Prólogo


Em algum lugar entre Rio de Janeiro e São Paulo, 2017.

O avião estava sobrevoando a mata fechada, a porta de carga de abriu. O barulho do vento tomou todo o ambiente e a força do mesmo fez com que eu precisasse me segurar. E então eu ouvi a voz de Roberta bradar da sala de controle:
- Quando chegarmos à zona de salto, você terá 20 segundos. Se prepare, Dandara. – ela disse sinalizando para que eu a olhasse. – Você não inventa de tentar fazer as coisas sozinha, quando localizar o esconderijo, faça contato. Nós estamos aqui para te ajudar. A Lota está aqui preparada para a ação e eu pousarei o avião na primeira clareira que avistar.
- Entendido, chefa. – falei, ajeitando o paraquedas nas costas, coloquei os óculos de salto e me aproximei da porta, encarando a escuridão à minha frente. Não era o meu primeiro salto, então não era como se eu estivesse com medo. Eu tinha falhado e eu não aceitava falhas. Lota saiu da sala de controle, deixando o avião sob responsabilidade de Roberta, ela parou ao meu lado e encarou o meu rosto, como se procurasse por alguma coisa.
- Você já estava esquecendo o comunicador. – ela disse, colocando o pequeno ponto eletrônico em minhas mãos.
- Obrigada. – agradeci rapidamente, colocando o mesmo dentro do ouvido.
- Por favor, Dandara, não banque a heroína. – ela pediu, com a voz baixa, como se fizesse um pedido muito difícil. A luz verde se acendeu e eu não precisei nem do aviso que poderia saltar.
- Eu nunca faço isso. – respondi, antes de mergulhar na escuridão. E conforme ia caindo, flashs da minha vida passaram pelos meus olhos. Dez anos atrás, a minha vida era outra. Até mesmo o meu nome era outro. Mas se você quer saber da minha história, vamos começar pelo início. Não quando eu nasci, mas sim quando a Dandara nasceu.



“Ninguém nasce mulher; torna-se mulher.”
Simone de Beauvoir (1908-1986)



Rio de Janeiro - Brasil, 2007.

Eu tinha acabado de fazer 18 anos quando me encontraram. Eu morava com o meu pai e minha avó no subúrbio do Rio de Janeiro, e nunca tinha conhecido minha mãe. Eu estava voltando da faculdade uma noite, a rua estava escura e não tinha uma só pessoa por perto. Eu caminhava a passos largos, com os olhos atentos a qualquer movimento estranho ao meu redor. Acredito que qualquer mulher que ande na rua à noite, sozinha, deve se sentir dessa mesma forma. Olhei rapidamente para trás e vi como se tivesse alguém caminhando bem mais atrás. Não consegui ver se era um homem ou mulher, mas nem me prendi muito nisso, apenas passei a andar ainda mais rápido. A luz do poste piscou e eu me assustei, quase derrubando os livros que carregava. Respirei fundo e voltei a caminhar, só que quando levantei os olhos, vi que tinha uma pessoa parada no final da rua. Pela silueta, percebi que era um homem. Meu corpo gelou, meus livros caíram todos no chão. Girei o corpo, imaginando que poderia correr para o outro lado da rua, mas assim que virei, vi que a outra pessoa que tinha visto antes estava bem mais perto e que era outro homem. Eu estava no meio da rua, não tinha para onde correr. Tentei pensar em formas de escapar, em formas de me defender deles dois, como eu poderia golpeá-los e fugir, mas a minha cabeça não funcionava e quanto mais eu tentava pensar, mais eles se aproximavam. Já não estava conseguindo respirar direito, sentindo um aperto no peito e me preparando para o ataque.
Não lembro muito o bem o que aconteceu nos minutos seguintes, lembro de alguns sussurros do tipo: “você não deveria estar andando por aqui sozinha a essa hora, gatinha.” ou então, “nem adianta gritar, porque não tem ninguém aqui pra te ajudar.” Eu fechei os olhos fortemente e apenas sentia a mão deles passando pelo corpo, me dando uma sensação de nojo, de asco. Eu sentia os meus olhos de enchendo de lágrimas, mas eu não queria gritar para não tornar tudo pior. Até que ouvimos um barulho, eram passos ecoando pelo asfalto. Eles pararam e se afastaram de mim rapidamente. Eu escorreguei até o chão e sentada, abraçada às minhas pernas, assisti a tudo. Um grupo de cerca de três mulheres vinha caminhando pela rua, com passos rápidos e decididos. Suas expressões demonstravam superioridade e puro poder. Lembro de como eu fiquei impressionada com todas elas. A que vinha à frente de todas era alta, tinha o corpo esguio e magro, como a de uma atleta, e a pele bem escura, num tom negro que brilhava na luz da lua. Seus cachos imponentes ocupavam toda a sua cabeça, formando um blackpower. A que vinha mais atrás, à direita, tinha o corpo mais volumoso, a pele alguns tons mais claros que a primeira e, diferente da outra, era bem mais baixa e o cabelo cortado bem curtinho deixava sua expressão bem marcada. Já a que estava à esquerda era ainda mais alta que a que vinha à frente, era bem magra, a pele era branca e tinha o cabelo liso num tom vivo de vermelho.
Elas pararam à frente dos dois rapazes e os encararam, esperando alguma reação. Eu pensei em levantar e correr, mas minhas pernas não me obedeciam. A que aparentava ser uma espécie de líder deu um passo a frente, parando a poucos centímetros de um dos caras. Ela umedeceu os lábios lentamente antes de falar: “você vem com a gente.” Demorou um pouco antes que eu percebesse que era comigo. Vendo que eu não estava no meu estado normal, a de cabelos curtos caminhou até onde eu estava para me ajudar, só que quando ela estendeu a mão em minha direção, um dos rapazes se colocou entre nós. Ela me olhou rapidamente e depois o encarou pelo canto dos olhos.
- Tem certeza? – sua voz saiu firme e decidida. Sem dar tempo de resposta, ela girou o corpo, fazendo com que ele caísse de costas do chão, tendo ela com um dos joelhos apoiados em sua garganta. Eu, que não tinha conseguido acompanhar o movimento, me assustei e forcei meu corpo para trás, me arrastando para alguns centímetros mais distante deles. E antes que o outro pudesse fazer qualquer coisa, a que estava em sua frente, fechou sua mão em punho e o acertou fortemente bem no rosto. Ele caiu desacordado na hora e com uma cachoeira de sangue descendo pelo nariz recém quebrado.
- Sem paciência, Quitéria? – a que estava perto de mim perguntou.
- Nenhuma. – ela respondeu rapidamente. – Vamos logo antes que apareça alguém. Nisía, acaba logo com isso. Tarsila, ajuda ela.
- Espero que você se lembre disso cada vez que perseguir uma moça na rua. – a que estava mais próxima a minha disse, antes de fechar a mão em punho.
- O que você vai fazer, sua vagabunda? – ele perguntou, com um sorriso cínico no rosto.
- Boa noite, seu infeliz. – dizendo isso, ela acertou, repetidamente, o rosto do rapaz, até que ele apagasse.
A ruiva caminhou em minha direção e se abaixou à minha frente, dizendo:
- Nós temos que ir, alguém pode passar aqui a qualquer momento.
Ela segurou minhas mãos e fez com que eu levantasse, mas eu ainda não sentia minhas pernas. Ela apoiou meu corpo no dela, passando o braço pela minha cintura e foi quase ma arrastando atrás das outras. Quando estávamos alguns metros distantes, ouvi a líder dizer:
“Tudo certo, estamos com ela.”
Eu queria ter perguntado o que estava acontecendo, mas acho que só acordei de verdade quando estava dentro de um carro, indo para um lugar que eu não fazia ideia onde era. Tentei me localizar pela janela do carro, mas estava tudo escuro e passando muito rápido, era impossível. A ruiva que me ajudou estava sentada ao meu lado e me encarava incessantemente. Eu já estava muito desconfortável, mas tinha tanta coisa na cabeça, que não conseguia dizer nada. Eu só queria saber para onde estávamos indo e quando eu poderia ir para casa. Mais alguns minutos se passaram e nós ainda estávamos dentro do carro. Eu já estava mais que nervosa, então respirei fundo algumas vezes antes de falar:
- Pra onde vocês estão me levando?
- Pra um lugar seguro. – a que estava ao meu lado respondeu rapidamente. – A Senhora quer falar com você.
- Quem? – perguntei, sem entender.
- Você já vai entender. – ela disse, com um sorriso no canto dos lábios.

Talvez uns dez minutos tenham se passado e o carro parou. Olhei para o lado de fora e estávamos em algum lugar do Centro do Rio, reconheci pelos casarios antigos e rua de pedras antigas. As duas que estavam na frente saíram e logo depois a ruiva ao meu lado também saiu, segurando a porta do carro para que eu descesse. Parei pouco mais atrás que elas, que estavam em frente a uma loja de sapatos femininos bem famosa, a Salute. Fiquei confusa, o que elas poderiam querer ali naquela hora? Será que elas iriam arrombar? E eu estava aqui para levar toda a culpa? Eu estava esperando qualquer coisa naquele momento.
Até que uma delas se posicionou num espaço demarcado da calçada, bem na frente da loja. Assim que ele posicionou os pés, a calçada brilhou. Eu me afastei por reflexo, esbarrando no carro atrás de mim. Como se a calçada “lesse” alguma coisa, uma porta surgiu na parede à direita de onde ela estava, onde antes havia apenas um amontoado de pedras. Sim, eram pedras, eu vi. Pisquei os olhos algumas vezes, tentando colocar os pensamentos em ordem e lembrar se eu tinha batido a cabeça ou alguma coisa assim.
- O que tá acontecendo? – perguntei. – Onde eu tô, quem são vocês? – eu me atropelava nas perguntas, enquanto elas apenas me encaravam. Depois se entreolharam rapidamente, como se estivessem decidindo algo. E então a ruiva e de cabelo curto se aproximaram de mim, e cada uma me segurou em um dos braços, me arrastando até perto da porta. Me debati um pouco tentando me soltar, mas foi em vão, elas eram absurdamente fortes. E assim, sem eu ter opção de escolha, passamos pelo espaço que se abriu na parede.
Assim que entramos, a porta de fechou. A parte interna era bem iluminada e parecia um hall de entrada de um prédio qualquer. Elas me soltaram e passaram a caminhar na minha frente, sem se preocupar que eu fugisse, afinal, eu não poderia sair pelo mesmo lugar que entrei. Respirei fundo algumas vezes e apressei o passo, andando rapidamente atrás delas. Seguimos por um corredor longo, descemos alguns lances de escada e chegamos a uma sala ampla e vazia, onde só tinham duas portas: a que entramos e uma porta dupla ao fundo. Elas pediram que eu esperasse e se posicionaram próximas à parede, como se aguardassem alguém. Poucos minutos depois, um lado da outra porta se abriu e começaram a entrar na sala dezenas de mulheres. Elas iam se posicionando na lateral da sala conforme entravam, tal qual as outras que estavam comigo. Depois de alguns segundos, eu já havia perdido as contas, mas de acordo com o tamanho da sala, deviam ter quase cinquenta mulheres ali. E todas me encaravam de forma intensa, como se me medissem, como se estivessem procurando alguma falha, algum defeito grave em mim. De repente a porta se abriu completamente e uma mulher numa cadeira de rodas motorizada entrou na sala. Ela tinha a pele escura, o cabelo era cortado bem baixo, como se cortasse com uma máquina. Os olhos eram grandes e castanhos escuros, os lábios carnudos e bem marcados, dando a ela uma expressão bem séria. Todas as que estavam no recinto assumiram posição de sentido e eu senti como se devesse respeito àquela mulher também. Ela trouxe sua cadeira de rodas até bem perto de mim e parou a menos de um metro de distância. Me olhou de cima a baixo e depois olhou na direção das três que me trouxeram até aqui.
- Quitéria, Nísia e Tarsila, relatório da missão. – sua voz firme e grave soou ainda mais ameaçadora do que eu imaginei. As três deram um passo à frente, antes de começarem a falar.
- Ela estava a caminho de casa e foi atacada por dois homens numa rua perto da faculdade. Estávamos por perto, como ordenou, então intervimos. Como ela presenciou toda a ação, achamos que era o momento de trazê-la, como a Senhora ordenou. – a mais alta de cabelo afro respondeu.
- E os agressores?
- Demos um jeito neles. – a de cabelo curto foi sucinta.
- Ótimo. Deixem-me com ela. – a mais velha pediu e todas, imediata e ordenadamente, começaram a se retirar. Assim que todas deixaram a sala, a mais velha dirigiu seu olhar para mim novamente.
- Acredito que tenha mil perguntas, principalmente o que faz aqui e quem somos nós, certo? Estarei à disposição para responder todas as suas dúvidas, assim que eu disser tudo o que tenho a falar. Então vamos começar do início, .
- Como você sabe o meu nome? – perguntei, completamente confusa. Olhei atentamente para aquele rosto, aqueles olhos, e alguma coisa ali me parecia familiar.
- Eu te conheço há muito tempo. Muito, muito tempo. Antes mesmo de você começar a faculdade ou entrar na terceira escola que frequentou. Eu vi seus dentes caírem, vi você andar e, principalmente, eu vi nascer. Eu te vi nascer, porque eu que te coloquei nesse mundo. Eu sou sua mãe, . – senti minha expressão mudar automaticamente. Reprimi uma risada nervosa, porque eu não tinha o poder de lidar com notícias como essa de forma séria. Tentava formular frases, mas não conseguia dizer nem uma única palavra. Como uma mulher que eu nunca vi na vida, chega pra mim e fala que é minha mãe? Como que depois de dezoito anos de ausência, ela pode achar que tem algum espaço na minha vida pra ela?
- O que você tá falando? A minha mãe sumiu no mundo e me deixou com o meu pai e a minha avó. Eu não tenho mãe. Não tenho mãe. – repeti, para frisar bem a última frase.
- Sei como deve ser difícil pra você, mas eu estou aqui, eu existo e eu sou sua mãe. Há uma razão para o que fiz, você pode não entender, mas foi o melhor pra você. Eu sempre estive por perto, mesmo sem você saber. Hoje mesmo, se não fossem as minhas meninas, quem sabe o que teria acontecido com você?
- Quer dizer que elas estavam me seguindo? – perguntei, me sentindo mal, me sentindo perseguida.
- Elas estavam te protegendo. Eu estava estudando a melhor forma de me aproximar de você, então pedi para que algumas meninas te acompanhassem. Pode não ter sido a melhor escolha, eu posso não te feito nenhuma escolha certa relacionada a você, mas eu quero te explicar. Agora você já pode entender.
- Eu não quero entender nada, quero ir para casa. E quero ir agora. Meu pai e minha avó devem estar preocupados. – respondi, desviando meu olhar. Eu não queria ouvir nada, eu não queria nada dela. Se ela não teve a coragem de ter uma filha durante 18 anos, o que ela queria comigo agora? E que espécie de lugar louco é esse que ela se esconde? Que tipo de mulher ela é?
- Tudo bem, não vou te obrigar a nada, vou pedir que te levem para casa. Mas se um dia você quiser falar comigo, pode vir até aqui. É só vir aqui na loja e lembrar que “oxfords e chafariz são a última moda em Paris”, ok? – ela deu a volta com a cadeira e apertou alguma coisa no braço da mesma, que fez com que as portas se abrissem. Minutos depois as três que me trouxeram até aqui já estavam de volta e logo estávamos fazendo de novo o caminho que percorremos para chegar até a sala. Chegamos à rua e elas me colocaram no carro, prontas para me levar de volta para casa.

Nos dias que se seguiram, eu só conseguia pensar no que aquela mulher tinha me dito. Perguntei várias vezes ao meu pai e a minha avó a respeito da minha mãe e eles sempre desconversavam, falando que ela tinha ido embora alguns meses depois que eu nasci e nunca mais tinha procurado a gente, coisa que eles sempre respondiam. Mas eu queria saber mais, eu queria saber a verdade. Eu só conseguia pensar nela. Após o nosso encontro, eu só conseguia me olhar no espelho e enxergá-la. Minha pele escura, como a dela, os olhos grandes e negros, os lábios grossos e marcados. Somente os cabelos que eram diferentes, ela os usava bem curto e eu ostentava longos e vultosos cachos. E eu me perguntava que havia mais entre nós além da aparência. Será que compartilhávamos dos mesmos gostos, dos mesmos ideais.
Então numa tarde sai de casa, peguei o metrô e segui até o centro do Rio. Tentei tomar coragem no caminho, pensei em desistir várias vezes, mas de repente me vi parada na frente da loja. Ela estava aberta, tinha clientes, como qualquer outra loja. Fiquei pensando se tudo aquilo tinha acontecido de verdade, se não era fruto da minha imaginação. Mas também me perguntei se eu era tão criativa assim. Quando entrei, vi alguns rostos vagamente conhecidos entre as vendedoras, todas estavam na sala naquela noite. Elas agiram como se nunca tivessem me visto na vida e eu não poderia agir diferente. Mas o que eu faria? Perguntaria a alguma delas se a minha mãe estava ali? E nem ao menos sabia o nome dela. Então fingi que estava olhando os sapatos e fiquei tentando pensar no que fazer. Até que eu lembrei o que ela havia me dito. Caminhei até o caixa, que era onde estava mais vazio, a atendente me olhou com uma expressão sorridente e solicita. Eu tentei sorrir de volta, mas devo ter feito alguma expressão estranha e nada convidativa.
- Oi, posso te ajudar? – ela perguntou, depois que eu fiquei a encarando por alguns segundos sem falar nada.
- Bem, oxfords e chafariz são a última moda em Paris? – falei, num tom entre afirmação e interrogação. Ela afirmou com a cabeça rapidamente, chamando uma das atendentes que estavam no salão.
- Oxfords e chafariz são a última moda em Paris. – ela repetiu, baixo, e apontou para mim em seguida.
- Venha comigo, por favor. – a outra moça pediu. A segui até a parte interna da loja, onde ficava o estoque. Chegando próximo a uma escada, ela tocou na parede e um teclado virtual surgiu, em seguida ela digitou um código e depois fez o reconhecimento de retina. Após todas essas etapas, um pedaço da parede subiu, revelando uma passagem para o outro ambiente que estávamos no outro dia. Seguimos pelo pequeno corredor, chegando rapidamente a mesma sala onde encontrei a “minha mãe” da outra vez. Como se tivesse sido avisada, assim que entramos, ela também chegou. Dessa vez tinha uma poltrona, onde ela pediu que eu me sentasse. A atendente nos deixou e logo estávamos sozinhas.
- Fico feliz que você tenha vindo me procurar. – ela disse, com a voz mais suave do que eu me lembrava.
- Eu preciso de respostas. – falei, sem me estender. – E comece do início, por que foi embora? Por que me abandonou?
- Para você entender porque eu fui embora, você precisa entender o que isso tudo. – ela gesticulou com a mão, como se abrangesse todo o lugar. – Eu trabalho para essa organização, a Salute. Ela foi criada em 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, por um grupo de mulheres italianas. Quando praticamente todos os homens foram para a guerra, elas sentiram a necessidade de proteger sua casa, sua família e a elas mesmas. Conforme o tempo foi passando, a ideia se alastrou, chegando a grande parte da Europa ainda durante a Primeira Guerra. Como muitas ficaram viúvas e também perderam seus filhos, elas doaram suas fortunas para a organização, dessa forma, tudo começou a se tornar mais grandioso, mais importante. Mais mulheres queriam participar, ajudar de alguma forma, então a organização tomou forma, criou corpo. Ganhou um local físico, pessoas responsáveis por diversos setores e começamos a atuar de forma autônoma para ajudar mulheres necessitadas. Até que a Segunda Guerra estourou e o grupo cresceu mais ainda, se alastrou. Foi assim que ele chegou aqui. Em cada país do mundo há um grupo lutando e tentando proteger as mulheres. Sempre que você ver uma loja dessa marca, da Salute, saiba que ali há uma sede do grupo, trabalhando nas sombras pra tentar ajudar o máximo que puder. O ideal do grupo sempre foi e continua o mesmo: cuidar de mulheres. Mulheres em condição de perigo real, como em local de conflito bélico; mulheres em condições precárias de saúde, sempre tivemos muitas enfermeiras e médicas no grupo; mulheres em condições precárias de vida, nós resgatamos mulheres que sofrem violência física e abusos de todos os tipos em suas casas. Enfim, nós cuidamos das mulheres. Todas essas meninas que estão aqui, que trabalham comigo, elas sofreram algum tipo de violência na vida e acabaram resgatadas. Muitas não tiveram a sua sorte, não tiveram alguém para intervir quando um cara qualquer se achou no direito de tocar e ter o corpo delas. Nós não podemos curar essas marcas, mas podemos fazê-las mais fortes. Sempre que resgatamos alguma mulher em situação delicada, damos duas opções: ela pode seguir com a vida dela como se nunca tivesse conhecido o grupo ou pode se juntar a nós. Pode parecer uma escolha fácil, porque não se juntar a um grupo que “só faz o bem”, não é? O problema é que uma vez que você aceita entrar para a organização, você esquece a vida que teve. Você ganha um novo nome, você escreve uma nova história.
- Foi por isso que você me deixou para trás? – a interrompi. – Por que você resolveu ter outra vida, escrever uma nova história?
- Eu já fazia parte do grupo quando conheci o seu pai. Foi algo arrebatador, eu quebrei todas as regras existentes para viver aquela paixão. Só que eu engravidei. Todas me apoiaram, disseram que eu poderia seguir com a vida, viver como uma pessoa normal, criar uma família com ele. Só que eu já não tinha uma vida normal há muito tempo, eu não tinha mais uma história. Eu nunca disse o meu nome verdadeiro pro seu pai. Para falar a verdade, já faz quase 30 anos que eu não digo o meu nome verdadeiro para alguém.
- E qual é o seu nome verdadeiro? – perguntei, sem nem ao menos pensar. Ela me encarou por alguns segundos, sorrindo de lado e balançando a cabeça lentamente.
- Dandara, igual à heroína, companheira do Zumbi dos Palmares, uma das expoentes na luta pela liberdade dos negros aqui no Brasil.
- É um belo nome. Meu pai sempre disse que você se chamava Maria, por quê?
- Porque sempre que escolhemos fazer parte da organização, nós deixamos nosso nome de lado e adotamos outro, para marcar o início da nossa nova vida. E eu escolhi Maria, tal qual Maria Bonita, primeira mulher a participar de um grupo de cangaceiros. Muitas escolhem seus nomes em homenagem a mulheres que foram importantes para a história do nosso país como um todo. Mulheres guerreiras, artistas, ativistas, mulheres fortes, que foram e sempre serão exemplos.
- E por que você deixou o meu pai?
- Porque eu vi que aquela vida “normal” não era pra mim, eu não sabia mais viver daquela forma, eu não me encaixava. Estava impossível pra mim e acredito que estivesse muito difícil para ele também. – ela parou por um momento e respirou fundo, como se pensasse no que dizer a seguir. – Não pense que foi fácil para mim te deixar para trás, foi a coisa mais difícil que eu já fiz na vida. Foi a pior dor que eu já senti e como você pode ver, eu já passei por bastante coisa. – ela apontou para a cadeira de rodas. – Eu só queria que você tivesse uma vida normal, o mais normal que pudesse e eu não acredito que eu fosse capaz de te ajudar com isso. Eu não sou mais uma pessoa normal. Eu nem tenho mais nome, agora sou apenas a “Senhora”.
- E o que você quer de mim agora? Por que aparecer na minha vida agora? Passei dezoito anos sem você, eu estava bem. – bradei, passando a mão no rosto e me controlando para não chorar.
- Eu sei que estava, eu acredito que você estava bem. Eu só acreditei que te devia uma explicação. E agora você já está crescida o bastante para tentar me compreender. Eu te amei cada minuto da minha vida e eu estava lá em vários momentos da sua, mesmo sem você saber. Acompanhei de perto seu crescimento, o mais perto que pude.
- Eu cresci sem mãe, cresci acreditando que não era boa o bastante para a minha mãe querer ficar comigo. Eu me culpei cada dia, costumava pensar que se eu fosse menos levada, menos respondona, talvez você ainda estivesse lá e...
- Eles queriam me matar. – ela me cortou. Eu me calei a encarando, boquiaberta. – Quando eu conheci o seu pai, nós estávamos acompanhando um grupo que fazia tráfico de crianças. Eles roubavam recém-nascidos nas maternidades, tinham vários enfermeiros que trabalhavam com eles. Nós desmontamos a quadrilha e quase todos foram presos, menos o chefe da quadrilha. Ele era um empresário muito rico, dono de várias empresas pelo Brasil, e que lucrava ainda mais tirando bebês de suas mães. Ele descobriu quem eu era, ficou me monitorando, seguindo os meus passos durante meses e descobriu que eu estava grávida. Eu tenho certeza que se tivesse tido a chance, ele teria matado todo mundo: eu, seu pai, você. E eu não poderia deixar isso acontecer. Eu não poderia ter uma vida normal desse jeito, colocando vocês em perigo. Então eu fui embora, eu fiz uma cena, planejei tudo para que me vissem indo embora sem vocês. Eles caíram na armadilha e me seguiram.
- E? O que aconteceu? – perguntei, querendo saber. – Foi por causa dele que você está nessa cadeira?
- Eu o matei, assim que tive chance. – seu tom foi curto e grosso, como se ela não se arrependesse do que tinha feito. – Eu não gosto de falar sobre isso, mas eu não poderia deixar nenhuma chance, nenhuma brecha para ele perseguir e fazer qualquer coisa com vocês. – ela passou a mão pelo rosto, visivelmente desconfortável. – E eu estou nessa cadeira por outros motivos... – deixou a frase morrer, dando a entender que não entraríamos nesse assunto.
- Tudo bem. – falei, desconversando, para evitar qualquer situação constrangedora. – Eu queria muito dizer que te perdoo, que podemos ser amigas para sempre, mas isso não funciona assim. Eu passei por muita merda por você ter me deixado.
- Eu não estou esperando que você me perdoe, não imediatamente. Só queria poder ter a chance de te conhecer de verdade. Queria ter a chance de dizer pra você o quanto eu te amei durante toda a minha vida. E que você tem sim uma mãe.

Eu queria poder dizer que eu e minha mãe viramos amigas íntimas depois daquele episódio. Mas não seria verdade. Eu contei ao meu pai que tinha me encontrado com ela e ele surtou, disse que não queria que eu a visse novamente. Que ela iria me abandonar de novo, que era isso que ela fazia, que ela não gostava de ninguém, só dela mesma. Eu queria poder rebater, mas nem podia dizer a ele porque ela foi embora, eu nem podia explicar que ela nos deixou para nos proteger. Então eu escutei tudo calada, aguentando cada palavra dura que ele me dizia. Só o mais difícil de tudo foi aceitar que o que ele falou era verdade, ela iria me abandonar de novo. Algumas semanas depois de eu ter aquele encontro com ela, recebi uma visita de uma das meninas que me levaram até a loja na primeira vez eu fui até lá. Ela foi até a minha casa, coisa que eu achei muito estranho. Ela foi me levar uma notícia terrível. Ela foi até lá dizer que a minha mãe tinha morrido.
Ela estava com câncer, estágio terminal. Por isso a cadeira de rodas, por isso o cabelo tão curto, por isso a vontade tão grande de me ver. Ela queria falar comigo antes de morrer. E eu tinha sido tão dura, que me senti culpada, senti o meu coração pesar dentro do peito. Disse que teria uma cerimônia na Central e que eu poderia ir.
Eu fui.
E fiquei.
Até hoje.
Me culpo um pouco por abandonar meu pai e minha avó, ainda mais depois do que eles passaram com a minha mãe, mas durante todo aquele cerimonial, vendo todas aquelas pessoas, todas aquelas mulheres juntas, chorando a morte da minha mãe como se fosse a morte da mãe delas, eu senti como se precisasse fazer parte daquilo. Eu precisava ser uma delas. E quando a nova Senhora me perguntou, durante a minha cerimônia de aceitação, qual seria o nome que eu iria adotar, eu não tive dúvidas de que nome escolher. Só tinha uma opção. Só poderia ser o nome a líder do exército negro feminino durante a escravidão, companheira de Zumbi, e claro, da minha mãe: Dandara.

“Ladies all across the world, listen up, we're looking for recruits”
Little Mix - Salute


Durante os últimos quatro anos, eu passei por diversos treinamentos: aprendi a atirar, pilotar aviões, lutar, dirigir, falar diversos idiomas e, principalmente, aprendi a conviver. Eu vivia num lugar com outras 40 mulheres, cada uma com sua história, com a sua personalidade e com o seu próprio jeito de ser. O segredo da convivência talvez esteja em aceitar o outro como ele é, sem tentar mudá-lo, ajeitá-lo ou moldá-lo ao seu gosto. Cada pessoa tem as suas singularidades e são elas que nos tornam tão únicos. Depois de longos anos em treinamento, eu finalmente entrei em uma equipe e comecei a fazer trabalhos de campo. Todos mais simples, sem muita dificuldade. Era sempre até você conseguir ganhar a confiança da Senhora. E eu queria conseguir as coisas por mérito e não porque eu era filha da antiga Senhora. Esse era um peso e um motivo de orgulho que eu carregaria, mas eu teria que ser importante por mim mesma em, ao menos, uma coisa em minha vida.
Eu fui colocada numa equipe com outras quatro mulheres: Roberta, Lota, Maria da Penha e Leila. Quase todas eram novas e tinham passado pelo treinamento comigo, menos Roberta, que já tinha quase quarenta anos de idade estava aqui há mais de dez anos.
Roberta é uma mulher trans, sua família nunca entendeu porque ela se sentia tão diferente dos seus outros dois irmãos e porque ela sempre pegava os vestidos da mãe escondidos para vestir. Foi difícil até mesmo para Roberta entender o que acontecia com ela, entender que dentro daquele exterior masculino, daquela “casca”, havia sim uma mulher. E depois de muita negação, ela decidiu se aceitar como realmente era. Nessa época ela tinha 25 anos, largou a faculdade de engenharia faltando dois períodos para concluir e decidiu que queria cantar. Seu pai ficou louco, a espancou até suas próprias mãos sangrarem e depois de ver que nem mesmo a surra faria seu “filho voltar a ser o que era”, ele a expulsou de casa. O sonho de cantar não deu certo e Roberta acabou se prostituindo por alguns meses, até que um dia, alguns clientes a espancaram novamente e a deixaram, ensanguentada e completamente machucada, numa esquina qualquer da Lapa, no Centro do Rio de Janeiro. Nesse dia as meninas do grupo a encontraram e a trouxeram para que ela fosse cuidada pela Ana e pela Nise, as médicas que trabalham aqui. Ela foi a primeira mulher trans a ser trazida e acolhida a optar por se juntar ao grupo. Depois de recuperada, Roberta fez a cirurgia e, finalmente, pode ser quem ela sempre foi por dentro. Então quando ela se olha no espelho e encara os longos cabelos loiros, os lábios sempre pintados de vermelho, ela enxerga quem ela sempre foi e agora pode, realmente, ser. E por isso seu nome é Roberta, em homenagem a Roberta Close, uma das primeiras mulheres trans brasileiras a ganhar notoriedade.
Já Lota teve problemas em casa a partir do dia em que se assumiu homossexual. Ela era bem baixinha, tinha o cabelo castanho escuro cortado curtinho, estilo “joãozinho”, como as pessoas gostavam de perturbá-la. Ela não era muito de maquiagem ou roupas extravagantes, ela estava sempre bem sóbria, na dela, sem chamar muita atenção. Como sempre se acostumou a fazer. Seus pais, bem religiosos, não aceitavam a orientação sexual da filha e diziam que seria apenas uma fase, mas nunca foi. Lota sempre diz que nunca sentiu nenhum tipo de atração física ou sexual por homem nenhum. E que lembra detalhadamente a primeira vez que se viu interessada por uma garota, como ela se sentiu estranha, como ela achou que tinha algo errado com ela, que ela precisava de ajuda, que não poderia ser normal. E que também lembra muito bem do dia em que o seu interesse foi recíproco pela primeira vez. Que quando os lábios da outra menina tocaram os seus, ela sentiu que não tinha como haver algo errado com ela, porque ela se sentia bem demais, ela finalmente se sentia compreendida. E no dia em que ela estava andando de mãos dadas com a sua namorada e que alguns idiotas se sentiram no direito de falar gracinhas sobre elas, se sentiu impotente e agora se sente arrependida. Porque se ela não tivesse revidado as ofensas, sua namorada ainda poderia estar viva e ela não teria ido parar no hospital quase entre a vida e a morte. Então quando ela soube que tinha a chance de participar de um grupo que visava proteger todas as mulheres, independente de suas orientações sexuais, independente do que elas faziam com o seu corpo, sentiu que era isso que ela tinha que fazer, que ela precisava fazer pela Anna. E quando teve que escolher seu novo nome, ela escolheu Lota, em homenagem a grande arquiteta, urbanista e paisagista autoditada Lota de Macedo, que durante a ditadura militar, não teve medo de assumir seu amor por outra mulher.
Já Maria da Penha tinha sofrido muito para uma jovem de vinte e oito anos. Seu marido extremamente abusivo não a deixava existir como pessoa. Ela tinha que viver para ele, fazer tudo como e quando ele quisesse. E se ela se mostrasse descontente com qualquer coisa, ele fazia questão de usar todo e qualquer tipo de palavra para diminuí-la, tentando fazê-la achar que ninguém além dele nunca iria querê-la. “Gorda”, “Imprestável”, “Feia” eram algumas das palavras que ele sempre usava para ofendê-la. Fazendo questão de sempre escolher um ponto fraco que ele sabia que a atingiria com força. Ele não poupava esforços para rebaixar a própria esposa, que sempre achou que se não ficasse com ele, terminaria a sua vida sozinha. Cada palavra pesada que ele dizia a ela, ficava gravada em sua mente e parecia fazer a sua força interior diminuir mais a cada dia. Então toda vez que ela se olhava no espelho, vendo seu corpo, vendo as gorduras extras, vendo o sobrepeso, ela se sentia incapaz de ser amada. Então num dia, num surto de coragem, Maria da Penha decidiu que deixaria seu marido e voltaria para a casa da mãe, porque não precisaria mais se sujeitar a essas coisas. Só que não esperava uma reação tão violenta da parte dele, porque, pra ele, nenhuma mulher poderia sequer pensar em deixá-lo. Não era uma opção. Isso só aconteceria se ele quisesse e permitisse. Então, enquanto estava no hospital, se recuperando de todos os machucados, encarando os hematomas que ficaram por todo o seu rosto e a futura cicatriz que levaria para sempre consigo bem acima da sobrancelha esquerda, ela viu que aquilo que levava não era uma vida e que ela não tinha nenhuma chance de continuar viva se continuasse perto dele. Então mesmo depois de muito tempo, ela mantinha os cabelos pretos sempre presos, de forma que a cicatriz esteja sempre à mostra, para que ela veja o que ela sofreu e que ela sobreviveu. Que ela merece e precisa estar viva. Hoje ela vive bem com o seu corpo, com o seu peso. Passou a se entender e se aceitou gorda, e não há nada que ela ame mais que a si mesma. E quanto ao ex-marido, bem, ele está preso e ela espera que ele fique lá por muito tempo. E não deve ser muito difícil de imaginar o motivo de ter escolhido esse nome para a sua nova vida, é por causa de pessoas como Maria da Penha Maia Fernandes que outras mulheres hoje podem lutar contra seus agressores e tentar construir um nome futuro.
Já Leila sempre foi livre. Desde bem jovem, ela sempre teve plena noção de que o seu corpo era somente seu e ela poderia fazer o que quisesse com ele. Isso sempre foi muito mal interpretado pelas pessoas do seu convívio, mas ela nunca se importou com isso. Sempre se sentiu muito a frente do seu tempo, se declarando feminista antes mesmo de saber o que significava o termo. Mas ela como ela mesma dizia: “se o termo leva uma palavra que remete ao sexo feminino em sua construção, não tem como ser ruim”. Entrou na faculdade de serviço social já pretendendo trabalhar com mulheres que precisassem da sua ajuda, de qualquer ajuda que fosse. Então foi abordada quando estava no hospital com uma adolescente de 15 anos, que tinha entrado em trabalho de parto no meio da rua. A convidaram para conhecer melhor a organização e não precisou de cinco minutos de conversa para que ela se sentisse em casa. Leila era como a confidente de todas ali, era para ela que corriam quando tinham problemas, quando tinham pesadelos com suas vidas antigas. E sem ter um passado pesado e que não voltava para assombrar, Leila estava sempre disposta e com o coração aberto para ajudar. E quando lhe perguntaram qual seria o seu novo nome, ela parou por um momento e tentou pensar na mulher mais livre que tenha conhecido. Lembrou-se de Leila Diniz, símbolo da libertação feminina e quebradora de tabus na década de 60. E concordou que não teria uma mulher mais perfeita para que ela pudesse homenagear.
Essas quatro mulheres, mais que qualquer pessoa, se tornaram o mais próximo de família que eu tinha. Eu sabia que poderia confiar minha vida a elas e que estaria segura.

Rio de Janeiro - Brasil, 2017.

Eu e minha equipe fomos chamadas na sala da Senhora. Sabíamos que sempre que isso acontecia, era porque teríamos uma nova missão. Eu já estava ansiosa, porque estávamos paradas a mais tempo do que eu gostaria. Assim que permitiram, entramos na sala e ocupamos as cadeiras que foram dispostas à frente da mesa principal. A Senhora entrou alguns minutos depois, ocupando a sua cadeira de frente. A nova Senhora deveria ter em torno de sessenta anos, o cabelo grisalho caia pelos ombros, mas sua pele levemente bronzeada dissipava um pouco a imagem de mãe que ela poderia ter. Quando você olhava para ela pensava primeiro numa mulher bem sucedida, como uma empresária famosa, por exemplo, você nunca a imaginaria como uma mãe.
- Boa tarde, meninas. – ela falou, depois de sentar. – Vamos direto ao assunto, porque tenho o dia longo. – ela pegou quatro pastas de cima da mesa e entregou em nossas mãos. – Dentro dessas pastas vocês encontrarão informações sobre a próxima missão de vocês, que será um pouco diferente. Vocês terão que resgatar e manter sob custódia um rapaz.
- Um rapaz? – Roberta perguntou, abrindo a pasta e puxando algumas fotos de dentro da mesma. Eram imagens do homem que deveríamos proteger. Ele tinha a pele clara, tinha sardas pelo rosto, o cabelo era meio comprido e com cachos bagunçados, como se ele não penteasse o cabelo com muita frequência. Ele era bem magro, usava óculos grandes que ocupavam boa parte do seu rosto e tinha uma barba por fazer.
- Seu nome é , ele um hacker e tem informações essenciais sobre o nosso novo caso principal. – ela mexeu no computador e em seguida algumas imagens apareceram numa tela presa à parede. Eram fotos de diversas mulheres, cerca de vinte. – Há mais de um ano nós estamos acompanhando as ações um grupo que faz tráfico de mulheres. Eles oferecem trabalho e dinheiro fácil na Europa, com moradia garantida, cobram um valor baixo para o transporte e quando elas chegam ao destino, são surpreendidas, não há emprego, não há moradia. Elas ficam presas nesses países e são obrigadas a se prostituir para pagar a dívida que elas nem sabem que estão contraindo quando assinam o contrato. Além dessa dívida, eles cobram a estadia e a comida. Ou seja, elas trabalham, trabalham e trabalham e nunca conseguem pagar o que devem e voltar para casa. Há meninas nessas condições na Espanha, na França e em países menores da Europa Oriental. Nós temos informações sobre o procedimento deles, temos contato com testemunhas, mas não tínhamos provas concretas. Mas esse hacker, o , ele tem. Não sei como ou por que ele conseguiu. Mas sabemos que o grupo também tomou conhecimento do , então ele corre perigo. Precisamos chegar até ele e mantê-lo em segurança até que tenhamos todas as provas contra essa organização. Depois encaminharemos o rapaz para o programa de proteção a testemunha. É uma missão simples, mas demandará de tempo e disponibilidade, porque vocês terão que ficar com ele no abrigo, ele não poderá vir com vocês, assim como ele deve saber o menos possível sobre a Salute.
- Já temos um abrigo ou temos que providenciar um? – Lota perguntou, enquanto folheava os arquivos da pasta.
- Vocês receberão as coordenadas assim que partirem.
- E quando vamos? – perguntei, levantando os olhos do papel.
- Vocês partem em uma hora, estejam prontas.
- Sim, Senhora. – respondemos, já levantando de nossas cadeiras e saindo da sala.

- Um cara? – perguntou Maria da Penha, quando já estávamos fora da sala. – Vocês não acharam isso estranho? Pensei que nós ajudássemos mulheres e só mulheres.
- Acho que ele é apenas um peão, sabe? Nós precisamos dele para o objetivo principal. E não é como se fossemos colocá-lo aqui, vamos levá-lo, deixá-lo em segurança e quando conseguirmos o precisamos, ele fica sob responsabilidade da polícia. – Lota respondeu, dando de ombros.
- Eu também não estou muito satisfeita com isso. – Leila falou, com sua voz demonstrando seu descontentamento.
- Não é como se tivéssemos muita escolha. – falei, dando de ombros.
- Mas acho que temos que ajudar todo mundo que precisa, não? Principalmente se isso ajudar a libertar todas aquelas mulheres. – Leila disse e nós concordamos.
Seguimos até o alojamento para arrumar nossas coisas. Peguei umas peças de roupa e coloquei numa mochila, separei objetos essenciais, como escova de dente. E em poucos minutos já estávamos prontas para sair. Voltamos para sala de convivência e as outras meninas já ficaram curiosas para saber sobre a nossa missão. E todas pareceram surpresas quando falamos que iríamos resgatar um cara e manter em segurança. Algumas riram, outras falaram como era irônico. Os homens sempre se achavam superiores e agora nós estávamos designadas a proteger um. O pobre e indefeso homem.
Peguei a pasta com as informações e voltei a ler. Lá constava o endereço dele, era aqui mesmo no Rio de Janeiro, mas num bairro da Zona Norte, não muito longe daqui. Do Centro até a Tijuca, com o trânsito bom, chegaríamos em vinte minutos. Puxei uma das fotos que tinha no arquivo, ela foi tirada sem que ele percebesse. Ele estava na rua, pronto para atravessar a rua. Sua expressão parecia triste, como se ele estivesse muito preocupado com alguma coisa. Fiquei encarando a foto por longos minutos, até que Lota me cutucasse e falasse que estava na hora de partir.
Saímos pelos fundos, já direto no estacionamento. Roberta sempre dirigia, porque era a mais habilidosa. Leila sentou ao seu lado no banco da frente da Van, e eu, Maria da Penha e fomos na parte interna. Ajustamos nossos equipamentos de comunicação e alguns segundos depois já estávamos na rua. Roberta dirigia com destreza, cortando o trânsito e ganhando preciosos minutos. Eu ainda bem aérea, focada nas informações que tinham nos documentos da pasta. Aparentemente morava sozinho, tinha 29 anos de idade, formado em Engenharia de Computação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tinha trabalhado por muitos anos numa empresa importante do ramo imobiliário, mas pediu para sair dois anos atrás e agora trabalhava de forma autônoma. Ele tinha ficha limpa, sem antecedentes criminais, parece ser uma pessoa bem normal. Mas só parecia mesmo, porque ficava por aí hackeando o computador dos outros e por dinheiro.
Depois de cerca de quinze minutos, Roberta estacionou a Van e chamou nossa atenção. Ela apontou para um carro preto que estava mais para o final da rua, com dois caras dentro.
- Aquilo ali não parecendo coisa boa. – ela comentou.
- Acho que temos que entrar logo, subimos em duas, duas dando cobertura na entrada e a Roberta aqui pronta para partirmos. – Leila sugeriu.
- Quem ficar aqui embaixo, fica de olho naqueles caras. Qualquer movimento estranho, avisem no comunicador.
- Todas de acordo? – Maria da Penha perguntou e afirmamos.
- Se não for nenhum problema, eu gostaria de subir. – pedi.
- Vou com você. – Lota se apressou, verificando se estava com todos os seus pertences. Coloquei a mão nas costas, certificando que a arma estava no lugar de sempre. Guardei a faca que costumava levar dentro da bota e abri a porta da van, descendo junto com Lota.
Caminhamos rapidamente para atravessar a rua, entrando no prédio com aparência antiga. Subimos os seis lances de escada até o terceiro andar. Seguindo pelo pequeno corredor, viramos à direita, procurando pelo apartamento 302. Batemos na porta algumas vezes, mas não tivemos resposta. Aproximei o ouvido da mesma, escutando alguns ruídos de dentro do apartamento.
“Meninas, acho que tem gente no prédio”, a voz da Leila soou preocupada no comunicador, “Os caras que estavam no carro estão se comunicando com alguém e olhando para a entrada, como se estivessem esperando alguém descer. Vem logo.”
“Mas ele não atende a porta”, Lota exclamou ao meu lado. Quando ela terminou de falar, ouvi passos na escada. Pelo barulho eram pelo menos duas pessoas.
“Não temos mais tempo para educação”, falei, tomando distância e batendo fortemente com um dos meus pés na porta, que abriu violentamente. Ouvi um grito assustado vindo do fundo do único cômodo que tinha no apartamento. O rapaz estava próximo à janela e se abaixou por reflexo quando arrombei a porta. Quando fiz menção de entrar, ouvi os passos se apressarem e xinguei mentalmente.
- Lota, pega ele. – e só deu tempo de empurrá-la para dentro do apartamento e puxar minha arma, porque o primeiro homem apareceu no segundo seguinte, mas eu o acertei no ombro assim que olhou em minha direção. O barulho do tiro foi abafado pelo silenciador, mas a rapaz deu outro grito. – Merda, fica quieto. – perdi, sem paciência. Caminhei até o homem baleado, pegando a arma que ele tinha escondida e destruindo o comunicador que ele tinha.
- Nós temos que ir. – Lota falou, segurando ele pelo braço.
- Ir para onde? Quem são vocês?
- Somos aquelas que estão aqui para salvar a sua vida. Então cala a boca e vem com a gente. – retruquei, voltando para a frente da prota.
- E tenho coisas importantes aqui. – ele frisou o “importantes” e eu imaginei que fosse algo referente ao que estávamos interessadas.
- Então pega e vamos. – Lota pediu. Ouvi mais passos pelo corredor, caminhei silenciosamente até mais perto, esperando o momento certo. Assim que o homem pisou na minha frente, segurei o seu braço, travando o mesmo e fazendo a arma cair no chão. Fiz força, ouvindo o estalo do seu osso quebrando, ele soltou um grito agudo e eu acertei seu rosto com um soco. Ele apagou e eu arrastei seu corpo para o canto, pegando sua arma também. Quando voltei ao apartamento, Lota segurava uma mochila, onde o rapaz colocava algumas coisas e depois ele pegou seu laptop e carregou nos braços mesmo.
- Tudo pronto? – perguntei, sendo interrompida pela voz alarmada de Maria da Penha no comunicador.
“Desçam agora. Os caras que estavam no carro estão saindo, eles vão subir. Eles estão em quatro, não podemos intervir agora, tem muitos civis na rua.”, parei por um segundo e me dirigi ao rapaz.
- Tem alguma saída de incêndio aqui?
- No final do corredor. – ele disse e eu o segurei pelo braço, arrastando-o para fora do apartamento. Lota vinha logo atrás, carregando a mochila dele. Atravessando o corredor, vi os homens passando pelo outro lado e eles também nos viram.
- Se abaixem. – gritei, puxando o rapaz para o chão. Os tiros que eles dispararam em nossa direção acertaram a parede acima de nossas cabeças. Vi que eles se dividiram, enquanto dois continuaram atirando em nossa direção, dois correram para fazer a volta e chegar até onde estávamos.
“Roberta, deixe o carro pronto para sairmos, para na porta do prédio, deixa o motor ligado, nós não podemos perder tempo, estamos quase cercadas”, pedi no comunicador.
- Lota, leva ele lá para baixo, eu te dou cobertura, vou deixá-los ocupados. – pedi, vendo-a afirmar com a cabeça. – No meu sinal. – falei, sacando a arma novamente e respirando fundo. Levantei o corpo e disparei na direção deles, fazendo com que eles se abaixassem. Essa era a deixa da Lota, que levantou e correu com o até a porta da saída de incêndio. Troquei o cartucho da arma e acompanhei o barulho dos outros homens que estavam dando a volta no corredor. Pelas minhas contas, eles já estariam chegando, então me preparei para o ataque. E assim que eles apareceram no corredor, atirei na direção deles, acertando um na perna, que caiu e o outro no ombro, que deixou a arma cair. Quando ouviram os disparos, os dois que ficaram do outro lado vieram em nossa direção rapidamente e eu aproveitei esse momento para tentar escapar. Levantei e corri até a saída de incêndio. Ouvi um tiro ricochetear na porta enquanto a mesma fechada. Desci os lances de escada o mais rápido que pude, atravessando o hall de entrada em poucos segundos. Minha equipe já esperava na van, com a porta aberta. Me joguei dentro da mesma, vendo os dois dos homens que nos atacaram se aproximando da entrada. Antes mesmo da porta se fechar, Roberta já estava em movimento. Um tiro acertou o retrovisor do lado do carona, mas isso não fez com que ela parasse. Antes que eles pudessem chegar ao carro, já estávamos longe.

- Você tem sempre que bancar a heroína, não é? – Maria da Penha retrucou, tocando no ferimento de raspão que eu nem tinha sentido antes.
- Nem sempre, às vezes eu deixo a diversão pra vocês também. – respondi, sorrindo de lado. Ela balançou a cabeça, pegando o kit de primeiros socorros para me ajudar. – Vocês já verificaram se ele está em estado de choque ou algo do tipo? – apontei para o rapaz que acabamos de resgatar. – Ele nem se mexe.
- Você estaria normal depois de presenciar algo assim? Ou melhor, depois de alguém tentar te matar? – Leila perguntou, revirando os olhos.
- Calma, era só uma brincadeira. – falei, fazendo uma careta. – Foi só uma brincadeira. – repeti, olhando para ele. – Tá tudo bem com você? Tá ferido?
- Eu acho que está tudo bem, eu só preciso saber para onde vocês estão me levando. – ele disse, ainda com a expressão assustada.
- Nós vamos para um lugar seguro. – Lota o respondeu. Maria já estava com o kit e agora se preparava para limpar o meu ferimento. Fiz uma careta quando ela passou a gaze com o líquido antibactericida. Eu odiava aquilo, me fazia lembrar da minha infância, de quando eu sempre me machucava e meu pai não tinha paciência para cuidar de mim, sempre passando uns remédios que ardiam muito.
- E com você, tá tudo bem? – ele perguntou, olhando em minha direção.
- Tá tudo certo, não precisa se preocupar, eu já estou acostumada. Sou a kamikaze do grupo. – falei, tentando tirar a atenção de mim. Maria colocou um curativo e deu dois tapinhas em cima do ferimento, só para que eu sentisse mais dor. – Sem necessidade.
- Ué, kamikaze, reclamando de uma dorzinha de nada? – ela respondeu, sorrindo abertamente.
- Desculpa interromper. – o rapaz falou, ainda desconfortável. – Entendo que vocês estão mantendo o local seguro em segredo por questão de segurança, mas será que poderiam me explicar o que tá acontecendo? Por que o meu apartamento foi invadido, por que tentaram me matar?
- Você possui informações muito importantes. Nós precisamos dela, aqueles caras também. Só que nós queremos para o bem, eles queriam para destruir tudo, inclusive você. – Leila começou a explicar e ele segurou o computador em sua mão com mais força. – Chegou ao nosso conhecimento que você tem provas que podem derrubar um esquema de tráfico de mulheres. Nós temos os meios de derrubar, só faltavam as provas e é aí que você entra. Só que assim como nós tomamos conhecimento, eles também tomaram e vieram até você para pegar as provas e, muito provavelmente, te matar.
- Mas quem são vocês? Vocês são da polícia?
- Nós parecemos da polícia? – perguntei, o encarando pelo canto dos olhos. Ele olhou para cada uma de nós individualmente e balançou a cabeça, rindo.
- Não, vocês são bem mais intimidadoras.

Depois de quase duas horas na estrada, Roberta parou a van e Leila abriu a porta, se preparando para descarregar. Estávamos em algum lugar aos pés da Serra de Petrópolis, a casa simples era cercada de árvores e era bem no meio da mata. Tivemos que pegar um caminho de terra batida que mal era perceptível na estrada. Desci da van, carregando minha mochila e mais algumas coisas, como comida e equipamentos. Depois de descarregar tudo, Roberta levou a van para deixá-la mais escondida. Levamos para dentro e Leila mostrou o quarto em que ele ficaria. Como tinham apenas dois quartos na casa, ele ficaria em um e no outro nós revezaríamos, já que teria sempre duas acordadas para fazer a segurança. Fiquei me perguntando como deveria estar a cabeça dele depois disso tudo, porque era muito para assimilar em pouco tempo. Só que eu não me sentia confortável para perguntar como ele se sentia, porque eu nunca fui uma pessoa de muito contato físico e nem boa com as palavras. Então pensei que seria bom falar com a Leila para conversar com ele, porque ela era ótima com isso. Arrumamos as coisas, guardamos as comidas e eu pude, finalmente, descansar. Perguntei se poderia dormir naquele momento e pegar o turno da noite para fazer a segurança. Ninguém foi contra e então estiquei um colchão no canto da sala e apaguei. Quando acordei já estava escuro, senti um cheiro apetitoso de comida e segui para a cozinha. Estavam todos reunidos e conversando. parecia mais relaxado e tranquilo, talvez Leila já tivesse conversado com ele. Lota disse que Maria tinha feito o jantar, a especialidade dela: macarrão com salsicha.
- Ainda estou em dúvida se é melhor comer esse macarrão ou a comida desidratada do exército que elas enviaram. – Lota brincou e Maria respondeu com uma careta.
- Escolhe um sabor então, não faz nada e fica reclamando.
Comemos todos juntos e depois Roberta, Lota e Maria começaram a arrumar as coisas para dormir. Eu me sentei no lado de fora, aproveitando o vento gelado que batia. Respirei fundo e fechei os olhos brevemente.
- Se importa se eu me sentar aqui? – ouvi a voz masculina e até me assustei, porque não estava acostumada.
- Não, pode sentar. – falei, tentando soar o minimamente agradável.
- Eu queria agradecer pelo o que vocês fizeram por mim hoje. Já falei com todas as outras, só faltava você. Ainda mais você, que até levou um tiro e...
- Não precisa se preocupar, é o meu trabalho. Eu fui designada a proteger você e será isso que eu vou fazer, independente do que aconteça. – ele acenou com a cabeça, afirmando.
- Vocês formam um grupo muito interessante. É possível ver o senso de união que vocês tem. É até meio bizarro, como se uma estivesse sempre pronta para pular na frente de uma bala pela outra.
- Mas é exatamente isso. Elas são minhas irmãs, eu faria tudo por elas. – respirei fundo, lembrando de algumas coisas que passamos juntas.
- Eu entendo um pouco isso. Também tenho uma irmã... – ele deixou a frase morrer. – As outras já se apresentaram, mas ainda não sei o seu nome.
- Dandara.
- Muito prazer, Dandara. Meu nome é . – ele estendeu uma das mãos.
- Eu sei. – respondi, com um sorriso nos lábios. – , 29 anos, formado em Engenharia de Computação pela UFRJ em 2012.
- Ok, eu já entendi que você sabe bastante sobre mim, talvez mais que eu mesmo. Mas tem uma coisa que talvez vocês não saibam, porque eu tenho todas essas informações a respeito do tráfico de mulheres. – ele disse, chamando minha atenção. – Minha irmã. Eles estão com a minha irmã.
Fui pega de guarda baixa, porque eu não esperava nenhum envolvimento direto dele no caso. Na ficha não tinha essa informação, mas deveria ter. Se ele fosse apenas um hacker que possuía informações sobre a organização para, não sei, talvez vender para alguém ou tentar conseguir um dinheiro deles, seria mais fácil. Mas agora, sabendo que ele tem motivações pessoais para ter essas informações, fica mais difícil desvinculá-lo de tudo. Eu o encarei por longos segundos, ponderando se deveria ser mais empática, mostrando que eu me preocupava com as meninas que estavam presas, ou se deveria ser mais prática, arrancando informações essenciais dele de uma vez.
- Você quer conversar sobre isso? Se nós tivermos informações, será mais fácil localizar e resgatar as meninas. – falei, vendo-o balançar a cabeça lentamente, afirmando.
- É minha irmã mais nova, meia-irmã, tem dezenove anos e é filha da minha mãe com o segundo marido dela. Quando meus pais se separaram, eu fiquei com o meu pai, eu sempre me senti mais próximo dele e quando minha mãe casou de novo, eu vi que não tinha clima mesmo para que eu morasse com ela. Alguns anos depois a Estella nasceu, nós não convivíamos muito, mas ela é minha irmã, eu me preocupo com ela. Então há uns cinco ou seis meses, ela me mandou uma mensagem, dizendo que tinha conseguido um emprego como garçonete e que em algumas semanas estaria embarcando para a Espanha. Ela estava absurdamente feliz, morar fora sempre foi o sonho dela e imagina uma garota de dezenove anos tendo essa chance? – ele parou, suspirando e passou a mão pelo cabelo, tirando os fios do rosto. – Minha foi totalmente contra, mas o pai dela disse que ela merecia essa chance, que ela tinha que aproveitar as oportunidades que a vida estava lhe dando. Ele diz que pesquisou sobre a empresa que estava selecionando as meninas aqui no Brasil e também o restaurante da Espanha, e que não tinha nada de errado, estava tudo certo. Ela embarcou e uma semana depois que chegou, não deu mais notícias. Eles tentaram contato com a empresa daqui e com o restaurante de lá, mas era como se eles nunca tivessem existido. Por muito tempo nós achamos que ela pudesse ter sido sequestrada, mas nunca entraram em contato para pedir resgate. Depois entramos na fase do desespero, onde achamos que ela já estivesse morta. Até que um mês atrás eu recebi uma mensagem muito estranha pelo Facebook, era de um perfil que eu não tinha adicionado, parecia um fake, enfim, era o tipo de coisa que eu ignoraria. Mas tinha uma coisa que me chamou atenção, a mensagem que me enviaram era apenas: “mamãe não gosta de brincadeira, não.” – franzi a testa, estranhando a frase. Ele sorriu de lado, percebendo. – Fora do contexto, parece ser uma frase bem aleatória, mas pra mim, serviu para eu saber que a Estella estava viva. Quando ela era bem pequena e estava aprendendo a falar, eu passava alguns finais de semana com ela na casa da minha mãe e costumava fazer muita bagunça, muita bagunça mesmo. Então minha mãe brigava comigo e eu ficava furioso, porque não tinha nada pra fazer. E a Estella vinha pra brincar comigo de alguma coisa e eu ficava repetindo pra ela: “Estella, a mamãe não gosta de brincadeira, não”, que era pra minha mãe se irritar também. Até que um dia eu falei isso e a Estella repetiu, do jeito dela, é claro. E ficava repetindo isso constantemente, sempre que eu ia pra lá. E meio que virou uma piada interna nossa, quando ela vinha reclamar que a nossa mãe não queria deixá-la sair de noite, eu falava isso pra ela e etc. Então quando eu vi aquela mensagem, eu sabia que só poderia ser dela, não tinha como alguém me enviar isso aleatoriamente, não essa frase específica. Depois disso, eu quis ter certeza que aquela mensagem era dela, então rastreei o IP do envio e era da Espanha. Então eu passei a fazer aquilo que eu mais sabia, só que tentando achá-la. Eu hackeei o email da conta do Facebook, tentei encontrar a localização pelo número do IP, eu fiz muita coisa. E então ela me mandou outra mensagem duas semanas depos, dessa vez com um número de telefone. É claro que eu pensei em ligar, mas se ela estava em perigo, poderia ser pior. Então eu consegui o número do IMEI do aparelho que possuía o número que ela me enviou, implantei um vírus e passei a ter acesso todas as ligações, mensagem, contatos, fotos, enfim, eu tinha posse daquele telefone à distância. Foi quando eu descobri o que eles estavam fazendo com ela e com as outras meninas. São mensagens sobre os programas, tem uma lista de clientes, tem fotos, vídeos delas. É bem difícil só lembrar as coisas que eu vi e que eu li. Eu estou em posse dessas informações há duas semanas e eu não sabia exatamente o que fazer, em quem confiar. Não sabia se poderia ir até a polícia, não sei se eles estão envolvidos. Eu não consigo confiar em ninguém, não contei isso pra ninguém. Nem a minha mãe sabe que a Estella está viva.
- E por que você está me contando isso? – perguntei, curiosa.
- Acho que se alguém arrisca a sua própria vida para salvar a minha, ela merece a minha confiança.
- Nós precisamos dessas informações, . Se juntarmos isso ao que temos, conseguimos colocar todos na cadeia e resgatar as meninas, eu tenho certeza. Então se você confia em mim, quer dizer, em nós. – me corrigi rapidamente. – Me entregue uma cópia dessas provas.
- Tudo bem, eu ajudo, entrego tudo o que eu tenho para vocês.


Na mesma noite, entregou o computador nas mãos de Lota e disse que tudo que precisávamos estava ali. Nos organizamos rapidamente, entre em iria de volta à central da organização e quem ficaria aqui no esconderijo com o . Decidimos que Lota e Roberta iriam e Leila, Maria da Penha e eu ficaríamos com ele, elas estavam descansadas e seria melhor para pegarem a estrada. Assim que o sol saiu, elas saíram também. Leila foi fazer um café para tentar se manter acordada, porque já tinha quase 24 horas que ela estava acordada direto. Falei que ela podia ir dormir um pouco, que eu ficava com a Maria, que tinha acordado há pouco tempo e eu tinha cochilado ontem de tarde. Ela aceitou e deitou e um dos quartos. Seguindo a ideia da Maria, Leila foi até a cozinha preparar algo para comermos. Sentei na varanda da casa, observando a mata a nossa frente, estava tudo muito tranquilo. Apoiei minha cabeça na parede e fechei os olhos brevemente, apenas para descansar um pouco.
Acordei sobressaltada com um grito, levantei rapidamente, procurando de onde vinha. Entrei na casa e encontrei um homem segurando Leila pelo pescoço, com uma arma apontada para a sua cabeça. Tinha outro segurando num canto da sala e mais outro cobrindo a boca de Maria, perto da porta do quarto. Encarei aquela cena e me perguntei como aquilo poderia ter acontecido, como poderia termos sido surpreendidas daquela forma.
- Fica bem paradinha aí. – a voz masculina me alarmou.
- Calma, vamos conversar. – pedi, levantando os braços para mostrar que eu estava desarmada.
- Não tem conversa, nós queremos o computador. – o homem que estava segurando a Leila falou. – Onde ele está? – olhei para pelo canto dos olhos, vendo seu olhar desesperado. – Me mostra onde está ou então nós vamos explodir os miolos de todos os seus amiguinhos.
- Não sei do que você tá falando. – respondi e ele levantou o braço e segurava a arma, disparando a mesma, abrindo um buraco no teto.
- Você tá vendo que eu não estou de brincadeira. O computador, agora! – berrou a última palavra.
Tentei medi meus movimentos e minhas ações, mas antes que eu pudesse pensar direito, tentei pegar a arma que escondia junto à bota. Só que antes que eu conseguisse fazer qualquer coisa, senti dois impactos fortes em meu peito. Meu corpo foi ao chão e eu apaguei.
Quando acordei, eu estava sozinha na casa. Tirei as duas balas que ficaram presas na minha blusa, agradecendo pelas roupas à prova de bala que sempre usávamos. Procurei por qualquer vestígio das minhas companheiras e do , mas não encontrei nada. Sentei no chão, colocando a cabeça entre os joelhos e reprimindo um grito. Como eu pude ter sido tão imprudente? Como pude ter errado tanto? Agora minhas duas irmãs estávamos com eles, só Deus sabia se estavam vivas. Peguei o telefone para ligar para a organização, mas assim que o fiz, ouvi um carro se aproximando. Levantei rapidamente, me colocando em posição de alerta. Olhei pela fresta da janela e vi que eram apenas Lota e Roberta. Abri a porta e desci os pouco degraus, parando a van no meio do caminho.
- Levaram todos. – falei.
- O que? – Lota perguntou, com a expressão confusa.
- Leila, Maria da Penha e o . Levaram eles, uns caras chegaram aqui, eu me distraí, tentei fazer alguma coisa, mas atiraram em mim. – eu falava apressada, estava muito nervosa.
- Como eles encontraram o esconderijo? – Roberta falou, abrindo a porta do motorista e caminhando em minha direção.
- Eu não sei, podem ter rastreado o telefone do , a gente não lembrou de pegar, de destruir, de fazer qualquer coisa com aquela merda. – eu gritei a última palavra.
- Dandara, calma, se você ficar nervosa desse jeito, não vai adiantar nada, não vamos conseguir resgatar ninguém, você precisa se acalmar. Vamos voltar para a organização, precisamos pensar no que fazer. – Lota disse, tentando fazer com que eu esfriasse a cabeça.
- Tá, vamos logo de uma vez. – falei, entrando na casa para recolher tudo o que era necessário e em menos dez minutos estávamos na estrada novamente. Eu tentava relaxar, mas não conseguia. Tinha certeza que se não tivesse cochilado, se não estivesse distraída, todos ainda estariam aqui, eu teria percebido que tinha algo errado e teria impedido tudo.
- Você precisa parar de se culpar. Não tinha como você adivinhar, essas coisas acontecessem. Talvez eles estivessem em maior número e mesmo que você tivesse acordada, não daria conta. Provavelmente eles estavam à espreita e viram quando nós duas saímos. Então, por favor, pare de assumir que a culpa foi sua, poderia ter acontecido com qualquer uma de nós.
- Mas aconteceu comigo, Lota. E eu odeio falhar. – respondi, dando o assunto por encerrado.

Assim que chegamos à organização, uma força tarefa já estava sendo montada. Nós nunca deixamos nenhuma para trás, então faríamos de tudo para regastar nossas meninas. Eu principalmente. Confesso que estava bem alheia a qualquer operação que estavam montando, eu só queria sair logo e consertar a besteira que tinha feito. Já estávamos reunida há algumas horas, deveríamos estar pelo meio da tarde agora. Então sai sem fazer muito barulho, enquanto estavam todas reunidas na sala de operação e segui até a sala de monitoramento. Todas tinham chips instalados em nossos braços, por dentro da pele, eles serviam como localizadores em casos como esses. Eles funcionam enquanto a pessoa está viva, então se elas acabarem morta, não aparecerão mais na busca. Procurei pelo nome da Maria da Penha, colocando o seu código no rastreador. A tela mostrava o globo terrestre inteiro e conforme a porcentagem ia subindo, uma área maior era iluminada na tela. Quando chegou a cerca de 22%, um ponto específico piscou na tela, que se aproximou, mostrando o local aproximado, com coordenadas de longitude e latitude do local exato onde ela estava. Fiz o mesmo procedimento com o código da Leila, para saber se elas estavam juntas e se apareceria o mesmo local. E apareceu. Copiei as coordenadas e sai da sala. Procurei por Roberta na sala, pedindo que ela e Lota me acompanhassem. Assim que estávamos do lado de fora, contei o que faria e perguntei se elas queriam vir ou se eu iria por minha conta mesmo. E é claro que elas não deixaram que eu fosse sozinha.

Pegamos equipamentos, armas e tudo mais que achamos que fosse necessário e seguimos para o aeroporto da Barra. Num galpão especial ficavam as aeronaves da organização e Roberta tinha experiência de sobra para esse serviço. Não avisamos o que estávamos fazendo, até porque se eu falasse, não permitiriam. Quando percebessem nossa ausência, já estaríamos longe. Era uma questão de honra, eu precisava salvar minhas companheiras. Dei as coordenadas para Roberta, que disse que elas estavam ao sul do estado, já próximo a São Paulo e que não demoraria para chegarmos lá. Já estava anoitecendo quando ela começou a taxiar com o avião para decolar.

Voamos em silêncio, com Lota sentada ao lado de Roberta, enquanto eu organizava tudo o que levaria comigo. Coloquei algumas armas e coisas que poderíamos ser úteis num possível confronto, lanterna, óculos de visão noturna e o localizador numa mochila, para que eu pudesse achá-las assim que chegasse ao solo. Roberta me chamou e eu me aproximei da cabine.
- Dandara, o sinal veio de alguns quilômetros à frente, ali naquela mata. Pelas pesquisas da Lota, é um parque nacional.
- Parque Nacional da Serra da Bocaína, é um dos pontos onde o Rio de Janeiro faz fronteira com São Paulo. – Lota completou, sempre querendo passar todas as informações.
- Não sei como ou onde poderei aterrissar, mas vocês podem saltar, não sei, e eu encontro com vocês.
- Não, eu salto, a Lota fica com você para encontrar um local seguro para o pouso e depois nós nos encontramos. Enquanto vocês deixam o avião, eu localizo as meninas, assim otimizamos o tempo.
- É melhor a Lota ir com você, Dandara. – Roberta ponderou.
- Não, eu prefiro ir sozinha. – falei por fim, dando as costas e voltando para terminar de organizar as coisas.
Eu sabia que estava fazendo as coisas de forma errada e tomando decisões de cabeça quente, mas eu queria, sentia que precisava, ser a responsável por salvá-los, assim como fui a responsável por tudo o que aconteceu. Então vesti o macacão que usávamos para pular de paraquedas e comecei a me equipar para a descida.

O avião estava sobrevoando a mata fechada, a porta de carga de abriu. O barulho do vento tomou todo o ambiente e a força do mesmo fez com que eu precisasse me segurar. E então eu ouvi a voz de Roberta bradar da sala de controle:
- Quando chegarmos à zona de salto, você terá 20 segundos. Se prepare, Dandara. – ela disse sinalizando para que eu a olhasse. – Você não inventa de tentar resolver as coisas sozinha, quando localizar o esconderijo, faça contato. Nós estamos aqui para te ajudar. A Lota está aqui preparada para a ação e eu pousarei o avião na primeira clareira que avistar.
- Entendido, chefa. – falei, ajeitando o paraquedas nas costas, coloquei os óculos de salto e me aproximei da porta, encarando a escuridão à minha frente. Não era o meu primeiro salto, então não era como se eu estivesse com medo. Eu tinha falhado e eu não aceitava falhas. Lota saiu da sala de controle, deixando o avião sob responsabilidade de Roberta, ela parou ao meu lado e encarou o meu rosto, como se procurasse por alguma coisa.
- Você já estava esquecendo o comunicador. – ela disse, colocando o pequeno ponto eletrônico em minhas mãos.
- Obrigada. – agradeci rapidamente, colocando o mesmo dentro do ouvido.
- Por favor, Dandara, não banque a heroína. – ela pediu, com a voz baixa, como se fizesse um pedido muito difícil. A luz verde se acendeu e eu não precisei nem do aviso que poderia saltar.
- Eu nunca faço isso. – respondi, antes de mergulhar na escuridão.

Assim que meus pés tocaram o chão, recolhi todo o paraquedas, não podia deixar rastros de que eu estava aqui. Fazendo a dobra comum, coloquei o mesmo escondido na copa de uma árvore, junto com o traje de voo. Abri a mochila, pegando uma jaqueta que eu havia trago. Ela, como todas as outras roupas, serviria como proteção contra as balas. Peguei o localizador, digitando o código da Roberta no mesmo. Cerca de quinze segundo depois, ele já marcava um ponto brilhante no mapa, cerca de um quilometro ao norte. Coloquei a mochila nas costas e comecei a caminhar.
“Já estou em movimento”, falei com Roberta e Lota.
“Acabamos de pousar, cerca de três quilômetros e meio a sudoeste do ponto em que você está.”
“Ótimo, vou frente para limpar o caminho.”
Comecei a correr entre as árvores, estava escuro e úmido. Deixei minha mente focar e ficar atenta a qualquer barulho ou movimento que poderia ter ao meu redor. A cada cinco minutos eu conferia a posição de Roberta no localizador, pra saber se eu estava no caminho certo. Quando eu estava a certa de 400 metros do local que estava marcando, ouvi um barulho próximo, como se fossem passos. Tentei localizar onde a pessoa poderia estar e pelos ruídos, deveria estar vindo pelas minhas costas e pareciam ser duas pessoas. Olhei para cima e vi que a árvore que eu me apoiava parecia ter um vão na copa. Me agarrei em um dos galhos, subindo na mesma rapidamente. Segundos depois, dois homens passam caminhando por onde eu estava. Me mantive abaixava, tirando a mochila das costas com cuidado. Eles pararam bem embaixo da árvore e conversavam sobre o barulho de um avião que eles ouviram sobrevoando a área. Um deles disse que caminharia até mais à frente e quando ele se afastou cerca de dez passos, saltei da árvore, caindo em cima do que tinha ficado. O que estava à frente girou o corpo, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, atirei a faca que tinha deixado guardada dentro da minha bota. Ela o atingiu no ombro direito, fazendo com que ele deixasse a arma cair. Me virei pra o que estava no chão, socando seu rosto com força duas vezes seguidas. Caminhei até o que foi atingindo pela faca, que estava tentando alcançar o rádio dentro do casaco. Peguei o aparelho de sua mão e destruí usando uma pedra, depois prendi seu pescoço com o meu braço, para que ele ficasse sem ar e apagasse. Arrastei seu corpo desacordado para longe e depois puxei o do seu companheiro.
“Roberta, Lota, tenham cuidado, acabei de cruzar com dois caras aqui. Acho que não vamos conseguir do método tradicional”
“E o que você tem em mente?”, Lota perguntou.
“Atacar à distância primeiro e para matar.”
“Dandara...”, Roberta tentou ponderar.
“Eles traficam mulheres, Roberta. E eles estão com as nossas irmãs, não vou deixar que eles façam qualquer coisa com elas”, falei, encerrando o assunto.
Voltei a correr na direção que apontava o localizador.

De longe, avistei movimento. Vi também uma torre de monitoramento e uma construção que não parecia ser uma casa. Olhei ao redor e avistei uma árvore que poderia me possibilitar uma boa visão de tudo. Escalei o tronco a forma que pude, sem fazer barulho. Me ajeitando na copa, puxei a mochila para frente, pegando as peças do rifle de longa distância que eu havia trago. Montei as peças e ajeitei a mira, apoiando o mesmo em um galho que parecia firme. Ajeitei o corpo, olhando pela mira e tendo uma boa visão do que estava acontecendo. Eles tinham ocupado uma construção da Polícia Florestal do Rio de Janeiro. Tinham três homens na torre de vigilância e mais cinco na frente da construção. Peguei o localizador, verificando se Maria da Penha e Leila ainda apareciam brilhando na tela. Suspirei quando as luzes piscaram, mostrando que elas estavam poucos metros à frente.

“Estou com eles na mira. Aonde vocês estão? Depois que eu atirar a primeira vez, isso vai se tornar uma loucura”, falei com Lota e Roberta.
“De acordo com a sua localização, devemos chegar em cinco minutos ou menos.” Lota me respondeu.
“Vou contar dois minutos e vou começar a limpar a área.”
Iniciei a contagem mental, revezando o meu alvo a cada número que eu avançava. Como uma espécie de uni duni tê bizarro. Fiquei imaginando como elas estariam lá dentro, se estavam machucadas, se eles fizeram alguma coisa com elas. Mas eles pagariam, era uma questão de tempo. Ninguém sequestra minhas irmãs e sobrevive para contar a história.
“Cento e dezenove. Cento e vinte. Vou começar”, informei.
“Estamos perto”, Roberta respondeu.
Mirei em um dos que estavam na torre de vigilância. Ele estava de lado, observando a mata com um binóculo. Certifiquei que a mira estava certa e apertei o gatilho. O silenciador abafou o som e eu só observei o corpo dele em queda livre da torre. Os outros entraram em pânico, atirando para todos os lados e acionando reforço. Então, um a um, derrubei todos os que estavam na torre com apenas um tiro em cada. Depois foquei minha atenção que estavam no chão e então, um a um, eles foram caindo. Um, dois, três, quatro, cinco.
“Chegamos, onde você está?”, ouvi a voz de Lota, tanto no comunicador, quanto abaixo de mim.
“Estou bem em cima de vocês, já vou descer.”, respondi. Joguei a mochila para baixo, coloquei o rifle nas costas e pulei da árvore, aterrissando um pouco mais atrás de onde elas estavam.

- Vamos rápido, antes que percebam o que acabou de acontecer e a gente perca o favor surpresa. – falei, já pegando a mochila e correndo na direção da construção. Conforme íamos nos aproximando, ouvimos vozes nervosas, como se fossem de outros que tinham chegado ao lado de fora e visto o que eu tinha feito. – Devem ter outros agora, se preparem.
Chegamos ao limite das árvores, perto da clareira onde eles estavam. Nos escondemos atrás de umas árvores e observamos a movimentação. Roberta fez um sinal de que haviam outros dez homens do lado de fora e que eles estavam se espalhando, prontos para adentrar na mata. Lota disse para contarmos até cinco e atacarmos. Ela usou os dedos da mão para contar de forma silenciosa e quando levantou o quinto dedo, saímos das sombras, entrando na clareira. Eles não estavam esperando um ataque direto, então os pegamos desprevenidos. Quatro caíram assim que disparamos os primeiros tiros. Eles responderam, mas as balas ricocheteavam em nossas roupas. Doía bastante pelo impacto, mas seguíamos em frente. Lota derrubou outros três e Roberta mais dois. Me aproximei do que restava, acertando um tiro em sua perna e vendo-o cair no chão.
- Onde elas estão? – perguntei, colocando a arma bem em sua testa.
- Vocês vão morrer, todas vocês. – ele gritou e eu revirei os olhos, pisando bem onde a bala tinha acertado a sua perna.
- Só vou perguntar mais uma vez: onde elas estão? – ele ficou calado, apenas se contorcendo de dor. Bufei, olhando para as outras. – Ele não quer cooperar.
- Então acaba logo com isso. – Roberta falou e eu obedeci, mirando na testa dele e puxando o gatilho.
- Vamos entrar antes que façam algo com elas. – Lota disse, apressando o passo em direção aos degraus que levavam a entrada.

Seguimos rápido, passando pela porta. O lugar parecia abandonado, havia caixas espalhadas por todo o lado. Atentamente, olhamos cada sala do primeiro andar. Era como se tivessem deixado o espaço assim que nos ouviram chegar, mas o localizador ainda marcava que elas estavam ali. Então escutamos um barulho vindo do segundo andar, como se fossem passos no assoalho de madeira. Segui na frente, com Lota atrás de mim e Roberta cuidando da nossa retaguarda. Subimos a escada e paramos no corredor, vendo quatro portas à nossa frente. Usando o pé, abri a primeira, encontrando a sala vazia. Apontei para a segunda, repetindo o gesto e também não tinha ninguém. Mas ouvi um barulho como se fosse o destravar de uma arma vindo do outro lado do corredor. Gesticulei para a quarta porta, nos preparamos para entrar e eu empurrei a mesma com o pé. Assim que a porta abriu, vi um homem segurando Leila pelo pescoço e apontando uma arma para a sua cabeça. Do outro lado estavam Maria e amarrados e com mordaças em suas bocas, tendo outro cara com uma arma apontada para eles. O homem parecia nervoso, a arma termia em sua mão e sua respiração estava acelerada. Dei um passo à frente para entrar no cômodo, mas assim que fiz, vi como se fosse uma sombra à minha esquerda.
- À esquerda. – sussurrei para Lota e entrei no cômodo rápido, com ela vindo logo atrás de mim e acertando o homem que estava escondido perto da porta, antes que ele pudesse ter alguma reação.
- Para trás, ou então a sua amiguinha aqui morre. – ele gritou, com a voz falhando. Ele puxou Leila para a sua frente, a usando como escudo. Caminhei lentamente pra dentro do cômodo, com Lota vindo logo atrás. Ela apontou sua arma na direção do que ameaçava Maria da Penha e .
- Você já viu o que fizemos com os seus companheiros lá fora? Solte eles, porque o seu destino você já conhece. Não tem nenhuma chance de você sair dessa sala vivo. Então tem duas opções: a forma fácil ou a forma difícil. – falei, com a voz baixa e firme.
- Vá se foder! – ele gritou de volta, virando a arma na minha direção e atirando duas vezes. A primeira acertou a parede cima da minha cabeça e a segunda me atingiu de raspão no ombro esquerdo.
- Bem, foi você que pediu. – dei de ombros, levantando a arma e atirando na direção dele. A bala acertou a única parte da cabeça dele que não estava sendo coberta pela Leila. E assim que ele caiu, Lota atirou no que estava à direita, com a arma apontada para Maria e . Assim que ele caiu, ela correu, os desamarrou e tirou a mordaça de suas bocas.
- Já não era sem tempo! – Leila exclamou, em tom de brincadeira.
- Desculpe a demora, eu tive que roubar um avião. – falei, dando de ombros e rindo. Caminhei até onde , me abaixei até ficar a sua altura. Ele me encarou com seus olhos azuis, olhando bem dentro dos meus. Havia algo de estranho ali, de diferente, e eu me perguntava o que poderia ser. – Tá tudo bem com você?
- Acho que sim, não sei. – ele riu, balançando a cabeça. – Obrigada por salvar minha vida de novo.
- Sem problemas, mas acho que teremos que parar de contar daqui a pouco, ou perdemos as contas. – fiquei de pé, estendendo a mão para ajudá-lo também.
- Vamos recolher o que eles deixaram e voltar para a organização. – Roberta falou, se preparando para descer.
- Mas o que faremos com o ? Ele não pode ir com a gente para a organização. – Lota lembrou, enquanto pegava uma série de documentos que estavam espalhados pelo lugar.
- Eu fico com ele. – falei, sem nem perceber. Elas me olharam pelo canto dos olhos. – Eu o levo para um lugar seguro e onde eu sei que nunca vão procurar.
- Tudo bem, eu acho. – Lota respondeu.

Parei a portaria do prédio, sorrindo de lado para o porteiro. Estávamos no Catete, na entrada de um prédio de aparência antiga e familiar.
- Oi, João, boa noite. Desculpa chegar tão tarde, mas preciso da chave do apartamento da minha mãe, esqueci totalmente da minha.
- Quanto tempo que a senhorita não aparece aqui. – ele comentou, vasculhando uma gaveta cheia de chaves. – Trabalhando muito? – ele estendeu um chaveiro com duas chances na minha direção.
- Nossa, muito mesmo. – respondi. – Muito obrigada, viu. Boa noite.
Subimos as escadas até o segundo andar, indo até o apartamento 204. Abri as duas fechaduras e deixei que ele entrasse primeiro. Esse era o antigo apartamento da minha mãe, que ela morava antes de entrar para a organização e que tinha deixado para mim quando morreu. Eu costumava vir aqui algumas vezes, quando queria ter alguns dias ou noites como uma “pessoa normal”. Caminhei até a janela, abrindo-a e deixando o vento entrar, pra trazer um pouco de ar fresco. Coloquei o pouco de comida que tinha trago e as bebidas na geladeira.
- Fica à vontade, pode sentar. – falei, tentando soar simpática.
- Obrigado. – disse, sentando no sofá, meio sem jeito ainda. – É um apartamento legal.
- Era da minha mãe. – comentei, voltando para a sala e sentando numa poltrona que ficava de frente para onde ele estava.
- Era?
- Ela morreu, mas já tem dez anos, tá tudo bem. – dei de ombros.
- Eu sinto muito mesmo assim. – ele respondeu, deixando a frase morrer e deixando um silêncio meio constrangedor.
- Olha, tem um quarto, uma cama, você pode dormir se quiser. Deve estar cansado, já é tão tarde.
- Eu acho que não vou conseguir dormir nem tão cedo, não depois do dia hoje. E de ontem. Muitas emoções pra apenas uma pessoa.
- Imagino que você não esteja acostumado com essas coisas. – falei, mordendo o lábio inferior e reparando que ele ainda parecia meio que em estado de choque.
- Eu nunca tinha visto alguém morto na minha frente e só nas últimas 48 horas vi você atirar em muitas pessoas e, praticamente, explodir um crânio na minha frente. Então vamos dizer que eu não estou mesmo acostumado. – ele riu.
- Bem, poderia ser o crânio dele ou o seu, era uma questão de escolha.
- Que bom que estou do seu lado, porque odiaria ser perseguido por alguém como você. – falou e eu franzi a testa.
- Como assim alguém como eu? Sou tão ruim assim? – perguntei, fazendo uma careta.
- Não, não é isso. – respondeu, tentando se explicar. – É que você é diferente. A gente olha pra você e já percebe, parece que tem uma aura, não sei dizer com precisão, mas você demonstra ser o tipo de pessoa que não desiste enquanto não faz aquilo que acha que deve, sabe? Se você tem uma coisa a fazer, você vai fazer independente do que seja e do que esteja no seu caminho. Como foi hoje, você ignorou as ordens que lhe deram, roubou um avião, matou não sei quantos homens, tudo isso para salvar suas amigas e agora está aí me encarando como se não tivesse feito nada. Pronta para qualquer coisa. – ele passou a mão pelos cabelos, tentando tirar do rosto. – Eu não sei muito bem o que vocês fazem e nem por que fazem, mas preciso dizer que vocês são excepcionais nisso. – ele riu.
- Bem, agradeço o elogio. – sorri de lado, e reencostando na poltrona. – É bom ser reconhecida no que se faz, independente do que seja.
- Acredito que você não possa me falar onde ou para quem trabalha, não é? – neguei com a cabeça, respondendo sua pergunta. – E imagino que deva ser um trabalho integral, você não tem uma vida fora disso, não é?
- Digamos que eu não tenho tempo para ter uma vida. – falei, vendo seus olhos se fixarem nos meus por alguns segundos.
- E você não sente falta? Desculpa se eu estiver sendo invasivo demais. – ele complementou, entrando na defensiva.
- Eu não sei se sinto falta, porque não consigo lembrar de nada que pudesse despertar qualquer tipo de saudade em mim, nada que eu tinha vivido antes. Talvez meu pai e minha avó, mas só eles dois. – respondi, tentando mostrar que não tinha me ofendido com a sua pergunta. – Eu era jovem, não tinha tido muitas experiências para poder sentir falta de qualquer outra coisa. E com o tempo a gente se acostuma com a falta de...
- Falta de? – perguntou, curioso.
- Afeto, talvez. Não sei se essa seja a palavra. Às vezes a gente sente falta de alguém ao nosso lado, não necessariamente uma companhia romântica, só alguém que compartilhe dos mesmos problemas, que nos ajude a esquecer um pouco dessa loucura que a gente vive. Então nós saímos, esquecemos e depois voltamos. Sem vínculos, sem compromissos. Só vivendo aquele momento.
- Parece uma boa solução, menos problemática, ao menos. – ele disse, sorrindo de lado.

Mesmo dizendo que não ia conseguir dormir, acabou cochilando no sofá enquanto conversávamos. Cogitei acordá-lo para que ele fosse se deitar na cama, mas ele parecia tão exausto, que achei melhor deixá-lo onde estava. O dia já estava amanhecendo e eu continuei sentada onde estava, só olhando para o seu rosto enquanto dormia. Ele parecia cansado, tinha fortes olheiras embaixo dos olhos e a sua expressão, mesmo adormecido, não relaxava. Apoiei os ombros no joelho para vê-lo mais de perto. Observei a linha do seu maxilar, vendo como ele tinha um queixo forte e marcado, o nariz afunilado e meio arrebitado, as sobrancelhas grossas, bagunçadas e bem escura, contratando fortemente com o tom de sua pele. Os cabelos bagunçados caindo pelo rosto, imaginei que poderia me aproximar e retirar os fios que estavam grudados na testa, mas logo abandonei a ideia. E ri sem humor do tipo de pensamento que estava tendo e de como tinha perdido tempo reparando de diversos detalhes do rosto de .

Segui para o banheiro que tinha no quarto, eu estava precisando de um banho. Prendi o cabelo num coque alto e liguei a água morna, deixando que ela caísse sobre todo o meu corpo. Tentei relaxar fechando os olhos, mas a invés de lembrar toda a loucura que presenciamos mais cedo, eu só conseguia pensar no . Abri os olhos de novo, encarando meu reflexo no Box de vidro. Balancei a cabeça lentamente, pensando o quão idiota eu estava sendo. Mas quando fechei os olhos novamente, não vi sangue ou tiros sendo disparados, só vi os olhos azuis de me encarando, da forma intensa, olhando bem dentro dos meus, como ele fazia. Suspirei, desistindo de relaxar dessa maneira. Desliguei o chuveiro, me secando e recolocando a roupa. Quando voltei à sala, ele ainda estava dormindo. Segui para a cozinha, precisava de um café. E enquanto a água esquentava, meu celular tocou.
- Alô. – falei rapidamente.
- Precisamos ir. - a voz de Roberta soou do outro lado da linha. - Enquanto estávamos fora, as meninas cruzam as informações do com as que tínhamos e juntando com as que conseguimos ontem à noite, localizamos dois possíveis cativeiros, um na Romênia e outro na Espanha.
- A irmã do ... – murmurei e ela ouviu.
- Sim, foi baseado nas informações que ele tinha da irmã que conseguimos localizar, então é possível que ela esteja lá. Já entramos em contato com as organizações dos países e elas vão trabalhar no caso, mas só vamos até lá para resgatar as meninas. Um grupo vai para a Romênia e nós vamos para a Espanha. - ela parou por um instante, como se pensasse em algo. - Eu falei com a Senhora sobre o , sobre como ele ainda pode estar em perigo enquanto toda a quadrilha não for desmontada, então ele irá conosco, até porque ele vai buscar a irmã. De lá eles seguiram com a polícia federal para o programa de proteção a testemunha, porque não poderemos seguir protegendo-os, o nosso envolvimento com o caso vai terminar ali.
- Mas por que você está me falando isso? – perguntei mais baixo, como se fosse um segredo.
- Você sabe por que, Dandara. - ela não se prolongou. - Vá para o aeroporto de Jacarepaguá, partiremos em duas horas.
Quando desliguei o telefone, vi que tinha acordado e estava me olhando, apreensivo. Ele tinha ouvido o nome dele e da irmã. Expliquei o que tinha acontecido e o que iria acontecer, falei que iríamos para a Espanha buscar a irmã dele e que depois eles ficariam sob responsabilidade da polícia. Falei que ele poderia tomar um banho se quisesse, que eu terminaria de arrumar o café, porque teríamos que sair logo.

Assim que chegamos no aeroporto, todas já estavam reunidas. Dois aviões estavam sendo preparados para a decolagem. Caminhamos até onde avistei Lota, Leila e Maria da Penha, elas disseram que Roberta estava ajudando a organizar as coisas para podermos seguir viagem. parecia meio deslocado, sem saber como agir no meio de todas aquelas mulheres. A Senhora foi até onde ele estava e conversou um com ele, agradecendo pela ajuda em disponibilizar as informações. E ele também agradeceu por nós termos salvado sua vida duas vezes e agora estarmos indo resgatar sua irmã. Ela sorriu de lado, dizendo:
- É bom fazer algo diferente às vezes.

A Senhora separou os grupos, ela foi no outro avião que iria para a Romênia, junto com Ana Neri, a médica, Maria Firmina e Leolinda, que trabalhavam na inteligência da organização, e cinco meninas de outra equipe: Chiquinha, Maria Amélia, Elza, Celina e Pagu. Elas decolaram e começaram os preparativos para que o nosso avião pudesser partir também. Anita, a segunda no comando da organização, ficou designada a ir conosco, assim como Nise, a outra médica, Georgina e Rachel, que também eram da inteligência da organização. Elas duas, junto com Maria Firmina e Leolinda, que localizaram os cativeiros com o cruzamento das informações e que também foram responsáveis pelo levantamento de todos os dados que tornaram possível o envio do caso completo, com provas concretas, dos traficantes de mulheres. Embarcamos e nos preparamos para as próximas dez horas de voo.

Sentei no avião, encarando pelo canto dos olhos de tempos em tempos. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, era estranho. Tinha alguma coisa nele que parecia me puxar, me atrair. Respirei fundo, fechando os olhos e tentando dormir um pouco. Até que senti alguém sentando ao meu lado.
- Tá tudo bem com você? – Leila perguntou.
- Eu acho que sim. – respondi, um pouco confusa com a sua pergunta.
- A Roberta falou comigo. – ela olhou para o rapidamente e depois para mim. – Não tem porque você ficar se culpando ou achando estranho. Ele é um cara interessante.
- Leila, o que você tá falando? – falei, franzindo a testa e ela rolou os olhos.
- Dandara, dá pra ver claramente quando você olha pra ele. Tem um brilho bem diferente aí. – ela riu, cobrindo a boca pra não chamar atenção. – Eu sei que você não gosta desse tipo de envolvimento, que você não está acostumada, mas não precisa ficar se prendendo. Se tem alguma coisa ali dentro desse seu coraçãozinho, põe pra fora.
- Não tem nada no meu coração, eu só estou sentindo, imaginando umas coisas...
- Eu sei que você não gosta muito, mas sentir coisas faz muito bem. Mesmo que seja só por cinco minutos durante toda uma vida. – ela sorriu, tocando a ponta do meu nariz.
- Não precisa me tratar como uma criança. – falei, estreitando os olhos.
- Não precisaria se você não agisse como uma. – Leila respondeu, rindo. – Eu conversei com ele também, quando estávamos lá no esconderijo, antes de sermos levados e tudo mais. Você gerou uma primeira impressão e tanto.
- Você sabe que eu sou dessas, Leila, se não for pra causar, eu nem vou. – disse, rindo alto, chamando atenção de todo mundo.
- Enfim, eu só queria dizer que esse interesse é visível e recíproco. Não sei o que você vai fazer com essa informação, mas achei que você deveria saber. – Leila levantou e voltou para onde estava sentada.
Eu olhei na direção de e pensei nas coisas que ela tinha me falado, sobre como era bom sentir as coisas, mas eu nunca tinha sido muito boa com isso. Antes de entrar para a organização, meus relacionamentos amorosos foram quase que inexistentes, eu tinha tido apenas um namorado e foi uma experiência bem ruim. Depois de entrar para a Salute, eu não tive mais relacionamentos duradouros, todos duravam uma noite ou apenas algumas horas e eu nunca tive problemas com isso. Se eu me interessava pelo cara, eu ia até ele e jogava limpo. O problema é que o foi o meu trabalho e eu nunca misturei negócios com prazer. E talvez não devesse começar agora.

O avião pousou e nos organizamos para descer. Segundo as informações que chegaram, localizaram o cativeiro na Espanha e conseguiram as meninas. Já na Romênia o processo estava em andamento. Tinham trazido as meninas para um aeroporto afastado do centro e agora elas esperavam por nós. Eram cerca de doze meninas e entre elas estava Estella, a irmã de . Anita desceu na frente, indo direto para falar com a responsável pela organização aqui na Espanha. Ela agradeceu pelo empenho em ajudar as brasileiras e disse que assumiríamos. Todas descemos, mas ficou no avião. Eu lhe disse que falaria com a Estella, a calmaria e falaria que ele estava lá para buscá-la.
Cheguei até a sala que reuniram todas as meninas e vi uma que estava sozinha, sentada num canto, separada do restante. Os olhos azuis eram iguais ao de , então imaginei que fosse ela.
- Estella? – perguntei, me aproximando.
- Sim. – ela levantou os olhos.
- Meu nome é Dandara e eu estou aqui para te ajudar. – sorri de lado, tentando passar um pouco de conforto. Sentei ao seu lado, cruzando as pernas na minha frente. – Eu imagino como deva estar sendo difícil pra você no momento, mas quero saber se há alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar antes de te levar para casa.
- Eu quero falar com a minha mãe. – ela pediu, com a voz baixa.
- Nós já entramos em contato com seus pais, eles vão te encontrar no aeroporto. – parei por um instante, pensando se deveria dizer nossa proposta ela. É o padrão, mas eu não conseguia vê-la deixando tudo para trás novamente. – Eu tenho algo a falar com você, mas é só uma formalidade, não precisa se sentir pressionada. Nós todas, tanto nós brasileiras, quanto as espanholas que te resgataram, fazemos parte de uma organização de nível mundial. Nossa função principal é cuidar de mulheres, salvá-las quando necessário. A organização foi criada há muitos anos e sempre que terminamos uma missão, que conseguimos salvar mais uma mulher, nós damos uma opção a ela, a chance de se juntar a nós e ajudar outras efetivamente, literalmente lutando dia após dia; ou então ela pode voltar a sua vida antiga e ajudar outra mulher da forma ela puder e conseguir, apenas para manter o ciclo de auxilio ativo, manter a roda girando, por assim dizer.
- Essa organização, ela é uma espécie de grupo de apoio? – Estella perguntou, meio confusa.
- Não exatamente, nós ofereceremos apoio a todas a mulheres de resgatamos e que são parte da organização, mas nós mais como o 007, só que mais legal e mais bonitas. – sorri de lado, vendo-a arregalar os olhos.
- Isso é muito legal. – ela exclamou. – Como posso saber mais sobre isso?
- Você pode ir com a gente quando chegar no Brasil, mas precisa saber que a partir do momento em que escolher seguir conosco, a sua vida antiga acabou. Você não será mais a Estella, você não terá mais os seus pais, o seu irmão.
- Eu teria que deixar todo mundo? – ela sussurrou, mordendo o lábio inferior.
- Eu sei que são muitas informações para absorver ao mesmo tempo e que é uma escolha bem difícil. Mas se você me permite um conselho: volte para a sua família. Eles te amam mais do que tudo no mundo e você pode ajudar de fora também. Dando um toque numa amiga que está no relacionamento abusivo, ajudando uma moça que bebeu demais numa festa e que pode acabar sofrendo algum abuso nas mãos de um cara qualquer, ajudando aquela mãe solteira que precisa de uma força pra arrumar um emprego pra sustentar o filho ou até mesmo dando aquele suporte pra alguma mulher que esteja passando por qualquer situação difícil, qualquer suporte. Não precisa de muito, basta querer ajudar. – estendi minha mão aberta em sua direção e ela colocou a sua por cima. – Você ainda vai ser muito feliz na sua vida, Estella. Eu tenho certeza.
- Muito obrigada. – ela disse, com uma lágrima escorrendo pelo seu rosto. – Muito obrigada mesmo, por tudo.

Depois que conversamos com as meninas, todas escolheram voltar para as suas famílias, o que era bem compreensível. Uma a uma, as levamos para o avião para acomodá-las. Sobramos eu e Estella na sala. E ao invés de levá-la na direção do avião, levei na direção inversa, até onde a esperava.
- Eu preciso que confie em mim, ok? Você não vai com a gente para o Brasil, vou te deixar sob responsabilidade da Polícia Federal, mais por prevenção do que real necessidade. O seu irmão, o , ele nos ajudou a te localizar e as informações que ele possuía foram extremamente importantes para conseguirmos entrar com uma ação contra os responsáveis por essa quadrilha. – eu falava lentamente enquanto andávamos, para que ela me compreendesse. – Eles estavam atrás do e vocês ficarão sob cuidados policiais até que a quadrilha seja desfeita e vocês possam voltar a vida normal em segurança.
- Mas eles fizeram alguma coisa com o ? – ela perguntou, preocupada.
- Não, nós tomamos conta do seu irmão pra você. – sorri, apontando para frente, onde a esperava. Quando ela o viu, correu em sua direção, o abraçando. Eles estavam chorando e continuaram abraçados por longos minutos. Ele passava a mão pelos cabelos de Estella e depois secou suas lágrimas, dizendo que tudo ficaria bem agora, que eles estavam juntos e ela que iria pra casa em breve.
Observei de longe e quando achei que eles estavam bem, virei as costas para seguir para o avião, mas ouvi uma voz atrás de mim:
- Ia embora sem se despedir? – perguntou, ele sorria de lado, com os braços cruzados na altura do peito.
- Eu achei que vocês estavam ocupados. – dei de ombros.
- Quero agradecer por tudo que você fez para salvar minha irmã e também para me salvar. Se não fossem vocês, eu não estaria vivo agora.
- De nada, eu acho. – falei, meio sem jeito. As coisas não costumavam ser assim comigo. Ouvi Maria da Penha me chamando lá do avião, dizendo que tinham que partir. Disse que já estava indo, voltando minha atenção para novamente.
- Acho que você tem que ir, não é? E também acho que não tem chances de nós nos encontrarmos por aí. – ele falou, encarando o chão. – Só queria que você soubesse que eu vou sempre lembrar de você...
Respirei fundo, tomando uma decisão rápida. Dei mais um passo à frente, segurando pela gola da camisa e juntando nossos lábios com vontade. Suas mãos tocaram minha cintura, enquanto as minhas deslizaram para o seu pescoço, fazendo com que ele ficasse mais perto de mim. Durante aqueles segundos, que ao mesmo tempo pareceram durar uma eternidade e também pareceram passar mais rápido que eu normal, eu me senti como uma garota qualquer, que poderia conhecer um cara, se apaixonar, construir uma família e... ser normal, feliz. Mas logo depois eu lembrei do propósito que escolhi para mim, as vidas que eu escolhi salvar. E tudo mais pareceu desnecessário. E então eu separei nossos lábios e toquei levemente o rosto de .
- Eu quero que você sempre lembre de mim como a mulher que salvou a sua vida duas vezes. – sorri, me afastando lentamente, mas parei no meio do caminho, me virando pra ele de novo. – Não vamos tornar necessária uma terceira, ok?
Caminhei até o avião, entrando no mesmo sem olhar para trás. Eu tinha vivido os últimos dez anos da minha vida assim e não seria agora que mudaria. Se eu tivesse que encontrar o novamente, o destino se encarregaria disso ou eu mesma, não sei. Eu sabia onde ele morava ou poderia facilmente localizá-lo. E no final das contas, que não estava totalmente sozinha, eu tinha as minhas irmãs. E elas me bastavam.


Fim.



Nota da autora: Feliz Dia Internacional das Mulheres! (08/03/2017)
Desde o começo a minha ideia era fazer uma história onde as principais fossem pessoas que geralmente não são protagonistas, por isso escolhi uma negra, uma trans, uma lésbica e uma que estivesse acima do peso, por mais que essas características não influenciem diretamente na história, porque eu quis mostrar exatamente isso: elas são como qualquer outra pessoa. Espero que eu tenha conseguido fazer uma história sobr mulheres fortes e para mulheres fortes.
Nós por nós sempre. Vamos juntas.
Beijo da That

Ao longo da história eu usei nomes de mulheres importantes na história do nosso país e aqui segue um link falando um pouco sobre cada uma delas. É só é só clicar aqui.

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