Capítulo Único
(Fiódor Dostoiévski)
abriu os olhos e, como de praxe, estendeu um dos braços para o lado vago da cama. Frio.
Havia acordado sem o despertador desta vez. Percorreu seus olhos recém despertos pelo criado-mudo, em busca do rádio-relógio: três e quarenta e seis. Ainda meio entorpecida pela sonolência, fez um esforço quase sobre-humano para lembrar-se se havia dormido sozinha aquela noite – mesmo que um lampejo longínquo em sua mente brilhasse em imagens que, sinceramente, estava torcendo para que fossem lembranças –, mas o travesseiro amassado ao lado gritava que não. Suspirou em alívio.
Às vezes, quando acordava, tinha medo de estar com 16 anos outra vez, na cama de seu antigo quarto na casa de sua mãe, a algumas horas de levantar para ir à escola. Não que sua vida aquela época fosse ruim, afinal o conforto de ter tudo feito e pronto no momento em que quisesse era maravilhoso, mas a liberdade que detinha ali, naquele momento, era insubstituível. Podia apanhar um pouco da máquina de lavar de vez em quando, ou esquecer a comida no forno praticamente sempre, contudo saber que aquilo era reponsabilidade exclusivamente sua talvez fosse um dos maiores prazeres do mundo.
Desvencilhou-se dos cobertores e, assim que pôs os pés no pequeno cômodo que integrava a sala e a cozinha em um só, viu a silhueta de , trajada apenas em uma grande blusa de mangas longas e sua roupa íntima, virada de costas e com uma xícara (provavelmente de chá) nas mãos, iluminada pela meia luz que partia da luminária acesa sobre a escrivaninha em que se apoiava. Recostada no batente da porta, se permitiu ter aquela vista por alguns instantes; o sentimento bom que inundava seu peito quando via, falava ou tocava aquela mulher, nos últimos tempos, tornara-se um combustível quase vital. Ao mesmo tempo em que seus dedos formigavam para tocá-la, poderia ficar ali a noite inteira, observando-a terminar sua bebida quente enquanto contemplava o nada, completamente absorta em seus pensamentos.
não era um ícone de beleza, tampouco de qualquer outra coisa – era apenas . Talvez fosse isso que a tornava tão bela: seus traços e trejeitos tão seus, peculiares e de ser. Tinha grandes olhos cor de amêndoa, tais como seus cabelos, curtos na altura de sua nuca, que, caindo para frente, serviam como uma moldura perfeita para seu maxilar anguloso; sua pele clara, agora avermelhada em função dos poucos graus que se arrastavam porta adentro, era, nas costas, salpicada por pintinhas salmão que amava beijar, e seus dedos, finos, detinham o melhor toque que alguém poderia experimentar. O poço de delicadeza que era a doce compunha um atrativo único.
, na ponta dos pés, decidiu enfim aproximar-se daquela moça de pescoço exposto, como se estivesse diante de um convite impossível de ser negado. Abraçando-a por trás, beijou, então, todo rastro de pele exposta e, com os pelos de eriçados sob seus lábios, sentiu um arrepio maravilhoso subindo-a a espinha. Um sorriso apareceu quase que automaticamente no rosto de ao imaginar que estaria sorrindo também.
Sem intervalo entre seus beijos, uma das mãos de subiu por baixo da blusa espessa de lã que vestia, acarinhando, com os dedos frios, a pele quente da barriga dela. Quando o choque térmico que subia seu tronco atingiu a fina tez de seu seio esquerdo, depositou sobre a mesa ao seu lado a caneca e segurou a mão de , titubeando diante de suas carícias.
– Mais uma vez, Isa?
– Eu só quero ter certeza de que você é real.
não pôde conter o sorriso, mas porque sabia que, ainda que fosse verdade o que havia dito, ela dizia por saber como a agradava. , uma mulher formada, tantos anos mais velha que a outra, ainda não era capaz de resistir a comentários elogiosos sobre si mesma; era como se nunca tivesse saído da adolescência.
Na verdade, a experiência com a fazia sentir-se ainda mais adolescente do que propriamente fora, se é que essa possa ser a melhor forma de descrever cada novo descobrimento que fazia todos os dias vivendo com outra mulher. Era de um profundo incômodo pensar que estava agindo de maneira impulsiva e imatura ali, durante aqueles últimos meses em especial, entretanto, ao mesmo tempo, era, em total contraponto, completamente revigorante; ousaria dizer que era, até mesmo, vingador: o que nunca se permitiu viver quando mais jovem, por puro medo, estava vivendo naquele momento.
Por mais que se policiasse demais e tentasse ao máximo viver fora das idealizações românticas a que todas as pessoas são expostas desde sempre (e tivesse ideia de que seu incômodo por, supostamente, não ter mais idade para aquele tipo de experiência não fugia a essa regra), às vezes se encontrava imersa em um sentimento estranho, misto de vergonha e culpa. Seria mesmo certo de sua parte livrar-se tão radicalmente de todas as amarras, colocar em risco o que sua família achava de si e abrir mais margem ainda para comentários e observações indevidas sobre sua vida? Isto é, mesmo que um pouco tarde, de uma hora para a outra decidiu deixar a casa dos pais para viver com outra mulher – bem mais jovem, por sinal – e, embora tivesse sido surpreendida pela complacência deles, sabia que não poderia retornar tão cedo; havia uma questão maior ali. Sua família acreditava que tudo aquilo era puro ímpeto e que, como a ingênua que era, decepcionar-se-ia e então retornaria, com o rabinho entre as pernas, para sob os cobertores do quarto que permaneceria arrumado à sua espera.
Por outro lado, era justo consigo mesma privar-se de viver por causa do julgamento exterior? Foi escolha sua permanecer vivendo com os pais até então, fosse para cuidar de seu pai, que havia pouco ficara doente, e de sua mãe, que não poderia lidar com todas as obrigações sozinha, simplesmente para fazê-los companhia. Não era como se estivesse em uma colônia de férias, afinal. Ajudava com as despesas da casa, com a manutenção interna e ainda participava de todos os assuntos familiares ativamente; se tinha uma coisa da qual a família de não podia reclamar era seu suporte e sua presença.
Era uma mulher adulta. Esse tipo de preocupação deveria ter ficado muito atrás. tinha que aprender a viver o momento, tal como vivia dizendo: “foco no agora. Esta é uma preocupação para a do futuro, ou mesmo para a do passado. E, se for para a do passado, a do presente já não deveria se preocupar mais, certo?”
Certo, pensou. Não sabia à qual cabia tais devaneios destrutivos, mas sabia que aquele não era o momento para se preocupar com isso. Trabalharia cedo no dia seguinte, voltaria à tarde para dar continuidade a seus projetos paralelos e o único tempo que tinha para si era quando tomava banho e estava sozinha com . Quer dizer, tinha o direito de não pensar em nada durante alguns minutos, certo?
enfim decidiu virar-se. Ainda que por vezes tivesse dificuldade de olhar fixamente nos olhos como esta tinha costume de fazer, a vontade de beijá-la os lábios era o que sentia de mais real toda vez que constatava estarem próximas o suficiente para tal. Para a boca de , era toda olhos, ouvidos e, sobretudo, língua; talvez fosse a parte do corpo dela que mais apreciava.
Beijou-a, então, com leveza, afinco e toda a calma do mundo. Por mais que aquela fosse uma das centenas de vezes em que se beijavam, gostava de sentir cada uma delas como se fosse a primeira (e torcia para que, nunca, a última), procurando concentrar cada uma de suas células sensoriais naquela extremidade, sua boca, como se todas fossem capazes de manifestar o mais extenso espectro de sensações ao mesmo tempo. Poderia desintegrar-se bem ali, e seria como o nascimento de uma nova estrela. Dentro da vastidão da galáxia que compunham, era como se um novo Sol brilhasse a cada toque.
adorava comparar ao céu, ao cosmos, ao universo. Dizia ser de Mercúrio e , de muito além, talvez uma personificação de Vênus, tão linda quanto Saturno e, ao mesmo tempo, tão distante quanto Plutão – e, quem sabe, parte de algo ainda maior. Quiçá, , o Sol, que determinava os dias, as noites e as estações, e , mero satélite, que existia somente em função de orbitar secundariamente a sua volta.
Na possibilidade de serem apenas terráqueas e meras mortais, parte de um ciclo finito e sem propósito maior, onde os astros e a poeira cósmica não tenham absolutamente função alguma, elas tiveram a sorte de caminharem em direção ao eco vazio, juntas. Se se desintegrasse ali, dissipando cada átomo que compunha seu ser no ar, deixasse de existir e, por conseguinte, nenhuma estrela nascesse ou morresse em algum universo no mesmo milésimo de segundo, ao menos, enquanto viva, fora capaz de partilhar com alguém a mesma essência para uma fração de sua existência. E, ainda que fatal, não se arrependeria; era um prazer ter o dom de, ao universo de outrem, pertencer.
As mãos de se emaranhavam nos cabelos de , seguravam-na a nuca, massageavam o pescoço, e era como se fosse levada diretamente a uma viagem no espaço por um nanosegundo e, de supetão, voltasse; a experiência por que passava com aquela mulher funcionava como um psicotrópico, agindo diretamente em seu sistema nervoso central e alterando todas as suas percepções, sua consciência. Enquanto a beijava, voava longe, colidia diversas vezes contra as paredes do próprio vazio e, como se nunca obstante, mergulhava no curto-circuito da alta concentração de adrenalina e endorfinas em seu sangue, numa velocidade semelhante à de seu coração completamente desritmado.
Talvez o viés inebriante das carícias de fossem mais semelhantes a um ataque epiléptico do que imaginava, ou um dia sequer pensou imaginar, afinal. Súbito, instantâneo, arrebatador; os seus dedos do pé se contraíam, as pernas ameaçavam fraquejar e os pensamentos, desconexos, eram tomados pela sensação de expansão e contração ao mesmo tempo – poderia, facilmente, fazer um apanhamento dos tantos momentos descartáveis passíveis de troca a mais uns segundos daquele estado mágico. Sorriu por dentro ao pensar em como se orgulharia ao saber que comparava, intimamente, seus sentimentos a fragmentos da obra de Dostoiévski.
O arfar de contra a boca de falava por si só. Sem palavras, traduzia, quase que em uma experiência telepática, aquilo que as duas, em sua inconsciência mais remota, escondiam: o medo de entregar-se de alma é real, mas o ato de fazê-lo, em corpo, é muito mais. O que tinha medo de proferir em voz alta materializava-se de um jeito úmido nos dedos de que, traçando desenhos abstratos e imaginários em cada centímetro que pele por que passavam, viajavam dos fios macios do cabelo da moça até o calor característico sob o tecido frágil que escondia seu interior.
– Eu amo você – disse, em um suspiro entrecortado.
– Eu quero que você me foda – , em um sussurro quase cantado, proferiu, enquanto colocava uma das pernas em torno da cintura de – com força.
O sorriso que dançava no rosto de denunciava seu deleite ao ouvir aquelas palavras escorregarem para fora da boca da outra; não conseguia pensar em uma demonstração de afeto maior ou melhor que aquela. Ela a conhecia tão bem, afinal, que sabia exatamente como e quando dizer um eu te amo da melhor forma.
dizia aquilo – e todas as variações possíveis – porque, de fato, reconhecia o apreço de pelo gesto. Era um pouco insegura demais para tal tipo de conduta, contudo, quando absorta naquele afrodisíaco absurdo que era o conjunto dos dedos e a língua de em si, ah, ela poderia ser o que a outra quisesse que ela fosse.
Justamente por causa disso, carinhosamente a havia apelidado de acordo com seu espectro de personalidade: de Caramelo, a habitual e doce , à Menta com Coca-Cola, a voluptuosa e selvagem. Acreditava que a última seria de maior apreço de – enquanto ela, porém, apreciava ambas de um jeito imensurável.
Achava incrível como, no que provavelmente era o auge de sua vida adulta, ainda tinha as mesmas inseguranças de quando era mais jovem, mais inexperiente – e como aquilo não deixava de ser comum a todo e qualquer relacionamento pelo qual passava a experiência. Até que ponto o romantismo é inconsciente e naturalizado assim? Chegaria o momento de realização pessoal tal que, ao envolver-se com alguém, não se preocuparia mais em agradar incondicionalmente? Será que alguém deixa de se importar antes de morrer?
Depois de ter jogado bem longe a pesada blusa de lã que vestia, percorria todo o tronco desnudo a sua frente com a língua, sem economizar tempo ou saliva. Demorava-se entre os pequenos peitos da moça, rodeando e segurando entre os dedos as duas auréolas de cor amendoada, sem poupar nenhum trecho exposto de suas carícias. Metade de era uma contração interna de prazer, a outra metade, um desconforto existencial.
se dedicava inteiramente àquele corpo, que para ela era como o monumento mais bonito que havia, em toda a vida, tido o prazer de conhecer. Fazia questão de dedicar-se a cada curva, protuberância, detalhe, desvio; cada dobra, cicatriz, estria que estampava tantos metros remendados de pele. Todos eles carregavam uma beleza singular. Por ter demorado tanto a aceitar e sentir-se segura com suas próprias singularidades, faria o que estivesse a seu alcance para que pudesse sentir o mesmo – ou o mais próximo possível disso.
Fosse uns dois anos antes, nem imaginaria ser capaz de chegar a tal nível de intimidade com alguém. Parecia impossível conhecer a si mesma sem que tivesse vergonha antecipadamente do que poderia encontrar – era como se fosse constantemente observada. A adolescente e estupidamente insegura nunca, nunca se imaginaria à vontade o suficiente para fazer qualquer coisa sem pensar no juízo que o observador imaginário estaria fazendo dela.
A boca dela, que agora se enchia do gosto mais genuíno de , beijava-a aqueles lábios como se fosse, de fato, a boca dela ali: lambia, sutilmente mordiscava, sugava e deixava espalhar e misturar o sabor com a própria saliva. tentava manter os olhos fixos na face retorcida de deleite de Fernanda, e toda vez que seus olhares se cruzavam, as mãos da última, enroladas entre os cabelos da moça grudada em seu ventre, puxava, afastava e mergulhava novamente sua cabeça contra o próprio corpo, desviando seus olhos e desafiando as leis da física – dois corpos talvez pudessem, sim, ocupar o mesmo espaço (ou uma única carne).
Os dedos de , em total dessincronia com sua língua, redescobriam as outras partes do corpo de , seguindo o mapa detalhado que tinha guardado em sua mente. Apertava suas coxas, seus seios, seus braços, a parte imediatamente abaixo de seus joelhos, cada lugar a seu alcance (toda parte do corpo dela, àquela altura, parecia erógena demais) temendo que, como areia, aquela mulher escorresse entre qualquer vão.
Os suspiros e palavras quase ininteligíveis que escorregavam da boca de ecoavam pelo cômodo como se, em sintonia com o estalo do vácuo do desgrudar dos lábios de de sua pele, formassem o prelúdio de uma sinfonia clássica – o desconcerto em não compreender em essência a beleza, mas ansiedade para o momento em que o violoncelo atingirá seu ápice. era pura arte; era uma composição, a inspiração, o instrumento, a tela e o pincel. A musa.
não conseguia pensar fora da bolha de devoção àquela mulher. Sabia que nela havia algo de bem mais profundo do que o sentimento dilacerante de luxúria ou paixão; a aura cristalina de revelava o reflexo de uma parte que , durante muito tempo, negligenciou em si mesma. Era a raiva por ver seu rosto no espelho – e a delícia de aprender a apreciá-lo. Como bem diria Oscar Wilde, “Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco. Os que procuram decifrar o símbolo correm também seu próprio risco. É o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflete”.
Era um tanto narcísico perceber e admitir tal condição, mas sabia que, mesmo que o mundo não seja construído por verdades absolutas, no auge do século XIX, Oscar Wilde talvez tenha sido o ser humano mais próximo do verossímil. O que é o amor se não mais uma das infinitas linguagens da arte? E o que é essa linguagem, se não uma expressão da faceta mais real e disforme do inconsciente humano – selvagem e egoísta?
É claro, também, que todo esse arquétipo romântico fora moldado àquela época e, provavelmente, sem o Romantismo, nenhuma das experiências amorosas modernas teriam sido como foram ou hão de ser. Contudo, já que se trata de uma realidade, aliada às transformações do mundo, essa linguagem complexa da arte transformou-se numa maneira de canalizar as mais intrínsecas inseguranças humanas engatilhadas da maneira mais subversiva possível. Afinal, basta apaixonar-se para descobrir quais as maiores questões mal resolvidas de personalidade que uma pessoa destruída pelo modo de vida social tem; seria o amor, além de arte, psicanálise também?
riu para si mesma, expirando o ar contra uma arrepiada e arqueada sobre a escrivaninha, pronta para atingir seu ápice, dividida entre duas dimensões: a real e a de seus pensamentos. Questionava-se seriamente se devaneios existenciais em momentos inoportunos como aquele acometiam-na exclusivamente ou se era uma regra secreta universal. Nunca saberia.
Era fato, contudo, que consumar tamanha proximidade física era uma prova para as duas mulheres. Podiam estar dedicadas em dar a outra a melhor experiência possível, mas estavam sempre inevitavelmente presas ao próprio universo. Por que as inseguranças pesavam tão mais do que os próprios corpos?
, logo abaixo dos beijos ininterruptos de , contraía-se internamente no que era o primeiro orgasmo daquela vez: o pensamento, antes acelerado, atingiu uma velocidade imensurável e, logo em seguida, desacelerou-se, ao passo em que seu organismo continuava a milhão; as endorfinas eram liberadas aos montes para controlar aquela adrenalina insana e o reflexo direto parecia acontecer nos dedos dos pés, que sentiam atrofiar-se, e nas outras extremidades de seu corpo, que adormeciam, para depois ficarem sensíveis. Extremamente sensíveis. Quando, ciente do estado de , subiu seus lábios, envolvendo um dos mamilos dela neles, a moça soltou um gemido quase gutural – ser beijada naquele estado era quase mágico.
, então, num movimento ainda meio torpe, puxou Isadora para si, segurando-a pela blusa que ainda vestia. Seria sua vez de retribuir, com juros, aquele turbilhão de sensações à parceira. O pontapé inicial já havia sido dado; agora sentia-se mais disposta a fazê-lo do que nunca.
Sentada na escrivaninha e envolvendo entre suas pernas, despiu-a com lentidão da camisola que vestia, assistindo com atenção cirúrgica cada roupa que deslizava por sua pele revelando gradualmente uma nudez majestosa. não sabia se era mais prazeroso o toque delicado das mãos de pianista de sobre si, ou toda aquela admiração (mútua, por sinal).
– Eu não sei o que amo mais em você – sussurrou, com a boca próxima da de –, só que suas mãos com certeza disputam o primeiro lugar.
Dito isso, ela então juntou suas bocas e, pegando a mão perdida de em suas costas, deslizou-a lentamente à calcinha que persistia em seu corpo, permitindo que a adentrasse. Os dedos finos de não demoraram a começar a agir: em poucos minutos, a outra moça estava completamente entregue ao vacilar hipnotizante de suas pernas.
havia descoberto naquela outra mulher uma sexualidade antes por ela mesma completamente desconhecida. Não no sentido de gostar de outras mulheres, já que isso era sabido desde que era muito pequena, todavia um apetite, uma atração diferente; desde o primeiro momento em que pousou seus olhos sobre a moça que vestia um largo moletom do Frajola, uma chama estranha borbulhava na boca de seu estômago – e sob suas calças, também. Um tipo de atração que não marcava nenhum de seus relacionamentos anteriores.
A princípio, sentia-se completamente intimidada pelo conhecimento e articulação de , que sempre fora conhecida por ser muito inteligente (além de cativante num nível quase inexplicável). Quando começaram a conversar de maneira casual, sem que fosse por assuntos acadêmicos, ainda sentia um medo quase corrosivo de dizer alguma besteira e fazer com que Nanda recuasse ou a achasse muito estranha. E ela, em total contrapartida ao que a outra pensava, sentia exatamente a mesma coisa com relação a .
As duas construíram um vínculo de maneira natural, o que tornou tudo incrivelmente fácil; sem a pretensão do tempo, quando se deram por si, para a surpresa e extrema felicidade de , beijavam-se sob a marquise do restaurante universitário, logo após uma palestra que dera horas antes, enquanto esperavam a chuva passar. Aquela tinha sido a primeira vez que beijava uma mulher, enquanto para , era a primeira vez que beijava alguma pessoa com a certeza de que não se arrependeria depois.
– Você não acha muito estranho estar com uma mulher mais velha?
Passando a ponta gelada de seu nariz no pescoço de repetidas vezes – ao mesmo tempo em que fazia desenhos abstratos com os dedos na pele imediatamente sob os seios dela –, sibilou as palavras em um tom quase inaudível. Fez com que a outra esboçasse um riso; estava cansada demais para fazer mais do que isso.
– Toda mulher mais velha te faz gozar cinco vezes numa mesma noite?
não a via, mas sabia que , mesmo com o rosto ainda escondido em seu pescoço, estaria com o típico olhar de reprovação estampado no semblante, ainda possivelmente ruborizada. Com o tempo que passaram juntas, já havia entendido que a linha tênue que separava a Caramelo da Menta com Coca-Cola eram os vinte segundos de excitação insana (dos quais ela sofria cronicamente).
Riu fraco outra vez e sentiu os músculos faciais protestarem; era como se tivesse sido atropelada por um trem, no melhor dos sentidos (embora o bom tivesse acabado de ser criado por ela).
– Tudo bem, tudo bem, Caramelo – deu-se por vencida. Depois daquela noite talvez tivesse realmente colocado a Menta com Coca-Cola para dormir – , se eu perdesse um fio de cabelo toda vez que você me perguntasse isso, talvez não sobrasse um pentelho para contar história.
riu, soltando a respiração na dobra do maxilar de , que a segurou mais fortemente conta si. Seus dedos paravam gradualmente com o carinho, cansados.
– É que eu me sinto muito antiquada estando com você, entende? Eu a amo, mas é como se estivéssemos quebrando regras o tempo todo...
Aquilo deixou desconfortável. Seu braço afrouxou-se em volta de .
– Amar mulheres é revolucionário, . É político. E não só amar romanticamente – afastou uma mecha de cabelo do rosto dela, enrolando-a no dedo – Amar sua mãe, sua avó e sua irmã é revolucionário. Amar a si mesma é revolucionário. Você, a doutoranda de literatura brasileira mais inteligente que eu conheço, bem sabe do processo histórico que transformou a vida no que ela é hoje: para sobreviver à loucura e ao caos da vida em sociedade, meu bem, a gente precisou se agarrar a coisas que não existem, sendo o amor (sobretudo o próprio) uma delas.
“Quando decidiram dividir os papéis a serem desempenhados por cada um lá no Neolítico, isso se tornou imprescindível – ou você se ama, ou se agarra ao esotérico ou é devorada pela supremacia de pessoas com uma tripa pendurada no meio das pernas. Nenhum deles é capaz de salvá-la da danação provocada por esse tanto absurdo de informação lançado todos os dias, e esse é o segredo. De um jeito ou de outro, você morre no final sendo condenada por algo que fez, ainda que nunca tenha sido inconfidente às normas sociais mais absurdas que nos acometem, então o que resta é experimentar de todas as possibilidades e esperar sentada pelo julgamento.”
esboçou um sorriso tímido. Sabia que tudo aquilo era verdade: mesmo se não estivesse namorando uma mulher, com certeza teria arrumado outra coisa para se preocupar e render um peso muito maior do que realmente tinha. Não se lembrava de ter feito qualquer coisa até ali sem que se preocupasse demais com problemas que, por vezes, nem existiam.
– O mais revolucionário disso tudo é que aprendo a amar uma nova coisa sobre mim todo dia estando com você – puxou o ar para dentro dos pulmões, com força – eu tive tantas experiências amorosas frustradas com outras pessoas, homens, que me fizeram acreditar que eu tinha de amá-los justamente pelo fato de não gostar de coisas sobre mim mesma. Era quase como se eles estivessem me dando uma recompensa: “olha só, você esconde todos esses defeitos e me tem em troca. Eu sou a maior conquista que você vai ter na vida”.
– Acho que se tem um presente que eu ganho ouvindo-a falar, é saber que alguma confiança ainda reside nessa coisa molenga e grudenta que é a – beijou-a o topo da cabeça – Se você soubesse o quão foda é, talvez não tivesse desperdiçado mais de uma década atrás daquele orientador estúpido da faculdade.
Era uma situação engraçada, mas com o potencial cômico tragicamente reduzido pelo quão triste (e recorrente) era: um homem mais velho e casado que enrola e humilha uma mulher mais nova por causa da própria vida frustrante (e por egoísmo também). A mesma velha história.
riu.
– Apaixonar-se por orientadores é mais frequente do que parece. Você fala como se fosse algo extraordinário.
– Extraordinário é uma mulher como você passar tanto tempo acreditando que precisava de alguém como ele – disse, mexendo-se de maneira desconfortável sobre os lençóis – Quando a vi toda majestosa nos corredores daquele campus eu jamais imaginaria que um velho careca e barrigudo seria uma fonte tão rica de problemas na sua vida.
riu com gosto. Achava engraçado como a via daquela maneira tão diferente do que imaginava transmitir para as pessoas; acreditava ser tão vulnerável, tão transparente, que todos a sua volta eram capazes de decifrar suas maiores agonias a partir do momento em que abria a sua boca. A verdade era que descobria e redescobria constantemente a capacidade individualista das pessoas – ninguém dava a mínima para ninguém e não sabia dizer se isso era uma angústia em potencial ou um ponto de conforto. Ah, as dualidades diárias de uma vida tangida por uma filosofia de vida neoliberal.
– Você fala do Roberto como se ele fosse a personificação da velhice. Ele tem lá uns anos a mais de vida do que eu, mas não era careca e barrigudo – disse e ergueu o olhar, percebendo uma das sobrancelhas de arqueadas em sugestividade – Tudo bem, tudo bem... Talvez ele estivesse meio careca.
manteve a expressão divertida. deu-se por derrotada:
– ...E fora de forma também.
– Você é muito gentil, . Esse cara tem idade para ser meu avô.
Dessa vez, as duas caíram no riso. A imediata última experiência amorosa de rendia boas histórias, mesmo que não fosse páreo para o currículo extenso que tinha na área.
Aquela era a primeira experiência de com outra mulher, enquanto talvez estivesse partindo o que poderia ser a quinta (na verdade, elas não mantinham uma lista atualizada, mas o número com certeza ultrapassava três) e aquilo, no princípio daquele relacionamento, compunha um grande pé atrás. Sentir-se inexperiente é aterrorizante – sobretudo quando se deveria ser, supostamente, mais vivido do que a outra pessoa. Ainda bem que fora implacavelmente boa em fazê-la sentir-se confortável o suficiente para esquecer essa hierarquia de faixa etária.
Bem, não havia outra palavra que pudesse descrever melhor o sentimento que imperava ali a não ser realidade. considerava a pessoa mais real que havia conhecido, e a recíproca era absolutamente verdadeira. Talvez a sinceridade possa ser a maior virtude e o maior laço que duas (ou três ou múltiplas pessoas) possam cultivar num relacionamento, baseie-se ele num princípio romântico ou não.
Sentir-se tão real era substancial para . Por vezes, não se sentia sequer vivendo qualquer que fosse o momento em que estivesse inserida; era como se fosse espectadora, e não protagonista, da própria história, vivendo em suspensão seu quotidiano. Não era muito fã de ter encontrado sua âncora em uma outra pessoa (afinal sempre presou por viver bem e confortável em sua própria presença, e lutou muito para que isso acontecesse) e, por vezes, relacionar sua estabilidade a um laço amoroso parecia intimamente ligado a relacionar todos os seus esforços e tempos de reclusão em busca de sentido ao fracasso.
Seu maior objetivo sempre fora tratar a solidão como algo positivo – a liberdade para ser, contemplar e entender quem e o que realmente é. Talvez fosse um tanto radical em por muitas vezes menosprezar o contato com outras pessoas, tendo aberto mão de tantas experiências coletivas, mas uma coisa era fato: suas maiores descobertas e melhores lembranças eram de momentos em que desfrutava da própria companhia. Acreditava que a solitude mais era uma virtude do que propriamente sinônimo de uma condição triste de existência. Para ela, estar sozinha era o primeiro passo para nunca mais estar.
Com isso, buscava não afixar raízes em pessoas – cada qual tem suas próprias raízes com as próprias origens, e isso basta. Nesse sentido, provavelmente coubesse dizer que preferia plantar sementes e deixar que elas florescessem conforme a vontade de as outras pessoas deixarem isso acontecer: a tal da reciprocidade. Pensava que esta não era o objetivo final, o fim último, porém uma consequência agradável do que trazia consigo mesma. E, bem, assim a vida tornava-se bem mais leve; ter buscado incessantemente por correspondência compunha quase todo o peso de sentir as coisas.
Assim, via também que o problema não estava em sentir, só em atribuir pesos desproporcionais às situações justamente por buscar em tudo uma mutualidade, sem antes levar em consideração o ritmo próprio das coisas e das pessoas. Será que vale mesmo a pena munir-se de mil pedras para evitar a dor? A graça mora nos contrastes, nos altos e baixos; a sensação de suspensão no tempo é cortada quando se percebe sangrar.
não precisava de outrem para sentir, só que também deixava tudo nas mãos do acaso. Decidir que não se privaria mais de algumas experiências por medo de um juízo imaginário inexistente fora de fundamental importância para que seu caminho cruzasse o de naquela manhã chuvosa de segunda-feira (que a outra dizia ser numa tarde ensolarada de quinta) e era profundamente grata por isso. Tinha vontade passar o resto de seus dias envolvendo em seus braços, mas também respeitaria caso não passasse; estar sozinha não seria fracasso e a experiência com aquela mulher provavelmente constituiria um de seus maiores tesouros.
Juntas, descobriram que segurar-se a definições preestabelecidas de amor era pura perda de tempo, ou, como diria, “é querer escalar o Everest de maiô e alpargatas”. Bem, seria burrice também, afinal, este compõe um dos maiores questionamentos da humanidade – e é impossível estabelecer uma universalidade a experiências tão pontuais e singulares como as relações que as pessoas desenvolvem entre si; tantas coisas condicionam um laço como ele realmente é, por que atrelar-se a uma definição comum?
No dicionário delas, amor é um verbete de quatro letras, duas sílabas e sem gênero. Plural ou singular – amar-se a si ou a outro, outrem. Significado único: despir-se de quaisquer projeções externas e ser quem é, na expressão mais limpa e cristalina do ser; permitir-se aceitar o outro sem criar raízes; saber apreciar a companhia e desfrutar a solidão.
Fim
Nota da autora: Oi, menines que chegaram até aqui!
Escrever essa história foi uma experiência surreal para mim. Acho que é uma grande responsabilidade retratar um assunto tão lindo e tão delicado de maneira a contemplar e representá-lo dignamente. Eu queria tornar tudo isso o mais natural possível – porque, afinal, existe algo mais natural(izado) para nós do que a experiência de gostar de alguém? Espero, do fundo do coração, que eu tenha conseguido.
Obrigada a quem leu até aqui. Deixem suas opiniões, um comentariozinho bem curto ou qualquer coisa que me sinzalize que vocês leram. É muito importante! Até a próxima!
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Escrever essa história foi uma experiência surreal para mim. Acho que é uma grande responsabilidade retratar um assunto tão lindo e tão delicado de maneira a contemplar e representá-lo dignamente. Eu queria tornar tudo isso o mais natural possível – porque, afinal, existe algo mais natural(izado) para nós do que a experiência de gostar de alguém? Espero, do fundo do coração, que eu tenha conseguido.
Obrigada a quem leu até aqui. Deixem suas opiniões, um comentariozinho bem curto ou qualquer coisa que me sinzalize que vocês leram. É muito importante! Até a próxima!
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