Última atualização: 02/07/2021
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Prólogo

Londres, Maio de 1837

Mais uma vez sentada em sua cadeira estrategicamente escolhida, em um canto do salão de baile, Lady Percy olhou ao redor, como sempre surpresa com o que seus olhos testemunhavam.
Moças e rapazes tão jovens quanto ela, e outras damas e cavalheiros de variadas idades, incluindo até mesmo sua tia-avó viúva, se divertiam extremamente, dançando, caminhando pelos cômodos da Casa Ravenel ou conversando em grupos animados.
Ela até podia compreender a predisposição dos jovens que, assim como ela, tinham nos eventos sociais londrinos a melhor oportunidade de fisgar maridos e esposas, o que era necessário, para homens e mulheres, por diferentes motivos. Porém não entendia o que senhoras casadas viam de especial naquelas atividades. Para ela, dançar era um tormento! Caminhar lentamente dentro de uma casa, indo do salão de baile à sala de visitas, passando pelo salão de jogos e então voltando, não tinha nenhuma lógica! E as conversas costumavam versar sobre… Ela nem sequer conseguia se lembrar, porque nunca eram sobre nada que pudesse despertar minimamente seu interesse.
Ainda assim, ela podia perceber que cada baile era desfrutado com prazer pela maioria dos convidados, ainda que, ao mesmo tempo, mantivessem quase todos um semblante levemente entediado, simplesmente porque demonstrar muito entusiasmo não era considerado elegante.
Definitivamente, não conseguia entender a aristocracia! Mesmo que fizesse parte dela há exatos dezessete anos, três meses e doze longos dias.
Talvez fosse porque até então não tivesse participado de nenhuma temporada social na cidade, tendo permanecido quase o tempo todo no campo, na residência principal da família. Entretanto, ela apostaria que não, se lhe fosse permitida tal aposta. Julgava que era apenas muito diferente deles – e do que se esperava dela, já que era parte deles! Simples assim – ainda que “simples” fosse justamente o extremo oposto do que tinha sido toda a sua vida, e especialmente as últimas semanas, por causa de tal diferença.
Ela estava tão distraída, observando a anfitriã, Lady Christine Ravenel, Viscondessa de Middlemarch, que se dirigia ao centro do salão com Lorde Edmond Buttler, Conde de Penbury, e se perguntando se algum dia seria capaz de não somente se acostumar a todos aqueles eventos como desejar organizar um deles e se esmerar para que fosse um dos grandes sucessos da temporada, que se assustou com a aproximação de Sir Colin Bedwyn. Havia esquecido totalmente que prometera quase todas as danças da noite a algum distinto cavalheiro e que a próxima quadrilha tinha sido reservada ao rapaz, o filho caçula do Marquês de Dain.
Tinha conseguido se recolher ao cantinho do aposento em que gostaria de poder permanecer, depois de dançar sem acidentes com o filho do Barão de Ainswood, e então ficara apenas observando os casais rodopiarem ao som da valsa. Agora, contudo, não teria escapatória. Deveria voltar a enfrentar a difícil tarefa de executar passos que lhe exigiam uma concentração enorme (ela tinha feito aulas, ao longo dos últimos anos, para que estivesse preparada quando a hora de seu debut chegasse, mas mesmo em um milhão de anos não poderia ter se considerado nem remotamente pronta!), enquanto normalmente seu parceiro cismava em tentar manter um diálogo educado ao qual seria extremamente descortês não responder.
Felizmente, a dança com Bedwyn chegou ao fim sem que os pés do rapaz sofressem nenhum dano, e também se sentia íntegra. Então não pode nem pensar em seu desejo de se esconder nas sombras, porque passou da companhia do jovem lorde à de seu velho tio Sebastian, e depois à de seu cunhado, o Duque de Penderris, antes de ser conduzida por mais alguns jovens, durante as danças que só cessaram na hora em que foi servido o jantar.
Foi um momento de grande alívio para , que já estava não somente com os pés cheios de bolhas, que se formaram graças aos sapatos desconfortáveis que sua irmã insistira em comprar apenas por serem belos – na opinião da irmã, e não dela, que não achava que esse tipo de qualidade pudesse ser atribuído a sapatos ou qualquer coisa do gênero! –, como também com todo o corpo dolorido pela tensão que sentia, apavorada com a ideia de parecer ter “dois pés esquerdos”, como suas professoras de dança gostavam de dizer que ela tinha.
Além disso, pensou que poderia enfim dar um descanso merecido pata sua cabeça, que latejava depois do esforço despendido pensando em respostas apropriadas para as perguntas de cada um dos cavalheiros. Com o garfo na mão, podia simplesmente encher a boca de comida e apenas assentir suavemente a cada observação feita pelas pessoas sentadas próximo a ela à mesa. Pouco importava se, no dia seguinte, receberia a visita da irmã, que certamente lhe repreenderia por “parecer uma faminta”, quando moças respeitáveis deveriam ser comedidas em todas as suas ações em público, incluindo o ato de se alimentar.
Depois do jantar, ela precisou bailar novamente, é claro, e foi nesse momento que se arrependeu de não ter adotado a frugalidade recomendada pela irmã mais velha, que era uma dama impecável em todos os aspectos e tinha sido a responsável por prepará-la para sua apresentação à sociedade. Não por causa da decepção que sempre causava a Lady Jessica St. Vincent, a cada novo evento, e sim porque o estômago cheio não facilitava a tarefa à qual estava fadada. O vestido parecia estar mais apertado, as pernas tinham mais dificuldade de sustentar e mover o corpo, o raciocínio estava mais lento…
Ainda assim, continuava plenamente capaz de contar e teve vontade de comemorar quando percebeu que a quadrilha seguinte seria sua penúltima exibição forçada daquela noite. Depois dela, só restaria a valsa que encerraria o baile, que fora reservada a Lorde Gregory Hathaway.
Filho primogênito do Duque de Avondale, o rapaz era portanto herdeiro do importantíssimo título, de uma cadeira na Câmara do Lordes, de um número gigantesco de propriedades e de uma fortuna indecente. Era o solteiro mais cobiçado entre todos os presentes em Londres naquela temporada e, por ironia, tinha ficado impressionado pela beleza de .
Como ela era filha de um conde, tivera a criação de uma dama em todos os mínimos detalhes, e a sociedade ainda não tivera tempo de perceber a sua natureza – e que nem mil irmãs mais velhas nem um milhão de preceptoras teriam conseguido fazer com que a natureza se curvasse suficientemente diante dos ensinamentos e advertências! - o encantamento dele estava intacto até aquele momento, e ele tinha feito questão de solicitar a ela que dançassem juntos, pelo menos uma vez, em cada um dos bailes em que se encontraram (aquele era o quarto). Ele também tinha ido cumprimentá-la em seu camarote, quando os dois foram ao teatro em uma mesma noite, o que ela desconfiava não ter sido uma coincidência, e ficara próximo ao piano, virando a partitura, enquanto ela tocava, durante uma soirré na residência dos Mountbatten.
Lady Granville, a baronesa de Sutherland e tia-avó de , uma mulher considerada excêntrica pela sociedade e uma vergonha pela família, por ter deixado de lado boa parte das convenções sociais desde que ficara viúva, havia declarado que achava Hathaway absurdamente insosso. Jessica, por sua vez, estava exultante com a atenção do rapaz direcionada à irmã – e apavorada com a possibilidade de que essa cometesse algum deslize que fizesse desaparecer aquela atenção e a oportunidade de um casamento esplêndido!
só queria que a noite terminasse, sendo quase irrelevante o fato de que valsaria com o herdeiro do duque. E a diferença entre o totalmente irrelevante e o quase não tinha nada a ver com o rapaz, e sim com a valsa, que era a única dança que não julgava um tormento completo, reconhecendo que havia algum tipo de encantamento no som e nos movimentos que o acompanhavam.
Seu parceiro na penúltima dança seria Devon Stirling, um dos muitos primos de , por parte de mãe, que tinha nascido apenas alguns poucos meses antes dela e com quem a jovem costumava passar as férias desde sempre. Eles tinham uma relação de grande cumplicidade e, quando ele se aproximou e pegou sua mão, levando-a para perto dos outros casais já posicionados para a quadrilha, tinha um sorriso zombeteiro no rosto que indicava que ele sabia o quanto ela estava impaciente para se ver livre do baile e que tinha intenção de melhor as coisas para ela, durante os próximos minutos.
Ela sabia que Devon utilizaria todos os momentos de aproximação entre eles na dança para tecer comentários espirituosos sobre alguns dos presentes e que ela finalmente se alegraria um pouco. Sabia também o perigo que isso representava – pois, se havia algo mais complicado do que manter a concentração na dança tentando dialogar com cavalheiros respeitáveis, era manter essa mesma concentração diante do humor mordaz de seu primo terrível! – mas sempre escolhia correr o risco.
Logo que eles tomaram suas posições, ele já fez sua primeira observação, relacionando a barriga avantajada de Sir John Pecow à “falta de barriga” de sua jovem esposa vinte e seis anos mais jovem. riu baixinho e seu olhar cruzou com o de Jessica, que dançava com o irmão de ambas, William, e suspirou em desaprovação, de um jeito que mais ninguém percebeu, mas que conhecia muito bem.
As piadas continuaram, cada vez mais sarcásticas, e tentou manter o controle, ciente do escrutínio intenso da irmã, mas quando Devon resolveu direcionar sua mira para o presunçoso Simon Vere e a peruca que ele usava para esconder sua calvície precoce – e que, no momento, estava mais torta que a Torre de Pisa! – uma gargalhada alta escapou involuntária de sua garganta.
Também involuntariamente os olhos de procuraram pela irmã e, se uma gargalhada já não pudesse ser considerada um desastre na vida de uma dama sendo apresentada à sociedade, a “tragicomédia” se desenvolveu aos olhos de todos, implacável, irrefreável, vertiginosa…
Devon escolheu aquele momento para continuar suas brincadeiras e fingiu que viraria para um lado, quando na verdade deveria virar para o outro, e o fez no último segundo. A prima tirou os olhos dele apenas por tempo suficiente para ver o movimento falso, o que fez com que guiasse seu próprio movimento para o lado errado. Ela esbarrou com a dama a seu lado, uma das filhas gêmeas dos Bowman, e deu um passo para trás e pisou no pé de Sir Marcus Basset… Pedindo desculpas, tentou virar para o outro lado e tropeçou no pé de Lorde Edward Jenner, projetando o corpo para frente, sem encontrar ninguém ou nada em que pudesse se segurar.
Como uma bala arremessada por um canhão defeituoso, ela caiu estatelada no piso brilhante do salão de baile, com a barriga no chão, as pernas um pouco abertas, os joelhos meio flexionados, parte da panturrilha coberta apenas pelas meias de seda, um vaso de flores caído ao lado do braço direito – atingido certamente por alguma parte do seu corpo que ela não seria capaz de afirmar qual fora – e… é claro que, se o pior dos piores vexames poderia acontecer, ele aconteceria!… com a testa na bota lustrosa de ninguém menos que Lorde Gregory Hathaway.

Capítulo 1

Oxfordshire, Novembro de 1840

Na região central de Oxfordshire, encontravam-se as imponentes construções em que funcionava a mais antiga Universidade em língua inglesa do mundo, e segunda instituição de ensino superior mais antiga da Europa.
Apesar de Cambridge ser considerada por muitos uma excelente Universidade, e mais progressista, Oxford continuava sendo a preferida de inúmeras famílias de elite inglesas, e até mesmo de grande parte dos jovens.
Lorde , terceiro filho homem do Duque de Cheltenham, estudava na faculdade de Humanidades. Em setembro, tinha começado seu último ano na instituição, da qual sairia com graduação tripla em Filosofia, História e nos clássicos da Literatura greco-romana.
Oxford não fora exatamente uma escolha sua. Seus irmãos mais velhos também haviam estudado na tradicional Universidade, assim como seu pai e os tios (inclusive os maternos), seu avô, seu bisavô e todos os homens de mais algumas gerações da família , antes deste, praticamente desde a fundação do lugar.
O rapaz nunca havia cogitado Cambridge, apesar de seu melhor amigo ter optado por esta, e não se arrependia de ter mantido a história dos entrelaçada à de Oxford. Estava desfrutando muitíssimo de seus anos de estudante universitário! Vários de seus colegas de colégio tinham ido para a mesma faculdade e isso garantira a diversão.
Havia ainda os estudos em si. era um dos melhores de sua turma, e isso não se devia apenas à sua inteligência e facilidade de aprendizado. Ele era do tipo de aluno que gostava de estudar, que se sentia estimulado à cada gota de conhecimento que lhe era possibilitado absorver.
Tinha a impressão de que seus colegas contavam os segundos para o fim de cada aula (ao menos aqueles que não aproveitavam o fato de estarem sentados nas últimas fileiras, longe dos professores, para dormir atrás de algum livro), enquanto ele prestava atenção e anotava tudo o que conseguia, exatamente como estava fazendo naquele momento.
— Leiam os capítulos do dezesseis ao vinte e um, para nosso próximo encontro — disse o professor Ferby, depois de concluir a aula sobre a Era Georgiana, e foi só neste momento que o rapaz percebeu que a manhã de quarta chegara ao fim. — Vejo os senhores na segunda-feira.
— Nós vamos jogar rounders no parque e depois almoçar na White Horse — Roderick informou, já de pé ao lado de , enquanto este guardava seus papéis, o tinteiro e a pena, na pasta de couro.
— Eu vou à biblioteca. Encontro vocês para o almoço — respondeu ao amigo.
— Ele não quer perder de novo — provocou Jeremy, aproximando-se deles.
— O que ele quer é apresentar o melhor trabalho da turma ao Sr. Hayes — retrucou Rod, somente para implicar.
era ótimo nos esportes e melhor ainda no desenvolvimento dos textos acadêmicos, mas jamais fora competitivo. Sempre ajudara os amigos a fazerem seus próprios trabalhos, desde os primeiros anos em Eton, o que não era diferente em Oxford.
— Vocês podem não acreditar, mas no momento não me vejo chegando nem perto disso! — Os amigos riram, porque não acreditavam mesmo, e se despediram dele à porta da sala de aulas.
foi para a área de estudos da Biblioteca Bodleiana e sentou-se a uma das longas mesas, colocando sobre ela um livro, algumas folhas com anotações feitas anteriormente e o material necessário para tomar novas notas.
Deveria redigir um trabalho, mas estava sendo um dos mais difíceis desde o início de seus dias em Oxford. As disciplinas de Filosofia sempre eram as que mais lhe despertavam reações contrárias àquelas que pareciam ser esperadas pelos mestres.
Voltou à página cinquenta e oito do livro, seguindo uma das observações que fizera no final de seu último papel escrito. Releu os cinco parágrafos de novo e riscou uma parte do que anotara. Consultou o resumo que fizera, de um dos outros livros que lera para a disciplina, bem como considerações sobre a última aula, mas parecia não evoluir na construção de um bom roteiro para a tarefa que o professor mandara sua turma fazer.
Releu um capítulo inteiro do livro, gastando quase todo o tempo que tinha antes da hora de almoçar, mas as coisas não pareciam se encaixar.
Então, sem se dar conta, bufou audivelmente, chamando a atenção de um rapaz, sentado do outro lado da mesa, um pouco mais à esquerda. Ele o olhou, preocupado.
— O senhor está bem? — Ouviu-o questionar, um tanto hesitante.
— Perdoe-me — pediu. — Não pretendia incomodá-lo.
— Não há razão para se desculpar — assegurou o rapaz. — Apenas mate minha curiosidade, se não for incômodo da minha parte . O que o está frustrando tanto?
— Preciso entregar, em dois dias, um trabalho sobre Epicuro de Samos, mas meu professor claramente espera que o critiquemos, e eu tenho grande admiração por suas ideias.
— E que ideias seriam essas? — O rapaz mudou de cadeira, sentando-se bem na frente de , parecendo realmente interessado.
— Trata-se de um filósofo, como tenho certeza de que sabe, portanto eu não poderia descrever sua obra assim, em uma simples conversa. Duvido que mesmo o meu trabalho possa fazer jus a ele, principalmente quando sou obrigado a criticá-lo contra minha vontade! — Disse, rindo. — Em resumo, para ele a felicidade estaria no equilíbrio. O homem seria feliz ao eliminar as dores e alcançar o prazer, mas não qualquer tipo de prazer… os prazeres que vem das coisas simples, de desejo naturais ao homem.
— Parece bastante interessante… e realmente complexo!
— Exatamente. Creio que seja por isso que eu esteja com tanta dificuldade — lamentou, fazendo uma espécie de careta. — E o senhor? O que está lendo?
— Édipo Rei. — Seu interlocutor levantou o livro, mostrando a capa.
— O senhor parecia bastante envolvido na leitura — comentou.
— É verdade. Considero bastante intrigante que os acontecimentos previstos pelo oráculo aconteçam justamente porque o Rei Laio e a Rainha Jocasta, totalmente apavorados, decidem não criar o próprio filho. Todos dizem que é uma história sobre a inevitabilidade do destino, mas são eles que acabam causando sua própria tragédia! É provável que, se eles tivessem criado Édipo, ele nunca tivesse matado o pai e muito menos se casado com a mãe.
— Eu poderia respeitosamente discordar? — questionou.
— É claro! O que me diz sobre a peça?
— Teria muitas coisas a dizer sobre a peça, assim como no caso de Epicuro, mas nesse aspecto em especial, creio que a chave esteja em uma palavra que osenhor mesmo usou: “provável”. As coisas acontecem de uma determinada maneira, que incluiu a escolha de Laio e Jocasta de abandonar o próprio filho, a atitude do pastor encarregado de furar os pés dele e deixá-lo no Monte Citéron, mas teve pena da criança e a entregou ao outro pastor, que o levou para Corinto, onde foi criado sem saber quem de fato era e sem que os pais sequer soubessem que sobrevivera… Então, por fim, se dá o futuro previsto pelo oráculo. A questão é que o oráculo acerta! Isso não se pode negar. E, como quaisquer outros desenvolvimentos para a história de Édipo seriam apenas possibilidades, você pode dizer que é improvável que ele matasse o pai e se casasse com a mãe, sabendo quem eles eram, mas jamais poderia afirmar categoricamente que isso não aconteceria. Ou seja, você não tem como dizer que toda a tragédia só aconteceu por causa do que eles escolheram fazer.
— Então acredita em destino, senhor…?
. — falou, esticando a mão por sobre a mesa, a fim de cumprimentar o colega, que a apertou.
— Bernard Eldridge — o rapaz apresentou-se também.
— Dos Eldridge de Northumberland?
— Sim. Meu pai é irmão do Marquês de Tynedale.
— Acho que já fui apresentado a alguns de seus primos, mas não me lembro de já termos nos encontrado antes.
— Eu morava havia muitos anos na Bélgica, onde meu pai trabalha no serviço diplomático. Só voltei à Inglaterra muito recentemente — esclareceu, mas sem dar muita importância ao assunto. — Então, me diga, Lorde , acredita ou não em destino?
— Não é necessária tal formalidade comigo, por favor. Somos colegas, afinal. Prefiro que me chame de … ou melhor, . É assim que todos aqui me chamam — afirmou e o outro jovem assentiu. — Quanto ao destino, nunca pensei sobre acreditar nele ou não. Apenas fiz uma observação sobre a peça.
— Nunca pensou? Mesmo? — indagou o outro, cético. — Pois eu tenho refletido muito a respeito! Não acredito em destino como uma coisa mágica, sobrenatural… metafísica. Porém estou bem certo de que os pobres e as mulheres, desde seu nascimento, são despojados de boa parte de seu livre-arbítrio. Suas opções são tão poucas, que não seria necessário oráculo algum para dizer quase tudo o que lhes ocorrerá, até o fim de suas vidas.
— É um pensamento interessante… — franziu a testa, impressionado com a ousadia daquela ideia, que ele nunca vira nem mesmo os seus mestres colocarem em debate. Bernie sorriu, satisfeito.
— Agora, devo voltar a Sófocles e o senhor a Epicuro. Temos trabalhos a fazer, não é mesmo?
— Na verdade, vou clarear minhas ideias, enquanto almoço, e continuar depois — decidiu , começando a arrumar suas coisas. — Vou encontrar alguns amigos na White Horse. Gostaria de se juntar a nós, Sr. Eldridge?
— Se devo chamá-lo de , por favor me chame Bernie — pediu. — Agradeço o convite, mas vou realmente continuar com a leitura. Talvez em uma próxima oportunidade…
— Muito bem, então, Bernie — disse, um pouco decepcionado. Teria tido prazer em continuar aquela conversa! Com tudo novamente guardado em sua pasta, levantou-se e o outro rapaz voltou ao seu lugar de origem à mesa da biblioteca.
Os colegas despediram-se com acenos de cabeça, e foi para a taberna, ainda sem saber muito bem como não trair sua admiração por Epicuro e, ainda assim, ser aprovado na disciplina do Senhor Hayes.


♥ ♥ ♥



Depois de buscar uma de suas éguas no estábulo da estalagem Minster Mill, onde esta permanecera pelas últimas horas, Lady Percy fez com que a puro-sangue de pelos castanho alaranjados cavalgasse velozmente, deixando Oxford para trás e percorrendo os cerca de cinco quilômetros que levavam a Somerley Park.
Adentrando a propriedade pelo sul, que era delimitado pelo bosque de Witney, logo avistou a construção principal, na qual residia com seu pai, o Conde de Worthingham, mas não seguiu até ela. Guiou Coppery para o leste, trotando por mais alguns minutos até uma casa menor, que era chamada de Casa da viúva, pois tinha sido construída a pedido de uma das antigas condessas, que preferira não continuar na grande mansão de estilo neoclássico, após o falecimento do marido e o casamento daquele que o sucedera.
Durante os três anos anteriores, enquanto estudava em Oxford, Sir William Percy, o irmão mais velho de , havia morado ali. Aquela quase se tornara a Moradia dos solteiros, mas agora Will estava realizando uma longa viagem pelo Continente, e todos tinham voltado a se referir à casa pelo jeito como ela sempre tinha sido conhecida.
Com seis quartos de dormir no andar de cima e vários aposentos no de baixo, dentre os quais a sala de visitas, a de jantar e a de música, bem como a cozinha, que ocupava todo o fundo, tinha o mesmo estilo arquitetônico da casa principal. Na frente e nas laterais, havia um jardim muito bem planejado (apesar da parecer carente de uma atenção maior do jardineiro), na parte de trás, canteiros que já haviam abrigado uma horta e algumas árvores frutíferas, e tudo isto era delimitado apenas por uma sebe baixa e larga.
adoraria poder morar ali. Era muito mais aconchegante que a casa principal, com seu número enorme de cômodos que sequer haviam sido abertos nas últimas décadas, a não ser para serem limpos, de tempos em tempos, a fim de não se deteriorarem por completo.
Evidentemente, ela não tinha permissão para se mudar, mas conseguira ficar com as chaves do lugar, sob o pretexto de se responsabilizar por manter tudo minimamente organizado, visto que ninguém sabia exatamente quando o irmão voltaria e onde ele desejaria fixar residência, enquanto o pai fosse vivo e ele, solteiro.
Já bem perto da casa, saltou da égua e a amarrou a uma árvore. Viu a Srta. Dorothea Jenkins mexendo em um dos canteiros de lavanda, mas a garota logo concluiu o que estava fazendo para recebê-la e ir com ela até um dos quartos de vestir.
A Srta. Jenkins era sua camareira, desde quando fora decidido que ela precisava de uma, pouco antes de completar dezessete anos e começar a se preparar para seu debut nas temporadas sociais de Londres.
Depois do desastre que tinha sido sua primeira temporada, ela não achava que necessitasse realmente de uma camareira, mas além de sua irmã ter insistido que a filha de um duque precisava ter ao menos uma criada pessoal, tinha descoberto que a moça juntava dinheiro para poder ter seu dote, já que a família não possuía recursos para oferecer um. Arrumar um marido era o único meio pelo qual uma garota pobre poderia escapar de trabalhar como criada durante toda a sua vida e, considerando que o conde era conhecido por pagar salários acima da média, aquele emprego era sua melhor chance, então não hesitou em mantê-lo.
As duas tinham se tornado amigas, ao longo dos anos, apesar de esconderem a intimidade na frente de todos, pois o afeto verdadeiro entre uma criada e sua patroa não seria considerado apropriado.
— Se anda pensando em se candidatar ao cargo de jardineira, devo dizer que meu pai parece satisfeito com o Sr. Watkins — disse, em tom zombeteiro, entregando a Dorie as luvas e a cartola que já retirara.
— As ervas daninhas são menos rebeldes que uma certa patroa — respondeu a camareira, dando de ombros e recebendo um sorriso em resposta. — Ninguém descobriu, não é?
se controlou para não revirar os olhos. A outra jovem lhe fazia aquela mesma pergunta quase todos os dias! Tinha que lembrar sempre a si mesma que a amiga estava apenas preocupada com ela.
— Não. É claro que não — respondeu em tom tranquilizador, enquanto sentava em uma cadeira, de frente para a penteadeira, tirando a peruca, descolando o bigode e o cavanhaque, e passando loção no rosto para remover os resquícios de cola. — Se alguém tivesse que me reconhecer já teria reconhecido, depois de quase dois meses.
— Eu fico apavorada todos os dias, até que você retorne — ouviu Dorie dizer a seu lado, enquanto pegava tudo e ia guardando.
Os itens que compunham o disfarce de tinham sido adquiridos anos antes em uma loja de Londres, junto com vários outros, a pedido do Reverendo Davies, que montara um grupo de teatro amador. Ele e alguns fiéis encenavam, no pátio da igreja aos sábados, passagens da Bíblia e algumas peças curtas, escritas pelo próprio pároco, com fins didáticos. ficara com algumas coisas compradas, ao voltar para Oxfordshire, imaginando um dia usá-las em alguma encenação, para entreter os sobrinhos e os filhos de seus muitos primos.
— Não se esqueça que os cavalheiros da minha turma tem entre dezessete e dezoito anos apenas, assim como Bernie — observou, referindo-se ao primo, cuja identidade ela pegara emprestada por um tempo.
A mãe de Bernard era a irmã mais nova do pai de , e o pai dele era um dos sete irmãos do Marquês de Tynedale. Porém o garoto e a família moravam havia muitos anos na Bélgica.
Não costumavam sequer visitar a Inglaterra, mas naquele ano a mãe dele tinha decidido que estava ficando velha e precisava rever irmãos e sobrinhos. Bernie tinha aproveitado as férias de verão para viajar com ela, que escolheu Somerley Park como destino, afinal tinha sido o lugar onde crescera, e no qual atualmente morava o irmão que herdara as propriedades e do título de Conde de seu falecido pai.
Ao partir de Oxfordshire, o rapaz deixara para trás alguns documentos, incluindo seu registro de nascimento, que estava levando consigo porque iria direto para a Universidade que escolhera, na França. Só percebera o esquecimento quando chegara a Paris e resolveu, então, solicitar que o sacerdote da paróquia em que nascera lhe encaminhasse novo registro pelo serviço postal. Também por carta, tia Edna informara ao pai de que ele poderia se desfazer da papelada, mas a garota tirara da lixeira do escritório o papel, antes que fosse levado por algum criado, decidida a dar um destino melhor ao documento.
— Há cavalheiros da sua idade e até um pouco mais velhos em Oxford também, e você sempre pode encontrar algum conhecido pelos corredores... ou mesmo na biblioteca em que tem passado tanto tempo! Eu fico sem fôlego só de imaginar...
— Tolice, Dorie!
— Pode encontrar algum a quem tenha sido apresentada — a menina insistiu, pouco convencida. — Um deles pode ter até dançado com você, antes de…
— Antes da grande vergonha, do terrível vexame, do indescritível constrangimento, da imensa humilhação… — completou, fazendo um gestual exagerado, com direito a levar uma das mãos ao lado esquerdo do peito, como se seu coração doesse!
Essas eram apenas algumas das muitas expressões usadas pela irmã de para descrever o momento em que esta caíra aos pés de Lorde Gregory Hathaway (não no sentido figurado que provavelmente teria agradado Jessica, mas da forma mais literal possível), quando ele era o solteiro mais cobiçado daquele momento. Desde então, o rapaz havia se casado com uma moça adequada que estava prestes a dar à luz o primeiro filho do casal. , por sua vez, continuava solteira e sem pretendentes, para insatisfação de boa parte de sua família.
Depois do acontecimento, ela permanecera em Londres, pois o pai e a irmã haviam considerado que seria ainda mais indigno fugir. Fora a várias soirées, a alguns concertos, à Ópera (de longe, seu evento favorito) e até a alguns bailes. No entanto, permanecera como uma das poucas ocupantes jovens das cadeiras que ficavam em recantos tranquilos dos salões, destinadas a senhoras bem mais velhas.
Junto com ela, havia quase sempre as mesmas duas moças. Willemina Kilbourne possuía ascendência aristocrática, mas nenhum dote, graças às escolhas do pai, que perdera praticamente tudo em apostas. Meredith Young tinha provavelmente o maior dote dentre todas as jovens que frequentavam os eventos daquele ano. Em sua família, contudo, não havia uma só pessoa com título de nobreza. Seu pai era um industrial americano e só recebia convites por causa dos negócios que tinha com alguns nobres mais visionários, o que não era suficiente para que ela fosse de fato aceita.
Não escapara da observação de a tristeza no olhar das duas jovens, ambas já com mais de vinte e dois anos e quase sendo declaradas definitivamente solteironas. Ela, no entanto, ficara mais do que satisfeita em sentar-se no cantinho, com o cartão de bailes, em que deveriam ser anotados os nomes dos rapazes que a convidassem para as danças da noite, vazio.
Fora um alívio quando a temporada finalmente acabara e pudera retornar para o campo! Alívio este que só aumentou quando a irmã sugeriu que ela não retornasse a Londres no ano seguinte, para que o acidente, apesar de não esquecido (algo que, segundo ela, jamais aconteceria!), pudesse virar apenas mais uma entre outras fofocas que surgiriam.
Ela teria retornado em 1839, ainda com dezenove anos, uma idade totalmente aceitável para se conseguir um marido, de acordo com os planos de Jess. Porém, até então, não voltara a frequentar eventos na cidade.
Tinha se mostrado inadequada novamente, durante a semana de festejos do noivado de sua prima Harriet. Havia sido vista cavalgando com uma perna de cada lado e os convidados também tinham descoberto que ela apostara dinheiro na vitória do primo Devon, quando este e William estava atirando em aves de caça. Sua volta aos salões londrinos fora adiada por tempo indeterminado!
— Pode ser irônica o quanto quiser sobre si mesma, mas não pode negar que é arriscado!
— Eu conhecia os riscos quando decidi frequentar Oxford. Eles existem, é claro. Apenas não são tão grandes quanto você imagina. A maioria dos rapazes só fica nas dependências da Universidade tempo suficiente para assistir às aulas. Depois, saem correndo de lá e vão aproveitar a liberdade que tem, por serem homens e finalmente adultos que não precisam mais lidar com pais excessivamente zelosos, tutores extremamente rígidos ou inspetores vigilantes.
— Ele dizem isso? — Dorie perguntou, curiosa, enquanto ajeitava os cabelos de , que estavam amassados em razão da peruca.
— Não é preciso. Eu os observo, enquanto combinam de ir a tabernas à noite, sobre apostas em jogos de azar, sobre lutas de boxe... Além disso, tenho um irmão menos de três anos mais velho. Eu o via tentar fugir dos tutores, quando éramos pequenos, e depois o quanto reclamava dos professores e inspetores de Eton, quando vinha para casa, nas férias escolares! E por que você acha que, enquanto cursava a faculdade, Will mudou-se para a Casa da viúva? Ele certamente queria pode chegar de madrugada bêbado, sem ser notado, e também ter um lugar para suas conquistas amorosas. — Dorie arregalou os olhos para o último comentário, e fez um sinal, para que elas esquecessem o assunto.
Em silêncio, a camareira terminou de fazer um bonito coque na patroa e depois a ajudou a tirar as botas. levantou e se livrou sozinha das roupas. Meias, calça, paletó, colete, gravata e camisa: um traje masculino completo, composto por algumas das muitas peças deixadas na casa por Will. Ele tinha mais do que era necessário que um cavalheiro levasse em uma viagem (e bem mais do que seria possível carregar, apesar do número razoável de baús que o acompanhara).
Então a Srta. Percy iniciou um outro diálogo, envolvendo as esposas de arrendatários que visitariam naquela tarde e as coisas que levariam para elas. As visitas serviam como uma espécia de álibi, para caso um dia o Conde (que passava quase todo o tempo na biblioteca, com seu administrador) se interessasse em perguntar o que fazia com seu tempo. Todavia, o interesse da jovem no assunto era real, pois adorava as pessoas do povoado, e a conversa também distrairia Dorethea.
A verdade era que ela mesma sentira medo no início, ainda que se recusasse a confessar a Dorie. Entretanto, quando se vira de posse das roupas de William, do documento de Bernie, e do conjunto nunca usado de barba, peruca e bigode, sentira como se a vida a desafiasse e não pode recusar o desafio!
Sempre quisera ter acesso a uma biblioteca, sem restrições em relação a esse ou àquele livro. Sempre desejara tomar parte de discussões sobre filosofia, política, leis, literatura clássica…
Felizmente estava sendo recompensada por sua coragem e experimentando a melhor experiência de toda a sua vida! Mesmo que nem tudo que dizia a Dorie fosse verdade.
Por mais que a maior parte dos rapazes não desse mesmo preferência a passar seu tempo na biblioteca, ela já havia visto rostos conhecidos por lá (e fora vista). Sentara-se, alguns dias antes, bem na frente de um rapaz com quem dançara em seu primeiro baile, cujo nome não conseguia se recordar.
Tinha até mesmo conversado com Sir Cyril Armstrong-Jones, no refeitório! E era por isso que não se sentia mais tão apreensiva. Tinha confiança em seu disfarce, com a peruca, o bigode e o cavanhaque de cor tão diferentes da dos seus cabelos.
Havia, ainda, os comerciantes de Oxford , que a conheciam desde pequena, pois fazia compras na cidade, mais próxima de sua casa até mesmo que o vilarejo que ocupava a terra de seu pai. Alguns deles já tinham visto o falso Bernie, e não haviam demonstrado qualquer desconfiança.
— Sendo tão bonita e tendo um dote tão bom… Sendo filha de um Conde e tendo roupas assim tão lindas... — Dorie suspirou ao falar, olhando para , muito elegante e bela, mesmo que estivesse em um de seus vestidos mais simples do dia-a-dia. — Nunca vou conseguir entender por que prefere se vestir como um rapaz e passar suas manhãs em uma sala de aula.
— Até você poderia achar bem interessante, sabia? Eu conheci alguém hoje, na biblioteca, que você de certo teria gostado de conhecer. Lorde , filho do Duque de Cheltenham.
— Não foi você que acabou de tentar me tranquilizar, afirmando que os rapazes não frequenta a biblioteca? — Dorie não podia acreditar no que estava ouvindo!
— A maioria deles, eu disse! — , por sua vez, quase bufou impacientemente.
— O que quer dizer com conheceu?
— Conversamos um pouco. Falamos sobre Édipo Rei... Um livro — acrescentou, vendo a confusão no rosto da amiga.
— Você não deveria…
— Não ouviu o que eu disse? Eu o conheci na biblioteca. Significa que nunca fui apresentada a ele, então ele não poderia me desmascarar.
— Ainda assim... é arriscado! — Dorie quase gritou. Parecia que estava sempre tendo que se repetir, diante da teimosa patroa. — Você não tem pena de mim. Não mesmo! Não se preocupa que eu possa morrer de preocupação.
Talvez ela estivesse exagerando um pouco, mas Lady Jessica St. Vincent vivia exclamando, à toda oportunidade, vários substantivos que não deixavam esquecer que fracassara em ser uma dama de verdade, bem como uma gama de adjetivos que davam ideia da dimensão do que significava seu insucesso para a sociedade inglesa. Dorie não queria nem imaginar o que aconteceria se descobrissem que a patroa andava fingindo ser um rapaz e frequentando uma faculdade!
— Acalme-se, Dorie. Foi somente uma conversa. Oxford tem muitos alunos! Eu nunca o havia visto antes. Provavelmente nem voltarei a vê-lo. — tentou tranquilizar Dorie e, então, mudou totalmente de assunto de novo.
Depois de ter se utilizado de seus melhores argumentos para fazer com que a menina não se preocupasse, não tinha sido inteligente contar sobre tal conversa, mas fora algo que simplesmente escapara de seus lábios.
E agora ela realmente não estava falando nenhuma mentira. Não achava mesmo provável que voltasse a encontrar Lorde . A Biblioteca Bodleiana não era a única em Oxford. Ela não sabia em qual das faculdades ele estudava e em que ano estava, e mesmo se soubesse provavelmente não o procuraria. Mesmo que ele fosse lindo como um quadro que ela seria capaz de admirar por horas! Ainda que exalasse uma masculinidade que tinha mexido com ela, despertando algo em sua feminilidade que ela desconhecia. Apesar de a conversa com ele ter sido mais estimulante que qualquer conversa que já houvesse tido, e até mesmo que alguns debates de sala de aula.
Era uma pena! Mas isso ela decidiu guardar para si e não dividir com Dorothea.
Afinal a garota jamais a deixaria em paz se soubesse que Lady Percy conhecera um rapaz por quem se sentira atraída!

Capítulo 2

Todos os sábados, a rotina de costumava ser a mesma: ele dormia durante boa parte da manhã, tomava o desjejum na Minster Mill, a estalagem que servia o melhor hadoque defumado que ele já tinha comido, e estudava até a hora do almoço, que era quase sempre no único restaurante elegante de toda Oxfordshire, onde costumava comer um delicioso pato com batatas ou um o excelente peixe com legumes. Depois da sesta, fazia as tarefas da semana e, à noite, ia para a casa em que morava Roderick Courtenay.
Rod era o primogênito do Duque de Hardford, e o pai dele não aceitara que seu futuro sucessor vivesse nos dormitórios da Universidade. Alugara uma casa a uma distância de pouco mais de um quilômetro da Faculdade de Humanidades, com muito mais cômodos do que seria necessário para um estudante solteiro, e contratara tantos criados que alguns deles às vezes tinham mais horas de folga que de trabalho. A casa acabara se tornando naturalmente o local de reunião dos rapazes mais próximos de Rod, no qual bebiam, fumavam e jogavam, madrugadas adentro.
Algumas vezes, eles tinham a companhia de belas mulheres, como naquela noite. Não havia um bordel na cidade, mas as garçonetes dos turnos da manhã e da tarde da taberna White Horse não se incomodavam em fazer um turno extra, se devidamente encorajadas. Vestidos, roupas íntimas, chapéus, sapatos, luvas, perfumes, sabonetes, óleos de banho e outros itens de perfumaria eram os presentes mais comuns, mas algumas delas já haviam recebido pequenas joias que as haviam incentivado a terminar a noite na cama de Rod ou em algum quarto da casa com um dos outros rapazes. Um dos lacaios ociosos contratados pelo duque tinha sido incumbido da tarefa de comprar os mimos.
também já tinha dormido com garçonetes da cidade e dos arredores, afinal era um rapaz saudável de vinte e um anos com grande apetite sexual. Contudo nenhuma delas era da White Horse e seus encontros íntimos nunca haviam acontecido na casa do colega. Ele preferia ser discreto em relação à sua intimidade e não era de fazer nem mesmo comentários sobre suas aventuras. Participava das conversas sobre mulheres apenas como ouvinte, na maior parte do tempo. De modo que, enquanto Roderick, August, Randolf e Weston estavam sentados à mesa, jogando uíste, cada um com uma garota em seu colo, ele e Jeremy Legge terminavam a quinta partida de bilhar.
Não que Jerry fosse discreto como ele (longe disso, na verdade!), mas não apreciava as jovens da taberna. Tinha como amante, havia quase um ano, a dona do chapelaria da cidade, uma viúva dez anos mais velha que ele. Jerry adorava a experiência dela (todas as garotas mais novas com quem se deitara, apesar de não serem virgens, tinham sido passivas de mais para seu gosto!) e o fato de saber que ela mantinha a relação porque sentia prazer em seus braços, e não em razão de regalos.
suspirou, após uma tacada particularmente ruim. Havia sobre a mesa três bolas coloridas naquele momento, e era a vez de seu oponente, que passava giz na ponta do taco, parecendo concentrado. Tomou um longo gole de seu conhaque, enquanto aguardava. Com outro, esvaziou o copo quando Jerry encaçapou, com uma única e certeira tacada, as bolas que precisava para colocar fim ao jogo.
— Para mim, já basta. Cansei-me de ganhar de você por hoje — Jerry disse, colocando o taco sobre a mesa de bilhar e indo até um aparador para se servir de mais bebida.
apenas sorriu. Jerry ganhara três de cinco disputas. Não fora o massacre que este fazia parecer! No entanto, ele não se importava com o colega se gabando.
Permitiu que este lhe servisse mais uma dose de conhaque e ocupou uma poltrona confortável perto da lareira. Ao invés de beber de imediato, girou o copo, observando a bebida se mover, os brilhos do líquido âmbar e do vidro à luz do fogo.
— O que pretende fazer depois da faculdade? — Indagou, de repente, e não ficou alheio à surpresa no semblante do outro rapaz.
— O que pretendo fazer?
— Exatamente. O que pensa em fazer? É nosso último ano. No verão já não seremos mais estudantes. Teremos enfim nos formado. Quais são seus planos? Já pensou nisso?
— Na verdade, não, mas... Eu vou viver, ora — respondeu Jerry, como se sequer houvesse motivo para a pergunta.
— E não estamos vivendo? — olhou em volta, de forma bastante ostensiva, demorando-se ao olhar especialmente para os outros rapazes que jogavam, gargalhavam e gritavam uns com os outros, com as mulheres em seus braços, usando apenas roupas de baixo, depois de apostas que tinham como objetivo eliminar uma a uma as várias peças que compunham seus trajes.
— É... Parece-me que sim — Jerry deu um sorrisinho torto. Vou continuar vivendo, então. E viver ainda melhor, sem as aulas todas as manhãs para atrapalhar.
— Vai beber, fumar e jogar, todas as noites? Visitar uma amante, alguns dias por semana? Dormir até bem tarde, todas as manhãs? Frequentar o clube e... somente isso? Não acha que vai sentir falta de algo mais que preencha seus dias? Que vai desejar ter um propósito... fazer alguma diferença?
— O que quer dizer exatamente, ? — Jerry se mostrou realmente confuso. — Acho que talvez tenha se excedido na bebida, meu bom amigo!
— É provável — concordou, a contragosto. — Apenas… esqueça que sequer perguntei.
Ele inspirou profundamente e soltou o ar devagar. Recostou-se e fechou os olhos, mas apenas por alguns segundos, sem se conformar totalmente.
— Não tem vontade, por exemplo, de conhecer o mundo? — Insistiu.
— Isso parece uma boa ideia, de fato. Tenho um tio que diz que as mulheres mais calorosas na cama são as italianas, e outro capaz de jurar que são as francesas. Adoraria descobrir qual deles está correto.
Dessa vez, ele jogou a cabeça para trás com vontade, derrotado. Não adiantava conversar com Jerry. Ele não entenderia (nem qualquer um dos outros colegas, na verdade).
ficava apreensivo quando pensava no futuro. Se ele fosse o primogênito, herdaria o título e as responsabilidades que vinham com este: terras cheias de arrendatários para administrar, durante uma parte do ano; uma cadeira no parlamento para ocupar, durante a outra parte. Se fosse o segundo filho, a família lhe compraria uma patente nas Forças Armadas (seu irmão Dick era primeiro tenente do Exército Britânico). Como terceiro filho, era tradição que seguisse a vida religiosa, mas seu pai nunca tivera a intenção de obrigar os filhos a fazerem nada que não quisessem, e não tinha vocação para o clero.
O respeito de seu pai à sua vontade e inclinações pessoais era algo bom, sem dúvida. A questão era que isso o deixava com uma renda anual, que recebia apenas por ser filho do duque (e que era suficiente para que pudesse viver bem sem jamais precisar mover um dedo!) e uma vida sem qualquer objetivo definido pela frente!
Para a maior parte das pessoas de sua classe social, isso não era um problema.
Trabalho não era considerado algo edificante pelas famílias aristocráticas. Só deveriam trabalhar aqueles que precisassem fazê-lo e a aristocracia ainda vivia da renda que vinha das terras. Apesar de o cultivo já não representar mais uma fonte tão grande de riquezas como outrora, fazendo com que muitos começassem a buscar outros investimentos, a maioria ainda se mantinha presa a tradições que incluíam a valorização do ócio e o desenvolvimento de atividades que representavam apenas passatempos. O hedonismo era a filosofia de vida. , todavia, não gostava de se imaginar vivendo como típico membro da aristocracia, transitando entre a casa da família no campo e a de Londres, sempre em eventos em que o objetivo era diversão e nada mais. Acreditava que deveria haver um equilíbrio entre se divertir e ser útil. Entre aproveitar o melhor da rotina já conhecida e descobrir coisas novas, como diferentes culturas e modos de vida.
Enquanto seus colegas não chegavam nem a ler todos os textos indicados pelos professores, ele aproveitava qualquer tempo livre que tinha para ler também livros sobre administração de terras (mesmo sem grande probabilidade de que viria a possuir alguma), sobre outros países, sobre o recente processo de industrialização pelo qual vinha passando o mundo…
Phillip Lancaster, seu melhor amigo, com quem crescera em Gloucestershire, certamente o compreenderia. Mesmo antes de ir para Cambridge, o rapaz já se envolvia, sempre que podia, em reuniões do pai dele com alguns homens de negócios, de quem este se tornara ou pretendia se tornar sócio. Sempre fora um leitor voraz de todo tipo de livro. Vivia falando em conhecer os Estados Unidos e as Índias.
Phill, entretanto, estava longe. Eles trocavam cartas, mas sentia falta de poder ter uma conversa de verdade, sobre suas perspectivas ou sobre qualquer outra coisa que realmente importasse!
Então, em meio a suas divagações, lembrou-se de repente do rapaz que tinha conhecido, dias antes, na biblioteca. Bernard Eldridge também parecia ser do tipo de pessoa que o ouviria sobre aquele tópico, sem olhar para ele como se estivesse dizendo algo insano.
Em poucos minutos, os dois haviam falado sobre assuntos acadêmicos, e desdobramentos pessoais e sociais - como a crença ou não de cada um em destino, e a condição diferenciada de pobres e mulheres - de um modo como ele nunca falara com nenhum dos rapazes presentes naquela sala de jogos.
Seria bom poder ter um diálogo como aquele novamente, ao invés de ficar restrito a participar de conversas sobre mulheres, esportes, apostas em jogos de azar e todo tipo de ostentação que os colegas faziam e desejavam fazer, à custa de seus pais.
Seria de fato ótimo voltar a encontrar Bernie! Talvez ele finalmente pudesse ter um amigo de verdade em Oxford.


♥ ♥ ♥



estava debruçada sobre um livro, na biblioteca, havia mais de meia hora, tentando ler em vão.
Não que A República não fosse interessante. Os diálogos fictícios entre o autor, Platão, e seu antigo mentor, Sócrates, tinham sido uma forma de registrar as ideias do professor (o qual não deixara textos escritos), junto às do próprio discípulo, e eram, na verdade, bastante instigantes. O problema era que ela simplesmente não parava de pensar no quanto queria poder comentar sobre tudo aquilo com !
? Onde ela estava com a cabeça? perguntou a si mesma, desanimada.
Com certeza, deveria pensar nele como Lorde ! Ele só havia pedido que ela o chamasse de porque imaginara estar conversando com Bernie.
Aliás, ela se indagava sobre que sentido havia em pensar nele de qualquer maneira que fosse! Não o via desde que tinham se conhecido, mais de uma semana antes, e era melhor que fosse assim (ou pelo menos ela gostaria de poder se convencer disso). Ela não deveria sentir atração por alguém que achava que ela era um rapaz e que precisava continuar achando isso. E que, se descobrisse a verdade, com certeza a julgaria uma dama muito mais fora dos padrões do que poderia ser aceitável.
No entanto, por mais que ela tentasse, não conseguia tirar da cabeça o olhar dele e o desejo de ver o seu sorriso uma vez mais. Quando lia alguma coisa interessante (e isso acontecia todos os dias!), ficava frustrada por não poder comentar com ele e ouvir suas observações. Ao se encaminhar para a biblioteca Bodleiana, após as aulas, não podia evitar a esperança de enxergá-lo sentado a uma das mesas, mas isso não tinha acontecido nenhuma vez!
Ele provavelmente tinha escolhido outro local de estudo. Havia outras bibliotecas (ela mesma não fora apenas àquela, nos últimos dias) e sempre existia a possibilidade de que ele pegasse os livros emprestados, e levasse para o alojamento ou para onde quer que ele morasse. Não era como ela, que tinha que ficar na biblioteca, porque seria um risco a mais levar os livros para casa, ou mesmo para a Casa da viúva, nas quais algum criado poderia encontrá-los e entregá-los ao seu pai.
Até as suas anotações ficavam muito bem escondidas, dentro de envelopes guardados no fundo de suas gavetas de roupas íntimas, nas quais apenas Dorie mexia, sendo a única responsável pelo vestuário da patroa. Afinal o perigo que ela corria já era grande o suficiente, e ela estava cada vez mais consciente disso.
Depois de conversar com , ela tinha percebido que podia não ter uma preocupação tão grande com seu disfarce (este já tinha passado por testes e parecia bom o bastante), mas deveria se preocupar com o fato de estar usando o nome do primo. Existia sempre a chance de que alguém comentasse, com um dos primos dele por parte de pai ou mesmo um dos muitos primos que tinham em comum, que o conhecera em Oxford, e isso poderia acabar tendo alguma consequência, apesar da quase completa falta de contato entre o pai de Bernie e os irmãos deste.
Assim, ela sabia que precisava manter algumas cautelas, apesar de continuar se recusando a se deixar amedrontar.
Aquilo logo acabaria, no fim das contas! Não pretendia mesmo continuar na Universidade nos anos seguintes, uma vez que de nada lhe valeria um diploma com o nome de outra pessoa. Só queria um tempo para explorar as bibliotecas, absorver o conhecimento dos professores, adquirir um pouco de experiência por meio da convivência com os colegas…
gostava de pensar em si mesma como uma garota intrépida e, por mais que reconhecesse que também podia ser bastante teimosa, não poderia considerar que o fato de não conseguir abrir mão daquele ano na Universidade fosse uma atitude insana. Não quando era sua única chance de fazer alguma coisa realmente interessante e que de fato importasse!
Talvez fosse um exagero pensar isso em relação às coisas interessantes, visto que, ignorando as recomendações da irmã, ela vivia fazendo coisas legais como atirar, esgrimar, jogar bilhar e beber o uísque que o pai recebia da Escócia. Porém tinha a sensação de que Jess e seu pai não se conformariam enquanto não lhe conseguissem um marido. Até William provavelmente não consideraria o melhor dos mundos que ela ficasse solteira para sempre e vivendo na propriedade dele, quando se tornasse conde! E então, depois que se casasse, ela daria realmente adeus às atividades que lhe davam prazer.
As pessoas com quem crescera fingiam não ver algumas coisas, por amor. Repreendiam-na por outras, mas sempre acabavam perdoando aquilo que consideravam deslizes de uma moça temperamental. Um marido, por sua vez, certamente não aceitaria nada que pudesse ser considerado extravagante. Esta era uma das razões pelas quais ela preferia poder continuar solteira pela eternidade e mais além, mesmo que recentemente um rapaz tivesse se tornado objeto constante de seus pensamentos.
— Era por você mesmo que eu estava procurando! — Ouviu alguém dizer e, ao levantar os olhos, encontrou exatamente aquele com quem estava sonhando acordada, sentando-se na cadeira em frente à sua.
! — Falou, sem conseguir esconder a surpresa e o entusiasmo. Reprovou-se logo que o apelido dele deixou seus lábios, mas talvez não fosse um problema tão grande, uma vez que ele também parecia muito animado por te-la encontrado. Não exatamente a ela, é claro. Bernie. Ele ficara contente ao ver Bernie! Ela não podia se esquecer disso e criar ilusões.
Torceu para que ele não tivesse percebido que sua voz sairá aguda demais para um rapaz (mesmo um de dezoito anos). Então pigarreou e continuou em sua voz mais grave, que usava sempre que adotava seu disfarce masculino.
— Procurava por mim? Por que razão?
— Lembrei-me de você hoje, na aula do Sr. Hayes. Falamos um pouco sobre destino e livre arbítrio. Estamos estudando a filosofia estoica, agora. Ainda não teve aulas sobre isso, não é? Considerando que estava lendo Édipo Rei, naquele dia, para um trabalho, creio que esteja em seu primeiro ano. Estou correto?
— Está, sim — respondeu ela.
— Eu estou em meu último ano — ele comentou. — Daqui a alguns anos, você terá o prazer de ser apresentado aos estoicos pelo professor Hayes. Eu poderia te emprestar meu livro, pois já terminei, e ficaria contente em debater alguns pontos, mas imagino que não tenha tempo para uma leitura extra, em meio a tantas obrigatórias.
— É claro que tenho! — Ela sabia que estava demostrando empolgação de mais novamente, mas não conseguia evitar. Debater com ele seria melhor que qualquer sonho!
— Então, pegue — disse ele, tirando um livro de sua pasta e entregando a ela. — O que eu gostaria de debater está nos capítulos onze e doze. Podemos nos encontrar aqui, dentro de uma semana, logo após as aulas?
— Sim. Está acertado — retrucou , pegando o livro e já tentando pensar em como o esconderia de Dorie.
A jovem não poderia saber daquele novo encontro, de modo algum, e talvez desconfiasse do fato de ela voltar da faculdade com um livro, pela primeira vez, e sem que este tivesse nenhuma identificação da biblioteca.
— Conseguiu resolver o dilema que estava enfrentando quanto àquele trabalho sobre Epicuro? — Ela questionou, desejando que a conversa continuasse fluindo naturalmente e suas preocupações não tomassem seu semblante.
— Eu o entreguei. Porém o que o professor vai achar dele ainda é uma incógnita.
— Não nos conhecemos bem, mas pelo modo como fala dos assuntos acadêmicos, tenho certeza de que você é um ótimo aluno. Eu seria capaz de apostar uma libra que sua nota não será menor que oito.
— Pois considere a aposta feita! Se eu receber uma nota oito ou superior, você terá sua libra, e sequer lamentarei pagá-la. Uma nota alta não é mesmo algo que eu espere nesse trabalho!
sorriu, modesto, e o sorriso dele ameaçou tirar o fôlego de . A garota teve que baixar os olhos para o livro, para não ficar olhando como uma boba para os lábios dele, o que já seria embaraçoso se ele soubesse que ela era uma dama e, ainda mais, por ele achar que era um cavalheiro.
— Qual é a leitura de hoje? — indagou o rapaz.
A República de Platão.
— Um dos meus favoritos! O que está achando?
— Fascinante... mas difícil. Eu apreciaria debater alguns pontos dele também...
— Seria um prazer ajudar.
— Infelizmente, eu tenho um compromisso logo após o almoço — disse, olhando para um relógio de pé que havia próximo deles.
Não poderia chegar muito depois da hora do almoço na casa do Reverendo Davies, pois enviara um bilhete à esposa dele, no dia anterior, no qual informara que não poderia aceitar o convite para almoçar com eles, mas levaria, para todos comerem juntos, a sobremesa favorita dos três filhos do casal.
— Talvez possamos almoçar no refeitório e conversar sobre algumas das minhas dúvidas — sugeriu a , sabendo que Dorie não desconfiaria de nada.
Não seria a primeira vez em que comeria algo no refeitório. Nunca era um problema não almoçar em casa, visto que seu pai só comia na sala de refeições na hora do jantar. O conde tomava seu café da manhã no quarto, e almoçava na biblioteca, que também lhe servia de escritório. Só tomava chá à tarde quando recebia ou fazia visitas. Desse modo, não se importava que a filha também escolhesse onde fazer suas refeições (mesmo que não passasse pela sua cabeça que o refeitório da Universidade fosse uma opção).
De qualquer forma, não estava muito confiante de que aceitaria seu convite. Provavelmente tinha vários amigos com quem almoçar e a comida do refeitório não era das melhores.
Para sua surpresa e satisfação, ele concordou que se tratava de uma boa ideia e, com ele à mesa, o filé com ervilhas servido em Oxford nem pareceu tão insosso.
Foi um almoço perfeito, embora tenha se sentido um pouco culpada ao contemplar o semblante frustrado de Dorie, que tinha assado torta de carne e especiarias para as duas, na cozinha da Casa da Viúva.
A família do Reverendo Davies recebeu um grande pedaço de torta para o jantar, além do prometido cheesecake de amêndoas.


♥ ♥ ♥



— Aqui está sua libra! — falou, entregando o dinheiro a , assim que ela chegou à biblioteca e o encontrou sentado à mesa que quase sempre usavam na área de estudos.
Fazia duas semanas que eles haviam apostado a respeito de qual seria o desempenho de no trabalho sobre epicurismo. Naquela manhã, finalmente o professor entregara os trabalhos de volta, com os resultados alcançados pelos alunos e suas observações.
— Qual foi sua nota afinal? — Ela indagou, animada, colocando o dinheiro no bolso e sentando-se também.
— Nove — ele informou, sem conseguir conter o sorriso.
— Como é bom estar certo! Além de uma libra mais rico — brincou ela. — Gostaria de ler seu trabalho, se não se incomodar.
— É claro que não, mas apenas se eu também puder ler o seu sobre Antígona. Soube, pelo irmão de Weston, que o Professor Ingleby entregou os textos de volta hoje.
— Eu tirei oito e meio — ela foi logo dizendo. — Segundo o Sr. Ingleby, se eu tivesse prestado atenção às aulas dele, saberia que a lei imposta pelo soberano está acima de qualquer percepção de certo e errado que seus súditos possam ter, visto que se trata da expressão da vontade do escolhido de Deus, que seria portanto a vontade do próprio Deus. Ele não compreendeu que eu prestei atenção e apenas... discordo — explicou, dando de ombros.
riu. Com certeza já não se espantava com esse tipo de comentário vindo de “Bernie”. Os dois vinham estudando juntos quase todos os dias, e sempre questionava as afirmações dos mestres e expunha suas próprias ideias.
, estando no último ano, a ajudava muito a entender algumas coisas mais complexas, para as quais talvez faltasse a ela a formação que ele recebera em Eton (mesmo que ela soubesse mais do que a maioria das moças, porque fizera o Reverendo Davies lhe dar aulas de Latim e ouvira muitas lições dadas a William pelos tutores dele, enquanto fingia estar totalmente alheia, fazendo alguma atividade boba como bordar, pintar aquarelas ou ler os romances esquisitos e cheios de exageros da Srta. Pandora Turner, como A donzela em apuros e o cavalheiro sem coragem, e O desastroso duelo pela honra da dama prometida). O rapaz, no entanto, também parecia apreciar as observações que ela fazia sobre as matérias que ele estava estudando. Não demonstrava se importar com o fato de que ela estava apenas no primeiro ano e com a idade que ele achava que ela tinha.
sabia muito bem que provavelmente sequer gastaria um minuto da vida dele para ouvi-la, se soubesse que era uma garota, e essa perspectiva era bastante triste! Contudo, ao mesmo tempo, não havia razão para que ela perdesse um minuto da vida dela se incomodando com isso, quando a ideia de fingir ser um rapaz era justamente poder ouvir e ser ouvida, mesmo que por pouco tempo.
— Eu sabia que te encontraria aqui — um rapaz falou, se aproximando de , que o olhou, nitidamente surpreso. — August foi ao seu quarto e, como você não estava lá, achou que não conseguiríamos te avisar, mas eu disse que era bastante óbvio que você estaria na biblioteca!
— Avisar sobre o quê?
— Decidimos ir a Banbury para ver a luta livre. Randolf convenceu a nós todos de que será uma das principais lutas do ano e seria um desperdício não irmos, estando a pouco mais de quatro quilômetros. Vamos nos encontrar às três, na casa de Roderick. Usaremos as duas carruagens de viagem dele e, assim, teremos oito lugares com conforto. Há lugar para você e também para o seu amigo, se quiser nos acompanhar — declarou, olhando diretamente para “Bernie” no final.
apresentou os dois colegas, que inclinaram as cabeças educadamente, cumprimentando um ao outro. Tratava-se de Jeremy Legge. o vira em Londres, em sua primeira temporada, mas não chegara a ser apresentada a ele.
— Gostaria de ir conosco, Sr. Eldridge? — Jeremy indagou. — Dizem que Sawyer dessa vez está preparado para nocautear Cann. Da última vez, Cann ganhou por pontos e todos falam que ele julgou tal coisa uma humilhação insuportável. Randolf apostou vinte libras nele! Eu mesmo só quero assistir — riu.
entendia a razão pela qual ele fizera menção ao valor da aposta, como uma espécie de prova da fé do tal Randolf na capacidade do lutador. Vinte libras representavam o salário anual de muitos trabalhadores! Ela não deveria saber disso, uma vez que falar sobre dinheiro era deselegante, mas fora curiosa o bastante para examinar livros contábeis de Somerley Park.
Por outro lado, ela também sabia que não eram incomuns essas apostas. Tinha um irmão e primos que falavam, na frente dela, sobre todo tipo de coisa não considerada adequada aos ouvidos femininos. E ela os compreendia! Gostava de apostas e podia sentir a adrenalina correndo nas veias, só de imaginar.
— Eu adoraria! — Respondeu, sem pensar. Quase esqueceu de disfarçar a voz de tão animada!
Sabia que o nível de risco que assumiria ao ir a um evento como aquele era ainda maior que o que correra até então, em sua aventura como Bernard. Sabia que enlouqueceria Dorie, de quem não poderia esconder esse segredo! E sabia que talvez não conseguisse chegar a tempo para jantar com o pai, o que tornaria necessário inventar alguma história convincente (que, no momento, ela sequer imaginava qual poderia ser!).
Contudo havia mais uma coisa que ela sabia muito bem: era bastante improvável que, fora de seu disfarce, algum dia fosse poder assistir a uma luta, a julgar pelas reações que a irmã, as tias e as primas tinham, sempre que algum dos homens deixava escapar algum comentário sobre aquele tipo de disputa, na frente delas.
Até mesmo Lady Granville, sua tia-avó considerada excêntrica, nunca tinha visto uma luta. tinha certeza disso por causa das muitas perguntas que a velha senhora fizera a dois dos sobrinhos, em um dos últimos almoços em família.
— Eu vou apreciar muito. Tenho a mais absoluta certeza! — declarou, reforçando e rendendo-se de vez.
Tinha a impressão de que, desde o pobre Adão no Paraíso, ninguém havia sido assim tão tentado! E Deus sabia bem que ela não era forte o bastante.



Continua...



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