O Clube de Arte

Finalizada Em: 29/03/2020

Capítulo Único

Para Park Chanyeol
Estar em muitos lugares em um curto período de tempo já havia virado rotina para Baekhyun. E depois de tanto tempo correndo entre um lugar e outro, ele decidiu que seria hora de parar um pouco.
Decidiu isso de última hora quando se levantou da cama do hotel onde estava há dois dias, percebeu que havia feito a escolha certa quando se sentou na cama nova, no quarto novo, do apartamento novo. Havia muitas caixas ali para serem desempacotadas, mas não o bastante para que ele precisasse pedir ajuda. Deixaria tudo ali por um tempo, descansaria, e eventualmente as coisas iriam se ajeitando. Ele nunca teve pressa, não seria naquele momento que ele teria. A pressa sempre havia sido sua maior inimiga.
Não tinha pressa também quando olhou para o relógio no visor do celular, ainda era cedo. Cedo demais. Queria sair logo, dar uma volta por ali, reconhecer a vizinhança por onde correu quando era mais novo. As lembranças continuavam vivas em sua memória, ele sabia. Mas não queria se perder quando finalmente o horário chegasse.
Cansado de olhar para as paredes brancas e lisas demais — decidiu em silêncio também que talvez devesse pintá-las de outra cor, quem sabe enchê-las de quadros — acabou se levantando. Andou por entre as caixas, abriu uma. Tirou um exemplar de seu novo livro, que não era realmente tão novo assim, havia matutado muito e brigado com meio mundo para que fosse publicado, e enfim foi. E como para dar sorte nas vendas, colocou-o na mesinha de cabeceira. Como quem coloca um porta-retratos. Era como se fosse um, afinal ali existiam lembranças boas demais escondidas em palavras que ele talvez jamais houvesse dito em voz alta.
Chutou a caixa para o canto só para ter mais espaço, abriu a janela. A barriga roncou. Não tinha como cozinhar. E sabia também que estava muito cedo para sair, havia marcado às oito, e ainda não eram nem seis e meia. Talvez fosse justo que ele saísse e conhecesse mais aquele lugar onde não esteve por muito tempo. Precisava cheirar, tatear, sentir todas as fragrâncias e, mesmo que já se sentisse em casa, achou importante conhecer ao menos um pouco do que havia perdido no tempo que ficou fora.
O jovem escritor nunca foi introvertido. Sempre foi muito falante, gritava demais e era aquele que sempre fazia as melhores piadas. Mas ele sempre foi um tantinho tímido. E avoado demais. Passava o tempo inteiro sonhando acordado, criando personagens, criando pessoas. Aquela era sua forma de ensaiar quando tinha que interagir com outras pessoas, e ele ainda fazia isso mesmo depois de perceber que ele não precisava ter um texto decorado.
Com o passar dos dias ele aprendeu a gostar mais da própria companhia, se conectar consigo mesmo e por um tempo conseguiu abandonar a confusão de pessoas fictícias que acabou inventando como seus melhores amigos, e passou a ter amigos de verdade. Mas depois de um tempo também percebeu que era sempre bom passar uma tarde conversando consigo mesmo, na presença apenas de sua grande imaginação — e ele usava isso de desculpa para não aceitar que estava, sim, se sentindo um pouco solitário após a partida da mãe. Ele sabia que as pessoas iam e vinham, não é algo que se pode controlar.
Por isso mesmo que, depois de se agasalhar para não pegar uma gripe — sem deixar de ouvir, num lampejo de memórias não recentes, a voz histérica de sua mãe implorando para que ele levasse um casaco extra ou até umas bolsinhas quentes para não ter as mãos congeladas — saiu porta afora. O prédio ficava em uma área boa, muitas lojinhas e ele jurava que havia visto uma feira ali mais cedo. Mas já era noite, as ruas estavam lotadas de jovens entre vinte e trinta anos — mais ou menos a idade do escritor, veja só! — que caminhavam meio sóbrios meio cambaleantes em busca de uma festinha naquele dia vinte e um de dezembro.
O homem sentiu os cabelos vermelhos esvoaçarem e se arrependeu um pouco de não ter pego uma touca ou algo do tipo. Lembrou que as orelhas congelavam facilmente e agradeceu por ter ficado alguns meses sem cortar o cabelo. Puxou o cachecol para que a lã cobrisse seu queixo e fechou bem os punhos, uma mão dentro do bolso e a outra completamente gelada, segurando a sacola de papel onde levava dois exemplares. O clima era o mesmo, ele que estava desacostumado.
As ruas estavam coloridas, brilhantes. Piscavam, reluziam, era uma mistura de cor, de calor, de alegria que se misturavam ao vento seco e gelado que batia em seu rosto sem dó nem piedade. Foi quando ele precisou pegar o celular do bolso para rever o endereço do lugar. Encontrou-o quase que por acaso, era um estabelecimento bonito, a iluminação de natal decorando cada centímetro das paredes. Antes de entrar, sorriu ao perceber que o nome do lugar era, e ele sabia que não era coincidência, Clube do Café.
Não precisou de muita coisa para que o sorriso permanecesse ali por um bom tempo, o nome do lugar tinha cheiro de nostalgia. O aroma de café era forte, o aquecedor ali estava ligado, finalmente já podia tirar a mão do bolso sem o perigo de uma hipotermia. Chegou no balcão e se perdeu na variedade de pães, doces, bolos, quitutes. Ainda era cedo, não seria de todo mal se ele beliscasse alguma coisa antes.
Observou que no cantinho havia bolos de sorvete e alguns com decoração de natal, queria comprar um só por ter achado bonitinho, mas sabia que não aguentaria comer sozinho. E ainda não tinha uma geladeira ou freezer para guardar. Os pequenos problemas de um jovem em seu apartamento mal equipado.
Foi cumprimentado gentilmente por um dos atendentes que sorriu com satisfação para o escritor que, depois de gaguejar um pouco completamente em dúvida sobre o que deveria ou o que não deveria comprar — nada muito doce nem muito salgado, comprar uma quantidade suficiente para que não ficasse com fome e pequena para que não comesse demais. E uma bebida também, o café não poderia ser fraco, nem gelado, mas também não poderia ser muito quente, comer ali mesmo ou ir até o segundo andar? Ele não conseguia escolher!
Finalmente pediu o que queria (ou o que achava que queria) e decidiu subir até o segundo andar onde a visão do bairro iluminado pelas luzinhas de natal era ainda mais bonita. Os prédios comerciais e residenciais deviam estar em alguma competição naquele dezembro, pois não importava para onde olhava, as cores sempre estavam ali piscando cada vez mais.
O escritor colocou seu jantar na mesinha, uma mistura de pães doces e algumas fatias de bolo, e como era sua primeira vez ali, havia ganho também uma caneca de café totalmente de graça. Aquela era uma tática realmente boa para chamar clientes, mas talvez fosse até um pouco arriscada. Talvez eles só tivessem muitas canecas e quisessem se livrar o mais rápido possível delas. Se bem que dar presentes para as pessoas era bem a cara dele.
Era como sua situação com os exemplares do seu livro. “Distribua para amigos e família” lhe disseram uma vez. Era impossível, ele sabia. Por isso que a caixa de livros ainda estava quase cheia. Suspirou meio angustiado para a sacola que trouxe e que descansava em uma das cadeiras da mesinha. Não sabia como aquela notícia seria recebida.
Estava quase acabando de comer quando desejou demais um pouquinho de sopa, talvez aquele fosse apenas um castigo que a vida decidiu lhe dar — quando era mais novo, detestava quando a mãe trazia sopa para casa, simplesmente odiava — mas depois de um tempo percebeu que, quando se passa dos vinte e cinco (e pode acontecer antes assim como pode acontecer depois) a melhor coisa em um dia frio era ter uma caneca cheia de café quente e uma tigela de sopa. As palavras chaves para viver bem eram sempre aquelas duas: café e sopa.
Foi quando estava distraído pensando em sopa que percebeu que estava sendo observado. Não observado como em filmes de espião, nada disso. Apenas notou que tinha alguém o encarando ao longe, e como um bom conhecedor da literatura e do cinema, fez o que todo mundo deve fazer. Encarou de volta.
O alguém era na verdade um homem. Devia ter a mesma faixa de idade do escritor. Tinha os cabelos bem pretos e parecia extremamente familiar, o que fez com que o jovem se arrependesse de não estar usando seus óculos novos, eles seriam de grande ajuda para reconhecer o tal moço que lhe observava distante e que foi se aproximando com urgência.
— Baekhyun? — O rapaz chamou quando a distância ainda não permitia que o escritor o reconhecesse pelo rosto, mas aquela voz era sem dúvidas a que o jovem mais gostava de escutar. Se levantou quando conseguiu ver aquele rosto que havia mudado tanto e se deixou sorrir lembrando dos bons tempos que haviam ido embora, mas que continuavam vivos em sua mente e nas páginas de seu livro. — Bem-vindo de volta.

Eu me lembro de muitos daqueles dias como se fossem hoje, os momentos mais marcantes.
Mesmo que marcante não significasse que o momento foi incrível. Havia momentos tão chatos, mas tão chatos, que de alguma forma se tornaram inesquecíveis.
Naquela época as aulas começavam no fim do verão, era abafado, mas chovia às vezes. Ter um bando de adolescentes trancados numa sala de aula em dias abafados era como um pedido de morte.
Mas isso não chega a ser tão importante assim.
Há dias que eu me lembro mais, há dias que eu me lembro menos. Mas tudo começou com o incidente da biblioteca, quando eu estava lendo uma enciclopédia e... ou talvez, tudo pode ter começado com o fato de que eu fiquei dois meses sem escolher um clube.
Tem um dia específico que eu lembro. Era início de inverno, o outono já tinha passado, foi naquele dia que tudo realmente começou, mesmo que nada pareça tão importante.
Naquele dia fazia um mês que eu estava frequentando aquela escola. Um mês inteiro. E, como ainda não havia me inscrito em nenhum clube — entre as poucas opções que a escola oferecia — fui chamado depois da aula para uma conversinha na sala do conselheiro educacional.
Totalmente desnecessário.
E bastou dois minutos sentado naquela cadeira para que eu percebesse que nem o conselheiro queria estar ali, o que era até bom, eu seria dispensado mais cedo se enchesse o saco.
— Então... jovem Byun Baekhyun. — Ele falou, me olhando meio de canto, tentando ler minhas expressões, mas pouco tempo depois eu fui saber que o velho tinha problema com cafeína. Naquela tarde ele só não estava muito bem. — Nenhum interesse em algum clube ainda?
Não. Nenhum. Queria dizer.
— Ainda não conheço as opções. — Era mentira. Eu sabia que a escola colocava muita fé em clubes como o de basquete e de jardinagem. E também sabia que os clubes de leitura, artes e afins eram deixados de lado.
— Bom, ouvi dizer que estão precisando de ajuda no clube de basquete. Você deveria tentar.
— Não gosto de basquete, senhor.
— Oh, sei. Mas uma ajudinha seria muito bem-vinda. O que acha do clube de jardinagem? — O homem tentou de novo, mas estava na cara de que nem ele nem eu queríamos estar ali.
— Alergia a pólen.
— Oh.
Eu sei exatamente o que se passou pela cabeça daquele senhor, ele achava que eu tinha algum problema mental por me deslocar tanto. Achava que eu não tinha tato. Ou que eu não sabia me comunicar com as pessoas. E ao invés de esperar por algum conselho que não adiantaria, eu apenas me levantei com um sorriso que gritava que eu seria um aluno melhor. O que era impossível, eu já era um aluno exemplar.
— Eu vou visitar os clubes amanhã, senhor. — Falei. Quase ouvi um suspiro de alívio.
— Então podemos encerrar esta reunião, senhor Byun. — Com um sorriso, o homem se levantou e apertou a minha mão. Foi quando eu saí correndo dali, sem a menor das intenções de realmente visitar aqueles clubes.
Veja bem, não fazia sentido para mim participar de um clube quando eu não vou realmente ficar. Eu nunca ficava. Não por muito tempo. Eu sabia que dali a um tempo eu poderia ir embora, não queria passar os dias catando bolas de jogadores suados e nem mexendo com terra o dia inteiro. Também não queria passar horas e horas trancado em uma sala com outras pessoas.
Não que eu não goste de pessoas, eu até gosto.
Por isso eu não visitei os clubes no dia seguinte. Nem nos dias que se seguiram. Nem mesmo na semana seguinte. E aquilo durou quase um mês, quase. Até quando eu fui convidado a ir à sala do conselheiro novamente. No meio de uma aula.
O professor explicava sobre os diferentes climas e relevos quando fui chamado. E depois de mais cinco minutos preso com o conselheiro educacional sem nenhum propósito, voltar à sala de aula não era uma opção.
— Senhor Byun... escolha um clube! Urgh! — Resmunguei, os corredores estavam vazios e foi bem fácil encontrar a biblioteca. Não tinha ninguém por lá além da bibliotecária, o que era bom. Bom demais. Me escondi entre algumas prateleiras e folheei alguns livros só para matar o tempo. Livros de filosofia, livros de sociologia, geografia, matemática, literatura. E uma grande enciclopédia que foi extremamente difícil de tirar da prateleira.
Mas quando eu tirei, tive a visão das mesinhas que haviam por lá, e peguei no pulo um dos alunos que matava aula para dormir. O que não durou muito tempo, porque logo uma menina apareceu para cutucar o garoto adormecido. Cutucar com muita vontade.
— Ei... cara... acorda! — A menina até parecia bem pequena perto do grandalhão que dormia todo esparramado por ali, e quando ela finalmente desistiu de cutucá-lo, fui pego no flagra espiando os dois. Me afobei e quis colocar a enciclopédia de volta no lugar, mas o livro era pesado demais. — Oi? Sabe o que aconteceu com ele?
Engasguei.
— Eu... eu acho que ele morreu.
A menina riu. Não sorriu. Riu mesmo.
— Não é a primeira vez que acontece. — Suspirou.
E nesse meio tempo, nós vimos o dorminhoco acordar, se espreguiçar, coçar os olhos com a menor das preocupações e fungar o nariz como se aquele tivesse sido o melhor sono de sua vida inteirinha, mesmo que estivesse todo dobrado e com a cara no tampo duro da mesa.
— Cara, a reunião começa daqui a pouco, o que diabos você ‘tá fazendo dormindo aqui? — Ela perguntou e de repente começou a distribuir tapas no pobre dorminhoco que, se não tinha acordado totalmente antes, acordou com aqueles tabefes bem dados.
— Pois você acabou de responder à pergunta, estava dormindo! — Ele fungou mais uma vez, a menina suspirou e revirou os olhos.
— Você não vai ver cidadão mais idiota que este cara na vida, aproveita a vista. — Então o grandalhão dorminhoco se virou e finalmente me viu ali, entre as estantes com a enciclopédia na mão. Quis dar um “olá”, mas as mãos estavam ocupadas.
— Quem é esse? — Ele perguntou para a menina.
E ela se levantou e caminhou até o espaço da enciclopédia na estante que era como uma janelinha para que eu visse tudo o que acontecia com a galera do outro lado. Passou um dos braços por ali, estendendo a mão para que eu apertasse. Apertei.
— Irene. Você?
— Byun Baekhyun.
— Ele é o Byun Baekhyun. — Irene respondeu quando voltou a falar com o dorminhoco. Ele deu de ombros, murmurou um tanto faz e logo depois disse o próprio nome. Foi a primeira vez que eu vi Park Chanyeol na vida.

Quando eu menos esperava fui carregado até uma sala. Era O Clube de Artes, assim no plural, em letras bonitas mesmo.
Depois do incidente da biblioteca, Irene notou que eu e ela estudávamos na mesma turma. No horário do almoço daquele dia, eu já estava pronto para sair correndo e comer em algum canto calmo, quando fui puxado para o refeitório como um refém. E lá acabei encontrando não somente Park Chanyeol como o que seria metade do tal clube de artes.
Pelo que eu havia entendido, dentro do clube haviam três. Cada um com seu respectivo líder, e todos naquela mesa discutiam em como não eram valorizados pela escola. Não sei como ou quando, mas de repente o foco mudou e um dos garotos do clube — um bem loiro, bem magricela e de aparelho nos dentes — me perguntou:
— Em qual clube você está?
E eu, inocente demais, respondi:
— Nenhum. — Foi como se eu tivesse botado fogo na minha própria cabeça.
— Como assim não está em nenhum clube? — Irene perguntou afobada. E essa pergunta veio acompanhada de várias outras, por sorte o refeitório já era bem barulhento normalmente. Aquele auê não fez grande diferença que pudesse me colocar de novo na sala do conselheiro educacional.
— Na verdade, eu tenho que entrar em um clube... — acabei falando. Alguém me interrompeu falando “claro que tem, todo mundo tem”. — Mas não me interessei em nada.
Todo mundo ali se olhou estranho, como se bolassem um plano maquiavélico. Eu, em vez de me preocupar, foquei no meu suco de caixinha que estava no final, e talvez por isso eu me deixei ser enganado e facilmente fui arrastado para o tal clube.
A sala era grande quando abriram as portas, mas foi só a galera toda entrar lá dentro que o espaço pareceu minúsculo. Fui arrastado no meio daquele pessoal que parecia até se divertir com o meu desespero e no fim, quando todo mundo arranjou seu cantinho entre a bagunça, a menina Irene se pôs a frente com toda uma pose de líder. Eu supus que ela fosse uma das líderes daquele clube de esquisitões.
— Bem-vindo ao Clube de Artes, Byun Baekhyun, eu sou a Irene. — Falou na pose mandona com o nariz empinado.
— Eu já sei disso. E não precisa falar meu nome completo.
Algumas pessoas ali riram, outras só arregalaram os olhos porque deveria ser uma tremenda audácia fazer piadinhas com a líder suprema e maioral daquele lugar.
Mas ao contrário de todo mundo, ela só deu um sorrisinho de lado.
— O nosso clube é um clube geral, e nele tem três clubes internos porque a porcaria da coordenadoria do colégio não ‘tá nem aí pra Artes. Mas nós estamos.
— Por isso nós temos o grupo de dança, o grupo de música e o grupo de teatro, tudo junto e misturado num mesmo clube. — O carinha esquisito de aparelho nos dentes completou.
— Exatamente. Eu acho que você não estava prestando atenção quando falamos sobre isso no refeitório...
— E você está certíssima.
— Por causa disso, eu me apresento como líder geral, porque fui eu quem tive a ideia de fazer um clube com alguma arte envolvida, lembrem-se bem — ela falou, acho que algumas pessoas ainda não concordavam muito com aquilo e só por isso a menina fazia questão de deixar bem claro. — E também a líder do grupo de dança.
Esperei uma salva de palmas vir antes de começar a bater palmas, mas não aconteceu. Então fiquei no meu canto e esperei as apresentações terminarem.
— Eu sou Do Kyungsoo. Líder do grupo de teatro. — Um menino baixinho de óculos apareceu no meio da galera e se curvou cerca de noventa graus para se apresentar.
— E mesmo que a gente se divida em três clubes internos, no fim, somos um só. Não é simplesmente genial?
— Sim, genial, mas quem é o terceiro líder? — Perguntei e parece que se abriu um buraco no tempo e espaço, todo mundo ficou quietinho. Até mesmo Irene.
Esperei uma resposta, olhando desde o menino de óculos que se escondia entre dois caras mais altos, até uma menina que tinha o corte de cabelo muito parecido com a Sadako daquele filme de terror japonês, ninguém parecia com vontade de dizer nada.
— Bom... é que... — a líder gaguejou um pouco, mas logo foi interrompida por alguém tocando um ukulele cor de rosa. Era Park Chanyeol.
— Só fala pra ele que não temos líder ainda.
O silêncio ficou no ar por alguns segundinhos antes da líder tomar a frente e começar a falar pelos cotovelos.
— O grupo de dança e teatro são mais antigos, por assim dizer. Só concordamos em adicionar música porque esse grandalhão orelhudo fez birra. — Ela apontou para Chanyeol, que devolveu uma careta. — Enfim, Sehun, Kai, Lay, Seulgi, Tao e é claro, eu. Nós somos o grupo de dança.
A menina foi dizendo com um sorrisinho cansado e cada um dos membros foi levantando a mão, um depois do outro, quando o nome era chamado. Tão perfeito e ensaiado como se fosse uma coreografia mesmo. E eu consegui reparar que todos eles eram diferentes.
Sehun eu já conhecia, era o tal menino loiro de aparelho nos dentes. Kai era tão alto quanto, mas não era tão magricela. Vestia um moletom de urso e eu tinha quase certeza de que ele era o dono da mochila cheia de chaveiros. Lay era o único ali com o tamanho de uma pessoa normal, usava óculos, mas eles sempre escorregavam para a pontinha do nariz. Seulgi era a menina com o cabelo da Sadako, mas em vez de ter um rosto de dar medo, ela tinha um sorrisinho bem meigo (e descobri depois que ela e Kai eram irmãos). Zitao era com certeza o que mais se destacava. Usava lápis de olho bem preto e as roupas todas era bem escuras. Ficou no cantinho e levantou a mão por dois segundos quando Irene disse seu nome.
Depois de um tempinho foi o tal garoto Do Kyungsoo quem teve que apresentar os membros de seu clube, e mesmo que ele pertencesse ao teatro, a vontade era zero de fingir qualquer empolgação por trás daquele sorrisinho meigo.
— O grupo de teatro é composto por mim, Yeri, Suho, Xiumin, Kris e Soo...
— Joy. — A última menina interrompeu.
— E Joy.
Se o grupo de dança era esquisito, o do teatro era mais esquisito ainda. Yeri era uma menina baixinha de cabelo rosa, ela estava agarrada numa bolsinha de poodle como se aquilo valesse a vida dela. Suho e Xiumin pareciam os mais razoavelmente comuns, porque quando chegava em Kris, eu só conseguia ver um prédio. O cara era simplesmente muito alto. E Joy foi a que interrompeu o líder, então ela havia perdido pontos, como eu. Isso se eles por acaso tivessem pontos.
— E no grupo de música? — Perguntei só por curiosidade mesmo, mas a líder olhou para mim com um sorriso sugestivo.
— Está interessado no grupo de música?
— Curioso é a palavra certa.
— Eu, Chen e Wendy. Fim. — Chanyeol soltou, mal-humorado que só e todo mundo se calou. Sem mais risinhos, sem mais um pio. Vi de relance Wendy e Chen acenando com os sorrisos amarelos.
Wendy era bem miúda, até mais que Irene, tinha cabelos azuis e uma franja que quase tapava os olhos. Chen também era miúdo (não tanto quanto Wendy, na verdade), e o cabelo também quase tapava os olhos. Devia ser algum uniforme obrigatório ali, ou algo do tipo.
— São só vocês três? — Perguntei, mas foi uma péssima ideia porque Chanyeol só bufou, botando o ukulele rosa de lado.
— Sim. Por quê? Você quer entrar?
— Querer não é a palavra certa, eu meio que tenho que entrar em um clube. — Dei de ombros, não era o meu intuito fazer joguinhos, mas eu não estava disposto a entrar em um clube com gente antipática.
— Fala sério, Byun, está ou não interessado? — A menina Irene perguntou de braços cruzados me olhando com aquele jeitinho superior. Todos os membros me encarando e eu, claro, sem saber como me livrar daquela bagunça.
— Estou. — Dei de ombros. E foi como se a festa tivesse sido iniciada, todo mundo arrastou sua cadeirinha para o canto, numa grande rodinha. A tal menina Wendy me deu um violão mesmo sem eu nem ter pedido e Chen me empurrou numa das carteiras sem braço.
— Mostra seu talento, então.
Soltei um risinho soprado e tentei não prestar atenção nos muitos pares de olhos que me olhavam esperançosos. Alguns talvez estivessem torcendo para que eu não soubesse um acorde direito, mas outros com certeza tinham uma grande expectativa. Eu posso dizer que era um deles.
Dedilhei algumas notas pensando no que tocar, e foi automático quando os dedos correram pelo braço do instrumento indo do mi menor para sol maior, ré, lá e foi quase que natural ouvir a intro de Wonderwall soando melodiosa das cordas do violão.
— ‘Tá de sacanagem? — Fui interrompido antes mesmo da música, foi Chanyeol, como eu já esperava. — Wonderwall? Todo mundo que sabe o mínimo de violão sabe tocar Wonderwall!
— Não é bem assim, eu ainda não sei fazer ré suspenso. — Wendy comentou baixinho.
— ‘Tá, então escolhe uma música. — Pedi, crente que ele escolheria uma mais complicada, talvez mais rápida, com mais acordes. Mas em vez do que eu esperava, o danado deu um sorriso de lado.
— Toca aí Creep.
Claro que eu pensei que ele tava brincando.
— ‘Tá de sacanagem? Creep é bem mais fácil do que Wonderwall.
— Pra você. Eu não sei fazer pestana. — Wendy murmurou de novo no cantinho dela.
— Qual foi, Baekhyun? Não sabe fazer pestana? — O maluco levantou a sobrancelha, eu só consegui rir de todo aquele estresse. Segurei de volta o violão e tentei me concentrar o suficiente para lembrar da letra, não era uma música que eu ouvia bastante, mas com certeza estava em uma das minhas mixtapes.
A música terminava em sol maior, sem maiores dificuldades, e foi depois do último acorde que uma salva de palmas elevou o astral daquela salinha repleta de gente.
— Bom, eu acho então que você está dentro. — Irene disse com o maior dos sorrisos, talvez esperando a resposta de um dos membros do grupo de música. Não precisou esperar muito porque logo em seguida Chen estava me dando tapinhas nas costas e Wendy havia pego o violão das minhas mãos para nos juntar num abraço triplo.
Foi quando todo mundo se calou, no entanto. Park Chanyeol havia se levantado pisando firme no chão e saído da sala. A porta bateu forte e foi quando todo mundo ficou se olhando meio triste.
— Não leva a mal não, ele está passando por uns problemas pessoais. — O carinha de aparelho nos dentes (que naquele momento eu já sabia se chamar Sehun) avisou. Todo mundo naquela sala já parecia saber sobre os tais problemas pessoais de Chanyeol.
Eu não esperava que eles me contassem, afinal eu havia acabado de surgir na vida de cada um deles. E talvez o Park não gostasse que eu soubesse sobre seus segredos, já que o panaca parecia me odiar da ponta do pé até o fio de cabelo.


Os dois se abraçaram calorosamente, um sentindo saudades do outro e sem saber como começar uma conversa quando se havia tanto para ser dito.
O escritor sentiu cheiro de casa naquele abraço, sentiu vontade de começar contando todas as suas histórias e suas aventuras quando havia saído daquele lugar, mas tentou se segurar. Se sentou de volta e esperou que o velho amigo falasse alguma coisa, dissesse como ele estava diferente ou talvez começasse a contar detalhes sobre sua vida.
Fazia tanto tempo. Tanto. Para ele era quase como uma eternidade. Os dois ficaram em silêncio por uns momentos, parecia um tanto constrangedor para quem visse, mas não era. Enquanto um estava animado esperando por novidades, o escritor se perdeu no cheiro do passado, no aroma de sopa e de café em meio ao estabelecimento iluminado.

Depois daquele primeiro dia era suposto que eu me juntasse ao clube e começasse a participar das reuniões que aconteciam todas as tardes após a aula. E eu queria muito poder dizer que foi exatamente o que aconteceu, mas não foi. Logo no dia seguinte, eu esqueci que precisava ir até lá, por isso quando o sinal tocou eu só arrumei minhas coisas na mochila e estava pronto para ir embora quando puxaram a gola do meu uniforme.
— Qual é! — Reclamei esperando que fosse Irene pronta para me dar um peteleco. Mas era, na verdade, Sehun.
— Temos reunião hoje. — Ele disse, e então passou o braço pelo meu ombro para me arrastar quase que literalmente até a salinha do clube.
Aquele era meu primeiro dia oficialmente, e quando eu cheguei cada um estava fazendo suas coisas. A galera da dança estava revendo algumas coreografias na sua pequena porção da sala, a do teatro estava com livros na mão, cada um murmurando suas próprias falas e a galera da música... na verdade, Chen e Wendy, estavam num cantinho rabiscando alguma coisa numa folha de papel.
Quando cheguei mais perto os dois estavam jogando o jogo da velha.
Foi quando eu percebi que ninguém fazia realmente alguma coisa ali. Chen havia me dito que eles geralmente passavam o tempo jogando, e às vezes quando tinham realmente algo importante para fazer ou ensaiar, dividiam horários para que cada um dos grupos tivesse a sala inteira por um período de tempo.
Durante aquela tarde eu ganhei no jogo da velha cinco vezes, depois deixei que Chen ganhasse para que ele não me detestasse. E quando os dois passaram a jogar sozinhos outra vez me sentei num canto até Irene e Sehun se aproximarem, ambos com sorrisos bastante suspeitos.
— Já que é seu primeiro dia como membro oficial do clube... tem problema se a gente te fizer algumas perguntas? — Irene questionou, mas eu já tinha percebido que não importava qual a minha resposta, as perguntas viriam mesmo assim.
— Que tipo de pergunta?
— Perguntas comuns, quase todo mundo aqui estudou junto a vida toda, e parece justo a gente querer saber mais sobre você. — Sehun quem falou daquela vez, o sorriso esmagando os olhos e fazendo com que eles parecessem meias luas. Dei de ombros, era um sim.
Foi quando o burburinho ficou mais alto e todo mundo já tinha uma pergunta pronta para fazer, mas antes que pudessem dizer alguma coisa a porta foi aberta. O rangido fez com que todo mundo olhasse quem era o atrasado do dia, e é claro que seria Chanyeol.
Ele fechou a porta em silêncio, caminhando desengonçado para o fundo da sala onde estávamos e se sentou, só aí percebeu que todo mundo olhava para ele.
— Quê? Que foi?
— Estamos prestes a fazer um interrogatório. — Irene comentou e o menino abriu a boca em surpresa e desespero.
— Quem? Com quem? Comigo? — Do canto que eu estava consegui ver as orelhas salientes dele ficando vermelhas, me segurei bastante para não rir, mas foi inevitável. — Ah, com o novato.
— Presente. — Levantei a mão com um sorrisinho, irritar o menino Park era engraçado.
— Eu posso fazer a primeira pergunta? — Ele perguntou, mas não esperou aval de ninguém. — Como foi que você surgiu aqui?
Estalei a língua, pensei em quanto tempo eu poderia deixar o cara realmente puto da vida.
— Hm... fui arrastado pela Irene ontem, você estava aqui.
— Quis dizer aqui na escola. — Revirou os olhos.
— Oh. Me mudei para cá com minha família há uns dois meses.
— De onde?
— Canadá.
— Você não tem cara de canadense.
— Eu não disse que sou canadense.
Era como um jogo de pingue-pongue, ele falava e eu respondia imediatamente. Talvez ter a resposta na ponta da língua fosse uma vantagem aqui. Toda vez que um de nós falava os olhos da galera acompanhavam os movimentos como se esperassem uma briga.
— Por que se mudou então? — Ele perguntou, se escorando nas costas da cadeira e colocando os pés em outra.
— Não porque eu quis, pode ter certeza. — Soltei uma risadinha, risadinhas irritavam a maioria das pessoas pé-no-saco, e Chanyeol era com certeza uma dessas pessoas.
— Motivo?
— Não vejo motivos para te dizer o motivo. — Alguém soltou uma risadinha no meio da galera, quis me curvar e agradecer pelo apoio.
— Precisa se quiser entrar no clube.
— Pensei que eu só precisava entender algo de música. — Chanyeol tirou os pés da cadeira e me olhou por um tempinho em silêncio, a maioria da galera havia voltado a fazer suas coisas sem prestar atenção na discussãozinha que tínhamos iniciado ali, o que era bom, porque se eu fosse levar um murro, não queria uma plateia olhando.
Mas o Park não parecia querer me acertar no meio da cara, em vez disso, só virou para Chen que estava por perto e cruzou os braços fazendo birra.
— Não gosto dele.
— Azar. Eu gosto. — Foi a resposta que recebeu.
— Traição. Você não vai me trair dessa forma, vai Wendy?
— Me desculpa, Chanyeol, mas Baekhyun tem o meu voto se ele quiser ser o líder. Ele é muito bom. — A menina sorriu para mim e só o que eu fiz foi sorrir com uma sobrancelha levantada para o tal Park. Ele parecia horrorizado.
— Pois ele não tem meu voto!
— Mas tem o meu. — Chen falou levantando a mão para um high five com Wendy, o que só deixou Chanyeol ainda mais nervosinho.
Eu não tinha nenhuma intenção de ser líder de nada, sequer queria fazer parte de um clube. Mas Chanyeol não sabia disso ainda e naquele momento ele não precisava saber.
— Vocês não acham injusto? Esse cara mal apareceu e vocês dois já querem que ele seja o líder?
— Engraçado, você disse que não ligava pra essa ‘coisa de líder’ — Irene apareceu na rodinha, com o mesmo sorriso brincalhão de sempre.
— Agora eu ligo. Ele não vai ser líder de coisa nenhuma! Mal chegou e já quer sentar na janela, não é bem assim que as coisas funcionam.
Chanyeol já estava com as bochechas vermelhas, a respiração pesada e os olhos totalmente fora de foco. Pouco a pouco a galera do clube ia lançando olhares, curiosos para o que diabos estava acontecendo. Mas se eu, que estava enfiado no meio da muvuca não entendia nada, imagino que eles também não.
— Tudo bem cara, eu não faço questão de ser líder. — Murmurei só para que ele parasse de arruaça, Chanyeol era como uma criancinha mimada ao meu ver, nada podia sair de seus planos que era motivo para birra.
— AHÁ! É esse o tipo de líder que vocês dois querem? — E ele continuou.
— Beleza, cara, todo mundo já entendeu. — Chen murmurou, Wendy nem falava mais, havia desistido de prestar atenção e estava completamente entretida contando a quantidades de buraquinhos que havia em uma gaita.
— Você ‘tá exagerando, cara. — Sehun comentou.
— Ele deve estar com medinho porque o novato sabe tocar tanto quanto ele, agora se acha menos especial. — Joy acabou falando do nada, e Chanyeol não parecia ter gostado muito do comentário. Que grande surpresa.
— Conversa fiada. A reunião acabou. — Ele bateu a mão no braço da cadeira, como se aquilo fosse um basta. Ninguém obedeceu realmente ao grandalhão, e foi então que ele saiu pela porta sozinho, assim como no dia anterior.
A clima pesado durou pouco, Irene deu a reunião por encerrada logo depois que Chanyeol saiu e todo mundo foi embora resmungando. Notei então que todos estavam confusos com as tais atitudes do menino Park. Alguns comentavam que ele estava agindo estranhamente, outros falavam que sempre souberam que ele era uma criança birrenta. Cada burburinho que eu ouvia era uma parte avulsa da história que me deixava cada vez mais curioso.
Fiquei no meu canto até a sala estar praticamente vazia, somente pensando com meus botões se o que falavam em sussurros era a verdade ou apenas boatos. Chanyeol estava passando por problemas familiares, talvez problemas de pais, problemas burocráticos, talvez fosse apenas esnobe, talvez tivesse problemas com raiva, talvez estivesse com ciúmes pela atenção que eu estava recebendo por ser um membro novo, ou talvez tudo fosse fruto da imaginação das outras pessoas.
Acordei dos pensamentos quando Sehun cutucou meu braço, todo mundo já havia saído quando ele puxou uma das carteiras e se sentou, me olhando quase com piedade.
— Não leva a mal, não. Eu tenho certeza de que não é pessoal. O Chanyeol só ‘tá estressado. Ele geralmente é um palhaço, você só teve o azar de conhecer ele nesse período tenso.
— Período tenso?
— Problemas pessoais. A gente tenta não irritar ele aqui porque ele já tem muito o que se preocupar em casa.
— Tipo o quê? — Perguntei mesmo sabendo que Sehun não iria me dizer nada.
— Muita coisa.
Saí da sala do clube com um único pensamento na cabeça. Um pensamento distante e que talvez fosse egoísmo demais, talvez eu estivesse me agarrando às possibilidades que eu tinha de ir embora dali logo, talvez eu quisesse me meter em confusão, porque eu não sabia quando eu poderia estar em uma escola de novo.
Talvez eu estivesse sonhando alto, mas ao sair da sala do clube naquele dia eu desejei poder ser capaz de conhecer o verdadeiro Park Chanyeol.
Eu passei a visitar o clube todos os dias a partir dali, e não demorou muito para que o conselheiro educacional me chamasse para mais uma conversa desnecessária onde eu ficava sentado em uma cadeira desconfortável observando-o olhar para o vento.
— Então... clube de artes... — Ele falou, talvez até decepcionado. — Fez amizades?
Havia se passado um mês.
— Sim.
— Hm. — O homem estava escondendo alguma coisa dentro das bochechas. Algum comentário ácido, mórbido, alguma notícia cabulosa ou talvez um hambúrguer. — Tome cuidado dentro deste clube, rapaz.
— Por que?
— Você me parece um aluno promissor, perder tempo com... assuntos supérfluos não me parece uma boa escolha. — Ele falou, eu ouvi calado, na minha. Assenti como um aluno exemplar e fui embora pensando a quantidade de merda que aquele homem deveria comer todos os dias.

Os dias que tenho mais lembrança foram dias em que eu acordei atrasado. Não acontecia sempre, é claro, e eu dava um jeito de correr para chegar a tempo da primeira aula. Mas houve um dia em que eu acordei e minha mãe já tinha saído para o trabalho.
E se ela já tinha saído, queria dizer que eu estava muito mais atrasado do que o normal, por isso eu só virei na cama e dormi mais um pouco. Só mais dez minutos. Acordei de noite. Baguncei meu horário de sono.
O que me rendeu a noite inteira acordado e alguns cochilos na aula seguinte.
E quando cheguei na sala do clube — talvez um pouco atrasado por ter dormido pra valer no finalzinho da aula — o lugar estava quase vazio. Irene e Sehun estavam ali ensaiando juntos uma coreografia e a galera de música, incluindo Chanyeol, tocavam alguma música estranha que eu não conhecia.
— A reunião acabou? Por que não me acordaram? — Reclamei bem alto, como Chen geralmente fazia, com o tempo comecei a pegar manias de cada um dali, era a parte divertida de conviver com outras pessoas.
— Não tive coragem, você parecia cansado. — Sehun comentou.
— Eu teria acordado, mas o mané me impediu.  — Irene apontou com a cabeça para o loiro magricela, e os dois voltaram a ensaiar.
Bufei, me jogando em uma das carteiras tendo certeza de ficar ao menos um pouco longe de Chanyeol. Com o passar do mês ele parou de sair da sala do clube pisando firme, e parou também de me provocar com assuntos desinteressantes, mas sempre que tinha a oportunidade me jogava uma piada fajuta ou zoava minha altura, ou o fato de eu ter um cabeção (que não era problema nenhum, pois ele também tinha). Eu já havia me acostumado com aquilo até, por isso estranhei quando o vi quieto, dedilhando o ukulele cor de rosa sem dizer uma palavra.
— O que deu na besta? — Perguntei para Wendy, vi de relance o menino Chanyeol revirar os olhos.
— A besta vai te meter o murro no olho. — Ele me respondeu, e soltei uma risada alta.
— Falando assim nem parece que estava todo preocupado com o Byun ontem. — Irene comentou pegando a garrafinha de água no canto com um sorriso maroto no rosto, que puxou risadinhas de todo mundo ali presente.
— Calada, enxerida. — Ele tentou, mas todo mundo sabia que quando Irene começava a falar, ela não parava mais.
— Hm. Bonitinho. — Um sorrisinho meigo brotou no rosto dela só para dar espaço a mais um sorriso maroto, vi Chanyeol quase se contorcer no lugar e torci muito para que ele não quebrasse o ukulele de tanto que estava apertando. — Ontem ele ficou todo preocupado quando você não apareceu, Baekhyun.
— Oh. É mesmo? — Falei, pousando o queixo no punho para olhar para Chanyeol que estava fritando quietinho no canto. — Interessante.
— “Será que ele tá doente?”, “Alguém sabe onde ele mora?”, “Tem certeza que ele não veio pra escola”? — Wendy explodiu em risadas depois de uma imitação até que boa de Chanyeol, conseguiu passar as emoções do grandalhão orelhudo quando ele ficava nervoso.
— ‘Tá expulsa do grupo de música. — Chanyeol murmurou. — E você também.
— Você não pode expulsar ninguém, Chanyeol. — Chen se aproximou depois de quase engasgar em risadas.
— ‘Tá expulso também.
— Quer extinguir o grupo de música? Não pode ter um membro só. — Irene cruzou os braços, rindo demais do nervosismo do menino. Chanyeol ficou quieto rapidinho.
Talvez tenha sido ali quando eu comecei a perceber todas as nuances de Park Chanyeol. Havia coisas que eu entendia e coisas que não entendia muito bem, mas eu não me importava em não saber todos os segredos dele desde que pudesse passar um tempo sendo eu mesmo. Naquela época eu ainda não sabia disso, só fui saber muito, muito tempo depois.
Foi no início do inverno que eu passei a ver mais de Park Chanyeol. Quando eu já estava no mesmo lugar por mais de seis meses e pensei que talvez daquela vez pudesse ser diferente, mesmo que no fundo eu já não tivesse realmente a esperança de ficar.
— Qual é a real função deste clube? Ninguém faz nada, eu poderia estar em casa dormindo. — Por incrível que pareça não havia sido eu a dizer aquelas palavras, mas sim Chen.
— Não faz porque não quer. Poderia me ensinar a fazer pestana. — Wendy fez uma careta, naquele dia estávamos apenas nós do grupo de música. A sala parecia bem maior.
— Como eu posso te ensinar se eu nem sei tocar violão? — Fez um biquinho e os dois olharam para mim e para Chanyeol que dormia como se estivesse na sua própria casa. Eu ainda não fazia ideia de que talvez ele não conseguisse dormir bem na própria casa.
— Eu acho que devíamos planejar uma apresentação, sabe? — Wendy surgiu com a ideia, pegando a gaita de sopro. — Pra ter alguma coisa para fazer, algo para ensaiar.
— Você acha que o diretor permitiria? Porque eu não. — Concordei com Chen naquele ponto. Todo mundo sabia que o único clube que recebia financiamento da escola era o clube de basquete.
— Acho que não custa tentar. — Ela murmurou.
Saí da sala para comprar uma caixinha de suco na cantina, me deram leite fermentado. Segui meu caminho de volta para a sala do clube e antes mesmo de entrar Wendy e Chen estavam de saída, com suas mochilas nas costas e olhares cansados.
— Já vão?
— Sim, não tem muita coisa pra fazer, tem? — Wendy falou, com a gaita ainda nas mãos.
Os dois foram embora rapidinho e eu imaginei que só precisava pegar minha mochila para ir embora também, quando entrei na sala e vi que Chanyeol ainda estava lá. E estava acordado.
Me esgueirei entre as carteiras para puxar a minha mochila sem derrubar a caixinha de leite fermentado, mas então não me aguentei de curiosidade. Aquela talvez fosse a primeira vez que eu fiquei a sós com o garoto.
— Não vai pra casa?
— Que é isso? — Ele me ignorou totalmente para prestar atenção somente na caixinha de leite. Prioridades.
— Lactobacilos vivos numa caixinha de papelão. — Resmunguei.
— Me dá. — E eu dei. Não gostava tanto daquilo e talvez eu pudesse me aproximar da fera com aquela pequena atitude de trégua, mesmo que já estivéssemos vivendo em paz por um tempo.
— Então, a situação ‘tá tão ruim que você prefere ficar na escola do que ir pra casa? — Comecei falando e já vi que tinha falado merda quando o menino me olhou com os olhos arregalados e deixou por isso mesmo. Sem jogar piada, sem zoar com algum detalhe sobre mim que eu nunca havia prestado atenção. Só o silêncio. — Ah, foi mal.
— O Sehun te contou? Ou foi a Irene? Eu sabia que um deles ia acabar abrindo a boca uma hora ou outra...
— Não. Ninguém me disse nada, foi mal. — Quis explodir. Me perguntei mil vezes em pensamentos porque eu não podia só desaparecer bem na hora que quisesse. Mas eu não tinha papas na língua, talvez eu devesse ter calado a boca antes, mas se realmente tivesse feito isso, eu nunca iria compartilhar minha vida com o tal Park Chanyeol naquele dia. — Na verdade o Sehun me disse que você estava passando por problemas pessoais.
E dizer isso parece que foi uma boa escolha, ele riu. Eu o fiz rir.
— Ele disse isso? Que otário.
— Então não é problema pessoal? Então você só ficou com medo de que um recém-chegado pudesse ser o líder do seu clubinho mesmo?
— Não. Cala a boca. — Fechou a cara, e fez um bico exclusivamente para tomar o leite de caixinha.
— Então o quê? — Perguntei mais uma vez, não que eu realmente esperasse por uma resposta, não era bem assim. Ou talvez fosse. Eu havia me empolgado um pouco só pela possibilidade de fazer piadas ridículas que pudessem meter um sorriso no rosto daquele monstrengo.
Só que em vez de colaborar comigo ele sorriu de lado completamente suspeito e soltou uma risadinha soprada.
— Você é muito curioso, sabia? Se quer sentar na janela, tem que sentar no meu colo, tampinha, faz tempo que eu ‘tô aqui.
— Isso foi um convite? — Cruzei os braços sorrindo e me segurando para não rir quando ele engasgou com o leite fermentado.
— Não.
— Hm. Se eu contar de onde eu vim, você me conta o que aconteceu contigo pra ser tão... desse jeito? — O moleque me olhou com os olhos semicerrados e eu sabia que uma hora ou outra ele teria que ceder.
— Não. Você veio do Canadá.
— Você não queria saber o motivo? — Levantei uma sobrancelha, pegando o menino no pulo.
— Talvez.
— Sim ou sim?
— Sim. Eu conto. Que seja. Fala primeiro.
— Então você é curioso também, bom saber. Infelizmente pra você, esse título já é meu. Se quiser sentar nesta janela vai ter que sentar no meu colo primeiro.
Ele riu de novo, bebeu um pouquinho do leite e se virou pra mim com aquela pose que não enganava ninguém.
— Para de roubar minhas frases.
— Não roubei. É um convite. — Sorri, vendo mais uma vez as orelhas do grandalhão ficarem vermelhas.
— Para com isso. — Ele se levantou e eu entrei em pânico já achando que eu tinha feito besteira, mas ele só foi jogar a caixinha de papelão no lixo, logo se sentando em uma das carteiras mais próximas da janela e bem longe de mim.
— Com o quê? — Mesmo que eu quisesse arrastar uma cadeira mais para perto, fiquei no meu cantinho, não ia arriscar mais uma bola fora. Eu estava curioso, talvez um pouquinho obcecado, mas talvez fosse um bom incentivo para que eu não agisse por impulso outra vez.
— Me olhar nos olhos, é falta de educação. — Dessa vez fui eu quem caiu na risada.
— Falta de educação é justamente não olhar as pessoas nos olhos. — Comentei, mas talvez não fosse assim, eu havia estado em lugares onde um simples aperto de mão pode ser considerado falta de educação. Lugares onde beijos no rosto eram quase como um “oi”, lugares onde qualquer contato físico era abominação. Muito lugares, muitas culturas, talvez eu estivesse desacostumado a estar naquele país, naquela cultura, mesmo que eu tivesse nascido ali. Esquecer coisas pra mim sempre foi fácil demais.
— No Canadá as pessoas se encaram assim? Porque eu nunca quero pisar nesse país. — Ele riu e eu acabei rindo também. — Ah! Você disse que não é canadense...
— E não sou.
— Então onde morava antes de ir pro Canadá? — Eu suspirei, talvez aquela ideia não tenha sido realmente boa.
— Austrália.
— Uhh! Seus amigos eram cangurus? — A visão de um Chanyeol animado com a piada que ele mesmo fez era completamente nova, por isso que mesmo que eu já tivesse ouvido aquilo mil vezes, eu acabei rindo também.
— Você é muito engraçado, por que não abre um clube de comediantes? — Ele revirou os olhos, foi a minha deixa para ir sentar um pouco mais perto, arrastei uma cadeira. Não tão longe, não tão perto. Uma distância confortável. — A minha mãe viaja muito. Quando meus pais se separaram eu comecei a viajar pra tudo quanto é canto com ela.
— Uau. — Ele falou, e eu já estava esperando uma reação como todas as outras, como todos falavam que queriam ter uma vida como a minha, como seria maravilhoso poder viajar para os quatro cantos do mundo e sobre como eu tinha sorte. Mas aquilo não veio. E quando eu virei para ver se Chanyeol ainda estava ali, ele voltou a falar. — Mas espera, não é complicado ir e vir de países diferentes?
— Hm? — Eu fui pego de surpresa. E era estranho porque eu já estava acostumado a saber de tudo. Ou pelo menos querer saber de tudo.
— Como você ia à escola?
— Eu tive alguns professores particulares. Quando ficamos por muito tempo em algum lugar eu começo a frequentar alguma escola.
— Então quer dizer que vai ficar muito tempo aqui?
— Não faço ideia. Mas tem uma previsão.
— De quanto tempo?
— Também não faço ideia. Mas sempre tem.
A sala do clube estava ficando cada vez mais fria e o silêncio que veio depois da conversa pareceu só acentuar aquele detalhe. Eu lembro que me virei para ver a paisagem da janela naquele momento, aquele momento de silêncio que pareceu durar anos — e é engraçado, pois meio que durou — e dali, dali de cima daquela janela da salinha do clube de artes eu conseguia ver o parquinho do outro lado da rua.
Era um parquinho comum com brinquedos para as crianças e banquinhos para os adultos, talvez naquela época do ano tivessem mais adultos que crianças por ali. Da janela também era possível ver a entrada da escola, e em como as ruas pareciam desertas naquele horário.
Estava frio, então as janelas estavam meio embaçadas também. Mas mesmo assim consegui ver o reflexo de Chanyeol quando ele decidiu fazer o mesmo que eu e bisbilhotar as ruas.
— Meu pai descobriu que eu sou gay e desde então está fazendo da minha vida um inferno. É isso. Por isso eu agi como um verdadeiro imbecil. Te devo desculpas, então, me desculpa.
Chanyeol falou tudo de uma vez. Tudo. Tudinho. Como se tivesse jogado pela janela um balde pesado de água, tudo de uma vez. Sem nem respirar direito. E para completar a metáfora, a água acabou caindo todinha em mim. Me deixando completamente mudo.
— Eu... não precisa pedir desculpa não. — Foi tudo o que eu consegui falar, a garganta estava presa, eu senti como se não conseguisse respirar. Minha cabeça entrou em pane e eu acho que foi a primeira vez que eu quis evitar um assunto a todo custo.
Chanyeol, ao contrário de mim, parecia bem confortável, com as mãos riscando a janela embaçada. Desenhou uma estrela malfeita, depois uma árvore de natal. Estávamos em dezembro. Mas eu não comemorava o natal, ele talvez comemorasse.
— Meu pai é ex-militar, ele achou um absurdo quando descobriu. Disse que eu era a vergonha da família e outros blábláblás. A cara dele ficou bem vermelha, parecia uma bola de basquete. — Ele disse e quando eu quis checar se ele estava chorando, vi que estava rindo. Rindo com pesar. Mas rindo.
— Bolas de basquete são laranja.
— Você me entendeu. — O menino mostrou a língua, e eu fiquei ainda mais surpreso do que já estava. Aí ele puxou o ar, respirou bem fundo. Presumi que ele havia tirado um grande peso das costas. — Conversar com você sobre isso é bem mais fácil do que falar com o Sehun, e eu conheço ele, tipo, desde sempre.
— O que eu posso fazer? Eu sou confiável.
Mas eu não era. Não sou.

Depois do recesso de inverno eu senti que alguma coisa estava diferente quando entrei na sala do clube. Irene e Kyungsoo estavam de pé, a galera toda parecia curiosa. Aquela era a primeira reunião depois de duas semanas sem aula e ao que parecia, boas novas viriam, com certeza.
Me sentei junto de Chanyeol e Wendy que estavam nos lugares de sempre, Chen estava sentado no chão perto da galera do teatro e quando Kris chegou logo depois de mim (era ele quem sempre se atrasava) todos ficaram olhos e ouvidos em direção aos líderes.
— Então, há um tempo Sehun tinha me dado uma ideia que eu achei a coisa mais absurda do mundo inteirinho — Irene começou toda pomposa na frente da sala — mas depois eu chamei o Kyungsoo no canto e nós pensamos que talvez pudesse ser uma boa notícia.
— E durante a pausa de inverno nós aprimoramos o projeto para mostrar ao diretor. — Kyungsoo completou. — E, por incrível que pareça, funcionou.
— Nós fomos autorizados a montar um show de talentos! — A notícia foi dada e tudo o que se ouviu dali foram palmas, gritos e assobios. Aquela seria a primeira vez que o clube de artes poderia apresentar alguma coisa para a escola e mostrar seu valor. 
Talvez fosse um pouco utópico sonhar que o show de talentos pudesse fazer do clube de artes realmente um clube bem recebido, mas naquela época todo mundo era um pouco sonhador. E mesmo que de nada adiantasse, o que realmente importava é que finalmente, depois de tanto esperarem, aqueles alunos poderiam mostrar o que realmente sabiam fazer.
Sem provas escritas ou contas absurdas de cálculo para medir inteligência, eles só precisavam de um palco e de uma plateia. Só isso.
— Quando vai ser? — Levantei o braço no meio da algazarra para perguntar o que mais me preocupava. Eu não sabia se ficaria naquela escola para sempre. Eu não sabia, de verdade, a qualquer momento eu imaginava que minha mãe chegaria avisando que teríamos que partir para outro lugar nos quarenta e cinco do segundo tempo.
Mas ninguém ali além de Chanyeol sabia disso. Por isso ele me olhou, eu olhei para ele e antes que os olhares pudessem ser traduzidos em palavras, Irene respondeu com um sorrisão:
— Antes do baile de primavera. Em maio.
— Em maio? — A galera do teatro falou completamente em pânico. E Kris foi aquele quem gritou o óbvio: — Estamos em fevereiro!
— Eu sei, sei que é pouco tempo para planejar algo grande, mas nós vamos conseguir! — Kyungsoo disse com a voz calminha, eu ainda hoje me pergunto como ele conseguia se manter calmo sempre, mesmo em situações desesperadoras. Me pergunto o que se passava na cabeça do menino, mas nunca consegui de fato me aproximar tanto. Eu já estava arriscando muito me deixando aproximar de Chanyeol, Wendy e Chen. Era um perigo.
O barulho continuou até um tempinho quando Irene bateu palmas para que todo mundo voltasse a fazer silêncio.
— Isso sim se parece com uma reunião! — Wendy disse do meu lado, completamente animada com aquela notícia, e foi quando eu percebi que os olhos de Chanyeol estavam brilhando. Brilhando de alegria.
Sehun teve que bater a mão no tampo da mesa para que o barulho realmente cessasse, e depois que todo mundo ficou quieto, Irene se posicionou no meio com o mesmo sorriso de antes, dava para ver as cores de alegria só de olhar o semblante da garota. Eu me perguntei naquele momento se seria assim a imagem da felicidade.
— Como todo mundo já deve imaginar, cada grupo vai ficar responsável por uma parte da apresentação, nós vamos abrir vagas para pessoas fora do clube participarem também, assim o show pode ter de duas a três horas, já que o baile está planejado para as nove e meia... — Ela disse quase aos pulos, dando olhadelas nos papéis que trazia, mas eu tinha certeza de que ela tinha todas aquelas informações decoradas, o sorriso ia de orelha a orelha e não tinha como não ser contagiado.
No fim da reunião, cada grupo se reuniu em seu cantinho para bolarem suas apresentações, e eu me senti desesperado, talvez um pouco em dúvida se eu seria capaz de me apresentar em público. Nunca havia sido tímido na vida, talvez um pouco distante de tudo o que acontecia em volta, mas tudo era uma medida de segurança. Uma das coisas que aprendi depois de sair de muitos lugares em curtos períodos de tempo.
— Nós podemos fazer cover de algumas bandas de rock! Eu sempre sonhei fazer parte de uma banda. — Wendy disse batendo palmas de animação.
— Não sei não. Acho que precisamos fazer algo mais elaborado — Chen murmurou. — Certeza que todos os outros grupos menosprezam a gente.
— Para de paranoias, eu às vezes penso que a Irene me odeia. — Wendy comentou.
Chanyeol estava quietinho no canto, sem querer dar palpite nenhum. Eu também não estava muito a fim de me meter, já que o medo de não conseguir participar realmente daquilo era maior do que tudo. Então eu só rabisquei algumas coisas no braço da cadeira. “Eu não acredito que alguém se sinta como eu me sinto por você. Neste momento”
— Posso sugerir uma música? — Wendy falou quando saímos da salinha do clube, a multidão de alunos preenchendo os corredores quase vazios da escola. — Kiss me.
— Aqui no meio do corredor? Mesmo? — Falei e de quebra ganhei um murro no braço.
— Deixa de ser mané, ‘tô falando de Kiss me, do Sixpence None The Richer. — Ela disse, me batendo de novo.
— Nunca ouvi essa música. — Chanyeol comentou com a cara amarrada. Eu tinha certeza que nunca tinha ouvido falar daquela banda. — Certeza que a música é ruim.
— Cala a boca. Todo mundo já ouviu Kiss me pelo menos uma vez. Você só não deve se lembrar.
— Eu lembraria se a música fosse boa.
— Que seja, eu só quis dar uma sugestão. — Bateu o pé, e vi de relance Chanyeol dar um sorrisinho satisfeito.
— Se ela pode sugerir, então eu quero sugerir uma também. — Comentei de implicância, percebi que implicar era uma ótima maneira de evitar realmente algumas situações. Como fazer piadas para sair de algum momento constrangedor. Mas descobri um tempo depois que aquilo também quebrava barreiras, fazia com que a intimidade fosse crescendo cada vez mais. Você só faz piadas sobre alguém que você realmente conhece (as piadas saudáveis, eu digo) e eu posso dizer com toda a certeza que eu não sabia no buraco que estava me metendo.
— Vai sugerir o quê? Wonderwall? — Chanyeol se virou pra mim provocando também. Piadas, piadas. Intimidade diminuindo. Tudo para que eu me afundasse mais e mais.
— Sim. Eu gosto de Oasis, o que é que tem de ruim nisso?
— Tudo de ruim. Só você não vê.
— Então temos Kiss me, Wonderwall... — Wendy contou nos dedos, já tínhamos cruzado o pátio e estávamos no finzinho do corredor principal, logo nos separaríamos e cada um seguiria para casa. — Mais sugestões?
— Creep. — Chanyeol murmurou quietinho, mas não conseguiu evitar de os olhares caírem sobre ele. — Eu gosto de Radiohead, o que tem de ruim nisso?
Mostrei a língua, não era preciso dizer nada naquele momento em que um de nós dois roubava as frases do outro. Wendy levantou mais um dedo e foi finalmente a vez de Chen.
— Brothers and Sisters. — Ele disse todo animado e todo mundo ficou confuso.
— Tem que ser uma música que a gente conheça, pelo menos. Ou que, sei lá, tenha tocado na rádio pelo menos uma vez. — Chanyeol zombou, Chen só revirou os olhos. — De quem é essa música, cara?
— Coldplay.
— Ah. — Chanyeol fez careta.
— Eu gosto de Coldplay, Chen. — Toquei no ombro do menino, só pra ele não se sentir excluído. O caso é que eu só tinha ouvido uma ou duas músicas do Coldplay, e com certeza Brothers and Sisters não foi uma delas.
— Eu acho que seria melhor Yellow. — Wendy pontuou. — Porque todo mundo conhece Yellow.
— Você disse também que todo mundo conhece Kiss me e eu tenho certeza absoluta de que nunca ouvi essa música na minha vida. — Falei, Wendy revirou os olhos claramente cansada de discutir.
— Vocês não sabem nada de música boa. — Ela resmungou com quatro dedos da mão levantados. — Quatro músicas, acham que é um bom número ou deveríamos escolher mais?
— Acho que quatro é okay. — Respondi.
— Acho que quatro é okay nhenhenhe. — Chanyeol resmungou andando mais à frente bem rápido e foi só por isso que eu não consegui chutar a canela dele.
— Tudo bem, então. Quatro músicas.
Nós quatro nos separamos e cada um seguiu seu caminho para casa. Fui chutando pedrinhas e me perguntei quanto mais eu poderia descobrir de Chanyeol, quanto mais ele escondia, e também me perguntei ali por que diabos eu me interessava tanto em descobrir o significado de seus olhares.
Não entendia ainda.


Naquele meio tempo em silêncio, o escritor observou tudo em volta. Viu que algumas pessoas observavam curiosas para saber o que estava acontecendo com eles dois, havia um casal próximo comemorando algum aniversário de namoro provavelmente, e mais ao longe ele viu uma mulher com duas crianças.
— Então...  Clube do Café, de quem foi essa ideia? — O escritor perguntou com o sorriso gigante ao falar aquele nome em voz alta, acabou cativando o sorriso do amigo, que soltou uma de suas risadas altas e escandalosas.
— Eu queria poder dizer que não fui eu. — Falou com um falso pesar e para completar, baixou a cabeça como se desculpasse. — Mas fui eu sim. Todo mundo concordou e acabou fazendo sucesso, então eu não tenho do que reclamar.
— Tenho que admitir, esse é o tipo de lugar que eu viria sempre para escrever. — Concluiu em voz alta e depois percebeu que podia deixar sua frase ainda melhor. — É o tipo de lugar que seria cenário de um dos meus livros.
— Falando em livro... — O homem fuçou a bolsa carteiro que o escritor nem havia notado, e tirou um livro dali. Um exemplar do mais recente livro lançado por Baekhyun que, sem se conter de felicidade, acabou abrindo um sorriso de orelha a orelha.

— TRAIÇÃO! — Wendy foi a primeira a falar quando Chen apareceu em uma tarde para dizer que não iria participar da apresentação do grupo de música. Disse que havia tido uma ideia com Xiumin e, como a oportunidade era única, essa ideia tinha que ser posta em prática. — Nosso grupo é o que tem menos membros e até você quer desistir, isso é traição.
— Isso não é traição porque eu sei que a apresentação de vocês vai ser excelente. — O danado disse apertando a bochecha da menina achando que poderia nos comprar com aquele elogio fajuto. Chanyeol não parecia querer discutir, eu precisava fazer alguma coisa.
— Que tipo de apresentação vocês vão fazer?
— Meio que um musical. — Ele respondeu baixinho e logo se justificou quando Chanyeol soltou uma risadinha. — É um conjunto de cenas que o Xiumin escreveu e nunca teve chance de apresentar!
Mesmo que relutasse muito, Wendy acabou concordando com um bico enorme. Chanyeol resmungou alguma coisa e eu disse que estava tudo bem, foi então que nas tardes reservadas para o grupo de música só ficamos nós três ali na salinha do clube.
Decidimos então que cada um poderia cantar a sua música de escolha — e Chanyeol jogou fora completamente a possibilidade de tocar Coldplay sem nem pestanejar — nos juntaríamos duas vezes por semana para ensaiar tudo e dividimos quem tocaria o quê.
Acabamos decidindo que eu ficaria com teclado e Chanyeol com o violão, Wendy tinha o ukulele cor de rosa e sua gaita, mas não sabíamos se os três casariam bem juntos. Por isso que todas as tardes nós passamos a praticar e praticar.
No início foi complicado. Extremamente complicado. Nossos ritmos eram diferentes, era como se estivéssemos tocando individualmente tal qual as bandinhas de crianças no jardim de infância quando juntam suas panelas para bater com colheres de pau. Mas com o passar do tempo a coisa foi mudando de forma. Totalmente.
Em menos de um mês de ensaio já tínhamos mudado bastante, tudo se encaixava perfeitamente e já até complementávamos com nosso toque, Wendy alcançava notas muito altas e eu me juntava com algumas harmonias. Chanyeol nunca cantava, no entanto, e ele também nunca queria ensaiar sua música conosco, sempre dávamos prioridade para Kiss me, porque segundo ele “era a mais complicada porque ninguém conhecia”, e sempre que falava isso ganhava uns petelecos da nossa amiga de cabelo azul.
Decidimos descansar por uma semana e no comecinho de abril retornamos com os ensaios. Foi quando o grupo de teatro decidiu ocupar a sala inteira do clube para montarem seus cenários. Era impossível tocar alguma coisa com a barulheira que havia se instalado naquele lugar.
— A gente pode adiar o ensaio por hoje. — Chanyeol sugeriu, lembro que notei seu olhar avoado, como se não estivesse ali realmente.
— Se adiarmos hoje, podemos adiar amanhã e depois e depois também, então o dia da apresentação vai chegar e nós vamos pagar o maior mico! — Wendy cruzou os braços.
Naquele momento eu já sabia que qualquer passo errado me faria cair em um buraco, mas eu já estava na beiradinha, pronto para me jogar desde o dia em que conheci Chanyeol. E foi olhando para seu semblante distraído que eu acabei sugerindo no calor do momento.
— Podemos ensaiar na minha casa.
Foi impensado. E arriscado. Eu não esperava que os dois aceitariam, não achei que Chanyeol aceitaria, mas ele parecia aceitar qualquer proposta desde que não fosse mandado para casa.
Durante a tarde não havia ninguém em casa, era um vazio de alguns móveis e eletrodomésticos, coisa de casa que já vem mobiliada, e quando entramos no meu quarto, nenhum dos dois pareceu abismado. Nada nas paredes, nada na minha cama. Era como um quarto vazio de hotel.
— Sem querer ofender, mas teu quarto tem zero personalidade. — Wendy riu, se sentando na minha cama e puxando o ukulele para tocar as primeiras notas.
Chanyeol se virou para mim como se lesse minhas expressões, ninguém mais do clube sabia sobre minhas muitas viagens, ninguém mais me conhecia como Chanyeol. Era estranho, mas ao mesmo tempo me fazia me sentir bem.
— Eu sei. — Me joguei ao lado dela, era o único que ficaria olhando o ensaio e chupando o dedo, não tinha como levar o teclado da escola até a minha casa.  — Talvez eu não tenha personalidade.
— Não acho. — Chanyeol comentou, tirando o violão da case e dedilhando algumas notas. — Ninguém sem personalidade brigaria comigo pelo cargo de líder.
— Ninguém brigou com você pelo cargo de líder. — Comentei e Wendy reforçou.
— Até porque antes do Baekhyun chegar você nem ligava pra isso.
— É mentira.
Naquele dia nós ensaiamos Kiss me somente. Espiei Chanyeol e Wendy tocarem a mesma coisa mil vezes. Errando e começando de novo, errando mais uma vez e começando do início. Errando mais e mais e começando de novo. Até que eles conseguiram terminar a música e eu estava bem ali batendo palmas para o espetáculo.
Eles se dariam bem na apresentação mesmo se eu não estivesse presente, isso era o que me deixava contente, e eu só percebi depois que eu já estava completamente enterrado no fundo do buraco que eu mesmo havia cavado.
Naquele dia Wendy foi embora às quatro da tarde e Chanyeol ficou mais um tempinho, dedilhou algumas notas de Creep e quando eu pensei que ele iria finalmente cantá-la, o danado me passou a perna.
— Você não tem nenhuma lembrança dos países onde visitou? O seu quarto parece vazio demais. — Foi quase um murmúrio, mas eu ouvi muito bem. Ele estava sentado no tapete no meio do quarto e eu estava um pouco mais longe, escorado na parede. Neguei.
— Eu não guardo objetos, é ruim viajar com muita bagagem. Eu tinha um violão antigamente, mas quando me mudei para o Canadá tive que me desfazer dele. — Estiquei minhas pernas, meus pés acabaram encostando nos dele. Ambos de meias cinzentas.
— Mas... tipo, você não guarda nada de lembrança? Digo, dos seus amigos. Presentes de despedida, essas coisas. — Ele não se incomodou, então eu me mexi. A ponta do meu pé roçou na ponta do pé dele.
— Ah... — Acabei dando um sorrisinho sem graça. — Eu acho que nunca ganhei presente de despedida. Não gosto de despedidas.
— Como assim? — O pé dele se afastou do meu de repente, talvez tenha sido só pela surpresa do que estávamos conversando, mas não pude deixar de pensar que talvez ele só quisesse distância. Até hoje eu penso assim.
— Talvez eu tenha ganhado... no começo, eu digo. Mas quando as mudanças passaram a ser frequentes eu só parei de avisar — dei de ombros, e ao que pareceu ele não ficou muito satisfeito com a minha resposta. — Só não adiantava mais, sabe?
— Como assim, cara? Você parou para pensar como seus antigos amigos se sentiram? As pessoas têm sentimentos.
— Eu sei. Eu também tenho. Eu não gosto de despedidas. — Encolhi minhas pernas novamente, me sentindo um pouquinho arrependido por ter exagerado na defensiva. — Despedida é ruim.
Não ouvi a voz de Chanyeol por longos segundos quando ele finalmente soltou uma risadinha soprada e voltou a dedilhar as cordas do violão. Ele esticou as pernas e, dessa vez, a ponta do pé dele acariciou o meu. Aquela foi a primeira vez que todos os pelos do meu corpo arrepiaram por causa de alguém. E aquilo nunca mais aconteceu com outra pessoa. Nunca mais.
— Eu ‘tô sinceramente perdendo o respeito que eu tenho por você, tampinha. — Eu rapidamente levantei a cabeça para encontrar seu olhar e vi a expressão mais sacana da minha vida. Devolvi o olhar da mesma forma.
— E desde quando você tinha algum respeito por mim, orelhão? — Levantei as sobrancelhas e aquele sorrisinho superior rapidamente morreu dando lugar para um bico que eu percebi que tinha o mesmo poder de um toque. Arrepiar todos os pelos do meu corpo.
Chanyeol continuou dedilhando o violão, sem tocar nada realmente, até às seis da tarde, quando disse que tinha que ir correndo para casa e que não poderia levar o violão. Ele o deixou em cima da minha cama e a visão de Chanyeol indo embora da minha casa no finzinho da tarde me parecia uma memória boa, embora eu não fizesse ideia do pesadelo que realmente era.

Abril estava na metade e eu já estava completamente fora de órbita.
Uma vez por semana o clube inteiro se reunia para que pudéssemos contar como estavam os preparativos, e Irene sempre tinha uma novidade na manga que fazia todo mundo vibrar de animação.
Naquela tarde, depois de um papo sobre termos permissão para convidar pais e outros membros da família para o show de talentos — o que não fazia diferença para mim, já que minha mãe nunca poderia comparecer — Irene deu o verdadeiro comunicado surpresa: havíamos ganho a permissão de fazer o show de talentos no auditório da escola que quase nunca era utilizado.
O grupo de música estava no fundo da sala, exceto Chen que estava sentado mais ao meio junto com a galera do teatro, e enquanto os líderes falavam sobre o andamento de tudo, Chanyeol me cutucou e inclinou a cabeça para perto. Foi quando eu me virei para olhá-lo e, sem querer, nossos narizes se encostaram.
Ele não disse o que ia dizer, apenas se afastou, voltando a prestar atenção no discurso de um dos membros do grupo de dança e até hoje eu penso sobre o que ele iria me falar. Mas não insisti, vi que suas orelhas estavam vermelhas e talvez as minhas também estivessem.
— Eu fiz um apanhado e montei um roteiro — Irene passou um papel para cada equipe, quando consegui pegar um, vi que era uma lista com todas as possíveis apresentações. Revirei o papel inteiro, o grupo de música estava em penúltimo. — As apresentações do clube vão ser intercaladas com apresentações dos outros alunos. Conseguimos um bom número de pessoas, eu estou sinceramente satisfeita. O que acham?
Mostrei o roteiro para Chanyeol e Wendy, e não demorou muito para que o orelhudo se levantasse para criar confusão.
— Por que estamos em penúltimo? — Perguntou, afobado, fazendo com que todo mundo olhasse para ele. Irene inclusive soltou um suspiro como sempre fazia quando Chanyeol aprontava. — E por que o Sehun e o Kai vão fechar a noite?
— Porque a melhor apresentação tem que ser a última. — Vi Sehun mostrar a língua para o grandão que, numa briga, facilmente derrubaria o loiro magricela. Mas Chanyeol não conseguia machucar uma mosca sequer, por isso todo mundo parecia gostar de tirar sarro. Naquela época eu aprendi a gostar também, e eu ainda não sabia que era perigoso.
— Isso não faz sentido pra mim! — Ele bateu o pé, indignado. Eu e Wendy estávamos prestes a cair na risada quando Irene cruzou os braços sem querer cair na conversa do irritante Park.
— Vocês têm alguma objeção, Baekhyun? Wendy? — Perguntou.
— Nenhuma, líder. — Wendy calou a boca rapidinho, não era surpresa para ninguém que a menina de cabelo azul morria de medo de Irene.
— Nenhuma.
— Ninguém além de você está fazendo birra, Chanyeol. — Pontuou, mas Chanyeol tinha doze anos quando o assunto era ser irritante. Era quase um profissional e Irene também sabia disso.
— Nhenhenhe, vocês só podem estar de brincadeira.
— Baixa essa bola, orelhão. — Eu me levantei, puxando o roteiro das mãos dele e dobrando com cuidado para guardar na mochila. — Nós que vamos cantar por último naquele palco.
— Você não tem moral nenhuma pra me chamar de orelhão, Baekhyun. — Rebateu com um sorrisinho maroto e eu não me lembro de outro momento em que ele tenha falado meu nome de uma maneira tão descontraída.
— Minhas orelhas com certeza são menores. — Cruzei os braços, me sentando de volta na carteira sem nem imaginar que as pessoas ao redor estivessem cochichando sobre nós.
E Chanyeol também parecia não se importar muito.
— Nossas orelhas têm o mesmo tamanho, mas seu cabeção acaba fazendo elas parecerem menores. É ilusão de ótica o nome. — Calei a boca dele com uma cotovelada quando ele se sentou de volta do meu lado, e ele devolveu. Aquilo continuou por mais um tempo até que, outra vez, Irene passou a falar novamente.
— Falta menos de um mês para nosso show de talentos, galera! — Irene disse com aquela pose de líder que conseguia fazer até mesmo o mais preguiçoso vibrar de pé. — Vamos fazer com que essa escola se orgulhe de nós e se arrependa por não ter nos valorizado antes!
O barulho retornou e veio cada vez mais alto. Eram naqueles momentos em que eu me sentia parte de uma família grande e eufórica que mesmo com sonhos diferentes, todos tinham um caminho a seguir. Todos tinham um objetivo em comum. Eram naqueles preciosos momentos que eu ficava mais triste em ter que partir.
Logo que a reunião chegou ao fim e todo mundo saiu da salinha do clube falando alto sobre suas expectativas, Wendy nos parou no comecinho do corredor como se tivesse feito algo muito errado.
— Não vou poder ensaiar hoje à tarde. — Ela disse e se curvou, Chanyeol olhou para mim como se me perguntasse o que deveria fazer, mas eu também não fazia ideia.
— Tudo bem. — Falei. Wendy levantou a cabeça para olhar para nós dois com os olhos semicerrados como se eu tivesse escolhido a pior resposta para dar.
— Não vão me perguntar o porquê? Sinceramente vocês dois são péssimos. — Ela cruzou os braços e abandonou a expressão culpada (que eu tinha certeza ser só uma tática para que não discutíssemos com ela) para uma séria que não combinava nada com o tamanho de suas bochechas. — Meus pais vão visitar uma tia minha no fim de semana e eu tenho que ficar de olho no meu irmão. Prometo ensaiar sozinha em casa.
— Tudo bem. Vamos ensaiar a música ruim do tampinha hoje, não se preocupe. — Chanyeol comentou casualmente dando as costas e seguindo em direção a saída me fazendo correr um pouquinho para acompanhá-lo e acertar um chute bem dado em sua canela. Habilidades não me faltavam.
Entrar em casa somente com Chanyeol, e sem Wendy para comentar alguma coisa aleatória, me deixava com um friozinho estranho na barriga. Quando chegamos ao meu quarto eu senti o estômago revirar e quase pensei que fosse vomitar por uns instantes, mas então o mal-estar passou quando o vi se jogar na minha cama e pegar o violão que havia deixado ali durante as semanas em que havíamos usado o meu quarto como estúdio de ensaio.
Não discutimos tanto naquele dia, mas nos sentamos no chão como sempre fazíamos depois que Wendy ia embora. Nos sentávamos e nosso pés se acariciavam, era como um código. Um protocolo que obedecíamos sempre e sempre, todas as vezes, e meu coração batia no ritmo acelerado de uma canção piegas sobre amor.
Naquela tarde Chanyeol se sentou no tapete com as pernas esticadas para que seus pés encostassem nas minhas pernas. Estava sem meias naquele dia, seus dedos nus estavam tocando sem pudor nenhum os meus dedos nus. Eu sentia cócegas, mas não tinha vontade nenhuma de me afastar.
Foi ali, no chão do meu quarto que eu ouvi pela primeira vez Chanyeol cantar Creep com sua voz rouca e ao mesmo tempo aveludada. Foi a primeira vez que ele deixou que eu ouvisse as palavras cantadas saindo de sua boca completamente, e não apenas um verso ou outro. E mesmo que eu tenha percebido que suas orelhas estavam cada vez mais vermelhas, eu fui me aproximando mais e mais como um fã que finalmente conhece um outro lado de seu ídolo.
No fim, eu já sabia que eu estava preso em uma rede de pesca que foi jogada sem querer na minha frente. Não tinha escapatória para mim.
Quando foi a minha vez de tocar — depois da terceira vez de Park Chanyeol dedilhar algumas notas de outras músicas que eu não conhecia — eu me deixei aproximar mais, nossos joelhos se encostavam.
— Por que Wonderwall? — Ele me perguntou quando a música acabou e eu estava quase colocando o violão num canto para poder me aproximar cada vez mais. Poder olhar dentro dos olhos dele e quem sabe ler um ou dois segredos escondidos ali. Mas ele pegou o instrumento dos meus dedos, passou a dedilhar outra canção que eu não fazia ideia se conhecia ou não. Não havia tempo para prestar atenção em outras órbitas quando Chanyeol estava ali na minha frente.
— Por que Creep? — Perguntei de volta vendo o sorrisinho surgir de repente naqueles lábios que eu gostava de assistir.
— Dizem que só burros respondem perguntas com outras perguntas.
— Eu nunca disse que era inteligente. —— Dei de ombros e acabei rindo quando ele bufou. Era engraçado quando Chanyeol não aceitava minhas desistências, mas eu não via motivos para discutir por muito tempo quando tudo que eu queria fazer era colocar um sorriso naquele rosto.
— Você não tem graça nenhuma, tampinha. Me responde, por que Wonderwall? — Ele voltou a perguntar, dessa vez colocando o violão de lado e apoiando o queixo nas mãos. Estava fingindo estar interessado tal como fingia quando Irene dava algum aviso irrelevante. Havia partes em Chanyeol que eu conhecia mais do que a mim mesmo.
— Eu já disse, gosto de Oasis, orelhão. — Murmurei, baixando o olhar o suficiente para assistir nossas pernas se entrelaçando. O meu joelho por cima do joelho dele, um calor estranho que não combinava com a estação surgindo de repente, bem devagar. — Agora você. Por que Creep?
— Eu já disse, gosto de Radiohead. — Ele respondeu o que eu já estava esperando, por isso quando ele puxou minha mão para deslizar a ponta dos dedos pela linha da vida, eu tive que levantar os olhos para encará-lo. Os olhos de Chanyeol, naquela época, eram brilhantes. Mas naquele dia estavam opacos, escuros. Não num sentido ruim. — É que às vezes eu sinto que não existo. Sinto que eu não sou real. Quase sempre, na verdade. Sinto que estou vivendo por obrigação.
Fechei minha mão ao redor da dele.
— Meio que todo mundo ‘tá vivendo por obrigação.
— Você não. Você sabe como viver. Tipo, viajando sem dizer tchau e quebrando o coração de pessoas que talvez gostassem de você. — Soltei uma risada sem graça até que ele afrouxou o nó de nossas mãos, mas durou pouco tempo pois nossos dedos se entrelaçaram rapidamente.
Eu já havia percebido que Chanyeol era uma montanha de segredos. Como se fosse uma caixa trancada, um cofre, e quando você finalmente acha que conseguiu abri-lo, um novo cofre aparece para bagunçar o percurso, fazendo com que você se vicie cada vez mais em tentar descobrir novas senhas.
Naquele momento eu já tinha plena ciência de que não estava mais apenas curioso, mas eu não sabia do que chamar, no entanto. Não sabia se devia conversar com Chanyeol sobre o jeito que ele fazia meu coração pular de repente ou se ele saberia explicar o calor fora de época que só parecia existir dentro daquele quarto.
— Então — falei quando ele resolveu se aproximar mais um pouquinho, dessa vez indo com a ponta dos dedos pelas minhas bochechas, decidi segui-lo e em pouco tempo eu toquei seus cabelos escuros, encostando de leve em seu queixo. — Você poderia aprender a viver comigo.
— Eu poderia. — Num sussurro sua voz chegou aos meus ouvidos e eu me lembro desse momento vividamente como se fosse um filme se passando em frente aos meus olhos.
A boca de Chanyeol encostou na minha devagar, e foi como se nossos lábios se acariciassem pouco a pouco. Os meus dedos passearam pelos seus braços cobertos antes de nos despirmos, aquela tarde seria de longe a que eu me lembraria com mais detalhes.
E foi. As lembranças ainda são muito vívidas em minha cabeça.
Lembro que o primeiro beijo tinha gosto de conversa fiada, o segundo tinha gosto de conversa importante e o terceiro, gosto de frutas vermelhas. Foi quando percebemos que estava quente demais para estar usando roupas e quando eu notei que a pele de Chanyeol também arrepiava com o meu toque.
Naquele fim de tarde nos deitamos sobre o meu tapete, lado a lado enquanto nossos lábios faziam caminhos diferentes, os meus seguindo a linha de seu pescoço e os dele me beijando nas bochechas e na testa. Foi então que Chanyeol me olhou nos olhos como jamais havia feito antes. Profundamente, como se fosse um espelho. Era como mais um muro sendo derrubado. Cada vez que eu olhava nos olhos dele eu sentia que sua essência era transmitida para mim.
Talvez ela estivesse sendo transmitida por estarmos um sobre o outro sem tecido algum para atrapalhar o contato.
Eu me vi pensando se aquele momento era o primeiro de Chanyeol, pois era o meu primeiro, me perguntei se talvez ele não soubesse direito o que estávamos fazendo, mas cada momento, cada toque, cada palavra sussurrada no ouvido, foi especial.
Não gosto de comparar pessoas ou momentos vividos em períodos diferentes, mas eu posso dizer que ninguém nunca me fez sentir como Chanyeol fez. Ninguém nunca me fez arrepiar do jeito que Chanyeol fez. Assim como ninguém nunca me olhou nos olhos da mesma forma que Chanyeol olhou nos meus quando já estávamos jogados na minha cama, o calor ainda presente, os sorrisos conectados e meus dedos percorrendo seus cabelos enquanto suas mãos me apertavam em um abraço.
Ver Chanyeol dormindo foi como se uma grande porta se abrisse e me deixasse espiar de longe algumas coisas de um quarto secreto. Ele ressonava baixinho enquanto eu tentava não o acordar enquanto contava suas sardas quase apagadas. Já estava escuro.
Minha cama não era tão grande assim, então estávamos apertados ali quando ele acordou. Lembro que a primeira coisa que ele fez foi sorrir como se estivesse sonhando. Logo depois piscou e coçou os olhos. Pude ver tantos detalhes de Park Chanyeol naquele fim de tarde que eu já não sabia como era possível viver sem ter um pouco dele todos os dias.
Então eu me aproximei outra vez e colei nossos lábios.
Como se todos os segredos do mundo estivessem em nossas mãos, ficamos em silêncio e Chanyeol me encarava. Me olhava nos olhos, sem o medo ou preocupação de ser encarado de volta. Meus olhos nos olhos dele, as mãos dele nas minhas mãos.
Até o momento que mais está fixo em minha mente, quando ele se levantou de repente e reergueu os muros que estávamos tentando derrubar.
— Já é noite? — Ele se sentou na beira da cama olhando ao redor, mas as cortinas estavam fechadas e o quarto permanecia escuro, somente com a fraca iluminação que vinha do corredor e ultrapassava as frestas da porta fechada.
— Já. — Me levantei sem saber se eu tinha permissão para chegar mais perto. Ele se levantou antes que meus dedos passeassem pelas suas costas.
— Eu ‘tô atrasado. — Disse e num segundo já estava de roupas, tentando achar a saída. Naquele momento eu pensei que talvez Chanyeol estivesse tentando fugir de uma conversa. Fugir do que havíamos feito. Mas se eu tivesse parado um pouquinho para pensar mais, sobre tudo o que eu já sabia dele até aquele momento, eu poderia fazer alguma ideia do que realmente estava acontecendo.
Mas eu não pensei.
E também não falei absolutamente nada.
O que acabou sendo uma boa escolha, afinal de contas. Chanyeol estava completamente afobado quando passou pela porta, mas se virou para mim um pouco antes de correr de fato.
— A gente se vê amanhã, tampinha?
— É claro que sim, orelhão.


Era estranho dar de cara com um amigo depois de anos. Mais estranho ainda era saber que aquele seu amigo estava acompanhando sua recém iniciada carreira como escritor. Por isso o jovem de cabelos vermelhos teve que se segurar um pouquinho para não explodir em milhares de corações quando viu que aquele livro estava marcado. O amigo havia grifado as partes preferidas.
— Não fui eu quem teve a ideia, eu juro. — O rapaz disse na defensiva puxando um risinho de Baekhyun. — Mas é muito útil quando você fica com aquela frase matutando na cabeça. Por exemplo, tem uma frase no seu primeiro livro que eu queria muito lembrar, mas não conseguia de jeito nenhum. Então eu reli, marquei a frase e agora eu sei ela praticamente decorada.
Não parecia que os dois mal haviam se falado em tanto tempo, Baekhyun percebeu na maneira que o rapaz se portava, percebeu que era como se os dois ainda estivessem na sala de aula depois do sinal tocar, só os dois e um lanche para forrar seus estômagos.
— E qual é a frase?

No dia seguinte havia boatos. Boatos estranhos, boatos maldosos.
Na verdade, os boatos sempre existiram, mas naquele dia estavam falando de Chanyeol, e aquilo me deixou preocupado. Ele não havia dado as caras na escola. Por isso que, quando o sinal tocou, eu corri desesperado até a salinha do clube.
Esperei no fundão, onde sempre ficávamos, aos poucos a galera foi chegando. E aos poucos, meu desespero foi aumentando, quando eu menos percebi estava suando e roendo as unhas como se não houvesse amanhã. Mas apenas quando Wendy chegou que eu percebi o quão preocupado eu estava.
— Que bicho te mordeu, garoto? — Ela soltou um sorrisinho enquanto deixava a mochila jogada em uma das carteiras, se sentando do meu lado. Foi então que eu decidi que não precisava mais ficar preocupado sozinho, talvez alguém soubesse o que havia acontecido com Chanyeol e o que havia causado os boatos estranhos que estavam rolando.
— Chanyeol veio hoje? — Perguntei, sabia que os dois estudavam na mesma turma, e meu mundo caiu inteiro quando ela negou com a cabeça.
— Disseram que ele está doente. Mas tem gente dizendo que ele ‘tá de castigo. Talvez o Sehun saiba, os dois são vizinhos. — Mordi os lábios enquanto meus olhos buscaram por Sehun na sala lotada. Ele estava sentado perto de Kyungsoo, do grupo de teatro, como sempre ficava, e eu não tive coragem para chegar nele naquele momento.
Só quando a reunião acabou que eu esperei a multidão se dissipar.
— Fala, Baekhyun, qual o problema? — Nem precisei dizer nada, bastou me aproximar um pouquinho com Wendy atrás de mim pro garoto perceber que talvez algo estivesse errado.
— Eu... é que o Chanyeol não veio hoje e, meio que a gente precisa ensaiar... — Falei com a voz tremendo, nunca havia sido um grande ator e posso dizer com sinceridade que até hoje continuo na mesma. Por isso senti o corpo gelar quando Sehun olhou para Wendy e seu semblante mudou da água para o vinho.
— Ah... é, eu sei. Ele ‘tá passando pelos problemas familiares, você deve saber. — Ele falou, com um sorrisinho acanhado. — Eu normalmente passo na casa dele de manhã, mas o pai dele falou que ele não vinha hoje.
— Acha que teria problema ir ensaiar na casa dele? — Wendy falou com todo o cuidado possível, talvez ela não conhecesse o tanto de coisas que eu conhecia, talvez ela soubesse até mais. Mas o que me deixou pior foi quando Sehun negou. A expressão em seu rosto e o ar de tristeza acabou me levando de volta para a primeira vez em que derrubei um muro de Chanyeol.
Quando fiquei sabendo de seus problemas familiares, de suas frustrações e sobre seu pai. Principalmente seu pai.
— Eu acho que não é uma boa ideia, Wendy.
Eu não costumo pensar muito naquele dia, talvez eu tenha sido covarde em não me impor e ir até a casa de Chanyeol. Mas naquele tempo eu achei que não faria diferença alguma se eu entrasse na vida de alguém a ponto de surpreender. Porque eu geralmente não fazia. Ao menos, era o que eu pensava.
Não achava que minhas atitudes fossem o bastante para mover alguma coisa, não sabia se era possível que eu, sozinho, fosse capaz de parar o mal que assombrava Chanyeol. E até hoje eu penso se eu seria realmente capaz.
Se houvesse alguma chance de ver Park Chanyeol uma outra vez, eu certamente faria diferente.
Lembro que os boatos pioraram nos dias que se seguiram. Chanyeol não havia dado as caras e o meu medo só crescia ao imaginar que eu pudesse ter sido a pessoa a ter causado aquele tumulto.
Dois dias foram o suficiente para que eu ficasse completamente alheio a tudo, sem Chanyeol nas reuniões do clube eu não tinha o que fazer, não tinha para onde olhar e não tinha motivos para estar ali. Talvez fosse mais obsessão do que preocupação, mas de alguma forma eu sentia que se ele não estivesse ali, eu também não precisava estar.
Éramos parte da mesma equipe, afinal.
Mas eu era covarde. Eu sempre fui. Eu fugia de despedidas, fugia de problemas. Fugi de novas amizades até o momento em que pisei naquele clube, foi quando eu desisti de fugir. Mas a covardia sempre esteve presente, por isso eu continuei esperando sem mover um músculo, e talvez continuasse assim até o dia em que Chanyeol aparecesse.
Se aparecesse.
Até então eu nunca tinha provado realmente o abandono. Até então, eu havia sido o único a abandonar. Não esperava que a menor possibilidade, o menor pensamento daquilo acontecer fosse doer tanto.
No terceiro dia sem Chanyeol no clube — com aquele clima pesado, todo mundo sabendo sobre os boatos e sem querer comentar nada para não fazer tudo parecer pior — eu não aguentava mais. Já não tinha mais unhas para roer, a boca inteira estava cheia de rasgos por eu ter mordido os lábios e a parte interna das bochechas. Era complicado me manter calmo. Era doído.
Mesmo assim, se não fosse por Wendy, eu jamais teria tido coragem para ir visitá-lo.
Todo mundo já tinha saído da sala do clube quando ela me puxou, totalmente determinada como eu jamais vi antes, e me olhou nos olhos como se estivesse sentindo ódio correr pelas veias.
— Eu não sei você, mas eu sinto que tem algo errado com o Chanyeol. — Engoli em seco, sem saber para onde olhar, mas ela não me deu chance de fazer nada. — Ele não costuma faltar assim e eu acho que os boatos têm um fundo de verdade, todo mundo sabe que o pai dele é um ridículo.
— Que parte você acha que é verdade...? — Perguntei na esperança de que ela não falasse aquilo.
— A parte que ele vai mandar o Chanyeol para o exército. — Disse, e mesmo que não fosse a pior parte dos boatos, eu ainda me senti péssimo. Isso para não entrar em outras palavras e dizer que foi como se meu chão desaparecesse.
Foi só por causa disso — por causa de Wendy também — que seguimos o caminho oposto ao de sempre, indo para a rua de baixo, onde Chanyeol morava. Ela disse que sabia o caminho, e apesar de entrarmos em duas vielas estranhas e andarmos em círculos algumas vezes, conseguimos ver a casa dos Park.
Wendy bateu à porta, e eu não conseguia me mexer. O frio na barriga nem era a pior coisa, eu senti enjoo, náuseas. Como se a energia daquele lugar fosse tão densa que me impedisse de respirar direito. E tudo piorou quando a porta abriu.
Vi Wendy respirar fundo, já que eu não olhei logo de cara. Quando levantei os olhos e vi o pai de Chanyeol ali na porta — um cara alto, bem alto e magricela, com cara de sapo — eu notei todos os meus ossos gelarem, porque eu sentia que aquele homem era o pior pesadelo do filho. O que acabou se tornando o meu pior pesadelo também.
— Boa tarde, senhor Park — ela se curvou e sorriu meio nervosa. Fiz o mesmo, me sentindo desconfortável e tonto ao mesmo tempo. — Somos amigos do Chanyeol, queremos saber se ele está bem.
— Amigos, é? — O homem cuspiu. Falava casualmente, mas o tom de voz era mole, naturalmente debochado, grosso, como se estivesse nos avaliando e pronto para nos expulsar dali sem pestanejar. — O Chanyeol ‘tá bem.
Ele falou e ficou nos assistindo em silêncio, talvez esperando que fossemos embora, mas Wendy só olhou para mim num pedido de socorro mudo que eu me arrependo de não ter escutado. Eu estava paralisado no lugar.
— Será... será que nós podemos falar com ele? — Pediu num sussurro cheio de coragem. A última gotinha que restava.
— Não. Vocês não têm nada melhor pra fazer, não? — O homem olhou para mim e Wendy dos pés à cabeça. Foi quando ela se encolheu atrás de mim na pior escolha possível, já que eu também só queria ter um poste por perto para me esconder.
Ele não esperou muito para fechar a porta de vez num baque surdo, fiquei encarando as frestas por uns segundos, pensando se tinha alguma chance de ter uma janela que levasse até o quarto de Chanyeol para que pudéssemos ver com nossos próprios olhos se ele realmente estava bem. Mas Wendy me impediu de seguir os devaneios quando me puxou pelo braço para seguirmos o caminho de casa.
— Nossa, eu achei que o cara fosse me bater. Ele nem é forte, mas só a cara dele me faz querer... — Se tremeu inteira pra mostrar os possíveis calafrios que sentia. Eu também senti. E até hoje ao lembrar daquele dia sinto meus ossos pedindo socorro.
— Não acredito nele. — Falei baixinho enquanto subíamos a rua, eu praticamente me arrastava e Wendy não havia soltado o meu braço. Se ela soltasse, talvez eu caísse. Talvez nós dois caíssemos. Éramos como duas crianças perdidas, era bom tê-la por perto.
— Não acredita no quê? — Perguntou, sem afrouxar o aperto.
— Quando ele disse que o Chanyeol ‘tá bem. Eu não acredito nele.
— Eu também não. Acha que ele pode ter feito algo de ruim? — Paramos no meio da rua, ainda era possível ver a casa de Chanyeol de onde estávamos, e só de imaginar que ele estava ali dentro com um monstro eu queria muito correr até lá e quebrar tudo. Mas era só um pensamento rebelde de adolescente.
Dessa vez, eu puxei o braço de Wendy para que nos virássemos para o caminho de casa sem pensar em tudo de ruim que talvez estivesse acontecendo a Chanyeol.
— Eu tenho certeza. — Comentei baixinho.
Naquela noite eu pedi a todas as divindades das quais eu lembrava o nome para que eu fosse capaz de ver Chanyeol bem ao menos uma vez antes de ir embora. E, ao contrário do que eu esperava, funcionou.
Mas não do jeito que eu esperava.
Na segunda-feira, Chanyeol apareceu na salinha do clube com o semblante cansado e atraindo todos os olhares possíveis. Mesmo que parecesse abatido, a atitude era a mesma de sempre, se sentou no fundão com jeito de dono do mundo e eu estava quase fazendo festa quando olhei em seus olhos.
Um dos olhos, para falar a verdade. Havia um hematoma ali.


— É... eu não lembro agora, mas — ele especificou com o indicador levantado — se eu estivesse com o meu livro aqui eu poderia facilmente encontrar.
— Não acredito que você é meu fã número um, eu ‘tô impressionado. — Brincou, vendo o rosto do homem se iluminar.
— Eu sempre soube que você se tornaria um escritor famoso. E sabe o que é inacreditável?
— O quê?
— A menina “filme é melhor que livro” também leu. Todos.
— Leu? — Perguntou abismado.
— Li, por que a surpresa? — Uma nova voz havia se juntado ali e o escritor ergueu um pouquinho só o rosto para ver quem era a pessoa dona do ar ácido e da voz macia.

Uma semana para o show de talentos. Uma única semana.
Havíamos ensaiado algumas poucas vezes durante os dias em que a sala do clube estava vazia, mas geralmente só nos sentávamos no fundão e observávamos os ensaios dos outros membros do clube. Fazíamos isso sem conversar, sem olhar um na cara um do outro. Nem mesmo Wendy dizia nada para quebrar o clima tenso, eu sentia que ela queria muito fazer alguma coisa, mas era complicado demais. Eu sabia que era.
Durante a semana Chanyeol não falou comigo sobre o olho roxo, não falou comigo sobre a semana que ele havia faltado, e também não falou sobre o dia em que ele me olhou nos olhos enquanto estávamos jogados no tapete do meu quarto. Era como se toda aquela semana fosse apagada. Como se a lembrança só existisse para mim.
Devo dizer que a culpa de uma conversa decente não ter existido foi parcialmente minha, pois eu não pedi por respostas, porque eu já tinha uma ideia do que tinha acontecido. Parte de mim achava que eu não precisava saber dos detalhes porque os detalhes com certeza me machucariam mais, era uma espécie de instinto de sobrevivência idiota, porque eu também sabia que os mesmos detalhes haviam machucado Chanyeol. Eu só estava fugindo da minha punição que não era nem de longe tão dolorida quanto a dele.
O show de talentos seria na sexta, no mesmo dia do baile de primavera, a semana estava no meio e o tempo todo eu me lembrava dos pedidos que eu havia feito: “eu quero ver Chanyeol antes de ir embora”, “eu preciso vê-lo antes de ir”, e certamente eu havia o visto. Mas só então percebi que não era o suficiente.
Eu precisava falar com ele, ouvi-lo, senti-lo. Mas era complicado demais quebrar as barreiras novas, eu não queria começar tudo do zero. Eu não tinha tempo.
— Como estão se saindo? — Naquele dia Chen chegou no fundão depois de ensaiar com Xiumin, os dois estavam dando um duro danado naquela apresentação, e com certeza estava valendo a pena. As cenas eram bem representadas e as vozes dos dois em conjunto eram incríveis, uma harmonia completa. Bem diferente dos cacos quebrados que era o grupo de música.
— Bem. — Chanyeol respondeu com a cara amassada, o olho estava numa coloração esverdeada, mas era como uma nova regra implícita: ninguém podia tocar naquele assunto.
— Mal. — Respondi um pouco depois, e então ele me olhou nos olhos com pesar. Era o único jeito que ele estava me olhando naqueles últimos dias.
Até mesmo Chen notou aquilo.
— Tudo bem, vocês estão nervosos. Isso é normal, não tem problema nenhum. — Deu uma risadinha puxando de levinho uma das tranças de Wendy, que estava bem ao lado dele. — Eu ‘tô indo comprar suco... vocês querem?
— Não, valeu. — Respondi, mas Wendy levantou em dois pulos.
— Eu vou junto. Posso ir junto? — Não era surpresa para ninguém que tudo que ela queria era ficar longe de nós dois, o clima estava cada vez pior conforme a semana passava, e fugir era inevitável.
Os dois acabaram saindo e a sala do clube se esvaziou aos poucos, naquele dia eu só lembrava dos meus pedidos, das preces bobas, das orações. Eu só queria poder falar alguma coisa sem me preocupar em pisar em ovos, como nos primeiros dias.
Exatamente como nos primeiros dias.
— Até a Wendy percebeu que você ‘tá esquisito, orelhão. — Falei com uma careta, tentando ao máximo parecer descontraído o suficiente para não soar preocupado demais. Não podia deixar que Chanyeol se afastasse, eu não tinha tempo para correr atrás de mais segredos. Nós não tínhamos.
— Você quem está esquisito, tampinha. — Ele quase mostrou a língua, mas aquele sorrisinho bastou para que eu sorrisse também. Era quase uma trégua silenciosa onde a nós dois fosse permitido agir como se nada ruim tivesse acontecido. Mas aconteceu. E eu na minha teimosia queria sabe o quê.
— Fala sério, Chanyeol, o que aconteceu na semana passada? — Perguntei, o sorrisinho morreu na mesma hora e eu me arrependi. Só que não tinha como apagar o que eu havia dito, por isso só continuei. — Por que ‘tá agindo estranho assim? O que custa conversar?
Eu não sabia que custava caro. Eu não sabia, mas Chanyeol me fez perceber naquele momento o quão egoísta eu estive sendo naquela semana. E foi com aquele sorriso pesado e sem vontade nenhuma que ele olhou para toda a extensão do meu rosto sem querer olhar nos meus olhos realmente. Eu também não olhei nos dele.
— Me diz você, Baekhyun. — Riu. — Até parece que você não sabe a resposta. Por que insiste em perguntar? Gosta de me torturar tanto assim?
Eu sabia que o mundo continuava girando normalmente naquele momento, mas sempre que eu me lembro daquele instante eu me sentia parado no tempo. Não conseguia ouvir nada e a minha visão era unicamente Chanyeol. Seus olhos estavam opacos.
— Foi o seu pai, não foi? — Perguntei já com a resposta na ponta da língua, eu não queria ouvi-lo responder. — Ouvi que ele vai te mandar para o exército.
— É mentira. — Ele falou, mas de alguma forma eu pensei que ele só estivesse falando isso para fugir do assunto. — Minha mãe não vai deixar ele fazer isso...
Aquela foi a primeira vez que Chanyeol mencionou ter uma mãe. Até aquele momento eu imaginava que ele fosse órfão, que havia sido abandonado. Aquelas palavras — que eu ainda lembro bem — soaram tão macias que eu de repente esqueci de tudo de ruim que eu havia imaginado.
O semblante dele havia mudado só pela menção da mãe, e aquilo me deixou aliviado de algum jeito.
— Sua mãe?
Senti que o ar escapava de meus pulmões, eram tantas as sensações novas. Mas quando Chanyeol se sentou perto da janela, tal como fizemos naquele dezembro frio, eu segui até ele, me sentando próximo o suficiente para ouvir seus murmúrios.
— Sim. Ela esteve fora por um tempo. Mas agora está de volta.
— E o seu pai? — Murmurei de volta, sem saber se aquele pouco espaço entre nós era permitido. Mas eu já estava confortável ali, sentir o calor de Chanyeol sem receber um olhar frio em troca me era perfeito.
— Ele tem medo dela. Não estão mais casados. Talvez eu vá embora com ela da próxima vez. — Eu olhei pela janela para não ter que encarar o sorrisinho que nasceu em seus lábios só pela possibilidade de ir embora. Sorri também porque eu sabia que ele ficaria bem longe daquela casa. Sorri porque eu não era capaz de fazer a dor passar, mas sua mãe era, ao que parecia.
Quando voltei a encará-lo seu rosto já não estava gritando por socorro, já não parecia triste. Estava calmamente olhando para o outro lado da rua tal como no inverno. As árvores já estavam floridas e as cores eram vibrantes, mas eu não conseguia prestar atenção em mais nada a não ser em seu rosto concentrado.
Foi quando eu cheguei mais perto, perto o suficiente para sentir que ele havia prendido a respiração. Quis tocar no hematoma só pra ter certeza de que já estava curado, mas antes que eu pudesse chegar ainda mais perto, Chanyeol segurou a minha mão e a afastou de seu rosto.
— Ainda dói? — Perguntei num fio de voz.
— Não mais.
Em troca, Chanyeol me olhou profundamente nos olhos e eu pude ver fogos de artifício.
Foi naquele fim de tarde que subimos a rua juntos até a minha casa e quando Chanyeol se aproximou o suficiente eu busquei suas mãos com as minhas. E ele não recuou.
Eu não sabia que seria a última vez que eu teria meus dedos entrelaçados aos dedos de Chanyeol, mas eu aproveitei aquele momento como se fosse único, e quando chegamos finalmente, a tarde inteira foi cheia de sussurros cantados e de músicas murmuradas ao pé do ouvido.
Já sabíamos que o tempo era nosso inimigo. Nosso rival. Precisávamos aproveitar juntos — na verdade, eu precisava, eu quem sentia necessidade em estar perto de Chanyeol o tempo todo, porque eu havia desaprendido a escapar em silêncio. Desaprendi a esconder os sentimentos e aprendi a amá-lo.
Naquele tempo eu não sabia, mas eu sei agora.


O escritor soltou um risinho divertido quando a velha amiga o olhou com aquele ar de fúria que era sempre muito bem-vindo, ela vestia um casaco pesado e grande que a deixava com cara de adolescente. Baekhyun concluiu que a amiga não havia mudado em quase nada, afinal de contas.
— É inacreditável. Você odeia ler! — Comentou com uma risada cheia de nostalgia.
— Odeio! Mas são os seus livros. Eu precisava ler. E tenho que dizer, eu adorei todos.
O escritor sorriu se sentindo um tanto sem graça, não era como se sentia quando seus ditos fãs o elogiavam. Até o chamavam de convencido às vezes! Mas ter pessoas importantes, pessoas que fizeram uma grande diferença na sua vida, dizendo aquelas palavras tão casualmente acabava mexendo com suas emoções. Era como se estivesse de novo no ensino médio rabiscando contos de herói em seus cadernos quando, na verdade, ele só queria contar a própria história para o mundo.
— Você não mudou nada, Wendy.
— Uau, faz tempo que não me chamam assim. — A mulher sorriu e com isso os três acabaram sorrindo também.
Tudo estava como antigamente, o escritor pensou, mas quando a amiga tirou o casaco para finalmente se sentar junto a eles, notou que embaixo do suéter bordado havia um volume bem característico. E isso o fez perceber que o tempo realmente havia passado.
— Você está grávida? — Perguntou abismado.

Era o dia do show de talentos. O clube inteiro estava animado com aquilo e mesmo que também fosse o dia do baile, os alunos pareciam extremamente empolgados. Chanyeol fazia parte de um daqueles alunos que estava tremendo da cabeça aos pés. E aquilo tinha um motivo: sua mãe estaria ali o assistindo.
Aquilo fez sua semana mudar de cores indo do mais opaco marrom para um vibrante amarelo, e a sensação de acolhimento era a melhor do mundo, por isso que ele não conseguia se segurar e não parou quieto por um só minuto.
Por isso que eu não o culpo por não ter lembrado de mim, eu não o culpo por estar tão animado em se apresentar para a mãe que simplesmente esqueceu que eu não havia aparecido na aula e que eu não estava ali na sala do clube ensaiando junto deles.
Eu não o culpo.
E por isso a partir de agora, as lembranças não são mais minhas. Eu não estava lá.

O grupo de teatro abriu a noite, Joy apresentou um monólogo. Depois duas apresentações de estudantes do segundo ano e assim o show de talentos começou sendo um sucesso. As pessoas começaram a chegar um tanto tarde, mas isso não chegou a ser um problema de fato. Não para quem estava na salinha do clube tão empolgado com suas músicas que quase não conseguia ficar sentado para tocá-las.
Chanyeol estava tão brilhante quanto o próprio sol naquela noite, e eu me arrependo por não ter sido capaz de vê-lo em sua melhor forma. Não fui capaz de enxergar a grande estrela brilhante que ele realmente era. Naquele instante eu já estava longe, longe pelos céus voando até um novo lugar que eu chamaria de lar.
Mas ele não sabia disso ainda.
— Chanyeol, você viu o Baekhyun por aí? — Wendy chegou perguntando, estava com um vestido preto que ia até depois dos joelhos e se sentia como uma deusa usando a tiara que havia ganho de presente da irmã mais velha. Era a única pessoa da família que ela esperava aparecer naquela noite.
E então Chanyeol parou de tentar um novo acorde no violão para olhar em volta, ele não havia percebido que eu não estava lá, não percebeu que não tinha meus olhos o assistindo como sempre, e foi então que a ficha caiu.
— Ele estava aqui. — Ele falou, talvez sem acreditar que ficou tão distraído a ponto de não perceber ou só abismado por realmente não ter prestado atenção no que estava acontecendo a sua volta.
— Não estava. Ele não apareceu na aula hoje, acabei de perguntar para o Sehun. — Ela cruzou os braços, tentando não os levar à cabeça e estragar o penteado elaborado que aprendeu a fazer de última hora. Os cabelos azuis estavam trançados em dois coques altos, a tiara dava um toque final. Eu tenho que dizer que era bem a cara de Wendy.
— Ele deve estar no auditório... ele... — Chanyeol largou o violão e olhou ao redor. Talvez ele esperasse que eu surgisse de repente, que eu estivesse debaixo de alguma cadeira ou algo assim. Mas eu não estava. Quando Wendy me contou sobre aquilo anos depois, eu acabei soltando uma risada triste. Talvez nada disso tivesse acontecido se eu soubesse quando acabava o prazo.
Mas eu não posso basear a minha vida em um talvez. Não funciona assim.
— Eu acabei de ir lá e ele não está. Acha que ele não vem? — Ela perguntou e eu ainda lembro do olhar pesaroso quando me contou sobre aquilo, as lágrimas quase caindo ao detalhar a angústia de Chanyeol quando jogou o violão de qualquer jeito na mesa da sala de clube e quando correu desesperadamente até a saída.
Mesmo que fosse primavera, aquela noite estava absurdamente fria. Quando chegaram aos portões da escola Wendy viu Chanyeol olhar para todos os lados da rua, em todas as direções, esperando que eu estivesse apenas atrasado, mas eu sabia que ele sabia — assim mesmo, com toda falta de concordância — o que estava realmente acontecendo. O motivo de eu não ter avisado. O motivo de eu ter apenas sumido do mapa.
Soube que Chanyeol correu até a minha casa e a descobriu vazia com um aviso de “aluga-se” na porta de entrada. Soube também que ele só virou as costas no portão da escola mesmo e deixou aquilo de lado. Porque ele sabia que não havia jeito de eu aparecer.
Fiquei sabendo também que Chanyeol ficou esperando que alguém aparecesse de dentro da minha casa, que alguém lhe explicasse com detalhes, pontos e vírgulas sobre o que estava se passando, mas eu prefiro acreditar no que me parece mais real. Wendy e Chanyeol voltaram para dentro da escola e os dois sem mim apresentaram suas músicas fazendo o público vibrar.


O Clube do Café já havia fechado e o escritor continuava naquela mesinha na cafeteria já vazia. Seungwan e Jongdae — ou Wendy e Chen como costumavam ser chamados durante a infância e adolescência — eram sócios e donos do lugar, e aquilo fazia mais e mais sentido na cabeça de Baekhyun, o lugar era aconchegante porque tinha realmente um sentimento de casa.
Descobriu também que Jongdae estava praticamente casado com Minseok (que era chamado de Xiumin durante o ensino médio também) e a notícia não chocou o escritor, porque antes mesmo de ir embora ele sentiu que os dois um dia tomariam vergonha na cara para expor seus sentimentos um pelo outro.
Descobriu que a gravidez de Seungwan estava na vigésima sétima semana (e ele não queria fazer as contas para descobrir quantos meses eram, então apenas acenou e sorriu quando a amiga deu aquela informação) e estava quase casada também. O que mais chocou Baekhyun naquela noite foi saber que o pai da criança era Oh Sehun.
— Ele era meio esquisito no ensino médio, mas depois que começou a fazer aula de dança ele ficou muito gato! — A mulher se defendia, mas era claro pelas risadinhas de Jongdae que não tinha jeito. — Ele endireitou a postura e tudo! Para de rir do meu namorado, Jongdae!
— ‘Tá, tá, desculpa. Mas, me conta, Baekhyun, como vai o Chanyeol? — E então eu mergulhei outra vez no mar das minhas memórias.

Depois de minha partida, muitas dúvidas ficaram em minha mente. E toda vez que eu me afogo em lembranças eu me pego pensando nelas e em como elas me parecem tão claras.
Nos primeiros dias longe de Park Chanyeol eu sentia meu estômago revirar. Sentia falta de estar em meu quarto com ele dedilhando as cordas do violão calmamente e sussurrando palavras soltas das músicas que ele mais gostava.
Sentia falta das vezes em que meus pés acariciaram os dele e senti falta de quando nossas mãos se encontraram. Senti falta de quando meu coração bateu bem rápido junto do coração dele quando nós dois estávamos na minha cama naquela tarde quente demais. Sentia falta de olhar nos olhos dele. Sentia falta até das vezes em que ele não olhava nos meus olhos com medo de que eu desvendasse seus mistérios.
Senti falta de quando olhamos pela janela da sala do clube no inverno e quando olhamos pela janela na sala do clube na primavera. Senti falta dos sorrisos, senti falta de quando ele parecia avoado demais. Eu senti falta até de quanto trocávamos farpas por sermos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes.
Talvez pareça um pouco estranho dizer isso depois de tanto tempo. Mas eu ainda sinto falta. Sinto falta todos os dias quando lembro do que podia ter acontecido. De quando eu o observava de longe e de quando ele me observava de perto. Se eu tivesse ficado, se eu não tivesse partido, será que eu ainda estaria junto de Chanyeol?
Não acho que estaria.
Eu sempre tive o espírito livre, aprendi a fugir sempre que as coisas saíam dos planos. E mesmo que eu tenha tido um pouquinho de coragem enquanto estava com Chanyeol, não acho que tenha aprendido de fato. Eu não seria o cara corajoso que faria de tudo para ficar com a pessoa amada. Eu não fui esse cara.
E se Chanyeol lesse tudo o que eu já havia escrito sobre ele, provavelmente me procuraria mesmo no meio da noite para dizer que me amava na mesma intensidade. O que nunca aconteceu, tenho que pontuar.


Por isso que Seungwan e Jongdae me olharam esquisito quando eu soltei um sorrisinho depois daquela pergunta. Sorri por causa das lembranças, sorri também por ter levado Chanyeol por tanto tempo comigo que até mesmo antigos amigos se lembravam dele.
— Esse era o meu maior medo... — Comentei com um sorrisinho de lado um tanto envergonhado pelas expressões que os dois me fizeram. Eu havia escrito muitas coisas sobre Chanyeol, muitas e muitas coisas.
— Qual a sensação de finalmente dar vida a alguém que você fala sobre desde os tempos de escola? — Jongdae perguntou como se fosse um repórter bem-apessoado, e eu acabei entrando na brincadeira.
— Extremamente gratificante, devo dizer. — Foi quando Seungwan me cutucou.
— Pois eu quero que você autografe o meu livro, nobre escritor best-seller Byun Baekhyun. — Ela tirou um livro de dentro da bolsa e foi como se os dois tivessem combinado. Era um exemplar do meu livro também.
Então eu puxei a sacola que eu havia levado, completamente sem palavras.
— Não acredito que vocês compraram o livro quando eu mesmo trouxe de presente. — Falei fingindo uma decepção, a verdade era que meu coração estava explodindo em alegria.
— Não faz mais que a sua obrigação. — Ela puxou um dos livros da minha mão e abriu nas primeiras páginas, satisfeita por eu já ter assinado ali. — E nós também não fizemos mais do que a nossa obrigação por termos comprado. Você dedicou pra nós dois, afinal.
— Seungwan queria tietar no twitter, por isso ela leu. — Jongdae soltou de uma só vez e esperou que a amiga explodisse. O que certamente aconteceu. Jongdae acabou ganhando um tabefe.
— Ela ‘tá no direito dela, Jongdae. — Defendi dando de ombros só para ver o sorriso nascer no rosto da menina Wendy, que ainda parecia a mesma de anos atrás. O cabelo tinha voltado a ser preto e estava acima dos ombros, mas eu lembro das mil cores que habitaram aquelas madeixas. A mais icônica, claro, havia sido a azul.
Eu nunca escondi essa minha opinião de ninguém.
No fim da noite saímos da cafeteria com a promessa de que nos veríamos mais vezes, me senti como um personagem em algum livro qualquer, completamente bêbado em lembranças e em desejos de construir novas memórias. Foi quando nos despedimos que eu puxei um bloquinho do bolso, um bloquinho que sempre andava comigo onde eu guardava cada citação que aparecia de repente na minha cabeça em momentos bons, ruins, difíceis... momentos leves como aquela noite. Momentos quando eu me peguei tendo uma conversa com Chanyeol pela primeira vez.
Caminhei pelas ruas lentamente, quase não havia movimento. As pessoas preferiam estar em casa naquele horário e mesmo as ruas mais movimentadas estavam praticamente vazias devido ao clima frio daquela noite. As luzinhas de natal enfeitavam o branco perfeitamente, era como uma tela vazia com uma moldura bonita.
Quando finalmente cheguei em casa percebi que talvez eu devesse ter comprado mais alguma coisa para comer durante a madrugada, talvez eu devesse perguntar a Jongdae ou a Seungwan sobre algum serviço de delivery que funcionasse vinte e quatro horas. Ou talvez fosse melhor esperar o dia clarear e ir comprar finalmente os tão necessários eletrodomésticos.
Novamente o escritor sentou-se na cama nova, do quarto novo, do apartamento novo e suspirou com o olhar nas paredes brancas pensando em quantas pessoas haviam se apaixonado por Park Chanyeol por causa dele. Pensou no quão ruim era se apaixonar por um personagem em um livro e pensou em como era ainda pior não se apaixonar.
No escuro do quarto se sentiu um pouquinho como o Byun Baekhyun de seu livro — aquele que havia escrito logo quando se mudou da Coreia do Sul para o Canadá, onde fez faculdade e viveu por cinco anos, e que finalmente havia sido publicado.
Se lembrou dos tempos de escola quando passava as aulas inteiras inventando contos mirabolantes e histórias confusas, inventando personagens e poderes inimagináveis para eles. E se lembrou também de quando inventou Park Chanyeol naquele dia chuvoso na biblioteca da escola quando caiu no sono lendo uma enciclopédia.
Em como Park Chanyeol acabou sendo um protagonista de um romance bobo que provavelmente nunca teria um final feliz.

O Clube de Arte
Para Seungwan e Jongdae, meus melhores amigos do mundo inteiro.
E para Park Chanyeol que antes só existia na minha mente e agora
existe no coração de todos vocês.


— Por que Wonderwall? — Ele ouvia frequentemente das pessoas em lançamentos e sessões de autógrafos. Aquela era a pergunta que ele mais gostava de responder.
— Porque Wonderwall quer dizer porto seguro.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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