Me encontre na bilbioteca

Última atualização: 07/04/2024

Parte I: Tristes Trópicos
Prólogo

A ignorância é, de fato, uma benção. E ser formado em uma área de ciência pura é a pior das maldições. Os cinco anos dos cursos servem para que você conheça o mundo, de forma aprofundada, em todos os seus piores detalhes e que tal visão nunca mais saia de sua mente, como óculos que te obrigam a encarar todos os pormenores da realidade. E a realidade é uma desgraça - na maioria das vezes, pelo menos. , como cientista social, estava ciente que o amor é uma construção social, muito mais do que é uma reação química. Sim, liberação de hormônios e isso altera nossa percepção sobre as coisas, mas o amor também é construído e cultivado socialmente. O amor não é uma necessidade fisiológica como se hidratar ou dormir, mas um luxo social que nos é oferecido e o qual não conseguimos recusar. Mas Natalie tentaria.
Estúdios de balé são uma instituição tão prolífica para o desenvolvimento de relações sáficas como as escolas católicas só para meninas. É claro que este não foi o objetivo quando sua mãe lhe insistiu que começasse a ter aulas de dança e Natalie levou um tempo até perceber que sua timidez no vestiário não era puramente timidez. Também lhe exigiu muita dedicação para tentar se convencer que beijar outra garota não significava nada, já que boca era boca e, portanto, não haveria diferença. Era isso que ela dizia para si mesma toda vez que entrava no metrô após sua “prática” com Isadora, 30 minutos depois do fim da aula. Era nisso que ela tentava acreditar após comprar o seu próprio hidratante labial sabor cereja - o sabor de seu treino com Dora. Foram meses disso, até uma pesquisa no Google e fotos discretas no Instagram, que levaram Natalie a compreender que para ela, sim, boca era boca e gênero não faria diferença. Nisso, quase seis anos se passaram e as duas cresceram juntas. Quando Dora foi promovida para um cargo na Rússia, Natalie soube que seus caminhos se separariam ali.
Ela tentaria pensar no amor como construção social e, mais especificamente, no seu amor como uma variação da propaganda hollywoodiana do que é amar. E focar em sua dissertação, pois isso possibilitaria ela chegar onde sempre quis. Ela seria a maior referência em Antropologia e construiria uma carreira na academia que supriria todos os seus desejos; ela seria alguém que não precisa ser apresentada. Isso, é claro, se ela conseguisse emprestar o único exemplar de Tristes Trópicos disponível na biblioteca. Após algum tipo de acidente envolvendo garrafas de água de dois litros, todos os exemplares do livro de Lévi-Strauss disponíveis na biblioteca foram perdidos - exceto por um: o que estava sob guarda de Natalie. É claro que, passados os dez dias de empréstimo, já havia uma longa lista de usuários esperando para pegar o único exemplar sobrevivente. Sendo uma universidade pública, levaria tempo até que a reitoria pensasse em substituir obras perdidas de Ciências Sociais, portanto, Natalie estava sendo obrigada a dividir o livro com outros vários alunos anônimos. Infelizmente, agora, ela sabia bem quem estava com o livro: Lisboa, seu colega de laboratório e o mais próximo de obstáculo que uma pessoa pode ser.
Talvez soe infantil para uma mulher adulta eleger um rival, mas se aproximava disso. A entrada de ambos no grupo de pesquisa foi algo inédito na história do laboratório: além do nível de exigência dos professores responsáveis, todos os pesquisadores deveriam estar, no mínimo, no mestrado. Até que Natalie resolveu ser ousada e aplicar para uma vaga inexistente - mas ela não foi a única. Naquele ano, dois alunos da graduação ousaram tentar entrar no grupo que lhes garantiria uma carreira acadêmica brilhante e talvez tenha sido essa ousadia que lhes garantiu um espaço no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura. , assim como ela, entrou no laboratório ainda como aluno de iniciação científica e, desde então, eles competiam silenciosamente por oportunidades oferecidas pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das maiores antropólogas da atualidade e orientadora de Natalie e . A sala do laboratório era ricamente mobiliada - anos de financiamento das pesquisas de Cecilia - e um bom espaço de estudos que, infelizmente, era compartilhado, na maioria das vezes, por Natalie e .
- Quando você vai devolver o livro? - Pergunta Natalie, espalmando a mão sobre o caderno de . - Eu preciso dele.
O rapaz olhou para ela com um sorriso. Os cabelos castanhos estavam grandes, quase no ombro, ondas macias sobre a testa dele. Sua expressão era despreocupada - ele adorava agir dessa maneira quando via Natalia estressada. Ele se levantou, ligeiramente mais alto que ela e aproximou-se do seu rosto.
- Quando eu terminar de usar, - começou ele, sussurrando - a biblioteca entrará em contato com a próxima pessoa na lista de espera. E assim por diante, até chegar em você, linda. Relaxa.
Natalie pousa a mão sobre o peito dele, tamborilando com os dedos levemente antes de afastar-se o empurrando. Ela evita pensar em como ele, apesar de tudo, é atraente.
- Por que você não usa um PDF? - Pergunta, de costas para ele.
- Eu posso te perguntar o mesmo. - Replica ele, se divertindo com a impaciência dela.
- Você pode se divertir o quanto quiser - começou ela, falando sério como se sua vida dependesse disso -, mas sou eu quem vai fazer o estágio em Oxford.
- Sim, é claro que vai - respondeu ele, ainda com o sorriso no rosto. O que ela não sabia é que ele foi sincero.

1. Formas elementares da vida universitária

Resumo: O presente capítulo tem por objetivo compreender a vida cotidiana de uma jovem adulta de 24 anos, seus círculos sociais (decadentes), sua vida amorosa (inexistente) e suas percepções sobre o mundo (pessimistas). Através de uma pesquisa de observação participante, pôde-se concluir que, apesar de estar convicta de que está enlouquecendo, ela é apenas uma mulher de vinte e poucos anos.
Palavras-chave: Término; Fracasso; Vida adulta;


Desde o término com Isadora, a vida dela estava uma bagunça. O apartamento que dividiam foi devolvido para o proprietário e isso fez com que fosse ser hóspede no sofá de Otávio, um colega do ensino médio. Ele já morava sozinho na Bela Vista, trabalhava em um escritório de advocacia cuja clientela era a elite paulistana e era o tipo de homem que mulheres de quarenta anos incentivam mulheres de vinte anos a “investir”. Depois de quinze dias, ela perguntou se não poderia pagar metade do aluguel ou algo do gênero - e esse arranjo se mantinha havia quase um ano. Talvez Otávio sentisse pena - como todos os demais amigos-adultos de - após o tragicômico término. Tragicômico, porque ninguém nunca acreditou de primeira; sempre havia risadas, aquele olhar de “ah, ! Você é tão boba!” e aí, quando a expressão dela continuava impassível - afinal, a sua namorada havia mesmo se mudado para Moscou -, as pessoas ficavam sem graça e sentiam muito. Ao menos, agora ela possuía um quarto todo seu, onde podia provar cinco combinações diferentes de roupas antes de ir para a aula - como se fosse a Elle Woods antropóloga, para disfarçar que estava perdida na vida.
Ela estava em busca de um apartamento para si, possivelmente para dividir com mais pessoas, mas a vida do cientista é dura. Apartamentos perto da faculdade não eram baratos e, quando havia um bom negócio, era quase um caso à la Jogos Vorazes para conseguir fechar contrato. Era por isso que estava esperando a máquina terminar o café para si mesma, para Otávio e uma garota que estava passando várias noites por lá. Uma outra grande razão para permanecer sendo colega de quarto de um advogado e frequentador de academia é que ela estava guardando cerca de 90% de seu pagamento para auxiliar na mudança para Oxford.
- Então, você faz pesquisa - comentou a jovem loira. Ela tinha cara de alguém que frequenta beach tênis e vai para Campos de Jordão em feriados. - Mas só faz isso ou também trabalha?
- Esse é meu trabalho - respondeu , pegando seu café sem esperar pela resposta.

*


Quatro anos antes

era uma das melhores alunas do curso de Ciências Sociais. Ela sabia disso por seu histórico escolar impecável e também porque os professores a conheciam. Eles lembravam seu nome e lhe ofereciam vagas de monitoria ou em grupos de pesquisa. Desde a semana de recepção de calouros, ela sabia: seria não apenas orientada, mas mentorada pela Dra. Cecilia Moraes-Witlin, uma das mais importantes antropólogas da atualidade e sua maior inspiração. É claro que, de todos os professores, Cecilia foi a única que nunca ofereceu nada para - apenas uma mensagem “bom trabalho” em um artigo desenvolvido em Métodos de Pesquisa em Antropologia. E é claro que isso foi a motivação perfeita para entrar no seleto grupo de orientandos de Moraes-Witlin. A garota, em seu terceiro ano de graduação, levou um mês escrevendo uma carta de apresentação e um projeto de pesquisa refinado, os quais enviou para a professora às três da tarde de uma quarta-feira. No mesmo dia, a resposta:

Cecilia Moraes-Witlin
para mim
RE: Candidatura para pesquisa de Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura

,

Me encontre na minha sala na próxima segunda-feira, às 15h10.

Cordialmente,

Cecilia

Naquele dia, tomou cerca de um litro de Coca Zero para comemorar e sequer conseguiu focar na aula. Ela mandou uma mensagem para Isadora, que possivelmente estava trabalhando, contando que a professora tinha sugerido uma reunião. Dora não havia entendido qual era a questão da reunião (“Mas tipo… Qual é a grande coisa de responder um e-mail?” disse ela, certa vez), mas ficava empolgada de ver a namorada feliz - ainda que o ânimo e a motivação para normalmente fossem obsessivos e ligeiramente autodestrutivos.
Os dias passaram como se o mundo estivesse em slow-motion enquanto era a mulher mais rápida do mundo. Independente da quantidade de vezes que Dora tenha sugerido que fossem fazer um brunch ou que fossem dançar ballet, a ansiedade fazia com que todas as sugestões fossem ignoradas. Isadora fingia que não percebia enquanto fingia que disfarçava que vinha fumando. Eram pelo menos três canecas de café por hora, acompanhadas de três cigarros. Na noite de domingo para segunda, nenhuma das duas dormiu, já que a ansiedade de era quase palpável - Dora tentou episódios de New Girl, pizza e sexo. Nenhuma das opções surtiu efeito na ansiedade. No banho, praticava sozinha e em voz alta o que diria para a professora. Seus pensamentos ansiosos ultrapassavam todos os limites da coerência e enquanto comiam pizza, ela perguntou:

E se ela souber que no primeiro ano da faculdade eu confundi as palavras e minha fala soou como se eu achasse que há uma hierarquia de culturas mais ou menos evoluídas?

Acabou que, na realidade, Cecilia já estava bastante impressionada com , e não só por seu histórico excelente: só o fato de ter escrito uma carta que alguns poderiam classificar como arrogante foi o suficiente para causar curiosidade na professora. A ideia de pesquisar o próprio departamento de Antropologia também foi apreciada e assim tornou-se a primeira aluna de graduação no Laboratório coordenado por Cecilia. Exceto que não foi. No mesmo mês, Lisboa, um aluno quase tão destacado quanto ela, resolveu sair do departamento de História para entrar no mesmo laboratório de pesquisa que ela. E, além de tudo, com um tema de pesquisa semelhante. E simpático. Não ser a primeira tinha destruído a autoestima de , mas ver como ele logo se aproximou de todos os membros do laboratório enquanto ela era incapaz de interagir senão em grupos de estudos a deixou com ódio em sua forma mais pura. E a questão é que sabia que havia algo de errado com ela. A ansiedade social lhe paralisava e, apesar de ela estar vivendo tudo que sempre sonhou, ainda era difícil passar o dia todo interagindo com desconhecidos, especialmente quando ela era a graduanda “quietinha”, sempre comparada com o simpático e extrovertido . E não ajudava em nada reparar como alguns dos outros pesquisadores do laboratório sempre riam dela quando ele se aproximava.
Ele, é claro, havia sido simpático com ela. tinha pins de Star Wars em sua mochila e ela já havia ouvido ele dizer que as prequels eram subestimadas. Ele havia puxado assunto quando viu lendo em seu kindle e ela respondeu monossilábica. Ela também nunca aceitou a solicitação dele para segui-la no Instagram, apesar de ter passado alguns minutos stalkeando o perfil dele. Ela jamais admitiria isso, mas observou cada uma das fotos com atenção, quase sofrendo porque jamais seriam amigos. Ela não podia confiar - não se quisesse sobreviver e conquistar seus objetivos. A academia era um ambiente altamente competitivo e não havia espaço para confiança - especialmente confiança em homens. Então, enquanto conquistou todos no laboratório com suas piadas e sorriso constantes, permaneceu reclusa, conversando apenas com duas alunas do mestrado que também tinham contas no Tumblr. E, ironicamente, e viveram inúmeras experiências similares sem trocar muitas palavras: ambos foram contemplados com bolsas de Iniciação Científica, ambos apresentaram textos no grupo de estudos quinzenal, ambos apresentaram suas pesquisas no Simpósio de Iniciação Científica da USP, ambos escreveram artigos e foram publicados. Ambos se candidataram ao processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Ambos passaram. à frente, claro, com a inacreditável média 9,8.

Agora

Havia um mês desde que havia aplicado para uma vaga de estágio em pesquisa no Departamento de Antropologia da Universidade de Oxford - uma das melhores do mundo na área. tinha o histórico, as cartas de recomendação e o currículo perfeito; ela havia nascido para esse estágio. Ela era a candidata perfeita e sabia disso. Por isso a demora na resposta a deixava tão ansiosa. Todo o ponto do estágio em Oxford durante o mestrado era fundamental para que ela conhecesse o departamento e aplicasse para uma vaga de doutorado no Reino Unido. Não havia mais nada para ela em São Paulo, então não havia motivo para não arriscar - na melhor das hipóteses, ela seria parte de um dos departamentos de Antropologia mais respeitados do mundo.
- Eles irão te enviar a resposta por e-mail - disse a professora. Seus olhos eram azuis e ela parecia sempre estar encarando a todos como Medusa encara suas vítimas. Cecilia Moraes-Witlin era uma ótima orientadora e bastante gentil com todos os seus alunos, mas em seus olhos não havia sequer um pingo de doçura. - Não tem muito o que fazer além de esperar. Também estou ansiosa, . Meus dois melhores alunos estão dando seus primeiros passos para construir uma carreira internacional e, querendo ou não, isso influencia na minha carreira também. Eu entendo sua ansiedade, acredite. Mas você precisa ter paciência.
Paciência. Só a menção dessa palavra já fazia querer revirar os olhos. Apesar de sempre se divertir explicando para Cecilia porque a relação de ambas era claramente similar com a dinâmica dos mestres Jedi e seus padawans, odiava quando o ensinamento era sobre paciência e desapego - ansiedade não é o jeito Jedi, afinal.
- Será que tem algo errado no meu currículo? Eu me certifiquei de enviar tudo certo. Não tenho nenhuma nota menor que 9,5 nas disciplinas do mestrado. E minha pesquisa é bastante próxima das linhas de pesquisa que a Dra. Olive orienta.
- , não há nada de errado. Se concentre em escrever sua dissertação. Você precisa dela pronta para começar um projeto de doutorado. - Cecilia diz, com um tom calmo e firme. Ela toma um gole de seu café antes de retomar. - Na realidade, você sabe que o está desenvolvendo um trabalho muitíssimo interessante sobre Antropologia no Brasil. Mas ele não é antropólogo de formação e eu pensei em vocês escreverem um paper juntos. Acho que seria bastante produtivo para o laboratório e para vocês, claro. Conseguiríamos publicar em alguma revista grande para complementar o currículo de vocês dois e também colocar seus nomes no radar.
A cada palavra que ouvia, sua unha do dedo indicador cutucava com mais força as cutículas do polegar direito. Ela sentiu quando começou a sangrar e ainda assim não conseguiu parar. Ela não poderia colaborar com a pesquisa de Lisboa. Mas tampouco poderia dizer não para Cecilia. Ela precisou de muita concentração para dizer:
- Claro, isso seria ótimo.

***


O “incidente Lévi-Strauss”, como se habituou em chamar, havia acontecido há cerca de um mês. Um vazamento de água na biblioteca fez com que todos os exemplares de “Tristes Trópicos”, uma das mais importantes obras da Antropologia, fossem perdidos. Havia na faculdade todo um esforço para doação de novos exemplares até que a Universidade adquirisse novos livros, mas até então havia apenas um livro em toda a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - graças à . Se ela não tivesse renovado seu empréstimo pela terceira e última vez, a Biblioteca Florestan Fernandes não teria mais nenhuma edição em português dessa obra de Lévi-Strauss. Ela gostava de pensar que era uma espécie de heroína anônima da Antropologia - mas isso, infelizmente, não lhe rendia privilégios nos empréstimos. Com a escassez de edições, o livro salvo por ela estava atendendo a toda a demanda de graduandos, pós-graduandos e professores da faculdade. Por isso que ao receber o e-mail avisando que poderia pegá-lo na biblioteca, ela foi correndo.
- Oi! Vim pegar o Lévi-Strauss! - A piada não foi intencional, mas sentiu-se satisfeita por ter feito a estagiária rir.
- A devolução fica para daqui vinte e um dias, tá? Por conta da demanda, você não vai poder renovar.
- Não tem nenhuma previsão de quando vão ter novas edições? Essa aqui já está nas referências da minha dissertação e eu não acho nenhum PDF.
- Não, infelizmente ainda não. Em uma situação normal, eu faria uma digitalização pra você, mas esse livro mal para aqui no balcão.
- Relaxa, não se preocupa! Muito obrigada. - E era essa a vantagem de ser uma rata de biblioteca e simpática com os estagiários. Os bibliotecários e bolsistas de apoio da Biblioteca sempre a ajudaram. Sempre. Às vezes, ela se perguntava porque não conseguia ser assim com qualquer pessoa. Por que algumas pessoas são tão mais difíceis de interagir? Como ela conseguiu conquistar os bibliotecários mas nunca os colegas de laboratório?
Em viagens de campo, normalmente fazia tudo sozinha. É claro, havia uma certa separação de tarefas - como em qualquer laboratório, mas sua interação com os demais pesquisadores se encerrava junto do expediente. Na tradicional pizza de final de ano organizada por Cecilia, eram poucos os que conversavam com - e ainda assim, não haveria conversa se o tópico “trabalho” fosse banido da mesa. Ela tentava ignorar que sabia que os demais orientandos de Cecilia nunca sequer tiveram interesse em se aproximar dela. E, de alguma forma, ela sabia que era culpa de Lisboa.
Saindo do prédio, aproveitou o intervalo até a reunião de seu grupo de estudos para tomar sol em um dos bancos dispostos na frente da biblioteca. Era sempre uma experiência calmante ficar sentada perto daquele gramado, observando os demais alunos, encontros inesperados, casais e amigos vivendo. sempre gostou de observar os outros, como se eles estivessem vivendo e ela fosse uma narradora que vê e comenta sem participar. Isso foi o que mais lhe atraiu na Antropologia foi a possibilidade de observar, participar e teorizar sobre as pessoas, mas não de uma forma relaxada e sim com todo o rigor científico. queria entender as pessoas, que na maioria das vezes, lhe pareciam um mistério. Numa multidão, era uma cientista em seu laboratório.
Ao abrir o livro, encontrou uma folha de bloco de notas pautada com um monte de anotações, provavelmente de um dos muitos alunos com quem ela vinha dividindo Tristes Trópicos. Há uma série de páginas anotadas, sinalizando possibilidades de citações e dúvidas pontuais. O que chamou sua atenção, no entanto, foi a pergunta na margem do papel:

Não sei se alguém vai ver isso - mas por que a Antropologia é tão incrível e tão difícil pra caralho?

E então pegou em sua bolsa um bloco de post-its cor de rosa e uma caneta. E escreveu.

2. A vida de laboratório

Aviso de gatilho: crise de ansiedade e transtornos alimentares. Leia com cuidado.
Resumo: O presente artigo trata-se de uma breve etnografia do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Cultura, tendo por objetivo apresentar a organização social e aspectos culturais desse grupo. O foco aqui estará nas relações sociais que se dão no âmbito do grupo de pesquisa, enfatizando sobretudo a relação entre Cardoso e Lisboa, pesquisadores de pós-graduação que, apesar dos interesses similares, parecem ser incompatíveis.
Palavras-chave: Rivalidade; Desconfiança; Paçoca

nunca se sentiu tão confortável em um lugar antes como se sentia na universidade. Desde seu primeiro dia de aula como caloura de Ciências Sociais ela soube que aquele era seu lugar; mesmo que seus amigos não entendessem como ela gostava tanto da faculdade, ela sentia que finalmente havia se encontrado. Não era como na escola, onde ela nunca se sentiu confortável, esse era o único lugar onde ela não sentia receio de falar e sobretudo de ser ouvida. Mesmo nos dias mais difíceis e nos textos mais chatos de Ciência Política, nunca odiou estar ali. Mas, se havia algo que ela odiava naquele lugar, era Lisboa.
Quando adentrou a sala do laboratório, ouviu risadas cessarem. Era sempre assim: se estivesse lá e ela chegasse, a graça ia embora. Ela ignorou e colocou sua bolsa na mesa com barulho. Cecilia não estava lá, então ela não precisou ser agradável.
- Bom dia - murmurou, sem muito ânimo. As respostas foram igualmente mornas. Ela tirou seu notebook da bolsa, bem como seu exemplar de Tristes Trópicos e seus fones de ouvido. se manteve distante dos demais estudantes. Cecilia tinha em seu laboratório de pesquisa uma exigência: queria que seus alunos trabalhassem em grupo e que ficassem na universidade. Como todos tinham boas bolsas de pesquisa, todos se dedicavam exclusivamente à pesquisa e, consequentemente, todos passavam boa parte de seus dias no campus. usava seus fones de ouvido para evitar conversas, mas os mantinha desligados para não perder nada do que fosse conversado. Ela era curiosa.
- Então, a Ceci mandou vocês escreverem juntos - disse Marina, uma doutoranda do laboratório bastante próxima de . Ambos eram historiadores e sempre riam das mesmas piadas e citavam os mesmos autores.
- É, pois é - respondeu , sem tirar os olhos da tela de seu tablet. Sua voz não expressava nenhum sentimento, mas pôde sentir o desprezo.
- E você vai? - Questionou Marina. tentou não parecer atenta à conversa, mantendo seus olhos na tela de seu computador e sua posição relaxada. deu risada.
- E eu tenho escolha? - Nesse momento, precisou de todo seu autocontrole para não gritar. Ela não queria se importar com o que eles estavam falando, mas isso era inevitável. A forma como falava e, principalmente, a forma como Marina riu fizeram a garganta de fechar. Ela não podia reagir ou então eles notariam que ela estava prestando atenção, então simplesmente abriu o Tumblr em seu navegador e começou a observar fanarts e outros memes bobos, sem sequer prestar atenção no que lia. Ela finalmente conectou os fones ao notebook e abriu o Spotify, abafando completamente a conversa de e Marina. Ela aguardou alguns minutos antes de se levantar e ir até a cafeteira comunitária e preparar um espresso. Ela não tirou os fones e nem falou com nenhum dos dois quando pegou o café; eles também não pareceram reagir ao movimento de . O sabor forte do café puro dominou os sentidos dela e era como se o corpo dela soubesse que era hora de focar: sempre estudou muito e sempre tomou café na mesma proporção. Havia criado o hábito com a avó, que lhe servia café desde os sete anos de idade, e nunca mais parou. Conseguia deixar o cigarro, mas nunca o café. Quando voltou ao seu lugar, no entanto, desejou que o espresso, em algum tipo de milagre bíblico, se transformasse em uma dose generosa de vodca. Na sua caixa de entrada do e-mail, um nome se destacava na única mensagem não lida. Isadora. então pensou que seu dia não podia piorar após ouvir o que tinha ouvido de seus colegas, então clicou no nome da ex-namorada.

,

Espero que esteja bem. Estive em São Petersburgo recentemente e lembrei daquele livro que você me fez ler, Noites Brancas. Você ia gostar daqui. Ainda acho estranho estar trabalhando com balé aqui - sempre disseram que eu ia passar fome se continuasse com isso e tá sendo justamente o oposto. Acho que nunca te agradeci por ter me incentivado a aceitar o emprego. Obrigada, . De verdade.
Eu sinto sua falta e me preocupo com você. Você ainda está morando com o Otávio? Como está na pós? A Cecilia já está te transformando em uma mini versão dela mesma? Você ainda está se isolando de todo mundo? Lançou uma série nova de Star Wars, ouvi dizer. Você já deve ter assistido. Você ainda está dançando? Espero que não tenha saído das aulas - faz bem pra você, nós duas sabemos disso. E, pelo que sei, aulas de balé são ótimos lugares para dar uns beijos - até aqui. Talvez seja universal. Estava pensando, acho que vou te mandar um presente. Posso?

Com amor,
Dora

não conseguiu segurar o choro dessa vez. Ela deixou que as lágrimas gordas e quentes borrassem a maquiagem e escorressem por seu rosto e pescoço. Um dos maiores erros da vida dela - e ela estava ciente disso, era ter aceitado namorar com Isadora. Isso foi um erro não porque ambas tinham metas para a vida totalmente incompatíveis, ainda que passassem madrugadas planejando futuros impossíveis juntas, mas porque Isadora e eram melhores amigas. E no momento em que se tornaram namoradas, essa amizade passou a ter data de validade - era como se, no momento em que elas se apaixonaram, a amizade até então protegida entrasse em contato com o ar e seu prazo começasse a contar. A amizade delas estava no vácuo, sem sofrer agência do tempo ou do espaço e, no momento em que decidiram ficar juntas, a amizade saiu desse lugar além. O ar permitiu que a amizade se deteriorasse. E agora ambas estavam sozinhas.
- ? - Perguntou Marina, com uma mão hesitante no ombro da colega. tirou os fones de ouvido. - Tá tudo bem?
- Tudo - mentiu ela. Ambas sabiam que era mentira. não limpou as lágrimas pois isso arruinaria ainda mais sua maquiagem.
- Aconteceu algo? - Insistiu Marina, parecendo realmente preocupada. Como se não estivesse rindo de até poucos minutos atrás. As lágrimas não paravam de escorrer e gostaria de voltar no tempo e ignorar esse e-mail, mas agora pensava em Noites Brancas, em São Petersburgo e em todos os planos que fizera com Dora nos últimos anos. Ela pensava em como estava sozinha e não por estar solteira, mas por ter perdido sua melhor amiga - afinal, mesmo que ignorasse o passado romântico, Isadora ainda estava morando no outro lado do mundo e em uma rotina totalmente diferente. Ela estava realizando o sonho dela e sabia que não seria justo se colocar como um fardo. Tudo o que ela podia fazer era torcer de longe e curtir fotos no Instagram, desejando com todo seu coração que Dora fosse feliz.
- Minha namorada… ex-namorada, mandou algumas fotos de São Petersburgo e é tão lindo que senti vontade de chorar - respondeu . Marina assentiu de leve, sabendo que era mentira. Mas não perguntou novamente, e ficou grata por isso. movimentou-se, chamando atenção das garotas - ele saiu da sala, como se para dar privacidade. Ou como se não aguentasse todo o drama.
- , eu sei que não somos próximas, mas você não parece estar bem. Me desculpa se isso for intromissão, mas.. Podemos conversar, se você quiser.
Marina falou com tom de voz terno, como se estivesse mesmo preocupada. quis acreditar nela, quis acreditar que poderiam conversar e que finalmente poderia compartilhar um pouco dos sentimentos sufocantes que guardava dentro de si. Ela queria muito acreditar, mas lembrou do que ouvira apenas alguns minutos mais cedo.
- Obrigada, Marina, mas estou bem. Realmente, São Petersburgo parece ser um lugar lindo e só isso aconteceu. - Como se seu corpo tentasse dar sinal de que ela estava mentindo, seus olhos encheram-se novamente e ela voltou a chorar. Ela sentia falta de ter uma amiga, sentia falta de poder conversar com outra mulher que a entendesse, que aceitasse acompanhá-la na hora de beber cafés gelados superfaturados e que entendesse o porquê de fazer skincare. Os seus amigos mais próximos eram homens - amigos herdados de seu relacionamento com Isadora. , ainda que os conhecesse desde o ensino fundamental, só se tornou parte do grupo quando começou a namorar Dora. Com a mudança dela, ficou à deriva, quase como uma lembrança que Isadora tinha ido embora. Os meninos, especialmente Otávio, eram próximos de e eram amigos dela - mas eles também eram homens e, como tal, tinham conceitos diferentes do que é amizade. Ela sentia falta de uma amiga que soubesse a hora de assistir novamente Questão de Tempo usando máscaras faciais coreanas juntas. Ela sentia falta de uma amiga. E ela gostaria de confiar que Marina pudesse ser uma amiga, mas ela não conseguia, então se desvencilhou da colega e ofereceu um sorriso desanimado. - Obrigada e desculpa dar um susto em vocês. Pode avisar o que vou ficar quieta e ele pode voltar pra sala.
- Se você mudar de ideia, me avise - foi tudo o que Marina respondeu.

*


Antes

- Queridos, - começou Cecilia, já no final de uma longa tarde discutindo Ensaio sobre a dádiva, de Mauss - uma amiga de Oxford compartilhou comigo que há uma vaga de estágio em seu laboratório. Seriam dois ou três meses trabalhando com ela, tudo com bolsa. Essa vaga é aberta para estudantes de todo o Brasil, já que ela mesma estudou povos indígenas daqui do sudeste, mas aqui entre nós, ela pediu indicações para mim.
- Se a for participar eu não sei se devo tentar. Com as notas dela é injusto - disse Marina. Cecilia riu.
- Devo encorajar todos vocês, Marina. No final das contas, quem escolherá não será eu. O grupo se dispersou e estava radiante. Aquela era a oportunidade que sempre sonhou e que sabia que teria ao ser orientada por Cecilia Moraes-Witlin. Ela não precisou falar nada - a professora antecipou:
- Vou te encaminhar o e-mail para você aplicar. Confio em você, .
E esse era o jeito dela dizer que estava torcendo. Cecilia nunca lhe disse nada com palavras, mas sempre demonstrou o afeto que sentia por . E agora, mais do que nunca, a jovem precisava desse afeto. Havia apenas duas semanas desde o término - ainda vivia em um apartamento impregnado com o cheiro de Isadora. Estava difícil lidar com tudo, mas ela já conseguia controlar quando e onde chorar. Durante o dia, tentava se ocupar com todas as tarefas da vida adulta: mestrado, afazeres domésticos, busca por uma nova casa, aulas de idiomas, balé e todas as tarefas acadêmicas do grupo de pesquisa. Era só a noite, após o banho, que ela se permitia chorar. Era só a noite que ela olhava as fotos no Instagram, ainda no feed, com sua melhor amiga e namorada. Era só a noite que ela lembrava de como se apaixonar por Isadora tinha sido algo confuso e arrebatador. Como ela havia feito de tudo para negar que não era hétero, como havia feito inúmeros testes na internet tentando entender porque raios ela estava gostando tanto de beijar outra garota. Mas nada disso contava quando elas estavam juntas - fosse na aula de balé ou no quarto de Dora. Não importava quando os pais da “amiga” eram tão gentis e nunca lhe fizeram nenhum comentário desagradável. Não importou quando os próprios pais de amaram Dora logo de cara.
Elas haviam se formado na escola juntas e, enquanto se aventurava no meio acadêmico, Isadora começou a dançar profissionalmente. Era uma excelente bailarina e tinha um futuro promissor. O plano era que aplicaria para vagas de doutorado internacionais e Dora tentaria entrar em uma companhia de dança na Europa. Elas se mudariam juntas e viveriam seus sonhos juntas. E tudo estava dando certo - fora aprovada no mestrado na USP, como planejava, e Dora estava tendo cada vez mais destaque nas apresentações. Até que em uma série de desventuras, Isadora saiu de casa com calma em uma terça-feira normal. Ela só se deu conta que tinha esquecido seu par favorito de sapatilhas quando já estava na estação de metrô e, em vez de simplesmente aceitar a distração e usar o outro par que estava sempre em sua bolsa, ela decidiu voltar para casa. Estava chovendo e ela estava com pressa. Ela subiu as escadas - o prédio antigo onde moravam não tinha elevador - correndo como já havia feito inúmeras vezes desde que se mudaram. Mas estava chovendo e ela estava com um tênis bonito mas não prático. Isadora subiu as escadas correndo e a sola lisa e molhada do sapato, ao pisar em falso, a derrubou. E de todos os infortúnios que poderiam resultar de um acidente como este, o pior aconteceu: Isadora quebrou o pé. E essa foi a primeira rachadura do relacionamento das duas.

*


Marina saiu da sala, deixando sozinha com seus pensamentos. O ar parecia pesado, viciado, e era difícil respirar. Ela não sabia se era pelo e-mail ou pela conversa de e Marina que ainda ecoava em seus ouvidos. Ela se concentrou em respirar fundo porque estava sem ar - podia sentir cada uma das batidas de seu coração acelerado em seu ouvido. Tentando focar em sua respiração, ela fechou o notebook e tirou os fones de ouvido, inclinando a cabeça e respirando fundo repetidamente, com os olhos fechados para evitar embaralhar ainda mais seus sentidos. Ela não conseguia respirar e sentia presa, com frio e como se seus músculos estivessem se soltando dos ossos; sua cabeça estava girando, pensando em tudo que poderia acontecer, em como ela estava fadada a ser sozinha e falhar, em como havia falhado com Dora e falharia com qualquer outra pessoa que ousasse se aproximar, como falharia em sua carreira e viveria para sempre na frustração de não ter conseguido nada; suas mãos tremiam e mesmo que estivesse cerca de 27° graus lá fora, ela tremia de frio e tentava se abraçar como que para impedir seu corpo de colapsar; em sua cabeça ela só pensava como era uma falha, como sempre falhou e como sempre falharia: você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir você não conseguiu, você não vai conseguir. Você não conseguiu, você não vai conseguir. Ela chorava copiosamente e nem era mais pelo e-mail de Isadora, mas sim porque isso fez com que o castelo de cartas que ela lutava constantemente para manter firme desabasse. Ela chorava e tentava respirar, sentia cada uma das batidas de seu coração e sofria por inúmeras possibilidades e caminhos que sua vida poderia tomar. Aquilo doía como cortes de papel e a deixava confusa, ela não conseguia ver as coisas com clareza e sequer conseguia respirar. Seu foco em respirar era tão grande que ela não ouviu ou percebeu que não estava mais sozinha até sentir uma mão em seu ombro.
- Marina… Tá tudo bem - ela sussurrou, ainda de olhos fechados. Ainda tentando controlar sua respiração.
- Não parece - mas não era Marina falando. abriu os olhos e encontrou com uma expressão que parecia preocupada. Ela gostaria de ter forças para responder ou só mandar ele sair de perto dela, mas só conseguiu suspirar. A ansiedade lhe tirava todo o controle e esse sentimento só a deixava mais ansiosa. pareceu reparar o que estava acontecendo, porque pegou a garrafa de água de , que estava em cima da mesa, abriu e entregou para ela. Ela deu alguns goles com dificuldade, grata por ele não ter estragado tudo com alguma piada ou comentário irônico. - Você precisa de algo?
Ela fez que não com a cabeça. Ele ficou parado em frente a ela, como quem não sabe - ou não tem - o que fazer. Ela ainda respirava forte, com a cabeça baixa. Ele segurou o queixo dela, inclinando sua cabeça de leve e então tirou uma mecha de cabelo do rosto dela. Eles se olharam pelo que pareceram horas. O coração de estava acelerado.
- Obrigada pela água - respondeu ela, evitando o olhar dele e se desvencilhando de sua mão. Ele riu seco e respondeu:
- Olha só, já está de volta ao normal.
se levantou e deixou tudo como estava, pegando apenas uma necessaire na bolsa, partindo direto para o banheiro mais próximo. Ela sentiu vergonha de seu estado ao se olhar no espelho - a maquiagem dos olhos havia se espalhado pelo rosto e seu batom estava manchado. Ela cuidadosamente limpou a face com lenços de papel, tentando evitar que as lágrimas continuassem rolando. Seu ritual de retoques começou com corretivo, pó facial, delineador e máscara para cílios. Ela substituiu o batom nude por um vermelho. Certa vez na adolescência, levou um fora de um garoto mediano e aquilo pareceu o fim do mundo. No entanto, quando ela decidiu ir para a escola após faltar por dois dias - ela nunca havia estado tão devastada -, vestiu leggings e moletom e, quando sua mãe a viu, disse:
- Ninguém precisa saber que hoje você não está se gostando tanto, - E assim fez com que a filha voltasse para o quarto e arrumasse roupas melhores para ir à escola. Aquele não foi o fim do mundo e tampouco o dia mais triste de sua vida, mas a lição ficou. O batom vermelho era seu super-poder. Quando estava tudo dando errado, aquele batom lhe dava forças para lembrar que ela estava no controle. Que ela era incrível, Que ela era forte. Ou pelo menos a ajudava a fingir que acreditava nisso.

*


Antropologia é absurdamente difícil, caro colega. E é também a ciência mais incrível que existe. Há quem diga que é a Psicologia que tenta compreender o ser humano, mas eu acredito que sem a Antropologia eles não chegariam muito longe. Antropologia é difícil pra caralho porque pessoas são difíceis pra caralho. Veja bem: sou antropóloga, teoricamente eu deveria entender completamente a sociedade e saber exatamente como me encaixar - mas as regras são tão complexas que mesmo estando ciente de cada uma delas ainda me pego tentando me fazer caber em cada uma das caixas que nos são impostas. Entender as pessoas é difícil demais porque somos complexos, uma mistura heterogênea de nosso contexto e de nossa percepção do mundo. Eu sou feita de seja lá o que constitui uma mulher no Ocidente, no Brasil, em São Paulo e por aí vai; sou feita das minhas experiências, expectativas e sonhos. Sou feita do que foram feitas todas as mulheres que vieram antes e tento não ser. Não há absolutamente nada de natural em mim, ou em você - somos emaranhados de acúmulos dos que vieram antes. Somos cientistas que não podem isolar seu objeto de estudo no laboratório. Não é preto ou branco - são todas as cores do mundo, e nós somos tolos o bastante para tentar compreender isso.

*


Quando voltou para o laboratório, Marina e trabalhavam em silêncio. Ela voltou ao seu lugar, que permanecia intocado, e abriu novamente o computador. O e-mail de Isadora continuava ali, então ela o fechou e abriu o arquivo da sua dissertação. Haviam algumas considerações, comentários e correções de Cecilia no documento e ela focou em cada um deles, anotando referências sugeridas e sublinhando as partes que deveriam ser aprofundadas. Seu trabalho era promissor - ela sabia disso desde o primeiro rascunho - e por isso estava levemente atrasado. Segundo seu cronograma, no quarto trimestre ela já deveria ter pelo menos ⅓ do desenvolvimento, pelo menos o referencial teórico. Acontece que, com o término ela havia perdido um pouco de seu foco e agora estava precisando correr atrás do prejuízo. Ela precisava de bons resultados na qualificação para que seu estágio em Oxford fosse perfeito, pois só assim conseguiria aplicar para o doutorado lá.
escreveu por horas seguidas, parando apenas para pegar mais um café e esticar as pernas e costas no processo. Em certo momento, Marina a convidou para ir almoçar no bandejão, mas ela negou. Para a escrita de incríveis dez páginas, o combustível de foram vários cafezinhos e cerca de 1,5l de água. Marina e foram e voltaram do almoço e ela continuava escrevendo, de forma quase obsessiva. Ela não podia falhar. Eram quinze para as quatro da tarde quando ela se levantou e pegou a carteira
- Vou na Tia Bia. Vocês querem algo? - Perguntou como que para retribuir a preocupação de mais cedo.
- Se você puder me trazer uma paçoquinha, eu te faço o pix - disse Marina. negou e agradeceu. - Acho melhor trazer seis, na verdade.
- Certo - murmurou , saindo da sala e indo até o quiosque que ficava entre o prédio das Sociais e das Letras. Aquele também era um ponto muito interessante da FFLCH: era onde professores de terno se sentavam com os mesmos copinhos de café que os alunos vestidos com camisetas de entidades políticas das várias chapas que compunham o movimento estudantil. Ela entrou na fila e pediu as seis paçocas de Marina e sua Coca Zero. Pensou em pedir um dos salgados, mas desistiu. Ela já não conhecia mais os vários estudantes que ficavam ali nos intervalos e essa era uma sensação estranha. Era como se estivesse há tempo suficiente para conhecer cada canto da Universidade, mas esta estava sempre mudando, sempre impedindo que fosse desvendada por completo. pagou os itens e voltou para a sala desejando não ouvir nenhuma conversa dos colegas e realmente os encontrou em silêncio, focados em suas respectivas tarefas. Ela entregou as paçoquinhas para Marina.
- Ficou seis reais - disse. - Meu pix é 9…
- Eu tenho seu telefone salvo, - Marina riu e isso deixou confusa. Ela não tinha o telefone de Marina salvo.
- Ah, ok - disse ela, tomando um longo gole de refrigerante.
Marina sorriu e dividiu as paçocas em três duplas:
- Pra você - entregou para . - Pra você - entregou para . - E para mim.
Quando fez menção de devolver, Marina fez que não e deu uma piscada. estava genuinamente confusa e sentiu que eles estavam com pena dela, o que deixou tudo pior. Mas ela não disse nada.
- Paçoca é o doce mais universal, sabe - disse Marina - Agrada a gregos e veganos.
riu do trocadilho.
- Bom, obrigada, Marina. E desculpa por… desculpa. - Disse , ainda perplexa com os eventos do dia.
- Paçoca não resolve os problemas, mas não tem nada que um docinho não deixe melhor. Só ver o . Até esse cara chato dá uma risadinha com piada se tiver um docinho perto.
não reagiu. Marina continuou rindo, sozinha. Estava tudo muito aquele dia - a súbita mudança de Marina, que pela manhã estava rindo de e agora estava rindo com ela. sequer tinha feito qualquer tipo de comentário desagradável. Talvez o universo tivesse dado uma trégua após tantas humilhações em um curto espaço de tempo. voltou ao seu lugar, ainda bebendo sua Coca Zero pelo canudo, e guardou as paçocas em seu estojo, observando-as por um tempo e estudando a embalagem, pensando se valeria a pena consumir as 101 calorias que havia em cada uma das paçoquinhas. Ela tentou lembrar do sabor doce e ligeiramente salgado do amendoim e da textura engraçada. Aquilo bastou, e ela se pegou pensando na mensagem que tinha escrito de volta para seu colega anônimo que também estava emprestando Tristes Trópicos. Ela não sabia se o remetente sequer receberia a mensagem, mas se empolgava com a ideia de conversar com alguém de forma anônima - a possibilidade de ser honesta, sem medo de julgamentos e sem reservas lhe atraía desde sempre, afinal, esse era o ônus de ser perfeita - ou próximo disso: era incapaz de demonstrar suas fraquezas ou até mesmo admiti-las. Ela não tinha ninguém para quem dizer que estava morrendo de medo de não conseguir ser bem-sucedida na qualificação. Ela não tinha para quem dizer que repensava constantemente se era boa o suficiente para a carreira acadêmica. Ela não tinha para quem dizer que estava apavorada com a ideia de ser reprovada para o estágio em Oxford porque isso significaria que ela não era desejável romanticamente e nem profissionalmente. Ela não tinha ninguém para conversar porque desde sempre só mostrou aos amigos sua face confiante e até ligeiramente arrogante e, se ela admitisse essas fraquezas, eles poderiam descobrir que ela não é perfeita. E ser perfeita, a menos aos olhos dos outros, era a única coisa que a motivava a continuar.


3. Dialética histórico-antropológica

Resumo: Dialética - substantivo feminino; em sentido bastante genérico, oposição, conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos. No presente trabalho, buscaremos compreender - através de observação das interações com terceiros - como o conflito entre os pesquisadores se desdobra no dia-a-dia. Em uma análise minuciosa dos pensamentos e certezas de , buscaremos investigar se as crenças dela correspondem à realidade.
Palavras-chave: Oposição; Amizade; Socialização

Muito antes

O ambiente do balé era um ambiente absurdamente confortável, ainda que tivesse traços tóxicos. Havia uma certa aura mágica ali, como se naquele espaço os problemas externos não as alcançassem - é claro, todas as mesmas cobranças estavam ali: seja magra, seja bonita, esteja arrumada, seja perfeita; mas era isso tudo em um ambiente quase totalmente feminino, o que deixava essas cobranças ligeiramente menos horríveis. Seus primeiros dias eram basicamente fazendo os passos da pior e mais feia forma - mas ao menos focava o suficiente para evitar pensar, o que já era bastante.
A adolescência ainda era estranha, sobretudo seus sentimentos confusos e as dúvidas que pareciam ocupar toda a sua mente. odiava estar no ensino médio e os três anos pareciam uma eternidade - ainda faltava um ano e meio para ela se livrar da escola para sempre, não que a instituição escolar fosse o problema. Na realidade, conviver com outras pessoas - adolescentes - era algo que lhe causava mal estar físico. Estar ciente da forma como os garotos falavam sobre as garotas, sobre como as garotas falavam sobre as outras garotas, ter que responder questionamentos constantes sobre vestibular e se sentir horrível física e mentalmente parecia ser uma espécie de punição para pecados que ela tinha quase certeza que não tinha cometido. Ainda.
Isadora era a melhor bailarina do estúdio. Ela estava em todas as aulas, de todos os níveis, e sempre mais próxima das professoras que das demais alunas. Ela dançava perfeitamente bem e seu corpo esguio parecia leve em todos os passos, como se ela não estivesse fazendo esforço algum. Isadora era o oposto de , e isso as uniu. Afinal, estava fazendo um pas de bourrée tão desajeitado que poderia ser considerado um crime contra o balé e Isadora aproveitou seu talento para ajudar a novata. Assim, elas passaram alguns minutos depois da aula ainda praticando na sala cheia de espelhos: Isadora, paciente e graciosamente demonstrando a sequência do passo na barra, enquanto tentava copiá-la de forma muito mais grotesca e frustrante. Foram pelo menos quinze minutos assim - Isadora explicando, frustrada por não conseguir ser perfeita em algo que ela ainda estava aprendendo.
- Você precisa ter paciência e treinar - disse Dora. - Só assim você vai conseguir.
odiava a palavra paciência.
- Acho que vou dançar horrível assim pra sempre - suspirou, frustrada.
- Sua postura não tá certa, por isso você não tá fazendo direitinho - e Isadora pousou a mão sob as costas de , que instantaneamente sentiu o coração acelerar. Maldita ansiedade social. Ela não disse nada em resposta, mas ainda sentia o toque de Isadora queimando em suas costas.
- Bom, acho que vai começar uma aula aqui. Mas podemos praticar juntas depois, se você quiser.
- Ah - murmurou - Valeu. Pode ser.
- Certo… Ah, sou a Dora. Não sei se tinha dito meu nome.
- Sou a .
Elas seguiram juntas até o vestiário - Isadora falando e ouvindo, se sentindo estranhamente atraída e, ao mesmo tempo, repelida pela garota. Assim que fechou a porta do lugar, Isadora começou a se livrar das sapatilhas, da saia e da camiseta, ficando apenas de collant e meia-calça, enquanto vestiu seus jeans por cima da saia, para só então tirá-la. Ela tentou desviar o olhar quando Isadora tirou o collant, mas os olhos dela pareciam magnéticos e não conseguia parar de olhá-la.
- Você está vermelha! Agora não sei se está exausta da aula ou se nunca viu peitos que não fossem os seus. - Isadora riu e finalmente conseguiu desviar a atenção, rindo como se aquilo não a tivesse deixado ainda mais sem graça.
- Estou exausta da aula - mentiu , sentindo-se absurdamente tímida. Subitamente, sentiu uma fagulha de raiva por Isadora tê-la provocado assim. Talvez, a outra só a estivesse zoando. Ela terminou de se vestir com pressa, saindo sem grandes despedidas. Ela sentia suas bochechas quentes e suas costas pareciam marcadas pelo toque de Isadora. Ela cogitou nunca mais aparecer no estúdio, mas não queria parecer uma criança birrenta. Então foi para casa e, naquela noite, sonhou com Isadora.

*


estava em negação. E, como alguém em negação, optou por ignorar o fato de que o prazo estava correndo e que ela deveria começar a organizar o artigo que Cecilia lhe pediu - ou coagiu - para escrever. Um trabalho com Lisboa. Ela cogitou, por alguns milésimos de segundos, se não deveria trancar sua matrícula da pós-graduação. Mas respirou fundo e abriu o notebook. Já havia um rascunho de e-mail pronto há alguns dias.

Para: Lisboa
CC: Cecilia Moraes-Witlin
Assunto: Artigo

,
Sugiro marcarmos uma reunião para discutirmos a escrita do artigo.


Curta e grossa? Não. Incisiva. Ela não tinha porque mentir - não, ela não esperava que o e-mail encontrasse bem. Ela não estava sendo atenciosa. E ele não era prezado. Ela sabia que Cecilia perceberia a diferença no tom da mensagem, mas não se importou. Assim que enviou a mensagem, no entanto, se arrependeu. Poderia soar como uma criança birrenta, dar mais motivos para que a odiasse e, talvez, dar uma razão para Cecilia se decepcionar. Poderia até ativar alguma justiça cósmica que, por sua falta de educação, impediria que ela fosse aprovada no estágio em Oxford. Ela respirou fundo e não havia mais o que fazer. Por algum motivo, esse sucinto e-mail lhe deixou nervosa como se sentiu na primeira vez que mandou uma mensagem para Isadora no Facebook: ela queria uma resposta logo, mas se a resposta chegasse, ela iria precisar de horas para se preparar psicologicamente antes de abrir a notificação.
Para se distrair, pegou o celular e abriu o Instagram. Havia uma solicitação para segui-la: Marina. Ela abriu o perfil da colega de pesquisa, que não era restrito. Haviam fotos de campo, fotos de livro e fotos de rolês. Havia uma foto da última pizza de confraternização onde aparecia no canto. Haviam muitas fotos de cachorros variados. aceitou a solicitação e seguiu-a de volta. Seu próprio perfil era bastante restrito às fotos de campo e fotos do balé. Haviam fotos de mesas de café da manhã e de viagens; fotos no estúdio de dança e fotos de passeios - isso era tudo que restara de Isadora. havia, finalmente, apagado todas as fotos com a namorada, mas haviam memórias compartilhadas em quase todas as fotos no perfil. Fosse naquelas mesas de cafés ou nas fotos de sapatilhas de ponta, havia um fantasma comum: Dora. Suas mãos, seus pés, sua xícara de matchá ainda estavam registrados na conta de . Mas, por mais doloroso que fosse, pelo menos não eram todos que sabiam. Marina não saberia.

- Eu vou viajar semana que vem - anunciou Otávio, tirando a atenção de do celular.
- Vou fazer uma festa, então. Nível Superbad. - ela riu. - Vai para onde e com quem?
- Pra Bahia com meus pais. Aproveitar que consegui as férias mais longas da história: quinze dias direto, sem nenhum home-office.
- Uau, como seu patrão é gentil. Viva os direitos trabalhistas! Mas, se eu fosse você, não ligaria o celular porque você sabe que eles vão te chamar.
- Ah, com certeza vão. E eu vou ter que atender, porque onde já se viu alguém ficar de férias e não trabalhar?
- É sempre um prazer falar com você sobre o mundo corporativo, Ota. Sempre me deixa muito feliz por ter escolhido a pesquisa.
- É por isso que vou levar minhas apostilas do concurso pra ler no resort. - disse ele, sentando-se à mesa junto com a amiga. Otávio era um cara quieto, não costumava ser muito sentimental com os amigos, apesar de ser atencioso. Era raro conversarem assuntos mais profundos, apesar de sempre compartilharem boas fofocas - sabia de todos os causos da firma de advocacia além de podres de clientes da alta sociedade paulistana que Otávio lhe fizera jurar jamais compartilhar com alguém. Ele tomou uma xícara do café que estava na cafeteira e ficou quieto por alguns instantes antes de tomar coragem de perguntar. - Você está bem?
respondia essa pergunta com um tom de voz descontraído pelo menos três vezes na semana. Foi tranquilo para ela responder uma quarta vez.
- Tô bem, Ota. E você? - Tão mais fácil mudar o foco da conversa.
- Eu… eu tô aqui, você sabe, né? Eu sei que não sou a opção número um para desabafar e sei também que não sou seu colega de apê dos sonhos, mas eu me preocupo com você… Sei lá, você anda meio paradona esses tempos. Tá sempre na USP, sempre fazendo as coisas do mestrado como se fosse a única coisa que você tem de seu.
- Eu tô impaciente com o resultado do estágio em Oxford, só isso. Mas fica tranquilo, não se preocupa comigo. Foca nas suas férias.
- Eu ia trazer algumas coisas de compras pra ficar aqui enquanto tô fora… Sabe, essas coisas veganas que você come. Mas fui ver e tem um monte no freezer, acho que ainda da última vez que eu trouxe. Você não comeu? Sei lá, eu comprei algo errado? - Perguntou ele, com semblante preocupado. Otávio era assim desde sempre. Ele não lhe trazia as coisas por pena; ele sempre - desde os anos da faculdade - costumava levar lembranças aleatórias para os amigos. Quando tornou-se sua colega de quarto, ele continuou fazendo isso.
- Não, claro que não… É que como na faculdade e às vezes esqueço de comer aqui. Desculpa, tá? E eu já disse que você não precisa ficar gastando seu VR comigo.
- Considere como pagamento por você sempre manter café fresco e quente. Na real, acho que vou começar a trazer esses cafés diferentões pra você.
- Eu não reclamaria.
Eles ficaram em silêncio por mais alguns minutos. Nessas situações, sempre sentia um impulso, uma urgência de desabafar, mas sabia que Otávio não a entenderia e isso só iria deixá-lo atordoado. A única pessoa que poderia entendê-la seria Isadora, mas desabafar sobre como a vida dela está caótica e, aparentemente, um inferno para a ex-namorada era humilhante em um nível que preferia evitar.
- Você vai trabalhar na USP hoje? - perguntou Otávio - Tô de home office, mas não tô afim de trabalhar e já tenho muita coisa pronta. Ia falar pra gente ver alguma coisa mais tarde.
- Tranquilo. Vou estar em casa, tá calor demais pra ir pra faculdade.
Durante a conversa, Otávio devorou três pedaços do pão artesanal de azeitonas que estava na mesa. não comeu o pedaço que ele lhe servira, mas o rasgou em pequenos pedacinhos enquanto bebia seu café. Seu prato estava uma bagunça - uma bagunça que parecia de café da manhã. Mesmo que ela não tivesse comido sequer um pedaço.

*


Antes

acordou com os barulhos no banheiro. Isadora era extremamente barulhenta em sua rotina. Ela falava sozinha, cantava alto e derrubava as coisas. Era muito diferente do que esperavam de bailarinas clássicas. Agora, no entanto, os barulhos dela eram quase sempre por conta do pé quebrado. Depois da cirurgia e da imobilização com gesso - mais ou menos dois meses nessa primeira fase de tratamento -, Dora finalmente voltou a ter autonomia. Não que isso melhorasse o humor dela. Após o fatídico dia em que caiu na escada e quebrou o pé, a carreira dela também foi fraturada. Ela não havia saído da companhia de dança mas estava afastada e sabia que não voltaria ao seu papel de destaque anterior. Esse era o elefante na sala - sabia que Dora sabia que não voltaria a dançar profissionalmente mais. Mas elas não falavam disso - elas agiam como se o pé quebrado não significasse nada para uma bailarina. Elas planejavam a volta de Dora ao teatro e fazia o esforço de praticar alguns passos todas as noites - era como se Dora estivesse tentando dançar usando os pés da namorada. Não era um problema para , mas sua falta de habilidade era, com certeza, um problema para Isadora.
- Bom dia - disse Dora, ao sair do banheiro. ainda estava esparramada na cama das duas olhando o celular. - Você não quer ir correr hoje? Suas pernas tão meio fracas, eu tava reparando essa semana…
- Ah, amor - resmungou , ciente que não precisava de pernas fortes para ser antropóloga - tá garoando. Não quero sair.
- Você tá se cansando muito rápido nas nossas práticas, . Precisa fortalecer. E é tempo juntas. Como é aquilo? Tempo de qualidade, né?
- Dora, eu não danço profissionalmente. Eu não preciso ter o seu condicionamento físico. A gente poderia fazer algo que não seja dançar pelo menos uma vez na semana?
No momento em que terminou a frase, sabia que tinha falado besteira. Dora só assentiu e saiu do quarto mais lentamente do que gostaria, graças à bota ortopédica, deixando sozinha. Ela estava cansada e estava com preguiça - apesar de adorar o balé, não via sentido em praticar como se estivesse tentando ser a prima ballerina de alguma companhia. Ela não dançava profissionalmente, jamais iria, então não havia necessidade. Mas dançar era a vida de Dora e instruir a prática de balé da namorada estava sendo sua única forma de dançar com o pé quebrado. E ela amava Dora.
Isso a fez levantar da cama, ainda com as roupas de dormir e o rosto amassado, e ir até Dora, que estava bebendo alguma das bebidas proteicas de café da manhã. Dora não falou nada quando a abraçou, beijando seu ombro com certa urgência.
- Desculpa - sussurrou ela. - Podemos praticar. Mas vai tudo se resolver, você vai voltar a dançar. Você já está melhor.
Elas sabiam que, apesar de isso não ser mentira, também não era verdade.
- Eu não vou voltar - disse Dora, chorando. - Meu pé não vai ser o mesmo. É a mesma coisa que um desenhista perder 75% da visão. Nenhuma bailarina que fratura o pé volta. Tudo que eu me dediquei, todos esses anos, não vão me levar a lugar algum. Eles vão me substituir, e estão certos, mas como eu vou substituir o balé? Como vou largar a única coisa que eu sei fazer?
- Dora, isso não é verdade…
- Vamos ser honestas aqui, tá? Eu sei que você sabe que não vou voltar. Talvez eu até consiga ir para aulas de iniciantes ou intermediários. Só que eu saber dançar não significa que eu posso dançar e essa é a grande diferença. Eu sei toda a coreografia dessa temporada, mas eu não posso dançar ela. Eu não posso não só porque meu pé tá tão inchado que nem entraria na minha sapatilha, mas porque eu sequer consigo flexionar ele sem pensar que vou morrer. Acabou pra mim, sabe? É a mesma coisa que sei lá, a Cecilia te cortar da pesquisa. Você perderia tudo, né? É assim que eu tô.
E entendeu. Ela não disse nada, não tinha o que dizer. Ela abraçou a namorada com força, querendo poder tirar um pouco da dor que Dora sentia, era nítido seu sofrimento. Mas não havia o que ser feito e elas ficaram assim, abraçadas na cozinha por muito tempo. De alguma forma, soube que tudo iria mudar dali em diante.

*


Para: Cardoso
Assunto: RE: Artigo

Me encontre na biblioteca.


Se fosse uma competição, teria ganhado e isso deixou ainda mais irritada. Quando Que horas? Nada. Ele não havia dito nada exatamente para que ela precisasse perguntar. Ela fechou a aba do e-mail e suspirou alto. Seria um desafio trabalhar com - mas, felizmente, se motivava com desafios. Começou a escrever em uma página do Notion todas as suas ideias, separando referências e pensamentos pessoais por cor. É claro que ela já havia planejado todo o artigo - sabia que com sua formação de historiador, não dominaria os métodos. Não como ela dominava. Então em duas horas de foco total - nada como muito café e muita Coca Zero - ela escreveu uma longa página de ideias para nortear a redação do paper. Ela não iria encontrar na biblioteca. Ela não ia perguntar nada para ele. Ela ia mandar suas ideias e esperar que ele perguntasse. Por isso, enviou apenas o link para a página do Notion, sem mais nada no corpo do e-mail.
Em cerca de dois minutos após enviar, seu celular tocou, notificando a mensagem no WhatsApp de um número desconhecido:

PQ vc fez todo o trabalho??

Ela não precisou olhar a foto para saber que era , mas a abriu mesmo assim. Na imagem, o cabelo dele estava mais curto, menos ondulado e ligeiramente mais claro do que era realmente. Seus olhos azuis estavam meio fechados por conta do sorriso e ele usava um boné… bufou e bloqueou o celular, que prontamente voltou a tocar.

??? Eu sei que vc não tá nem um pouco feliz com esse artigo

Eu tentei falar pra Cecilia que vc não ia querer mas ela é nossa orientadora e é esperado que a gente siga a orientação dela rs

, eu sei que vc tá vendo as msgs

Ela não sabia o que responder, então digitava e apagava infinitamente.

"Tô facilitando pra nossa reunião ser direto ao ponto… Sem perda de tempo
Não tem pq procurarmos bibliografia juntos pessoalmente. Se vc tiver algo, coloca no link que enviei e eu vejo se é bom


VC vai ver se é bom? Hahaha

Eu sou antropóloga


Da última vez que eu vi, eu também era aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Da última vez que eu vi, vc era historiador


Pensei que o paper fosse sobre História da Antropologia - o que me qualifica pra opinar o que pode ou não ser útil

não soube o que responder. Ela digitou e apagou várias mensagens que pareciam respostas dignas de uma Valentina da quinta série. Por fim, bloqueou o celular e pegou Tristes Trópicos em sua bolsa - estava relendo uma parte para continuar a redação da dissertação. Não teve resposta em seu bilhete - o que a fez pensar o quão patético era tentar fazer amizade através de um livro. O celular tocou novamente:

Podemos tomar um café pra discutir isso?

Ela começou a digitar, pensando se devia ou não aceitar o convite. Ela detestava e seu jeito de fazer piada e ser gentil com todos, menos com ela. Ela detestava a forma como toda a parte social da carreira acadêmica, para ele, parecia nata. Certa vez, quando ambos estavam fazendo seus trabalhos de iniciação científica, Cecilia os colocou para auxiliar em uma entrevista e enquanto ela sofreu para conseguir vencer a timidez, estava sendo procurado pelos alunos para responder a pesquisa. E ele nem era tão bonito naquela época. Enquanto digitava e apagava, ainda sem saber o que dizer, a mensagem dele desapareceu. Pelo jeito, ele pensou bem e percebeu que não queria tomar um café com ela e tampouco discutir isso. Ela entendeu a mensagem - ou ausência dela - e fechou o aplicativo de mensagens. Como se o universo estivesse de sacanagem com ela, assim que abriu o Instagram para se distrair, a primeira postagem era uma foto de Isadora. Com uma garota. O momento foi tão propício para algum tipo de colapso ou surto, que apenas curtiu a foto e deu risada, pensando no quão ridícula era toda a situação. É claro que, enquanto brigava com um colega da pesquisa como se fosse uma criança, Isadora a estava superando. Por um instante, ela desejou que não tivesse apagado o convite - preferia discutir o paper com seu colega a lidar com o fato de que sua ex-namorada estava namorando uma gringa. Ela desejou que Otávio não estivesse trabalhando para chamá-lo para jogar Mario Party. Então ela pegou o celular - que ainda estava com a tela desbloqueada - e mandou uma mensagem para um contato recentemente salvo.

Oi! Vc tá livre pra um café?


[…]

Quando Marina topou, pensou se realmente deveria tê-la chamado. A ansiedade sempre a fazia desistir de sair - sobretudo se fosse com outras pessoas - mas ela preferiu não pensar tanto. Considerando que a colega ainda estava na USP e pegaria um ônibus ou algumas estações de metrô para chegar até ela, teve tempo de tomar um banho e trocar de roupa para se animar. Uma das poucas coisas que ser cientista social não havia estragado era sua relação com a moda: na realidade, ela adorava a cara de surpresa quando dizia que era antropóloga. Sempre havia alguns segundos de choque antes dos comentários sobre ela não usar chinelo de couro ou saias hippie. O fato é que para ela era mais fácil se expressar através das roupas, das maquiagens que usava. Tudo isso a fazia se sentir um pouco mais confiante, sobretudo na hora de socializar.
Por isso, demorou em frente ao guarda-roupa, escolhendo com atenção o que vestiria. Ela também passou um tempo significativo sentada em frente à janela se maquiando com luz natural. Apesar de não ser nenhum tipo de expert, ela se sentia bem fazendo aquela espécie de ritual consigo mesma, destacando o que mais lhe agradava em si mesma. Todas aquelas coisas ditas fúteis eram a diferença entre um bom e um péssimo dia para ela. Quando Marina avisou que estava já no Circular saindo da universidade, se apressou, finalizando a arrumação e pegando sua bolsa. Ela avisou rapidamente ao colega de casa que iria sair e deixou o apartamento, sempre grata por morar há cinco minutos a pé da Avenida Paulista. Não lhe custava pouco, mas pelo menos lhe facilitava a vida. Ela foi caminhando até a avenida sem pressa, pois Marina ainda estava no metrô e ao chegar no local marcado se sentou em uma mesa afastada do fluxo. estava nervosa com toda a situação - especialmente por ter sido ela quem marcou a saída. Ela não sabia ao certo como fazer amigos, mas estava tentando e Marina vinha sendo bastante gentil desde o dia das paçocas. Enquanto esperava, pegou seu Kindle para tentar ler - ainda que a ansiedade estivesse a distraindo - e acabou fazendo uma lista mental de livros que estavam “mofando” naquela biblioteca digital. Esse tipo de tarefa lhe servia como um bom calmante e também como distração - tanto que não viu a colega de laboratório chegando.
- Eu não esperava o seu convite, sendo sincera - disse Marina, sorrindo - Mas fiquei feliz com ele.
sorriu de volta. Não sabia como continuar aquilo.
- Achei que seria legal. Não sei, você já veio aqui? - Marina fez que não com cabeça. - É, então. Aqui é bem bom e é tudo até que bem em conta.
- Estamos no dia 20 e a bolsa só cai no próximo dia cinco então não posso pagar 20 reais por um pão de queijo, viu?
- Te garanto que conseguimos pagar menos de 30. Juntas.
Marina deu risada e começou a olhar o cardápio, comentando eventuais pratos que lhe interessavam. pediu, é claro, o maior café gelado disponível e uma torrada de molho pesto e Marina também escolheu o que iria comer. conseguia ouvir as batidas do próprio coração, acelerado de nervoso. Começou a pensar se Marina a odiava assim como . Pensava em como nesse tipo de situação social era sempre Isadora à frente - ela não precisava falar porque a ex-namorada falava por ela. Quando não estava em um evento acadêmico, ela parecia incapaz de conversar. Ou de se sentir interessante.
- Eu tô me sentindo mal - começou Marina - porque estou toda acabada de tênis de academia e moletom enquanto você fez uma maquiagem. E foi elaborada!
- Não foi, só tenho uma certa prática que permite que eu faça algo assim bem rapidinho. E, no seu lugar, eu não me sentiria mal porque isso aqui - ela apontou para o próprio rosto - é uma forma de lidar com as maluquices da minha cabeça.
- Eu fiquei feliz de verdade por você ter me chamado, sabe? Você sempre fica meio isolada e eu não acho isso legal, mas também não quero ser invasiva.
queria poder dizer “é culpa do !” mas não tinha como fazê-lo sem parecer uma criança.
- Eu sou uma antropóloga que não sabe lidar com gente - riu.
- Ou talvez você é a versão feminina e com maquiagem impecável do Lévi-Strauss e por isso não quer papo com a gente.
Ela se sentiu mal por pensarem isso dela. Ela nunca negou sua inteligência - falsa modéstia é só muito irritante -, mas nunca diminuiu os demais colegas porque sabia o quão exigente Cecilia era. Até mesmo . Ela sabia que ele era inteligente - talvez não mais que ela -, assim como todos os outros colegas. Ela não soube o que responder.
- Vocês todos tão mais pra galera descolada e eu ainda uso Tumblr. Acho que por isso a gente não conversa tanto.
- Bom, eu faço vídeos bobos no TikTok. Pronto, falei. Agora temos algo bobo compartilhado, ainda que eu te ache descolada. Você consegue ser absurdamente nerd e bonita na mesma proporção!
E riu, porque era engraçado que Marina soubesse seus gostos - que ela nunca tinha feito esforço de esconder, só não imaginava que alguém prestava atenção - mas também era triste saber que, aos olhos deles, era ela quem se isolava. E ela sorriu porque sentia que tudo aquilo era honesto, aquela era Marina, não uma farsa.
- Isso é o que você pensa. Eu sou muito, muito mais nerd do que bonita. Só disfarço bem. - Como é que pode você e o falarem a mesma coisa? Vocês combinam o que falam, por isso mal conversam? Porque não sei se você sabe, mas o sempre fala umas coisas assim. Ele parece uma enciclopédia de ficção-científica e adora falar de quando fez um trabalho de História Contemporânea sobre Star Wars.
Novamente, não sabe como responder. Ela gostaria de perguntar porque a evita, porque eles riem dela. Mas ela não pode parecer maluca, paranóica.
- Não, na verdade eu nem sabia que ele tinha pensamentos tão interessantes! Nem teria como saber, porque acho que sou a última pessoa do laboratório com quem ele gostaria de interagir.
- Você já falou com ele?
- Claro que já!
- Sem ser sobre antropologia.
pensou. Ele já havia puxado assunto falando sobre o chaveiro dela do Baby Yoda. Eles já tinham discutido por conta do exemplar de Tristes Trópicos que estavam dividindo.
- Talvez ele seja secretamente misógino e odeie mulheres. Ou odeie uma mulher: eu. Mas respeito isso. Seria difícil competir pelo estágio em Oxford com um amigo.
- Olha, , o tem os motivos dele para agir como age com você. Mas ele não te odeia e nem é misógino, até onde eu sei. Mas os motivos dele são dele e não cabe a mim te contar.
Claro que ela não fofocaria. Claro que não saberia o porquê das risadas toda vez que ela chega.
- Como está a tese? - Às vezes, o melhor a se fazer é mudar de assunto.
- Ah, não. Não vamos falar de trabalho. Não fazemos pós-graduação agora, tá? Somos apenas duas garotas! E você vai ter que me dizer o que passou nos seus olhos…
As duas seguiram falando sobre tudo e sobre nada. Quando os cafés acabaram, elas pediram mais e quando começou a escurecer, elas foram andar nas lojas do shopping e na livraria. se divertiu como há meses não se divertia e quase se esqueceu da ansiedade e da solidão que sentia na maioria do tempo. Marina se mostrou engraçada e atenciosa - ela sabia muito mais sobre do que essa imaginava. E, principalmente, Marina sabia o que não dizer: ela não mencionou o artigo com ou a crise de ansiedade de do outro dia. Não perguntou sobre Isadora e nem sobre Oxford. Elas se divertiram e, quando se despediram no metrô, sentiu que talvez estivesse próxima de ter uma amiga.


4. Drinks, petiscos e sociabilidade entre antropólogos

Resumo: É sabido que a vida acadêmica não se resume ao trabalho de laboratório e à pesquisa na biblioteca. Pode-se dizer que há uma quantidade considerável de grandes ideias geniais surgiram em uma mesa de bar, portanto, o presente capítulo visa observar como se comportam os cientistas em seu tempo livre.
Palavras-chave: Sociabilidade; juventude; flerte

estava aprendendo a ser uma amiga. Ela lembrava da época da escola, quando a amizade consistia em trocar o estojo até o final da aula e sentar na mesma mesa do recreio. Na vida adulta, no entanto, as dinâmicas eram outras. Marina era uma daquelas pessoas que saem e, através dela, descobriu que boa parte dos membros do LEIC também. Quando Marina a convidou para beber na sexta à noite, bloqueou o celular, para ignorar aquela mensagem por ora, e foi até o quarto-escritório de Otávio, onde o amigo jogava uma partida de Tetris enquanto tinha uma reunião mutada no notebook da empresa. - Ocupado? - perguntou ela, rindo.
- Mais uma reunião que podia ser um e-mail.
- Sabe aquela doutoranda que saí semana passada? Ela me chamou pra ir num bar. O que eu faço?
- Ela te chamou chamou? - Perguntou o amigo, agora distraído tanto do Tetris quanto da reunião.
- Só me chamou, Otávio, pelo amor de Deus. Diferente de uns, eu sou capaz de interagir com mulheres sem pensar em outras coisas.
- Deveria pensar… - ela jogou uma camiseta que encontrou na cama em cima do amigo, rindo. - Só tô dizendo, acho que tá na hora de você sair do seu celibato. Você devia ir nesse bar e pelo menos falar com alguém. Nem que seja pra sumir depois. E aproveita que eu vou viajar hoje - você pode fazer qualquer loucura que quiser nesse apartamento, contando que não use a mesa, o sofá ou a minha cama.
- Nossa, Ota, você devia ter se especializado em direito de família.
- É sério, . Eu sei que você pensou que ficaria com a Dora pra sempre, mas você não pode parar de viver por causa dela. Até porque nós dois sabemos que ela não parou.
- Você é até espertinho pra um homem, né? - Ela não esperou resposta, já que alguém chamou o amigo na reunião online. Pegando o celular, atualizou pela milésima vez o e-mail - onde não havia uma resposta de Oxford - e abriu o aplicativo de mensagens para aceitar o convite de Marina.

Vai mais alguém? Só pra eu me preparar mentalmente.


A que Marina prontamente respondeu:

Uma galera da antropo só :)

não perguntou se estava entre eles. Ela passou o resto da tarde relendo trechos de Tristes Trópicos enquanto escrevia pequenos parágrafos de sua dissertação, positivamente ansiosa para ver como a noite terminaria.

*

Enquanto escrevia, pensou em pelo menos três possibilidades de roupas para vestir naquela noite. Havia pelo menos um ano desde a última vez que estivera em um bar e pelo menos uns cinco desde a última vez em que saíra com desconhecidos. De novo, sua roupa e sua maquiagem seriam sua armadura e escudo para interações sociais. Ela escolheu um vestido xadrez e seus tênis brancos. Na hora de se maquiar, lembrou do que Otávio lhe dissera sobre encerrar seu celibato e não passou batom vermelho. Ficou pronta no sofá por alguns minutos, sem querer ser a primeira a chegar, já que haviam marcado o encontro em um bar na Consolação. Ela ficou parada na sala pelo que pareceram horas, até finalmente decidir sair - a ansiedade não estava dando trégua. Talvez se chegasse logo poderia pegar um bom lugar. Ela foi a pé, atravessando a Paulista de ponta a ponta sem pressa mas ansiosa. Quando chegou no local marcado, as mesas na calçada do bar já estavam quase todas ocupadas, o barulho da avenida e da conversa preenchendo o ambiente.
- ! Você veio! - disse Marina, puxando-a para um abraço. As pessoas na mesa desviaram sua atenção para ela, que deu um cumprimento geral antes de sentar na única cadeira vaga. Ela só reparou quem estava do seu lado quando já estava acomodada.
- Por que você tem WhatsApp se não responde mensagens? - perguntou , com seu sorriso quase irresistível, que fazia querer revirar seus olhos.
- Nossa conversa é por e-mail - respondeu simplesmente.
- , você quer o que? Cerveja? Refri? Drink? - perguntou um outro mestrando do laboratório, Vinícius, com quem ela já apresentou um seminário. olhou o cardápio disposto na mesa e seu pensamento foi um ‘foda-se’.
- Hmm… Quero um mojito - o garçom, que se aproximara, já anotou o pedido. Os demais pediram petiscos e cerveja. estava com uma garrafa de água em sua frente.
- Você consome algo que não seja Coca Zero? Surpreendente. - Provocou ele, novamente sorrindo para . Ele estava de boné, os cachos castanho-claros bagunçados. Ela olhou para frente, evitando contato visual.
- Talvez eu precise estar alterada para interagir com você. - ele riu e se deu por vencido, se voltando para uma outra conversa em curso. observou todos ali - conhecia a maioria das aulas de Teorias Antropológicas, uma vez que todos estavam no mesmo programa de pós-graduação - e tentou acompanhar os tópicos debatidos. De um lado da mesa, um grupo comentava sobre uma ex-aluna das Sociais que tinha largado o curso e virado coach. não a conhecia. Do outro lado, e dois caras discutiam calorosamente sobre Star Wars.
- Não adianta, as sequels são péssimas. Eu não considero canon. - argumentou um deles.
- Mas elas são canon - insistiu o outro. - Claro que nem se comparam ao que foram as prequels e a trilogia original, mas ainda assim.
- Os filmes são fracos, - argumentou - mas as séries são bem boas.
Eles deviam ter reparado que estava prestando atenção, pois o primeiro deles falou: - Olha, vocês não sabem de nada. Vamos perguntar pra pessoa mais inteligente da mesa. , o que você acha?
- As séries são ótimas, as sequels são meia-boca e as prequels são subestimadas. - Respondeu ela.
- Exatamente o que eu disse - emendou . poderia ter só dito que concordava com ele, mas preferia ter sua língua cortada a proferir tais palavras.
- As prequels são bobas demais! Não faz o menor sentido a trilogia original apresentar o Darth Vader como um puta vilão e depois mostrarem o Anakin como um cara muito bobo.
- Na verdade, faz todo sentido - responderam e , juntos. Ele parou e deixou que ela continuasse sozinha. - Ele perde tudo que ele acha que está protegendo quando cai para o lado sombrio, tudo isso porque ele não confiou em quem devia e acreditou nas mentiras do Palpatine. E a grande ironia é que ele trai os Jedi e ainda assim perde a Padmé e volta a ser um escravo.
- Ainda acho tudo isso meio bobo - insistiu o desconhecido. riu.
- É que Star Wars é uma história de amor, mas os nerdolas só focam nas lutas de espadinha brilhante - disse ela, gerando ainda mais burburinho. sorriu.
- Bom, ela está certa - disse ele, pegando uma das batatinhas fritas dispostas sob a mesa.
- O que custava pensar assim no nosso artigo também? - perguntou , em um quase sussurro, para que só ouvisse. Tudo isso sem contato visual.
- , eu adoro mulher mandona, mas não no que diz respeito ao meu currículo - sussurrou ele de volta. Ela apertou a própria coxa quase como um reflexo do arrepio que sentiu, na tentativa de evitar reagir de forma que ele notasse. - Nós vamos fazer isso juntos e se eu fosse você tentava se acostumar com a ideia. Eu já aceitei. Quer uma batatinha?
pegou e mordeu pequenos pedacinhos porque sabia que se comesse de uma vez ia querer pegar mais e mais. Deu um gole no drink gelado e se voltou para o outro lado da mesa. - Ela vende um curso de seis mil reais para ensinar a ter sucesso. Imagina, um curso vendido já são quase três meses de bolsa. Queria eu ter essa coragem… - dizia Marina, rindo.
- Sempre dá pra gente dar o golpe da mentoria acadêmica, que é basicamente o trabalho do orientador. - opinou . - Podemos juntar as dicas dos antropólogos do PPGAS para conseguir bolsa FAPESP com período sanduíche na Europa.
- Acho que você é a candidata ideal pra vender esse - disse Marina. - Ou o .
- Seria uma honra enorme dar golpes junto com Cardoso - respondeu ele, com aquele sorriso, que cativava a todos os presentes. podia perceber uma das meninas o encarando sem disfarçar, sorrindo sempre que olhava em sua direção.
Apesar de tudo, não podia negar que estava se divertindo. Era engraçado ver todas aquelas pessoas com quem ela discutia teoria, conversava em congressos e dividia as salas de estudos da FFLCH em um contexto tão informal. Pareciam outras pessoas, sem suas palavras características, sem seus óculos e sem seus livros. Era interessante observá-los, reparar seus gestos e seus trejeitos. Havia os que bebiam cerveja, os que bebiam drinks e bebendo água. Diversos tipos de porção estavam dispostos sob a mesa, celulares virados para baixo e variados tópicos de conversa eram discutidos. pegou um dadinho de tapioca, mordendo-o em pequenos pedaços, e Marina reparou.
- Ah, pega esse e deixa aí pra vocês herbívoros - disse ela.
- Eu sou vegano, Mari. E isso tem queijo - corrigiu . não sabia dessa informação. Em seguida, mais baixo - Não sabia que você é vegetariana. Talvez porque você nunca coma nada.
- Por que você está tão interessado na minha dieta? - perguntou ela, ligeiramente irritada. Odiava quando as pessoas reparavam no que ela comia ou deixava de comer. E isso parecia ser ainda mais irritante quando era comentando.
- Só estou pensando que se você continuar bebendo sem comer vai acabar passando mal e isso seria humilhante - disse ele, dando de ombros e rindo.
- Já que estamos opinando sobre as decisões um do outro - começou ela, olhando-o nos olhos pela primeira vez na noite. Os olhos azuis dele lhe atraiam e ela logo desviou seu olhar, temendo não conseguir mais parar de olhá-lo - você devia parar de usar boné. Você pode ficar calvo.
- , você nunca come nada e eu usei boné na sua presença o que, duas ou três vezes? Isso tá meio desequilibrado.
Ela não respondeu nada, levantou-se da mesa e foi até a esquina, longe das mesas que ocupavam a calçada, abriu a bolsa e tirou um cigarro. Ela não estava contando que iria e muito menos que ele se dedicaria para tirá-la dos eixos. Fumar lhe lembrava de Dora, que odiava o vício com todo o seu ser. Ela riu sozinha, pensando no que Isadora diria nessa situação - exceto que isso nunca aconteceria.
- Eu não falei só pra te irritar, sabe - falou ele, surgindo por trás dela. - Você realmente pode passar mal bebendo sem comer.
- Desde quando você se preocupa tanto comigo? - perguntou ela com o cigarro entre os dedos.
- , eu tô falando um fato: beber de estômago vazio não é uma boa ideia. Não tem nenhum tipo de juízo de valor ou sei lá. Desculpa se te ofende tanto que as pessoas falem com você. - falou, olhando nos olhos dela. Novamente, ela evitou encará-lo.
- Você está sempre rindo de mim, então sim, talvez me ofenda quando você decide que está na hora de falar diretamente comigo - disse ela, dando um último trago no cigarro antes de apagá-lo em um cinzeiro com o logo do bar.
- Eu nunca estou rindo de você - disse ele, simplesmente. E saiu.

*

Antes

- Amor, você não vai acreditar! - disse Isadora, sorrindo com todos os dentes e pulando mesmo que o médico tenha sido enfático sobre repouso mesmo após a retirada do gesso. - Você não vai acreditar!!
estava organizando a papelada para a matrícula na pós-graduação. Seria a primeira a entregar todos os documentos para evitar quaisquer problemas.
- O que? É alguma fofoca?
- Eu não vou sair da companhia! Eles me disseram hoje - disse Dora. sabia que havia um mas. - Claro, não tem nada a ver com o que eu planejava, mas não vou precisar fazer um curso técnico qualquer ou trabalhar em algum emprego corporativo horrível! Eles querem que eu vire professora.
A verdade é que Isadora não pretendia ser professora de balé tão cedo. Ela gostaria de ser prima ballerina antes. Gostaria de se apresentar em centenas de lugares. Gostaria de viver todas as glórias dos palcos antes de se confinar no estúdio. Mas o que a apavorava mais era a possibilidade de ser obrigada a trabalhar com algo que não fosse dança. Aos poucos ela se acostumou à ideia de ser professora, bem como , que tinha certeza que a namorada se daria muito bem ensinando outras pessoas a dançar.
- Eu sabia, Dora! Eu sabia que eles não iam te deixar parar de dançar. Eu sei que não era esse o plano, mas ei, você vai gastar menos com sapatilhas de ponta! Sério, eu tô muito feliz. Eu sabia que as coisas iam se resolver sem que você precisasse seguir os conselhos da sua mãe de fazer técnico em T.I.!
- Há! Agora vão me perguntar se eu trabalho ou se só dou aula. Mal posso esperar pelo próximo Natal na casa da minha avó! - disse ela, rindo. estava aliviada sobretudo porque a frustração e tristeza de Isadora eram avassaladoras demais para ela lidar. Isadora era intensa, para bem ou para mal, e os aparentemente incontáveis meses com o pé machucado haviam sido prova para que, caso a namorada não voltasse a dançar, ela jamais voltaria ao seu normal. Agora, felizmente, Dora já aceitava melhor a ideia de ser professora e estava em paz com tudo isso.
- Eu acho que você será uma ótima professora e, além de tudo, jovem o bastante para que pelo menos duas alunas tenham uma quedinha por você.
- Sorte a sua que todo mundo lá sabe que sou comprometida desde a adolescência…

*

Quando voltou à mesa, os colegas discutiam algo muitíssimo importante:
- Tá bom. Quem aqui realmente tem interesse em integrar uma mesa de Dungeons & Dragons? Faz anos que não mestro uma campanha e há poucas coisas melhores do que fingir que goblins são os únicos problemas de nossas vidas e não a qualificação. - Disse um dos caras que não sabia o nome. - ! O que você acha?
- Eu já joguei D&D algumas vezes, mas nada formal e elaborado… Não sei se sei jogar no modo sério. Mas acho que a ideia de uma mesa de RPG de antropólogos seria fascinante.
- Eu topo - disse , sorrindo. - Eu posso não ser o mais inteligente dessa mesa mas aposto que sou o mais foda do RPG. Afinal, são mais de dez anos de jogador e algumas campanhas de mestre.
- Por isso você não tem namorada, cê sabe, né? - Marina provocou, fazendo todos da mesa rirem. inclusa.
- Sim, Marina, na verdade eu gosto de usar essa desculpa - replicou , rindo também. Ele sorriu diretamente para .
- Bom, eu jogava RPG e tinha uma namorada, então provavelmente tem algo de errado com ele - provocou ela. Quando todos riram ela se sentiu muito bem - sentiu que estava começando a fazer parte daquele grupo.
- Tem, sim. Ele é absurdamente fiel a uma garota que nem sabe que ele gosta dela - expôs um dos amigos de com quem havia falado sobre Star Wars.
- Quando que a discussão mudou de RPG para meu status de relacionamento? - perguntou , mordendo uma batata-frita. Marina olhava para ele com aquela expressão. A expressão de quem sabia quem era a pessoa de quem o amigo era afim. desviou o olhar.
Depois de mais algumas risadas, o grupo voltou a discutir temas diversos: distribuição de bolsas de pesquisa, professores babacas em disciplinas obrigatórias, uma golpista do mestrado (ela havia pedido R$50 emprestados para cerca de sete pessoas de variados laboratórios e nunca pagou) e outras amenidades. E a noite caia, os sons de conversa misturados aos sons da cidade, música de uma jukebox e buzinas ocasionais. tentava acompanhar tudo aquilo, seus pensamentos mais lentos devido ao mojito e sua bateria social começando a se desgastar.
- Você tá bem, ? - perguntou uma das garotas, Paola, se a memória de não estivesse lhe enganando. - Você tá meio pálida.
- Acho que esse mojito bateu mais forte que o esperado - ela riu. - Acho que vou ao banheiro.
- Eu vou com você - prontificou-se. Elas foram juntas, apoiada na garota, até o banheiro. Quando terminou de fazer o que precisava e lavou as mãos, Paola estava com alguns guardanapos molhados, que prontamente colocou na testa de .
- Acho que pode estragar sua maquiagem - sussurrou ela - mas você vai ficar melhor.
- Tudo bem - sussurrou de volta. Elas estavam bem próximas, mais próximas do que jamais esteve de alguém desde Dora. Paola pressionava levemente os guardanapos na testa de , que não sabia se o ambiente fechado que estava quente ou se estava acontecendo algo ali. A colega olhava em seus olhos e afastava o olhar, pressionava os papéis com delicadeza ao mesmo tempo que conseguia ver que ela estava agitada. Era como se tivesse um dèjá vu de todos os momentos que praticava os passos do balé com Isadora - os toques, os olhares com a dúvida: o que vai acontecer? lembrou do que Otávio havia dito antes de ela sair e aproximou-se ainda mais de Paola, que sorriu.
- Você tá bêbada - disse, sem olhar nos olhos de . - E eu não sei qual o drama em que você tá envolvida, então não acho uma boa ideia.
sorriu de volta, assentindo. Nem ela mesma sabia qual o drama em que estava envolvida - não parecia certo inserir mais alguém àquela equação confusa. Ela tirou os guardanapos da testa.
- Acho melhor eu ir pra casa. - Paola assentiu e a acompanhou para fora do banheiro. Quando as duas chegaram à mesa ouviram algumas risadinhas mas nenhum comentário.
- Você tá melhor? - Perguntou Marina, visivelmente preocupada.
- Tô, sim. Só esse mojito que tava mais forte que o que eu esperava. - Mentiu. Não era apenas o mojito, mas um misto de várias coisas que fizeram sua cabeça rodar e seu rosto perder a cor. - Acho que vou pra casa descansar. Foi ótimo ver todo mundo, obrigada pelo convite!
- Eu sei que você mora perto, mas pede um Uber. Não sei se você tá em condições de ir sozinha pra casa - Sugeriu a amiga. - O Vini tá indo agora, vocês podem rachar.
- Eu posso levar ela - disse , levantando-se e já deixando sua parte da conta na mesa, lembrando de fazer o mesmo. Ela gostaria de ter força para negar a oferta, mas estava sonolenta e tonta, então pela primeira vez não se empenhou em dar uma resposta para ele. Só assentiu e esperou. Depois de despedirem-se de todos os presentes - para a maioria ainda era cedo, Lisboa liderou o caminho. estava ficando para trás, ainda meio enfraquecida. Quando ele percebeu, voltou até ela, que na tentativa de alcançá-lo, tropeçou em um pedaço solto da calçada. rapidamente envolveu-a pela cintura até que ela se equilibrasse. Ficaram por alguns nanossegundos próximos daquele jeito, cada célula do corpo de totalmente consciente do toque de . Mesmo quando ela se ajeitou, ele continuou segurando-a.
- Você deve estar adorando isso - disse ela, rindo sem achar graça. - Tô passando mal do jeito que você disse que eu iria.
- Não tem por que eu ficar feliz com isso - disse ele, simplesmente. Sóbrio. Tranquilo e ainda assim parecia ter algo que o incomodava. Ela não estava bêbada, apesar de o álcool lhe ter feito mal. Tentou recordar tudo que havia comido no dia - várias xícaras de café e um prato de salada de alface com tomates cereja. Uma Coca Zero. Alguns pedacinhos de petiscos no bar. Ele pareceu notar que havia algo errado, porque parou.
- Você tá com cara de quem vai desmaiar. Você precisa comer algo. - Ela não negou, precisava mesmo. Só assentiu, tentando lembrar que não podia só obedecer - não que tivesse forças para algo que não fosse isso. - Estamos chegando no carro e então vamos procurar algo pra você.
- Minha casa está perto, também - disse ela.
- Preciso te ver comer - disse ele - Pra ter certeza que você não é um robô.
Ela riu e continuou apoiada nele, os dois andando em silêncio. As ruas estavam movimentadas, afinal, estavam no coração de São Paulo numa sexta-feira. Bares e baladas deixavam as ruas cheias. Entregadores de aplicativo, pessoas em situação de rua, jovens aproveitando a noite depois de aulas noturnas, pessoas saindo e entrando nos prédios. A cidade cheia e viva como ela sempre amou. Quando chegaram ao carro, lembrou de vê-lo estacionado na USP. Era um sedan prateado com aparência de antigo, com amassados por todos os cantos e uma pintura de dar dó. não fez nenhum comentário, apenas sorriu quando abriu para ela a porta do passageiro. Por dentro, o veículo parecia melhor. Havia uma quantidade considerável de livros da biblioteca da universidade no banco de trás, mas essa era a única desorganização. afivelou o cinto e esperou. Ela não dirigia, então não tinha muita noção técnica do que faz um bom motorista, mas parecia ser um. Apesar do carro já ter passado de seus dias de glória, o caminho foi suave até eles chegarem à Haddock Lobo. Bella Paulista - padaria para turista, sim, mas uma opção noturna. riu.
- Tão paulistano, meu - forçou o sotaque. Ele sorriu contidamente e eles entraram no estabelecimento. Ainda que morasse na região, frequentava padarias menos superfaturadas, então deixou que - que parecia mais familiarizado com o ambiente - a guiasse novamente. Ele fez o pedido e os dois sentaram, as luzes claras do lugar parecendo fazê-lo brilhar.
- Pedi opções veganas, acho que você não vai se incomodar.
- Não vou.
Ele assentiu, olhando algo no celular.
- Então. Sobre o artigo… - começou . levantou o olhar da tela do telefone e ela, por alguns segundos, se esqueceu do que estava falando. O azul dos olhos dele parecia quase irreal. Quando estava distraído assim sua expressão se suavizava e irradiava gentileza. O cabelo que escapava do boné idiota parecia macio e ela desejou tocar. Ela só poderia estar delirando para pensar coisas assim, então pigarreou. - Acho que você devia ler o que eu escrevi.
- , é sexta-feira à noite. O artigo pode esperar.
- Tá. Acho que pode.
Os pedidos chegaram e pensou em quantas calorias teria aquele sanduíche com abobrinha. Havia molhos e pão. Ao menos ele havia pedido uma Coca Zero. No entanto, só de sentir o cheiro seu corpo já reagiu, como se implorasse para devorar aquilo. Mesmo assim, ela deu pequenas mordidas no lanche, sabendo que se fizesse de outra forma passaria mal. a observava.
- Você definitivamente não é um robô.
- Nope - disse ela, antes de dar outra mordida no sanduíche. Ele riu. Ela também. Quase pareceu que Lisboa não a odiava e não estava concorrendo à mesma vaga de estágio em Oxford. Quase pareceu que eles poderiam dar uma trégua.
- Foi legal você aparecer, pra variar. Não sei o que a Marina fez, mas foi bom.
- Foi bem melhor do que eu imaginei que seria. Estava esperando coisas horríveis. Humilhação ou sei lá. Não sou a pessoa mais querida do mundo, sabe…
- Você nunca deu uma chance pra ninguém do laboratório te conhecer - ele respondeu. Estava certo, mas jamais admitiria.
- Nem todo mundo é extrovertido como você - respondeu ela, quase num sussurro.
- Mas você deu uma chance hoje - continuou ele. - Talvez logo você seja querida.
- Não sei se tenho salvação.
- Você dá medo.
- De um jeito ruim?
- Não sei - disse ele, como se estivesse de fato pensando na resposta. - Ainda não entendi.

[…]

O resto do tempo deles na padaria passou rápido. Eles terminaram de comer e voltaram para o carro, onde ‘Oba, lá vem ela’, de Jorge Ben, rompia o silêncio. Agora que a consciência voltava para , ficou mais difícil de interagir com . Ele também parecia menos aberto, como se agora houvesse entre os dois uma barreira invisível. havia explicado onde morava e em menos de dez minutos estavam lá.
- É aqui - avisou quando surgiu o prédio antigo onde morava. parou o carro em frente a portaria. - Obrigada pela carona. E pelo lanche.
- Não foi nada - ele respondeu, sorrindo novamente. Eles ficaram parados ali por alguns segundos, em dúvida de como se despediria dele. Ela tirou o cinto e ficou alguns instantes parada olhando para a frente, as mãos sob o colo, ciente de que ele a observava. A música havia parado e ela conseguia ouvir as batidas de seu coração. Teve medo que ele também fosse capaz de escutar.
- Boa noite - disse ela, baixo. Abriu a porta sem olhar para ele. Ela saiu e antes de fechar a porta, ele a chamou.
- ?
Ela parou, a porta aberta e todo o resto da cidade parecendo congelado. Como se todos estivessem paralisados, menos eles dois. Ela olhou para ele.
- Oi?
Ele demorou alguns segundos antes de responder, como se precisasse pensar muito no que iria dizer.
- Boa noite - disse, por fim. sorriu de leve.
- Boa noite - repetiu e bateu a porta. Ele esperou ela passar pela portaria mas, quando ela virou para trás já no hall de entrada, o carro não estava mais lá.


5. Pessimismo sentimental

Resumo: Falhas fazem parte do fazer científico, mais até que os sucessos. Apesar de sua recorrência, lidar com esse sentimento não fica mais fácil. No presente registro, acompanhamos , nosso objeto de estudo, reagindo à frustração em dois momentos distintos, com objetivo de tentar conceber teorias sobre o caráter social das categorias “sucesso” e “fracasso” e como esses afetam jovens mulheres.
Palavras-chave: Reação; Sucesso; Apoio

Quando acordou no sábado, parecia ter dormido por uma era. Estava desnorteada, os sons da rua reverberavam e ela levou alguns segundos até se sentir, de fato, acordada. A casa estava vazia porque Otávio estava de férias na Bahia, então ela saiu do quarto vestindo apenas calcinha e uma camiseta da atlética acadêmica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, indo direto para a cozinha, onde ligou a cafeteira para começar o dia. No banheiro, fez sua rotina de skincare, lavando o rosto e passando séruns, cremes e protetor solar com delicadeza; arrumou os cabelos castanhos em duas tranças; escovou os dentes e voltou à cozinha, onde o cheiro de café já estava forte. Pegou sua caneca favorita e encheu de café, dirigindo-se até a enorme janela da sala para contemplar a cidade.
Seis andares abaixo, ônibus, carros e motos passavam pela via. Entregadores de aplicativo transitavam na ciclofaixa, alguns já estavam sentados na calçada em frente ao restaurante japonês no outro lado da rua. Moradores passeavam com cachorros e outros transeuntes passavam por ali para chegar em seus destinos. O sol brilhava quase no alto do céu e estava quente. Ela levou alguns minutos saboreando seu café e só então pegou o celular. Ela havia sido adicionada ao grupo “Cientistas Sensuais” por Marina (obviamente) e vários colegas lhe davam boas-vindas. estava no grupo, mas não disse nada. Haviam três áudios de uma Marina levemente embriagada:

… Por favor me avise se você chegou?”
você tá em casa né?”
disse que te deixou em casa… Devo confiar?”


respondeu.

Oi, bom dia!! Eu dormi assim que cheguei, então sim, estou em casa!!


Ela pensou em . Pensou em como ele a havia chamado antes de ir embora, parecendo que diria alguma coisa, mas deu apenas boa noite. Pensou nos minutos em que ficaram na padaria comendo lanches veganos e como, naquele momento, ele não pareceu odiá-la. Pensou em como ele parecia ridiculamente atraente com aquele boné idiota. Tais pensamentos a fizeram largar o celular e voltar sua atenção para a rua - não havia mais nada de álcool em seu corpo, portanto, nenhuma razão para achar Lisboa atraente. A tela de seu celular acendeu - mensagem de Marina.

Ufa q bom! Ficamos muito felizes q vc veio!
Bem vinda ao grupo dos cientistas sensuais!!!!!!!!!! NÃO SAIA PFVR!!!
Prometo q não vai ser 1000 mensagens em 2h - menos se tiver fofoca no departamento


Não sei se sou uma cientista sensual mas fico lisonjeada!!
Obrigada por ter me chamado… Foi muito legal :)


tinha tarefas para fazer. Precisava colocar roupas para lavar, limpar o quarto e escrever algumas coisas da dissertação e organizar um ensaio para uma disciplina de Antropologia Urbana. Já eram quase onze da manhã, então tentaria fazer as tarefas domésticas antes. Ligou a TV para conectar ao Spotify e foi até seu quarto se trocar. Aproveitou para recolher as roupas sujas e trocar os lençóis da cama. Abriu todas as janelas do apartamento e começou o seu dia.

*

Antes
Lisboa estava sendo simpático e não sabia muito bem como reagir. Ela não conseguia confiar no rapaz - sempre sorrindo, sempre oferecendo ajuda, sempre falando coisas engraçadas. No mundo lá fora talvez isso fosse apenas alguém de bons modos, mas no meio acadêmico? Um homem simpático? Não era confiável.
- ? - Chamou ele - Qual é seu tema de pesquisa mesmo?
- Tô fazendo a IC sobre o trabalho do Lévi-Strauss na fundação do departamento - respondeu ela, da forma mais neutra possível.
- Acho muito engraçado como nós dois fazemos pesquisas sobre a história do departamento de antropologia - disse ele, sorrindo. - É engraçado, né?
- É, sim - concordou ela. Ela voltou para o Kindle. Ele continuou ali.
- Disseram que você é bailarina? É verdade? - perguntou. Ela levantou o olhar.
- Não, eu só faço aulas, mas não sou bailarina - respondeu. - Não profissional, pelo menos. Minha namorada sim, é bailarina.
- Hum… namorada? Legal. - Disse ele, as mãos nos bolsos do jeans e uma expressão enigmática. - Ela estuda aqui?
- Não.
- Minha ex-namorada é artista. Digo, ela faz Artes Visuais na ECA. - Informou ele, ainda amigável.
- Legal.
- Mas, pelo jeito, acadêmicos e artistas não combinam muito. Quer dizer, no meu caso. Espero que sua namorada te entenda mais.
quis concordar que, de fato, às vezes ela e Isadora tinham suas diferenças. Queria dizer que o entendia, porque de fato, namorar uma artista era uma experiência única. Mas não tinha porque compartilhar algo pessoal assim com . Então assentiu.
- Ela entende - confirmou.
- Ah, fico feliz - disse ele. - Vou te deixar ler agora.

*


Após horas de arrumação, o apartamento estava finalmente organizado. O sol batia na sala e pela primeira vez em muito tempo, sentou à mesa e almoçou alguns vegetais e leguminosas misturados em uma cumbuca. Ela passou pouco tempo contemplando a tarde, no entanto. Assim que acabou de almoçar, juntou a louça para lavar e em seguida arrumou a mesa para trabalhar. Alguns livros, muitas anotações de aula, agenda e o notebook eram essenciais; cerca de 400 ml de café na prensa francesa e uma xícara bonita. Em seus fones de ouvido escutava uma playlist de músicas instrumentais para se concentrar. Antes que começasse a pensar em seu ensaio para a aula de Antropologia Urbana, percebeu uma notificação no WhatsApp.


Podemos fazer uma chamada no Meet hj?
Pra organizar o artigo.
A Ceci tá me cobrando com minha qualificação, preciso disso urgente.
Ela abriu a conversa e começou a digitar várias vezes, sem saber o que responder.

Pode ser lá pras 19h? Tenho um trabalho urgente


Ok

Ela saiu da conversa, mas antes que pudesse focar no ensaio, uma imagem de Marina apareceu na tela, indicando uma chamada. Ela atendeu e deixou o celular no viva-voz enquanto organizava seus textos.
- Você dormiu bem? Está viva?
- Tô, sim. Eu só não tinha comido direito. Mas estou bem, não se preocupa.
- Nah, minha preocupação era que você e o se matassem ontem quando saíram.
- Na verdade ele foi bastante educado, nem parecia o Lisboa que eu conheço.
- Talvez ele seja uma pessoa legal e educada, .
pegou o celular e parou de olhar os textos na tela do notebook.
- Então por quê todo mundo do LEIC dá risadinhas toda vez que eu chego e o tá na sala?
Marina respirou fundo. Ela demorou alguns segundos pra dizer.
- Porque vocês dois são engraçados. Desde que vocês dois entraram no laboratório você tem essa rixa com ele e ele abraçou isso. É engraçado vocês dois serem tão inteligentes e não perceberem o que tá óbvio.
- O que tá óbvio, Marina?
Ela demorou para responder novamente.
- Sei lá, que vocês dois são adultos e existe espaço pros dois? Que a Ceci gosta de vocês dois igual? Mais do que qualquer outro orientando que ela já teve na vida, aliás. Tanto que vocês, dois pirralhos da graduação, conquistaram ela quando tinha gente no doutorado que ela só aturava.
- Eu só tô tentando garantir minha vaga em Oxford, só isso! - se defendeu.
- Por que você quer tão desesperadamente sair de São Paulo? Tem a ver com sua namorada?
- Ex - enfatizou . - Sei lá. Só quero fazer algo que faça sentido.
- Falando em mulheres… - disse Marina, rindo. - Você e a Paola ontem, hein?
- Não aconteceu nada - disse , revirando os olhos. - Sério.
- Bom, ela está no Cientistas Sensuais… Vocês podem conversar depois. Sei lá. Saírem.
- Mari, eu adoraria discutir ficadas com você, mas preciso escrever meu ensaio de Antropologia Urbana.
- E o artigo com o ? Você sabe que existe prazo pra isso, né?
- Argh. Não me lembra disso também, por favor… Eu tô evitando a Ceci por isso.
- Vou te deixar estudar em paz, tá? Mas se eu fosse você focaria nesse artigo. Eu sei que você e o não são amigos, mas a Ceci tá cobrando demais ele com a qualificação.
- Ele pediu pra você me pedir com jeitinho?
- Não, ele nem sabe. E ficaria puto se soubesse que eu falei.
- Fica tranquila, eu não vou ser uma vaca. Mas agora preciso desligar, tá?
- Beijo.
não disse que também estava atrasada com a qualificação e que esse também era um dos motivos pelos quais estava evitando a orientadora. simplesmente não conseguia terminar as tarefas necessárias para passar pelo exame e a ansiedade lhe paralisava toda vez que tentava resolver isso. Quando logava no sistema de pós-graduação, o prazo para a inscrição estava ali, lembrando-a que, caso não passasse pelo exame de qualificação logo, seria desligada do Programa de Antropologia Social. Sabia que só aceitando trabalhar com , sem birra ou teimosia, conseguiria continuar com sua dissertação. Então mandou mensagem.

[...]


demorou alguns minutos para ver a mensagem, mas assim que o fez, enviou um link do Google Meet para . Antes de solicitar a entrada na sala, ela correu até o banheiro para arrumar o cabelo. E trocar de blusa. E passar um lipbalm. Só então solicitou a entrada na sala e logo o viu, distraído em outra aba, provavelmente.
- - disse ela.
- Ah, oi, - disse ele, sorrindo - Tudo bem? Você já terminou suas tarefas?
- É, então… - começou ela - Não, eu não terminei, mas acho que podemos ir discutindo, o que você acha?
- Ótimo - disse ele. - Na verdade, eu tenho alguns textos que a Ceci me passou quando eu estava escrevendo meu projeto e eu acho que podem ajudar.
- .. Por que você não escreve o que acha?
- Quando chegamos nessa fase? Quando você começou a achar que sou letrado?
- Ha-ha-ha… Você pediu que eu te deixasse fazer as coisas e agora tá reclamando?
- Não tô reclamando, não mesmo - ele disse, rindo - Só não entendi como chegamos nessa fase.
- Que fase? Você é tão… Chato! - Ela disse rindo. Posteriormente, se sentiria mal por ter se divertido ao falar com Lisboa.
- É sério, … Se você estiver sendo legal comigo por causa da carona ontem, não precisa, tá? Eu não fiz isso pra te comprar ou algo assim…
- Olha, , não é só você que tá atrasado com a dissertação, tá? Eu também tô, e muito. A Ceci já começou a me cobrar porque eu não tenho quase nada pronto. Esse artigo vai ajudar bastante, e vai ajudar nós dois, então acho melhor a gente só fazer.
- Certo - concordou ele. - Então podemos marcar uma reunião outro dia para discutirmos, o que acha? Já que você está ocupada.
hesitou.
- Seria bom fazermos juntos, não? - Perguntou.
- Você acabou de me dizer pra escrever o que eu acho.
- Exato, não disse pra você escrever sozinho. E mais, seria uma boa ter alguém me observando pra eu não procrastinar.
- Viramos colegas de Pomodoro, agora?
- Eu não ia gostar de que você me visse sendo uma procrastinadora - disse ela. - Já que isso poderia inflar ainda mais sua autoestima de homem médio.
- Só eu tenho uma autoestima gigantesca, né? - ele riu, ligeiramente distraído, já parecendo estar trabalhando no artigo.
- Cuidado se for me chamar de arrogante - alertou . - Vai ser a comprovação que você é misógino.
- Eu não quero nem imaginar de onde você tirou que sou misógino.
Ela revirou os olhos, se divertindo.
- E todo homem não é?
- Isso pode ser debatido.
- Você vai me explicar como funciona a misoginia?
Ele sorriu.
- Esperta - disse rindo. - Vou me calar por aqui.
- Obrigada.
Eles continuaram trabalhando em silêncio por quase duas horas. Alguns poucos ruídos do microfone de ecoavam nos ouvidos de . Eles quase pareciam amigos. Quase parecia não haver nada de estranho no relacionamento deles.

Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo - Um mês depois
Quando pegou o exemplar de Tristes Trópicos na biblioteca, não precisou folhear muito até encontrar um novo pedaço de papel.

Eu também sou antropólogo. Mas não sei se sou um bom antropólogo. Sou ótimo em interações sociais, acho que por isso não tenho o distanciamento necessário para estudar tais interações. Talvez nós dois, juntos, formemos um antropólogo completo.
Uma pena o que rolou com os livros. Mas pelo menos estou tendo a oportunidade de conversar com alguém de uma forma diferente. Vou fingir que isso não é bastante estranho e pouco adulto - talvez devamos pensar nisso como um experimento social. Sem nomes, sem informações demais. É sempre ótimo conversar de forma anônima - posso te contar que tenho uma coleção de brinquedos infantis de uma franquia famosa de filmes e você não poderá me julgar.


Ela riu, pensando nas pequenas coisas bobas que também colecionava e pensou o que poderia ser a coleção de brinquedos dele. Sentou-se novamente no banco em frente a biblioteca enquanto observava o bilhete, pensando no que poderia responder. O que poderia contar ao livro. Quais segredos poderia compartilhar sem que ninguém soubesse. Enquanto observava o papel, não reparou Marina se aproximando.
- ! Você não apareceu no LEIC essa semana. Tá tudo bem?
- Tá, sim. Só correndo com os preparativos para a qualificação. - Ela rapidamente enfiou o papel de volta ao livro. Tão rápido que pareceu suspeito.
- O que é isso?
- Nada - mentiu - Só uma lista de livros que preciso.
Marina assentiu, sem comentar nada sobre o comportamento de . Eram amigas havia pouco tempo - era como se a amizade ainda fosse algo delicado, sensível, facilmente quebrável. ficou grata por Marina não ter insistido.
- E o artigo com o ?
- Tá indo, eu acho. Preciso falar com ele.
- A Ceci está te procurando.
- Eu sei, vou lá daqui a pouco.
- Bom, eu preciso ir! Minha carona está me esperando! Depois me conta o que ela quer, fiquei curiosa mas ela não disse nada.
- Claro, mas aposto que ela só quer me cobrar da quali.
Marina sorriu e saiu correndo em direção ao estacionamento na travessa de trás da biblioteca. continuou parada ali, sentada e pensando em como encarar Cecilia. No último mês, havia finalizado os últimos créditos de disciplinas e agora estava pronta para marcar o exame de qualificação e, consequentemente, para iniciar o processo de escrita da dissertação em tempo integral. Ela precisava consultar alguns documentos do Arquivo da USP, bem como entrevistar alguns dos professores mais velhos do departamento, mas tudo isso lhe paralisava. Era irônico como era tão boa e tão perfeccionista, mas incapaz de entregar um trabalho. Até agora tinha fichamentos infinitos dos mais variados textos; havia lido Lévi-Strauss no francês original, mas no que diz respeito à dissertação, só possuía alguns rascunhos - o último deles estava com as correções de Ceci, mas não teve coragem de abrir o e-mail. Ela ficou ali por alguns instantes, pensando sobre o papel em sua mão e percebeu que realmente não se sentia uma antropóloga completa, mesmo que tivesse uma série de certificados que comprovem suas habilidades. Pensou se deveria simplesmente pegar um ônibus e voltar para casa, ignorando que Cecilia a estava esperando. Pensou se não deveria desistir do mestrado, já que, aparentemente, era incapaz de realizar essas atividades ou sequer agir como uma pessoa normal e simplesmente falar com a sua orientadora. No entanto, antes que pudesse tomar qualquer decisão, viu uma silhueta bastante conhecida vindo em sua direção.
- Por um ou dois dias eu achei que você tivesse desistido do mestrado e quase te mandei mensagem para parabenizar, mas isso só serviria de combustível pra você me odiar - disse , sorrindo. revirou os olhos.
- Se eu desistir, você vai acabar relaxando e a Ceci não vai gostar - respondeu, levantando-se. - Ah, eu acho que já relaxei - disse ele enquanto guardava alguns livros na mochila. - A Cecilia tem novidades sobre Oxford.
- Ah, é? Você veio aqui só pra jogar na minha cara que conseguiu, então? - questionou ela, rapidamente mudando de expressão. Não queria chorar, afinal, sequer sabia o que viria em seguida, então se concentrou mesmo sentindo o aperto na garganta.
- Eu fui cortado, só isso que sei - admitiu ele, sem parecer afetado. - Eu não tenho seu currículo e, além de tudo, tô com a qualificação atrasada.
não soube como reagir - por um lado, estava feliz de estar fora da competição mas, por outro, sentiu-se mal por isso. Sabia como esses acontecimentos - fracassos - afetam as pessoas - e mesmo que ela estivesse falando de , ela sentia empatia, já que conseguia imaginar exatamente o que sentiria se fosse ela sendo cortada do seu processo seletivo dos sonhos.
- Eu… Desculpa. Eu não tinha ideia. - murmurou em resposta, sabendo que seu rosto deveria estar denunciando o quanto estava sem graça. Para sua surpresa, ele deu risada.
- Eu não tinha muita pira de ir pra Inglaterra, acho que a USP tá mais que boa pra mim - disse ele, parecendo sincero. Ele parecia estar inquieto também, uma vez que não parecia saber o que fazer com as mãos - colocava-as e tirava-as dos bolsos, cruzava os braços e descruzava, passava os dedos entre os cabelos castanho-dourados. - Mas estou torcendo por você, claro.
- Aposto que está - ela riu, sabendo que ele falava aquilo só pra provocá-la. - Olha, independente disso precisamos nos encontrar pra começar a escrever oficialmente o artigo. Acho que nosso rascunho tá bem bom.
- É uma boa. Podemos vir amanhã cedo? - perguntou, pegando o celular e abrindo um aplicativo de agenda.
- Pode ser amanhã à tarde?
- Eu prefiro de manhã - respondeu ele, sorrindo de forma afetada.
- Posso escrever sozinha - disse ela, sorrindo de volta.
Ele suspirou.
- Já que você vai me fazer vir aqui amanhã à tarde, é melhor eu ir resolver minhas coisas agora, então.
- Até amanhã! - respondeu, sorrindo mais do que o ideal na situação. Talvez fosse uma reação da ansiedade pela conversa com Cecilia, talvez só estivesse cansada. Ou talvez estivesse se enganando sobre Lisboa. De qualquer forma, ela soube que não deveria sorrir desse jeito, não por causa dele. Ele levantou a mão direita e, depois de alguns segundos desajeitados no ar, deu um leve tapinha no antebraço de , deixando-a ainda mais confusa. Nada naquela sequência de movimentos fez sentido, mas antes que ela pudesse comentar algo, ele saiu em direção ao estacionamento e ela foi em direção ao Prédio do Meio, onde ficavam os departamentos de Ciências Sociais.
O caminho para a sala cuja porta se lia “Cecilia Moraes-Witlin” era intuitivo para . Desde a graduação ia até a sala da orientadora, um pequeno espaço entulhado de livros e com uma grande quantidade de arte indígena, como cerâmicas e cestarias. O aroma dentro do ambiente era uma mistura do cheiro dos livros, de uma vela floral, do próprio perfume de Cecilia e de café. Era um cheiro conhecido e, de certa forma, reconfortante.
No segundo toque, ouviu um “entre” abafado, e assim o fez. Cecilia estava sentada à sua mesa, digitando concentrada em seu notebook e quando levantou os olhos, sorriu simpática.
- - saudou a professora. - Fiquei sabendo que você não veio ao laboratório essa semana. Só poderia ter sido quem contou para ela. quis socá-lo.
- Eu não estava me sentindo muito bem - não era mentira. A ansiedade realmente não era um bom sentimento para se ter.
- Não estou reclamando - riu Cecilia. - Só queria falar com você, mas não sei se você gostaria de falar comigo.
- Ceci… - riu , sem graça novamente, já que era exatamente o caso.
- De qualquer forma, eu tenho algo para conversarmos - anunciou a professora, fechando o notebook. - Eu já falei com o e agora devo falar com você. Pode sentar.
se sentou, deixando a bolsa no chão ao seu lado. Estava nervosa, podia ouvir as batidas ansiosas do coração em seus ouvidos. Não ficaria surpresa se Cecilia também pudesse ouvir. Depois de segundos que pareceram milênios, a professora falou em um tom condescendente: - , sua candidatura ao estágio em Oxford não foi aceita.




Continua...



Nota da autora: Acho que esse é o primeiro cliffhanger que eu faço hahaha admito que dei uma prolongada nesse capítulo porque tenho gostado de escrever essas conversas triviais. Também demorei pra escrever de fato porque estou começando o meu próprio mestrado e já tenho um zilhão de coisas pra fazer. O título é baseado no texto “O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica”, do Marshall Sahlins.
Nota da beta: cientistas sensuais AHAHAHA onde que a gente se inscreve para entrar no grupo? <3 (o coração na mão pela resposta à Natalie :c)

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