Prefácio
“Amor quando é amor não definha
E até o final das eras há de aumentar.
Mas se o que eu digo for erro
E o meu engano for provado
Então eu nunca terei escrito
Ou nunca ninguém terá amado.”
William Shakespeare
Prólogo
gostava de cores, tintas, desenhos, folhas de jornais e flores. gostava de futebol, correr, música e passar um tempo de bobeira com sua família. Eles se conheceram quando tinham sete anos e se mudou para duas casas de distância da de .
Eles cresceram juntos em Bremen, sempre indo a casa um do outro. ensinou a jogar futebol, e a garota ensinara ele a como se vestir. Em algum momento que eles não sabem qual, passou a ter um estilo único e se viu no meio de uma arquibancada gritando sem parar porque o amigo tinha feito um gol.
E, como esses pequenos detalhes, eles tinham outras tradições.
Tradições faziam parte de suas vidas, era uma das coisas importantes na amizade, pois eram elas que faziam e serem e . Eram as certezas frente a diversas imprevisibilidades. E as tradições precisavam ser mantidas.
O problema era quando essas tradições não tinham mais importância, porque haviam perdido o sentido. Os pequenos gestos não tinham um mesmo significado e o medo de dar um novo sentido para aquilo era avassalador. Talvez fosse mais fácil fingir que aquilo continuava a mesma coisa, mesmo que isso significasse mentir para si mesmo
I heard that you've been having some trouble finding your place in the world
Era uma noite fria. Londres não decepcionava quando se tratava de inverno. fugiu para aquela cidade que tanto o renovava. De vez em quando, ele gostava de fazer viagens sozinho. Talvez por sempre estar na companhia dos seus colegas de time ou seus irmãos, esses escapes solitários o ajudavam a pensar. Geralmente seu destino era Espanha ou Suíça, mas Londres era algo especial para ele.
Agora ele tinha 20 anos. Sorriu ao lembrar desse fato. Para alguns, isso não tinha relevância, para ele era como se alguém tivesse dando um banho de água fria. Não poderia mais agir como um garoto. Agora era adulto.
Cômico pensar nisso. Adulto. Ele mal conseguia cuidar de si mesmo. Havia aprendido muito com o futebol, mas ainda se sentia uma criança perto de outros jogadores. Há alguns meses havia feito a sua estreia pela seleção principal da Alemanha, havia ganhado uma medalha de prata para seu país nas Olimpíadas Rio 2016, mas isso não significava que ele se sentia mais maduro.
Havia sido um bom ano. Ano novo fazia isso com ele. Uma pequena retrospectiva mental de tudo que tinha acontecido até ali enquanto andava na fria capital inglesa. Ia para o seu pub favorito. Iria ter um show cover de uma das suas bandas favoritas. Música, cerveja e frio. Melhor combinação para uma mente perturbada.
Abriu a porta do estabelecimento e sentiu o ambiente quente que contrastava com a temperatura da rua. O som já lhe agradava. A banda ainda não tinha começado a tocar, mas era possível escutar All Time Low saindo das caixas de som. Se dirigiu ao balcão e pediu sua tradicional cerveja. Aquela noite era dele e de ninguém mais.
Logo uma garota de cabelos loiros sentou ao seu lado. Ela não media mais do que 1,60. , sua amiga de infância. Aquela que havia compartilhado todos os seus sonhos. Aquela que havia estado ao seu lado até o último verão, quando ela resolveu trocar as ruas de Bremen pela congelante capital inglesa. E também o motivo pelo qual tinha aprendido a amar Londres.
A garota vestia uma meia calça preta, uma saia rodada e uma blusa preta a qual ele tinha certeza que ela sentiria frio se saíssem daquele lugar. Mas ele conhecia , ela nunca tinha se importado com o frio.
– Você precisa começar a sair da sua zona de conforto, .
– Olá para você também, . E de onde está vindo esse comentário?
– Você está em Londres, mas se recusa a conhecer outros lugares.
Ele arqueou uma sobrancelha, concordando. Sempre visitava a cidade. Os avós de moravam em Wembley, então ele estava acostumado a visitar a Inglaterra com a amiga. Aquela era a sua primeira viagem sozinho ao país, e, mesmo que tivesse voado sozinho da Alemanha, não o deixaria só.
Desde que havia se mudado, eles não tinham se visto. Ele não tinha tido folga dos jogos e ela tinha a sua faculdade de artes. Mas era tradição dos dois passarem o ano novo juntos. O primeiro beijo do ano sempre tinha que ser um do outro, só assim para terem sorte. Era uma tradição boba que eles tinham desde que tinham feito doze anos. Jamais se beijaram fora da noite de ano novo.
Isso já tinha dado alguns problemas quando da vez em que estava namorado e a garota viu os dois se beijando em uma festa na casa de . Eles tentaram explicar para a menina que era apenas uma tradição, mas a verdade era que ele ficou aliviado por acabar com o relacionamento ali. Hoje, ele nem sequer lembrava o nome da menina.
– Panda, o que você acha de encerrarmos o ano de uma forma diferente? – ele olhou para a amiga, sem entender o que ela queria dizer. E, sempre que ela usava seu apelido, ele já poderia esperar treta. – Vamos passar a noite entrando nas principais festas de Londres, beijando o maior número de estranhos possíveis.
– , não sei se eu to muito afim não. – ele encarou a bebida e sacudiu a cabeça. Seu plano era passar a noite naquele pub, escutando as músicas e trocando umas ideias com a amiga.
– Fala sério! Justo neste ano você não quer celebrar? Olha, se você não está animado com o fato de que você está jogando pela seleção principal da Alemanha, eu estou. Fora que também tenho meus motivos para celebrar.
Ele finalmente olhou para ela. Seu olhar pedindo que ela explicasse melhor. sempre foi de economizar palavras. Preferia ficar calado sempre que podia. conhecia o amigo melhor do que ninguém, e sabia interpretar todas as suas expressões faciais.
– Eu conheci um emprego no Britsh Museum.
quase engasgou com a cerveja que levava aos lábios.
– O quê? Mas, porra, isso é muito foda! Parabéns, pirralha. – abraçou a amiga, que tratou de brigar com ele.
– Vai se foder! Só porque sou cinco meses mais nova que você eu sou pirralha? Se enxerga, garoto.
riu. Como ele sentia saudades da melhor amiga.
– Tá bom. Podemos ir. Mas não posso beber demais. Meu voo de volta é bem cedo amanhã.
– Por que você marca um voo de madrugada pós festa?
– Meu irmão quer aproveitar os últimos dias de recesso no projeto dele.
– Se o projeto é dele, por que precisa de você?
Ele deu de ombros.
– É alguma coisa para o canal do youtube. Sempre que eu participo dos vídeos, eles ganham mais views. Jannis está apenas no início desse projeto, é fundamental essa propaganda extra.
se deu por satisfeita. Pagou a conta e puxou pela mão em direção à fria noite de ano novo londrina.
This clock never seemed so alive
não iria admitir, mas estava feliz por sair da sua zona de conforto. Todo mundo sempre dizia que ele era o certinho, quase uma criança, e nunca tinha feito nada errado. É claro que ele adorava ser assim. Fora isso que o fizera conquistar o seu espaço na seleção principal da Alemanha. Sua dedicação e vontade de sempre querer melhorar.
Passara boa parte do ano escutando que ele era novo demais. Que ele não seria maduro o suficiente para dar conta dos seus desafios. E fora justamente quando se mudou que ele foi para o Brasil disputar as Olimpíadas, exatamente no mesmo dia que ela fora para Londres.
Ele se lembrava da despedida no aeroporto como se tivesse sido no dia anterior. Ela só lhe contara que estava com uma passagem só de ida comprada quando ele entrou na sala de embarque.
– , eu não vou estar aqui quando você voltar.
– O que você está falando, ? – a garota levantou uma passagem junto com o passaporte.
– Estou indo para Londres. Fui aceita a faculdade de artes.
– , isso é fantástico. – ele a abraçou, comemorando. Sabia que não era todo dia que se passava em uma universidade dessas. – Mas você deveria ter me falado antes.
– Se eu tivesse te falado antes, você não teria se dedicado aos seus treinos. Agora vai lá e conquista essa medalha para a gente.
Ele a beijou no rosto antes de entrar na sala de embarque. Ele não trouxe a medalha dourada, mas tinha trazido uma medalha. Um dolorido segundo lugar, mas que, para , significou que ele havia cumprido sua promessa. Havia voltado com uma medalha, independente da cor. E era tudo o que ela havia pedido.
As ruas de Londres estavam mais lotadas do que em uma noite comum. Era ano novo e todo mundo queria comemorar. Famílias estavam em restaurantes tradicionais, com uma geração correndo de um lado para o outro e a outra fazendo força para não dormir sentado nas cadeiras de madeira.
Do outro lado da rua, havia filas e mais filas nas portas das boates. Jovens tentando aproveitar os últimos minutos daquele ano. Alguns simplesmente querendo deixar o passado para trás e outros sonhando com um futuro.
entrou em uma das filas empurrado por . Ele não sabia como se sentir. A curiosidade com o ano que estava por vir era enorme. Estavam no meio do campeonato e o Bayer Leverkusen ainda tinha uma longa trajetória pela frente. Bundesliga, Champions League.
Era agora que as coisas ficavam tensas quando se tratava de futebol e ele sabia que seu desempenho era importante. Em um jogo que ia mal era duramente criticado pela grande mídia e a torcida. Falavam que era um garoto inexperiente que não sabia o que estava fazendo. Mas, naqueles dias nos quais ele marcava e detinha uma boa presença em campo, era ovacionado pela torcida.
E ele ainda tinha a meta de conquistar o maior número de assistências da Bundesliga.
Uma coisa que ele nunca iria entender em uma torcida de futebol: ora te amava, ora te odiava. Nunca entendia que você era humano, tinha dia bons e ruins como qualquer outra pessoa.
Ele abaixou a cabeça e encarou o tênis surrado que usava na noite. Se sentia desconfortável. Não era o vento gelado que deixava seus cabelos arrepiados, era algo além. Algo que ele não sabia dizer.
Era algo maior do que a expectativa para o ano que iria começar. Ele se sentia sozinho, mesmo estado em uma multidão. Olhou para o céu e viu nuvens se formando. Provavelmente logo começaria a chover e eles iriam se encharcar naquela fila infinita para uma boate que ele não queria entrar.
– Vai chover.
– E daí? Você é de açúcar?
– Não, mas não estou afim de ficar encharcado. Estou indo embora, .
Ele saiu andando, ainda olhando para baixo. xingou um palavrão e foi atrás dele.
– , espera aí. Não é assim que funciona.
– Eu só quero ficar em paz. Não sei porquê, mas não estou em clima para festas.
– Este é seu problema! – a garota colocou as mãos na cintura e olhou para ele, que apenas retribuiu o olhar, apesar de estar incomodado com a intensidade que ele tinha. – Você sempre está querendo ficar em paz. Nunca está afim de fazer nada fora da sua zona de conforto.
– , eu faço várias coisas fora da minha zona de conforto. Mas hoje, em especial, não estou afim de entrar em um lugar escuro cheio de gente que eu não conheço e sair às quatro da madrugada surdo de um ouvido.
– Ah, é? Então me dá exemplo de uma coisa que você tenha feito nos últimos meses saindo da sua zona de conforto?
Ele franziu a sobrancelha. Ela tinha mesmo tido a cara de pau de fazer essa pergunta?
Ele poderia citar vários jogos em competições que tinha estreado. Ou talvez naquela própria viagem a qual ele havia saído de seu país completamente sozinho apenas para ver a amiga. não lidava muito bem com momentos em que tinha que ficar sozinho, por mais que morasse sozinho e preferisse ficar no seu canto.
Mas ele ficou olhando para ela. Em algum momento, sentiu borboletas no estômago e se odiou por isso. Abriu a boca para falar algo mas não saiu nenhum som.
olhou para o lado e mordeu o lábio. Claramente incomodada com a falta de palavras dele e reafirmando tudo que ela havia dito. Logo mais o ano começaria e eles virariam ali, no meio da rua, sem nenhuma comemoração especial. Apenas seria meia noite e 2016 ficaria para trás.
respirou fundo. Havia muito tempo que ele queria fazer isso fora da meia noite de um ano para o outro e, se isso não provasse à que ele queria sair da sua zona de conforto, não sabia o que mais provaria.
Rapidamente andou até a garota e segurou seu rosto entre as próprias mãos. Ela entreabriu os lábios, surpresa com a atitude do garoto. chocou seus lábios nos de .
Aquele era um beijo diferente do tradicional. Primeiro porque não havia sido à meia noite. Segundo, porque ele sentiu algo que não sentia antes: borboletas no estômago que não pareciam querer ir embora tão cedo.
Ela o puxou para mais perto com uma mão em sua cintura e a outra em seu pescoço. Sentia o toque dele de uma forma aveludada, carinhosa. Não queria que aquele beijo terminasse, pois tinha medo das consequências que ele traria.
Em algum momento, eles precisaram de ar. se afastou aos poucos, deixando mais perguntas do que respostas entre eles.
Nenhum dos dois soube o que falar. Ainda não era meia noite. Aquilo não era programado. Ela havia perdido todo e qualquer argumento sobre a sua zona de conforto e ele só queria entender o porquê havia feito aquilo.
Sem falar nenhuma palavra, ele foi se afastando aos poucos, indo em direção à rua que o levaria para o hotel. E, mesmo sem tirar os olhos dos de , sabia que algo tinha mudado. Não tinha como tudo continuar igual.
Ela se virou primeiro, voltando para a fila a qual ele a tinha abandonado. não queria admitir, mas se sentia culpado. Quebraram uma tradição que já durava oito anos. E não havia nada que pudesse fazer para corrigir isso.
Your brain gets smart, but your heart gets dumb
chegou no seu quarto de hotel pouco depois da meia noite.
– Feliz 2017. – falou para ninguém em especial.
Sentou-se na cama. Sua cabeça doía, mas, se ele deitasse, sabia que não conseguiria dormir. O que tinha feito?
Sua amizade com só durara até hoje por causa da regra que eles tinham de nunca se apaixonarem um pelo outro. Ele não estava apaixonado. Não poderia. Era de que estavam falando. A sua melhor amiga desde o tempo das fraldas. A que havia estado ali no seu primeiro beijo, no seu primeiro jogo, no seu primeiro coração partido, no seu primeiro título.
era sua segurança. Aquela que estaria ao seu lado em todos os dias, sendo eles bons ou ruins. Não poderia transformar aquela amizade em outra coisa, não daria certo.
resolveu tomar um banho com a tentativa de conseguir pensar melhor. Ligou seu celular em uma música aleatória, esperando que aquela melodia clareasse as coisas. Mas não contava que All The Things she said sairia daquele alto falante. Maldito aleatório.
Aquela havia sido uma das músicas que havia insistido para ele salvar, mesmo não tendo nada a ver com as outras 1400 músicas do celular. Porque eles eram assim, completamente opostos. E, enquanto ele preferia as músicas que tocavam nas rádios, ela sempre conhecia as desconhecidas ou mais antigas. Solos de guitarra e barulhos que geralmente eram demais para .
Mas aquela música, justo naquela noite, fazia todo sentido. Todas as conversas que eles já tinham tido passavam por sua mente enquanto a água quente escorria pelo seu corpo.
Ele se lembrou da vez que, quando eles tinham 13 anos, sua avó perguntou se eles eram namorados. não pensou duas vezes em responder um seco "nunca". Na época, ele apenas riu. E realmente era ridículo a ideia dos dois juntos.
se deitou, ainda sem conseguir entender o que tinha acontecido.
Pegou o celular e respondeu as mensagens de Feliz Ano Novo dos amigos de time e seleção, além da mensagem especial de sua mãe. Mas não havia nenhum sinal de . E, por mais que ele soubesse que isso realmente não aconteceria, sentiu um aperto no seu coração.
estava na boate que deveria ter entrado com ela. Fazia esforço para não se lembrar da textura dos lábios do garoto nos seus, de como seu cabelos loiros eram macios.
Como sempre, ela usou a tática que desenvolvera sempre que a saudade de casa apertava, ou quando não queria resolver algum problema: álcool e alguns beijos em um estranho.
O ano virou e ela nem se deu conta de que tinha passado os primeiros minutos do novo ano nos braços de um desconhecido. Alguém que ela nem sequer se lembraria do rosto no dia seguinte, quem dirá o nome.
Na boate tocavam várias de suas músicas favoritas, não havia sido a toa a sua escolha. All Star, do Smash Mouth, começou a tocar e ela largou o estranho para cantar a música o mais alto possível.
Se aproximou de um grupo de garotas que fazia o mesmo, todas da mesma idade que ela. E se deixou perder naquela letra, naquele momento. No efeito que o álcool causava em seu corpo. Para ela, aquilo era felicidade, e que se fodesse se estava perdendo aquilo.
Mas por que, diabos, estava pensando em ? Por que, diabos, ainda sentia o gosto da boca dele na sua apesar de já ter ficado com outros caras depois?
"Well, the years start coming and they don't stop coming, fed to the rules and I hit the ground running, didn't make sense not to live for fun, your brain gets smart, but your head gets dumb"
– Shit.
Ela saiu pelas ruas londrinas, tentando achar o caminho para o hotel de . Mas não estava em seu estado mais sóbrio e achar o caminho em meio a tantas pessoas não era uma tarefa fácil.
O dia já estava clareando. Ela tinha que correr se quisesse chegar a tempo de encontrá-lo. Não poderia deixá-lo voltar para a Alemanha com as coisas mal resolvidas assim.
Virou a esquina que daria para o hotel. E, a poucos passos, viu entrar em um táxi.
– ! – ela correu em direção a ele.
Mas ele não ouviu. Entrou no táxi em direção ao aeroporto, sentindo uma sensação estranha no estômago. Olhou pela janela para a fachada do hotel. E então viu uma figura de cabelos loiros e a maquiagem totalmente borrada.
Eles se olharam enquanto o carro se distanciava. Agora era tarde demais.
estava voltando para a Alemanha e não fazia ideia de quando reencontraria com .
Spend my days locked in haze, trying to forget you, babe
O aeroporto de Bremen estava vazio. A família esperava o primogênito com uma faixa de boas vindas e feliz ano novo. nunca entendeu essa mania de fazer tanta festa.
Jannis o ajudou com a pequena bagagem e todos se espremeram no carro em direção à casa. No rádio tocava uma música do Linkin Park que fez lembrar de mais uma vez. Durante o voo, a única coisa que ele conseguira pensar fora ela. Se durante todos aqueles anos dos quais eles só se beijavam no ano novo, não tinha uma desculpa por trás, um medo de admitir qualquer coisa.
Sua família queria saber como tinha sido Londres. Ele se limitou a contar os passeios que tinha feito sozinho: a ida ao Big Ben, pequeno passeio na London Eye, Palácio de Buckingham e o Museu de Londres. Foram apenas cinco dias que ele estivera na capital inglesa, mas o suficiente para bagunçar toda a sua vida.
– , quando você precisa voltar para Leverkusen? – Jannis foi o primeiro a levantar a dúvida. Eles sempre gostavam quando estava em casa. As coisas pareciam fluir melhor, mas entendiam suas ausências. Ele estava indo atrás do seu sonho. Ou melhor, vivendo o sonho.
– Na semana que vem.
– Então teremos tempo de rodar aqueles vídeos.
– Estava contando com isso.
Os dois mais velhos da família se abraçaram. estava feliz de estar em casa. Ali era o lugar que ele podia ser ele mesmo que não iriam julgá-lo. Sua família o entendia e Jannis era o melhor amigo que poderia ter, mesmo sendo alguns anos mais novo.
gostava de ter o seu próprio espaço. Seu quarto era arrumado de uma forma metódica, em que os anos passavam, mas a gaveta de cuecas ainda era a mesma, seus livros da escola estavam na mesma sequência na prateleira e ele ainda tinha aqueles CDs com as bandas que faziam sucesso em 2004. Alguns deles que havia deixado ali há alguns anos.
A roupa de cama também era a mesma. Ele não se envergonhava de chegar no quarto e sua colcha com desenhos do espaço ainda existir. Não era como se ele fosse trazer algum dos seus colegas de time para Bremen. Muito menos alguma garota.
Naquele momento, a única garota que ele levaria para casa estava em Londres. E era justamente a mesma que tinha lhe dado de presente alguns dos bonecos de super heróis que ficavam na prateleira em cima da cama. Era a mesma que poucas vezes entrara em casa, porque sua mãe nunca gostara dela, nem quando eles eram crianças e ainda não conhecia delineador.
Ele se jogou na cama, só querendo descansar. À noite, sua mãe faria um jantar e ele não poderia sair da mesa enquanto todos não tivessem acabado, e o sono começava a bater depois de uma noite mal dormida.
A noite de ano novo.
A noite que deveria ter sido especial e, na verdade, tinha se tornado uma bagunça.
pegou o ipad dele na mochila preta de tachinhas, também presente de , e abriu a netflix. Talvez começar a assistir Strangers Things fosse uma ideia, eram apenas 8 episódios e dava para terminar antes de voltar a Leverkusen.
Em algum momento entre o episódio 2 e 3, ele adormeceu.
Ao ver se afastar no táxi, deixou que as lágrimas caíssem. Ela sempre foi contra demonstrar emoções e odiava chorar. Acreditava que precisava ser forte para enfrentar o mundo e sentimentos a faziam ser fraca.
Mas, naquele momento, ela não teve nenhum controle. As pessoas ao redor a olhavam com cara estranha, uma menina com a maquiagem toda borrada e as roupas escuras da noite anterior. Ela estava um caco e não sabia muito bem o que fazer.
voltou para casa andando. Não fazia ideia de onde estava seu celular e sabia que provavelmente levaria uma bronca da mãe quando contasse que perdera o aparelho. Era o terceiro desde que se mudara para Londres, em agosto.
Seu pequeno loft estava gelado. O aquecedor deveria estar estragado de novo. A louça suja na pia mostrava seu total descaso por arrumações. Sua cama ainda estava toda abarrotada com os lençóis da última noite que havia dormido em casa, e ela nem lembrava quando fora.
Geralmente, ela aproveitava o período de férias para voltar para casa na Alemanha, mas, naquele ano, ela só queria distância da família. Estava tão acostumada a ficar sozinha que quando voltava só sabia ficar irritada e brigar com todos.
Com todo mundo menos . Ele era a único que não a deixava irritada, pelo contrário, ele a entendia. Mas ela não poderia permitir que ele controlasse sua vida, mesmo que fosse ela quem tivesse projetado essa imagem nele.
Pegou seu ipod, guardado na gaveta do móvel de cabeceira, e o conectou no amplificador. “Stay High”, do Our Last Night, começou a tocar no volume máximo. Era incrível como aquela música se encaixava na sua vida naquele momento.
começou a cantar junto com a banda enquanto abria uma garrafa de cerveja. Sua geladeira tinha apenas cervejas e pizza congelada. Seu estilo de vida londrino era completamente diferente do que ela tinha imaginado. Aos poucos ela estava se tornando apenas uma imagem do que fora um dia. E ninguém saberia disso.
– Trying to forget you, babe, I fall back down. Gotta stay high all my life to forget I'm missing you.
Lucifer might be your middle name, you’re the only angel that get away
– , que cara de quem comeu e não gostou é essa?
– Está mais para cara de quem não comeu.
– O quê? – Sara olhou para a amiga sem entender.
não tinha feito muitas amizades em Londres, mas Sara era uma das meninas do seu curso que ela gostava, apesar de ser completamente o oposto de .
Sara gostava de música pop e sempre estava cantarolando alguma música do Little Mix, enquanto odiava essas bandas e amava quando podia colocar um fone de ouvido e escutar algum punk rock. Sara tinha um estilo toda garotinha e sempre prendia seu cabelo ruivo natural em um rabo de cavalo alto que combinava com seus vestidos, enquanto usava seu enorme cabelo loiro descolorido o mais bagunçado possível e abusava do couro em seu estilo.
nem sempre tinha sido assim. Apesar de gostar de exagerar na maquiagem, ela costumava ser bem amável. Sempre pensando nos outros à frente dela mesma. Mas a vida havia feito com que ela se fechasse e aprontasse coisas que seus pais jamais aprovariam, entre outras que Sara fazia questão de relevar no comportamento da amiga.
Sara era uma boa ouvinte, apesar de ser uma das pessoas mais falantes que conhecia. Mas ela conseguia ser bem devagar às vezes e não fazia ideia de quem era . Sara havia parado de acompanhar futebol depois que David Beckham foi para o Real Madrid.
Mas Sara sabia que tinha alguém na Alemanha. Alguém que significava mais do que ela dizia ser. Alguém que tinha o apelido de .
– , conversa comigo. É aquele garoto, não é?
olhou para a sua mesa vazia. Já tinha um tempo que ela não levava nem sequer caderno para as aulas. Todo mundo dizia que ela estava vivendo o sonho quando, na verdade, não fazia ideia do que era esse sonho.
Ela prendeu o cabelo em um rabo de cavalo com as mãos, antes de soltar as ondas quase brancas nas costas.
– Ele veio passar o réveillon aqui. E digamos que as coisas não aconteceram como eu queria que acontecessem.
O professor de design ainda não tinha entrado na sala e os demais colegas estavam dormindo ou mexendo nos seus aparelhos celulares para prestar atenção na conversa das meninas no fundo da sala.
– Vocês têm aquela coisa estranha de se beijar na virada do ano e eu juro que nunca consegui entender. Vocês fazem isso há quanto tempo? Dois anos? Três?
– Oito.
– What the… ! Como assim?
não estava muito afim de explicar como seu estranho relacionamento com funcionava. Para sorte dela, o professor entrou na sala no momento, dando cinquenta minutos de tempo para que ela conseguisse pensar numa desculpa para Sara.
– Isso ainda é por conta daquela garota, não é? – Jannis perguntou para por detrás da câmera.
Já era o quarto dia que estava em casa e a única coisa que ele tinha feito, além de ficar jogado na cama vendo Netflix, tinha sido ajudar Jannis com o trabalho. Jannis tinha apenas 18 anos, mas já sabia que queria trabalhar com filmagens e mídias. costumava dizer que ele tinha escolhido a profissão por trás das câmeras para que os dois não competissem. Mas Jannis claramente era mais fotogênico que , não era atoa que sempre tinha alguma marca pedindo para ele modelar.
Ou pelo menos ele se importava menos com a câmera.
soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo. Sentou no gramado da sua casa de perna cruzada. Jannis deixou a câmera descansar em cima do tripé e sentou ao lado do irmão.
– Você sabe que pode falar comigo sobre a , né?
– Posso? A gente se conhece desde que éramos bebês. Isso é tudo tão estranho.
– Se não fosse estranho, seria estranho. – começou a rir do irmão e sua redundância. – Você entendeu!
– Entendi. Só não sei como resolver isso ainda. A gente se beijou em Londres.
olhou para o chão, brincando com uma folha da grama enquanto Jannis franziu a testa olhando para o irmão.
– Mas achei que você tinha ido para Londres exatamente para beijá-la. Vocês não têm aquela tradução maluca do primeiro beijo do ano ter que ser um com o outro?
– O problema é que não nos beijamos no réveillon. Foi, sim, no dia 31, mas estava longe da meia noite. E estávamos meio que brigando e não falei com ela desde então.
– Tem uma semana que vocês não conversam?
– Por aí. – cansou do interrogatório e se levantou.
Jannis foi atrás do irmão, querendo saber a história completa. não poderia simplesmente soltar uma bomba dessas e sair andando como se estivesse tudo bem, mas ele não foi rápido o suficiente e o mais velho já tinha se trancado no quarto.
tentou ler algum livro, dormir, ver série, mas nada estava ajudando. Buscou o seu celular, esquecido em cima da mesa de cabeceira carregando. Algumas mensagens no grupo do Leverkusen, provavelmente milhares de fotos de diversos jogadores tentando competir quem estava em um lugar mais paradisíaco que o outro.
O grupo de com os amigos da seleção olímpica tinha algumas poucas mensagens, a maioria delas de Leon e Max. Depois ele responderia os meninos, mas naquele momento não estava interessado no que quer que eles poderiam dizer.
E então ali estava. A conversa de . Os dois tracinhos azuis mostrando que ela visualizou sua mensagem avisando que tinha chegado em casa. Ele sabia que não tinha nenhuma obrigação em comunicá-la de nada, mas sentiu que precisava falar algo.
Mas alguma coisa estava diferente na dinâmica e , e ele sabia muito bem o que isso significava: uma tempestade estava se aproximando. Só não tinha certeza do que os esperaria no final: tudo destruído ou o paraíso.
I still regret the day that we said goodbye, and do you think of me at night?
Voltar para Leverkusen havia sido difícil. Provavelmente aquela fora a vez mais difícil que dissera “adeus” à sua casa. Era até ridículo dizer que ele sentia toda essa dor ao se despedir dos pais depois de 7 anos longe de casa. Principalmente quando ele sabia que sempre poderia voltar.
Mas ele nunca esteve tão perdido como aquela vez. Uma responsabilidade enorme recaía em seus ombros dentro de campo: Champions League, se manter em uma posição razoável na Bundesliga. É claro que ele não estaria sozinho nessa missão, mas isso não significava que era fácil. Na próxima semana, iria para os Estados Unidos disputar a Florida Cup, e, apesar de estar animado com a viagem, estava triste que não teria tempo de visitar a Disney.
A Copa das Confederações também estava chegando e ele queria muito ter um lugar na seleção alemã que disputaria o torneio. Já estava sonhando em jogar novamente ao lado de Leon e Joshua. Fora alguns de seus ídolos que eventualmente seriam convocados.
Para isso, ele precisava ir bem nos jogos da Bundesliga, e, principalmente, nos amistosos que estavam por vir, entre eles a despedida de Lukas Podolski, que aconteceria em março. Ele tinha muita coisa para se preocupar e, ainda assim, o desejo de ficar na sua casa em Bremem era maior do que todos os outros motivos.
Lá, ele teria com quem conversar ao chegar em casa. Tinha o irmão, com quem jogar videogame, poderia ajudar a mãe na cozinha e seu pai sempre tinha algum assunto importante sobre as notícias pra discutir com ele, tinha Nala, com quem passeava todos os dias no parque, unindo o útil ao agradável. era um garoto de família e ele tinha orgulho disso.
Mas, ao chegar em Leverkusen, todo o baque de estar sozinho novamente pegou despreparado. Ele fechou a porta de seu apartamento e sentiu as lágrimas começarem a cair de novo. Tinha mil motivos pelos quais poderiam estar chorando, mas odiava pensar que um deles fosse .
Ela não havia respondido a sua mensagem quinze dias atrás, e ele assumira que aquilo significava que ela não o queria. Que ele deveria esquecê-la, mas quem disse que isso era fácil. Sua vontade era pegar um avião de volta a Londres e bater direto no apartamento dela exigindo que lhe explicasse o porquê. O que ele tinha de tão errado para ela? O que estava acontecendo com eles?
Mas sabia que essa atitude não seria muito positiva, pelo contrário. bateria a porta na cara dele e só pioraria ainda mais a situação. Isso e o treino que o aguardava pela manhã.
Resolveu deixar para desarrumar a mala no dia seguinte. Tomou um banho e se aqueceu debaixo dos cobertores na sua cama de casal, que nunca parecera tão solitária.
observava a chuva bater na sua janela. Ela tentava, sem sucesso, fazer o trabalho para a matéria de designer. Era um desenho simples de um vestido, algo que ela fazia por hobby todos os dias.
Mas ela estava bloqueada. Algo a travava e o lápis simplesmente não deslizava no papel. Seus pensamentos estavam embaçados e tudo que ela conseguia pensar era como sua vida era ainda em Bremen.
Ela ainda estava no ensino médio e, apesar da quantidade absurda de matéria para estudar, ela tinha tempo de conversar com no primeiro ano em que eles ficaram longe. O contato dele era o primeiro do seu Whatsapp na época em que o aplicativo era apenas novidade.
Era estranho pensar que apenas 5 anos tinham se passado. Parecia muito mais. O avanço da tecnologia dava essa sensação. Ela já estava acostumada a passar tanto tempo longe dele, mas odiava que eles não conversavam.
Se lembrava do dia que ele contara, todo orgulhoso, que tinha sido chamado para jogar no Wolfsburg, em 2011. Ambos sabiam que aquele seria o início da carreira dele.
tinha ido em seu jogo de estreia, e, apesar de ele não ter marcado nenhum gol, ela foi até no final do jogo e o abraçou.
– Desculpa que não marquei seu gol. – ele se desculpou, lembrando da promessa que tinha feito a ela.
– Não tem problema. Tenho certeza que você marcará diversos gols ainda.
Na época eles tinham 15 anos e ainda tinha uma cara de criança. Seus olhos não eram marcados por delineador e seus cabelos loiros batiam no seus ombros. tinha a necessidade de cuidar dela o tempo inteiro.
Quem diria que, pouco tempo depois, ela seria dona do próprio nariz morando em outro país.
Voltando para o presente, desistiu de fazer o trabalho e aceitou o zero que levaria no dia seguinte. Buscou seu celular.
Já estava quase no final de fevereiro e estava na hora dela deixar o orgulho de lado.
: Você está aí?
I want you to know: with everything, I won't let this go, these words are my heart and soul
acordou às três da manhã e perdeu o sono. Ele odiava quando isso acontecia, porque significava um treino ruim no dia seguinte. gostava de dar o máximo de si em tudo que fazia e, se algo o impedisse disso, ele ficava bem chateado.
Seu celular vibrou com uma mensagem. O barulho parecia muito maior do que de fato era no silêncio do seu apartamento. Mas o susto ao ler o nome de quem mandava mensagem àquela hora foi maior do que a raiva de ter sido acordado de madrugada.
: Você está aí?
Fazia meses que não tinha notícias de . Ele imaginou que, depois daquele beijo, ela nunca mais fosse querer falar com ele. Não entendia como aquilo poderia ser diferente dos beijos na virada do ano. Ou melhor, fingia que não entendia.
sabia muito bem o que aquilo significava para ele e . Os dois haviam quebrado uma tradição que havia sido criada justamente para impedi-los de estragar a amizade.
Mas, no fundo, os dois estavam apenas enganando a si mesmos. gostava de desde que era criança. Ele a conhecia melhor do que ninguém, e, se tinha uma coisa que ele tinha certeza, era que nunca tinha sido apenas uma amiga.
sentira ciúmes de todos os namorados que a menina tinha tido. Ele nunca achava que alguém seria o suficiente para ela, mas também se culpava por nunca ter feito nada para mostrá-la do contrário.
Eles eram amigos.
Ou pelo menos era a mentira que contavam repetidas vezes para si mesmos.
: Infelizmente estou.
: Meu Deus, eu não te acordei, né?
: me desculpa. Esqueci completamente do horário.
: hahaha
: tudo bem. Meu celular está no não perturbe. Nem sei porquê acordei.
sentiu que tinha algo errado. Não só em toda aquela situação, mas algo errado com ele. nunca era seco para respondê-la e ele raramente perdia o sono.
: Está tudo bem?
: Está sim. Muita coisa na cabeça apenas.
E ali estava. O código dele para eu não quero falar sobre isso. E ela odiava saber que o motivo do qual ele não queria conversar era ela. havia dado um gelo de dois meses em . Agora era a vez dele de retribuir.
Mas, diferente dela, o gelo dele não era simplesmente sumir, ele a deixava de fora das coisas que faziam questão de compartilharem um com o outro.
: Espero que as coisas se resolvam.
: Elas vão, sim.
: , o sono chegou. Amanhã acordo cedo. Fica bem, tá?
: Você também.
Ela queria fazer mais sobre tudo isso que estava acontecendo, mas não tinha ideia de por onde começar. Se levantou, olhando o relógio: eram 2:20. Resolveu fazer um chá e fingir para si mesma que estava tudo bem.
Londres nunca tinha tido uma madrugada tão gelada. Ou talvez fosse apenas como se sentia.
15 de Março. ainda não estava conversando com . Ela sempre mandava alguma mensagem querendo notícias dele, mas ele sempre era superficial. Ele tinha mais coisas com o que se preocupar do que com a amiga.
Naquele dia, ele estava na Espanha. O jogo de volta da Champions League. Precisavam ganhar com uma diferença de dois gols contra o Atlético de Madrid. E, apesar de todas as estatísticas, estava confiante.
Ele entrou em campo como titular. Como sempre, segurando a manga da camisa de manga comprida. Era uma coisa singela que ele sempre fazia quando estava nervoso. Uma mania infantil mas que ele não conseguia desapegar.
Quando ele era criança, ele tinha diversos ataques de raiva. Tinha vontade de socar paredes, mesas e inclusive chutar bolas de futebol contra janelas de vidro. Seus pais, preocupados com a atitude agressiva, o levaram em um psicólogo, que o orientou a sempre jogar sentimentos negativos nas palmas das mãos. Desde então, ele havia melhorado, mas os ataques de raiva passaram a ser pequenas crises de ansiedade e, da mesma forma que havia feito quando pequeno, também colocava esses sentimentos nas mãos.
O hino da Champions sempre o deixava animado. Era uma das suas músicas preferidas, se é que poderia chamar aquilo de música, e ele estava feliz de poder jogar a competição naquele ano. Observou o estádio lotado. Todos aqueles torcedores do seu rival. estava com medo. Medo de uma derrota. Medo de decepcionar.
Ele odiava quando perdia um jogo, sempre ficava se perguntando o que poderia ter feito diferente. Mas, com o tempo, estava aprendendo a ter mais paciência. Não era todo dia que se ganhava, mas tinha dias que isso acontecia. E ele só poderia aproveitar cada um desse segundos de vitória. Mas, naquela noite em março, era um dia dos quais o resultado não seria positivo para o Bayer Leverkusen. fora substituído no segundo tempo e assistiu do banco o time empatar o jogo contra o Atlético de Madrid.
O resultado isolado do jogo poderia até ser favorável: eles haviam segurado um time grande dentro da própria casa. Mas, como era o jogo de volta, significava que o Leverkusen tinha sido eliminado da Champions League.
Saiu cabisbaixo do campo em direção ao vestiário mas, antes de entrar, escutou seu nome sendo chamado. Era vestida com uma camisa do Leverkusen e um sorriso triste no rosto.
Era a primeira vez que eles se viam em três meses.
Don't want to close my eyes, I don't want to fall asleep
não tinha pensado muito ao pegar o avião para a Espanha. Eles ficaram três meses sem conversar e isso havia sido um recorde, a última vez havia sido quando foi para Disney com sua família passar quinze dias e não teve como levar o celular. Na época não existiam smartphones e teve que se contentar em esperar a amiga voltar.
Mas naquela época tinha sido por um bom motivo. Agora as coisas eram diferentes. Eles não eram mais crianças e as coisas não eram tão simples. ficou sem reação ao ver na arquibancada. Ele lembrava quando tinha dado aquela camisa para ela, ainda no seu primeiro ano do time. havia dito que jamais usaria aquela blusa, estragaria todos os looks que ela poderia imaginar. No entanto, naquele momento, ela nunca pareceu tão linda aos olhos de .
Eles ainda estavam separados pelas grades, mas ele ficou parado no corredor sem saber o que fazer. Queria ir até ela, mas e aí? O que dizer? O que fazer? Ele não fazia ideia do que se passava na cabeça de , mas a presença dela ali deveria ser um bom sinal.
– , você vai ficar parado aí? – Marlon Frey, um dos seus colegas de time, tentava passar no corredor onde bloqueava a passagem.
– Desculpa. – chegou para o lado e, ao voltar o olhar para a arquibancada, não estava mais ali. Será que ele estava ficando louco e tinha alucinado com a imagem da garota?
Ele sacudiu a cabeça e seguiu até o vestiário. Nunca demorou tanto em um banho. Não sabia o que era pior: ter perdido o jogo ou estar imaginando na arquibancada.
Claro que não seria ela. jamais usaria aquela camiseta.
sentiu seu nariz formigar, indícios de que queria começar a chorar. Mas ele engoliu o choro, porque não queria dar explicações, já bastava o nariz que com certeza estaria vermelho.
Ele saiu do banho enrolado na toalha e se trocou sem olhar para o lado. Estava dentro da sua bolha e qualquer um que olhasse para ele teria certeza que era melhor deixá-lo quieto.
Era hora de voltar para o hotel, onde ficariam até a hora do voo na manhã seguinte. colocou os fones de ouvido e, cabisbaixo, entrou no ônibus. Ele não sabia se tinha dormido ou se o trânsito depois do jogo estava melhor, mas parecia que o trajeto de volta tinha sido mais rápido do que o de ida.
gostava da Espanha, mas ele odiava Madrid. Não sabia explicar porquê tomara antipatia com aquela cidade, mas ela estava longe de estar na lista de favoritas dele.
O clima no ônibus era pesado. Todo mundo estava cansado e decepcionado. Sabiam que era um jogo difícil, mas ainda assim tinham entrado buscando uma classificação. às vezes se frustrava com essa rotina do Bayer Leverkusen. Às vezes ele pensava que queria mais. Mas ele também sabia que títulos não eram tudo quando se tratava de futebol.
O técnico avisou que saíriam às 7 na manhã seguinte e liberou para que todos fossem para os quartos. colocou a mochila nos ombros e desceu do ônibus. Ele já ia passar direto pela recepção quando percebeu que não era uma miragem. Ele ainda não estava ficando louco. estava parada na porta do hotel, onde provavelmente tinha sido barrada por algum segurança por não ter credencial. se aproximou dela e os dois ficaram se olhando por um bom tempo, sem dizer uma palavra.
Ele queria dizer que tinha sentido a falta dela. Ela queria dizer que tinha sido idiota. Nenhum dos dois queria admitir o que de fato sentiam.
Ficaram naquele jogo sem saber quem começaria a falar até que ela resolveu começar.
– Eu fui atrás de você em Londres.
– Eu sei.
– Eu não deveria ter demorado tanto.
– Eu sei.
– Você não vai falar mais do que “eu sei”?
sorriu com a indagação tão típica de .
– O que você quer que eu fale?
– Qualquer coisa! – ela deu de ombros e ele mordeu o lábio. Iria continuar mais um pouco com aquele jogo.
– Qualquer coisa.
– !
– .
Os dois começaram a gargalhar como se fossem duas crianças brincando no parque de diversões.
– Você é um idiota, sabia? – ela disse, ainda rindo, enquanto deu um soco de leve no braço dele.
– Eu sei.
– Para! – mais uma crise de riso vinda dos dois.
Eles sabiam que tinham muitas coisas importantes para conversar, mas, naquele momento, eles poderiam usar uma trégua. Poderiam aproveitar um pouco de paz enquanto matavam a saudade de meses sem se falar.
– Você quer subir? – ele apontou para a entrada do hotel.
– Você não vai se meter em nenhuma encrenca por isso?
– Nah, tô no quarto sozinho. Acho que ninguém queria aturar o meu mal humor.
abraçou pelos ombros e ela passou o braço pela cintura dele. Abraçados, subiram os elevadores até o quarto de , no décimo andar.
Your eyes look like coming home, all I know is a simple name, everything has changed
olhou ao redor. Aquele quarto era maior do que seu apartamento em Londres. Uma televisão enorme, o carpete verde e a cama de casal. De repente, se sentiu extremamente cansada.
– Serviço de quarto? – perguntou, levantando o cardápio e se jogando na cama.
sorriu ao ver que o amigo não a trataria de forma diferente. Eles ainda eram os meses.
– Só se for um hambúrguer de 3 andares. – tirou os sapatos e se jogou ao lado de , que rapidamente falou em inglês com a recepção.
fechou os olhos e deixou que aquela paz a preenchesse. Tinha meses que ela não se sentia assim e tinha medo de que tudo poderia mudar no segundo que abrisse a boca. não estava diferente. Ele queria se abrir sobre tudo que se passava em sua mente, mas não queria estragar aquela paz.
Nenhum dos dois fazia ideia de quanto tempo eles ficaram ali, apenas em silêncio, encarando um ao outro. Eles se olhavam como se tentassem memorizar cada detalhe do que eles ainda tinham. queria deixar na memória como que, mesmo depois de algumas horas, ainda estava vermelho por causa do exercício físico, seu cabelo loiro, quase branco, precisava de um corte e seu sorriso infantil não deixava de existir, apesar dos seus 20 anos de idade.
queria dizer que o que sentia por era mais do que amizade, que ela queria beijá-lo e só parar no dia seguinte. Mas ali, depois de três meses daquele beijo fora de época, ela não conseguia definir o que sentia. Ele ainda era o que a deixava em paz, mas não era a mesma coisa.
Era como se o tempo tivesse passado e não fosse mais a mesma daquela noite. Ou talvez tudo aquilo tinha sido apenas um erro. Um sentimento fora de ordem por causa da tradição quebrada. Uma confusão que os dois apenas tentaram varrer para debaixo do tapete.
– A gente não deveria nunca mais se beijar. – foi o primeiro a quebrar o silêncio e os dois caíram na gargalhada.
– Eu concordo! Aquilo foi muito estranho. E o que veio depois… Isso não é a gente, . – se sentou na cama, aliviada de saber que não era só ela quem estava pensando daquela forma.
– Amigos?
– Sempre.
acordou na manhã seguinte sentindo o sol bater no seu rosto. Deveriam ser umas 6 da manhã, mas ela sentia que talvez fosse muito mais. Sua cabeça doía como se ela tivesse tomado todas as tequilas possíveis em um bar, porém ela sabia que não tinha saído do quarto de .
O quarto de . Ela deu um pulo na cama e percebeu que estava nua. O jogador ainda dormia ao seu lado, mas ela não poderia ficar ali mais um minuto sequer. Rapidamente vestiu suas roupas que estavam espalhadas pelo quarto e tentou lembrar o que tinha acontecido na noite passada. Como era possível terem passado de “somos só amigos” para “vamos transar como se não houvesse amanhã?”.
Mas, antes que pudesse abrir a porta do quarto, acordou.
– O que você está fazendo?
– Indo embora.
Foi a vez de pular da cama, todo desastrado, enrolado no lençol.
– , não vai. Por favor. – ele tinha lágrimas em seus olhos. – Não podemos mais nos enganar assim. Acho que a noite passada provou isso. Chega de fugir, por favor.
queria dizer que ela iria ficar. Queria dizer para que desde Dezembro ela não o via como um simples amigo. Queria contar das aulas que passou pensando nele e em como todos ao seu redor sabiam que ela estava completamente apaixonada por ele. Mas ela não queria se sentir vulnerável. sempre foi fechada sobre seus sentimentos e, quanto mais ela pudesse ignorá-los, mais ela se sentia feliz.
Ou pelo menos tinha sido assim até aquele dia. olhando para ela enquanto ela tentava ir embora estava partido seu coração em dois pedaços. Ela não sabia como os dois tinham acabado na cama na noite anterior, talvez tinham sido as cervejas junto dos hambúrgueres, ou talvez tinham sido todos aqueles sentimentos reprimidos.
sabia que, se ela fosse embora, ela estaria tirando da sua vida de vez. Não teriam sorrisos, primeira camisa profissional ou viagens à Espanha que fariam com que a perdoasse. Ela não poderia acabar com aquilo dessa forma, era cruel até para ela.
Deixou com que a bolsa e a jaqueta caíssem no chão e permitiu que a abraçasse.
– Eu não vou a lugar nenhum. – sussurrou em seu ouvido, tendo consciência que aquilo também não teria volta.
– Se você fosse, eu faria você voltar.
segurou o rosto de entre suas mãos, seus olhos nos dela tentando ler cada mínimo pensamento que pudesse transparecer. Então ela cansou de esperar que ele tomasse atitude e aproximou seus lábios, fechando os olhos ao sentir o calor da boca de trazendo de volta toda a paz que ela precisava, eliminando toda a angústia e ansiedade dos últimos três meses. Eles ficariam bem.
Aquela poderia ser o maior erro da sua vida, mas também poderia ser a coisa que mudaria tudo. Mas, naquele momento, não teria como saber. Era apenas uma das coisas na vida da qual não temos o controle: você conhece alguém uma vida inteira e então, sem mais nem menos, aquela pessoa deixa de ser o seu amiguinho do prézinho e passa a ser o homem dos seus sonhos. Passa a ser tudo o que você nem sabia que precisava.
Tradições existem para serem seguidas. Mas, às vezes, quebrá-las pode ter um resultado mais interessante do que continuar persistindo na sua zona de conforto.
Epílogo
5 meses depois
– Você precisa ir logo, ! Anda! É o primeiro jogo da temporada, você não pode se atrasar.
– É contra o Bayern, , não estou animado para perder. – ainda enrolava para fechar a mochila de treino antes de ir para a concentração pré-jogo.
– Vocês não vão perder!
– Ah, vamos sim. – falou embolado enquanto escovava os dentes.
– Tá, mas e daí? Você ainda vai ter que entrar naquele campo e jogar. – cruzou os braços na porta do banheiro, olhando para o namorado.
Ela tinha trancado o curso de moda e voltado para a Alemanha, mas agora morava em Leverkusen com . Eles tinham escutado que era loucura morarem juntos tão rápido e muita gente tinha julgado de ter abandonado o “sonho” da faculdade.
O que as pessoas não entendiam era que nunca tinha sido feliz em Londres. Não era um sonho morar longe de todos os seus amigos, fazer um curso do qual ela não tinha certeza se teria futuro e muito menos mentir para si mesma que não sentia falta de .
Ela estava cansada das pessoas dizendo a ela o que ela deveria querer. Estava cansada de tomar decisões em cima das escolhas dos seus pais e ter que atender às expectativas. simplesmente havia tomado as rédeas da sua vida ao abandonar aquela vida. Aquilo não era ela, e estava na hora dela começar a viver.
– Você vai para o jogo, não é?
– Com certeza!
– Vou precisar de você quando a gente perder. – revirou os olhos para a negatividade de , mas o beijou antes de entregar as chaves do carro e deixá-lo ir.
O Bayer Leverkusen havia perdido de 3 a 1 para o Bayern de Munique. sabia que escutaria de mais tarde que ele estava certo, eles não tinham chance contra o campeão da Bundesliga.
Mas ela não se importava, porque ela iria sorrir e comemorar a assistência que ele dera ao único gol do Leverkusen. Era a estreia daquela camisa 10, que teria para um peso muito maior do que normalmente tinha: 10 era um número simbólico para eles. 10 era o número de anos em que eles se conheciam. Havia sido o tempo que levaram para perceber que se amavam e não deixaria fugir nunca mais.
Fazia um ano que tinha ido sozinho para Londres. Um ano que ele e haviam quebrado a tradição. Mas será que realmente tinham quebrado?
Dessa vez, eles tinham resolvido passar ano novo em um país tropical, mas eles não estavam conseguindo de jeito nenhum chegar a um acordo. De início, deu ideia de irem para Dubai. Todo mundo ia para Dubai e ele nunca tinha tido a chance de fazer essa viagem, mas reclamou justamente que todo mundo ia para Dubai.
– Você passa o ano quase todo trabalhando com esses caras, por que vai querer passar suas férias com eles também?
– Então o que você sugere? – os dois estavam sentados no chão da sala do apartamento que dividiam em Leverkusen, na televisão passava alguma reprise do The Voice, mas nenhum dos dois prestava atenção.
– Brasil? – fez careta.
– Já fui ano passado e não sei se estou com vontade de turistar.
– Austrália? – sugeriu, ainda insistindo em um país com clima tropical.
– O ano novo chega cedo demais lá. – criticou.
sabia que quando o namorado ficava assim, era porque ele já tinha um lugar em mente. Ela odiava ter que adivinhar o que se passava pela cabeça de e porquê que ele tinha tanta dificuldade em simplesmente admitir o que ele queria.
– Aonde você quer ir, ? E nem invente de dizer Londres.
– Na verdade, eu estava pensando em Nova York…
Os olhos de brilharam com essa ideia. Ela nunca tinha ido para Nova York antes e era um sonho conhecer a cidade que nunca dorme.
– Vamos.
– Mas vai estar frio. Você não queria fugir do frio?
– Tanto faz. É Nova York. – já procurava as passagens aéreas e o hotel mais perto possível da Times Square.
Ao pousar no JFK, no dia 30 de Dezembro, sentia que aquele era um novo início. 2018 só tinha promessas boas para a sua vida profissional, e saber que estava ali com ele sem dúvidas fazia com que aquele réveillon fosse diferente dos outros.
Nova York estava debaixo de neve. Para onde se olhava estava branco. Os jornais tinham noticiado que aquele era o inverno mais rigoroso do continente norte-americano desde muitos anos.
amava aquele clima. Ela sempre gostou de frio e neve. Sem falar que era o seu melhor guarda roupa.
– Vamos logo deixar as malas no hotel e ir para o Central Park.
– Central Park? , eu não quero morrer congelado. – fechava ainda mais o casaco ao entrar no táxi.
– Até parece que você não é alemão. Larga de frescura, .
E, em poucas horas, e estavam fazendo bonecos de neve e patinando no parque mais famoso do mundo.
se sentia tão viva como há muito tempo não sentia. Viradas do ano sempre a deixava animada, mas aquela parecia estar sendo diferente. Para começar, ela tinha certeza que não teria brigas. À meia noite ela tinha quem beijar, o mesmo que ela beijava há tantos anos, mas, naquele ano, também era seu namorado.
Essa palavra poderia não significar muita coisa, mas, para e , mostrava que eles haviam crescido. Eles não eram mais os mesmos de um ano atrás. Eles haviam parado de fugir.
Era estranho o quando uma pessoa poderia mudar em um ano. Ou talvez o quanto um ano mudava a pessoa. Os fatos, os sentimentos, as vitórias, as decepções. 365 dias em que eles tinham sentido de tudo.
E agora teriam mais 365 para viverem ainda mais.
e andavam pelas ruas da cidade em direção à Times Square, onde aconteceria a contagem regressiva para 2018 em breve. estava encantada com tudo que aquela cidade representava e ela com certeza queria fazer dessa viagem mais uma tradição.
– Ei, o que você acha de mudarmos nossa tradição? – ela falou para , o virando de frente ao lado da famosa escada vermelha.
– Qual tradição?
– Nós sempre nos beijamos à meia noite, mas acho que isso não é mais especial. Agora eu posso te beijar a hora que eu quiser, o dia que eu quiser.
– Tipo assim? – puxou para um beijo, apenas porque eles podiam. Sabiam que as pessoas olhariam de forma estranha para eles, mas nenhum dos dois se importava.
– Exatamente o que eu quero dizer! Qual a diferença desse beijo para qualquer outro que teríamos à meia noite? Precisamos de algo novo!
– E o que você propõe?
– Que essa viagem se torne uma tradição. Essa cidade, esse clima. Algo apenas de nós dois.
olhou em volta. O relógio marcava 11:59 e, em breve, todos os olhares estariam atentos à festa no céu.
– Eu gosto dessa ideia. Nova York é mesmo uma cidade mágica.
5.
– Então temos uma nova tradição.
4.
– Temos.
3.
– Ei, .
2
– Oi.
1
– Eu amo você.