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Última atualização: 16/12/2020

#1 400 Lux - Lorde

! ― as paredes da minha casa eram finas o suficiente para ouvir até mesmo passos envoltos em meias impecáveis, quem dirá meu nome sendo pronunciado de maneira rígida e forte pela voz sisuda de meu pai.
Sabendo o que viria a seguir, saí do quarto, andando lentamente em direção à sala. Por mais que fosse relativamente mais baixo que a média masculina, meu pai sempre fora uma figura imponente, de postura ereta e caminhar firme. Porém, nem sempre fora assim. Nos álbuns de fotos de família, ao lado de minha mãe, meu pai era a figura sorridente, de feições tranquilas e olhar caloroso. Sua testa ainda não possuía marcas de tanto se franzirem e se rosto não se parecia com uma máscara calcificada de mau-humor.
― Me explique isso aqui! ― quase enfiou a folha de papel com minhas notas na minha cara. ― Você não só tirou nota baixa em quase todas as matérias, como está quase reprovando em literatura!
― Esse é o rolê da , não o meu. ― rebati.
― Primeiro de tudo: fale como uma pessoa decente. Segundo: deixe sua irmã fora disso. ― apontando com o indicador para mim, prosseguiu: ― , você e sua irmã só tem um único trabalho obrigatório nesta casa, que é estudar, mas, se nem isso você faz direito, o que eu deveria fazer você, hã?
Em silêncio, esperei-o continuar com as acusações, iniciar a palestra e me castigar, exatamente igual a todas as outras vezes.
― Por que você não pode ser um pouco mais parecida com a sua irmã? ― ajeitou sua postura, passando uma das mãos pelo rosto enquanto descansava a outra em sua cintura. ― Sua professora falou que você terá que ser encaminhada para a monitoria pedagógica com um colega de turma avançada. ― a monitoria pedagógica nada mais era do que adotar um nerd de estimação para que ele te ensinasse a fazer algo que te gerassem notas mais altas, como contas e resenhas de livros entediantes.
Revirei os olhos, cruzando os braços.
― Me dá seu celular. ― estendeu a mão em minha direção. Bufando, entreguei o aparelho para ele. ― Enquanto suas notas não melhorarem nada de celular, televisão ou eletrônicos de entretenimento em geral. Você está proibida de sair de casa para qualquer coisa além de ir para a escola e para a sua monitoria e sou eu que vou te levar para ambos. Se você precisar faltar às aulas ou as monitorias, eu vou avisar a secretaria da sua escola e seu monitor. E você só vai sair mais cedo das suas monitorias quando eu avisar com antecedência.
Quando era mais nova, costumava implorar e, se necessário fosse, chorar, me jogar no chão para conseguir um alívio em minha “pena”. Geralmente, esse truque funcionava com a minha mãe, que convencia meu pai a ser menos rígido comigo e com , pois ainda éramos crianças. Todavia, depois que minha mãe foi embora, nada mais era capaz de comovê-lo, por isso, em determinado momento, apenas desisti de tentar.
Entediada e irritada com a situação, tudo o que consegui dizer ao final de sua fala foi:
― Já acabou? ― antes que respondesse, fui para meu quarto, fechando a porta corrediça, trancando-a.
, sentada sobre as pernas em frente à chabudai ― uma mesinha baixa que usávamos como escrivaninha ― encostada na parede, encarava-me com os olhos arregalados por trás dos óculos de grau, tentando entender o que estava acontecendo.
― Por que eu não podia ter nascido tipo você? ― joguei-me na almofada ao seu lado. ― De que me adianta ser gostosa se isso não me faz ser aprovada em literatura? ― deu uma risadinha baixa, ajeitando os óculos.
― Você só precisa ler a droga do livro e escrever o que achou sobre ele, o que tem de tão difícil nisso?
― Pra você é fácil falar, já leu a maioria dos livros que os professores passam antes mesmo de eles pedirem.
― Se você pensasse menos em garotos e festas, talvez te sobrasse algum tempo para descobrir que ler não é tão ruim quanto você pensa que é.
― E se você pensasse menos sobre os amores impossíveis que vive lendo, talvez te sobrasse algum tempo pra beijar alguém de verdade. ― franziu o cenho, mostrando desagrado com a minha crítica.
― Só estava tentando te ajudar.
― Não é bem esse tipo de ajuda que eu preciso no momento.
― O que você vai fazer? ― com o cotovelo sobre o tampo da chabudai, apoiou a cabeça na mão.
― Fui encaminhada para a monitoria pedagógica. ― novamente, riu baixinho. Não conseguindo me segurar, sorri e dei um soquinho em seu braço.
― Então, você vai ser obrigada a fazer amizade com um nerd?
― Sei que tenho sido atéia nos últimos tempos, mas que os Kamis olhem por mim. ― ergui as mãos aos céus, pedindo as entidades soberanas que me ouvissem.
― Não seja dramática, é só um semestre.
― Assim espero.


Na escola, durante o intervalo, fui procurada pela senhora Martinez, nossa professora idosa de literatura, para que ela pudesse me entregar a folha de relatório que deveria ser entregue para meu ou minha monitora, que a preencheria a todo final de mês com meu progresso nos estudos. Antes de partir, a senhora, vestida com um vestido florido e cardigan, informou-me que deveria encontrar com minha monitora na sala de estudos da biblioteca, após o término das aulas. Conferi na folha o primeiro nome de quem faria um milagre em minha nota e sem querer gargalhei. A nerd que me apadrinharia se chamava Hulda. Que porra de nome é Hulda?
Ao fim do meu último tempo, fui até a tal sala. Do lado de fora, pela janela via a cabeça coberta por cabelos castanhos claros, amarrados em um coque. Ao abrir a porta, a figura virou-se em minha direção.
? ― franzi as sobrancelhas, olhando ao redor para ver se encontrava minha monitora.
― Olá, .
era uma garota de 16 anos, poucos centímetros mais alta que eu, de longos cabelos encaracolados, que quase sempre estavam presos. Tinha olhos grandes ornados por cílios bem definidos e curvados. Suas roupas não variavam, visto que, ao que parecia, ela tinha um guarda-roupa infinito de vestido vintage com as mais diversas estampas de bichinho, flores e comidinhas fofas, que, aliás, lhe caíam muito bem.
Vinda de uma cidade ao norte do estado, a família de havia se mudado para o bairro vizinho ao meu na metade do ano anterior e, como de costume, enquanto era o que chamavam de “carne fresca”, foi importunada pelo seu sotaque, pelos seus vestidos que iam até os joelhos, mas, principalmente, pelo seu peso.
As ofensas pararam apenas quando a orientação pedagógica recebera uma denúncia anônima com os nomes de quem as fazia.
― Você não viu alguém que esteja esperando pelo seu aluno desesperado por nota em literatura?
― Eu vou ser sua monitora.
― Mas aqui diz que o nome… ― olhei o cabeçalho do relatório em minhas mãos novamente. ― Aaaaah! ― segurei uma risadinha debochada. ― Seu primeiro nome é Hulda? ― apesar de eu estar prestes a explodir em risadas, a garota a minha frente continuava séria.
― Eu não o uso. Só minha família me chama assim. ― deu um sorriso engessado e ameaçador, como quem quer encerrar um assunto.
Sentei-me à sua frente, largando minha mochila no chão.
― A senhora Martinez fez o seu encaminhamento porque você está com problemas em literatura, certo?
― Certo.
― Qual é a sua dificuldade?
― Ela passa livros chatíssimos e quer que a gente leia todos eles. E o pior: ela quer que a gente escreva sobre eles. ― deu uma risadinha anasalada.
― Você só pode tá brincando comigo. ― ironizou.
― Eu tô falando muito sério, gata. ― respondi.
, é uma aula de literatura. É óbvio que você vai ter que ler os livros. ― cruzou os braços sobre o tampo da mesa. ― Você não gosta de ler nada? ― meneei a cabeça negativamente com uma careta. ― Parece que vamos ter bastante trabalho pela frente, então. ― bateu com as mãos na mesa de leve com um sorriso. ― Fiquei sabendo que o trabalho final vai ser uma apresentação de uma resenha sobre Romeu e Julieta.
― Chaaaaatooooo. ― joguei a cabeça para trás para demonstrar tédio.
― Mas você conhece, certo?
― Nunca li.
― Mas sua irmã era a mãe da Julieta na peça do final do ano passado.
― Por favor, estamos conversando a menos de 20 minutos, não comece a mirabolar comentários xenofóbicos sobre como posso ser asiática e burra ao mesmo tempo.
― Eu não tinha pensado isso. Só achei que…
― Porque somos gêmeas compartilhamos gosto pelas mesmas coisas? ― completei sua frase em tom de deboche. ― e eu só nos parecemos fisicamente. ― sorri. ― Ela faz álgebra avançada e eu ainda tô tentando descobrir pra que serve um teorema de pitágoras. ― riu e não pude deixar de notar que ela ficava muito bonita daquele jeito.
― Bom, como eu já sei que te pedir pra ler o livro de cara não vai adiantar de nada, podemos assistir algumas adaptações para o cinema. O que acha?
― Tipo, agora?
― Nossas aulas terão duas horas e meia de duração, então, temos tempo para assistir pelo menos um hoje.
― Parece bom pra mim.
― Não vamos apenas assistir, ok? Ao final, vamos comentar e, pra próxima aula, preciso que me traga uma resenha de 30 linhas sobre o filme. ― soltei um muxoxo. ― Você quer passar, não quer?
― Eu preciso.
― Então, preciso que você se esforce. Pelo menos o mínimo, combinado? ― estendeu a mão para mim para fizéssemos uma acordo. Revirei os olhos, mas fechei o acordo segurando sua mão de volta.
― Combinado.
― Vamos assistir Romeu + Julieta, então? ― levantou-se e ligou a televisão sobre a estante. Mexendo em sua bolsa, tirou uma capa de DVD.
― Você sempre anda com filmes dentro da sua bolsa? ― brinquei.
― Eu preparo todas as minhas aulas. ― respondeu sem tirar os olhos de sua tarefa.
Assenti, franzindo os lábios para baixo, acompanhando cada um de seus movimentos.
Quando a músiquinha de abertura do filme começou a soar, sentou-se ao meu lado e eu podia jurar que aquelas seriam as duas horas mais longas da minha vida. Entretanto, passados os primeiros minutos, vi que Romeu era interpretado por nada mais nada menos que Leonardo DiCaprio, o que já me deixou bem mais animada do que antes.
No fim das contas, não era um filme ruim. Na verdade, era um ótimo filme para se assistir de TPM acompanhada de um pote de sorvete de flocos em um dia de frio.
Quando a tela ficou preta e as letras dos créditos começaram a subir, tirou o CD de dentro do aparelho, guardando-o de volta na capa e pondo dentro de sua bolsa.
― E então? O que achou? ― sentou-se à minha frente outra vez.
― Achei que fosse pior. ― dei de ombros.
― E o que mais?
― Precisa de mais? ― arqueei uma das sobrancelhas.
― Sim, uma resenha é construída através de um texto crítico, apontando os pontos fortes e fracos de uma determinada obra, sem que isso vire uma opinião pessoal ou um ataque ao criador da obra.
― Não sei muito bem o que dizer, além de que a versão jovem do Leo sempre me faz quase ter um ataque cardíaco. ― sorri, fazendo-a corar um pouco.
― Me diga quais foram suas impressões sobre a história.
― Apesar de ser tudo muito triste, Julieta não deveria aceitar o primeiro cara que jura amor eterno. Qual é? Dar uma faca no próprio peito por causa de macho? Obrigada, eu passo.
― É uma boa análise.
― Apesar de tudo, é uma história muito triste. Eles tiveram muito trabalho pra nem conseguir dar umazinha sem ser escondido. ― seu rosto adquiriu uma coloração avermelhada muito forte. Segurei uma gargalhada para que a garota não achasse que eu estava rindo dela.
― Nosso tempo está acabando e seu pai já me mandou mensagem dizendo que está te esperando do lado de fora. Isso e outras coisas que você observou podem ser escritas na sua resenha da próxima semana. Não esquece, hein? ― peguei minha mochila do chão e me encaminhei para a porta.
Com a mão na maçaneta, olhei-a uma última vez.
? ― chamei-a e a mesma me olhou.
― Obrigada.
― Não me agradeça ainda. Temos muito trabalho pela frente. ― assenti e saí.
No estacionamento, o carro de meu pai era um dos poucos por lá. Adentrei no veículos, conferindo que o banco traseiro estava desocupado.
― Onde tá a ? ― perguntei, vendo-o ligar o carro e rumar para a saída do pátio.
― Em casa. Ela não está de castigo. ― revirei os olhos e mirando a rua pela janela.
À medida que íamos nos afastando do centro, o número de árvores e o espaço entre as casas aumentava. Quanto mais o cenário se transformava, significava que estávamos mais perto de casa. Não queria chegar lá. Era dia de e eu limparmos o salão do templo. Não bastava apenas estar de castigo.
Ao chegarmos em casa, corri para o quarto, troquei de roupas e fui encontrar com minha irmã, que, pelo que eu a conhecia, já deveria ter começado a faxina.
― Demorei muito? ― questionei, amarrando os cabelos ao chegar.
― Não. Acabei de de vir para cá. Pega. ― entregou-me o rodo.
― Será que o velho vai encher muito o saco se ligarmos o som?
, você não deveria brincar com a sorte. ― advertiu em tom maternal.
― Vai, , por favor. Faz, sei lá, dois dias que não ouço uma música que não seja produzida por elementos da natureza. Eu tô começando a ficar zen! ― quase gritei, fazendo-a rir. ― Eu não tenho dinheiro pra encher meu rabo de doce e deixar de ser zen. Me ajuda, irmãzinha. ― juntei as mãos em frente ao rosto, implorando para ela.
― Tudo bem, mas baixinho. Não quero que ele venha aqui, ok? ― foi buscar um pequeno e antigo aparelho de som que nosso pai guardava no escritório dos fundos.
Assim que voltou, ligou-o na tomada, deixando-o sobre uma cadeira plástica, próximo à parede. Sintonizando uma rádio aleatória, pelo ambiente, começou a soar baixinho Oops!… I Did It Again. Fiz alguns passinhos de dança enquanto acionava a mangueira, jogando água por todo o chão do salão. Minha irmã riu baixinho.
― Quem é seu monitor?
.
― A dos vestidos bonitos? ― questionou, ajeitando os óculos.
― Essa mesma. ― comecei a tirar o excesso de água com o rodo.
― O que achou?
― Ela é legal. ― dei de ombros.
― Estou falando da aula dela.
― Acho que ela meio que achou que eu fosse tipo você, mas estava com dificuldade.
― Acho que ela só não quis te subestimar.
― Por que ela faria isso? ― ajeitei a postura, olhando-a. ― Quer dizer, eu tô quase reprovando!
― Porque não é educado. Além do mais, reprovar na escola não significa que você não seja inteligente, só é desleixada mesmo. ― deu de ombros.
― Uau, irmãzinha, é por isso que eu amo você.
― Não, não é por isso. Meu dever de matemática não te deixa mentir. ― rimos. ― De qualquer forma, eu sei que você vai se sair bem.
― Como pode ter tanta certeza?
― Você tem lábia e é autoconfiante, o que já é meio caminho andado.
― Obrigada. ― sorri, convencida.
Assim, seguimos limpando o local ao som de músicas pop que eu não ouvia há pelo menos 10 anos.


#2 Love On The Brain - Rihanna

Sentei-me para fazer a primeira resenha de filme na noite anterior a entrega. Havia pensado um milhão de vezes se não seria melhor pedir a para fazê-la ou pagar alguém que a fizesse. No entanto, lembrei-me de e do quão legal ela havia sido ao planejar uma aula especialmente para mim, onde eu não precisava começar lendo um livro entediante desde o primeiro dia. Portanto, sem saber muito como fazê-lo, escrevi o texto colocando tudo o que me lembrava que poderia ser bom ou que era duvidoso no filme.
Ao me devolver corrigido, havia me dado um 6,5, pois, segundo ela, “as ideias eram boas, porém não estavam claras o suficiente. Não haviam erros ortográficos, mas não apresentava uma reflexão sobre o conteúdo”. Fui obrigada a concordar e até fiquei contente de saber que o resultado não tinha sido tão ruim quanto eu esperava que fosse.
E, desta forma, nossas semanas se seguiram. trazia adaptações novas e velhas da história, assistíamos e, por fim, eu escrevia e lhe entregava resenhas. Na devolução da quarta, pediu-me que eu lesse pelo menos metade do primeiro ato em casa para discutirmos na aula seguinte. Por alguma razão, minha maior preocupação era ler, não entender nada e precisar que ela ficasse me explicando.
e eu estávamos nos dando bem e, assim como eu, ela estava surpresa com o fato de que eu não era tão ruim assim. E, sem entender muito por quê, eu queria impressioná-la. Queria que ela continuasse a ver potencial em mim e que não achasse que eu era um total desperdício de tempo, quase como se quisesse que ela me notasse.
Um dia, no intervalo entre as aulas do penúltimo e último tempo, me disse que, como sua mãe era sua carona para casa e esta, que era médica, começaria um turno de 24h no fim da tarde, não poderia ficar para a nossa aula a não ser que eu fosse para sua casa para estudarmos. Informei-a sobre meu castigo e que não podia sair de casa para outras finalidades que não ir para a escola. prometeu que ligaria para meu pai e pediria sua permissão para que eu dormisse em sua casa.
Ao término das aulas, esperava-me do lado de fora da minha sala, encostada na parede, mexendo no celular.
― Matando aula? ― brinquei.
― Meu último tempo hoje estava livre. Seu pai falou que você pode ir.
― Mesmo? ― franzi o cenho, surpresa.
― Sim. Olha. ― mostrou-me as mensagens que trocara com o homem.
Já no início, ele pedia o número de sua mãe para confirmar se era verdade. A mensagem que veio minutos depois era de permissão para minha noite fora.
― Vamos. Minha mãe está nos esperando. ― segui-a para fora da escola.
Passamos e Daniel, que, apesar de já terem nos visto juntas durante nossas aulas na sala de estudos na biblioteca, lançaram olhares surpresos e sorrisinhos marotos em minha direção. Conhecíamo-nos desde o quinto ano, quando montamos o time de queimada mais imbatível na educação física. Ambos, provavelmente, achavam que eu só estava me aproveitando da garota ou algo do gênero.
Dei de ombros e um meio sorriso e continuei andando atrás dela.
Vestida com uma roupa comum, a mãe de tinha uma vibe de mulher baixinha. Mesmo sentada, conseguia deduzir que ela devia ter mais ou menos a minha altura. Suas expressões faciais eram sérias, mas não de jeito carrancudo como o de meu pai, tanto que isso não a impediu de lançar um sorriso simpático para mim ao me cumprimentar.
Não fosse pela música baixinha que saía dos alto-falantes, o veículos estaria no mais pleno silêncio e, desta forma, seguimos até sua casa. Por mais que aquele fosse o bairro vizinho ao meu, ainda era muito mais próximo da escola. Antes que descemos do carro, a senhora nos avisou que havia dinheiro para pedir pizza em cima da mesa da cozinha. Acenamos e, assim, ela voltou a acelerar, sumindo de nosso campo de visão em questão de segundos.
― Quando é a sua apresentação? ― perguntou quando adentramos em seu quarto e sentamos em puffs cor-de-rosa postos do lado contrário à sua cama, um de frente para o outro.
Seu quarto se parecia com uma extensão de suas roupas e acessórios: alguns ursinhos de pelúcias, papel de parede rosa bebê, almofadas e tapete peluciados, vários livros de romance estavam dispostos em uma estante aérea, minuciosamente ordenados por tamanho. Não haviam sapatos ou roupas jogados pelos cantos. Tudo estava em seu devido lugar.
― Em duas semanas.
― E você tá nervosa?
― Um pouco, mas acho que consigo. ― pus uma mecha frontal dos cabelos atrás da orelha.
― Sempre fico me perguntando como vocês duas podem ser tão diferentes. Digo, de rosto, vocês são exatamente a mesma pessoa, mas aí adicione um cabelo descolorido e roupas um pouco mais largas e, de repente, já não são mais a mesma pessoa. ― soltou os cabelos do coque, deixando-os cair por sobre seus ombros. Eram bem mais comprido do que eu achava que eram. ― Vocês se dão bem?
é chata pra caralho, sabe? ― a garota deu uma risadinha silenciosa. ― Mas ela ainda é minha melhor amiga. Soa muito triste dizer isso da própria irmã?
― Eu sou filha única e adoraria ter uma irmã. Parece legal.
― É que me parece solitário demais dizer isso em voz alta. ― dei de ombros.
― Por soar como se você não tivesse amigos? ― assenti. ― Bom, te conheço e sei que você é uma das pessoas mais sociáveis que já conheci. Então, certamente, isso não se aplica a você. ― franzi os lábios para baixo, considerando sua linha de raciocínio. ― Vou pedir a tal pizza, se quiser, pode tomar banho nesse meio tempo. ― levantou-se, foi até o closet, pegou uma camiseta grande, uma calcinha que ainda estava com etiqueta e dentro de um saco plástico e me entregou em mãos. ― O banheiro é a primeira porta à esquerda, as toalhas estão dentro do armário e você pode pegar um sabonete fechado dentro da primeira gaveta. ― assenti.
A casa inteira de se parecia muito com o que as pessoas vendiam como o sonho americano a ser alcançado. Tudo era impecável, organizado, espaçoso e parecia ter saído de um filme, pois até a disposição dos objetos do banheiro parecia ter sido desenhada e feita sob medida.
Seguindo suas instruções, peguei a toalha e o sabonete de dentro do armário, despi-me e entrei no box, abrindo o registro, deixando a água morna cair sobre minha cabeça. Não era dia de lavar meu cabelo, mas adorava usar o shampoo que outras pessoas usavam só para saber qual o resultado e o cheiro que deixavam nos fios.
Sem querer bancar a visita que quer aproveitar que não está em casa para gastar água e luz na casa de outra pessoa, saí debaixo do chuveio o mais rápido possível, secando-me e enrolando a toalha nos cabelos. Vesti a roupa que me dera e voltei para seu quarto.
Encontrei-a tirando seus materiais de dentro da mochila e permaneci em silêncio. Sentei-me no puff, observando-a. Com dedos curtos em mãos delicadas, todos os seus movimentos soavam graciosos aos meus olhos. As unhas bem feitas, ostentavam o brilho de glitter holográfico. Seus longos caracóis tampavam-lhe o rosto expressivo e simpático.
A campainha soou ao fundo. Olhou-me dando um meio sorriso antes de descer as escadas correndo para atender a porta.
Segui-a e, ao chegar ao térreo, a caixa já estava posta sobre a mesa.
― Se importa se comermos com a mão para não sujar mais louça além dos copos? ― sugeriu com uma careta de quem tinha medo da resposta.
― Garota, eu tava esperando você dizer isso. ― rimos.
Pegou dois copos em um armário aéreo atrás de si, pôs em cima da mesa para pegar o refrigerante dentro da geladeira. Com tudo que precisávamos sobre a mesa, abrimos a caixa e nos servimos.
― E o seu pai? ― perguntei, mastigando uma parte da minha primeira mordida.
― O que tem ele? ― respondeu após beber um gole de seu refrigerante.
― Com o que ele trabalha?
― Ele é oficial da marinha, por isso, nunca está em casa. Até onde eu sei, ele encerra essa viagem na próxima semana. ― mordeu sua fatia de pizza.
― Então, é você e sua mãe na maior parte do tempo? ― assentiu.
― Como é na sua casa?
― Não vejo minha mãe há três anos e meu pai… bom, como você deve imaginar, ele tem sua preferida. ― dei um meio sorriso amargurado.
― O que aconteceu com sua mãe?
― Se cansou de tudo e foi embora. ― balancei a cabeça afirmativamente enquanto falava.
― Sinto muito.
― Não sinta. No lugar dela, eu faria o mesmo. Inclusive, contando os dias pra poder fazer isso. ― dei uma risadinha nervosa. ― Não existe nada no mundo que eu queira mais do que ir embora e não olhar pra trás. ― com um olhar compreensivo, franziu os lábios.
Prosseguimos comendo caladas. Não haviam muitas coisas que poderiam ser ditas após isso sem que pesassem muito mais do que deveriam.
Depois de terminarmos, cada uma lavou seu próprio copo e voltamos ao seu quarto para, enfim, iniciarmos a tal aula que deveríamos ter feito de tarde.
― Como está a leitura do primeiro ato?
― Li inteiro.
― Sério? ― arqueou as sobrancelhas.
― Sim. ― assenti. ― Até que não é tão ruim. Tem algumas expressões que eu não entendi muito bem, aí perguntei a e ela me emprestou uma versão do livro que tem anotações. ― mostrei a ela as páginas lotadas de post-its, fazendo-a sorrir.
― Isso é ótimo. Você fez o resumo do que aconteceu até a agora na história? ― retirei a folha dobrada de dentro do livro, entregando-a.
passava os olhos rapidamente pelas palavras, mexendo a boca silenciosamente.
― Tá muito bom. ― voltou a me olhar sorrindo. ― Você descreveu as partes importantes de maneira muito simples e muito sucinta. Ficou incrível. ― sorri. ― Você já tem uma parte preferida? Porque você sabe que vai ter que recitá-la, né?
― Sim, eu sei e, sim, eu tenho. ― pigarreei, ajeitando-me sobre sua cama para ficar com uma postura ereta. Abri o livro na página que havia marcado. ― ‘Se minha mão profana o relicário em remissão aceito a penitência: meu lábio, peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência.’ ― recitei.
― ‘Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. Nas mãos os santos pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente.’ ― prosseguiu, assumindo o papel de Julieta sem nem ao menos consultar os versos.
― ‘Os santos e os devotos não têm boca?’
― ‘Sim, peregrino, só para orações.’
― ‘Deixai, então, ó santa, que esta boca mostre o caminho certo aos corações.’
― ‘Sem se mexer, o santo exalça o voto.’ ― desviei os olhos das páginas à minha frente para fitá-la. Não era necessário ler para saber o que acontecia depois disso.
― ‘Então fica quietinha: eis o devoto. Em tua boca me limpo dos pecados.’ ― em milésimos de segundos, meu olhar se pregou em seus lábios. Seu rosto estava tão próximo ao meu que era possível sentir não apenas o cheiro que emanava de sua pele e seus cabelos, bem como sua respiração profunda, quase como se o ar do ambiente estivesse rarefeito.
Em um ímpeto, colei nossos lábios rapidamente.
― Desculpa, eu não… ― tentei dizer ao me dar conta do que fizera, sendo interrompida por seus lábios se juntando aos meus novamente. Desta vez, minha língua foi envolvida pela sua, fazendo um calafrio percorrer minha espinha.
Largando o livro, segurei seu rosto entre minhas mãos. Sua pele, tal qual sua boca, pegava fogo. Sentia como se estivesse beijando alguém pela primeira vez. Queria beijá-la até que meus lábios adormecerem, sentisse cãibra na língua ou até meu bruxismo atacar. Se nenhum dos três itens acontecesse, poderia beijá-la pelo resto da semana.
Descolando a boca da minha, encostou nossas testas, com os olhos ainda fechados.
― Isso é errado. Eu não… eu não posso. ― ainda segurando seu rosto, distribui beijos pelas suas bochechas, olhos, nariz, testa, queixo, porém não seus lábios.
― Por quê? Não tem ninguém aqui além de nós duas. ― falei baixinho, como se lhe contasse um segredo.
Antes que eu dissesse qualquer outra coisa, fez nossas bocas se chocarem outra vez, iniciando um beijo impaciente. Inclinei-me um pouco sobre ela, fazendo nossos corpos caírem suavemente um sobre o outro contra o colchão. Ajeitei-me sem nos desgrudar, sentindo meu corpo inteiro vibrar ao toque de suas mãos em minhas costas.
― Você já fez isso com outra pessoa? ― sussurrou ofegante ao desvencilhar-se brevemente de mim.
― Não. E você? ― mordi o lábio inferior.
― Não. ― selei nossos lábios. ― Sério que você é virgem? ― franziu as sobrancelhas com um ar zombeteiro.
― Por que a surpresa? ― arqueei as sobrancelhas. ― Eu tenho 15 anos.
― Sei lá, você é uma das pessoas mais populares e mais bonitas que eu conheço. ― sorri.
― E você se importa de eu ser a sua e você ser a minha primeira? ― meneou a cabeça negativamente com um sorriso tímido.
Com os dedos levemente trêmulos, comecei a desabotoar os botões frontais de seu vestido um a um, revelando sua pele dourada e macia por debaixo do tecido. Ao terminar com a enorme fileira que se estendia até a bainha, a garota ergueu o tronco o suficiente para que as mangas de seu vestido escorregassem por seus braços e para que eu conseguisse abrir seu sutiã. Quando a peça também deslizou para fora de seu corpo, cobri seus seios com minhas mãos, sentindo seus mamilos se sobressaírem nas minhas palmas.
Depositando as mãos em minha nuca, voltou a me beijar, agora, de maneira tranquila, deixando que sua língua explorasse minha boca. Outra vez impulsionando meu corpo sobre o seu, a fiz deitar-se, colocando-me entre suas pernas. Seus cabelos se espalharam por todo o travesseiro como grandes ramos de plantas.
Acariciando as laterais de seu corpo, a observei durante alguns segundos. Seu rosto estava corado, a boca entreaberta, porém todos os seus músculos aparentavam estar retesados de nervosismo. Eu também estava nervosa, entretanto, estava tentando manter o controle para lhe passar segurança. Alguma de nós deveria se sentir no controle, certo?
Segurando um de seus seios, pus minha boca sobre ele, ouvindo um suspiro de sua parte nas primeiras vezes que minha língua roçou pelo local. Não sabia por quanto tempo deveria permanecer naquela região, apenas continuei por mais alguns segundos antes de substituí-lo pelo outro mamilo, outrora coberto pela minha mão. Suas mãos, que estavam espalmadas na cama, começaram a se fechar, apertando pedaços de tecido de suas cobertas entre os dedos.
Ansiosa, afastei-me de seu corpo o bastante para tirar sua calcinha, deixando a peça de lado. Encarei-a uma última vez sorrindo antes de abaixar meu tórax entre suas coxas. Fazer um oral bem feito não deveria ser a coisa mais difícil do mundo. Lembrava-me perfeitamente de uma conversa entre e Daniel sobre o assunto. Segundo , o segredo era “ficar com a língua relaxada e agir como se estivesse beijando na boca da sua amada”.
E, pelas reações de seu corpo ao sentir minha língua e lábios sobre seu clitóris, sabia que as dicas pegas como quem não estava participando do assunto serviram de alguma coisa. Quase sorri contra sua pele com o pensamento.
era tão quente quanto uma brasa acesa. Vê-la e senti-la tão molhada sob meu toque me deixava excitada, notando que o tecido da calcinha que eu vestia também estava ficando úmido.
Provavelmente por perceber os fios de meus cabelos que vez ou outra lhe tocavam a pele, soltou as cobertas para segurá-los em um tufo, aproveitando para pressionar meu rosto para mais próximo de sua intimidade. Seu corpo inteiro estremecia sempre que minha língua passava pelo seu ponto mais sensível.
De sua parte, não era possível ouvir gemidos, somente respirações profundas de quem já estava ficando sem fôlego. Erguendo-me e limpando a boca com uma das mãos, vi o início de uma feição decepcionada se formar em seu rosto, no entanto, durou apenas os milésimos de segundos que levei para penetrar dois dedos em sua vagina, arrastando-os para dentro e para fora dela. Seus suspiros recomeçaram e, só de ouvi-los, tinha vontade de me masturbar.
Aos poucos, aumentei a velocidade, vendo seu tórax se retesar e os espasmos começarem a transparecer em suas pernas. Seus olhos estavam fechados, mas eu quase conseguia visualizá-los se revirando todas as vezes que sua pele se arrepiava. Com uma das mãos em seu seio e o outro sobre as cobertas, a vi apertar os dedos em ambas as superfícies. Pôs o lábio inferior entre os próprios dentes e, assim, produziu seu primeiro gemido: baixo e esganiçado, afogado na própria garganta.
Com o polegar da outra mão, passei a massagear seu clitóris devagar, aumentando a velocidade aos poucos. Mesmo que ainda não tivesse atingido o orgasmo, já estava se desfazendo em minhas mãos. Querendo provar mais uma vez de seu gosto, substitui o polegar pela minha boca, dessa vez, chupando seu clitóris e penetrando-a com mais afinco.
Segurando meus ombros apertados entre seus dedos e com um espasmo que a quase fez se sentar ao arquear as costas, a garota gozou com mais um gemido preso entre os lábios mordidos.
Sem me dar muito tempo para pensar, saiu debaixo de mim, empurrando-me para trás, fazendo-me cair de costas no colchão, a cabeça no limite da beirada da cama.
Muito mais esperta que eu, tirou minha única roupa íntima antes de se debruçar sobre mim.
― É aqui que eu devo te tocar? ― pôs um dos dedos um pouco abaixo do meu clitóris.
― Um pouco mais pra cima. ― com a cabeça erguida, observei seus olhos fixos em minha vagina enquanto deslizava o dedo na direção que eu apontara.
Iniciando movimentos circulares lentos onde eu havia indicado, relaxei os músculos, voltando a deitar a cabeça e sentindo um arrepio em minha espinha. Erguendo a camiseta que eu vestia acima da altura de meus seios, chupou meus mamilos e distribuiu beijos no vão entre os dois.
Minha respiração estava pesando, fazendo com que eu não conseguisse respirar pelo nariz, apenas pela boca e, consequentemente, ressecando minha garganta por completo. Em qualquer outra situação ou com qualquer outra pessoa, pediria uma pausa para beber um copo de água. Não com .
Sua boca em meus seios era tão quente e tão macia quanto sua própria pele. Seus dedos sobre meu clitóris me faziam ter consciência de todo o meu corpo e do que significava ter um corpo, afinal, eu formigava dos pés a cabeça.
Parando de me massagear, lambeu as pontas dos dedos molhadas com um sorriso e, mais uma vez, muito mais esperta que eu, amarrou os cabelos em um coque, inclinando-se em meio as minhas coxas.
Apoiada em meus cotovelos, esperei ansiosamente pelo momento em que sua boca cobriria a minha vagina com todas as sensações que sua língua era capaz de me proporcionar, olhando-a. Quando o momento chegou, senti como se cada partícula do meu corpo tivesse ganhado mais cinco anos de vida. Meus braços fraquejaram e me permitir cair de costas sobre o colchão outra vez.
Todas as vezes que sua língua passava sobre meu clitóris eu tinha cada vez mais certeza dos motivos que faziam com que a vida dos adolescentes que deixavam de serem virgens girasse em torno do sexo.
Nunca havia entendido muito bem porque aos 15 ou 16 anos todo mundo só falava sobre isso. Em todas as rodas de conversa o assunto era sempre quem deu pra quem, quantas vezes transaram ou quem transava mal. Geralmente, eu apenas ria e concordava, esperando que ninguém me perguntasse nada. E ninguém o fazia já que eu era , a garota que já tinha ficado com boa parte dos garotos da escola, o que fazia todos deduzirem que a virgindade não era mais uma das minha virtudes.
Minhas pernas estavam começando a ficar doloridas na altura da virilha por estarem muito abertas, porém eu não trocaria a língua mágica de por um pouco mais de conforto para meus músculos enrijecidos.
Poucos antes de afastar sua boca de mim, penetrou-me com dois dedos, entrando e saindo de mim já em uma velocidade razoável. Querendo acelerar o processo, encarreguei-me do meu clitóris, fazendo inclinar em direção a minha boca, beijando-me com sua boca lambuzada.
Excitada demais, não tinha coordenação motora suficiente para lhe dar um beijo decente sem gemer e ainda me manter respirando. Meu corpo estava começando a desaprender a realizar suas funções básicas, o que, em qualquer outra situação, seria desesperador, entretanto, ali, com seus dedos ágeis saindo e entrando mim, era a sensação mais desconcertantemente deliciosa.
Com a cabeça pendendo na beirada da cama, tentei me concentrar em respirar enquanto aumentava a velocidade de meu dedos em meu clitóris.
Piscando os olhos fortemente para afastar o que aparentava ser uma vertigem, cheguei ao orgasmo sentindo minha vagina se contrair em seus dedos, quase como se tentasse engoli-los.
jogou-se ao meu lado e ficamos em encarando o teto durante longos segundos.
― Eu fui a primeira garota com quem você ficou? ― questionei assim que comecei a me sentir menos “morta”.
― Sabe quem era Hulda? ― olhei-a com as sobrancelhas franzidas, tentando entender onde ela queria chegar. ― Na Bíblia, ela foi uma profetisa muito importante em Jerusalém. Não tem muitos detalhes sobre quem ela era ou todos os seus feitos, porém ela foi uma das escolhidas pra executar uma ordem do próprio Deus. ― virou-se para mim. ― Por serem religiosos, meus pais decidiram que esse seria meu primeiro nome por causa dessa profetisa, mas eles não sabem que um dos significado de Hulda também pode ser ‘esconder’ ou ‘aquela que guarda um segredo’. ― com uma mão, jogou uma mecha do meu cabelo para trás e prosseguiu: ― Namorei uma menina na minha antiga cidade durante dois meses.
― Por que terminaram?
― Porque uma pessoa que já se assumiu não quer ser o segredinho sujo na vida de outra pessoa. ― sem saber se havia algo que eu pudesse falar, escolhi o silêncio até que ela decidiu mudar de assunto: ― E eu sou a sua primeira garota? ― assenti. ― Mas você gosta de garotos também, não?
― Acho que é mais fácil quando se gosta dos dois. Pelo menos, não sinto como se eu estivesse escondendo algo. ― dei de ombros.
― Sorte a sua. ― deu um meio sorriso amargo. ― Acho que só vou ter coragem de me assumir quando tiver certeza de que nada pode me afetar, ou seja, quando for adulta e puder me sustentar.
― Não falta tanto assim. ― segurei sua mão. ― Quando você menos esperar, esse dia vai chegar e vai dar tudo certo. ― deu um meio sorriso e se aconchegou em meu ombro.
― Fico feliz que tenhamos nos conhecido.
― Eu também. ― fiquei feliz que, naquela posição, ela não pudesse me ver, já que eu deveria estar com cara de bocó por ouvi-la dizer aquelas palavras e por ter compartilhado com ela algo que talvez eu não quisesse compartilhar com mais ninguém.


#3 Girls Like Girls - Hayley Kiyoko

Nas semanas que se seguiram, e eu continuamos a nos encontrar, todavia, para muito além de fazermos nossas aulas, também nos encontrávamos em outros horários, como nas trocas de sala de aula, vestiário de educação física, no horário de almoço e em qualquer brecha de tempo longe de olhos curiosos que pudéssemos encontrar.
Logo depois da minha bem sucedida apresentação sobre Romeu e Julieta, o que me rendeu um 9,5 ― nota mais que suficiente para que eu fosse aprovada no semestre ―, ao término da aula, fui me encontrar com em um dos vestiários vazios do ginásio. Não haveria aula de educação física naquele tempo, portanto, não haviam pessoas por perto.
Tomando todo o cuidado para não ser vista no caminho, andei o mais rápido que pude pelo pátio.
Chegando ao local, corri em sua direção ao ver que ela já esperava do lado de dentro. Fui recebida com um beijo alegre e cheio de saudades, como se a última vez que havíamos nos visto não tivesse sido há duas horas, nos corredores.
― Como foi a apresentação?
― Você está olhando para a mais nova nerd da literatura, gata. ― brinquei, fazendo-a rir. ― Senhora Martinez me deu 9,5.
― Você passou. ― abraçou-me apertado.
― Graças a você. ― falei em seu ouvido.
― Não. Graças a você. Eu te ajudei, mas o esforço foi todo seu. ― desvencilhou-se de mim e sorriu, segurando-me pelos ombros.
Olhando-a tão de perto, por um segundo, lembrei-me de uma pichação que havia visto em um muro no centro da cidade com os dizeres “sexo é legal, mas você já se apaixonou?” e me dei conta do quão fodida eu estava.
Pondo uma mão em sua cintura e outra em sua nuca, puxei-a para mais perto de mim, beijando-a calmamente. Só de tocá-la meu peito já se aquecia instantaneamente, meu dedos formigavam e meus joelhos pareciam não suportar o peso do meu corpo.
Considerando que éramos pessoas tão diferentes, não estava nem perto do tipo de pessoa que eu imaginava que me notaria. Pela sua aparência, parecia ser o tipo de garota que espera encontrar um príncipe encantado, de quem receberia flores, dançaria músicas românticas, passaria tardes assistindo uma quantidade absurda de comédias românticas, casaria, teria filhos perfeitos e uma casa perfeita.
No entanto, ela estava ali, comigo, naquele exato instante. E eu faria qualquer coisa para me tornar a pessoa que merecia estar em sua vida.
Quando nos beijávamos, o mundo inteiro ao nosso redor deixava de existir. Éramos só nós duas. Tanto que não notamos a porta atrás de nós se abrir.
― O que está acontecendo aqui? ― ouvindo a voz grave do professor Lucas, nos desvencilhamos apressadas e assustadas.
abaixou a cabeça e nenhuma de nós teve coragem de pronunciar um mísero grunhido que fosse.
― Pra direção agora, as duas. ― apontou para fora.
― Mas… ― tentei protestar e fui interrompida.
― Agora! ― bradou.
Saímos uma atrás da outra, sendo seguidas pelo homem que iria garantir que estávamos indo para a sala da diretora. Ao chegarmos, fomos separadas. entrou primeiro e eu fiquei do lado de fora, sentada no “cantinho da disciplina”.
Há aproximadamente 20 minutos sentada ali, vi os pais de entrarem e saírem dez minutos depois, escoltando a filha. Sua mãe até me lançou um olhar, porém este não veio acompanhado de um sorriso ou de um “oi” como da última vez. Ela provavelmente achava que eu havia corrmpido sua filha perfeita.
Parada à porta, a diretora Valentini pediu que eu entrasse em sua sala.
― Seu pai já está à caminho. ― disse, acomodando-se em sua grande cadeira de couro.
― Por quê? ― franzi as sobrancelhas.
― Porque é expressamente proibido namoro nesta escola.
― Depende do tipo de namoro, né? ― debochei.
― Você sabe que não é isso que eu quis dizer. ― sua expressão facial continuava imutável desde que eu me sentara à sua frente.
― Mas é assim que as coisas são. Convenhamos, senhora Valentini, quantas vezes você já viu casais héteros se beijarem pela escola? Na realidade, se beijarem é muito pouco porque a gente sabe que os laboratórios são usados pra várias atividades de conhecimento anatômico também, né? ― ironizei.
― Já chega, senhorita Ito. Não vou tolerar mais nenhuma gracinha sua.
― Ou o que? Vai me reprovar? Me colocar de castigo? Por favor, isso é uma palhaçada.
Meu pai entrou pela porta nos minutos seguintes, reverenciando a diretora antes de apertar sua mão, sentando-se ao meu lado. Revirei os olhos, achando toda aquela situação inacreditavelmente ridícula.
― Qual o problema causado por dessa vez, senhora Valentini? ― olhou-me de soslaio.
― Você quer contar ou eu conto, senhorita Ito? ― por algum motivo, aquela velha estava tirando o dia pra me testar.
― Não se preocupe, eu mesma falo. Eles acabaram de descobrir que é possível duas mulheres se gostarem e terem um relacionamento. ― os olhos de meu pai passaram de mim para a diretora, que suspirou.
― Sua filha foi vista aos beijos com a monitora dela, a senhorita . Apesar das suposições da senhorita Ito, não as trouxemos aqui devido à natureza do relacionamento e, sim, porque a política de nossa escola não permite namoros dentro da instituição.
― Compreendo, senhora Valentini. Será aplicada alguma medida?
― Desta vez, não. Mas contamos com seu apoio para que não volte a se repetir. ― meu pai assentiu. ― Se quiserem, estão liberados. ― acompanhou-nos até a porta e eu nunca desejei tanto surrar um idoso.
Em silêncio, segui meu pai por todo o trajeto até o carro. Ao entrarmos no veículo, o ouvi suspirar.
― Você não cansa de me envergonhar e envergonhar nossa família?
― Você acha que tô envergonhada pelo que fiz? Porque, sinceramente, eu não me envergonho de estar apaixonada por uma garota inteligente, bonita e simpática. Se vergonha era o que você esperava de mim, não é isso que você vai ter.
, você acha que há alguma honra nos seus atos? ― olhou-me com aquela máscara endurecida.
― Você acha que eu ligo pra porra de honra? Você e o vovô são os únicos que se importam com isso. ― virei meu tronco para ele. ― Você se esquece que eu não sou a . Não tenho nenhuma intenção de fingir ser quem eu não sou por causa dessa porra de família!
― Olha como fala comigo! ― rebateu com a voz ficando mais alta.
― Eu não vou me esconder e não há nada que você possa fazer sobre isso.
― Sob o meu teto você não vai fazer o que quiser! ― quase gritou.
― Pois então eu não fico mais embaixo dele. ― pus a alça da mochila sobre o ombro e desci do carro.
! ― berrou com a cabeça na janela quando eu já estava há metros de distância do veículo.
Comecei a correr na direção contrária a de casa. Não voltaria para lá tão cedo e sabia exatamente onde poderia passar uns dias.
Em cinco minutos de corrida, sentia meus pulmões queimarem, como se não conseguissem mais processar nem a mais mínima das lufadas de ar. Precisava urgentemente parar de fumar o que quer que fosse com tanta frequência. Parando por alguns segundos para tentar acalmar meu coração, voltei a caminhar, demorando cerca de meia hora para chegar ao meu destino.
Bati na porta à minha frente, com a mão no peito, sentindo como se meu coração fosse saltar do peito ou meus pulmões fossem sair andando por aí.
? O que faz aqui? ― franziu as sobrancelhas parado à porta.
― Será que você pode receber uma jovem fugitiva?
― Claro. Entra. ― deu espaço para que eu passasse.
morava com a mãe e o irmão novo. Como ainda era cedo, nenhum dos dois havia chegado.
― O que aconteceu dessa vez? ― fomos até seu quarto, onde acendeu um baseado e o ofereceu para mim. Dei uma tragada curta e devolvi para ele.
― Lembra que estava fazendo monitoria pedagógica comigo? ― assentiu. ― Digamos que não era a única coisa que fazíamos juntas.
― Você tava ficando com ela? ― franziu as sobrancelhas com um sorriso desacreditado.
― É… ― o garoto pôs o cigarro entre os lábios, dando uma longa tragada, passando-o para mim novamente enquanto soltava a fumaça espessa lentamente.
― Você… Quer dizer, você nunca disse que…
― Que eu competia com vocês? ― brinquei. ― Nunca falei pra ninguém. ― dei de ombros.
― Desde quando você sabe que gosta de garotas?
― Sei lá. ― traguei novamente. ― Eu só… sei.
― Mas você já ficou com outras meninas?
― Eu não preciso beijar outras bocas pra saber se gosto ou não. Assim como eu também não precisei beijar bocas de meninos pra saber que gostava de meninos também. ― devolvi o baseado para ele.
Parecendo processar todas as informações, assentiu silenciosamente.
― Enfim, fomos pegas na escola e a diretora chamou nossos pais e agora estou aqui. ― deixei meu corpo cair para trás em sua cama. ― Sua mãe se importa se eu passar uns dias aqui?
― Não. Na verdade, ela adora quando você vem. ― sorriu.
― E eu adoro vir. A comida dela é uma delícia. ― ri.
― Tá tudo bem com você? ― virou seu tronco para trás para me olhar.
Assenti.
― Tem certeza?
― Só preciso saber como ela está, mas vamos nos falar amanhã, então, tá tudo bem. ― dei um meio sorriso.
― Então, você tá toda apaixonadinha? ― fez cócegas na minha barriga, provocando uma gargalhada alta em mim.
― Para, garoto! ― gritei em meio aos nossos risos.
Era ótimo poder contar com para poder me animar, mesmo quando tudo parecia nebuloso.


#4 Flaming Hot Cheetos - Clairo

Todos os dias, minha rotina diária na escola havia se tornado um eterno procurar por , que não apareceu no dia seguinte, nem no dia depois daquele, nem no terceiro dia depois de termos sido pegas. Preocupada, perguntei para algumas pessoas que eu sabia que a conheciam se sabiam o que tinha acontecido, porém, ninguém sabia me responder. Na noite anterior, havia pedido para que , se possível, me trouxesse algumas mudas de roupa.
. ― chamei-a ao me aproximar dela na entrada da escola.
― Ai, que susto! ― pôs a mão no peito de um jeito cômico.
― Trouxe o que eu te pedi?
― Quanto tempo mais você vai ficar fazendo isso? ― perguntou, abrindo a mochila e tirando uma sacola plástica com algumas roupas.
― Como estão as coisas em casa?
― Papai não fala nada e o vovô pergunta de você o tempo todo. Tia Sayuri foi para um retiro no dia que você não voltou para casa, volta no fim de semana. Mas o que aconteceu entre vocês?
― Ele não te contou? ― franzi o cenho e vendo minha irmã menear a cabeça. ― Enfim, não importa. ― preferi não contar para , afinal, não sabia qual seria sua reação e não queria ter que lidar com mais um ataque. ― Preciso de mais um favor. Você pode ligar para ?
― Você também não está tendo notícias dela? ― seu semblante, agora, parecia preocupado. ― Faz dias que ela não aparece no clube de literatura e vamos ter um evento de encerramento que é ela quem está organizando.
― Você pode ligar pra ela ou ver com alguém que a conheça como ela está?
― Sim, claro. ― ajeitou os óculos de um jeito ansioso. ― Aconteceu alguma coisa entre vocês?
― Não, é só… fiquei preocupada porque ela sumiu. ― tentei não parecer mais inquieta que o necessário.
― Tudo bem. Preciso ir para a aula. Nos falamos depois? ― assenti.
― Obrigada. ― apontei para a sacola e ela assentiu.
― Sem problemas. Não demore muito para voltar, ok? Sinto sua falta. ― abraçou-me.
― Também sinto a sua. ― ao desvencilhar-se de mim, deu uma última olhada em meu rosto e entrou no prédio. Fiquei observando-a se afastar e se misturar em meio ao mar de alunos de circulava pelos corredores.


Na sexta-feira, avisei a que era hora de voltar para a minha casa. Agradeci-o pela hospedagem e fiquei me perguntando como faria para voltar para casa se estava sem bicicleta e sem carona. Teria que caminhar até a estação de trem mais próxima para conseguir pegar um que me deixasse o mais próximo possível da estrada de chão que levava até o templo onde minha casa ficava.
Era cerca de 25 minutos de caminhada em um ritmo mais intenso, todavia, preferi fazê-lo em 40 minutos caminhando devagar, tomando um ar fresco e fumando o último cigarro que encontrei jogado dentro da minha mochila.
Uma semana inteira havia se passado desde o que acontecera comigo e com . Nós ainda não tínhamos nos falado e ela não havia mais aparecido na escola. não havia conseguido falar com ela e ninguém parecia saber por onde a garota andava. havia apenas desaparecido no ar.
Ao colocar os pés em casa, meu pai olhou-me com indiferença. Fez uma breve reverência e, não querendo criar muito caso, imitei seu gesto, tirando os sapatos e depositando-os no armário ao lado da porta. Fui até o quarto, encontrando , como sempre, sentada estudando. Esta, levantou-se, correndo em minha direção e me abraçando.
― Achei que você não ia voltar mais.
― Eu sempre volto. ― retribui seu abraço, sentindo seu cheiro de jasmim adentrar pelas minhas narinas. Era muito bom se sentir em casa.
Soltando-me de seus braços, segurou meu rosto entre minhas mãos.
― Esse quarto não é a mesma coisa sem você.
― Obrigada, irmãzinha. ― trocamos um sorriso cúmplice.
― Papai te disse algo? ― meneei a cabeça. ― Melhor assim. ― afastou-se de mim. ― Está muito cansada? Tia Sayuri tinha pedido para que eu fosse a cidade fazer compras pras comidas do ritual de domingo. Pode ir comigo?
― Claro, vamos. ― larguei a mochila no chão.
Saindo do quarto, dei de cara com a figura de meu pai, com a mão estendida em minha direção, onde segurava meu celular.
― Toma. ― não questionei, porém não entendi muito bem o que estava acontecendo. ― Sua professora ligou no início da semana. Disse que você foi aprovada na matéria. ― reverenciei com a cabeça, quase como se fosse apenas um aceno.
Tão silencioso quanto aparecera, ele saiu, deixando-me atônita.
Olhei para trás, trocando um olhar confuso com , que deu de ombros em resposta.
Com a lista de compras em mãos, pegamos nossas bicicletas e fomos até a estação de trem para que conseguíssemos chegar ao centro mais rápido. Chegando lá, prendemos as bicicletas com cadeados e correntes no bicicletário e embarcamos no primeiro trem com destino a estação central.
De lá, fomos à um supermercado localizado a três quadras à frente.
Passando por todos os corredores, colocávamos em nosso carrinho tudo o que havia sido pedido pela nossa tia. , em um tom brincalhão, agradeceu por eu ter decidido voltar para casa, pois não sabia como carregaria todas aquelas sacolas se estivesse sozinha.
Enquanto escolhíamos tomates, avistei do outro lado do horti-fruti a senhora Martinez, vestida em mais um de seus vestidos floridos e coberta por um cardigan vermelho.
, você pode terminar de escolher? Preciso falar com a senhora Martinez. ― apontei por cima do ombro e minha irmã concordou, ajeitando os óculos que escorregavam pelo seu nariz.
Próxima à senhora, cumprimentei-a.
, que bom vê-la. ― sorriu.
― Não quero atrapalhar a senhora, mas pode me responder uma pergunta?
― Claro, querida.
― A senhora sabe se a está bem? Ela não aparece na escola há dias. ― pus as mãos dentro dos bolsos do meu moletom.
― Você não está sabendo? ― inclinou o rosto um pouco para o lado, como se quisesse ver meu rosto melhor. ― Ela foi transferida para um internato.
― Como assim? ― engoli em seco.
― Depois do que aconteceu no início da semana, os pais dela decidiram que seria melhor se… bom, se vocês duas não convivessem mais. ― franziu o lábios, receosa de me dar a notícia.
Sentindo uma pressão em minha garganta, como se alguém me estrangulasse, tentei engolir uma saliva inexistente. Se não estivesse em público, provavelmente, eu choraria em posição fetal.
, sei que a é importante para você e sinto muito que as coisas tenham acabado assim. ― assenti com um meio sorriso frustrado no rosto.
Sob seu olhar condolente, permaneci quieta por mais alguns instantes antes de criar coragem para lhe perguntar:
― Por que a senhora a pôs pra ser minha monitora? Quer dizer, eu nunca fui uma boa aluna, achei que você me colocaria com alguém que estivesse disposto a me dar uma lição.
― E ela te deu. Uma das boas. ― sorriu. ― , você pode até não ser a mais exemplar dos meus alunos, mas, certamente, é uma das mais autênticas e não posso ignorar isso. Você tem dificuldades de aprendizagem e não há nada de errado nisso. Só precisava de alguém que tivesse paciência e fosse incentivador para que você se sentisse motivada a aprender. tem essas qualidades. Vocês formaram uma bela dupla. ― pôs uma mão sobre meu ombro. ― Além do mais, eu sei que foi você quem denunciou as pessoas que praticavam bullying com ela. ― cochichou para mim.
― Como sabe?
― Eu a vi preenchendo o formulário naquele dia e eu era responsável pela ouvidoria naquele semestre. ― sorriu. ― Quer um conselho? Se o que vocês têm for verdadeiro, não desista. Tudo vai se encaixar no momento certo. ― concordei com ela, dando mais um meio sorriso.
― Obrigada, senhora Martinez.
― Não há de quê, querida. Nos vemos na segunda. ― acenei, voltando para perto de .
Terminamos de pegar os últimos itens e seguimos para casa.


#5 TEST DRIVE - Joji

Quase cinco anos haviam se passado desde a última vez que vira . Após isso, nunca mais ouvi sua voz ou o som de sua risada, não vi seus olhos quase se fecharem enquanto ela sorria ou os movimentos delicados que suas mãos faziam ao executar as mais simples das tarefas.
e eu fomos para a faculdade juntas. Ela cursava literatura e língua inglesa, eu, cinema. Apesar de dividirmos várias turmas, não éramos do mesmo departamento, logo, não ficávamos no mesmo dormitório, o que era relativamente bem triste. Havíamos tentado conversar com as secretarias de ambos os cursos para conseguirmos essa exceção, porém não houve muito que pudéssemos fazer, logo, apenas aceitamos que talvez esse fosse nossos destino, afinal.
Naquela quarta-feira, a maioria das coisas estavam dando errado. Acabou a bateria do meu celular durante a madrugada e não tocou de manhã, consegui acordar para assistir somente a aula do segundo tempo. Percebi que tinha esquecido de levar minha roupas sujas para a lavanderia e a roupa que eu queria para aquele dia, obviamente, estava suja. O último par de meias limpo não eram realmente um par, ou seja, lançamos tendência ao usar meias com estampas diferentes. Na cafeteria, não consegui comprar meu chá matinal, sendo obrigada a comprar um café com leite que mais parecia água suja. Do lado de fora, quando decidi fumar um cigarro, descobri que havia na caixa um último tabaco úmido, cujo qual tinha molhado com a chuva que eu pegara no dia anterior.
Minha cabeça estava prestes a explodir de dor a qualquer minuto e, como se tudo o que já havia acontecido não fosse o suficiente para ter me arrependido de me levantar da cama, em minha última aula do dia, a professora resolveu aplicar uma prova surpresa sobre tipos de iluminação cênica e seus significados. Eu só queria morrer, seria pedir demais?
Na parte da noite, haveria uma palestra sobre como fazer boas adaptações de livros clássicos para teatro e cinema. Queria muito ir, até porque tinha combinado com que aquele seria o nosso programa “gêmeas se encontram” da semana, entretanto, não sabia se conseguiria sobreviver se mais alguma coisa resolvesse dar errado.
Depois de receber uma infinidade de mensagens de insistindo para que eu fosse fazer companhia a ela, acabei indo, pois não estava a fim de ficar sozinha.
Encontrei minha irmã do lado de fora o auditório. Estava tão elétrica quanto uma criança prestes a abrir seu presente de Natal. Após entrarmos na faculdade, esse era o constante humor de : eufórica com atividades extraclasse que tivessem temas que ela gostaria de passar o fim de semana inteiro trancada no quarto lendo sobre.
Sentamo-nos na terceira fileira, bem próximo do palco onde ficaria o palestrante.
Faltando cinco minutos para começar, me distraí mexendo no celular, respondendo as mensagens dos últimos 30 minutos que eu ainda não o tinha feito. Haviam mensagens de , dizendo que voltaria para casa no fim de semana e que poderíamos sair; da minha colega de quarto, avisando que iria sair com um cara e talvez não voltasse naquela noite; 17 mensagens de , perguntando onde eu estava; e de uma colega da aula de roteiros, perguntando se poderíamos nos encontrar no dia seguinte para planejarmos nosso trabalho.
― Boa noite, alunos e alunas. ― por acaso, o mediador da palestra seria meu professor da aula de roteiros. ― Espero que todos estejam bem. Tivemos umas pequenas mudanças no nosso cronograma de hoje. Quem ministraria a palestra ‘escreva boas adaptações usando clássicos’ seria a doutora em literatura Carly Becker, porém, devido a problemas de saúde, ela será substituída por uma de suas alunas pesquisadoras, Hulda . Ela é estudante de literatura clássica e aluna pesquisadora do projeto ‘Livros Livres’, que analisa o crescimento e a adaptação da linguagem literária ao longo dos anos. Seja bem-vinda. ― uma salva de aplausos ecoou pelo local.
Minha cabeça, antes apenas dolorida, agora, latejava com força, ouvindo a voz do homem em looping falando o nome de .
Ao seu lado, apareceu não uma garota, como eu me lembrava, mas uma mulher de cabelos encaracolados na altura dos ombros, vestindo calça jeans, camiseta e um blazer. Seus olhos ainda eram brilhantes, como eu me lembrava, seus dedos ao redor do microfone eram graciosos e ela ainda sorria daquele jeito encantador.
― Boa noite, pessoal. Vou só fazer um pedido antes de começar, que se alguém for me chamar, por favor, me chame de , ok? ― todos ao meu redor concordaram com um risinho.
Embasbacada, não sabia como aquilo tudo tinha acontecido. Olhei para , que me encarava com uma feição surpresa.
― Você sabia?
― Não. O nome dela não estava no material de divulgação.
Fitando sua figura, lembrando-me de tudo que havíamos dividido e de como nem ao menos pudemos nos despedir uma da outra, não consegui focar em nenhuma de suas palavras ou do que acontecia ao meu redor.
Queria ir embora dali antes que ela me visse, mas queria ficar para que ela me visse, para que pudéssemos conversar. Talvez nem mesmo se lembrasse de quem eu era. Já fazia tantos anos.
E, em um passe de mágica, a palestra havia terminado. se despediu e agradeceu a presença de todos. Sob aplausos, desconectava sua apresentação de slides do computador e sorria para os presentes. Em minutos, a maior parte já havia saído do auditório, faltava alguns grupos de amigos que conversavam ao fundo, e eu, que continuávamos sentadas no mesmo local.
― Você deveria falar com ela. ― sugeriu depois de ter passado os últimos minutos me encarando.
― Por quê?
― Bom, vocês eram amigas e não puderam nem se despedir. Enfim, eu vou cumprimentá-la. ― deu de ombros, levantando-se. ― Vem comigo? ― estendeu a mão em minha direção. Sem me dar a chance de refletir muito a respeito, agarrei sua mão e me permiti ser arrastada rumo ao palco. ― Oi, . ― cumprimentou.
― Meninas, oi. Que bom que vocês ficaram. Eu estava agoniada querendo falar com vocês. ― respondeu sorridente e, ao senti-la nos abraçar, quase colapsei. ― Nossa, que coincidência incrível encontrá-las aqui.
― Achei que você não fosse lembrar de nós. ― continuou.
― Claro que lembro.
― O que aconteceu com você? Ficamos preocupadas?
― Meus pais me transferiram para um colégio interno. Já estavam pensando sobre há algum tempo e acabaram o fazendo porque eu ficava muito tempo sozinha em casa. Sem contar que queriam que eu aproveitasse melhor meus anos finais na escola para tentar uma bolsa de estudos.
― E conseguiu?
― Apenas parcial. Não fui aprovada na análise de crédito. ― riu. ― E você, ? Tá quieta hoje. ― passou a mão pelo meu braço e eu estremeci.
― Hoje só tá sendo um dia… curioso. ― poderia ter usado a palavra ruim, no entanto, não queria que ela achasse que tinha algo a ver com a sua repentina aparição.
― Vocês querem me esperar? Vou arrumar minhas coisas e ver com eles onde é meu dormitório.
― Eu não posso, minha colega de quarto está enlouquecida me perguntando se vou demorar porque ela esqueceu a chave e está presa para o lado de fora do quarto. ― respondeu enquanto lia uma mensagem no celular e a respondia.
Os olhos de recaíram sobre mim.
― Eu fico.
― Ok. Já volto. ― respondeu sorrindo.
― Estou indo. Qualquer coisa, me avise. ― me deu um beijo no rosto e partiu.
Esperei por cerca de dez minutos, antes que ela voltasse com uma bolsa sobre o ombro.
― Descobri que vou ficar no alojamento de visitantes, na parte oeste. Não sei o que isso significa. ― riu.
― Sorte a sua. Estou indo pro oeste também.
― Vamos, então.
Caminhando lado a lado, nossos ombros, por vezes, se esbarravam e não conseguia evitar meu corpo de se arrepiar sempre que isso acontecia.
― Você foi a primeira em quem coloquei os olhos e, se não tivesse visto ao seu lado, acharia que era só ela que estava aqui. Seu cabelo loiro te faz falta. ― sorriu.
― Não é incomum que confundam a gente agora.
― Mesmo de longe, vendo as duas, não as confundo. Vocês são bem diferentes.
― Tipo, no que?
― Seu rosto é mais expressivo e, apesar das mão trêmulas, seus movimentos são mais assertivos.
― Tá insinuando que eu sou agressiva?
― Não, estou dizendo que seus movimentos são mais firmes e desinibidos. ― sorri. ― é mais introvertida e dócil na fala. Sem contar que ela usa óculos, você não.
― Ela está tentando se adaptar a usar lentes de contato. ― sorriu.
Seguimos caminhando caladas por alguns minutos. Haviam muitas coisas que eu queria lhe dizer, porém não sabia se deveria simplesmente dizê-las ou fingir que nunca existiram, afinal, estávamos nos vendo depois de quase cinco anos. Muitas coisas haviam mudado entre nós e em nós. Provavelmente, nenhuma das duas eram mais as mesmas pessoas de quando estávamos na escola.
Impulsivamente, me pus a sua frente, fazendo-a parar de andar, franzindo cenho em uma expressão confusa e brincalhona.
― Tava aqui conversando com as vozes da minha cabeça e tem algo que eu quero te dizer. Na verdade, quero te dizer isso desde a última vez que nos vimos. Quando estávamos juntas, era como se não me faltasse nada, como se o que eu nem sabia que precisava estivesse na minha frente. ― suspirei. ― Depois que você foi embora, não teve um dia que eu não pensei em quanto você me fazia falta e que eu daria tudo pra saber se você estava bem, se estava feliz… ― antes que eu pudesse finalizar minha frase, senti suas mãos em meu rosto e sua boca se chocando contra a minha.
Seus lábios ainda tinham o mesmo gosto do hidratante labial de cereja que costumava usar quando éramos adolescentes. Sua boca ainda era quente e convidativa. Seu beijo ainda era uma das sensações mais memoráveis que eu provara em toda a minha vida.
― Talvez eu nunca tenha amado e nem nunca vá amar alguém como eu amei você. ― desvencilhou-se de mim, segurando minhas mãos entre as suas.
Ao tentar acariciá-las, minha mão se chocou com algo em um de seus dedos.
― Mas você já tem outra pessoa. ― completei baixinho ao perceber que se tratava, possivelmente, de um anel de noivado. ― Ela é uma pessoa de sorte.
― Ele. ― corrigiu, fazendo-me franzir as sobrancelhas em incompreensão.
― Ele? ― deu um meio sorriso sem graça. ― Você também é bi?
― Quando descobri que não tinha conseguido uma bolsa integral e que teria que arcar com boa parte dos custos se quisesse entrar na faculdade, meus pais me fizeram uma proposta. Entrar para um programa de reorientação sexual, o Love in Action. ― sem conseguir me olhar nos olhos, focava em nossas mãos unidas. ― Lá, eu conheci Jonas, um garoto que é bi e tinha sido mandado pra lá a força. À medida que nós fomos nos conhecendo, Jonas me propôs um relacionamento falso porque isso diminuiria a nossa ‘pena’. Mas, quando saímos, as coisas ficaram um pouco sérias e meu pais ficaram tão aliviados de eu ter virado hétero que talvez essa fosse a minha chance de não ser mais importunada por eles.
― Você vai se casar com alguém que não ama só para não entrar em atrito? ― mesmo que aquela não fosse a intenção, minha voz assumiu um tom acusador. Soltei suas mãos, afastando-me um passo dela.
― E você quer que eu faça o que? Desista dos meus sonhos, da minha formação por algo que pode esperar? Eu posso sair do armário a hora que eu quiser, a diferença é que se eu fizer isso agora não vou ter que só desistir da faculdade, eu também não vou ter onde morar! Mas pra você é muito fácil falar, né? ― disse esta última frase em um tom mais baixo, quase que apenas para si.
― O que está sugerindo?
― Qual é, ? Eu e você sabemos que você nunca fez muito o tipo que se importa. ― dei uma risada de deboche.
― Eu não me importo? ― balancei a cabeça. ― Deve ter sido por não me importar que passei os últimos anos da minha vida me preocupando se você estava bem e se algum dia iríamos nos ver de novo.
, eu não posso! Entenda isso, por favor. ― sua voz parecia o misto perfeito de frustração e cansaço. ― De todas as pessoas no mundo, achei que a única que compreenderia seria você.
― Eu compreendo. ― umedeci os lábios. ― Você escolheu ser bem-sucedida ao invés de feliz. Você já deve ter se convencido de que é porque seus pais te expulsariam de casa ou porque você não poderia terminar a faculdade, mas, lá no fundo, você sabe que não é por isso. ― suspirei. ― Ele… Jonas sabe que você aceitou se casar com ele porque não quer ser ‘importunada pelos seus pais’? ― fiz aspas com os dedos.
― Bom, nosso relacionamento era falso…
― Sim, mas ele sabe que continua sendo falso, que você não o ama? Ele sabe que você só tá usando ele? ― seus olhos estavam marejados.
, por favor.
, eu te amava porque você era uma pessoa espontânea e sensível. A que eu conheci não seria capaz de usar ninguém, não dessa forma. ― minha garganta estava apertada novamente e meu coração batia tão forte que eu conseguia senti-lo em minhas costelas. ― Você tá brincando com os sentimentos de uma pessoa que gosta de você achando que existe uma justificativa plausível pra isso. Mas adivinha só? Não tem! ― respirei fundo. ― Meu maior medo de te reencontrar se tornou realidade. Sempre pensei que talvez nós não nos reconhecêssemos mais e, de fato, eu não te reconheço mais. ― passei uma das mãos pelo rosto.
Aquilo que era para ser a realização de um dos únicos desejos que eu tinha acabou se tornando um pesadelo. Imóvel, fiquei olhando-a por algum tempo. De fato, não era mais a garota por quem eu me apaixonara. Agora, só restavam resquícios físicos daquela pessoa. Queria ir embora, deixá-la para trás metafórica e literalmente, todavia, era perigoso deixá-la ali sozinha e perdida à noite.
― Vamos. ― pus as mãos dentro dos bolsos da minha calça.
― Pra onde? ― questionou um pouco assustada por ter me ouvido do nada.
― Vou te levar para o seu dormitório.
― Não precisa.
― Vamos, não seja orgulhosa. É perigoso andar por aí sozinha à noite.
― E o que faz ser menos perigoso ir com você?
― Porque todo mundo já me conhece e você é carne fresca. Anda logo. ― comecei a andar, sendo seguida por ela.
O resto do trajeto até a entrada do prédio onde ela ficaria foi silencioso. Vez ou outra, a ouvia fungar.
Do lado de fora, paradas em frente a porta, esperei que ela entrasse antes de ir embora. Com a mão segurando a porta entreaberta, voltou-se para mim.
?
― Sim?
― Sinto muito que eu não seja a pessoa que você esperava que eu fosse. ― e entrou sem que eu pudesse dizer algo.
Andando no sentido do meu dormitório, refleti sobre o quão decepcionada e o quão aliviada tinha ficado com aquela conversa. Na minha cabeça, idealizei um milhão de vezes como seria se eu a reencontrasse, se ela me reconheceria, se nós continuaríamos de onde paramos, se iríamos nos tornar desconhecidas. Entretanto, revê-la me fez perceber que talvez fosse hora de deixar algumas coisa para trás, pois não queria me perder no meio do caminho, como ela estava fazendo consigo mesma.
Eu estava prestes a fazer 20 anos, não poderia continuar vivendo como se minha vida ou as coisas que eu queria fazer pudessem ser deixadas para depois.


#6 Hurricane - Halsey

Como sempre fazíamos aos finais de mês, e eu voltamos para casa no último horário de trem na sexta-feira à noite. Ficaríamos até a segunda-feira de manhã, quando pegaríamos o trem de volta para o campus no horário do almoço. Era o fim de semana anterior ao nosso 20º aniversário, por isso, estava mais animada que o normal, afinal, aniversário significava sopa de missô especial feita pela tia Sayuri.
Passara os últimos dias ponderando a respeito de uma decisão que mudava tudo em minha vida e, querendo que minha irmã fosse a primeira saber, decidi que lhe contar antes que chegássemos em casa seria minha única e melhor opção.
― O que você diria se eu disse que larguei a faculdade?
― Diria que você está ficando louca e que papai vai te matar. ― riu. ― Aliás, você não largou até porque estamos vindo de lá agora. ― continuei encarando-a. ― Espera. Você já fez isso? ― franziu o cenho como alguém que assiste um objeto importante cair no chão e não pode fazer nada para impedi-lo de se espatifar. ― Ah, não…
, eu não tô feliz. Esse lance de ir pra faculdade, ficar durante anos sendo torturada, fazendo nosso pai gastar uma grana que não tem é pra você, não pra mim.
― Mas qual o seu plano?
― Se ele reagir mal, vou sair de casa. Tenho umas economia e posso me manter por um tempo.
― E depois que esse dinheiro acabar? O que você vai fazer?
― Eu posso trabalhar.
― Como o que? ― parecia estar perdendo a paciência. ― Você nunca fez nada além de limpar o salão de um santuário!
― Sei lá. Qualquer coisa, posso aprender. ― dei de ombros. ― Enfim, só te contei porque achei que você deveria ser a primeira a saber, mas já estou me arrependendo.
Suspirando, segurou minha mão entre as suas e apoiou a cabeça no meu ombro.
― Espero que esteja pronta para enfrentar a tempestade porque é isso que vai acontecer. ― ri sem humor sabendo que ela estava absolutamente certa.


Ao chegarmos em casa, estavam todos acordados com a mesa posta para o jantar às 2h da manhã, como sempre. Tia Sayuri havia feito sua famosíssima sopa de missô acompanhada de chá verde. Por já ser muito tarde, largamos nossas malas no quarto e voltamos para a cozinha junto de todos.
Sentados na mesa, ouvíamos apenas os barulhos das tigelas e a voz de vovô nos contando mais uma de suas histórias engraçadas envolvendo passarinhos e o fato de papai ter escondido seu cachimbo outra vez, o que o levou a aprender a usar o computador de casa para encomendar um novo.
Tia Sayuri e papai começaram a conversar sobre o cronograma de atividades a serem desenvolvidas no santuário ao longo da semana enquanto e eu seguíamos comendo em silêncio. Em minha cabeça, já havia decidido que não falaria sobre ter largado a faculdade até que alguém tocasse no assunto.
― E, então, como vai a escola? ― tia Sayuri soltou e nunca quis tanto enterrar a cabeça daquela mulher dentro da tigela de pepinos que estava sobre a mesa.
― Vai bem. Encontramos uma antiga colega de escola dia desses. Ela estava palestrando. ― agradeci aos céus de ter tido a ideia de falar primeiro com .
― Uh, que legal. Imaginem só quando for com vocês. ― a mulher respondeu empolgada com um sorriso.
― E você, ? Como está? ― meu pai perguntou, provavelmente, por ter percebido que eu pretendia ficar a sombra da resposta de .
― Eu larguei a faculdade. ― falei em um dos não tão raros momentos em que minha boca e meu cérebro estavam desconectados um do outro.
― Você fez o que?! ― se estivéssemos em um desenho animado, veria fogo ou raios saindo dos olhos de meu pai.
― Larguei a faculdade. Não é grande coisa. No fim das contas, a economia é sua. ― dei ombros, bebendo meu chá.
― VOCÊ PERDEU A CABEÇA? ― bateu com a palma da mão sobre a mesa, berrando, fazendo todos os presentes sobressaltarem.
― Não, tá bem grudadinha aqui. ― brinquei baixinho, segurando o riso e chutou minha canela.
― POR QUE VOCÊ FEZ ISSO? ― levantou-se de sua cadeira. ― VOCÊ VAI FAZER O QUE? ACHA QUE VOU TE SUSTENTAR PRO RESTO DA SUA VIDA? VOCÊ ACHA QUE TUDO É UMA BRINCADEIRA, ?
― Nunca disse isso. Aliás ― empurrei a cadeira para trás, levantando-me. ―, não sei nem porque tô aqui ainda te ouvindo gritar desse jeito.
― Se você não vai agir como crianças e começar a agir como uma adulta honrada que merece pertencer a esta família, eu quero você fora dessa casa agora! ― falou entre dentes. Era possível sentir sua fúria há quilômetros de distância.
Fui até o quarto, pegando minha mala novamente. Ao voltar para a cozinha, dei um beijo no alto da cabeça de e saí.
Do lado de fora, a rua era o mais pleno breu, porém nunca tive medo de andar sozinha, pois passara boa parte da minha vida o fazendo. Tirando o celular de dentro do bolso, telefonei para e perguntei se poderia vir ao meu encontro, me dar uma carona de carro e me deixar na estação de trem. Meu amigo concordou e, por demorar bem menos que o esperado, deve ter furado alguns sinais vermelhos, além de não ter feito a condução mais moderada de sua vida.
Joguei minha bolsa no banco traseiro do carro e sentei-me no carona. Percebendo que minha cara não estava das melhores, não fez muitas perguntas, somente se eu estava bem e se não queria passar a noite na casa de sua mãe. Recusei a oferta e agradeci por ter vindo tão rápido.
Na estação, despedi-me dele e peguei o primeiro trem que iria para a cidade vizinha. Mentalmente, estava esgotada e não queria continuar pensando sobre o que faria para sobreviver. Com a grana que eu tinha, conseguiria me manter por uns três meses se o gerenciasse bem, porém precisaria de um emprego o mais rápido possível.
Ao chegar ao meu destino, cogitei a ideia de voltar ao meu dormitório, entretanto, não havia muito que eu pudesse fazer uma vez que já tinha trancado minha matrícula e teria que tirar todos os meus pertences para levá-los a um lugar que nem eu sabia onde era, pois ainda não o tinha conseguido.
Pesquisando rapidamente na internet, procurei por albergues, hotéis ou acomodações que fossem baratas o suficiente para uma jovem adulta ex-universitária. A cinco quadras dali, estava um dos locais mais baratos que achei e era para lá que eu seguiria. Com a alça da mala transpassada pelo corpo e segurando-a bem junto de mim, caminhei pelas ruas iluminadas e nada vazias. Por sorte, tudo tinha acontecido numa sexta-feira, o dia que todos decidiam perambular pelas ruas até que o sol raiasse.
Ao chegar, perguntei se haviam quartos disponíveis e a recepcionista me encaminhou para o único livre. Agradeci mentalmente por isso.
No quarto, apaguei na cama logo depois de tirar os sapatos.


Na manhã seguinte, peguei um jornal na recepção e procurei por vagas de coisas que poderiam ser facilmente feitas por mim. A maioria das ofertas eram para a vaga de babá ― eu não tinha jeito com crianças ― , faxineira ― não limpava nem minha própria bagunça, quem dirá a dos outros ― e algumas de garçonete, sendo que uma delas me chamou muito a atenção por pagar quase o triplo que a maioria. O endereço apontava para a cidade vizinha e era para lá que eu planejava ir.
Depois de almoçar, tomei o primeiro trem que me levaria onde eu queria, a seis estações de distância da central.
O bar do anúncio ficava a uma quadra de distância em um beco sem saída. Quando cheguei a porta, entendi porque pagava tanto e porque a entrada era tão longe da rua principal.
Cumprimentando o segurança que ficava do lado de fora da porta, adentrei ao avisá-lo que estava ali a respeito da vaga de garçonete.
Como já era de se esperar, até as escadas que levavam ao salão principal do local eram iluminadas apenas por luzes negras. Ao final da escada, uma garota da minha altura, com cabelos longos e negros e rosto extremamente maquiado veio me atender. Usava uma roupa de couro extravagante e meia calça arrastão.
― Posso ajudar? ― disse, mascando chiclete.
― Vi um anúncio no jornal que você precisam de garçonete.
― Ah, sim. Qual seu nome?
.
― Sou Liv. Você sabe do que se trata esse ambiente?
― É um puteiro? ― brinquei.
― Foi direto ao ponto. ― sorriu. ― A maioria usa ‘prostíbulo’ pra não ofender. ― fez aspas com os dedos. ― Gostei de você.
― Vai me dar um emprego? ― sugeri com um sorriso.
― É, pode ser. Você sabe dançar?
― Não, mas, se preciso for, posso aprender.
― Você é bonita. ― segurou meu rosto pelo queixo com uma das mãos. ― Não deveria ser só nossa garçonete.
― Eu acho que, por enquanto, prefiro ser só menina da bebida. ― sorri. Ao fundo, pude perceber algumas barras de pole dance e tecidos para prática de tecido acrobático.
― Você dança? ― apontei para a barra.
― Tá querendo aprender?
― Se você quiser me ensinar… ― deixei no ar.
― Você pode começar a trabalhar hoje à noite?
― Como garçonete? ― assentiu. ― Posso.
― Ótimo. ― foi para trás do balcão. ― Vem comigo.
A mulher pegou um molho de chaves e encaminhou-se para o palco onde ficavam instalados as barras de metal, que iam do teto ao chão. Atravessamos a grande cortina que separava o palco das coxias e dos espaços que poderíamos chamar de camarins.
Abrindo uma das primeiras, adentramos no cômodo, que continha espelhos de corpo inteiro e algumas araras de roupas de um lado e, do outro, com fileiras de armários.
― Acho que esse deve te servir. ― disse, tirando um cabide com algumas roupas de uma arara. ― Esse é seu uniforme. Quando estiver vestida, me chame que eu vou te maquiar. ― assenti, vendo-a sair e fechar a porta atrás de si.
O uniforme era bem mais “tampado” do que imaginei que seria. Uma calça social preta, uma camisa social branca e suspensório também preto. Ao terminar de me trocar, coloquei a cabeça para fora por uma fresta, chamando Liv novamente. Sentando-me em uma cadeira no canto, de frente para o primeiro espelho, deixei que Liv me desse as coordenadas do que fazer para me maquiar, como fechar os olhos, segurar os cabelos, abrir a boca etc.
― Sua pele é muito bonita. Você não costuma usar maquiagem, né?
― Eu nem sei como se usa. ― ri.
― E você nem precisa mesmo. ― por estar com os olhos fechados, não a via, mas, pelo seu tom de voz, imaginei que estivesse sorrindo ao dizer aquilo.
― Obrigada.
― Abra os olhos e fique olhando pra cima. ― assim o fiz, não conseguindo evitar piscar e lacrimejar ao sentir a ponta do lápis passando pela marca d’água de meus olhos. ― Prontinho. Me diga o que acha. ― saiu da minha frente e encarei meu reflexo no espelho.
Aquela era uma figura que eu ainda não tinha visto, portanto, não a reconhecia. Meus olhos haviam sido contornados e esfumados por inteiro de preto e nos lábios um batom de um vermelho profundo predominava.
― Sou eu mesma? ― questionei, brincando, fazendo-a assentir, rindo. ― Cacete!
― Não fiz nada demais. Como eu disse, sua pele é bem bonita, não precisa de base, só algo para realçar.
― Você é boa nisso, hein?
― Eu sou boa em muitas coisas. ― respondeu com um ar sugestivo e eu sorri. ― Vamos. Ainda preciso te explicar como tudo por aqui funciona. ― levantei-me, seguindo-a de volta para o salão.
Liv mostrou-me onde ficavam as chaves, como funcionava o atendimento aos clientes no balcão, nas mesas e quando eles iam para a ala privada. Levou-me a todos os espaços e me apresentou para toda a equipe minutos antes do turno de trabalho começar.
Diferente do que eu achava, a maioria dos clientes não eram homens velhos e, sim, homens com idades entre 20 e 40 anos, cuja a maioria esmagadora não levava garotas para a ala privada, o que me fazia crer que o preço dos serviços não condizia com a renda de boa parte dos presentes. Não foram poucos os que entraram acompanhados de amigos ou sozinhos, beberam, assistiram a algumas danças e foram embora.
E esse comportamento era o mais comum na maioria dos dias, com exceção dos fins de semana e feriados, principalmente, se coincidissem com o início do mês. Esses eram os dias que a casa não só lotava, bem como era normal que ficassem apenas duas dançarinas no palco, que, mais tarde, descobri que eram sempre Berta e Sissy, as únicas que “não faziam o serviço completo”.


Passados quase um mês trabalhando no ‘09 Club, Liv decidiu que me ensinaria pole dance. Não que eu estivesse pronta para virar stripper, porém parecia um exercício legal, além de que eu sempre quisera aprender a dançar.
Ver Liv escalar, rodopiar e dançar na barra parecia simples. Tentar imitá-la se tornava um desafio, uma vez que meus membros e músculos não eram tão fortes e elásticos como os dela. Entretanto, eu estava conseguindo aprender. No meu tempo, mas estava.
Se minha família já me odiava antes, me vendo agora me odiaria mil vezes mais.
Na pausa de um dos treinos, vi Liv respondendo mensagens atentamente em seu celular, o que ela sempre fazia quando disponível.
― Vai soar muito fofoqueira da minha parte se eu te perguntar se você tem muitos contatinhos? ― perguntei, bebendo um gole de água.
― São contatinhos, mas de trabalho.
― Você atende fora daqui?
― Não. ― sentou-se ao meu lado no chão, bloqueando a tela do celular. ― Eu sou fotógrafa também.
― Sério? ― franzi as sobrancelhas.
― Sou formada em Belas Artes, inclusive. ― riu.
― Mas você começou a trabalhar e estudar isso depois de começar a trabalhar aqui?
― Negativo. ― riu. ― Uma das coisas que eu aprendi na marra foi que talvez a única coisa que venda mais do que comida e bebida é sexo. A maioria dos meu clientes não pagaria uma sessão de fotos para si, para um amigo ou para a família, mas paga pra me comer, pra me levar pra uma despedida de solteiro ou pra eu tirar a virgindade do filho feio e tímido. ― ri. ― Viver de arte é muito difícil, a não ser que você seja stripper.
― Você se arrepende de ter escolhido se prostituir?
― Às vezes, me pergunto como seria se eu não tivesse vindo para cá. Talvez eu desse meu jeito, como sempre, ou talvez tivesse voltado para a casa dos meus pais por não conseguir me sustentar. Hoje, já não faz mais diferença se me arrependo ou não, pois não é mais algo que posso mudar. ― abraçou as próprias pernas em frente ao joelho. ― Você pretende ser stripper?
― Não sei se é algo que eu quero ou tenho necessidade. Não julgo errado o que nenhuma de vocês faz, mas não sei se vender sexo é o meu lance. ― dei de ombros.
― Se você acha isso por imaginar que o sexo na sua vida pessoal perde a graça depois de transar por dinheiro, você está absolutamente errada. ― sorriu. ― Na realidade, eu diria que fica melhor.
― Por quê?
― Porque é como qualquer outra profissão em que você ama o que faz, mas vende sua força de trabalho. Por exemplo, eu sou fotógrafa e faço isso por dinheiro, mas isso não me impede de me fotografar ou fotografar as pessoas que eu amo por puro prazer.
― Depois de começar a trabalhar aqui, você já se apaixonou por alguém? ― dando um sorriso que iluminou seu rosto por inteiro, Liv encostou a cabeça sobre os joelhos, ajeitando as pernas em meio aos próprios braços.
― Já.
― E essa pessoa sabia que você é prostituta?
― Uma das coisas que você vai aprender trabalhando aqui é: quanto mais cedo as pessoas da sua vida souberem que você trabalha em um puteiro, menos dor de cabeça você vai ter. E, sim, ele sabia que eu trabalhava aqui. Inclusive, nos conhecemos porque ele veio na despedida de solteiro de um amigo que aconteceu aqui. O noivo pagou uma hora de programa pra todos os convidados. Ele me escolheu e, quando fomos pra ala privada, ele não quis transar. Só me pediu pra dançar e depois conversamos. No fim da noite, me perguntou se eu daria meu número e eu disse que não. Então, ele voltou aqui todas as noites naquela semana e ficava até o horário em que acabava meu expediente pra me levar de volta pra casa. ― suspirou com o olhar distante.
― O que deu errado entre vocês?
― Queríamos coisas diferentes. Ele sempre quis se casar e ter filhos. Esse nunca foi meu objetivo, por isso, eu o deixei livre para procurar o que desejava com outra pessoa. ― deu de ombros.
― Deve ter sido… difícil.
― Não vou negar, no começo, doeu, mas tudo são escolhas. Eu escolhi ser uma mulher que não pertence a ninguém. ― deu um meio sorriso. ― Chega dessa conversa mórbida e vamos treinar mais um pouco antes de ir ao trabalho? ― levantou-se, estendendo a mão para mim. Segurei-a, me apoiando para conseguir me levantar também.


Cinco meses haviam se passado desde que Liv começara a me treinar. E se mostrava extremamente difícil melhorar minhas habilidades, pois era necessária muita coordenação motora para dançar, se pendurar de cabeça para baixo em uma barra de metal e fazer mil rodopios.
― Se eu te dissesse que preciso que você dance hoje à noite, o que você diria? ― perguntou olhando a tela do celular.
― Que talvez não seja uma boa ideia, mas algo me diz que você não liga pra isso.
― Berta tá doente, não vai conseguir vir hoje e precisamos de pelo menos duas pessoas dançando. A casa vai estar fechada pra uma despedida de solteiro.
― Eu não sei se dou conta.
, você faz o que eu te ensinei até melhor que eu. ― pôs uma das mãos sobre meu ombro. ― Vai dar tudo certo. Você só precisa de um nome. Me diga coisas que você gosta de fazer ou algo que você quer muito fazer.
― Bom, desde sempre quis sair de casa e ir conhecer outras pessoas, outros lugares, parar de viver dentro de um local que respira religião. ― as expressões faciais de Liv denunciavam que ela estava pensando em algo. Seus lábios se mexiam, mas, de lá, não saía som algum, talvez estivesse tentando formular sílabas que a fizessem chegar à um resultado.
Com uma feição de surpresa e estalando os dedos, soltou:
― O que acha de Wandress? Tipo, quando você dança, você envolve quem te olha, como se fizesse a pessoa viajar com você.
― Gostei. ― sorri.
― Ótimo. E você consegue, ok? ― assenti. Dando dois tapinhas leves sobre meu ombro, Liv me deixou só para que pudesse me aprontar.
Corri para tomar um banho e, em seguida, fui até o camarim pegar o figurino de Berta emprestado. Composto por um sutiã, uma harness de busto e hot pants inteiramente de couro preto, não era uma roupa desconfortável, entretanto, também não era algo que eu usaria. Afivelando a cinta-liga, que também era feita de couro, e procurando pelas sandálias, tentava me autotranquilizar mentalmente.
Passar maquiagem foi uma das tarefas quase impossíveis, visto que minhas mãos estavam mais trêmulas que o normal e não consegui traçar uma única linha reta que fosse. Ao terminar, aproveitei a hora que faltava para a abertura da casa para treinar a coreografia de uma música que havia montado sob a supervisão atenta de Liv.
Não queria e não podia suar, no entanto, mesmo com o ar-condicionado ligado, conseguia sentir um fio de suor escorrendo pelas minhas costas. Nunca havia me sentido tão nervosa na minha vida.
Quando o momento de sair do camarim chegou, Liv veio me chamar, avisando que abririam a noite comigo.
― Eu não sei se consigo. ― minhas mãos suavam.
― Vai dar tudo certo. Você treinou e, com os holofotes em você, nem vai dar de ver quem está te olhando. ― pôs as mãos em meus ombros, fazendo uma pressão reconfortante. ― Confia em mim. Você vai ser incrível. ― sorriu e eu respirei fundo, vendo-a sair.
Posicionada atrás das cortinas, as vi se abrirem, mostrando o salão completamente escuro. Posicionei-me em frente à barra e fortes luzes azuis se acenderam sobre mim.
Ouvindo o instrumental soar, fiz os primeiros passos de dança antes de escalar a barra. Por mais tensa que estivesse, isso não me impediu de seguir em uma série de acrobacias ao som de palmas e assovios da plateia. E, mesmo não vendo a cara das pessoas que me assistiam, saber que estavam gostando me deu a confiança que eu precisava para relaxar e prosseguir.
Nunca havia me imaginado gostando de algo, porém, quando eu dançava era como se eu fosse transportada para outra dimensão, um local só meu, onde só eu conseguia chegar e nada mais importava. Era apenas eu e eu. E tal nome fazia todo o sentido, afinal, era isso que eu havia me tornado:
Uma viajante.
Um espírito livre.
Uma andarilha.




FIM.



Nota da autora: Terinamos a primeira das promessas que fiz quando terminei de escrever Girl on the screen. Espero que você tenham gostado e que tenha suprido as expectativas de vocês porque a irmã da pp era, sem sombra de dúvidas, uma das minhas personagens preferidas e eu quero muito ter conseguido entregar uma fic a altura dela, sabe?
Aliás, boatos já começam a rolar que o Ficstapes Perdidos #4, onde vai sair a fic sobre a Antonella e o pp, vai ser postado na primeira semana do ano novo, então, estejam atentes. Entrem no grupo do face que é por lá que aviso quando sai as coisas e pra gente trocar uma ideia também!!!
Beijinhos e até a próximas, amores <3





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Girl on the screen
nothing revealed, everything denied


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