciosamente por oportunidades oferecidas pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das maiores antropólogas da atualidade e orientadora de Natalie e . A sala do laboratório era ricamente mobiliada - anos de financiamento das pesquisas de Cecilia - e um bom espaço de estudos que, infelizmente, era compartilhado, na maioria das vezes, por Natalie e .
- Quando você vai devolver o livro? - Pergunta Natalie, espalmando a mão sobre o caderno de . - Eu preciso dele.
O rapaz olhou para ela com um sorriso. Os cabelos castanhos estavam grandes, quase no ombro, ondas macias sobre a testa dele. Sua expressão era despreocupada - ele adorava agir dessa maneira quando via Natalia estressada. Ele se levantou, ligeiramente mais alto que ela e aproximou-se do seu rosto.
- Quando eu terminar de usar, - começou ele, sussurrando - a biblioteca entrará em contato com a próxima pessoa na lista de espera. E assim por diante, até chegar em você, linda. Relaxa.
Natalie pousa a mão sobre o peito dele, tamborilando com os dedos levemente antes de afastar-se o empurrando. Ela evita pensar em como ele, apesar de tudo, é atraente.
- Por que você não usa um PDF? - Pergunta, de costas para ele.
- Eu posso te perguntar o mesmo. - Replica ele, se divertindo com a impaciência dela.
- Você pode se divertir o quanto quiser - começou ela, falando sério como se sua vida dependesse disso -, mas sou eu quem vai fazer o estágio em Oxford.
- Sim, é claro que vai - respondeu ele, ainda com o sorriso no rosto. O que ela não sabia é que ele foi sincero.
1. Formas elementares da vida universitária
Resumo: O presente capítulo tem por objetivo compreender a vida cotidiana de uma jovem adulta de 24 anos, seus círculos sociais (decadentes), sua vida amorosa (inexistente) e suas percepções sobre o mundo (pessimistas). Através de uma pesquisa de observação participante, pôde-se concluir que, apesar de estar convicta de que está enlouquecendo, ela é apenas uma mulher de vinte e poucos anos.
Palavras-chave: Término; Fracasso; Vida adulta;
Desde o término com Isadora, a vida dela estava uma bagunça. O apartamento que dividiam foi devolvido para o proprietário e isso fez com que fosse ser hóspede no sofá de Otávio, um colega do ensino médio. Ele já morava sozinho na Bela Vista, trabalhava em um escritório de advocacia cuja clientela era a elite paulistana e era o tipo de homem que mulheres de quarenta anos incentivam mulheres de vinte anos a “investir”. Depois de quinze dias, ela perguntou se não poderia pagar metade do aluguel ou algo do gênero - e esse arranjo se mantinha havia quase um ano. Talvez Otávio sentisse pena - como todos os demais amigos-adultos de - após o tragicômico término. Tragicômico, porque ninguém nunca acreditou de primeira; sempre havia risadas, aquele olhar de “ah, ! Você é tão boba!” e aí, quando a expressão dela continuava impassível - afinal, a sua namorada havia mesmo se mudado para Moscou -, as pessoas ficavam sem graça e sentiam muito. Ao menos, agora ela possuía um quarto todo seu, onde podia provar cinco combinações diferentes de roupas antes de ir para a aula - como se fosse a Elle Woods antropóloga, para disfarçar que estava perdida na vida.
Ela estava em busca de um apartamento para si, possivelmente para dividir com mais pessoas, mas a vida do cientista é dura. Apartamentos perto da faculdade não eram baratos e, quando havia um bom negócio, era quase um caso à la Jogos Vorazes para conseguir fechar contrato. Era por isso que estava esperando a máquina terminar o café para si mesma, para Otávio e uma garota que estava passando várias noites por lá. Uma outra grande razão para permanecer sendo colega de quarto de um advogado e frequentador de academia é que ela estava guardando cerca de 90% de seu pagamento para auxiliar na mudança para Oxford.
- Então, você faz pesquisa - comentou a jovem loira. Ela tinha cara de alguém que frequenta beach tênis e vai para Campos de Jordão em feriados. - Mas só faz isso ou também trabalha?
- Esse é meu trabalho - respondeu , pegando seu café sem esperar pela resposta.
*
Quatro anos antes
era uma das melhores alunas do curso de Ciências Sociais. Ela sabia disso por seu histórico escolar impecável e também porque os professores a conheciam. Eles lembravam seu nome e lhe ofereciam vagas de monitoria ou em grupos de pesquisa. Desde a semana de recepção de calouros, ela sabia: seria não apenas orientada, mas mentorada pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das mais importantes antropólogas da atualidade e sua maior inspiração. É claro que, de todos os professores, Cecilia foi a única que nunca ofereceu nada para - apenas uma mensagem “bom trabalho” em um artigo desenvolvido em Métodos de Pesquisa em Antropologia. E é claro que isso foi a motivação perfeita para entrar no seleto grupo de orientandos de Moraes-Witlin. A garota, em seu terceiro ano de graduação, levou um mês escrevendo uma carta de apresentação e um projeto de pesquisa refinado, os quais enviou para a professora às três da tarde de uma quarta-feira. No mesmo dia, a resposta:
Cecilia Moraes-Witlin
para mim
RE: Candidatura para pesquisa de Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura
,
Me encontre na minha sala na próxima segunda-feira, às 15h10.
Cordialmente,
Cecilia
Naquele dia, tomou cerca de um litro de Coca Zero para comemorar e sequer conseguiu focar na aula. Ela mandou uma mensagem para Isadora, que possivelmente estava trabalhando, contando que a professora tinha sugerido uma reunião. Dora não havia entendido qual era a questão da reunião (“Mas tipo… Qual é a grande coisa de responder um e-mail?” disse ela, certa vez), mas ficava empolgada de ver a namorada feliz - ainda que o ânimo e a motivação para normalmente fossem obsessivos e ligeiramente autodestrutivos.
Os dias passaram como se o mundo estivesse em slow-motion enquanto era a mulher mais rápida do mundo. Independente da quantidade de vezes que Dora tenha sugerido que fossem fazer um brunch ou que fossem dançar ballet, a ansiedade fazia com que todas as sugestões fossem ignoradas. Isadora fingia que não percebia enquanto fingia que disfarçava que vinha fumando. Eram pelo menos três canecas de café por hora, acompanhadas de três cigarros. Na noite de domingo para segunda, nenhuma das duas dormiu, já que a ansiedade de era quase palpável - Dora tentou episódios de New Girl, pizza e sexo. Nenhuma das opções surtiu efeito na ansiedade. No banho, praticava sozinha e em voz alta o que diria para a professora. Seus pensamentos ansiosos ultrapassavam todos os limites da coerência e enquanto comiam pizza, ela perguntou:
“E se ela souber que no primeiro ano da faculdade eu confundi as palavras e minha fala soou como se eu achasse que há uma hierarquia de culturas mais ou menos evoluídas?”
Acabou que, na realidade, Cecilia já estava bastante impressionada com , e não só por seu histórico excelente: só o fato de ter escrito uma carta que alguns poderiam classificar como arrogante foi o suficiente para causar curiosidade na professora. A ideia de pesquisar o próprio departamento de Antropologia também foi apreciada e assim tornou-se a primeira aluna de graduação no Laboratório coordenado por Cecilia. Exceto que não foi. No mesmo mês, Lisboa, um aluno quase tão destacado quanto ela, resolveu sair do departamento de História para entrar no mesmo laboratório de pesquisa que ela. E, além de tudo, com um tema de pesquisa semelhante. E simpático. Não ser a primeira tinha destruído a autoestima de , mas ver como ele logo se aproximou de todos os membros do laboratório enquanto ela era incapaz de interagir senão em grupos de estudos a deixou com ódio em sua forma mais pura. E a questão é que sabia que havia algo de errado com ela. A ansiedade social lhe paralisava e, apesar de ela estar vivendo tudo que sempre sonhou, ainda era difícil passar o dia todo interagindo com desconhecidos, especialmente quando ela era a graduanda “quietinha”, sempre comparada com o simpático e extrovertido . E não ajudava em nada reparar como alguns dos outros pesquisadores do laboratório sempre riam dela quando ele se aproximava.
Ele, é claro, havia sido simpático com ela. tinha pins de Star Wars em sua mochila e ela já havia ouvido ele dizer que as prequels eram subestimadas. Ele havia puxado assunto quando viu lendo em seu kindle e ela respondeu monossilábica. Ela também nunca aceitou a solicitação dele para segui-la no Instagram, apesar de ter passado alguns minutos stalkeando o perfil dele. Ela jamais admitiria isso, mas observou cada uma das fotos com atenção, quase sofrendo porque jamais seriam amigos. Ela não podia confiar - não se quisesse sobreviver e conquistar seus objetivos. A academia era um ambiente altamente competitivo e não havia espaço para confiança - especialmente confiança em homens. Então, enquanto conquistou todos no laboratório com suas piadas e sorriso constantes, permaneceu reclusa, conversando apenas com duas alunas do mestrado que também tinham contas no Tumblr. E, ironicamente, e viveram inúmeras experiências similares sem trocar muitas palavras: ambos foram contemplados com bolsas de Iniciação Científica, ambos apresentaram textos no grupo de estudos quinzenal, ambos apresentaram suas pesquisas no Simpósio de Iniciação Científica da USP, ambos escreveram artigos e foram publicados. Ambos se candidataram ao processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Ambos passaram. à frente, claro, com a inacreditável média 9,8.
Agora
Havia um mês desde que havia aplicado para uma vaga de estágio em pesquisa no Departamento de Antropologia da Universidade de Oxford - uma das melhores do mundo na área. tinha o histórico, as cartas de recomendação e o currículo perfeito; ela havia nascido para esse estágio. Ela era a candidata perfeita e sabia disso. Por isso a demora na resposta a deixava tão ansiosa. Todo o ponto do estágio em Oxford durante o mestrado era fundamental para que ela conhecesse o departamento e aplicasse para uma vaga de doutorado no Reino Unido. Não havia mais nada para ela em São Paulo, então não havia motivo para não arriscar - na melhor das hipóteses, ela seria parte de um dos departamentos de Antropologia mais respeitados do mundo.
- Eles irão te enviar a resposta por e-mail - disse a professora. Seus olhos eram azuis e ela parecia sempre estar encarando a todos como Medusa encara suas vítimas. Cecilia Moraes-Witlin era uma ótima orientadora e bastante gentil com todos os seus alunos, mas em seus olhos não havia sequer um pingo de doçura. - Não tem muito o que fazer além de esperar. Também estou ansiosa, . Meus dois melhores alunos estão dando seus primeiros passos para construir uma carreira internacional e, querendo ou não, isso influencia na minha carreira também. Eu entendo sua ansiedade, acredite. Mas você precisa ter paciência.
Paciência. Só a menção dessa palavra já fazia querer revirar os olhos. Apesar de sempre se divertir explicando para Cecilia porque a relação de ambas era claramente similar com a dinâmica dos mestres Jedi e seus padawans, odiava quando o ensinamento era sobre paciência e desapego - ansiedade não é o jeito Jedi, afinal.
- Será que tem algo errado no meu currículo? Eu me certifiquei de enviar tudo certo. Não tenho nenhuma nota menor que 9,5 nas disciplinas do mestrado. E minha pesquisa é bastante próxima das linhas de pesquisa que a Dra. Olive orienta.
- , não há nada de errado. Se concentre em escrever sua dissertação. Você precisa dela pronta para começar um projeto de doutorado. - Cecilia diz, com um tom calmo e firme. Ela toma um gole de seu café antes de retomar. - Na realidade, você sabe que o está desenvolvendo um trabalho muitíssimo interessante sobre Antropologia no Brasil. Mas ele não é antropólogo de formação e eu pensei em vocês escreverem um paper juntos. Acho que seria bastante produtivo para o laboratório e para vocês, claro. Conseguiríamos publicar em alguma revista grande para complementar o currículo de vocês dois e também colocar seus nomes no radar.
A cada palavra que ouvia, sua unha do dedo indicador cutucava com mais força as cutículas do polegar direito. Ela sentiu quando começou a sangrar e ainda assim não conseguiu parar. Ela não poderia colaborar com a pesquisa de Lisboa. Mas tampouco poderia dizer não para Cecilia. Ela precisou de muita concentração para dizer:
- Claro, isso seria ótimo.
***
O “incidente Lévi-Strauss”, como se habituou em chamar, havia acontecido há cerca de um mês. Um vazamento de água na biblioteca fez com que todos os exemplares de “Tristes Trópicos”, uma das mais importantes obras da Antropologia, fossem perdidos. Havia na faculdade todo um esforço para doação de novos exemplares até que a Universidade adquirisse novos livros, mas até então havia apenas um livro em toda a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - graças à . Se ela não tivesse renovado seu empréstimo pela terceira e última vez, a Biblioteca Florestan Fernandes não teria mais nenhuma edição em português dessa obra de Lévi-Strauss. Ela gostava de pensar que era uma espécie de heroína anônima da Antropologia - mas isso, infelizmente, não lhe rendia privilégios nos empréstimos. Com a escassez de edições, o livro salvo por ela estava atendendo a toda a demanda de graduandos, pós-graduandos e professores da faculdade. Por isso que ao receber o e-mail avisando que poderia pegá-lo na biblioteca, ela foi correndo.
- Oi! Vim pegar o Lévi-Strauss! - A piada não foi intencional, mas sentiu-se satisfeita por ter feito a estagiária rir.
- A devolução fica para daqui vinte e um dias, tá? Por conta da demanda, você não vai poder renovar.
- Não tem nenhuma previsão de quando vão ter novas edições? Essa aqui já está nas referências da minha dissertação e eu não acho nenhum PDF.
- Não, infelizmente ainda não. Em uma situação normal, eu faria uma digitalização pra você, mas esse livro mal para aqui no balcão.
- Relaxa, não se preocupa! Muito obrigada. - E era essa a vantagem de ser uma rata de biblioteca e simpática com os estagiários. Os bibliotecários e bolsistas de apoio da Biblioteca sempre a ajudaram. Sempre. Às vezes, ela se perguntava porque não conseguia ser assim com qualquer pessoa. Por que algumas pessoas são tão mais difíceis de interagir? Como ela conseguiu conquistar os bibliotecários mas nunca os colegas de laboratório?
Em viagens de campo, normalmente fazia tudo sozinha. É claro, havia uma certa separação de tarefas - como em qualquer laboratório, mas sua interação com os demais pesquisadores se encerrava junto do expediente. Na tradicional pizza de final de ano organizada por Cecilia, eram poucos os que conversavam com - e ainda assim, não haveria conversa se o tópico “trabalho” fosse banido da mesa. Ela tentava ignorar que sabia que os demais orientandos de Cecilia nunca sequer tiveram interesse em se aproximar dela. E, de alguma forma, ela sabia que era culpa de Lisboa.
Saindo do prédio, aproveitou o intervalo até a reunião de seu grupo de estudos para tomar sol em um dos bancos dispostos na frente da biblioteca. Era sempre uma experiência calmante ficar sentada perto daquele gramado, observando os demais alunos, encontros inesperados, casais e amigos vivendo. sempre gostou de observar os outros, como se eles estivessem vivendo e ela fosse uma narradora que vê e comenta sem participar. Isso foi o que mais lhe atraiu na Antropologia foi a possibilidade de observar, participar e teorizar sobre as pessoas, mas não de uma forma relaxada e sim com todo o rigor científico. queria entender as pessoas, que na maioria das vezes, lhe pareciam um mistério. Numa multidão, era uma cientista em seu laboratório.
Ao abrir o livro, encontrou uma folha de bloco de notas pautada com um monte de anotações, provavelmente de um dos muitos alunos com quem ela vinha dividindo Tristes Trópicos. Há uma série de páginas anotadas, sinalizando possibilidades de citações e dúvidas pontuais. O que chamou sua atenção, no entanto, foi a pergunta na margem do papel:
Não sei se alguém vai ver isso - mas por que a Antropologia é tão incrível e tão difícil pra caralho?
E então pegou em sua bolsa um bloco de post-its cor de rosa e uma caneta. E escreveu.
Palavras-chave: Término; Fracasso; Vida adulta;
Desde o término com Isadora, a vida dela estava uma bagunça. O apartamento que dividiam foi devolvido para o proprietário e isso fez com que fosse ser hóspede no sofá de Otávio, um colega do ensino médio. Ele já morava sozinho na Bela Vista, trabalhava em um escritório de advocacia cuja clientela era a elite paulistana e era o tipo de homem que mulheres de quarenta anos incentivam mulheres de vinte anos a “investir”. Depois de quinze dias, ela perguntou se não poderia pagar metade do aluguel ou algo do gênero - e esse arranjo se mantinha havia quase um ano. Talvez Otávio sentisse pena - como todos os demais amigos-adultos de - após o tragicômico término. Tragicômico, porque ninguém nunca acreditou de primeira; sempre havia risadas, aquele olhar de “ah, ! Você é tão boba!” e aí, quando a expressão dela continuava impassível - afinal, a sua namorada havia mesmo se mudado para Moscou -, as pessoas ficavam sem graça e sentiam muito. Ao menos, agora ela possuía um quarto todo seu, onde podia provar cinco combinações diferentes de roupas antes de ir para a aula - como se fosse a Elle Woods antropóloga, para disfarçar que estava perdida na vida.
Ela estava em busca de um apartamento para si, possivelmente para dividir com mais pessoas, mas a vida do cientista é dura. Apartamentos perto da faculdade não eram baratos e, quando havia um bom negócio, era quase um caso à la Jogos Vorazes para conseguir fechar contrato. Era por isso que estava esperando a máquina terminar o café para si mesma, para Otávio e uma garota que estava passando várias noites por lá. Uma outra grande razão para permanecer sendo colega de quarto de um advogado e frequentador de academia é que ela estava guardando cerca de 90% de seu pagamento para auxiliar na mudança para Oxford.
- Então, você faz pesquisa - comentou a jovem loira. Ela tinha cara de alguém que frequenta beach tênis e vai para Campos de Jordão em feriados. - Mas só faz isso ou também trabalha?
- Esse é meu trabalho - respondeu , pegando seu café sem esperar pela resposta.
Quatro anos antes
era uma das melhores alunas do curso de Ciências Sociais. Ela sabia disso por seu histórico escolar impecável e também porque os professores a conheciam. Eles lembravam seu nome e lhe ofereciam vagas de monitoria ou em grupos de pesquisa. Desde a semana de recepção de calouros, ela sabia: seria não apenas orientada, mas mentorada pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das mais importantes antropólogas da atualidade e sua maior inspiração. É claro que, de todos os professores, Cecilia foi a única que nunca ofereceu nada para - apenas uma mensagem “bom trabalho” em um artigo desenvolvido em Métodos de Pesquisa em Antropologia. E é claro que isso foi a motivação perfeita para entrar no seleto grupo de orientandos de Moraes-Witlin. A garota, em seu terceiro ano de graduação, levou um mês escrevendo uma carta de apresentação e um projeto de pesquisa refinado, os quais enviou para a professora às três da tarde de uma quarta-feira. No mesmo dia, a resposta:
Cecilia Moraes-Witlin
para mim
RE: Candidatura para pesquisa de Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura
,
Me encontre na minha sala na próxima segunda-feira, às 15h10.
Cordialmente,
Cecilia
Naquele dia, tomou cerca de um litro de Coca Zero para comemorar e sequer conseguiu focar na aula. Ela mandou uma mensagem para Isadora, que possivelmente estava trabalhando, contando que a professora tinha sugerido uma reunião. Dora não havia entendido qual era a questão da reunião (“Mas tipo… Qual é a grande coisa de responder um e-mail?” disse ela, certa vez), mas ficava empolgada de ver a namorada feliz - ainda que o ânimo e a motivação para normalmente fossem obsessivos e ligeiramente autodestrutivos.
Os dias passaram como se o mundo estivesse em slow-motion enquanto era a mulher mais rápida do mundo. Independente da quantidade de vezes que Dora tenha sugerido que fossem fazer um brunch ou que fossem dançar ballet, a ansiedade fazia com que todas as sugestões fossem ignoradas. Isadora fingia que não percebia enquanto fingia que disfarçava que vinha fumando. Eram pelo menos três canecas de café por hora, acompanhadas de três cigarros. Na noite de domingo para segunda, nenhuma das duas dormiu, já que a ansiedade de era quase palpável - Dora tentou episódios de New Girl, pizza e sexo. Nenhuma das opções surtiu efeito na ansiedade. No banho, praticava sozinha e em voz alta o que diria para a professora. Seus pensamentos ansiosos ultrapassavam todos os limites da coerência e enquanto comiam pizza, ela perguntou:
“E se ela souber que no primeiro ano da faculdade eu confundi as palavras e minha fala soou como se eu achasse que há uma hierarquia de culturas mais ou menos evoluídas?”
Acabou que, na realidade, Cecilia já estava bastante impressionada com , e não só por seu histórico excelente: só o fato de ter escrito uma carta que alguns poderiam classificar como arrogante foi o suficiente para causar curiosidade na professora. A ideia de pesquisar o próprio departamento de Antropologia também foi apreciada e assim tornou-se a primeira aluna de graduação no Laboratório coordenado por Cecilia. Exceto que não foi. No mesmo mês, Lisboa, um aluno quase tão destacado quanto ela, resolveu sair do departamento de História para entrar no mesmo laboratório de pesquisa que ela. E, além de tudo, com um tema de pesquisa semelhante. E simpático. Não ser a primeira tinha destruído a autoestima de , mas ver como ele logo se aproximou de todos os membros do laboratório enquanto ela era incapaz de interagir senão em grupos de estudos a deixou com ódio em sua forma mais pura. E a questão é que sabia que havia algo de errado com ela. A ansiedade social lhe paralisava e, apesar de ela estar vivendo tudo que sempre sonhou, ainda era difícil passar o dia todo interagindo com desconhecidos, especialmente quando ela era a graduanda “quietinha”, sempre comparada com o simpático e extrovertido . E não ajudava em nada reparar como alguns dos outros pesquisadores do laboratório sempre riam dela quando ele se aproximava.
Ele, é claro, havia sido simpático com ela. tinha pins de Star Wars em sua mochila e ela já havia ouvido ele dizer que as prequels eram subestimadas. Ele havia puxado assunto quando viu lendo em seu kindle e ela respondeu monossilábica. Ela também nunca aceitou a solicitação dele para segui-la no Instagram, apesar de ter passado alguns minutos stalkeando o perfil dele. Ela jamais admitiria isso, mas observou cada uma das fotos com atenção, quase sofrendo porque jamais seriam amigos. Ela não podia confiar - não se quisesse sobreviver e conquistar seus objetivos. A academia era um ambiente altamente competitivo e não havia espaço para confiança - especialmente confiança em homens. Então, enquanto conquistou todos no laboratório com suas piadas e sorriso constantes, permaneceu reclusa, conversando apenas com duas alunas do mestrado que também tinham contas no Tumblr. E, ironicamente, e viveram inúmeras experiências similares sem trocar muitas palavras: ambos foram contemplados com bolsas de Iniciação Científica, ambos apresentaram textos no grupo de estudos quinzenal, ambos apresentaram suas pesquisas no Simpósio de Iniciação Científica da USP, ambos escreveram artigos e foram publicados. Ambos se candidataram ao processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Ambos passaram. à frente, claro, com a inacreditável média 9,8.
Agora
Havia um mês desde que havia aplicado para uma vaga de estágio em pesquisa no Departamento de Antropologia da Universidade de Oxford - uma das melhores do mundo na área. tinha o histórico, as cartas de recomendação e o currículo perfeito; ela havia nascido para esse estágio. Ela era a candidata perfeita e sabia disso. Por isso a demora na resposta a deixava tão ansiosa. Todo o ponto do estágio em Oxford durante o mestrado era fundamental para que ela conhecesse o departamento e aplicasse para uma vaga de doutorado no Reino Unido. Não havia mais nada para ela em São Paulo, então não havia motivo para não arriscar - na melhor das hipóteses, ela seria parte de um dos departamentos de Antropologia mais respeitados do mundo.
- Eles irão te enviar a resposta por e-mail - disse a professora. Seus olhos eram azuis e ela parecia sempre estar encarando a todos como Medusa encara suas vítimas. Cecilia Moraes-Witlin era uma ótima orientadora e bastante gentil com todos os seus alunos, mas em seus olhos não havia sequer um pingo de doçura. - Não tem muito o que fazer além de esperar. Também estou ansiosa, . Meus dois melhores alunos estão dando seus primeiros passos para construir uma carreira internacional e, querendo ou não, isso influencia na minha carreira também. Eu entendo sua ansiedade, acredite. Mas você precisa ter paciência.
Paciência. Só a menção dessa palavra já fazia querer revirar os olhos. Apesar de sempre se divertir explicando para Cecilia porque a relação de ambas era claramente similar com a dinâmica dos mestres Jedi e seus padawans, odiava quando o ensinamento era sobre paciência e desapego - ansiedade não é o jeito Jedi, afinal.
- Será que tem algo errado no meu currículo? Eu me certifiquei de enviar tudo certo. Não tenho nenhuma nota menor que 9,5 nas disciplinas do mestrado. E minha pesquisa é bastante próxima das linhas de pesquisa que a Dra. Olive orienta.
- , não há nada de errado. Se concentre em escrever sua dissertação. Você precisa dela pronta para começar um projeto de doutorado. - Cecilia diz, com um tom calmo e firme. Ela toma um gole de seu café antes de retomar. - Na realidade, você sabe que o está desenvolvendo um trabalho muitíssimo interessante sobre Antropologia no Brasil. Mas ele não é antropólogo de formação e eu pensei em vocês escreverem um paper juntos. Acho que seria bastante produtivo para o laboratório e para vocês, claro. Conseguiríamos publicar em alguma revista grande para complementar o currículo de vocês dois e também colocar seus nomes no radar.
A cada palavra que ouvia, sua unha do dedo indicador cutucava com mais força as cutículas do polegar direito. Ela sentiu quando começou a sangrar e ainda assim não conseguiu parar. Ela não poderia colaborar com a pesquisa de Lisboa. Mas tampouco poderia dizer não para Cecilia. Ela precisou de muita concentração para dizer:
- Claro, isso seria ótimo.
O “incidente Lévi-Strauss”, como se habituou em chamar, havia acontecido há cerca de um mês. Um vazamento de água na biblioteca fez com que todos os exemplares de “Tristes Trópicos”, uma das mais importantes obras da Antropologia, fossem perdidos. Havia na faculdade todo um esforço para doação de novos exemplares até que a Universidade adquirisse novos livros, mas até então havia apenas um livro em toda a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - graças à . Se ela não tivesse renovado seu empréstimo pela terceira e última vez, a Biblioteca Florestan Fernandes não teria mais nenhuma edição em português dessa obra de Lévi-Strauss. Ela gostava de pensar que era uma espécie de heroína anônima da Antropologia - mas isso, infelizmente, não lhe rendia privilégios nos empréstimos. Com a escassez de edições, o livro salvo por ela estava atendendo a toda a demanda de graduandos, pós-graduandos e professores da faculdade. Por isso que ao receber o e-mail avisando que poderia pegá-lo na biblioteca, ela foi correndo.
- Oi! Vim pegar o Lévi-Strauss! - A piada não foi intencional, mas sentiu-se satisfeita por ter feito a estagiária rir.
- A devolução fica para daqui vinte e um dias, tá? Por conta da demanda, você não vai poder renovar.
- Não tem nenhuma previsão de quando vão ter novas edições? Essa aqui já está nas referências da minha dissertação e eu não acho nenhum PDF.
- Não, infelizmente ainda não. Em uma situação normal, eu faria uma digitalização pra você, mas esse livro mal para aqui no balcão.
- Relaxa, não se preocupa! Muito obrigada. - E era essa a vantagem de ser uma rata de biblioteca e simpática com os estagiários. Os bibliotecários e bolsistas de apoio da Biblioteca sempre a ajudaram. Sempre. Às vezes, ela se perguntava porque não conseguia ser assim com qualquer pessoa. Por que algumas pessoas são tão mais difíceis de interagir? Como ela conseguiu conquistar os bibliotecários mas nunca os colegas de laboratório?
Em viagens de campo, normalmente fazia tudo sozinha. É claro, havia uma certa separação de tarefas - como em qualquer laboratório, mas sua interação com os demais pesquisadores se encerrava junto do expediente. Na tradicional pizza de final de ano organizada por Cecilia, eram poucos os que conversavam com - e ainda assim, não haveria conversa se o tópico “trabalho” fosse banido da mesa. Ela tentava ignorar que sabia que os demais orientandos de Cecilia nunca sequer tiveram interesse em se aproximar dela. E, de alguma forma, ela sabia que era culpa de Lisboa.
Saindo do prédio, aproveitou o intervalo até a reunião de seu grupo de estudos para tomar sol em um dos bancos dispostos na frente da biblioteca. Era sempre uma experiência calmante ficar sentada perto daquele gramado, observando os demais alunos, encontros inesperados, casais e amigos vivendo. sempre gostou de observar os outros, como se eles estivessem vivendo e ela fosse uma narradora que vê e comenta sem participar. Isso foi o que mais lhe atraiu na Antropologia foi a possibilidade de observar, participar e teorizar sobre as pessoas, mas não de uma forma relaxada e sim com todo o rigor científico. queria entender as pessoas, que na maioria das vezes, lhe pareciam um mistério. Numa multidão, era uma cientista em seu laboratório.
Ao abrir o livro, encontrou uma folha de bloco de notas pautada com um monte de anotações, provavelmente de um dos muitos alunos com quem ela vinha dividindo Tristes Trópicos. Há uma série de páginas anotadas, sinalizando possibilidades de citações e dúvidas pontuais. O que chamou sua atenção, no entanto, foi a pergunta na margem do papel:
Não sei se alguém vai ver isso - mas por que a Antropologia é tão incrível e tão difícil pra caralho?
E então pegou em sua bolsa um bloco de post-its cor de rosa e uma caneta. E escreveu.
2. A vida de laboratório
Aviso de gatilho: crise de ansiedade e transtornos alimentares. Leia com cuidado.
Resumo: O presente artigo trata-se de uma breve etnografia do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura, tendo por objetivo apresentar a organização social e aspectos culturais desse grupo. O foco aqui estará nas relações sociais que se dão no âmbito do grupo de pesquisa, enfatizando sobretudo a relação entre Cardoso e Lisboa, pesquisadores de pós-graduação que, apesar dos interesses similares, parecem ser incompatíveis.
Palavras-chave: Rivalidade; Desconfiança; Paçoca
nunca se sentiu tão confortável em um lugar antes como se sentia na universidade. Desde seu primeiro dia de aula como caloura de Ciências Sociais ela soube que aquele era seu lugar; mesmo que seus amigos não entendessem como ela gostava tanto da faculdade, ela sentia que finalmente havia se encontrado. Não era como na escola, onde ela nunca se sentiu confortável, esse era o único lugar onde ela não sentia receio de falar e sobretudo de ser ouvida. Mesmo nos dias mais difíceis e nos textos mais chatos de Ciência Política, nunca odiou estar ali. Mas, se havia algo que ela odiava naquele lugar, era Lisboa.
Quando adentrou a sala do laboratório, ouviu risadas cessarem. Era sempre assim: se estivesse lá e ela chegasse, a graça ia embora. Ela ignorou e colocou sua bolsa na mesa com barulho. Cecilia não estava lá, então ela não precisou ser agradável.
- Bom dia - murmurou, sem muito ânimo. As respostas foram igualmente mornas. Ela tirou seu notebook da bolsa, bem como seu exemplar de Tristes Trópicos e seus fones de ouvido. se manteve distante dos demais estudantes. Cecilia tinha em seu laboratório de pesquisa uma exigência: queria que seus alunos trabalhassem em grupo e que ficassem na universidade. Como todos tinham boas bolsas de pesquisa, todos se dedicavam exclusivamente à pesquisa e, consequentemente, todos passavam boa parte de seus dias no campus. usava seus fones de ouvido para evitar conversas, mas os mantinha desligados para não perder nada do que fosse conversado. Ela era curiosa.
- Então, a Ceci mandou vocês escreverem juntos - disse Marina, uma doutoranda do laboratório bastante próxima de . Ambos eram historiadores e sempre riam das mesmas piadas e citavam os mesmos autores.
- É, pois é - respondeu , sem tirar os olhos da tela de seu tablet. Sua voz não expressava nenhum sentimento, mas pôde sentir o desprezo.
- E você vai? - Questionou Marina. tentou não parecer atenta à conversa, mantendo seus olhos na tela de seu computador e sua posição relaxada. deu risada.
- E eu tenho escolha? - Nesse momento, precisou de todo seu autocontrole para não gritar. Ela não queria se importar com o que eles estavam falando, mas isso era inevitável. A forma como falava e, principalmente, a forma como Marina riu fizeram a garganta de fechar. Ela não podia reagir ou então eles notariam que ela estava prestando atenção, então simplesmente abriu o Tumblr em seu navegador e começou a observar fanarts e outros memes bobos, sem sequer prestar atenção no que lia. Ela finalmente conectou os fones ao notebook e abriu o Spotify, abafando completamente a conversa de e Marina. Ela aguardou alguns minutos antes de se levantar e ir até a cafeteira comunitária e preparar um espresso. Ela não tirou os fones e nem falou com nenhum dos dois quando pegou o café; eles também não pareceram reagir ao movimento de . O sabor forte do café puro dominou os sentidos dela e era como se o corpo dela soubesse que era hora de focar: sempre estudou muito e sempre tomou café na mesma proporção. Havia criado o hábito com a avó, que lhe servia café desde os sete anos de idade, e nunca mais parou. Conseguia deixar o cigarro, mas nunca o café. Quando voltou ao seu lugar, no entanto, desejou que o espresso, em algum tipo de milagre bíblico, se transformasse em uma dose generosa de vodca. Na sua caixa de entrada do e-mail, um nome se destacava na única mensagem não lida. Isadora. então pensou que seu dia não podia piorar após ouvir o que tinha ouvido de seus colegas, então clicou no nome da ex-namorada.
,
Espero que esteja bem. Estive em São Petersburgo recentemente e lembrei daquele livro que você me fez ler, Noites Brancas. Você ia gostar daqui. Ainda acho estranho estar trabalhando com balé aqui - sempre disseram que eu ia passar fome se continuasse com isso e tá sendo justamente o oposto. Acho que nunca te agradeci por ter me incentivado a aceitar o emprego. Obrigada, . De verdade.
Eu sinto sua falta e me preocupo com você. Você ainda está morando com o Otávio? Como está na pós? A Cecilia já está te transformando em uma mini versão dela mesma? Você ainda está se isolando de todo mundo? Lançou uma série nova de Star Wars, ouvi dizer. Você já deve ter assistido. Você ainda está dançando? Espero que não tenha saído das aulas - faz bem pra você, nós duas sabemos disso. E, pelo que sei, aulas de balé são ótimos lugares para dar uns beijos - até aqui. Talvez seja universal. Estava pensando, acho que vou te mandar um presente. Posso?
Com amor,
Dora
não conseguiu segurar o choro dessa vez. Ela deixou que as lágrimas gordas e quentes borrassem a maquiagem e escorressem por seu rosto e pescoço. Um dos maiores erros da vida dela - e ela estava ciente disso, era ter aceitado namorar com Isadora. Isso foi um erro não porque ambas tinham metas para a vida totalmente incompatíveis, ainda que passassem madrugadas planejando futuros impossíveis juntas, mas porque Isadora e eram melhores amigas. E no momento em que se tornaram namoradas, essa amizade passou a ter data de validade - era como se, no momento em que elas se apaixonaram, a amizade até então protegida entrasse em contato com o ar e seu prazo começasse a contar. A amizade delas estava no vácuo, sem sofrer agência do tempo ou do espaço e, no momento em que decidiram ficar juntas, a amizade saiu desse lugar além. O ar permitiu que a amizade se deteriorasse. E agora ambas estavam sozinhas.
- ? - Perguntou Marina, com uma mão hesitante no ombro da colega. tirou os fones de ouvido. - Tá tudo bem?
- Tudo - mentiu ela. Ambas sabiam que era mentira. não limpou as lágrimas pois isso arruinaria ainda mais sua maquiagem.
- Aconteceu algo? - Insistiu Marina, parecendo realmente preocupada. Como se não estivesse rindo de até poucos minutos atrás. As lágrimas não paravam de escorrer e gostaria de voltar no tempo e ignorar esse e-mail, mas agora pensava em Noites Brancas, em São Petersburgo e em todos os planos que fizera com Dora nos últimos anos. Ela pensava em como estava sozinha e não por estar solteira, mas por ter perdido sua melhor amiga - afinal, mesmo que ignorasse o passado romântico, Isadora ainda estava morando no outro lado do mundo e em uma rotina totalmente diferente. Ela estava realizando o sonho dela e sabia que não seria justo se colocar como um fardo. Tudo o que ela podia fazer era torcer de longe e curtir fotos no Instagram, desejando com todo seu coração que Dora fosse feliz.
- Minha namorada… ex-namorada, mandou algumas fotos de São Petersburgo e é tão lindo que senti vontade de chorar - respondeu . Marina assentiu de leve, sabendo que era mentira. Mas não perguntou novamente, e ficou grata por isso. movimentou-se, chamando atenção das garotas - ele saiu da sala, como se para dar privacidade. Ou como se não aguentasse todo o drama.
- , eu sei que não somos próximas, mas você não parece estar bem. Me desculpa se isso for intromissão, mas.. Podemos conversar, se você quiser.
Marina falou com tom de voz terno, como se estivesse mesmo preocupada. quis acreditar nela, quis acreditar que poderiam conversar e que finalmente poderia compartilhar um pouco dos sentimentos sufocantes que guardava dentro de si. Ela queria muito acreditar, mas lembrou do que ouvira apenas alguns minutos mais cedo.
- Obrigada, Marina, mas estou bem. Realmente, São Petersburgo parece ser um lugar lindo e só isso aconteceu. - Como se seu corpo tentasse dar sinal de que ela estava mentindo, seus olhos encheram-se novamente e ela voltou a chorar. Ela sentia falta de ter uma amiga, sentia falta de poder conversar com outra mulher que a entendesse, que aceitasse acompanhá-la na hora de beber cafés gelados superfaturados e que entendesse o porquê de fazer skincare. Os seus amigos mais próximos eram homens - amigos herdados de seu relacionamento com Isadora. , ainda que os conhecesse desde o ensino fundamental, só se tornou parte do grupo quando começou a namorar Dora. Com a mudança dela, ficou à deriva, quase como uma lembrança que Isadora tinha ido embora. Os meninos, especialmente Otávio, eram próximos de e eram amigos dela - mas eles também eram homens e, como tal, tinham conceitos diferentes do que é amizade. Ela sentia falta de uma amiga que soubesse a hora de assistir novamente Questão de Tempo usando máscaras faciais coreanas juntas. Ela sentia falta de uma amiga. E ela gostaria de confiar que Marina pudesse ser uma amiga, mas ela não conseguia, então se desvencilhou da colega e ofereceu um sorriso desanimado. - Obrigada e desculpa dar um susto em vocês. Pode avisar o que vou ficar quieta e ele pode voltar pra sala.
- Se você mudar de ideia, me avise - foi tudo o que Marina respondeu.
*
Antes
- Queridos, - começou Cecilia, já no final de uma longa tarde discutindo Ensaio sobre a dádiva, de Mauss - uma amiga de Oxford compartilhou comigo que há uma vaga de estágio em seu laboratório. Seriam dois ou três meses trabalhando com ela, tudo com bolsa. Essa vaga é aberta para estudantes de todo o Brasil, já que ela mesma estudou povos indígenas daqui do sudeste, mas aqui entre nós, ela pediu indicações para mim.
- Se a for participar eu não sei se devo tentar. Com as notas dela é injusto - disse Marina. Cecilia riu.
- Devo encorajar todos vocês, Marina. No final das contas, quem escolherá não será eu. O grupo se dispersou e estava radiante. Aquela era a oportunidade que sempre sonhou e que sabia que teria ao ser orientada por Cecilia Moraes-Witlin. Ela não precisou falar nada - a professora antecipou:
- Vou te encaminhar o e-mail para você aplicar. Confio em você, .
E esse era o jeito dela dizer que estava torcendo. Cecilia nunca lhe disse nada com palavras, mas sempre demonstrou o afeto que sentia por . E agora, mais do que nunca, a jovem precisava desse afeto. Havia apenas duas semanas desde o término - ainda vivia em um apartamento impregnado com o cheiro de Isadora. Estava difícil lidar com tudo, mas ela já conseguia controlar quando e onde chorar. Durante o dia, tentava se ocupar com todas as tarefas da vida adulta: mestrado, afazeres domésticos, busca por uma nova casa, aulas de idiomas, balé e todas as tarefas acadêmicas do grupo de pesquisa. Era só a noite, após o banho, que ela se permitia chorar. Era só a noite que ela olhava as fotos no Instagram, ainda no feed, com sua melhor amiga e namorada. Era só a noite que ela lembrava de como se apaixonar por Isadora tinha sido algo confuso e arrebatador. Como ela havia feito de tudo para negar que não era hétero, como havia feito inúmeros testes na internet tentando entender porque raios ela estava gostando tanto de beijar outra garota. Mas nada disso contava quando elas estavam juntas - fosse na aula de balé ou no quarto de Dora. Não importava quando os pais da “amiga” eram tão gentis e nunca lhe fizeram nenhum comentário desagradável. Não importou quando os próprios pais de amaram Dora logo de cara.
Elas haviam se formado na escola juntas e, enquanto se aventurava no meio acadêmico, Isadora começou a dançar profissionalmente. Era uma excelente bailarina e tinha um futuro promissor. O plano era que aplicaria para vagas de doutorado internacionais e Dora tentaria entrar em uma companhia de dança na Europa. Elas se mudariam juntas e viveriam seus sonhos juntas. E tudo estava dando certo - fora aprovada no mestrado na USP, como planejava, e Dora estava tendo cada vez mais destaque nas apresentações. Até que em uma série de desventuras, Isadora saiu de casa com calma em uma terça-feira normal. Ela só se deu conta que tinha esquecido seu par favorito de sapatilhas quando já estava na estação de metrô e, em vez de simplesmente aceitar a distração e usar o outro par que estava sempre em sua bolsa, ela decidiu voltar para casa. Estava chovendo e ela estava com pressa. Ela subiu as escadas - o prédio antigo onde moravam não tinha elevador - correndo como já havia feito inúmeras vezes desde que se mudaram. Mas estava chovendo e ela estava com um tênis bonito mas não prático. Isadora subiu as escadas correndo e a sola lisa e molhada do sapato, ao pisar em falso, a derrubou. E de todos os infortúnios que poderiam resultar de um acidente como este, o pior aconteceu: Isadora quebrou o pé. E essa foi a primeira rachadura do relacionamento das duas.
*
Marina saiu da sala, deixando sozinha com seus pensamentos. O ar parecia pesado, viciado, e era difícil respirar. Ela não sabia se era pelo e-mail ou pela conversa de e Marina que ainda ecoava em seus ouvidos. Ela se concentrou em respirar fundo porque estava sem ar - podia sentir cada uma das batidas de seu coração acelerado em seu ouvido. Tentando focar em sua respiração, ela fechou o notebook e tirou os fones de ouvido, inclinando a cabeça e respirando fundo repetidamente, com os olhos fechados para evitar embaralhar ainda mais seus sentidos. Ela não conseguia respirar e sentia presa, com frio e como se seus músculos estivessem se soltando dos ossos; sua cabeça estava girando, pensando em tudo que poderia acontecer, em como ela estava fadada a ser sozinha e falhar, em como havia falhado com Dora e falharia com qualquer outra pessoa que ousasse se aproximar, como falharia em sua carreira e viveria para sempre na frustração de não ter conseguido nada; suas mãos tremiam e mesmo que estivesse cerca de 27° graus lá fora, ela tremia de frio e tentava se abraçar como que para impedir seu corpo de colapsar; em sua cabeça ela só pensava como era uma falha, como sempre falhou e como sempre falharia: você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir. Você não conseguiu, você não vai conseguir. Ela chorava copiosamente e nem era mais pelo e-mail de Isadora, mas sim porque isso fez com que o castelo de cartas que ela lutava constantemente para manter firme desabasse. Ela chorava e tentava respirar, sentia cada uma das batidas de seu coração e sofria por inúmeras possibilidades e caminhos que sua vida poderia tomar. Aquilo doía como cortes de papel e a deixava confusa, ela não conseguia ver as coisas com clareza e sequer conseguia respirar. Seu foco em respirar era tão grande que ela não ouviu ou percebeu que não estava mais sozinha até sentir uma mão em seu ombro.
- Marina… Tá tudo bem - ela sussurrou, ainda de olhos fechados. Ainda tentando controlar sua respiração.
- Não parece - mas não era Marina falando. abriu os olhos e encontrou com uma expressão que parecia preocupada. Ela gostaria de ter forças para responder ou só mandar ele sair de perto dela, mas só conseguiu suspirar. A ansiedade lhe tirava todo o controle e esse sentimento só a deixava mais ansiosa. pareceu reparar o que estava acontecendo, porque pegou a garrafa de água de , que estava em cima da mesa, abriu e entregou para ela. Ela deu alguns goles com dificuldade, grata por ele não ter estragado tudo com alguma piada ou comentário irônico. - Você precisa de algo?
Ela fez que não com a cabeça. Ele ficou parado em frente a ela, como quem não sabe - ou não tem - o que fazer. Ela ainda respirava forte, com a cabeça baixa. Ele segurou o queixo dela, inclinando sua cabeça de leve e então tirou uma mecha de cabelo do rosto dela. Eles se olharam pelo que pareceram horas. O coração de estava acelerado.
- Obrigada pela água - respondeu ela, evitando o olhar dele e se desvencilhando de sua mão. Ele riu seco e respondeu:
- Olha só, já está de volta ao normal.
se levantou e deixou tudo como estava, pegando apenas uma necessaire na bolsa, partindo direto para o banheiro mais próximo. Ela sentiu vergonha de seu estado ao se olhar no espelho - a maquiagem dos olhos havia se espalhado pelo rosto e seu batom estava manchado. Ela cuidadosamente limpou a face com lenços de papel, tentando evitar que as lágrimas continuassem rolando. Seu ritual de retoques começou com corretivo, pó facial, delineador e máscara para cílios. Ela substituiu o batom nude por um vermelho. Certa vez na adolescência, levou um fora de um garoto mediano e aquilo pareceu o fim do mundo. No entanto, quando ela decidiu ir para a escola após faltar por dois dias - ela nunca havia estado tão devastada -, vestiu leggings e moletom e, quando sua mãe a viu, disse:
- Ninguém precisa saber que hoje você não está se gostando tanto, - E assim fez com que a filha voltasse para o quarto e arrumasse roupas melhores para ir à escola. Aquele não foi o fim do mundo e tampouco o dia mais triste de sua vida, mas a lição ficou. O batom vermelho era seu super-poder. Quando estava tudo dando errado, aquele batom lhe dava forças para lembrar que ela estava no controle. Que ela era incrível, Que ela era forte. Ou pelo menos a ajudava a fingir que acreditava nisso.
*
Antropologia é absurdamente difícil, caro colega. E é também a ciência mais incrível que existe. Há quem diga que é a Psicologia que tenta compreender o ser humano, mas eu acredito que sem a Antropologia eles não chegariam muito longe. Antropologia é difícil pra caralho porque pessoas são difíceis pra caralho. Veja bem: sou antropóloga, teoricamente eu deveria entender completamente a sociedade e saber exatamente como me encaixar - mas as regras são tão complexas que mesmo estando ciente de cada uma delas ainda me pego tentando me fazer caber em cada uma das caixas que nos são impostas. Entender as pessoas é difícil demais porque somos complexos, uma mistura heterogênea de nosso contexto e de nossa percepção do mundo. Eu sou feita de seja lá o que constitui uma mulher no Ocidente, no Brasil, em São Paulo e por aí vai; sou feita das minhas experiências, expectativas e sonhos. Sou feita do que foram feitas todas as mulheres que vieram antes e tento não ser. Não há absolutamente nada de natural em mim, ou em você - somos emaranhados de acúmulos dos que vieram antes. Somos cientistas que não podem isolar seu objeto de estudo no laboratório. Não é preto ou branco - são todas as cores do mundo, e nós somos tolos o bastante para tentar compreender isso.
*
Quando voltou para o laboratório, Marina e trabalhavam em silêncio. Ela voltou ao seu lugar, que permanecia intocado, e abriu novamente o computador. O e-mail de Isadora continuava ali, então ela o fechou e abriu o arquivo da sua dissertação. Haviam algumas considerações, comentários e correções de Cecilia no documento e ela focou em cada um deles, anotando referências sugeridas e sublinhando as partes que deveriam ser aprofundadas. Seu trabalho era promissor - ela sabia disso desde o primeiro rascunho - e por isso estava levemente atrasado. Segundo seu cronograma, no quarto trimestre ela já deveria ter pelo menos ⅓ do desenvolvimento, pelo menos o referencial teórico. Acontece que, com o término ela havia perdido um pouco de seu foco e agora estava precisando correr atrás do prejuízo. Ela precisava de bons resultados na qualificação para que seu estágio em Oxford fosse perfeito, pois só assim conseguiria aplicar para o doutorado lá.
escreveu por horas seguidas, parando apenas para pegar mais um café e esticar as pernas e costas no processo. Em certo momento, Marina a convidou para ir almoçar no bandejão, mas ela negou. Para a escrita de incríveis dez páginas, o combustível de foram vários cafezinhos e cerca de 1,5l de água. Marina e foram e voltaram do almoço e ela continuava escrevendo, de forma quase obsessiva. Ela não podia falhar. Eram quinze para as quatro da tarde quando ela se levantou e pegou a carteira
- Vou na Tia Bia. Vocês querem algo? - Perguntou como que para retribuir a preocupação de mais cedo.
- Se você puder me trazer uma paçoquinha, eu te faço o pix - disse Marina. negou e agradeceu. - Acho melhor trazer seis, na verdade.
- Certo - murmurou , saindo da sala e indo até o quiosque que ficava entre o prédio das Sociais e das Letras. Aquele também era um ponto muito interessante da FFLCH: era onde professores de terno se sentavam com os mesmos copinhos de café que os alunos vestidos com camisetas de entidades políticas das várias chapas que compunham o movimento estudantil. Ela entrou na fila e pediu as seis paçocas de Marina e sua Coca Zero. Pensou em pedir um dos salgados, mas desistiu. Ela já não conhecia mais os vários estudantes que ficavam ali nos intervalos e essa era uma sensação estranha. Era como se estivesse há tempo suficiente para conhecer cada canto da Universidade, mas esta estava sempre mudando, sempre impedindo que fosse desvendada por completo. pagou os itens e voltou para a sala desejando não ouvir nenhuma conversa dos colegas e realmente os encontrou em silêncio, focados em suas respectivas tarefas. Ela entregou as paçoquinhas para Marina.
- Ficou seis reais - disse. - Meu pix é 9…
- Eu tenho seu telefone salvo, - Marina riu e isso deixou confusa. Ela não tinha o telefone de Marina salvo.
- Ah, ok - disse ela, tomando um longo gole de refrigerante.
Marina sorriu e dividiu as paçocas em três duplas:
- Pra você - entregou para . - Pra você - entregou para . - E para mim.
Quando fez menção de devolver, Marina fez que não e deu uma piscada. estava genuinamente confusa e sentiu que eles estavam com pena dela, o que deixou tudo pior. Mas ela não disse nada.
- Paçoca é o doce mais universal, sabe - disse Marina - Agrada a gregos e veganos.
riu do trocadilho.
- Bom, obrigada, Marina. E desculpa por… desculpa. - Disse , ainda perplexa com os eventos do dia.
- Paçoca não resolve os problemas, mas não tem nada que um docinho não deixe melhor. Só ver o . Até esse cara chato dá uma risadinha com piada se tiver um docinho perto.
não reagiu. Marina continuou rindo, sozinha. Estava tudo muito aquele dia - a súbita mudança de Marina, que pela manhã estava rindo de e agora estava rindo com ela. sequer tinha feito qualquer tipo de comentário desagradável. Talvez o universo tivesse dado uma trégua após tantas humilhações em um curto espaço de tempo. voltou ao seu lugar, ainda bebendo sua Coca Zero pelo canudo, e guardou as paçocas em seu estojo, observando-as por um tempo e estudando a embalagem, pensando se valeria a pena consumir as 101 calorias que havia em cada uma das paçoquinhas. Ela tentou lembrar do sabor doce e ligeiramente salgado do amendoim e da textura engraçada. Aquilo bastou, e ela se pegou pensando na mensagem que tinha escrito de volta para seu colega anônimo que também estava emprestando Tristes Trópicos. Ela não sabia se o remetente sequer receberia a mensagem, mas se empolgava com a ideia de conversar com alguém de forma anônima - a possibilidade de ser honesta, sem medo de julgamentos e sem reservas lhe atraía desde sempre, afinal, esse era o ônus de ser perfeita - ou próximo disso: era incapaz de demonstrar suas fraquezas ou até mesmo admiti-las. Ela não tinha ninguém para quem dizer que estava morrendo de medo de não conseguir ser bem-sucedida na qualificação. Ela não tinha para quem dizer que repensava constantemente se era boa o suficiente para a carreira acadêmica. Ela não tinha para quem dizer que estava apavorada com a ideia de ser reprovada para o estágio em Oxford porque isso significaria que ela não era desejável romanticamente e nem profissionalmente. Ela não tinha ninguém para conversar porque desde sempre só mostrou aos amigos sua face confiante e até ligeiramente arrogante e, se ela admitisse essas fraquezas, eles poderiam descobrir que ela não é perfeita. E ser perfeita, a menos aos olhos dos outros, era a única coisa que a motivava a continuar.
Resumo: O presente artigo trata-se de uma breve etnografia do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura, tendo por objetivo apresentar a organização social e aspectos culturais desse grupo. O foco aqui estará nas relações sociais que se dão no âmbito do grupo de pesquisa, enfatizando sobretudo a relação entre Cardoso e Lisboa, pesquisadores de pós-graduação que, apesar dos interesses similares, parecem ser incompatíveis.
Palavras-chave: Rivalidade; Desconfiança; Paçoca
nunca se sentiu tão confortável em um lugar antes como se sentia na universidade. Desde seu primeiro dia de aula como caloura de Ciências Sociais ela soube que aquele era seu lugar; mesmo que seus amigos não entendessem como ela gostava tanto da faculdade, ela sentia que finalmente havia se encontrado. Não era como na escola, onde ela nunca se sentiu confortável, esse era o único lugar onde ela não sentia receio de falar e sobretudo de ser ouvida. Mesmo nos dias mais difíceis e nos textos mais chatos de Ciência Política, nunca odiou estar ali. Mas, se havia algo que ela odiava naquele lugar, era Lisboa.
Quando adentrou a sala do laboratório, ouviu risadas cessarem. Era sempre assim: se estivesse lá e ela chegasse, a graça ia embora. Ela ignorou e colocou sua bolsa na mesa com barulho. Cecilia não estava lá, então ela não precisou ser agradável.
- Bom dia - murmurou, sem muito ânimo. As respostas foram igualmente mornas. Ela tirou seu notebook da bolsa, bem como seu exemplar de Tristes Trópicos e seus fones de ouvido. se manteve distante dos demais estudantes. Cecilia tinha em seu laboratório de pesquisa uma exigência: queria que seus alunos trabalhassem em grupo e que ficassem na universidade. Como todos tinham boas bolsas de pesquisa, todos se dedicavam exclusivamente à pesquisa e, consequentemente, todos passavam boa parte de seus dias no campus. usava seus fones de ouvido para evitar conversas, mas os mantinha desligados para não perder nada do que fosse conversado. Ela era curiosa.
- Então, a Ceci mandou vocês escreverem juntos - disse Marina, uma doutoranda do laboratório bastante próxima de . Ambos eram historiadores e sempre riam das mesmas piadas e citavam os mesmos autores.
- É, pois é - respondeu , sem tirar os olhos da tela de seu tablet. Sua voz não expressava nenhum sentimento, mas pôde sentir o desprezo.
- E você vai? - Questionou Marina. tentou não parecer atenta à conversa, mantendo seus olhos na tela de seu computador e sua posição relaxada. deu risada.
- E eu tenho escolha? - Nesse momento, precisou de todo seu autocontrole para não gritar. Ela não queria se importar com o que eles estavam falando, mas isso era inevitável. A forma como falava e, principalmente, a forma como Marina riu fizeram a garganta de fechar. Ela não podia reagir ou então eles notariam que ela estava prestando atenção, então simplesmente abriu o Tumblr em seu navegador e começou a observar fanarts e outros memes bobos, sem sequer prestar atenção no que lia. Ela finalmente conectou os fones ao notebook e abriu o Spotify, abafando completamente a conversa de e Marina. Ela aguardou alguns minutos antes de se levantar e ir até a cafeteira comunitária e preparar um espresso. Ela não tirou os fones e nem falou com nenhum dos dois quando pegou o café; eles também não pareceram reagir ao movimento de . O sabor forte do café puro dominou os sentidos dela e era como se o corpo dela soubesse que era hora de focar: sempre estudou muito e sempre tomou café na mesma proporção. Havia criado o hábito com a avó, que lhe servia café desde os sete anos de idade, e nunca mais parou. Conseguia deixar o cigarro, mas nunca o café. Quando voltou ao seu lugar, no entanto, desejou que o espresso, em algum tipo de milagre bíblico, se transformasse em uma dose generosa de vodca. Na sua caixa de entrada do e-mail, um nome se destacava na única mensagem não lida. Isadora. então pensou que seu dia não podia piorar após ouvir o que tinha ouvido de seus colegas, então clicou no nome da ex-namorada.
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Espero que esteja bem. Estive em São Petersburgo recentemente e lembrei daquele livro que você me fez ler, Noites Brancas. Você ia gostar daqui. Ainda acho estranho estar trabalhando com balé aqui - sempre disseram que eu ia passar fome se continuasse com isso e tá sendo justamente o oposto. Acho que nunca te agradeci por ter me incentivado a aceitar o emprego. Obrigada, . De verdade.
Eu sinto sua falta e me preocupo com você. Você ainda está morando com o Otávio? Como está na pós? A Cecilia já está te transformando em uma mini versão dela mesma? Você ainda está se isolando de todo mundo? Lançou uma série nova de Star Wars, ouvi dizer. Você já deve ter assistido. Você ainda está dançando? Espero que não tenha saído das aulas - faz bem pra você, nós duas sabemos disso. E, pelo que sei, aulas de balé são ótimos lugares para dar uns beijos - até aqui. Talvez seja universal. Estava pensando, acho que vou te mandar um presente. Posso?
Com amor,
Dora
não conseguiu segurar o choro dessa vez. Ela deixou que as lágrimas gordas e quentes borrassem a maquiagem e escorressem por seu rosto e pescoço. Um dos maiores erros da vida dela - e ela estava ciente disso, era ter aceitado namorar com Isadora. Isso foi um erro não porque ambas tinham metas para a vida totalmente incompatíveis, ainda que passassem madrugadas planejando futuros impossíveis juntas, mas porque Isadora e eram melhores amigas. E no momento em que se tornaram namoradas, essa amizade passou a ter data de validade - era como se, no momento em que elas se apaixonaram, a amizade até então protegida entrasse em contato com o ar e seu prazo começasse a contar. A amizade delas estava no vácuo, sem sofrer agência do tempo ou do espaço e, no momento em que decidiram ficar juntas, a amizade saiu desse lugar além. O ar permitiu que a amizade se deteriorasse. E agora ambas estavam sozinhas.
- ? - Perguntou Marina, com uma mão hesitante no ombro da colega. tirou os fones de ouvido. - Tá tudo bem?
- Tudo - mentiu ela. Ambas sabiam que era mentira. não limpou as lágrimas pois isso arruinaria ainda mais sua maquiagem.
- Aconteceu algo? - Insistiu Marina, parecendo realmente preocupada. Como se não estivesse rindo de até poucos minutos atrás. As lágrimas não paravam de escorrer e gostaria de voltar no tempo e ignorar esse e-mail, mas agora pensava em Noites Brancas, em São Petersburgo e em todos os planos que fizera com Dora nos últimos anos. Ela pensava em como estava sozinha e não por estar solteira, mas por ter perdido sua melhor amiga - afinal, mesmo que ignorasse o passado romântico, Isadora ainda estava morando no outro lado do mundo e em uma rotina totalmente diferente. Ela estava realizando o sonho dela e sabia que não seria justo se colocar como um fardo. Tudo o que ela podia fazer era torcer de longe e curtir fotos no Instagram, desejando com todo seu coração que Dora fosse feliz.
- Minha namorada… ex-namorada, mandou algumas fotos de São Petersburgo e é tão lindo que senti vontade de chorar - respondeu . Marina assentiu de leve, sabendo que era mentira. Mas não perguntou novamente, e ficou grata por isso. movimentou-se, chamando atenção das garotas - ele saiu da sala, como se para dar privacidade. Ou como se não aguentasse todo o drama.
- , eu sei que não somos próximas, mas você não parece estar bem. Me desculpa se isso for intromissão, mas.. Podemos conversar, se você quiser.
Marina falou com tom de voz terno, como se estivesse mesmo preocupada. quis acreditar nela, quis acreditar que poderiam conversar e que finalmente poderia compartilhar um pouco dos sentimentos sufocantes que guardava dentro de si. Ela queria muito acreditar, mas lembrou do que ouvira apenas alguns minutos mais cedo.
- Obrigada, Marina, mas estou bem. Realmente, São Petersburgo parece ser um lugar lindo e só isso aconteceu. - Como se seu corpo tentasse dar sinal de que ela estava mentindo, seus olhos encheram-se novamente e ela voltou a chorar. Ela sentia falta de ter uma amiga, sentia falta de poder conversar com outra mulher que a entendesse, que aceitasse acompanhá-la na hora de beber cafés gelados superfaturados e que entendesse o porquê de fazer skincare. Os seus amigos mais próximos eram homens - amigos herdados de seu relacionamento com Isadora. , ainda que os conhecesse desde o ensino fundamental, só se tornou parte do grupo quando começou a namorar Dora. Com a mudança dela, ficou à deriva, quase como uma lembrança que Isadora tinha ido embora. Os meninos, especialmente Otávio, eram próximos de e eram amigos dela - mas eles também eram homens e, como tal, tinham conceitos diferentes do que é amizade. Ela sentia falta de uma amiga que soubesse a hora de assistir novamente Questão de Tempo usando máscaras faciais coreanas juntas. Ela sentia falta de uma amiga. E ela gostaria de confiar que Marina pudesse ser uma amiga, mas ela não conseguia, então se desvencilhou da colega e ofereceu um sorriso desanimado. - Obrigada e desculpa dar um susto em vocês. Pode avisar o que vou ficar quieta e ele pode voltar pra sala.
- Se você mudar de ideia, me avise - foi tudo o que Marina respondeu.
Antes
- Queridos, - começou Cecilia, já no final de uma longa tarde discutindo Ensaio sobre a dádiva, de Mauss - uma amiga de Oxford compartilhou comigo que há uma vaga de estágio em seu laboratório. Seriam dois ou três meses trabalhando com ela, tudo com bolsa. Essa vaga é aberta para estudantes de todo o Brasil, já que ela mesma estudou povos indígenas daqui do sudeste, mas aqui entre nós, ela pediu indicações para mim.
- Se a for participar eu não sei se devo tentar. Com as notas dela é injusto - disse Marina. Cecilia riu.
- Devo encorajar todos vocês, Marina. No final das contas, quem escolherá não será eu. O grupo se dispersou e estava radiante. Aquela era a oportunidade que sempre sonhou e que sabia que teria ao ser orientada por Cecilia Moraes-Witlin. Ela não precisou falar nada - a professora antecipou:
- Vou te encaminhar o e-mail para você aplicar. Confio em você, .
E esse era o jeito dela dizer que estava torcendo. Cecilia nunca lhe disse nada com palavras, mas sempre demonstrou o afeto que sentia por . E agora, mais do que nunca, a jovem precisava desse afeto. Havia apenas duas semanas desde o término - ainda vivia em um apartamento impregnado com o cheiro de Isadora. Estava difícil lidar com tudo, mas ela já conseguia controlar quando e onde chorar. Durante o dia, tentava se ocupar com todas as tarefas da vida adulta: mestrado, afazeres domésticos, busca por uma nova casa, aulas de idiomas, balé e todas as tarefas acadêmicas do grupo de pesquisa. Era só a noite, após o banho, que ela se permitia chorar. Era só a noite que ela olhava as fotos no Instagram, ainda no feed, com sua melhor amiga e namorada. Era só a noite que ela lembrava de como se apaixonar por Isadora tinha sido algo confuso e arrebatador. Como ela havia feito de tudo para negar que não era hétero, como havia feito inúmeros testes na internet tentando entender porque raios ela estava gostando tanto de beijar outra garota. Mas nada disso contava quando elas estavam juntas - fosse na aula de balé ou no quarto de Dora. Não importava quando os pais da “amiga” eram tão gentis e nunca lhe fizeram nenhum comentário desagradável. Não importou quando os próprios pais de amaram Dora logo de cara.
Elas haviam se formado na escola juntas e, enquanto se aventurava no meio acadêmico, Isadora começou a dançar profissionalmente. Era uma excelente bailarina e tinha um futuro promissor. O plano era que aplicaria para vagas de doutorado internacionais e Dora tentaria entrar em uma companhia de dança na Europa. Elas se mudariam juntas e viveriam seus sonhos juntas. E tudo estava dando certo - fora aprovada no mestrado na USP, como planejava, e Dora estava tendo cada vez mais destaque nas apresentações. Até que em uma série de desventuras, Isadora saiu de casa com calma em uma terça-feira normal. Ela só se deu conta que tinha esquecido seu par favorito de sapatilhas quando já estava na estação de metrô e, em vez de simplesmente aceitar a distração e usar o outro par que estava sempre em sua bolsa, ela decidiu voltar para casa. Estava chovendo e ela estava com pressa. Ela subiu as escadas - o prédio antigo onde moravam não tinha elevador - correndo como já havia feito inúmeras vezes desde que se mudaram. Mas estava chovendo e ela estava com um tênis bonito mas não prático. Isadora subiu as escadas correndo e a sola lisa e molhada do sapato, ao pisar em falso, a derrubou. E de todos os infortúnios que poderiam resultar de um acidente como este, o pior aconteceu: Isadora quebrou o pé. E essa foi a primeira rachadura do relacionamento das duas.
Marina saiu da sala, deixando sozinha com seus pensamentos. O ar parecia pesado, viciado, e era difícil respirar. Ela não sabia se era pelo e-mail ou pela conversa de e Marina que ainda ecoava em seus ouvidos. Ela se concentrou em respirar fundo porque estava sem ar - podia sentir cada uma das batidas de seu coração acelerado em seu ouvido. Tentando focar em sua respiração, ela fechou o notebook e tirou os fones de ouvido, inclinando a cabeça e respirando fundo repetidamente, com os olhos fechados para evitar embaralhar ainda mais seus sentidos. Ela não conseguia respirar e sentia presa, com frio e como se seus músculos estivessem se soltando dos ossos; sua cabeça estava girando, pensando em tudo que poderia acontecer, em como ela estava fadada a ser sozinha e falhar, em como havia falhado com Dora e falharia com qualquer outra pessoa que ousasse se aproximar, como falharia em sua carreira e viveria para sempre na frustração de não ter conseguido nada; suas mãos tremiam e mesmo que estivesse cerca de 27° graus lá fora, ela tremia de frio e tentava se abraçar como que para impedir seu corpo de colapsar; em sua cabeça ela só pensava como era uma falha, como sempre falhou e como sempre falharia: você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir. Você não conseguiu, você não vai conseguir. Ela chorava copiosamente e nem era mais pelo e-mail de Isadora, mas sim porque isso fez com que o castelo de cartas que ela lutava constantemente para manter firme desabasse. Ela chorava e tentava respirar, sentia cada uma das batidas de seu coração e sofria por inúmeras possibilidades e caminhos que sua vida poderia tomar. Aquilo doía como cortes de papel e a deixava confusa, ela não conseguia ver as coisas com clareza e sequer conseguia respirar. Seu foco em respirar era tão grande que ela não ouviu ou percebeu que não estava mais sozinha até sentir uma mão em seu ombro.
- Marina… Tá tudo bem - ela sussurrou, ainda de olhos fechados. Ainda tentando controlar sua respiração.
- Não parece - mas não era Marina falando. abriu os olhos e encontrou com uma expressão que parecia preocupada. Ela gostaria de ter forças para responder ou só mandar ele sair de perto dela, mas só conseguiu suspirar. A ansiedade lhe tirava todo o controle e esse sentimento só a deixava mais ansiosa. pareceu reparar o que estava acontecendo, porque pegou a garrafa de água de , que estava em cima da mesa, abriu e entregou para ela. Ela deu alguns goles com dificuldade, grata por ele não ter estragado tudo com alguma piada ou comentário irônico. - Você precisa de algo?
Ela fez que não com a cabeça. Ele ficou parado em frente a ela, como quem não sabe - ou não tem - o que fazer. Ela ainda respirava forte, com a cabeça baixa. Ele segurou o queixo dela, inclinando sua cabeça de leve e então tirou uma mecha de cabelo do rosto dela. Eles se olharam pelo que pareceram horas. O coração de estava acelerado.
- Obrigada pela água - respondeu ela, evitando o olhar dele e se desvencilhando de sua mão. Ele riu seco e respondeu:
- Olha só, já está de volta ao normal.
se levantou e deixou tudo como estava, pegando apenas uma necessaire na bolsa, partindo direto para o banheiro mais próximo. Ela sentiu vergonha de seu estado ao se olhar no espelho - a maquiagem dos olhos havia se espalhado pelo rosto e seu batom estava manchado. Ela cuidadosamente limpou a face com lenços de papel, tentando evitar que as lágrimas continuassem rolando. Seu ritual de retoques começou com corretivo, pó facial, delineador e máscara para cílios. Ela substituiu o batom nude por um vermelho. Certa vez na adolescência, levou um fora de um garoto mediano e aquilo pareceu o fim do mundo. No entanto, quando ela decidiu ir para a escola após faltar por dois dias - ela nunca havia estado tão devastada -, vestiu leggings e moletom e, quando sua mãe a viu, disse:
- Ninguém precisa saber que hoje você não está se gostando tanto, - E assim fez com que a filha voltasse para o quarto e arrumasse roupas melhores para ir à escola. Aquele não foi o fim do mundo e tampouco o dia mais triste de sua vida, mas a lição ficou. O batom vermelho era seu super-poder. Quando estava tudo dando errado, aquele batom lhe dava forças para lembrar que ela estava no controle. Que ela era incrível, Que ela era forte. Ou pelo menos a ajudava a fingir que acreditava nisso.
Antropologia é absurdamente difícil, caro colega. E é também a ciência mais incrível que existe. Há quem diga que é a Psicologia que tenta compreender o ser humano, mas eu acredito que sem a Antropologia eles não chegariam muito longe. Antropologia é difícil pra caralho porque pessoas são difíceis pra caralho. Veja bem: sou antropóloga, teoricamente eu deveria entender completamente a sociedade e saber exatamente como me encaixar - mas as regras são tão complexas que mesmo estando ciente de cada uma delas ainda me pego tentando me fazer caber em cada uma das caixas que nos são impostas. Entender as pessoas é difícil demais porque somos complexos, uma mistura heterogênea de nosso contexto e de nossa percepção do mundo. Eu sou feita de seja lá o que constitui uma mulher no Ocidente, no Brasil, em São Paulo e por aí vai; sou feita das minhas experiências, expectativas e sonhos. Sou feita do que foram feitas todas as mulheres que vieram antes e tento não ser. Não há absolutamente nada de natural em mim, ou em você - somos emaranhados de acúmulos dos que vieram antes. Somos cientistas que não podem isolar seu objeto de estudo no laboratório. Não é preto ou branco - são todas as cores do mundo, e nós somos tolos o bastante para tentar compreender isso.
Quando voltou para o laboratório, Marina e trabalhavam em silêncio. Ela voltou ao seu lugar, que permanecia intocado, e abriu novamente o computador. O e-mail de Isadora continuava ali, então ela o fechou e abriu o arquivo da sua dissertação. Haviam algumas considerações, comentários e correções de Cecilia no documento e ela focou em cada um deles, anotando referências sugeridas e sublinhando as partes que deveriam ser aprofundadas. Seu trabalho era promissor - ela sabia disso desde o primeiro rascunho - e por isso estava levemente atrasado. Segundo seu cronograma, no quarto trimestre ela já deveria ter pelo menos ⅓ do desenvolvimento, pelo menos o referencial teórico. Acontece que, com o término ela havia perdido um pouco de seu foco e agora estava precisando correr atrás do prejuízo. Ela precisava de bons resultados na qualificação para que seu estágio em Oxford fosse perfeito, pois só assim conseguiria aplicar para o doutorado lá.
escreveu por horas seguidas, parando apenas para pegar mais um café e esticar as pernas e costas no processo. Em certo momento, Marina a convidou para ir almoçar no bandejão, mas ela negou. Para a escrita de incríveis dez páginas, o combustível de foram vários cafezinhos e cerca de 1,5l de água. Marina e foram e voltaram do almoço e ela continuava escrevendo, de forma quase obsessiva. Ela não podia falhar. Eram quinze para as quatro da tarde quando ela se levantou e pegou a carteira
- Vou na Tia Bia. Vocês querem algo? - Perguntou como que para retribuir a preocupação de mais cedo.
- Se você puder me trazer uma paçoquinha, eu te faço o pix - disse Marina. negou e agradeceu. - Acho melhor trazer seis, na verdade.
- Certo - murmurou , saindo da sala e indo até o quiosque que ficava entre o prédio das Sociais e das Letras. Aquele também era um ponto muito interessante da FFLCH: era onde professores de terno se sentavam com os mesmos copinhos de café que os alunos vestidos com camisetas de entidades políticas das várias chapas que compunham o movimento estudantil. Ela entrou na fila e pediu as seis paçocas de Marina e sua Coca Zero. Pensou em pedir um dos salgados, mas desistiu. Ela já não conhecia mais os vários estudantes que ficavam ali nos intervalos e essa era uma sensação estranha. Era como se estivesse há tempo suficiente para conhecer cada canto da Universidade, mas esta estava sempre mudando, sempre impedindo que fosse desvendada por completo. pagou os itens e voltou para a sala desejando não ouvir nenhuma conversa dos colegas e realmente os encontrou em silêncio, focados em suas respectivas tarefas. Ela entregou as paçoquinhas para Marina.
- Ficou seis reais - disse. - Meu pix é 9…
- Eu tenho seu telefone salvo, - Marina riu e isso deixou confusa. Ela não tinha o telefone de Marina salvo.
- Ah, ok - disse ela, tomando um longo gole de refrigerante.
Marina sorriu e dividiu as paçocas em três duplas:
- Pra você - entregou para . - Pra você - entregou para . - E para mim.
Quando fez menção de devolver, Marina fez que não e deu uma piscada. estava genuinamente confusa e sentiu que eles estavam com pena dela, o que deixou tudo pior. Mas ela não disse nada.
- Paçoca é o doce mais universal, sabe - disse Marina - Agrada a gregos e veganos.
riu do trocadilho.
- Bom, obrigada, Marina. E desculpa por… desculpa. - Disse , ainda perplexa com os eventos do dia.
- Paçoca não resolve os problemas, mas não tem nada que um docinho não deixe melhor. Só ver o . Até esse cara chato dá uma risadinha com piada se tiver um docinho perto.
não reagiu. Marina continuou rindo, sozinha. Estava tudo muito aquele dia - a súbita mudança de Marina, que pela manhã estava rindo de e agora estava rindo com ela. sequer tinha feito qualquer tipo de comentário desagradável. Talvez o universo tivesse dado uma trégua após tantas humilhações em um curto espaço de tempo. voltou ao seu lugar, ainda bebendo sua Coca Zero pelo canudo, e guardou as paçocas em seu estojo, observando-as por um tempo e estudando a embalagem, pensando se valeria a pena consumir as 101 calorias que havia em cada uma das paçoquinhas. Ela tentou lembrar do sabor doce e ligeiramente salgado do amendoim e da textura engraçada. Aquilo bastou, e ela se pegou pensando na mensagem que tinha escrito de volta para seu colega anônimo que também estava emprestando Tristes Trópicos. Ela não sabia se o remetente sequer receberia a mensagem, mas se empolgava com a ideia de conversar com alguém de forma anônima - a possibilidade de ser honesta, sem medo de julgamentos e sem reservas lhe atraía desde sempre, afinal, esse era o ônus de ser perfeita - ou próximo disso: era incapaz de demonstrar suas fraquezas ou até mesmo admiti-las. Ela não tinha ninguém para quem dizer que estava morrendo de medo de não conseguir ser bem-sucedida na qualificação. Ela não tinha para quem dizer que repensava constantemente se era boa o suficiente para a carreira acadêmica. Ela não tinha para quem dizer que estava apavorada com a ideia de ser reprovada para o estágio em Oxford porque isso significaria que ela não era desejável romanticamente e nem profissionalmente. Ela não tinha ninguém para conversar porque desde sempre só mostrou aos amigos sua face confiante e até ligeiramente arrogante e, se ela admitisse essas fraquezas, eles poderiam descobrir que ela não é perfeita. E ser perfeita, a menos aos olhos dos outros, era a única coisa que a motivava a continuar.
Continua...
Nota da autora: Olá! Esse foi um capítulo bastante denso emocionalmente apesar de não ter plot. Para começarmos, o nome desse foi inspirado na etnografia de Bruno Latour, que estudou… cientistas em seu ‘habitat’ natural! Além disso, quis mostrar também um pouco mais do que se passa na cabecinha da nossa protagonista - pensei em narrar por outros pontos de vista, mas aí estragaria a surpresa.
Foi bastante fácil (por experiência pessoal, infelizmente) escrever esse capítulo e fiquei pensando se deveria ou não colocar as cenas tão descritivas, mas isso está avisado na classificação indicativa da história e não está aqui “de graça”, então optei por colocar. Se você se identificar com esses sentimentos, talvez seja melhor conversar com alguém e procurar ajuda profissional. Espero que tenham gostado.
Com amor,
Nina D.
Nota da beta: Gente... A vida no laboratório não é fácil. Tô com o coração doído pela nossa Natalie :c
Foi bastante fácil (por experiência pessoal, infelizmente) escrever esse capítulo e fiquei pensando se deveria ou não colocar as cenas tão descritivas, mas isso está avisado na classificação indicativa da história e não está aqui “de graça”, então optei por colocar. Se você se identificar com esses sentimentos, talvez seja melhor conversar com alguém e procurar ajuda profissional. Espero que tenham gostado.
Com amor,
Nina D.
Nota da beta: Gente... A vida no laboratório não é fácil. Tô com o coração doído pela nossa Natalie :c
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