Finalizada Em: 09/05/2018

Capítulo Único

Chegava ao fim mais um dia intenso de trabalho. Dois turnos, dez aulas e oito turmas. Alunos, professores, provas, trabalhos, cronogramas, reuniões... Tudo isso consumiu minha mente durante todo o dia. Desejava chegar em casa, tirar os sapatos, tomar uma ducha de água quente, colocar o pijama listrado e descombinado, me largar na poltrona roxa com um cobertor cobrindo as pernas, um copo de chá em uma mão e o romance clichê na outra.

Essa tem sido a fuga e o encontro realizados com mais frequência nas minhas noites, digo isso porque fuga me remete a possibilidade de esquecer a realidade e encontro porque esse é o único jeito de te encontrar. Como um ritual faço rotineiramente cada movimento e cada parte dele são um passeio até você. Sendo assim, sempre volto nos meus piores dias para nossa pequena casa, mesmo ainda tendo uma moradia no centro, meu esforço de enfrentar algumas horas de engarrafamento é recompensado quando coloco os pés no lugar que compramos juntos quando resolvemos que começaríamos a construir um lar.

As paredes coloridas são a primeira parte, elas são fonte de lembranças boas e divertidas de nós dois, elas me levam as tardes que passamos ali para pintá-las e que foram numerosas graças as nossas longas e lentas pausas para devorar Cheetos, Soda e games - você ainda insistia em uma fase interminável de The Legend of Zelda no Nintendo 3DS e eu não conseguia largar o maldito Silent Hill Origins que me fizera quebrar a tela do PSP.

Passar as mãos nas paredes da casa é só o começo do meu ritual e é comumente seguido da ação de retirar meus sapatos e levar eles até nosso closet. Sempre coloco os calçados lá porque lembro que se sente desconfortável com sapatos jogados na entrada da casa, mas também porque gosto de abrir aquelas portas e ter seu cheiro batendo no meu rosto. Suas roupas já não estão mais ali, mas aqueles esquecidos casacos nos cabides do canto esquerdo guardaram seu perfume de maneira tão intensa que sua essência parece estar presa naquele cubículo. Ali também estão seus pares de pantufas que ficaram para trás, os irmãos Mário e Luigi me encaram com seus bonés vermelho e verde todas as vezes que me agacho para colocar meus tênis enfileirados ao lado deles, e a estranha combinação do meu surrado All Star preto e de seus fofos calçados é a segunda parte do meu ritual.

A terceira parte dessa rotina vem quando entro na ducha forte e quente do banheiro, porque ali fizemos amor pela última vez. Não sei exatamente se é culpa da saudade ou da água quente, mas com frequência as imagens nítidas da nossa urgência quase sufocante escorrem por mim quando estou ali: sua mão forte mantendo meus cabelos presos em seus dedos, sua pele molhada deslizando pela minha, seu abdômen chocando contra minhas costas e sua respiração descompassada no meu ouvido. Cada gotícula que bate contra mim carrega memórias daquele momento, então quando me seco com a toalha e elas somem, preciso seguir para a próxima etapa.

Ironicamente você levou a parte de cima do meu pijama e deixou a sua ali. Agora toda vez que faço a quarta fase dos meus passos me vejo carregando listras de duas cores: azul em cima e rosa em baixo. Recordo de quando estávamos na sessão daquela loja de departamentos no shopping e você insistiu que tínhamos que ter pijamas que combinassem, afinal de contas estaríamos fadados a dormir um com o outro para sempre e portanto roupas de dormir combinando poderiam ser nossa tradição; por isso, não reclamei quando escolheu aqueles estranhos conjuntos listrados com toda a certeza que ficaríamos lindos dormindo e acordando neles. Sempre me pego imaginando como seus ombros largos poderiam caber na parte que levou minha e qual deve ter sido sua reação quando percebeu o erro que cometeu, pensar que encarou as minhas listras rosas ao invés das suas azuis e deu aquela sua risada engraçada me faz sorrir aqui enquanto preparo o chá.

O momento do chá é a quinta parte dos meus passos. Eu te disse no nosso começo que bebidas quentes foram feitas para aquecer corações tristes e a partir disso você fez dessa nossa convenção social da tristeza, e eu amava perceber que você acreditava que camomila e hortelã poderiam cessar todas as minhas lágrimas, até mesmo aquelas que você provocava em mim. Então, após uma decepção profissional, uma discussão de família ou uma briga nossa, te ver arrastando sorrateiramente uma xícara de chá pela fresta da porta quando estava encolhida para chorar no canto do quarto sempre me fazia sentir amada.

Minha última ação me remete exatamente a chá, poltrona e cobertor, porque no dia que partiu, você percebeu que eu estava fria e paralisada, por isso me pegou no colo e me colocou até nossa poltrona roxa encostada na base da janela, depois trouxe a caneca quente e me envolveu com o cobertor da nossa cama. Você sabia que eu ficaria letárgica quando te visse sair pelo portão, você sabia que eu não pararia de tremer quando escutasse o silêncio da casa, mas também sabia que eu precisaria de algo para aquecer o coração, por isso o chá, a poltrona, o cobertor... E o livro.

– Eu não leio romances, ! – Eu disse com a voz falhada e nasalada, as lágrimas escorriam abundante em meu rosto e me faziam ficar com a cara inchada. Eu era patética chorando, mesmo assim você acariciou meu rosto.
– Não leria por mim? – Me encarou com aquele seu famoso bico irritado nos lábios avermelhados e pedintes.
– Por que me faria ler um romance clichê? – Eu lhe encarava de volta, vendo seus traços embaçados pelas lágrimas que confundiam meus olhos, não acreditando que aquele pesado volume de páginas de "Querido John" era seu último pedido para mim.
– Porque você verá que essa história parece com a nossa, mas com uma diferença... – Aproximou seu rosto do meu e percebi quando lentamente ruginhas de sorriso surgiram nas pontas dos seus olhos – Eu sei que quando eu voltar você ainda estará aqui esperando por mim.
– Como pode ter certeza disso? – Minha pergunta saiu quase como um leve sussurro chorado.
– Porque você vai precisar da parte do seu coração que estou levando comigo, . – E eu poderia ter visto quando saiu pela porta pela última vez, mas a sua frase acompanhada da sensação do selar quente dos seus lábios nos meus e seguida da pontinha de seu nariz roçando lentamente pela minha, me fez fechar os olhos e perder a coragem de abri-los outra vez. 

Por isso volto aqui nos dias difíceis, porque preciso das nossas memórias, dos nossos detalhes e da sua volta. Desde que você se foi não vejo mais alegria em minha rotina, todos os dias têm sido difíceis e este livro que deixou já foi lido duas, três, quatro e cinco vezes, todas às vezes começam e terminam aqui, com esse mesmo pijama, com esta mesma xícara de chá, com este mesmo cobertor e nesta mesma poltrona.

E agora, pronta para voltar ao prólogo, olhei rapidamente pela janela achando que havia visto sua figura no portão, mas minha mente me despertou dizendo que te ver entrando por ali nesta noite era apenas mais uma ilusão, já que seu serviço no Exército ainda prosseguirá por mais alguns anos e o que resta de você aqui são apenas três casacos, duas pantufas, um livro e eu. 





Fim



Nota da autora: Sem nota.



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