Última atualização: 20/03/2023

Prólogo

O céu escuro como o abismo deveria ter sido indicativo o suficiente de que algo ruim estava por vir.
Estava carregado. Havia algo maligno vagando por entre as nuvens, um quê de anormalidade que não deveria estar ali. O vento forte ia e vinha do norte ao sul e carregava consigo uma energia estranha, um odor forte e amargo que entorpecia os sentidos e dava calafrios na espinha. Era como se a própria Morte estivesse presente naquele lugar. No entanto, quando Kim Seokjin entrou no autódromo vestido em seu habitual uniforme azul e branco com um sorriso molha-calcinhas nos lábios rosas, tudo aquilo foi esquecido, a sensação estranha abandonada nas profundezas da mente coletiva. Era a hora do show, o momento pelo qual todos estavam esperando e o Rei tinha que brilhar.
Não seria uma chuvinha estúpida que iria atrapalhá-lo.
Como se não fosse a maior noite da sua carreira, Jin caminhou despreocupado com uma das mãos dentro do bolso em direção a sua equipe, que já estava reunida na garagem com o seu carro pronto para ser usado; como era a noite da final, ele havia feito questão de correr com o seu xodó favorito, a Lanita Veldey, e embora estivesse fazendo um frio de congelar ossos, ele se sentia confiante a respeito da sua vitória – com a sua Lanita do lado, ele sentia que podia tudo, podia até mesmo o impossível.
Ele sentia que podia dominar o mundo.
Sem dizer uma única palavra, ele entrou na garagem como se fosse o senhorio e assobiou, chamando a atenção dos seus colegas de equipe vidrados em uma notícia que passava na TV. Um a um, como se houvesse sido combinado, eles ergueram a cabeça procurando a origem do som, dando a Jin a visão aberta à televisão minutos antes da tela se tornar vermelho carmesim. Com um olhar sereno, ele apontou para o aparelho:
— Eles ainda estão sem comunicação?
Jung Hoseok, o mecânico da equipe, balançou a cabeça em negação.
— Voltaram, mas não dizem nada. Eles mataram o presidente na cerimônia de posse. — respondeu o rapaz com um toque de assombro na voz. Jin ergueu uma sobrancelha, sem acreditar. Não estava esperando que a situação escalasse tanto. — Teve sangue por toda parte. Um deles veio por trás e enfiou a mão no peito do cara. — estremeceu. — Eles mataram o velho com a mão.
Jin assobiou espantado:
Caralho.
— Nem me fale. — murmurou Kim Taehyung, o assessor de impressa, com um olhar perturbado. Logo atrás dele, a reprise do evento se repetia em um loop infinito. De novo e de novo a mão ensanguentada saía do peito do velho, segurando firmemente o coração que ainda batia pulsante para quem quisesse ver. Era de um sadismo inacreditável, um show de narcisismo que dava inveja e Jin sentiu arrepios de algo assim acontecer por ali. Tae suspirou audivelmente. — Eles agora estão em silêncio outra vez.
Do lado dele, Min Yoongi cuspiu em escárnio.
— É um aviso. — ele pontuou sombriamente e todo mundo concordou com um aceno. Yoongi cuidava da segurança e de colocar garotas bonitas no seu camarim. Ele era o mais calmo da equipe, mas não era intimidador, no entanto, naquela noite havia algo diferente nele. — Só trouxa não vê. — então, apontou com o queixo para o céu. — Já deixaram bem claro que eles não medem esforços pra deixar explícito a mensagem que querem passar.
Jin concordou silenciosamente e voltou a olhar a TV. Nela, o jornalista do Canal 8 informava com uma bandeira brasileira atrás de si como um grupo terrorista havia invadido o Planalto e matado o presidente eleito na frente de milhares de pessoas assistindo. Então, a líder do grupo conhecida como a Mãe, tomou de conta do microfone anunciando que uma nova era havia se iniciado naquele país, cortando a transmissão em seguida. Então, não havia mais nada e o mundo inteiro estava perdido sem saber o que fazer. Jin inspirou profundamente e desviou o olhar, enojado com toda a situação.
— Eu me pergunto... — começou Kim Namjoon, o empresário e homem que cuidava das suas finanças. Jin o encarou com os olhos em expectativa e ele se colocou de pé, limpando a poeira imaginária da calça. Ele sacou o celular do bolso e começou a digitar um número. — Se eles vão vir pra cá. Quero dizer, por que parar em um só país?
Hoseok arfou com a mão no coração:
— Nem pense numa coisa dessas, Namjoon. Isso não pode acontecer por aqui. — ele bradou com a indignação inundando a voz. Namjoon já não o escutava mais, ocupado demais com o telefone no ouvido. Jin suspirou, tentando ignorar os próprios pensamentos: ele também não queria imaginar a possibilidade, mas desde a semana passada, ela aparecia como uma fantasma para lhe assombrar. — Eu acho que eu morro. Eu não sirvo pra ser escravo.
Taehyung riu em deboche.
— Você acha que é isso que eles querem? — ele provocou, o olho escuro brilhando com malícia. Hobi afirmou com a cabeça, como se a única coisa que aqueles terroristas fossem querer eram escravos como mão de obra. Tae riu outra vez e balançou a cabeça. — Pois então você tá muito enganado. Eles são canibais. Eles querem o seu corpo, ah querem, mas pra outra coisa.
Yoongi bufou com irritação.
— Cala a boca, Kim. Não tá ajudando.
— Só tô falando a verdade. — Tae se defendeu.
— A verdade que só tem merda. — Suga rebateu.
— Como se você fosse-
— Espero que eles fiquem bem. — Jin murmurou por cima da briga, em um tom solene.
A equipe se entreolhou: ainda que não dissessem em voz alta, todo mundo sentia que aquele era um desejo muito bobo e muito infantil. Não haveria “bem” para aquele país nunca mais. Talvez não houvesse sequer um país quando aquelas pessoas acabassem o que vieram fazer. Com um suspiro cansado, Jin decidiu que era hora de mudar de assunto.
Ele esfregou as mãos uma contra a outra.
— Quanto tempo para a minha garota poder entrar na pista?
Yoongi bufou, revirando os olhos.
— Pronta ela está, mas cadê o rival dela pra valer a corrida? — ele respondeu com um toque de maldade e Jin grunhiu de raiva, não surpreso que Jeon Jungkook e aquela trupe fedida que o acompanhava não houvesse chegado ainda. Ele era um moleque, um cão maldito que não levava nada a sério e Jin sentia vontade de esganá-lo toda vez que ele abria a porcaria da boca. De repente, Yoongi deu uma risadinha cruel. — Ouvi dizer que ele arregou no meio do caminho e tão tentando convencer ele de continuar.
Jin não achou graça nenhuma.
— Mas se ele não chegar, eu não vou poder correr. — ele reclamou indignado. Estava se preparando há semanas por aquele momento e não era justo que um cachorro sarnento como aquele infeliz do Jeon pudesse arruinar tudo só por ser um inútil irresponsável arregão. — É melhor alguém trazer ele aqui ou eu mesmo vou buscar.
Namjoon retornou com um sorriso no rosto.
— Não vai precisar. — ele anunciou, sacudindo o celular no ar. Tal como Jin, aquela corrida era muito importante para ele: as contas não se pagavam sozinhas e o dinheiro que entraria garantiria a sua aposentadoria. A equipe o olhou com expectativa e ele continuou. — Ele já chegou. Já tá se preparando, então, nós devemos fazer o mesmo. Tá pronto, Jin?
Jin inspirou profundamente e olhou para fora, para as nuvens negras que decoravam o céu. O tempo não parecia feito para uma corrida, mas ele não iria cancelar só por uma inconveniência daquelas – tinha certeza de que quando erguesse a taça de primeiro lugar, o céu iria se abrir para um dia bonito sem nuvens feias. Tinha certeza de que tudo ficaria bem.
Ele abriu um sorrisinho.
— Eu nasci pronto.
Namjoon entregou-lhe o capacete, que já continha a logo do patrocinador daquela noite. Jin havia sido informado que o dono da empresa havia vindo em pessoa para vê-lo correr, então ganhar aquela competição não era apenas para satisfazer o seu ego: era questão de honra mesmo. Em uma linha horizontal, os cinco caminharam juntos para fora da garagem, a doce Lanita já os aguardando em toda sua glória magistral. Com o canto do olho, Jin avistou Jeon Jungkook tomando o que parecia ser um esporro daqueles do seu agente e, quando percebeu que Jin estava o observando, ergueu um dedo do meio e o mandou ir se foder.
Jin sorriu, maldoso.
Ele mostraria o que era ser fodido quando o deixasse comendo poeira na pista. Jin entrou na Lanita.
— Então não esquece. — Hoseok estava falando, metade curvado para alcançar a janela. — Eu dei uma turbinada no motor e arrumei o acelerador que tava meio capengado, assim, vê se não pisa com muita força perto da curva, tá bom? É pra ser gentil.
— Tá bom, gentileza, entendi. — Jin respondeu.
— E vê se não cai na pilha daquele corno, beleza? — Yoongi adicionou, do lado oposto do carro. — Ele vai tentar te provocar pra te encurralar, mas foca na linha de chegada. Ficar medindo quem tem o pau maior no meio da competição é coisa de criança.
Jin assentiu novamente.
— Entendi, nada de pau.
Tae apareceu do lado do Yoongi e levantou os dois polegares. Jin ligou o motor, o som potente dele preenchendo os seus ouvidos e acelerando as batidas do seu coração.
— E lembra que você é gostoso e que Oh Hyana quer te dar gostoso, falou? — ele berrou por cima do barulho e Jin sorriu. — E que eu também quero dar pra você.
Jin riu, erguendo um dedo do meio:
— Vai se foder!
— Só se for com você, tesudo!
Então, eles o deixaram sozinho e ele dirigiu o carro até a linha de partida. Haviam mais quatro corredores competindo com ele naquela noite, dentre eles, o porco com quem mantinha uma rivalidade azeda desde o início da sua carreira. Jeon Jungkook abriu um sorriso sacana quando parou o Audi perto da Lanita Veldey, e ergueu uma mão em punho, movendo ela na velocidade da língua dentro da boca pra frente e pra trás. Jin ergueu um dedo do meio e revirou os olhos, disposto a responder às provocações baratas no pódio de primeiro lugar.
Naquela noite, ele iria se consagrar como o melhor piloto de toda Ásia.
Naquela noite, ele levaria o nome dos Kim para um patamar que nenhum outro já foi.
Naquela noite, ele seria uma lenda.
Ele inspirou profundamente e apanhou o capacete no banco do passageiro, prendendo com força na cabeça. Em seguida, agarrou o volante com as duas mãos e colocou o pé em cima do acelerador em uma provocação sensual. No minuto seguinte, o som de largada foi dado e Jin pisou fundo, deixando os outros para trás.
— Chuuuuupa! — ele gritou em animação.
Ele acelerou um pouco mais. O percurso já era conhecido das longas noites que ele havia entrado ali clandestinamente para poder praticar. Ele conhecia cada canto, cada pedrinha, cada linha de asfalto como a palma da sua mão. Não havia ninguém que conhecia o caminho melhor do que ele e, antes de avistar a curva, ele desacelerou para poder virar. Logo atrás dele, o carro número quatro bateu, saindo da competição.
Jin não pode evitar comemorar.
Pisando no acelerador outra vez, ele olhou no espelho retrovisor. Logo atrás dele, o carro do Jeon se aproximava e nele estava o demônio com um sorriso cruel no rosto, como quem arrasta uma alma pura para o inferno. Jin afundou o pé no pedal para evitá-lo, no entanto, no minuto seguinte, Jeon pareou ao lado dele e o saudou com um balançar de cabeça.
Jin o ignorou e acelerou mais.
Jungkook ficou para trás outra vez. Jin não daria àquele moleque malcriado o gosto de nem fechar em segundo ao lado dele; ele não merecia o segundo lugar. Ele não merecia sequer subir no pódio na sua presença. Jin puxou o ar para dentro, determinado a vencer. Naquele mesmo instante, um raio apareceu no céu, o deixando meio cego. Ele piscou duas vezes para ajustar a visão e olhou pelo espelho outra vez, pegando Jeon e uma mão esquelética se formando no céu. Jin franziu o cenho. Então, subitamente, o seu corpo foi inteiro para frente e ele tirou o pé do acelerador, arfando com um choque.
Logo atrás, Jeon Jungkook bateu nele outra vez.
— Vai te foder, porra!
Eles emparelharam outra vez. Com um sorriso maldoso no rosto, Jungkook jogou o carro contra Lanita Veldey, que quase saiu da pista quando Jin perdeu a direção do volante. Rapidamente, porém, ele recuperou o controle e exclamou um palavrão, logo em seguida jogando Lanita contra o carro do rival. Jin gargalhou, repetindo a provocação. Do outro lado, ele viu Jungkook gritar desesperado e pingos de chuva caírem do céu, molhando a pista.
Jin jogou o carro outra vez, tirando Jungkook da pista.
Então, acelerou como se a sua vida dependesse daquilo. Como se estivesse possuída, a chuva começou a cair de forma torrencial, bloqueando a visão do seu para-brisa dianteiro, e ele bufou em indignação se esforçando para ver o que tinha na sua frente. Logo atrás, os outros dois carros restantes estavam se aproximando cada vez mais e, com um suspiro afiado, ele pisou com mais força no pedal. Do lado de fora, a mão macabra apareceu como um raio que caiu no chão do lado de Lanita e, com o susto, Jin jogou o carro para a direita. Em seguida, Jungkook apareceu outra vez e avançou como um trator para cima de Lanita, que subiu no ar.
Jin sentiu o mundo ficar em câmera lenta.
O carro girou e girou como um pião cirandeiro e o estômago de Jin se voltou do avesso, trazendo o almoço e café da manhã à boca. Jin olhou para o lado e viu a mão outra vez, agora mais perto, pairando sobre o ar como lhe debochasse a cara. E então, como se não fosse nada, Lanita caiu no chão com um baque ensurdecedor. Jin sentiu os tímpanos estourarem e uma pontada aguda na coluna, que o fez perder o ar. A chuva parou do lado de fora e um forte cheiro de gasolina invadiu seus sentidos. Ele inspirou, a mente zonza, e sentiu calor nos pés. Então, olhou para baixo.
A última coisa que viu antes de desmaiar foram as suas pernas ardendo em chamas na escuridão.

Capítulo 1

— King! King! O que você tem a dizer sobre a corrida de hoje?
Tal como o diabo que encantava uma virgem, o rapaz na TV abriu um sorriso charmoso e pôs as mãos dentro do bolso do macacão azul, provocando uma onda de suspiros femininos apaixonados. Com uma satisfação evidente, o sorriso no rosto masculino aumentou de tamanho e o público enlouqueceu por todos os motivos errados; ninguém se atreveu a reclamar do ar fingindo do desgraçado. Ninguém se atreveu a apontar o dedo para as rachaduras daquele império falso. Ele era bom em fazer gracinhas, o filho da puta – bom em encantar a plateia, seduzir as moças e se fingir de bom moço. Ele era bom em mentir com um sorriso maroto no rosto.
Talvez bom até demais.
Quem o via assim sequer imaginaria que, debaixo da fachada reluzente, o sr. Bom Moço era tudo menos o epítome da perfeição; ninguém imaginaria que anos atrás, ainda escondido sob as asas do anonimato, o sr. Bonitinho não era tão charmoso, nem tão engraçadinho e nem tinha uma legião de fãs disposta a dar o mundo por ele. Ninguém imaginaria nada daquilo, mas não importava, pelo menos não mais; agora, ele era um profissional na arte, e como um veterano desta, permaneceu em silêncio por alguns segundos, deixando o seu encanto irresistível fazer efeito, e, então, abaixou a cabeça e mordeu o lábio inferior, liberando o ar preso nos pulmões, como se procurasse as palavras certas. Sedentos por qualquer notícia, os microfones foram enfiados na cara do sujeito.
— Estou bastante confiante. — disse ele, nunca deixando o sorriso de lado. Ele tinha uma voz suave, do tipo mel que escorre no ouvido, e, mesmo que inconsciente, as pessoas se inclinavam para mais perto a fim de ouvi-lo um pouco mais; a fim de ter um pouquinho mais dele, da voz, do sorriso, do charme. Da confiança que gritava eu sou o melhor e deixava todo mundo babando por... mais. — A nova equipe que chegou é impressionante, mas eu ainda acredito que o prêmio da noite seja meu. Assim como foram os outros.
E deu uma risadinha marota, piscando para a repórter na linha de frente, que sorriu e se abanou ligeira, quase caindo dura no chão – estava óbvia a sortuda da noite daquele dia; tão óbvia que as outras abriram um pouco do decote e estufaram os seios, dispostas a terem um pouquinho daquela sorte caindo em cima de si mesmas também. A mais alta delas, uma morena bonita com óculos redondos no rosto, se inclinou um pouco para frente dando ao rapaz uma visão privilegiada do seu busto e murmurou com uma voz melosa:
— Você não tem medo do novo piloto?
Foi imperceptível, mas as sobrancelhas se franziram levemente com a suspeita de uma irritação. Tão rápido quanto veio, rápido desapareceu e ele balançou a cabeça e sorriu acidamente, os olhos calorosos se tornando mais frios:
— Reis não temem nada, não sabia?
A TV foi desligada repentinamente, cortando a entrevista no meio. Silêncio veio logo em seguida – a única coisa ouvida no ambiente era o som da respiração pesada que oprimia o local. No reflexo da TV, a figura esguia de um homem era vista em cima de uma cadeira de rodas, e logo atrás dele havia uma outra figura um pouco mais robusta de pé. Eles se mantiveram em silêncio por um tempo. Então, o sujeito de pé suspirou e murmurou pesadamente:
— Jeon é um idiota.
Não era uma pergunta. Jeon Jungkook, de fato, era um idiota infeliz, mas era o idiota mais bem pago e famoso de toda a Ásia. Ele era um rei, uma lenda nas pistas e mentiria quem dissesse que não queria acesso a sua beleza, fortuna e harém de namoradas que tinha ao seu dispor – ele vivia cercado de muitas delas. Não era importante o seu temperamento desagradável com as câmeras desligadas, nem a maneira com que ele tratava as mulheres que passavam na sua cama; para o mundo, Jeon Jungkook era um deus das pistas e não havia mais ninguém no mundo para impedi-lo de ser tratado como tal. Não havia ninguém para impedi-lo de assumir o controle da Stary e de se tornar o senhor do império automobilístico. Não existia mais ninguém, porque a oposição sequer podia mexer sem precisar da ajuda de alguém.
— Algum dia ele ainda vai quebrar a cara. — o outro continuou a falar. Era cansativo; a conversa não acabava mesmo que não obtivessem respostas, e provavelmente continuaria o dia todo se ninguém tivesse o que fazer naquele inferno amaldiçoado por Deus. Era culpa daquele médico inútil, que incentivara a falação insuportável em busca da cura. Era culpa do doutor que todos ainda acreditava naquela besteira infeliz. — E eu acho que esse dia já chegou. — suspirou audivelmente. — Nós temos pilotos novos.
As palavras eram despretensiosas, mas soaram aos ouvidos cansados como unhas afiadas em um quadro negro: estridentes, barulhentas e trazendo uma agonia sem fim. Era uma dor insuportável que há muito não sentia e, involuntariamente, o corpo inteiro estremeceu, fechando os olhos com as pontadas que rasgavam o cérebro.
Merda.
Ele inspirou com força.
Preferia uma morte violenta àquela conversa – era melhor ser estripado com uma faca de cozinha cega do que suportar mais um minuto daquela porcaria interminável; era melhor ser estripado do que ter que lidar com pensamentos proibidos que se recusavam a ficar onde deveriam: enterrados no fundo da mente. Mordendo os lábios, ele se manteve em silêncio. Aquela, já era a quinta vez no dia em que eles tentavam lhe arrancar qualquer tipo de reação, a quinta vez que palavras eram ditas naquele mesmo tom tímido e contido de que não sabia se queria ser ouvido, porque, no fundo, sabia que não havia mais ninguém ali além da dor.
Dor e mais nada.
Dor que se recusava a ir embora, dor que ansiava por ter. Dor da qual eles queriam tanto vê-lo livre. Ela, porém, era a única companhia que desejava, e se os outros queriam tanto forçá-lo a passar pelo inferno de novo e de novo e de novo, desejava o mesmo para eles também; pelo menos uma vez na vida, que se colocassem no seu maldito lugar. Ele puxou o ar para dentro dos pulmões. Por um breve minuto e meio, o quarto permaneceu em silêncio outra vez, a quietude de ambas as partes submersas na reclusão do próprio mundo criado em pensamento, e por aquele breve minuto e meio, houve a paz que tanto queria ter.
E era deprimente.
O som do nada dançava pelo ar como um beijo de despedida de dois corações que não se amavam mais, o frio tortuoso congelava a alma e o desdém cruel manchava a pureza dos olhos, trazendo sombras ao redor – era deprimente, mas eles ainda continuavam lá, como se não tivesse outra escolha, como se não pudessem parar de tentar. Todo dia eles tentavam, de novo e de novo, esperando um resultado diferente; todo dia eles chegavam com olhos esperançosos, mesmo que aqueles dez anos provassem o contrário. Mesmo que ele não dissesse nada, sentado naquela prisão como uma parede apática, inexpressiva, que lentamente ia sugando as cores, a sanidade e a vida de tudo que havia ao redor, eles tentavam. E todos os dias era uma nova decepção, uma nova culpa e a velha sensação de ser um peso morto que ninguém suportava mais. Ele suspirou pesadamente. Então, uma risada desconfortável preencheu o ambiente e alguém pigarreou.
— Eles são do Brasil. — o carrasco daquele dia murmurou em um tom falso de alegria, amigável como uma faca nas costas, como se o convidasse a sair da concha que havia se enfiado; como se sentisse prazer em vê-lo agonizar. Ele franziu os lábios e fez uma careta, sentindo-se inquieto: já fazia algum tempo que havia notado a mudança na abordagem, dos sorrisos mais contentes e no brilho no olhar ligeiramente caótico que deixava bem claro que para eles a depressão havia tido um ponto final; que enquanto a sua existência era uma agonia constante, eles se divertiam e aproveitavam a vida. Que enquanto queria morrer, eles desprezavam os seus sentimentos como se não valessem nada. Era inaceitável e ele sentiu vontade de quebrar alguma coisa, de fazer estrago. Como se ignorasse o seu estado de espírito, a falação continuou. — Bem talentosos, sabe? Nunca vi ninguém correr como eles. Acho que com eles dá pra vencer essa temporada bem facinho. Acho que eles colocam o Jeon no seu devido lugar.
Cinco minutos, ele disse a si mesmo. Só mais cinco minutos. Em cinco minutos, ele perceberia com um suspiro cansado que aquilo ali não tinha propósito algum; que seja lá o que quisesse dali não iria conseguir e que as palavras que insistia em soltar ao vento voavam para bem longe como se nunca houvessem sido ditas em primeiro lugar. Em cinco minutos, só mais cinco minutos, a tortura teria que acabar. Precisava acabar. Cinco era o limite, a regra impronunciável: ninguém durava mais do que os cinco minutos de interminável nada – ninguém o aguentava mais do que cinco minutos sugando a vida que tinham à disposição. Se se mantivesse calado, firme e fingindo que não os ouvia, eles o deixariam em paz. Só mais cinco minutos, ele encorajou a si mesmo. Cinco. O carrasco suspirou suavemente.
— Seria bom se você descesse para conhecê-los.
Uma risadinha desdenhosa escapou dos lábios ressecados sem querer e um silêncio cruel preencheu o quarto, envenenando o ar. Certo, ele quis dizer se sentindo um pouco selvagem e acariciou o botão no braço da cadeira de rodas. Também posso levantar e andar sobre as águas. O rancor queimou o peito e os punhos se fecharam ao redor da cadeira; lá embaixo, ele conseguia ouvir os carros turbinados e as pessoas alheias passando tranquilamente para lá e para cá, a inocência e despreocupação de suas mentes vazias os impedindo de lembrar que naquele mesmo lugar, naquela maldita pista, ele havia perdido tudo. Era cruel sequer pensar na possibilidade de forçá-lo a descer e encarar o adversário que havia roubado a sua vida, mas era justamente por isso que eles eram os melhores carrascos do país – ninguém mais conseguia ser tão insensível assim. Ele inspirou com dificuldade, a mão cicatrizada se fechando e abrindo com uma coceira infernal. Quatro minutos. A inquietação aumentou. Só mais quatro minutos. Ele contou até dez. Com um pigarreio de desconforto, o carrasco inspirou.
— Saiu errado. — ele suspirou pesadamente, como se pedisse desculpas, o arrependimento na voz impossível de não perceber e um entendimento não dito de que nada era mais como antes porque ele não queria mais; não se sentia mais. Ele era uma casca: vazio, inútil e cinza. Era uma perda de tempo continuar a insistir. Finalmente, os dois estavam de volta à mesma página: pura miséria e pesar. Kim Taehyung puxou o ar outra vez e praguejou. — Não foi isso o que eu quis dizer. Você me escutou, Jin? Não foi isso que eu quis dizer.
Três minutos. Ele queria poder se deitar; a bunda já estava começando a adormecer depois de tanto tempo em cima daquela porcaria, mas não queria ter que se rastejar para cima da cama na frente de Tae – eles já tinham motivos mais do que o suficiente para acreditarem que não valia de absolutamente nada, motivos o bastante para lhe encararem com aquela pena insuportável nos olhos e para o colocarem em cima da cama, acabando com o resto de dignidade que tinha. Não, Jin sorriu amargo, preferia mil vezes um cu dormente pela eternidade do que suportar aquilo outra vez. Ele suspirou. Dois minutos e trinta segundos. Estava chegando no fim. Podia sentir o espírito de Taehyung morrendo outra vez. Ele iria desistir. Dois minutos. Se pudesse mexer, o colocaria para fora ele mesmo. Um sorriso azedo se formou nos seus lábios.
Se pudesse mexer, caminharia para bem longe daquele lugar.
Era uma piada horrorosa da vida que ele estava preso no mesmo local que o havia colocado naquela cadeira imunda, no mesmo local ao qual havia jurado que nunca mais iria voltar; era uma piada nojenta que o melhor terapeuta que podia arranjar estivesse convicto na ideia de que forçá-lo a encarar o trauma era a melhor solução para seu problema. Não que ele tivesse para onde ir de qualquer jeito. Após o acidente, ele também havia perdido o pai, que se recusava a ser conhecido como pai de um sujeitinho inválido e sem valor; de repente, tudo o que havia feito, as conquistas que havia levado, não serviam de nada, não tinham a menor importância. Ele havia se tornado um ninguém e o sr. Kim não era homem de ser pai de ninguém. O problema de ser ninguém era que sem o apoio do pai, ele também não tinha mais dinheiro – o resto da sua fortuna havia sido colocado à disposição das centenas de médicos que haviam prometido uma cura para lhe darem nada em troca no final. A propriedade do autódromo era o único lugar que tinha para viver.
A única que tinha e a que menos queria.
Taehyung suspirou com força, como se estivesse se preparando para levar um golpe. Um minuto e trinta segundos, Jin contou. Ele iria dormir quando as portas se fechassem. Odiava admitir, mas se sentia mais cansado do que o normal. Talvez fosse a sua condição, talvez fosse a idade. Nem queria se lembrar que faria quarenta dali sete dias. Já era ruim o bastante ser um peso morto inútil, não precisava da velhice para pesar a conta. Um minuto. Cinquenta e nove segundos. Cinquenta e sete... Quarenta... Trinta e cinco... Vinte...
— Eles trouxeram um médico, Jin.
Seokjin abriu os olhos de supetão e parou de contar. A informação afundou no cérebro como um navio naufragado e ele franziu a testa com um sentimento estranho no peito. Um médico. A nova equipe havia trazido um médico na mala. Jin sentiu a respiração acelerar, o corpo queimar de dor como no passado. Eles haviam trazido um médico. Repentinamente, Taehyung apareceu no seu campo de visão e se abaixou, ficando na altura dos seus olhos.
— Um médico, Jin. Um médico deles. — ele disse com suavidade, enfatizando cada palavra. Sim, um médico deles. Um médico que fazia milagres com as mãos. Um médico que havia precisado dez anos atrás. — Você sabe o que isso significa, não sabe?
Jin fechou os olhos outra vez, tremendo da cabeça aos pés. Pior do que a queimação era a esperança brilhando nos olhos de Tae; não precisava ser um gênio para saber o que ele estava pensando e Jin sentiu que precisava cortar o mal pela raiz ali mesmo. Havia um médico dos Outros bem ali, mas não era dele. Não era para ele. Da mesma forma que não havia sido dez anos atrás. Tae suspirou com força e pôs as mãos sobre seus ombros.
— Desce comigo e vamos falar com ele, que tal? — ele propôs com entusiasmo. Jin sentiu a mente pesar com as lembranças do passado e lágrimas de desespero preencheram os olhos, lutando para sair. — Vamos falar com ele, e pedir pra dar uma olhad-
A porta se abriu de repente, trazendo uma corrente de vento fria pra dentro do quarto. Com uma calma que não tinha, Jin tirou o dedo do botão na cadeira de rodas e prendeu a respiração, deixando claro o que queria. Aquela conversa havia acabado; ele não iria ouvir mais nenhuma palavra sobre aquilo outra vez. Suspirando cansado, Taehyung se endireitou e caminhou até a porta. Jin podia sentir o gosto amargo da decepção alheia na boca.
Era o mesmo dos outros dias.
Ele esperou. Com uma lentidão insuportável, as portas rangeram até que as duas se encontraram em um ponto em comum, e Jin sentiu que Taehyung ainda estava lá como se ponderasse se realmente devesse ir embora. Ele tinha que ir. Não iria aguentar mais um minuto daquilo sem um tiro no cérebro. Da entrada, Tae puxou o ar para os pulmões e suspirou bem alto.
— Eles curam mesmo, Jin.
As portas se fecharam na cara dele e Jin retirou o dedo do botão, expirando o ar que mantinha preso no peito. Então, ele se inclinou para frente e começou a chorar.

Capítulo 2

Kim Namjoon sorriu discretamente por cima da xícara.
Fascinante.
E bebericou do chá já morno, minutos depois estremecendo dentro do casaco jeans quando o vento noturno do fim de outubro acertou a cabine da área VIP. Era o início da noite de sexta-feira e faltavam apenas algumas horas para o início da corrida daquele dia; faltavam apenas algumas horas para que o mundo pudesse ver os talentos da Stary correrem outra vez. Namjoon, no entanto, pela primeira vez em anos não estava lá embaixo com os seus pilotos. Pela primeira vez em anos, nem sabia mais onde deveria estar.
Ele piscou nervoso e sorriu amarelo; a mente rodopiou vazia, incapaz de se ajustar à situação. Não haviam palavras para descrever o que os seus olhos viam e, à medida em que o relógio ia avançando, os olhos cresciam mais e mais de tamanho na cara, como se fossem sair correndo a qualquer momento. Ainda assim, ele não conseguia parar de olhar. Ele bebeu mais um gole e respirou fundo. Sentado à sua frente, com a sombra de um sorriso nos lábios, o seu convidado deixou uma risadinha jovial escapar.
— Espantado? — ele perguntou em um coreano perfeito livre de sotaque e Namjoon piscou algumas vezes, acalmando as batidas do coração. Até a voz era a mesma, bom senhor; a mesma cadência, o mesmo timbre, até o mesmo tom suave e sussurrado, como quem conta algum segredo. Era assombroso e um pouquinho perturbador, mas Namjoon não se permitiu demonstrar. Ele sorriu mais abertamente e balançou a cabeça. O sorriso do Outro também se alargou. — Receio que a Abadessa tenha esquecido de informar sobre esse detalhe. Ela tinha muitas coisas na cabeça essa semana, então, peço desculpas em nome dela.
Namjoon assentiu levemente e colocou a xícara em cima da mesa.
— Entendo. — ele murmurou amigável, muito embora não entendesse nada. Tinha quase certeza de que haviam fotos nas fichas enviadas pelo assessor da equipe deles, mas também tinha quase certeza que não era nas fotos a mesma pessoa sentada tranquilamente à sua frente, como se fosse só mais um dia comum. Tinha certeza de que não teria deixado um detalhe tão grande como esse passar. Com um sorriso frouxo, ele umedeceu os lábios e riu nervoso pelo nariz. — Não há nenhum tipo de problema, realmente. É só não estava esperando... bem, é que você é-
O sujeito sorriu mais abertamente:
— Eu sei. — ele o interrompeu, imperturbável. Namjoon tinha de admitir que era admirável a calma com que ele lidava com tudo: não teria tanto sangue frio assim. Repousando as costas em cima do encosto, ele continuou batucando os dedos em cima da mesa. — Eu sinceramente peço perdão pelo transtorno. A Abadessa deveria estar aqui, mas houve um outro imprevisto que interrompeu a sua vinda. Todo o resto da equipe está, no entanto. Podemos começar agora mesmo se assim você desejar.
Namjoon assentiu outra vez e, como que por instinto, seus olhos correram até a área das arquibancadas onde a garota estava. Ela era uma coisinha adorável, a menina; tinha cabelos que iam até a altura do bumbum, um rostinho de raposa que corava com o frio e o tamanho de um Smurf potencializado em três vezes. Ela não parecia nem de longe o monstro que a mídia fazia parecer, mas ela também não havia parecido tão ruim na TV antes do desastre acontecer. Se o diabo fosse tão bonito quanto ela, Namjoon entenderia o porquê ele conseguiu o que conseguiu – se ela pedisse, ele iria até o inferno só para deixá-la feliz. A risada do Outro ganhou novamente a sua atenção.
— Ela é mesmo muito bonita. — disse ele em um tom maroto que dizia que sabia bem no que estava pensando. Namjoon sentiu as bochechas corarem com a vergonha; havia se esquecido que alguns podiam ler mentes. O Outro lhe lançou um sorriso reconfortante. — Não precisa se envergonhar, senhor Kim Namjoon. é a nossa beleza, a joia da coroa, e todos nós temos ciência disso. — ele olhou de relance para a garota. — De vez em quando, eu também me perco no rosto dela, mesmo com anos convivendo juntos. Não é fácil se acostumar.
Namjoon mordeu os lábios em incerteza, assentindo levemente.
— Ela tem um namorado? — ele ouviu a si mesmo perguntar e quis morrer ali mesmo, mortificado. Não entendia o que acontecia que não conseguia se manter sob controle naquele dia. O convidado sorriu como quem entende das coisas e assentiu com a cabeça, deixando o seu coração gelado. Subitamente, ele queria bater no homem infeliz. — E ele está aqui?
O Outro deu uma risadinha.
— Sentado na sua frente, para ser sincero. — ele murmurou com um toque de humor. Nam olhou para ele com olhos de assombro e sentiu o rosto queimar outra vez, com seus pensamentos indecentes. O Outro sorriu com malícia. — Se quiser me bater, no entanto, vai ter que esperar até o fim da noite, senhor Kim. Eu quero aproveitar a corrida. — o sorriso se alargou mais. — E, só pra constar, eu sou muito bom lutando e não vou facilitar pra você. Pela , eu sou capaz até de matar.
Namjoon sentiu o queixo descer até o chão.
— Eu não quis dizer isso, senhor Kim. — ele guinchou em um ataque de pânico, o rosto pior do que um pimentão maduro e o coração disparado pela própria indiscrição. — Eu juro que não quis... merda, eu quero me enfiar em um buraco agora. — respirou fundo. — Por favor, aceite as minhas desculpas.
O sr. Kim gargalhou, arrancando uma carranca do rosto alheio.
— Você é realmente uma coisa, não é? — ele murmurou, divertido. Namjoon não achava nenhuma graça. Fora a mortificação de ser pego no flagra cobiçando a mulher alheia, ele teria que lidar com o fato de que seus próprios pensamentos não eram mais apenas privados para si mesmo. Enquanto os Outros estivessem ali, ele teria que aprender a filtrar o que pensava na frente deles. De repente, o Outro sr. Kim sorriu diabolicamente. — É. — ele soprou. —– Você tem mesmo. Perto da , então... – assobiou e riu cruel. — Principalmente perto dela, sr. Kim. Você não vai querer ela bisbilhotando a sua mente. Como agora.
Namjoon sentiu o queixo ir do chão ao inferno e rapidamente olhou para a arquibancada, procurando a garota com os olhos perturbados. Ela ainda estava sentada nos bancos como se estivesse alheia ao tópico da conversa. Namjoon suspirou. Então, logo em seguida, as portas se abriram e Kim Taehyung entrou como um tiro, sem avisar. No entanto, assim que avistou o Outro sr. Kim, ele parou repentinamente e praguejou alto.
— Olha a boca. — Namjoon o repreendeu.
Sem desviar o olhar, Taehyung suspirou um pedido de desculpas.
— Peço perdão, hyung. — disse ele. — Só me esqueci como ele era.
O Outro sr. Kim sorriu como se quisesse o reconfortar. Disposto a mudar o assunto, Nam perguntou sobre o real motivo pelo qual havia trazido o Outro ali.
— Onde ele está, Tae? — com um olhar de tristeza, Taehyung balançou a cabeça. Nam suspirou irritado. Desgraçado. — Você disse a ele sobre os Outr... sobre os novos pilotos?
Taehyung assentiu:
— Ele não quis me ouvir, hyung.
— É claro. — bufou Namjoon, e então, olhou para o Outro sr. Kim. Ele estava observando a troca entre os dois com um olhar curioso. Namjoon sentiu que devia se explicar. — Escute, senhor Kim, eu tenho um amigo que está muito doente e eu pensei que talvez o médico da equipe que veio com você pudesse dar uma olhada nele. — engoliu em seco. — Ele é um grande amigo meu. — engoliu outra vez. — Ele é como-
— Eu sei. — disse o Outro sr. Kim.
Namjoon assentiu com a cabeça.
— Então, você pode ajudar?
O homem balançou a cabeça em afirmação e Namjoon suspirou aliviado. Os Outros eram esquisitos, mas possuíam os melhores médicos do planeta, a nata da medicina. Jin iria voltar a ser o mesmo com a ajuda deles, tinha certeza. Ele lançou ao Outro um sorriso de agradecimento. Então, como um sussurro tímido, escutou ele murmurar:
— Ele, no entanto, precisa querer.
A declaração o tomou de surpresa, mas não pelo conteúdo; o sr. Kim não havia aberto a boca para falar. O Outro riu outra vez, como quem acha graça de uma criança ingênua, e desviou os olhos para a arquibancada – para onde a menina ainda estava sentada. Namjoon seguiu o seu olhar, perturbado. Se eles podiam falar na sua cabeça... ele sentiu o corpo tremer. Não queria pensar no resto; não queria pensar nas histórias que havia ouvido, nem nas notícias daqueles tempos. Não queria... ele se cortou mais uma vez, agora com o sussurro que lhe arrepiou a espinha. Sem sequer olhar para ele, o outro havia murmurado outra vez, e, como se houvesse escutado, a garota virou a cabeça e olhou direto para Namjoon, o sorriso malicioso manchando os lábios carmesim. Namjoon começou a hiperventilar, enquanto as palavras ecoavam no fundo da mente. É melhor se acostumar, o Outro havia dito em um tom de aviso agoniante. Eu não sou o único.
E nem o mais cruel.

Capítulo 3

Park Jimin sentou-se ao lado do namorado e lhe ofereceu um balde de pipoca.
Como era de costume naqueles cinco anos de união, o rapaz sequer notou sua presença no mesmo ambiente, focado demais na porcaria do celular para se importar em lhe dar um pouco de atenção. Mesmo assim, como uma boa namorada atenciosa, ela colocou o balde entre as pernas grossas dele e plantou um beijinho na bochecha fria, focando a sua atenção no que realmente lhe importava naquele dia: os Outros.
Criaturinhas de arrepiar a espinha aqueles Outros eram.
Todos, com exceção da Smurfette que havia chegado com eles, eram altos e bem magros com braços do tamanho de um tronco e um par de olhos dourados e íris felinas que pareciam enxergar de tudo, até mesmo a alma daqueles que vieram antes ali; quando eles falavam, parecia como um feitiço sendo lançado sobre aquele que ouvia a voz baixa de congelar a espinha, e Jimin havia tido uma experiência em primeira mão quando, sem querer, esbarrou em um deles a caminho da área de lanches mais cedo. De perto, eles pareciam mais desproporcionais do que eles eram na TV e Jimin mentalmente concordou com a pessoa que havia dito no jornal nacional uma vez que aquelas pessoas eram produtos saídos diretamente do pesadelo infantil de alguém. Eles eram muito esquisitos, mas Jimin estava animada por tê-los ali – eles eram os melhores em fazer o impossível e ela precisava de ajuda naquele departamento.
Uma risadinha feminina preencheu o ar.
Com a testa franzida, Jimin deixou os olhos caírem em cima da Smurfette, sentada nas arquibancadas com uma das Marias Volantes que viviam cercando a pista em busca de um piloto desavisado que caísse em sua cama, e fez cara feia quando o perfil da Outra entrou no seu campo de visão – por alguma razão, ela parecia completamente diferente da mulher que se lembrava de dez anos atrás, mas tinha certeza que era a mesma pessoa. Na época em que a viu pela primeira vez, Jimin havia acabado de sair da faculdade e completar vinte anos, mas se lembrava bem do rosto do monstro que havia arrancado o coração daquele pobre velhinho na frente de milhões de pessoas impressionadas – se lembrava muito bem dos cabelos estranhos, da cara de boneca e daqueles olhos vazios, frios, como se não houvesse vida. Fazia dez anos, mas se lembrava do rosto da Mãe como se houvesse sido ontem. E por alguma injustiça da vida, a desgraçada era mais bonita pessoalmente.
Miserável.
— A beleza só chega para os podres de alma. — Jimin murmurou de repente, sem perceber o que dizia.
Duas fileiras abaixo da coisinha, um grupo de garotos em idade universitária cochicharam animadamente, então, um deles apontou na direção da Smurf do mal. Dando mais importância do que deveria, Jimin a viu revirar aqueles olhos frios e fazer uma careta, como se desprezasse a atenção recebida. Minnie enxergou vermelho e não conseguiu segurar o grunhindo que escapou dos seus lábios – aquela cadela ingrata. Era mesmo uma merda como o mundo funcionava: enquanto havia meninas como ela loucas por um pouco de carinho e amor, havia também piranhas sem vergonha e sem coração como aquelazinha, que tinham tudo de bandeja na mão e não davam valor; que achavam que a atenção e o carinho de um homem era achados no lixo e que para sempre iria durar.
Suspirando, Jimin contou até dez.
Então, desviou o olhar; ela sentia que teria um treco se continuasse a encarar a cena – não havia nada no mundo que mais odiava do que uma gennie maldita. Elas tinham tudo o que a garota poderia querer: família, estabilidade, um bom marido e talvez, dois ou três filhos, mas, mesmo assim, ainda não era o suficiente; ainda não era uma carreira ou dinheiro ou qualquer desculpa que inventavam para fugir das obrigações de uma mulher. Jimin não entendia o que havia de tão errado em cuidar da casa e dos filhos e esperar pelo seu marido em uma camisola bonitinha de renda, dando ao pobrezinho um pouco de alegria depois do trabalho. Era uma honra poder servir à família e agora que Jimin estava perto de poder ocupar esse papel, tinha certeza de que não trocaria por nada.
Gennies eram tão estúpidas.
Não era à toa que haviam morrido.
— O que foi que você disse? – ela escutou a voz masculina perguntar e se virou, os olhos em cima do namorado.
Por um minuto e meio, Jimin perdeu a linha de pensamento, seus olhos castanhos sendo assaltados pelo rosto perfeito que lhe tirava o ar. Ela ainda achava difícil de acreditar que aquele homem era o seu homem, mas era a verdade – ele lhe pertencia e ela mataria qualquer um para que ele continuasse assim. Sorrindo abobada, se inclinou para dar a ele um beijinho nos lábios quando se lembrou que havia sido perguntado algo. Então, percebeu que ele havia ouvido o comentário sobre a Smurf do Mal.
Revirando os olhos, Jimin apontou para a menina.
— Ela é a garota da TV, não vê? A maluca terrorista que matou o presidente. Que ousadia dela aparecer aqui.
Dando uma boa olhada na garota, Jeon Jungkook deu de ombros.
— Ela veio com a nova equipe.
Jimin revirou os olhos outra vez. Jungkook era lindo, mas às vezes era tão... denso. Era claro que sabia daquilo – havia sido ela a avisá-lo que os Outros do Brasil estavam na Coreia e que assinariam um contrato de quinze anos com a Stary de quase cinquenta milhões; havia sido ela também a avisar que a intenção de Namjoon a trazê-los ali era arranjar um curandeiro para tratar do inválido maldito na esperança de que ele pudesse voltar às pistas, ao controle do autódromo e tirar tudo que pertencia agora à família Jeon. Ela sabia de tudo e mais um pouco, mas era claro que Jungkook era desatento demais para se lembrar disso. Ocupado demais fodendo aquelas vagabas de quinta. Jimin suspirou e contou até dez, controlando a raiva que surgiu. Não iria arrumar uma briga, não ali, não naquele momento. Não causaria outra confusão com um assunto insignificante como aquele. Assim que encontrasse o médico dos Outros, iria pedir ajuda para resolver o seu problema e então, as vagabas de quinta iriam ter de desaparecer. Não valia a pena uma briga por algo tão bobo, especialmente quando estava quase no fim.
Minnie sorriu.
— Ela é bem estranha, não acha? – disse ela em tom alegre, feliz em apontar defeitos em outras mulheres. Tinha a convicção que se mostrasse a Jungkook como as gennies eram defeituosas e esquisitas, ele perderia aos poucos o interesse nelas. Era natural do homem não gostar de tetas flácidas, barrigas de pós-gravidez e uma pele enrugada pela idade, e Minnie tinha muito orgulho em saber que não passaria por nada disso, exceto, a velhice, mas aquilo combateria com cremes. O corpo dela seria pra sempre magro e os seios para sempre firmes, como se houvesse sido lapidada para o gosto masculino. Ela sempre seria perfeita e Jungkook nunca teria do que reclamar. Ela deu um empurrãozinho nele com o cotovelo. — Ela tem cara de rato e é gorda.
E riu. Jungkook rapidamente olhou a menina outra vez, então, deu de ombros e voltou a atenção para o celular.
— É gostosa. — ele murmurou, depois, riu. — Eu não reclamaria daquela bunda fora da calça apertada e sentada no meu pau.
Jimin sentiu o ar entupir os pulmões e voltou a olhar a menina, o peito ardendo em ódio. A Smurfette estava meio de pé, ligeiramente inclinada para frente sobre as cadeiras da outra fileira, enquanto balançava aquela bunda balofa para cima e para baixo. Não havia um só par de olhos masculino que não estivesse a encarando naquele momento e Jimin soube no seu coração que a piranha fazia de propósito, procurando um homem para seduzir. Ela podia tirar o cavalinho da chuva sobre Jungkook: ela não o teria, nem que Jimin tivesse que estar vinte e quatro horas com ele. Ele é meu, rosnou em pensamento e a menina olhou para trás, diretamente para Jimin. Então, abriu um sorriso malicioso e piscou, voltando a atenção às pistas outra vez.
Jimin sentiu calafrios na espinha.
— Você acha que ela é corredora também? — perguntou, um pensamento horrível passando pela sua cabeça. Havia ouvido, de uma língua ou outra por aí, que a Smurfette maligna era como uma piloto de apoio, sempre sentada ao lado do piloto principal para dar a ele o que precisasse; também havia ouvido de que a ajuda nunca era inocente e feita com roupas no corpo, e que a piranha era do tipo que adorava atiçar o homem até que ele caísse na sua cama. Se ela fosse a ajudante de Jungkook, não havia oração no mundo que o impedisse de cair nas garras dela: ele era fraco e não resistiria à tentação, principalmente, uma que não se importava em aplicar golpes baixos como fazia aquela mulherzinha lá. — Você acha que ela vai correr com você?
Jungkook riu pelo nariz.
— Uma mulher, Jimin? Não viaja.
E voltou a atenção ao celular. Jimin tentou se aquietar com a resposta, mas não conseguiu – o comentário só serviu para atiçar mais a sua imaginação. Era verdade que uma mulher coreana jamais correria em uma pista com homens, mas a Smurfette não era uma mulher coreana: ela era brasileira e todas as brasileiras eram indecentes e imorais que achavam que podiam fazer tudo o que um homem podia fazer. Jimin sentiu no fundo do peito que a mulher iria correr. Em pânico, encostou a cabeça nos ombros de Jungkook; queria um pouquinho de conforto e calor masculino, e também, mostrar para todas as vagabundas que aquele homem tinha dona e ela não iria a lugar nenhum. No minuto seguinte, porém, Jungkook fez um som com a boca irritado e se afastou ligeiramente. Jimin fez bico.
— Kookie, não faz assim. Machuca.
Jungkook revirou os olhos.
— Age que nem homem, porra. – ele rosnou baixinho, o nojo evidentemente na voz. Jimin sentiu o rosto arder em chamas e o coração pesar. Ele a encarou. — Só porque você dá o rabo não quer dizer que precisa ficar agindo que nem um viadinho por aí.
Dando um soco na perna do outro, Jimin pontuou com os olhos marejados:
— Eu. Não. Sou. Viado.
O sorriso maldoso que surgiu na boca do homem só não era pior do que as palavras que vieram em seguida. Jimin arfou sofridamente, sentindo dor física.
— Não sabia que tinham mudado a palavra pra quem dá o cu. — Jungkook debochou com prazer, sabendo muito bem que aquilo iria magoá-la profundamente. Jimin fungou alto e Jungkook deu dois tapinhas no seu rosto. — Viadinho. — ele a beliscou. — Um viadinho bem burro, ainda por cima. Só maluco cortaria o pau fora.
Jimin se afastou ligeiramente, retomando o controle das próprias emoções. Jungkook era assim mesmo, ela se lembrou. Dizia as coisas sem pensar. Ele era meio cabeça quente e complicado, mas com o tempo e ajuda dos Outros, Jimin sabia que ele iria aceitá-la por inteiro e não faria mais nenhum comentário maldoso assim. Ela pôs o cabelo atrás da orelha.
— Não vou cortar nada fora. — murmurou baixinho, explicando o procedimento pela milésima vez. Depois de recortar artigo atrás de artigo sobre o assunto e a tecnologia Outroriana, ela estava segura de que sabia como o processo funcionava. — Eles vão fazer um transplante, me dar um corpo novo, mais... de acordo com a minha identidade.
Jungkook abriu um sorriso nojento.
Eles, Jimin, são da equipe e para a equipe. — ele pontuou, dando um peteleco no seu nariz. — E você não faz parte da equipe.
Jimin respirou com força.
— Mas... mas você é meu namorado. — ela tentou argumentar, recebendo olhos revirados de Jungkook. A possibilidade de não conseguir o que queria a fazia hiperventilar e o pânico criou raízes dentro do peito. Fazendo beicinho, ela agarrou a manga do rapaz. — Jungkook, pelo amor de deus: você é o meu namorado. É a estrela dessa empresa. O dono, Jungkook. Se eles não quiserem, é só forçar.
— Eu não tenho essa autoridade. — foi o que recebeu como resposta e, se afastando, Jungkook se pôs de pé, lhe olhando de cima a baixo. — E eu não sou o seu namorado.
Jimin abriu a boca para contrargumentar; para dizer que ele não parecia contra a ideia na noite passada, enquanto metia fundo dentro dela e a fazia implorar por mais – que ele nunca parecia contra quando estavam os dois sozinhos no conforto de um quarto escuro. No entanto, todos os argumentos morreram na ponta da língua quando Jungkook começou a se afastar, saindo da fileira em que estavam sem olhar para trás. No minuto seguinte, a risada insuportável da Smurfette correu o ar e Jimin a olhou outra vez, notando a blusa branca e transparente marcando os seios e mostrando a barriga enxuta. Ela era como uma armadilha, Jimin percebeu em desgosto, atiçando, provocando e perturbando qualquer pobre desavisado até achar um homem fraco que pudesse capturar.
E Jungkook, que era o mais fraco de todos eles, estava caminhando alegre e sorrindo direto para ela.




Continua...



Nota da autora: Sem nota.

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