Não conseguia permanecer feliz e sorridente para todas aquelas pessoas, que, agora, me olhavam com certa admiração. Não forjaria, não conseguiria. E, por um momento, eu percebi que, durante toda a minha vida, eu nunca me recusei a nada, jamais disse tantos “nãos” ao longo da minha existência. E agora, naquele exato momento, eu estava me recusando a sorrir para a morte de alguém que, de tanto me dizer não, aprendi a interpretá-lo com um sim; mudo e inconsciente, mas um sim.
Criaram-nos como irmãos, por mais que não o fôssemos. Ainda na adolescência, ele foi ocupar seu lugar no exército do rei, no exército do meu pai, que todos acreditavam que era seu pai também. Mas não, ele não era filho do rei, era filho do grande amor da vida de meu pai. Sim, meu pai, o rei, aceitou que o filho de uma camponesa com um homem sem honra habitasse a corte e fosse educado como um lorde por gratidão e profundo amor pela tal serva, que morreu pouco após o parto. Foi criado como filho bastardo, tendo regalias e tormentos. Sua mãe tentou lhe dar o melhor ao implorar pela ajuda do rei Charles, só não contava que viver ali não era o melhor lugar para ninguém.
As conspirações, devido à preferência absurda de meu pai por ele, esfacelavam a corte e, principalmente, o coração de minha mãe. O medo que o bastardo pudesse ocupar o meu lugar no reino costurava e descosturava tramoias todos os dias. E ele poderia fazer, se o quisesse; tinha apoio do exército, que o considerava a melhor opção, já que era um exímio estrategista e, veladamente, de meu pai. E eu não poderia fazer nada; estava isolada, minha mãe não tinha apoio, sua personalidade ríspida e agressiva a impedia de fazer conchavos com os lordes.
Surpreendentemente, ele não quis nada daquilo. Percebi em seus olhos, no momento que aproximou-se de mim, que aquilo tudo não importava. Ele não queria reino, nem o nosso e nem anexar quem quer que fosse. Os tempos no exército, fazendo o que nosso pai queria e atendendo seus desejos de posse de novos territórios, o havia mudado. Em uma conversa, que jamais o tinha visto tão sincero, ele havia me dito que viu milhares de pessoas, inocentes ou não, morrerem por causa de terras. Não queria aquilo e se recusaria a voltar para o exército, se meu pai o obrigasse, nem que tivesse que fugir e exilar-se em alguma colônia no novo mundo. Aquilo acendeu em mim uma compaixão e um sentimento desconhecido. Agora, ele não lembrava nem de longe aquele garoto birrento, mal criado e acostumado a dizer “não” para tudo e para todos. Agora, tinha um motivo para dizer “não”, um motivo honesto e bondoso.
Honestidade, que minha mãe fazia questão de me dizer, ele não tinha. Alertava-me sobre suas possíveis intenções com a coroa, desde que ele havia voltado à corte, e eu a ouvia e acreditava, mas não naquele momento. Eu não o vi daquela maneira. Parecia tão meu irmão, mesmo que nunca tentou ser, que, de muitas maneiras, quis protegê-lo das conspirações e das acusações de traição, e a relação de cumplicidade entre nós tornou-se enorme da noite para o dia. E muitos até não acreditaram, afinal, eu seria rainha e, provavelmente, estava mantendo aquilo pela máxima de: “Amigos perto, inimigos mais perto ainda”.
E por mais que não me incomodasse, o incomodava.
Lembro-me das vezes que, inutilmente, tentei convencê-lo de que não o via dessa maneira, que minhas intenções eram puramente sinceras, que não estava conspirando para sua morte e tampouco me aproveitando de sua influência com os lordes ou com o exército. Inflamei o desejo de uma irmandade outras tantas vezes, argumentando que não tive irmãos de sangue e, logo, ele fazia esse papel, que tanto me fez falta em toda minha vida. Meu pai estava a léguas de distância, emocionalmente falando, e ele tão pouco se fez de irmão, já que não ficava muito perto em nossa infância. As poucas vezes que estivemos no mesmo local, eu estava agarrada às saias das amas ou de minha mãe, que o tratava como uma doença contagiosa, ou ele estava irritado o suficiente com as roupas cheias de babados e apertadas demais para me dar atenção. Pondero que sua infância foi triste e solitária, jogado entre as casas de um lorde e de outro, ou permanecendo em uma ala do castelo, tão distante, que poucos servos o viam.
Por certo tempo, meus argumentos o convenceram, mas, a partir da morte prematura de meu pai, ele afastou-se. Senti sua falta desesperadamente. Estava acostumada à sua companhia e às suas piadas. Tentei inúmeras vezes falar e argumentar, mas nada o fez aproximar-se novamente. A morte do meu pai estava matando-o também. Ele sempre foi o mais apegado a ele, muito mais do que eu, admito. E, como se não pudesse piorar, os lordes o pressionavam, não me queriam como rainha, os rumores de conspiração para minha morte incendiavam o reino a cada dia. Destruindo muito mais nossa relação.
Com a proximidade de meu casamento, arranjado com toda certeza, torcia mentalmente para que ele enfrentasse as oposições partidárias e viesse. Queria que ele estivesse lá e me apoiasse para enfrentar o tormento que seria aquilo para mim. Ele sabia perfeitamente que eu era apaixonada por outro homem. Apaixonada por um nobre falido, que sina a minha. Ele não foi e tampouco me mandou cartas. Não o vi por meses e como precisei de seu afago, e de sua má criação novamente.
Soube pelas fofocas que ele estava se relacionando com uma mulher de posses, muito rica. Temi, por um instante, que os lordes ao meu favor veriam aquele relacionamento como um levante contra mim. Eu estava certa. Eles imaginaram isso e não tiveram um pingo de piedade de matarem a pobre inocente.
Vi-o na primavera. Ele apareceu no meio do bosque o qual eu passeava com duas ladys. Pisava tão forte que as flores no chão eram esfaceladas por seus pés. Soube, naquele momento, o choro que estava guardado em seu peito. Os guardas aproximaram-se de mim, temendo um ataque, e os impedi de fazer alguma coisa. Tinha a plena consciência que a feição de raiva de meu irmão revelava intimamente uma tristeza profunda. Eu me aproximei e o acolhi em meus braços. Ele chorou como criança. Pude perceber que a revolta de ser excluído e acusado injustamente durante toda a sua vida também pesavam em seu peito. O misto de coração partido pela morte, da que conclui ser seu grande amor, e de sua mortificação constante o maltratavam duramente.
Depois daquilo, ele voltou à corte, não mais o mesmo, nem que quisesse. As reuniões, bailes e músicos paravam, e todos — sem exceção — pareciam temê-lo. Menos eu. Eu sabia quem ele era e sabia também que aquilo o machucava. Por mais que ironizasse a situação, ele estava morrendo aos poucos. Tentei ajudar, fiz o que jamais pensei que faria, arranjei casamentos e tentei fazer com que sua dor diminuísse. Mas só o afastava de mim mais e mais, e eu não conseguia conter a sua dor.
Ele entrou em meus aposentos, no meio da noite. Estava irritado. Confessou que a jovem que havia morrido e ele já tinham casado secretamente, e ela estava grávida quando morreu. Seu filho também havia morrido, e ele pensava naquela inocente criança todos os dias. Implorou-me que não mais fizesse nada, não interferisse. Sua vida havia acabado e sobreviveria pelo resto do tempo que lhe restava nesta terra.
Comovi-me com sua situação. Ele não merecia tanta dor. Fui sincera e respondi que não poderia deixar que ele sucumbisse ao sofrimento daquela maneira. Ele me acusou de ser autoritária, de querer controlar sua vida, pois era rainha. Por um momento, achei que ele me culparia pela morte de Amélia. Ele mordeu a língua, para não me culpar, sei disso. Ele, agora, era como um daqueles inocentes que morriam nas guerras que participava na época do meu pai. Meu irmão estava morto, pelo menos, psicologicamente.
Eu confesso, também, que me descontrolei. Por mais difícil que estivesse sua vida, eu nunca fui culpada pela morte de sua esposa. Nunca participei de reuniões de meus partidários que insinuavam qualquer tipo de violência contra ele. Eu bati em seu rosto. Um tapa que doeu pelo sentido que tinha e não pela dor física. Ele notou que nossa irmandade estava por um fio e, que tudo que éramos desde a conversa no dia em que ele voltou do exército, se resumia naquele momento a uma rainha e seu servo. Ele resignou-se, humilhado, como jamais o tinha visto.
A cena que transcorreu, a partir daquele momento, foi o início da derrocada: meu marido entrou no quarto, os guardas tinham ouvido o barulho e o chamaram, sem meu consentimento. Arrastaram meu irmão e o jogaram nas masmorras, até segunda ordem. Nada pude fazer, a não ser implorar a Deus que os carcereiros não o machucassem. Meu marido não poupou o exagero, alegando que aquilo era um ultraje e que não poderia tolerar aquele insulto, ainda mais vindo de meu irmão bastardo, que sempre esteve envolvido em conspirações para estar no poder. Era isso que ele acreditava, e eu não tive como tirar de sua cabeça. Para meu marido, havia sido um risco para mim e para a criança que estava em meu ventre, a qual meu irmão nem sabia que já existia. O futuro rei havia sido perturbado. Era esse o resumo da ópera.
Os castigos físicos mostraram-se evidentes, depois de alguns dias, quando voltei a vê-lo. Ele não me olhou e tampouco aproximou-se; resignou-se a posição de servo da rainha, coisa que nunca o fez em particular, só mantinha essa posição em frente ao público. Segundo ele, precisava mostrar respeito à rainha na frente do povo, mas não em particular, onde éramos somente irmãos. Ao ver aquilo, senti que uma faca havia entrado em meu coração. Mas não importava, pois o dele, com certeza, estaria muito mais ferido que o meu.
Os dias que se seguiram foram traumáticos para ele. Chamei-o para um passeio, queria poder conversar com ele e saber o que ele sentia. Era minha obrigação como irmã. Ele apareceu, desconversou por alguns instantes e, após certa insistência minha, conversou sobre banalidades.
As flechas apareceram em nosso campo de visão, e ele se jogou à minha frente como não pensei que faria, após toda nossa discussão. As flechas furavam o chão, e ele segurou minhas mãos. Ali, tive a certeza que, mesmo com toda aquela confusão, ele sempre me protegeria. Eu sorri, envaidecida pela proteção que voltei a ter dele.
Os guardas me arrastaram, no momento seguinte, e nos separaram. Não pude compreender, a princípio. Somente no momento em que vi meu irmão sendo arrastado como um criminoso foi que percebi o que entenderam: a guarda acreditou que irmão havia tentado me matar. Chutei e esmurrei os guardas, exigindo que o soltassem. Não adiantou.
Ele ficou preso e, às escondidas, entrei nas masmorras para vê-lo. Ele estava machucado e visivelmente abatido, mas ainda mantinha aquela figura forte que havia ganhado no exército. Seu sorriso triste fez meu coração doer e as lágrimas caíram de meus olhos. Disse que sua sentença estava dada, morreria no dia seguinte. Mas que eu não me preocupasse. Sua vida haveria de terminar, mas havia tido tudo de bom que alguém poderia ter, mesmo que não considerasse assim. Pude sentir que ele queria descansar de sua vida terrena, queria poder ficar com Amélia e com seu filho. Descansaria das acusações infundadas e das mentiras plantadas dentro da corte. Pela primeira vez, disse “sim” a alguma coisa que o impuseram, mesmo que fosse a morte.
Contarei a história dele para meu filho. Contarei o tio herói que ele não conheceu; quem sabe assim, uma parte dele viva dentro deste reino, onde todos tentam escondê-lo e tratá-lo como traidor que armou uma armadilha para a rainha. Meu filho, o futuro rei, é tão malcriado quanto meu irmão, e espero que tão honesto quanto ele.
Vá em paz, meu herói, o mundo não contará sua história, mas eu contarei às próximas gerações. Direi os seus “nãos” e o motivo honesto para dizer o seu único “sim”.

Fim



Nota da autora: (05/07/2016) Olááá, seus lindos que chegaram até aqui e leram minha primeira short! Só para deixar registrado: se, por ventura, você achar esta fic no AS, sob o user de @Mrsreddington, sou eu e não foi plágio. Meus agradecimentos, neste momento de emoção — sim, momento de emoção, porque é minha primeira fic neste site, que eu acompanho há muitos anos, desde a minha saída da infância, e isso, pra mim, é um momento histórico. Pensei e repensei nesta nota, e, inclusive, pedi pra reformulá-la, e a linda da minha beta esperou pacientemente um dia pra eu poder ter vergonha na cara e mandar de volta.
Enfim, eu tenho que agradecer muito a Deus por escrever alguma coisa que preste. Talento só Ele quem dá *-*. Agradecer também ao meu beta no outro site, que me ajudou muito. Beijo pra ti, Gabriel! À minha beta daqui, também, porque ela é um doce e super paciente <3. Agradecer a minha mãe, que esperou eu terminar de escrever pra me cobrar lavar a louça, e a Tété, que foi obrigada a me ouvir falar sobre a fic e minhas neuras.
E a você, leitor, obrigadão por ler e continuar lendo esta nota enorme. Considere-se alguém com paciência e muito amor no coração. Meu muito obrigada a você também, seu lindo(a)! Já te considero pakas ;)
Sim, eu sou exagerada assim mesmo e super me sinto emocionada. Este site marcou uma era da minha vida, e eu me sinto super velha fazendo isso, mas também muito feliz.




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