Parte I — A Clockwork Orange
Capítulo 1 — Holidays in the sun
I don't wanna holiday in the sun...
Apressado e sem jeito, null corria pelo estacionamento vazio e aberto. Tentava evitar que os papéis menores voassem de seus braços, porém, vez ou outra, era obrigado a voltar para apanhar os que tinham caído. Ofegava, mas, na medida em que se aproximava do pátio, parecia ficar menos nervoso. Parou, ajeitou sua postura e passou a dar passos longos, mas lentos, em direção à porta.
Por mais que fosse um prédio grande e escuro, que combinava perfeitamente com o ambiente solitário e com o tempo nublado, havia um homem sorridente esperando-o se aproximar para abrir a porta. Contraditório, pensou null, já que o que o lugar menos parecia oferecer era cordialidade. Pelo contrário, aliás. O edifício Manson parecia disposto a manter todos longe. Não era exatamente essa sua finalidade? Aprisionar os indesejados?
O que levara uma tão jovem moça a parar num lugar daqueles? E com um futuro tão... Certo?
Ergueu os olhos para o lugar e, limpando a garganta, ajeitou a gravata larga no pescoço.
Ainda podia se recordar das manchetes. Quando decidiu ser repórter, há cerca de três meses, tinha acordado num dia de inverno. Leu o jornal, com letras garrafais:
A Serpente Vigilante é enjaulada
A conhecida detetive null null foi levada esta manhã para o Manson, a cerca de uma hora da cidade. Há uma semana vem sendo discutida a punição pelo que aconteceu há um mês, no dia 12 de junho.
null jogou o jornal na lixeira, não querendo terminar de ler a matéria. Foi um golpe de azar. Desde que começou a preparar-se para assumir seu cargo, tinha vontade de conhecer a oficial null. Mesmo tendo apenas vinte e cinco anos, ela já tinha certa fama na pequena cidade de Longview. Apesar de sua idade, a moça era a mais famosa detetive da região, juntamente com seu parceiro. Sua inteligência era invejável, que apenas ela poderia acompanhar, e, somada com o poder de percepção do oficial seu parceiro, eram imbatíveis.
E, com certeza, era muito bonita.
Depois de entrar no Manson, null deparou-se com uma figura que também ouvia falar há pouco tempo. Mexendo em seu iPhone, parecendo entediado, estava o superior null null. O capitão null. O parceiro. Desde que virou repórter investigativo, null sentia certo arrepio na espinha por ter que trabalhar ao lado de null. A maneira séria como olhava para todos a sua volta, com certeza era algo intimidador. Ao mesmo tempo, mostrava a responsabilidade daquele jovem. Pouco mais de cinco anos de carreira, e já tinha tanta reputação assim. E, claro, alguns boatos. Diziam que null, mesmo tendo só vinte e seis anos, já tivera três esposas. E as divorciadas sempre tinham uma história para contar...
De qualquer modo, a pose solitária e fria de null não foi suficiente para deixar null intimidado. O novato esticou a mão para o superior que, surpreso, retribuiu o gesto.
— null? — perguntou null.
— Sim senhor — respondeu o outro, com um pequeno sorriso que ele sabia que tinha poderes mágicos — null null. Prefiro null.
null levantou do banco, fazendo null se sentir inferior. Com a voz firme, retrucou:
— null null. E só null.Está atrasado.
— Desculpe, senhor.
— E o que está fazendo com tudo isso? Acha que vai investigar a morte da Marilyn Monroe? — virou os olhos e deu as costas para null — Novatos...
null olhou para todos os papéis que conseguiu com muito custo levar até ali, e fez uma careta. Deixou-os todos em cima do banco e, um pouco desajeitado, correu atrás de null, que andava com passos largos. O oficial usava um terno preto, que devia custar pelo menos a casa de null. Arrumava os cabelos, e olhava para o relógio enquanto andava pelo corredor. Colocou a mão nos bolsos e foi, com um rosto sério, seguindo seu caminho sem olhar para trás.
Sempre ouvia comentários de como o oficial null era o homem mais desejado da cidade. Claro, ele tinha um charme que causava inveja até no Brad Pitt, mas null não era capaz de enxergar o que as mulheres viam nele. Ele não tinha nada demais.
Talvez fosse justamente esse simplicidade em seus traços faciais, e seu olhar marcante, que fizessem todas suspirarem.
Entretanto, não era a pose de inquebrável que null usava naquela ocasião, naquele corredor. Longe disso. Ele parecia nervoso, querendo manter uma postura formal, quando na verdade estava nervoso. Muito nervoso. Parecia ansioso pelo que fosse acontecer, mas exatamente porque era algo inevitável, assumiu sua responsabilidade e continuou sério e... Bem, inquebrável.
Tentando arrumar sua blusa social e sua gravata preta, null fazia de tudo para acompanhar null sem parecer muito infantil. Imaginava-se como uma criança querendo imitar o pai no trabalho. Ajeitou o cabelo e a coluna, e parou alguns passos a seguir.
Olhou em volta. Há alguns segundos, o corredor branco estava repleto de pessoas. Agora, ele tinha tomado uma coloração mais gasta, um branco sujo. O chão tinha cor de gelo, o que lhe dava a impressão de que estava sob uma fina camada deste. Não era uma sensação muito agradável. Também não havia mais ninguém no corredor além dele próprio, oficial null e um guarda. Na frente deles, uma porta de ferro parecia ser onde null queria chegar.
— Precisam mesmo disso? — perguntou o policial, com a voz trêmula — Vocês são os primeiros a fazer isso.
— Ossos do ofício — respondeu null, com um pequeno sorriso sem qualquer emoção, dando de ombros — Pode abrir.
Dando-se por vencido, o policial abriu a porta de ferro. null entrou na sala, cheio de coragem, enquanto null parecia uma criança medrosa, sentindo as pernas tremerem a cada passo e engolindo em seco repetidamente. A porta fechou-se atrás deles, deixando o ambiente escuro, a não ser por uma fraca lâmpada de teto. No canto, duas cadeiras esperavam os dois detetives. Assim que se sentaram, ficaram de frente para uma fina camada de vidro.
Passos leves e delicados do outro lado do vidro indicavam que a Serpente Vigilante se aproximava.
O terceiro saco de areia voou e se chocou contra a parede. Todos pararam para olhar, pela terceira vez em três meses, null andando com os pés arrastando no chão, até o banco, e beber alguns goles d’água. Parecia que havia atingido sua meta. De novo.
Fazia cerca de noventa dias que null null estava ali.
Não parecia metida, pelo contrário: estava triste de estar tão solitária.
Uma hora você tem tudo, você é tudo. Você constrói uma vida de reputação. Em um minuto, você perde isso tudo.
Fazia cerca de setecentas e vinte horas que null null estava ali.
Ninguém olhava para ela. Antes, todos o faziam. Ela era alguém especial. Não era uma garota qualquer.
Seu nome é null null. Olá, oficial null. É um prazer conhecer a Serpente Vigilante.
Fazia cerca de quarenta e três mil e duzentos minutos que null null estava ali.
Durante as sessões de treinamento, onde praticava socos em sacos de areia, ela chegou a fazer três voarem pelos ares. Isso normalmente acontecia quando se lembrava daquelas coisas. As cartas de null tinham parado de chegar há um tempo. Não sabia se barraram, ou se foi culpa do correio. Treinador Jack lhe dizia que ela parou de escrever. null preferia achar que foi culpa do correio.
Três sacos de areia voando e se espatifando contra a parede. Não é algo que qualquer garota de vinte e cinco anos é capaz de fazer.
Fazia cerca de dois milhões quinhentos e noventa e dois mil e poucos segundos, que null null estava presa ali.
Cicatrizes em sua bochecha lembravam-na dos socos que havia proferido. A Serpente Vigilante havia entrado em repouso? Não, ela estava só melhorando suas habilidades.
— null — chamou Jack. Ninguém olhou para ele, muito menos null.
Ele insistiu e a chamou novamente.
— Querem te ver.
— Quem quer?
— Não é seu namoradinho.
— Então fala que eu morri.
— São oficiais da polícia.
null mordeu o lábio.
— Um deles atende por null null?
Jack ergueu um dos cantos dos lábios.
— Estou indo.
Um dos guardas algemou suas mãos, mas parecia apressado o suficiente para deixar null ir com suas roupas de treinamento. A blusa cinza e suada não era a que gostava de usar, porém, em Manson, não podia pedir muito.
Sempre chamaram a clínica de tratamento Manson de casa. Nunca ousaram chamar aquilo de lar.
Booom. Você está de volta.
Enquanto andava vagarosamente pelos corredores cor de gelo, null recordava-se de tudo que vira em seus últimos dias, antes de ir para Manson. null, null e null. Ah, null. Como sentia saudades deles. O último fora o único que nunca deixara de mandar cartas. Treinador Jack sempre dizia que ele havia parado, mas chegaram atrasadas. null preferia pensar que ele levou-as sozinho.
Tinha ouvido falar que ele já tinha visitado-a três vezes, e tentado tirá-la de lá. Todos os pedidos foram negados. Em todas as vezes, ele tinha visto-a pelos vidros falsos, e chorava.
Ah, se ele soubesse de todas as vezes que ela também chorava por ele...
Não, null não estava voltando. Ela estava praticamente se recriando.
Algo lhe dizia que apenas null, null e null sentiam sua falta. Afinal, quando apenas correspondência do seu trabalho é entregue, isso indica alguma coisa. Quando as pessoas não gostam de você, elas gostam de deixar isso bem claro, não parando de te encher o saco. Nunca.
Aplausos calorosos tomam lugar nos corredores, uma tradição de quando um vencedor “supera seu problema e é capaz de conviver consigo mesmo”. Afinal, alguém pode finalmente sair dali. Não que seja um lugar ruim, bem longe disso, mas... Bem, não é sua casa. Pura merda, na opinião de null.
No corredor, estavam penduradas fotos de hóspedes que já saíram dali. Nunca pacientes, nunca internos. Hóspedes. Teve a esperança de que fosse ver algo sobre ela, e viu. A famosa reportagem de quando foi levada para o Manson.
Pois sim. Isso eles colocam na frente do jornal. Isso eles lembram.
Treinador Jack a abraçou e disse para ela se cuidar, e null sentiu seu cheiro forte invadir seus pulmões. Retribuiu o abraço com força. Ele disse que teria saudades e queria voltar a vê-la logo. E ela rezou para que isso não acontecesse, pelo menos não na clínica.
A porta de ferro foi aberta, e null pôde caminhar sozinha até a cadeira e ver dois jovens do outro lado do vidro. Um deles era, claramente, o detetive null null. O outro ela não conhecia.
null sentou-se lentamente e cruzou as pernas.
— Olá, bonitinho. Saudades?
— null — disse null, tentando disfarçar a frieza. null pegou-se curioso para saber o motivo disso, dando um pequeno sorriso torto. Talvez fosse só ódio gratuito, mas com uma garota atraente como null null, talvez isso tivesse um motivo mais preciso.
— Voltei para te atormentar — ela se apoiou em cima da bancada, ficando de frente para o vidro e apoiando sua cabeça em uma das mãos — E para você é null. Esqueceu-se da nossa linda amizade?
— null, este é null null, repórter que cobrirá todo nosso caso. Sr. null, esta é a oficial null.
— null, pare — ela disse, com a voz mansa, como de um gato preparando-se para atacar — Você sabe como eu prefiro null.
Fez uma pausa, dando de ombros.
— Senti saudades, null. E você? Sentiu minha falta?
— null, o assunto é sério. E muito — falou null, abaixando a cabeça, parecendo querer manter o controle. Perto de null, o oficial parecia incomodado, como se medisse cada palavra e cada gesto. null observava a cena altamente concentrado e curioso.
— Veja só, que coincidência, o meu também. Você não sabe como é solitário ficar aqui, null.
— Não me chame de null.
— Eu te chamo como quiser. Posso te chamar de amendoim, se quiser. Mas diga-me, querido amigo de longa data, o que lhe traz aqui? — ela chegou para trás na cadeira, tentando cruzar os braços, mas cruzando apenas as pernas.
Por um minuto, null escapou seu olhar para null. Este ficou nervoso pela primeira vez dentro daquela sala. A maneira com que a moça o olhava, com tanto interesse, o colocava sob pressão. Seus cabelos eram sedosos e incrivelmente bem cuidados. Sua pele era delicada e seu olhar... Não havia nada mais viciante ou interessante.
— null, não? — ela perguntou, mansa novamente.
— null.
— Bem, null — ela disse, agora parecendo mais gentil do que sedutora — É um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu, Serpente Vigilante.
null ergueu as sobrancelhas e voltou o olhar para null, que olhava para o novato com o ar de desaprovação. Sem saber o que fizera de errado, null apenas continuou observando a Terceira Guerra Mundial em olhares sendo trocados.
— Ah, alguém para me dar o devido respeito. Sabe, null — a maneira doce com a que falava seu nome era enlouquecedora —, eu seria capaz de lhe dar um merecido aperto de mãos. Porém, isso é o que eles chamam de hospitalidade por aqui — ela ergueu as algemas — É isso que acontece depois que seu querido amigo testemunha contra você.
— Você sabe que eu não tive escolha — interrompeu null. A essa altura, estava claro que só havia uma pessoa capaz de desarmá-lo em todo mundo, e essa pessoa era null null.
— Ah, por favor — sua voz assumiu um tom irritado — Você sabe bem todas as cartas que tem na manga. Desde as suas, até dos seus oponentes. Você não tem desculpas, null!
null levantou da cadeira e bateu as mãos na mesa. null recuou, com certo medo, mas null manteve o olhar fixo no oficial, inquebrável.
— Não. Me chame. De null.
— Ok, Pikachu. Mas o que lhe trouxe aqui, afinal? — ela brincou, apesar de null não parecer ter gostado muito. A risadinha de null fez null erguer o canto de seu lábio, parecendo satisfeita por não ter deixado a piada passar.
null demorou alguns segundos para se reerguer. Com a pose inquebrável de novo, ele tirou do bolso do terno uma foto e colocou-a contra o vidro.
— null vai cobrir o novo caso.
— Novo caso? Que caso?
— Conhece ela? — ele perguntou. null inclinou-se e deu apenas uma olhada na fotografia, suficiente para fazê-la jogar o corpo para trás.
— Samantha Fox, vinte e sete anos, cabelos pretos, olhos azuis, advogada, uma vaca de marca maior. Por quê?
— O corpo dela foi encontrado esta manhã.
Uma pausa.
— Em que situações? — null, pela primeira vez, assumiu um tom de voz tão profissional quanto o de null.
Ele tirou mais uma foto. A imagem era tão perturbadora que ambos fizeram caretas de nojo ao vê-la. Quando null também se inclinou para isso, desistiu. Não queria destruir a imagem da linda Samantha Fox, colocando sobre ela uma de seu corpo totalmente queimado, com seu rosto delicado deformado com um rosto de quem gritava por desespero. Por ajuda.
— Meu Deus — foi o máximo que null foi capaz de dizer — É muito sangue-frio.
null guardou ambas as fotos.
— Concordo. Então, preciso saber se você tem algo para fazer aqui.
— No Manson? Só se for um plano para fugir. O máximo que consegui foi uma colher de ferro, mas já é um começo.
null ficou de pé, e null acompanhou-o.
— Então, desculpe-me por desapontá-la, mas você vai sair agora.
null esperava algum tipo de comemoração, ou um agradecimento. Mas o que null respondeu foi um curto e rápido:
— Você andou cheirando orégano?
— Você vai sair agora.
— De onde veio tanta bondade?
null parou por um minuto. A espera para ouvir sua próxima frase era perturbadora.
— De onde eu ignorei quando testemunhei contra você e te pus aqui. Você está no topo da lista de suspeitos pela morte da Fox, null, e não quero ver você aguentar aquilo tudo de novo sem conseguir se defender.
— Eu não saí daqui, e você sabe disso.
— Eu sei, todos sabem. Mas, se me permite o elogio, você é a mente mais brilhante, louca e imprevisível que já ouvi falar.
null levantou da cadeira.
— Nossa, assim você me deixa corada, null. Sei que você sentiu minha falta.
null olhou para null e cruzou os braços. Deu uma risada debochada e baixa, dizendo a seguir:
— Você não muda, não é?
— Para quê, se ninguém ia reparar a mudança?
— Tem muito para pegar? Estamos querendo sair daqui logo.
— Se vocês querem, imagine eu. Estarei pronta em menos de cinco minutos.
E em quatro minutos, null tinha em suas costas uma mochila de couro, que há tempos não via.
— Esperava pelo menos um abraço, null.
— O máximo que você sempre conseguiu de mim foi um aperto de mãos no seu aniversário. Não abuse da sorte, null.
— Ah, golpe baixo. Você sabe como eu te amo, e só tenho olhos para você.
A voz extremamente debochada de null fez null ignorá-la e andar pelo corredor, querendo ao máximo sair do Manson. O ambiente, certamente, não era o mais acolhedor do mundo.
— null? É realmente um prazer poder conhecê-lo — disse ela, estendendo-lhe a mão e com um sorriso claramente sincero.
Tomado por uma onda de nervosismo, null apertou a mão da moça, sem nem ter consciência disso. Estava preso em seu olhar.
Agora entendia por que o apelido Serpente Vigilante. As mãos dela eram quentes, como o fogo em seus olhos.
— O mesmo, senhorita null.
— Por favor, só null — ela soltou sua mão — Mas o que leva um jovem jornalista a seguir os passos de null null?
— A falta de um detetive mais gentil — ele disse, fazendo-a rir.
Do lado de fora do Manson, null respirou fundo o ar frio de inverno.
— Adeus, Manson. A Serpente Vigilante está de volta ao jogo.
Please don't be waiting for me...
Apressado e sem jeito, null corria pelo estacionamento vazio e aberto. Tentava evitar que os papéis menores voassem de seus braços, porém, vez ou outra, era obrigado a voltar para apanhar os que tinham caído. Ofegava, mas, na medida em que se aproximava do pátio, parecia ficar menos nervoso. Parou, ajeitou sua postura e passou a dar passos longos, mas lentos, em direção à porta.
Por mais que fosse um prédio grande e escuro, que combinava perfeitamente com o ambiente solitário e com o tempo nublado, havia um homem sorridente esperando-o se aproximar para abrir a porta. Contraditório, pensou null, já que o que o lugar menos parecia oferecer era cordialidade. Pelo contrário, aliás. O edifício Manson parecia disposto a manter todos longe. Não era exatamente essa sua finalidade? Aprisionar os indesejados?
O que levara uma tão jovem moça a parar num lugar daqueles? E com um futuro tão... Certo?
Ergueu os olhos para o lugar e, limpando a garganta, ajeitou a gravata larga no pescoço.
Ainda podia se recordar das manchetes. Quando decidiu ser repórter, há cerca de três meses, tinha acordado num dia de inverno. Leu o jornal, com letras garrafais:
A Serpente Vigilante é enjaulada
A conhecida detetive null null foi levada esta manhã para o Manson, a cerca de uma hora da cidade. Há uma semana vem sendo discutida a punição pelo que aconteceu há um mês, no dia 12 de junho.
null jogou o jornal na lixeira, não querendo terminar de ler a matéria. Foi um golpe de azar. Desde que começou a preparar-se para assumir seu cargo, tinha vontade de conhecer a oficial null. Mesmo tendo apenas vinte e cinco anos, ela já tinha certa fama na pequena cidade de Longview. Apesar de sua idade, a moça era a mais famosa detetive da região, juntamente com seu parceiro. Sua inteligência era invejável, que apenas ela poderia acompanhar, e, somada com o poder de percepção do oficial seu parceiro, eram imbatíveis.
E, com certeza, era muito bonita.
Depois de entrar no Manson, null deparou-se com uma figura que também ouvia falar há pouco tempo. Mexendo em seu iPhone, parecendo entediado, estava o superior null null. O capitão null. O parceiro. Desde que virou repórter investigativo, null sentia certo arrepio na espinha por ter que trabalhar ao lado de null. A maneira séria como olhava para todos a sua volta, com certeza era algo intimidador. Ao mesmo tempo, mostrava a responsabilidade daquele jovem. Pouco mais de cinco anos de carreira, e já tinha tanta reputação assim. E, claro, alguns boatos. Diziam que null, mesmo tendo só vinte e seis anos, já tivera três esposas. E as divorciadas sempre tinham uma história para contar...
De qualquer modo, a pose solitária e fria de null não foi suficiente para deixar null intimidado. O novato esticou a mão para o superior que, surpreso, retribuiu o gesto.
— null? — perguntou null.
— Sim senhor — respondeu o outro, com um pequeno sorriso que ele sabia que tinha poderes mágicos — null null. Prefiro null.
null levantou do banco, fazendo null se sentir inferior. Com a voz firme, retrucou:
— null null. E só null.Está atrasado.
— Desculpe, senhor.
— E o que está fazendo com tudo isso? Acha que vai investigar a morte da Marilyn Monroe? — virou os olhos e deu as costas para null — Novatos...
null olhou para todos os papéis que conseguiu com muito custo levar até ali, e fez uma careta. Deixou-os todos em cima do banco e, um pouco desajeitado, correu atrás de null, que andava com passos largos. O oficial usava um terno preto, que devia custar pelo menos a casa de null. Arrumava os cabelos, e olhava para o relógio enquanto andava pelo corredor. Colocou a mão nos bolsos e foi, com um rosto sério, seguindo seu caminho sem olhar para trás.
Sempre ouvia comentários de como o oficial null era o homem mais desejado da cidade. Claro, ele tinha um charme que causava inveja até no Brad Pitt, mas null não era capaz de enxergar o que as mulheres viam nele. Ele não tinha nada demais.
Talvez fosse justamente esse simplicidade em seus traços faciais, e seu olhar marcante, que fizessem todas suspirarem.
Entretanto, não era a pose de inquebrável que null usava naquela ocasião, naquele corredor. Longe disso. Ele parecia nervoso, querendo manter uma postura formal, quando na verdade estava nervoso. Muito nervoso. Parecia ansioso pelo que fosse acontecer, mas exatamente porque era algo inevitável, assumiu sua responsabilidade e continuou sério e... Bem, inquebrável.
Tentando arrumar sua blusa social e sua gravata preta, null fazia de tudo para acompanhar null sem parecer muito infantil. Imaginava-se como uma criança querendo imitar o pai no trabalho. Ajeitou o cabelo e a coluna, e parou alguns passos a seguir.
Olhou em volta. Há alguns segundos, o corredor branco estava repleto de pessoas. Agora, ele tinha tomado uma coloração mais gasta, um branco sujo. O chão tinha cor de gelo, o que lhe dava a impressão de que estava sob uma fina camada deste. Não era uma sensação muito agradável. Também não havia mais ninguém no corredor além dele próprio, oficial null e um guarda. Na frente deles, uma porta de ferro parecia ser onde null queria chegar.
— Precisam mesmo disso? — perguntou o policial, com a voz trêmula — Vocês são os primeiros a fazer isso.
— Ossos do ofício — respondeu null, com um pequeno sorriso sem qualquer emoção, dando de ombros — Pode abrir.
Dando-se por vencido, o policial abriu a porta de ferro. null entrou na sala, cheio de coragem, enquanto null parecia uma criança medrosa, sentindo as pernas tremerem a cada passo e engolindo em seco repetidamente. A porta fechou-se atrás deles, deixando o ambiente escuro, a não ser por uma fraca lâmpada de teto. No canto, duas cadeiras esperavam os dois detetives. Assim que se sentaram, ficaram de frente para uma fina camada de vidro.
Passos leves e delicados do outro lado do vidro indicavam que a Serpente Vigilante se aproximava.
O terceiro saco de areia voou e se chocou contra a parede. Todos pararam para olhar, pela terceira vez em três meses, null andando com os pés arrastando no chão, até o banco, e beber alguns goles d’água. Parecia que havia atingido sua meta. De novo.
Fazia cerca de noventa dias que null null estava ali.
Não parecia metida, pelo contrário: estava triste de estar tão solitária.
Uma hora você tem tudo, você é tudo. Você constrói uma vida de reputação. Em um minuto, você perde isso tudo.
Fazia cerca de setecentas e vinte horas que null null estava ali.
Ninguém olhava para ela. Antes, todos o faziam. Ela era alguém especial. Não era uma garota qualquer.
Seu nome é null null. Olá, oficial null. É um prazer conhecer a Serpente Vigilante.
Fazia cerca de quarenta e três mil e duzentos minutos que null null estava ali.
Durante as sessões de treinamento, onde praticava socos em sacos de areia, ela chegou a fazer três voarem pelos ares. Isso normalmente acontecia quando se lembrava daquelas coisas. As cartas de null tinham parado de chegar há um tempo. Não sabia se barraram, ou se foi culpa do correio. Treinador Jack lhe dizia que ela parou de escrever. null preferia achar que foi culpa do correio.
Três sacos de areia voando e se espatifando contra a parede. Não é algo que qualquer garota de vinte e cinco anos é capaz de fazer.
Fazia cerca de dois milhões quinhentos e noventa e dois mil e poucos segundos, que null null estava presa ali.
Cicatrizes em sua bochecha lembravam-na dos socos que havia proferido. A Serpente Vigilante havia entrado em repouso? Não, ela estava só melhorando suas habilidades.
— null — chamou Jack. Ninguém olhou para ele, muito menos null.
Ele insistiu e a chamou novamente.
— Querem te ver.
— Quem quer?
— Não é seu namoradinho.
— Então fala que eu morri.
— São oficiais da polícia.
null mordeu o lábio.
— Um deles atende por null null?
Jack ergueu um dos cantos dos lábios.
— Estou indo.
Um dos guardas algemou suas mãos, mas parecia apressado o suficiente para deixar null ir com suas roupas de treinamento. A blusa cinza e suada não era a que gostava de usar, porém, em Manson, não podia pedir muito.
Sempre chamaram a clínica de tratamento Manson de casa. Nunca ousaram chamar aquilo de lar.
Booom. Você está de volta.
Enquanto andava vagarosamente pelos corredores cor de gelo, null recordava-se de tudo que vira em seus últimos dias, antes de ir para Manson. null, null e null. Ah, null. Como sentia saudades deles. O último fora o único que nunca deixara de mandar cartas. Treinador Jack sempre dizia que ele havia parado, mas chegaram atrasadas. null preferia pensar que ele levou-as sozinho.
Tinha ouvido falar que ele já tinha visitado-a três vezes, e tentado tirá-la de lá. Todos os pedidos foram negados. Em todas as vezes, ele tinha visto-a pelos vidros falsos, e chorava.
Ah, se ele soubesse de todas as vezes que ela também chorava por ele...
Não, null não estava voltando. Ela estava praticamente se recriando.
Algo lhe dizia que apenas null, null e null sentiam sua falta. Afinal, quando apenas correspondência do seu trabalho é entregue, isso indica alguma coisa. Quando as pessoas não gostam de você, elas gostam de deixar isso bem claro, não parando de te encher o saco. Nunca.
Aplausos calorosos tomam lugar nos corredores, uma tradição de quando um vencedor “supera seu problema e é capaz de conviver consigo mesmo”. Afinal, alguém pode finalmente sair dali. Não que seja um lugar ruim, bem longe disso, mas... Bem, não é sua casa. Pura merda, na opinião de null.
No corredor, estavam penduradas fotos de hóspedes que já saíram dali. Nunca pacientes, nunca internos. Hóspedes. Teve a esperança de que fosse ver algo sobre ela, e viu. A famosa reportagem de quando foi levada para o Manson.
Pois sim. Isso eles colocam na frente do jornal. Isso eles lembram.
Treinador Jack a abraçou e disse para ela se cuidar, e null sentiu seu cheiro forte invadir seus pulmões. Retribuiu o abraço com força. Ele disse que teria saudades e queria voltar a vê-la logo. E ela rezou para que isso não acontecesse, pelo menos não na clínica.
A porta de ferro foi aberta, e null pôde caminhar sozinha até a cadeira e ver dois jovens do outro lado do vidro. Um deles era, claramente, o detetive null null. O outro ela não conhecia.
null sentou-se lentamente e cruzou as pernas.
— Olá, bonitinho. Saudades?
— null — disse null, tentando disfarçar a frieza. null pegou-se curioso para saber o motivo disso, dando um pequeno sorriso torto. Talvez fosse só ódio gratuito, mas com uma garota atraente como null null, talvez isso tivesse um motivo mais preciso.
— Voltei para te atormentar — ela se apoiou em cima da bancada, ficando de frente para o vidro e apoiando sua cabeça em uma das mãos — E para você é null. Esqueceu-se da nossa linda amizade?
— null, este é null null, repórter que cobrirá todo nosso caso. Sr. null, esta é a oficial null.
— null, pare — ela disse, com a voz mansa, como de um gato preparando-se para atacar — Você sabe como eu prefiro null.
Fez uma pausa, dando de ombros.
— Senti saudades, null. E você? Sentiu minha falta?
— null, o assunto é sério. E muito — falou null, abaixando a cabeça, parecendo querer manter o controle. Perto de null, o oficial parecia incomodado, como se medisse cada palavra e cada gesto. null observava a cena altamente concentrado e curioso.
— Veja só, que coincidência, o meu também. Você não sabe como é solitário ficar aqui, null.
— Não me chame de null.
— Eu te chamo como quiser. Posso te chamar de amendoim, se quiser. Mas diga-me, querido amigo de longa data, o que lhe traz aqui? — ela chegou para trás na cadeira, tentando cruzar os braços, mas cruzando apenas as pernas.
Por um minuto, null escapou seu olhar para null. Este ficou nervoso pela primeira vez dentro daquela sala. A maneira com que a moça o olhava, com tanto interesse, o colocava sob pressão. Seus cabelos eram sedosos e incrivelmente bem cuidados. Sua pele era delicada e seu olhar... Não havia nada mais viciante ou interessante.
— null, não? — ela perguntou, mansa novamente.
— null.
— Bem, null — ela disse, agora parecendo mais gentil do que sedutora — É um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu, Serpente Vigilante.
null ergueu as sobrancelhas e voltou o olhar para null, que olhava para o novato com o ar de desaprovação. Sem saber o que fizera de errado, null apenas continuou observando a Terceira Guerra Mundial em olhares sendo trocados.
— Ah, alguém para me dar o devido respeito. Sabe, null — a maneira doce com a que falava seu nome era enlouquecedora —, eu seria capaz de lhe dar um merecido aperto de mãos. Porém, isso é o que eles chamam de hospitalidade por aqui — ela ergueu as algemas — É isso que acontece depois que seu querido amigo testemunha contra você.
— Você sabe que eu não tive escolha — interrompeu null. A essa altura, estava claro que só havia uma pessoa capaz de desarmá-lo em todo mundo, e essa pessoa era null null.
— Ah, por favor — sua voz assumiu um tom irritado — Você sabe bem todas as cartas que tem na manga. Desde as suas, até dos seus oponentes. Você não tem desculpas, null!
null levantou da cadeira e bateu as mãos na mesa. null recuou, com certo medo, mas null manteve o olhar fixo no oficial, inquebrável.
— Não. Me chame. De null.
— Ok, Pikachu. Mas o que lhe trouxe aqui, afinal? — ela brincou, apesar de null não parecer ter gostado muito. A risadinha de null fez null erguer o canto de seu lábio, parecendo satisfeita por não ter deixado a piada passar.
null demorou alguns segundos para se reerguer. Com a pose inquebrável de novo, ele tirou do bolso do terno uma foto e colocou-a contra o vidro.
— null vai cobrir o novo caso.
— Novo caso? Que caso?
— Conhece ela? — ele perguntou. null inclinou-se e deu apenas uma olhada na fotografia, suficiente para fazê-la jogar o corpo para trás.
— Samantha Fox, vinte e sete anos, cabelos pretos, olhos azuis, advogada, uma vaca de marca maior. Por quê?
— O corpo dela foi encontrado esta manhã.
Uma pausa.
— Em que situações? — null, pela primeira vez, assumiu um tom de voz tão profissional quanto o de null.
Ele tirou mais uma foto. A imagem era tão perturbadora que ambos fizeram caretas de nojo ao vê-la. Quando null também se inclinou para isso, desistiu. Não queria destruir a imagem da linda Samantha Fox, colocando sobre ela uma de seu corpo totalmente queimado, com seu rosto delicado deformado com um rosto de quem gritava por desespero. Por ajuda.
— Meu Deus — foi o máximo que null foi capaz de dizer — É muito sangue-frio.
null guardou ambas as fotos.
— Concordo. Então, preciso saber se você tem algo para fazer aqui.
— No Manson? Só se for um plano para fugir. O máximo que consegui foi uma colher de ferro, mas já é um começo.
null ficou de pé, e null acompanhou-o.
— Então, desculpe-me por desapontá-la, mas você vai sair agora.
null esperava algum tipo de comemoração, ou um agradecimento. Mas o que null respondeu foi um curto e rápido:
— Você andou cheirando orégano?
— Você vai sair agora.
— De onde veio tanta bondade?
null parou por um minuto. A espera para ouvir sua próxima frase era perturbadora.
— De onde eu ignorei quando testemunhei contra você e te pus aqui. Você está no topo da lista de suspeitos pela morte da Fox, null, e não quero ver você aguentar aquilo tudo de novo sem conseguir se defender.
— Eu não saí daqui, e você sabe disso.
— Eu sei, todos sabem. Mas, se me permite o elogio, você é a mente mais brilhante, louca e imprevisível que já ouvi falar.
null levantou da cadeira.
— Nossa, assim você me deixa corada, null. Sei que você sentiu minha falta.
null olhou para null e cruzou os braços. Deu uma risada debochada e baixa, dizendo a seguir:
— Você não muda, não é?
— Para quê, se ninguém ia reparar a mudança?
— Tem muito para pegar? Estamos querendo sair daqui logo.
— Se vocês querem, imagine eu. Estarei pronta em menos de cinco minutos.
E em quatro minutos, null tinha em suas costas uma mochila de couro, que há tempos não via.
— Esperava pelo menos um abraço, null.
— O máximo que você sempre conseguiu de mim foi um aperto de mãos no seu aniversário. Não abuse da sorte, null.
— Ah, golpe baixo. Você sabe como eu te amo, e só tenho olhos para você.
A voz extremamente debochada de null fez null ignorá-la e andar pelo corredor, querendo ao máximo sair do Manson. O ambiente, certamente, não era o mais acolhedor do mundo.
— null? É realmente um prazer poder conhecê-lo — disse ela, estendendo-lhe a mão e com um sorriso claramente sincero.
Tomado por uma onda de nervosismo, null apertou a mão da moça, sem nem ter consciência disso. Estava preso em seu olhar.
Agora entendia por que o apelido Serpente Vigilante. As mãos dela eram quentes, como o fogo em seus olhos.
— O mesmo, senhorita null.
— Por favor, só null — ela soltou sua mão — Mas o que leva um jovem jornalista a seguir os passos de null null?
— A falta de um detetive mais gentil — ele disse, fazendo-a rir.
Do lado de fora do Manson, null respirou fundo o ar frio de inverno.
— Adeus, Manson. A Serpente Vigilante está de volta ao jogo.
Please don't be waiting for me...
Capítulo 2 — School days
Up in the morning and out to school...
A esquina de ‘fim do mundo’ e ‘lugar nenhum’. Para null, essa era a localização da pequena Longview, menos de cinquenta mil habitantes, um sol escaldante em setenta e cinco por cento do ano. Mas naquele outono, a animação por voltar a Longview era algo que ela não conseguiria nunca comparar. A medida com que null avançava com o carro, seus olhos eram indicados para um prédio da cidade. Se um lugar daqueles não muda nada em dez anos, que mudanças ele teria em três meses?
Porém, até um lugar desses vira motivo de saudades depois de uma temporada no Manson.
Quanto mais casas apareciam pela janela, mais null se endireitava no banco, não querendo perder um detalhe daqueles lugares. As ruas estavam vazias, o que lhe dava cada vez mais uma sensação de segurança. null, ainda com curiosidade, tentava observar sua atraente companhia que estava no banco de trás do carro, percebendo que ela estava distraída. Sozinha. Discretamente, pelo retrovisor, ele viu seus cabelos caídos por seus ombros, realçando sua pele, viu seus olhos profundos e com um brilho que agora podia ser verificado, bem longe do Manson. Uma jaqueta de couro preta dava-lhe uma aparência mais adulta, apesar de seu rosto parecer pertencer a uma adolescente.
O que levava uma mulher daquelas a parar no Manson?
De repente, null piscou um dos olhos para null. Pego de surpresa, null desviou o olhar e, parecendo nervoso e sem saber o que falar, tentou:
— Policial... Digo, chefe... Oficial! Oficial null — null deu uma risadinha. Até null foi obrigado a rir.
— Sim? — ele perguntou, sem tirar os olhos da estrada.
— As investigações do caso Fox... Como estão?
— Nem começaram.
— Como é? — perguntou null, com um grito de surpresa, chegando para frente do banco. null freou em um susto, bruscamente, fazendo todos saltarem se seus assentos.
— Escandalosa como sempre. Certas coisas nunca mudam, não, null?
— Todos de Longview sabem que você quem está me trazendo, não sabem? — ela perguntou em desespero. null voltou a dirigir em frente.
— Claro que sabem. Só não sabem o porquê.
— Ah sim. Você me tirou de lá para mostrar que eu não fiz nada.
null deu uma risada forçada e, de certa forma, esnobe.
— Quem disse que foi por isso?
Pela primeira vez, como percebeu null, ela parecia vulnerável. Nem pareceu ter esperado aquela resposta.
— Você, null.
— Eu, na verdade, não disse nada. Mas estamos te trazendo para Longview para você ajudar.
— Ajudar? Em quê?
— Nas investigações do caso Fox, null. Em que mais seria?
— Em provar que eu sou, e sempre fui inocente, null. Para me tirar daquele inferno. Em que mais seria?
— Desculpem interromper — disse null, percebendo que estava fazendo um favor para o oficial null — Mas por que, inicialmente, a Srta. null foi parar lá?
Ela cruzou os braços.
— Fala para ele, null. Você que gosta de um barraco.
null virou os olhos.
— Não é assunto para agora, novato. Pesquise isso mais tarde se quiser ser um investigador.
null precisou se segurar bastante para não dar um chute no banco de null. Limitou-se com um:
— Nossa, null, você é tão doce que meu nível de glicose aumentou. Impressionante como continua sozinho sendo tão adorável.
Lentamente, o oficial encostou o carro e desligou-o. Depois de olhar para fora do carro e ver a delegacia principal de Longview, ela perguntou com um tom de cobrança:
— Achei que fosse me deixar em casa.
— Para quê? Estão todos trabalhando. Você vai ficar sozinha lá.
— Diz isso porque eu tenho amigos, e você vive sozinho. Não é sendo grosseiro que vai ter amigos, null.
null mordeu o lábio e saiu do carro com pressa, parecendo querer se distanciar o mais rápido possível de null. — Por isso que você me odeia, null. Porque eu sou a única pessoa que você é grosseiro e que continua com você. Eu sou a única que bate de frente com você, a única pessoa do mundo que você não faz de idiota.
Saiu do carro rapidamente e correu até chegar perto de null, dando a volta nele para, cara a cara, dizer a frase que mais queria:
— Eu sou a única pessoa que faz você se sentir vivo.
null tentava acompanhar todos os detalhes da conversa. Tinha saído do carro para ver o que estava acontecendo, e sentiu medo que null se descontrolasse de vez e agredisse null. Porém, quando viu a situação, percebeu que esse não era o caso. null estava na frente do oficial null, com a mão na cintura, a cerca de dez centímetros do rosto dele. Seu rosto não tinha outra expressão senão a da famme fatale controladora, diferente da expressão vulnerável que apresentara há alguns minutos. null, por outro lado, perdera a pose superior e, agora, parecia ter medo. null não sabia dizer exatamente do quê, mas o oficial deixava claro que tinha medo.
Talvez, se por acaso se descontrolasse, agredir null null não seria exatamente a reação de null null. Não, bem longe disso.
Ele parecia desesperado para que null o tirasse daquela situação. Tentava olhar para ele, mas tinha dificuldades de desviar seus olhos de null.
Olhe só com quem você está lidando, null. O leão e a serpente. Olhe onde você foi se meter.
— null — ele chamou por ela. Só o uso de seu apelido foi o suficiente para fazê-la desviar sua atenção de null — Jones disse que tem um assunto importante para tratar com você.
— Algo relacionado a quê? — ela perguntou, parecendo não ter gostado da interrupção.
— Ao null.
null engoliu em seco. null.
— O quê, exatamente?
— Não sei. Ele não deu detalhes.
— A única pessoa que atende por Jones na delegacia é uma mulher. "Ele"?
null engoliu em seco. Mas não podia parecer nervoso, afinal, passou por treinamentos para lidar justamente com aquele tipo de situação. Os olhos de null o fitavam como se procurasse uma única faísca de vacilação.
— Ele não é da delegacia, null. Ouvi dizer que a coisa é séria.
Dando-se por vencida, ela desarmou-se. Tirou as mãos da cintura e, virando-se para null de novo, falou, enquanto o oficial a fitava:
— Ainda temos alguns assuntos para tratar.
Deu-lhe as costas e entrou na delegacia. null andou, com as mãos nos bolsos, até o oficial, com um sorriso maroto. null parecia que tinha saído de um transe, ou perdido o ar por alguns segundos.
— Obrigado, novato. De onde teve essa ideia?
— Pesquise sobre isso mais tarde. O senhor não é um bom investigador?
Deu as costas para null e entrou na delegacia, percebendo que null tinha permanecido ali para esperá-los. Aparentemente, ouviu a resposta irônica de null. Não satisfeito, ele virou para trás, e finalizou:
— Para o senhor, é null, oficial null.
E voltou a seguir null null, que tinha um sorriso satisfeito nos lábios.
A delegacia, sim, havia mudado bastante. Antes de sua estadia no Manson, os corredores abriam espaço para a chegada da Serpente Vigilante. Isso não era mais observado. Enquanto andava pela enorme delegacia de Longview, ninguém dava sequer uma olhada para null. Nem por surpresa por sua volta, ou por raiva pelo mesmo motivo.
As coisas mudaram...
Nas relações sociais, você tem duas opções: ganhar reconhecimento por ser uma pessoa adorável e ter sucesso no que faz, ou ser uma pessoa detestável e ter sucesso no que faz. Na delegacia de Longview, ambos os casos poderiam ser encontrados. Na opinião de null, ser detestável é um processo mais rápido. Além do mais, quando dava seus escorregões nas investigações, sempre conseguia dar a volta por cima. Por outro lado, quando Julie se perdia por algum motivo em seus casos, era chamada a atenção.
null null e Julie Stoner deixavam parecer que se odiavam, mas a verdade era que não havia ninguém que elas confiassem mais. A pequena competição entre elas era algo saudável.
Quando você cria um sentimento negativo nas pessoas, a possibilidade de ser magoado por elas cai drasticamente. Essa era a primeira filosofia de null.
A porta da delegada Julie não era, apesar de seu posto superior, a mais temida da delegacia — tal título pertencia à porta de null null. Quando deu quatro batidas, e foi chamada para entrar, não conseguiu conter um pequeno sorriso em seus lábios.
— Se me falassem que você voltou, eu não teria acreditado — disse Julie, levantando de sua cadeira no fundo da sala. Seus sedosos cabelos loiros e lisos caíam por seus ombros, e a falta de brilho em seus olhos cinzentos era algo curioso. null nunca tinha visto a delegada Julie daquele jeito. Na verdade, viu-a poucas vezes. E, nessas poucas, ela estava sempre séria e calada.
Uma coisa ele poderia concluir: null null fazia mágica com as pessoas.
— Se me dissessem como esse lugar ficou agradável depois da minha partida... Nem eu.
As duas se abraçaram. Nitidamente, Julie beirava seus quarenta e poucos anos. Mas, talvez, a aparência da mulher servisse também para dar uma sensação de segurança, gentileza e, principalmente, sabedoria.
— Vejo que null não demorou a lhe trazer de volta.
— Ele sentia muita falta de mim. Não ia demorar.
— Já conheceu o nosso mais novo membro da equipe?
null e null trocaram olhares cúmplices. Ele assentiu com um pequeno sorriso.
— Venha, tome um café — disse Julie, mandando os três entrarem e fechando a porta — Senti falta de todas as suas discussões com null nesses últimos três meses.
— Pensei que gostasse desse clima todo de tranquilidade — disse null, sentando na cadeira e cruzando as pernas. null e null tinham preferido ficar em pé. O segundo com as mãos nos bolsos, parecendo querer dizer algo, mas esperar o melhor momento para fazê-lo.
Entretanto, veja bem, null só recebera o caso Fox por ser o melhor observador de seu grupo de iniciantes. E tinha observado muitas coisas curiosas sobre null null.
— Então, null... Onde estão suas coisas? — perguntou Julie, com naturalidade, sentando na cadeira atrás da mesa.
null franziu o cenho.
— Na minha... Sala? — ela arriscou-se na resposta óbvia.
O sorriso de Julie desapareceu.
— Você não contou a ela? — perguntou, olhando para null.
Sem saber direito o que falar na frente de sua superior, que ainda por cima era grande amiga de null, null limitou-se a coçar a nuca e murmurar uma pequena série de “ãhn”.
— Eu ia contar quando fosse mais propício — defendeu-se.
— Ou seja, você preferiu esperar ela chegar aqui e procurar uma sala que, veja só, não é mais dela.
— Espera, o quê? — perguntou null, tentando rir para deixar o clima menos tenso.
A sala permaneceu em silêncio por alguns segundos. Percebendo-se entre gigantes, null percebeu que era melhor apenas observar e nunca, em hipótese alguma, se intrometer. Afinal, não era assim que sempre conseguiu as melhores informações, fingindo não estar lá?
Se você não estiver bem, nunca deixe isso óbvio. Essa era a segunda filosofia de null.
— Vocês deram minha sala para alguém? — ela perguntou.
— Não entenda assim, null. Você passou muito tempo fora, e não tínhamos salas sobrando.
null começou a sentir um arrepio na espinha. Não queria nem saber o que aconteceria se sua sala fosse, na verdade, de null null.
— Algo desse tipo acontece e vocês se esquecem de mim — ela reclamou, baixo.
— Não nos esquecemos de você, null. Você pode entender isso. Não seja como uma criancinha mimada.
— Criancinha? — ela disse, irritada, levantando-se — Vocês todos nem deram falta de mim! Esse lugar está melhor agora, sem eu aqui para atrapalhar qualquer coisa!
Deu as costas para Julie e só olhou para trás quando estava na porta.
— E eu que pensava que não existia nada pior do que o Manson.
Booom. Todos se esqueceram de você.
Quando se está no fundo do poço, tudo em volta passa a ser lindo e gracioso. Essa era a terceira filosofia de null.
Marchando, null saiu pelos corredores da delegacia de Longview. Precisava saber quem havia tomado sua sala.
Sua mobília de madeira clara, seus quadros de pinturas arquitetônicas, seus livros dos mais antigos sobre qualquer tipo de romance policial.
Julie não poderia deixar isso acontecer. null já estava abusando da sorte por ter sido solta, mas agora, ela poderia perder completamente o controle.
Todos pararam quando uma mulher saiu da antiga sala de null.
null odiava cada fio daqueles cabelos ruivos. Odiava cada ponto verde daqueles olhos, cada centímetro daquela pele clara. Odiava aquela voz doce, de uma típica mentirosa que apenas null seria capaz de reconhecer. Odiava Marla Bronx por inteiro.
— null, quanto tempo — disse ela, parando no meio do corredor com as mãos na cintura. null não falava nada, pois se falasse, com certeza se arrependeria logo — Todos aqui demos falta de você.
Se não tem nada bom para falar, fique calado, antes que fale merda. Essa era a quarta filosofia de null.
Respire, null. Marla Bronx não é ninguém comparada a você.
Um.
— Bom saber, Marla. Também senti falta de todos daqui.
Dois.
— null ligou muitas vezes para cá. Eu atendi a maioria. Ele parecia bem triste.
Três.
null rangeu os dentes.
— Aposto que estava.
Quatro.
Marla avançou alguns passos.
— Nos encontramos algumas vezes. Eu, null, null e null. Todos tão simpáticos... Falamos bastante de você.
Cinco.
Respire.
— Falaram, é? Você não teria nada mais interessante para falar, Bronx. Sempre querendo falar algo relativo a mim.
— Você não poderia deixar de ser o assunto. A cidade inteira fala de você. Como a Serpente Vigilante perdeu completamente o controle...
Ranger de dentes.
Quatro.
Respire.
— Olhe para esta porta antes de dirigir qualquer palavra a mim, null.
A tinta preta da porta dizia “detetive Marla Bronx”.
Não dizia null null. Não mais. Nunca mais.
De pouco em pouco, o mundo de null desmoronava.
— Está vendo essas paredes? Está vendo essas fotos? São os casos que você perdeu depois de ser presa — Marla andou até ficar de frente para null — Todos foram para mim.
Três.
Respire.
— A Serpente Vigilante realmente entrou em colapso.
Três.
Respire.
— Está vendo essas paredes? — perguntou null, com calma, percebendo que toda a delegacia as observava pela janela de vidro do corredor — Elas têm uma história. A história de quando salvei duas dúzias de crianças de um atentado contra a escola local. A história de quando impedi mais de vinte assaltos. E a história de quando convenci mais de dez pessoas a não cometerem suicídio. Foi em uma dessas histórias que conheci null. E ele foi a melhor coisa que já me ocorreu.
null chegou perto do ouvido de Marla e disse:
— Nada que você faça, Bronx, jamais se comparará ao que a Serpente Vigilante fez.
— A Serpente Vigilante morreu.
— A Serpente Vigilante voltou à vida.
— A Serpente Vigilante não é mais você.
— A Serpente Vigilante nunca será você.
Dando meia volta, null saiu da sala. Mas, rapidamente, voltou por um instante, dando duas batidinhas na porta de vidro e dizendo:
— Acho bom mudar essas letras. Escritas em portas estão tão fora de moda...
E, em meio ao silêncio, null foi para fora da delegacia de queixo erguido.
— Ela sempre foi assim? — perguntou null, baixo, para null e Julie.
— Infelizmente — respondeu o primeiro.
— Sou obrigada a concordar... Mas, sem dúvidas, null sabe o que faz.
Do lado de fora da delegacia, null se protegia do frio com seu casaco de couro. null saía do prédio, porém, parou ao olhar quem estava do lado de fora. Sozinha, de pé, lá estava ela.
Prendeu a respiração por um segundo.
— Ei, null — chamou uma voz atrás de si. null tomou um susto, mas percebeu que se tratava de null.
— Oficial null — ele respondeu prontamente.
null deu uma risadinha e prosseguiu:
— Não precisa me chamar assim. Apenas null. Desculpe-me pelo que falei hoje mais cedo... Se é que me entende, eu estava...
— Sob pressão. Percebi.
null engoliu em seco, parecendo nervoso.
— Conheceu o gênio de null, não conheceu?
— Para falar a verdade, imaginava que ela fosse assim. Eu era grande fã dela, sempre quis trabalhar aqui por causa dela.
— Não confunda trabalho com outras coisas, novato — null deu leves tapinhas em seu ombro — null null não possui o apelido de Serpente Vigilante à toa.
null olhou para a mulher com o canto do olho. Aquela aparência inocente com certeza era mentira.
null não deixaria sua armadura desmontar. Marla Bronx estimulou-a a continuar cada vez mais forte. Entretanto, de uma forma curiosa, null permanecia tentado a perguntar o que levara a tão inteligente null ao Manson. Ela parecia um mar de respostas para as mais variadas perguntas, mas um mar fechado. Não é todo mundo que conseguiria o que queria por lá.
Ah, null... Que mágica é essa que ela tinha?
— Quer uma carona? — propôs null, tirando-o de seus devaneios.
— Não, tenho meu carro.
null deu de ombros. Chegando perto de seu — com certeza — caro Jaguar prateado, voltou-se para null.
— Sei que pode não ser o conselho mais fácil do mundo, mas... Não se aproxime muito de null. Quando ela tem objetivos, não há nada ou ninguém que possa ficar na frente dela.
— Ela parece ter um agora?
— Primeiro: não, mas nunca se tem qualquer certeza com uma mulher tão imprevisível. Segundo: se tiver, com certeza é recuperar sua reputação e sua sala. E terceiro: é esse tipo de pergunta que eu gostaria que você não se perguntasse. Não crie expectativas com a resposta. E... Não seja mais um na isca dela.
Voltou-se para null. Tão inocente, tão delicada... Uma mentira.
null poderia gostar do gosto do amargo. Algo lhe dizia que null já tinha experimentado-o.
— Esperando carona? — ele perguntou, aproximando-se de null.
Ela virou-se para ele. Deu um pequeno sorriso, bem diferente do que tinha dado minutos antes, para Marla Bronx.
— Estou... Ele está atrasado algumas horas.
— Seu... Noivo?
— Aham. null. Quer carona, novato?
— Não... Tenho meu carro — apontou para o Audi estacionado ali perto.
— Ah sim. Que tal o oficial null? — perguntou ela.
— Quer mesmo falar sobre ele? — ele retrucou, provocando em null um esboço de uma risada — Se vamos falar, é melhor você começar. Conheci-o hoje.
— Golpe de sorte. Faz um bom tempo que conheço null.
— Quanto tempo?
null virou para Leo e franziu o cenho de leve. — Muito.
Não seria logo no primeiro dia que teria informações pessoais de null null.
— Falando a verdade, null... Quando me tornei repórter, meu objetivo era trabalhar com você.
— Sério? — ela perguntou, parecendo amolecida — Nunca me aconteceu antes. É um fã?
— Sou, te acompanho desde que começou a trabalhar. Tive o azar de, logo que entrei para o ramo, você...
— O caso Durden. Eu lembro — ela interrompeu-o.
null mordeu o lábio e cruzou os braços. Depois de alguns segundos olhando para o chão, uniu coragem para perguntar baixo:
— O que levou você a ir para o Manson, null? Ela comprimiu os lábios. Primeira tacada de null null.
— O caso Durden — ela respondeu vagamente.
— Não procurei saber muito sobre ele. Me desanimou bastante quando eu entrei para o ramo, sabe.
— Ah, como diria null, pesquise mais — ela piscou um olho para null.
Com uma risada, null mordeu o lábio e desistiu de falar sobre o Manson. Só o nome daquele lugar já tinha uma história sinistra.
— Strike um — ele disse, e null deu um sorrisinho maroto — Falando nele... Percebi que você e o oficial null têm um assunto inacabado.
— Temos. Coisa nossa, na verdade. Vamos resolver isso logo.
— Não posso saber qual é, não?
— Não! — ela disse, rindo — Você é muito curioso, sabia disso?
— Se não fosse, não estaria aqui.
O sorriso reconfortante de null fez null ter uma sensação estranha. Como se fosse um sorriso familiar, ou até mesmo, confortável. null a fez se sentir em casa, e se esquecer de tudo que aconteceu mais cedo.
— Ei, null! Ainda bem que ainda está aqui — chamou uma voz que vinha da delegacia. null nem se deu o trabalho de olhar quem era. Permaneceu parada, olhando para a rua, com as mãos no bolso do casaco de couro — Ainda tenho tempo de pedir uma carona?
null ficou sem saber o que fazer, diante do pedido de Marla. A ruiva parou em sua frente, ignorando completamente a presença de null. Depois de alguns segundos, virou-se para a detetive.
— Ah, sim. Acho que já tem companhia, não é? — deu as costas para null novamente.
— Posso te oferecer uma carona, se quiser, Bronx.
— Só Marla, novato. Aqui somos todos amigos... — ela disse com a voz sarcástica.
null mordeu o lábio e virou-se para Marla, fazendo-a ficar de frente para ela depois de um puxão no ombro. Frente a frente, as duas ficaram em silêncio. Rapidamente, null colocou a mão no bolso do casaco de Marla, tirando dali o revólver de policial. Bronx recuou, tentando se manter firme. Com uma risada sarcástica, null falou:
— Cuidado, mocinha. Já te ensinei como coloca uma arma.
Com calma, ela colocou-a de volta.
— Até mais para vocês dois. Minha carona acabou de chegar — ela disse, virando-se para o carro que acabara de chegar, um Porsche prateado.
— Estávamos saindo mesmo. Até amanhã, null... Se o Manson não perceber que falta uma presidiária.
null mordeu o lábio. Marla Bronx era seu pior carma.
Puxado pela ruiva, null queria ficar mais tempo falando com null. Não ficou sabendo nada de novo naquela conversa, mas queria ouvir a doce voz da detetive. Olhou para trás e lá estava ela, indo até o Porsche. Sentiu um pouco de tristeza ao ver que ela não olhava para trás.
null não é o tipo de mulher que olha para trás.
Virou-se para frente e seguiu para o Audi.
Aquele novato não era igual aos outros. Claramente, tinha interesse em saber mais sobre null.
Quanto menos você fala, menos podem usar coisas contra você. Essa era a quinta filosofia de null.
Enquanto andava até o carro, deu uma olhada para trás. null e Marla Bronx, ambos andando até o Audi estacionado logo adiante.
null não olhava para trás. Ele não parecia o tipo de homem que o faz.
Voltou a olhar para frente, e entrou no carro.
Uma última vez, cheio de esperanças, null conferiu se null estava olhando, sem sucesso. Dando-se finalmente por vencido, ele abriu a porta para que Marla Bronx entrasse no Audi. Dando um sorriso bobo, ela entrou.
Em qualquer dia, ele teria olhado aquele sorriso com segundas intenções, mas não era o caso. Marla Bronx parecia o tipo de mulher que joga damas com um pudim e perde.
Foco, null. null disse para manter o foco.
— A louca da null realmente colocou a arma numa posição melhor. Agora é mais fácil para eu sacá-la — comentou Marla, quando null entrou no carro e deu a partida — Mas, mesmo assim, continuo não gostando dela.
— Algo diz que não é a única — ele disse, sem qualquer expressão, saindo do estacionamento.
null, null e mais null. Por que não conseguia parar de pensar nela? Que tipo de encantamento aquela mulher tinha, que não atacava apenas ele, mas também outros homens?
De repente, parou de gostar um pouco do oficial null. Entretanto, logo depois, parou de pensar assim.
— null é uma pessoa incrivelmente detestável. Não sei como ela consegue ter um noivo.
— Sei — ele continuou, pensando mais na pessoa sobre a qual falavam do que com quem ele falava — Ele foi um dos casos dela, não foi?
— Não exatamente. Ele é um psicólogo famoso do estado, e veio para Longview para uma palestra. Depois de uma tentativa de assalto que ela impediu, eles se conheceram. Começaram a sair alguns dias depois.
— Qual o nome dele mesmo?
— null. Mas não vamos falar da null. Onde você fez faculdade?
Não quero saber o que faz todos pensarem que ela é detestável. Prefiro me importar no porquê dela insistir em manter essa impressão.
— Quanto tempo, moça — disse null, depois de null entrar no carro. null inclinou-se e deu um beijo de leve nos lábios de null. Porém, a coisa acabou se prolongando um pouco. Sem perceber, ela já tinha a mão em sua nuca, e ele já mexia em seu cabelo.
— Senti muito sua falta, null.
— Eu também senti a sua. Mas então, como estão todos?
— null e null noivaram — disse null, enquanto saía do estacionamento.
— Não brinca! Aqueles dois vão querer se matar na primeira semana.
— Claro, e depois vão fazer o sexo de conciliação. Coisa normal.
null deu uma risada.
— Não sei como sobrevivi sem suas piadinhas sujas.
— Não são piadas, são a mais pura verdade. Vamos logo, tem pizza nos esperando — ele anunciou, entrando no centro da cidade — Mas só uma coisa que me deixou curioso: achei que você fosse demorar a sair do Manson... O que houve?
— null foi me buscar lá. Ele e um novato.
O sorriso de null sumiu, transformando-se num rosto incrivelmente sério.
— O null?
— O próprio. Me “recrutaram” — ela fez as aspas com os dedos — para ajudar num novo caso.
— Quem morreu? — ele perguntou, rindo diante da pergunta de duplo significado.
— Samantha Fox.
Novamente, houve uma mudança de feições em null. Dessa vez, assumiram uma expressão surpresa, com o cenho franzido.
— Sam morreu?
— “Sam”? Sabe que eu não gostava muito da amizade de vocês. E sim, ela morreu. E está óbvio que mataram ela.
— O quê?! Como foi?
— Aí que está o mais curioso... Pelas fotos, reparei algo que ninguém pareceu reparar. Vai mesmo querer saber?
— Não sei. Foi muito feio?
— Bastante — respondeu null, com uma cara pensativa.
O silêncio reinou por alguns segundos.
— E o novato? Que te buscou?
— Ele está cobrindo o caso, é um repórter iniciante. Entretanto, parece que leva jeito para a coisa melhor do que certas pessoas daquela delegacia. Incrivelmente, não parece ouvir as opiniões dos outros sobre mim.
— Que milagre... Podemos chamá-lo para um jantar qualquer dia desses. Qual o nome dele?
Um pequeno sorriso indesejado apareceu no rosto de null.
— null. null null.
null. null pareceu incomodado. null imaginou que fosse por seu rosto, que demonstrava certa curiosidade, e por isso logo desfez a expressão.
— Como foi que Sam morreu, null? — ele perguntou, finalmente, vencido.
null suspirou.
— Queimaduras internas de dentro para fora. Ela praticamente explodiu.
Ring ring goes the bell...
A esquina de ‘fim do mundo’ e ‘lugar nenhum’. Para null, essa era a localização da pequena Longview, menos de cinquenta mil habitantes, um sol escaldante em setenta e cinco por cento do ano. Mas naquele outono, a animação por voltar a Longview era algo que ela não conseguiria nunca comparar. A medida com que null avançava com o carro, seus olhos eram indicados para um prédio da cidade. Se um lugar daqueles não muda nada em dez anos, que mudanças ele teria em três meses?
Porém, até um lugar desses vira motivo de saudades depois de uma temporada no Manson.
Quanto mais casas apareciam pela janela, mais null se endireitava no banco, não querendo perder um detalhe daqueles lugares. As ruas estavam vazias, o que lhe dava cada vez mais uma sensação de segurança. null, ainda com curiosidade, tentava observar sua atraente companhia que estava no banco de trás do carro, percebendo que ela estava distraída. Sozinha. Discretamente, pelo retrovisor, ele viu seus cabelos caídos por seus ombros, realçando sua pele, viu seus olhos profundos e com um brilho que agora podia ser verificado, bem longe do Manson. Uma jaqueta de couro preta dava-lhe uma aparência mais adulta, apesar de seu rosto parecer pertencer a uma adolescente.
O que levava uma mulher daquelas a parar no Manson?
De repente, null piscou um dos olhos para null. Pego de surpresa, null desviou o olhar e, parecendo nervoso e sem saber o que falar, tentou:
— Policial... Digo, chefe... Oficial! Oficial null — null deu uma risadinha. Até null foi obrigado a rir.
— Sim? — ele perguntou, sem tirar os olhos da estrada.
— As investigações do caso Fox... Como estão?
— Nem começaram.
— Como é? — perguntou null, com um grito de surpresa, chegando para frente do banco. null freou em um susto, bruscamente, fazendo todos saltarem se seus assentos.
— Escandalosa como sempre. Certas coisas nunca mudam, não, null?
— Todos de Longview sabem que você quem está me trazendo, não sabem? — ela perguntou em desespero. null voltou a dirigir em frente.
— Claro que sabem. Só não sabem o porquê.
— Ah sim. Você me tirou de lá para mostrar que eu não fiz nada.
null deu uma risada forçada e, de certa forma, esnobe.
— Quem disse que foi por isso?
Pela primeira vez, como percebeu null, ela parecia vulnerável. Nem pareceu ter esperado aquela resposta.
— Você, null.
— Eu, na verdade, não disse nada. Mas estamos te trazendo para Longview para você ajudar.
— Ajudar? Em quê?
— Nas investigações do caso Fox, null. Em que mais seria?
— Em provar que eu sou, e sempre fui inocente, null. Para me tirar daquele inferno. Em que mais seria?
— Desculpem interromper — disse null, percebendo que estava fazendo um favor para o oficial null — Mas por que, inicialmente, a Srta. null foi parar lá?
Ela cruzou os braços.
— Fala para ele, null. Você que gosta de um barraco.
null virou os olhos.
— Não é assunto para agora, novato. Pesquise isso mais tarde se quiser ser um investigador.
null precisou se segurar bastante para não dar um chute no banco de null. Limitou-se com um:
— Nossa, null, você é tão doce que meu nível de glicose aumentou. Impressionante como continua sozinho sendo tão adorável.
Lentamente, o oficial encostou o carro e desligou-o. Depois de olhar para fora do carro e ver a delegacia principal de Longview, ela perguntou com um tom de cobrança:
— Achei que fosse me deixar em casa.
— Para quê? Estão todos trabalhando. Você vai ficar sozinha lá.
— Diz isso porque eu tenho amigos, e você vive sozinho. Não é sendo grosseiro que vai ter amigos, null.
null mordeu o lábio e saiu do carro com pressa, parecendo querer se distanciar o mais rápido possível de null. — Por isso que você me odeia, null. Porque eu sou a única pessoa que você é grosseiro e que continua com você. Eu sou a única que bate de frente com você, a única pessoa do mundo que você não faz de idiota.
Saiu do carro rapidamente e correu até chegar perto de null, dando a volta nele para, cara a cara, dizer a frase que mais queria:
— Eu sou a única pessoa que faz você se sentir vivo.
null tentava acompanhar todos os detalhes da conversa. Tinha saído do carro para ver o que estava acontecendo, e sentiu medo que null se descontrolasse de vez e agredisse null. Porém, quando viu a situação, percebeu que esse não era o caso. null estava na frente do oficial null, com a mão na cintura, a cerca de dez centímetros do rosto dele. Seu rosto não tinha outra expressão senão a da famme fatale controladora, diferente da expressão vulnerável que apresentara há alguns minutos. null, por outro lado, perdera a pose superior e, agora, parecia ter medo. null não sabia dizer exatamente do quê, mas o oficial deixava claro que tinha medo.
Talvez, se por acaso se descontrolasse, agredir null null não seria exatamente a reação de null null. Não, bem longe disso.
Ele parecia desesperado para que null o tirasse daquela situação. Tentava olhar para ele, mas tinha dificuldades de desviar seus olhos de null.
Olhe só com quem você está lidando, null. O leão e a serpente. Olhe onde você foi se meter.
— null — ele chamou por ela. Só o uso de seu apelido foi o suficiente para fazê-la desviar sua atenção de null — Jones disse que tem um assunto importante para tratar com você.
— Algo relacionado a quê? — ela perguntou, parecendo não ter gostado da interrupção.
— Ao null.
null engoliu em seco. null.
— O quê, exatamente?
— Não sei. Ele não deu detalhes.
— A única pessoa que atende por Jones na delegacia é uma mulher. "Ele"?
null engoliu em seco. Mas não podia parecer nervoso, afinal, passou por treinamentos para lidar justamente com aquele tipo de situação. Os olhos de null o fitavam como se procurasse uma única faísca de vacilação.
— Ele não é da delegacia, null. Ouvi dizer que a coisa é séria.
Dando-se por vencida, ela desarmou-se. Tirou as mãos da cintura e, virando-se para null de novo, falou, enquanto o oficial a fitava:
— Ainda temos alguns assuntos para tratar.
Deu-lhe as costas e entrou na delegacia. null andou, com as mãos nos bolsos, até o oficial, com um sorriso maroto. null parecia que tinha saído de um transe, ou perdido o ar por alguns segundos.
— Obrigado, novato. De onde teve essa ideia?
— Pesquise sobre isso mais tarde. O senhor não é um bom investigador?
Deu as costas para null e entrou na delegacia, percebendo que null tinha permanecido ali para esperá-los. Aparentemente, ouviu a resposta irônica de null. Não satisfeito, ele virou para trás, e finalizou:
— Para o senhor, é null, oficial null.
E voltou a seguir null null, que tinha um sorriso satisfeito nos lábios.
A delegacia, sim, havia mudado bastante. Antes de sua estadia no Manson, os corredores abriam espaço para a chegada da Serpente Vigilante. Isso não era mais observado. Enquanto andava pela enorme delegacia de Longview, ninguém dava sequer uma olhada para null. Nem por surpresa por sua volta, ou por raiva pelo mesmo motivo.
As coisas mudaram...
Nas relações sociais, você tem duas opções: ganhar reconhecimento por ser uma pessoa adorável e ter sucesso no que faz, ou ser uma pessoa detestável e ter sucesso no que faz. Na delegacia de Longview, ambos os casos poderiam ser encontrados. Na opinião de null, ser detestável é um processo mais rápido. Além do mais, quando dava seus escorregões nas investigações, sempre conseguia dar a volta por cima. Por outro lado, quando Julie se perdia por algum motivo em seus casos, era chamada a atenção.
null null e Julie Stoner deixavam parecer que se odiavam, mas a verdade era que não havia ninguém que elas confiassem mais. A pequena competição entre elas era algo saudável.
Quando você cria um sentimento negativo nas pessoas, a possibilidade de ser magoado por elas cai drasticamente. Essa era a primeira filosofia de null.
A porta da delegada Julie não era, apesar de seu posto superior, a mais temida da delegacia — tal título pertencia à porta de null null. Quando deu quatro batidas, e foi chamada para entrar, não conseguiu conter um pequeno sorriso em seus lábios.
— Se me falassem que você voltou, eu não teria acreditado — disse Julie, levantando de sua cadeira no fundo da sala. Seus sedosos cabelos loiros e lisos caíam por seus ombros, e a falta de brilho em seus olhos cinzentos era algo curioso. null nunca tinha visto a delegada Julie daquele jeito. Na verdade, viu-a poucas vezes. E, nessas poucas, ela estava sempre séria e calada.
Uma coisa ele poderia concluir: null null fazia mágica com as pessoas.
— Se me dissessem como esse lugar ficou agradável depois da minha partida... Nem eu.
As duas se abraçaram. Nitidamente, Julie beirava seus quarenta e poucos anos. Mas, talvez, a aparência da mulher servisse também para dar uma sensação de segurança, gentileza e, principalmente, sabedoria.
— Vejo que null não demorou a lhe trazer de volta.
— Ele sentia muita falta de mim. Não ia demorar.
— Já conheceu o nosso mais novo membro da equipe?
null e null trocaram olhares cúmplices. Ele assentiu com um pequeno sorriso.
— Venha, tome um café — disse Julie, mandando os três entrarem e fechando a porta — Senti falta de todas as suas discussões com null nesses últimos três meses.
— Pensei que gostasse desse clima todo de tranquilidade — disse null, sentando na cadeira e cruzando as pernas. null e null tinham preferido ficar em pé. O segundo com as mãos nos bolsos, parecendo querer dizer algo, mas esperar o melhor momento para fazê-lo.
Entretanto, veja bem, null só recebera o caso Fox por ser o melhor observador de seu grupo de iniciantes. E tinha observado muitas coisas curiosas sobre null null.
— Então, null... Onde estão suas coisas? — perguntou Julie, com naturalidade, sentando na cadeira atrás da mesa.
null franziu o cenho.
— Na minha... Sala? — ela arriscou-se na resposta óbvia.
O sorriso de Julie desapareceu.
— Você não contou a ela? — perguntou, olhando para null.
Sem saber direito o que falar na frente de sua superior, que ainda por cima era grande amiga de null, null limitou-se a coçar a nuca e murmurar uma pequena série de “ãhn”.
— Eu ia contar quando fosse mais propício — defendeu-se.
— Ou seja, você preferiu esperar ela chegar aqui e procurar uma sala que, veja só, não é mais dela.
— Espera, o quê? — perguntou null, tentando rir para deixar o clima menos tenso.
A sala permaneceu em silêncio por alguns segundos. Percebendo-se entre gigantes, null percebeu que era melhor apenas observar e nunca, em hipótese alguma, se intrometer. Afinal, não era assim que sempre conseguiu as melhores informações, fingindo não estar lá?
Se você não estiver bem, nunca deixe isso óbvio. Essa era a segunda filosofia de null.
— Vocês deram minha sala para alguém? — ela perguntou.
— Não entenda assim, null. Você passou muito tempo fora, e não tínhamos salas sobrando.
null começou a sentir um arrepio na espinha. Não queria nem saber o que aconteceria se sua sala fosse, na verdade, de null null.
— Algo desse tipo acontece e vocês se esquecem de mim — ela reclamou, baixo.
— Não nos esquecemos de você, null. Você pode entender isso. Não seja como uma criancinha mimada.
— Criancinha? — ela disse, irritada, levantando-se — Vocês todos nem deram falta de mim! Esse lugar está melhor agora, sem eu aqui para atrapalhar qualquer coisa!
Deu as costas para Julie e só olhou para trás quando estava na porta.
— E eu que pensava que não existia nada pior do que o Manson.
Booom. Todos se esqueceram de você.
Quando se está no fundo do poço, tudo em volta passa a ser lindo e gracioso. Essa era a terceira filosofia de null.
Marchando, null saiu pelos corredores da delegacia de Longview. Precisava saber quem havia tomado sua sala.
Sua mobília de madeira clara, seus quadros de pinturas arquitetônicas, seus livros dos mais antigos sobre qualquer tipo de romance policial.
Julie não poderia deixar isso acontecer. null já estava abusando da sorte por ter sido solta, mas agora, ela poderia perder completamente o controle.
Todos pararam quando uma mulher saiu da antiga sala de null.
null odiava cada fio daqueles cabelos ruivos. Odiava cada ponto verde daqueles olhos, cada centímetro daquela pele clara. Odiava aquela voz doce, de uma típica mentirosa que apenas null seria capaz de reconhecer. Odiava Marla Bronx por inteiro.
— null, quanto tempo — disse ela, parando no meio do corredor com as mãos na cintura. null não falava nada, pois se falasse, com certeza se arrependeria logo — Todos aqui demos falta de você.
Se não tem nada bom para falar, fique calado, antes que fale merda. Essa era a quarta filosofia de null.
Respire, null. Marla Bronx não é ninguém comparada a você.
Um.
— Bom saber, Marla. Também senti falta de todos daqui.
Dois.
— null ligou muitas vezes para cá. Eu atendi a maioria. Ele parecia bem triste.
Três.
null rangeu os dentes.
— Aposto que estava.
Quatro.
Marla avançou alguns passos.
— Nos encontramos algumas vezes. Eu, null, null e null. Todos tão simpáticos... Falamos bastante de você.
Cinco.
Respire.
— Falaram, é? Você não teria nada mais interessante para falar, Bronx. Sempre querendo falar algo relativo a mim.
— Você não poderia deixar de ser o assunto. A cidade inteira fala de você. Como a Serpente Vigilante perdeu completamente o controle...
Ranger de dentes.
Quatro.
Respire.
— Olhe para esta porta antes de dirigir qualquer palavra a mim, null.
A tinta preta da porta dizia “detetive Marla Bronx”.
Não dizia null null. Não mais. Nunca mais.
De pouco em pouco, o mundo de null desmoronava.
— Está vendo essas paredes? Está vendo essas fotos? São os casos que você perdeu depois de ser presa — Marla andou até ficar de frente para null — Todos foram para mim.
Três.
Respire.
— A Serpente Vigilante realmente entrou em colapso.
Três.
Respire.
— Está vendo essas paredes? — perguntou null, com calma, percebendo que toda a delegacia as observava pela janela de vidro do corredor — Elas têm uma história. A história de quando salvei duas dúzias de crianças de um atentado contra a escola local. A história de quando impedi mais de vinte assaltos. E a história de quando convenci mais de dez pessoas a não cometerem suicídio. Foi em uma dessas histórias que conheci null. E ele foi a melhor coisa que já me ocorreu.
null chegou perto do ouvido de Marla e disse:
— Nada que você faça, Bronx, jamais se comparará ao que a Serpente Vigilante fez.
— A Serpente Vigilante morreu.
— A Serpente Vigilante voltou à vida.
— A Serpente Vigilante não é mais você.
— A Serpente Vigilante nunca será você.
Dando meia volta, null saiu da sala. Mas, rapidamente, voltou por um instante, dando duas batidinhas na porta de vidro e dizendo:
— Acho bom mudar essas letras. Escritas em portas estão tão fora de moda...
E, em meio ao silêncio, null foi para fora da delegacia de queixo erguido.
— Ela sempre foi assim? — perguntou null, baixo, para null e Julie.
— Infelizmente — respondeu o primeiro.
— Sou obrigada a concordar... Mas, sem dúvidas, null sabe o que faz.
Do lado de fora da delegacia, null se protegia do frio com seu casaco de couro. null saía do prédio, porém, parou ao olhar quem estava do lado de fora. Sozinha, de pé, lá estava ela.
Prendeu a respiração por um segundo.
— Ei, null — chamou uma voz atrás de si. null tomou um susto, mas percebeu que se tratava de null.
— Oficial null — ele respondeu prontamente.
null deu uma risadinha e prosseguiu:
— Não precisa me chamar assim. Apenas null. Desculpe-me pelo que falei hoje mais cedo... Se é que me entende, eu estava...
— Sob pressão. Percebi.
null engoliu em seco, parecendo nervoso.
— Conheceu o gênio de null, não conheceu?
— Para falar a verdade, imaginava que ela fosse assim. Eu era grande fã dela, sempre quis trabalhar aqui por causa dela.
— Não confunda trabalho com outras coisas, novato — null deu leves tapinhas em seu ombro — null null não possui o apelido de Serpente Vigilante à toa.
null olhou para a mulher com o canto do olho. Aquela aparência inocente com certeza era mentira.
null não deixaria sua armadura desmontar. Marla Bronx estimulou-a a continuar cada vez mais forte. Entretanto, de uma forma curiosa, null permanecia tentado a perguntar o que levara a tão inteligente null ao Manson. Ela parecia um mar de respostas para as mais variadas perguntas, mas um mar fechado. Não é todo mundo que conseguiria o que queria por lá.
Ah, null... Que mágica é essa que ela tinha?
— Quer uma carona? — propôs null, tirando-o de seus devaneios.
— Não, tenho meu carro.
null deu de ombros. Chegando perto de seu — com certeza — caro Jaguar prateado, voltou-se para null.
— Sei que pode não ser o conselho mais fácil do mundo, mas... Não se aproxime muito de null. Quando ela tem objetivos, não há nada ou ninguém que possa ficar na frente dela.
— Ela parece ter um agora?
— Primeiro: não, mas nunca se tem qualquer certeza com uma mulher tão imprevisível. Segundo: se tiver, com certeza é recuperar sua reputação e sua sala. E terceiro: é esse tipo de pergunta que eu gostaria que você não se perguntasse. Não crie expectativas com a resposta. E... Não seja mais um na isca dela.
Voltou-se para null. Tão inocente, tão delicada... Uma mentira.
null poderia gostar do gosto do amargo. Algo lhe dizia que null já tinha experimentado-o.
— Esperando carona? — ele perguntou, aproximando-se de null.
Ela virou-se para ele. Deu um pequeno sorriso, bem diferente do que tinha dado minutos antes, para Marla Bronx.
— Estou... Ele está atrasado algumas horas.
— Seu... Noivo?
— Aham. null. Quer carona, novato?
— Não... Tenho meu carro — apontou para o Audi estacionado ali perto.
— Ah sim. Que tal o oficial null? — perguntou ela.
— Quer mesmo falar sobre ele? — ele retrucou, provocando em null um esboço de uma risada — Se vamos falar, é melhor você começar. Conheci-o hoje.
— Golpe de sorte. Faz um bom tempo que conheço null.
— Quanto tempo?
null virou para Leo e franziu o cenho de leve. — Muito.
Não seria logo no primeiro dia que teria informações pessoais de null null.
— Falando a verdade, null... Quando me tornei repórter, meu objetivo era trabalhar com você.
— Sério? — ela perguntou, parecendo amolecida — Nunca me aconteceu antes. É um fã?
— Sou, te acompanho desde que começou a trabalhar. Tive o azar de, logo que entrei para o ramo, você...
— O caso Durden. Eu lembro — ela interrompeu-o.
null mordeu o lábio e cruzou os braços. Depois de alguns segundos olhando para o chão, uniu coragem para perguntar baixo:
— O que levou você a ir para o Manson, null? Ela comprimiu os lábios. Primeira tacada de null null.
— O caso Durden — ela respondeu vagamente.
— Não procurei saber muito sobre ele. Me desanimou bastante quando eu entrei para o ramo, sabe.
— Ah, como diria null, pesquise mais — ela piscou um olho para null.
Com uma risada, null mordeu o lábio e desistiu de falar sobre o Manson. Só o nome daquele lugar já tinha uma história sinistra.
— Strike um — ele disse, e null deu um sorrisinho maroto — Falando nele... Percebi que você e o oficial null têm um assunto inacabado.
— Temos. Coisa nossa, na verdade. Vamos resolver isso logo.
— Não posso saber qual é, não?
— Não! — ela disse, rindo — Você é muito curioso, sabia disso?
— Se não fosse, não estaria aqui.
O sorriso reconfortante de null fez null ter uma sensação estranha. Como se fosse um sorriso familiar, ou até mesmo, confortável. null a fez se sentir em casa, e se esquecer de tudo que aconteceu mais cedo.
— Ei, null! Ainda bem que ainda está aqui — chamou uma voz que vinha da delegacia. null nem se deu o trabalho de olhar quem era. Permaneceu parada, olhando para a rua, com as mãos no bolso do casaco de couro — Ainda tenho tempo de pedir uma carona?
null ficou sem saber o que fazer, diante do pedido de Marla. A ruiva parou em sua frente, ignorando completamente a presença de null. Depois de alguns segundos, virou-se para a detetive.
— Ah, sim. Acho que já tem companhia, não é? — deu as costas para null novamente.
— Posso te oferecer uma carona, se quiser, Bronx.
— Só Marla, novato. Aqui somos todos amigos... — ela disse com a voz sarcástica.
null mordeu o lábio e virou-se para Marla, fazendo-a ficar de frente para ela depois de um puxão no ombro. Frente a frente, as duas ficaram em silêncio. Rapidamente, null colocou a mão no bolso do casaco de Marla, tirando dali o revólver de policial. Bronx recuou, tentando se manter firme. Com uma risada sarcástica, null falou:
— Cuidado, mocinha. Já te ensinei como coloca uma arma.
Com calma, ela colocou-a de volta.
— Até mais para vocês dois. Minha carona acabou de chegar — ela disse, virando-se para o carro que acabara de chegar, um Porsche prateado.
— Estávamos saindo mesmo. Até amanhã, null... Se o Manson não perceber que falta uma presidiária.
null mordeu o lábio. Marla Bronx era seu pior carma.
Puxado pela ruiva, null queria ficar mais tempo falando com null. Não ficou sabendo nada de novo naquela conversa, mas queria ouvir a doce voz da detetive. Olhou para trás e lá estava ela, indo até o Porsche. Sentiu um pouco de tristeza ao ver que ela não olhava para trás.
null não é o tipo de mulher que olha para trás.
Virou-se para frente e seguiu para o Audi.
Aquele novato não era igual aos outros. Claramente, tinha interesse em saber mais sobre null.
Quanto menos você fala, menos podem usar coisas contra você. Essa era a quinta filosofia de null.
Enquanto andava até o carro, deu uma olhada para trás. null e Marla Bronx, ambos andando até o Audi estacionado logo adiante.
null não olhava para trás. Ele não parecia o tipo de homem que o faz.
Voltou a olhar para frente, e entrou no carro.
Uma última vez, cheio de esperanças, null conferiu se null estava olhando, sem sucesso. Dando-se finalmente por vencido, ele abriu a porta para que Marla Bronx entrasse no Audi. Dando um sorriso bobo, ela entrou.
Em qualquer dia, ele teria olhado aquele sorriso com segundas intenções, mas não era o caso. Marla Bronx parecia o tipo de mulher que joga damas com um pudim e perde.
Foco, null. null disse para manter o foco.
— A louca da null realmente colocou a arma numa posição melhor. Agora é mais fácil para eu sacá-la — comentou Marla, quando null entrou no carro e deu a partida — Mas, mesmo assim, continuo não gostando dela.
— Algo diz que não é a única — ele disse, sem qualquer expressão, saindo do estacionamento.
null, null e mais null. Por que não conseguia parar de pensar nela? Que tipo de encantamento aquela mulher tinha, que não atacava apenas ele, mas também outros homens?
De repente, parou de gostar um pouco do oficial null. Entretanto, logo depois, parou de pensar assim.
— null é uma pessoa incrivelmente detestável. Não sei como ela consegue ter um noivo.
— Sei — ele continuou, pensando mais na pessoa sobre a qual falavam do que com quem ele falava — Ele foi um dos casos dela, não foi?
— Não exatamente. Ele é um psicólogo famoso do estado, e veio para Longview para uma palestra. Depois de uma tentativa de assalto que ela impediu, eles se conheceram. Começaram a sair alguns dias depois.
— Qual o nome dele mesmo?
— null. Mas não vamos falar da null. Onde você fez faculdade?
Não quero saber o que faz todos pensarem que ela é detestável. Prefiro me importar no porquê dela insistir em manter essa impressão.
— Quanto tempo, moça — disse null, depois de null entrar no carro. null inclinou-se e deu um beijo de leve nos lábios de null. Porém, a coisa acabou se prolongando um pouco. Sem perceber, ela já tinha a mão em sua nuca, e ele já mexia em seu cabelo.
— Senti muito sua falta, null.
— Eu também senti a sua. Mas então, como estão todos?
— null e null noivaram — disse null, enquanto saía do estacionamento.
— Não brinca! Aqueles dois vão querer se matar na primeira semana.
— Claro, e depois vão fazer o sexo de conciliação. Coisa normal.
null deu uma risada.
— Não sei como sobrevivi sem suas piadinhas sujas.
— Não são piadas, são a mais pura verdade. Vamos logo, tem pizza nos esperando — ele anunciou, entrando no centro da cidade — Mas só uma coisa que me deixou curioso: achei que você fosse demorar a sair do Manson... O que houve?
— null foi me buscar lá. Ele e um novato.
O sorriso de null sumiu, transformando-se num rosto incrivelmente sério.
— O null?
— O próprio. Me “recrutaram” — ela fez as aspas com os dedos — para ajudar num novo caso.
— Quem morreu? — ele perguntou, rindo diante da pergunta de duplo significado.
— Samantha Fox.
Novamente, houve uma mudança de feições em null. Dessa vez, assumiram uma expressão surpresa, com o cenho franzido.
— Sam morreu?
— “Sam”? Sabe que eu não gostava muito da amizade de vocês. E sim, ela morreu. E está óbvio que mataram ela.
— O quê?! Como foi?
— Aí que está o mais curioso... Pelas fotos, reparei algo que ninguém pareceu reparar. Vai mesmo querer saber?
— Não sei. Foi muito feio?
— Bastante — respondeu null, com uma cara pensativa.
O silêncio reinou por alguns segundos.
— E o novato? Que te buscou?
— Ele está cobrindo o caso, é um repórter iniciante. Entretanto, parece que leva jeito para a coisa melhor do que certas pessoas daquela delegacia. Incrivelmente, não parece ouvir as opiniões dos outros sobre mim.
— Que milagre... Podemos chamá-lo para um jantar qualquer dia desses. Qual o nome dele?
Um pequeno sorriso indesejado apareceu no rosto de null.
— null. null null.
null. null pareceu incomodado. null imaginou que fosse por seu rosto, que demonstrava certa curiosidade, e por isso logo desfez a expressão.
— Como foi que Sam morreu, null? — ele perguntou, finalmente, vencido.
null suspirou.
— Queimaduras internas de dentro para fora. Ela praticamente explodiu.
Ring ring goes the bell...
Capítulo 3 — Bad reputation
I don't give a damn 'bout my reputation...
Algumas casas têm cheiro de lavanda. Outras têm cheiro de comida estragada. A casa de null, null, null e null era uma mistura de pólvora, cano de descarga e gato molhado.
Mesmo assim, o prédio de três andares no centro de Longview chamava a atenção por ser a casa deles. Os boatos que rondavam o lugar eram dos mais variados, desde os que uma mulher misteriosa entrava lá todos os fins de semana, até os que eram entoados cantos em um idioma misterioso todas as noites.
O máximo que null pensava disso era que a sociedade estava perdendo criatividade.
Quando entrou em seu apartamento, foi saudada por um caloroso abraço de null e null.
— null! Queríamos tanto que você voltasse! — a amiga gritou, e depois assumindo uma feição de raiva — Por que você teve que ir?
null deu de ombros, querendo ao máximo não pensar no assunto. Em noventa dias de Manson, o caso Durden já havia a atormentado o bastante.
— Fizemos pizza! — falou null, também abraçando a amiga e a erguendo no ar, como sempre fez. Desde criança, null era uma amiga próxima de null. Ainda se lembrava de quando tinham cerca de cinco anos, e juraram que se protegeriam para sempre, e que morariam em Hogwarts como professores de Poções e Transfiguração. Mesmo com dificuldades, null ainda acreditava na segunda parte.
— Sempre gordo, null... — ela disse, abraçando-o e dando um beliscão em sua barriga — Seu flácido!
— As coisas não mudam...
Ambos foram interrompidos por um giro de calcanhares de null, que, de repente, virou-se para a janela da sala. Mirou a janela atentamente, parecendo atenta a qualquer movimento. Não havia ninguém na janela.
— null, o que foi?
— Nada, eu... achei que tinha visto alguém. Desculpem. Pizza?
— Não como nada gorduroso assim há uns três meses. Só sopa de cebola.
— Como você sobreviveu? — perguntou null, abraçando null pela cintura e dando-lhe um beijo no pescoço.
Ela virou-se de frente para seu noivo, abraçando-o pelo pescoço. Olhou para aqueles olhos profundos, apaixonados, que não via há tanto tempo. Com um pequeno sorriso, beijou seus lábios de leve.
— Acho que pior mesmo é pensar em como passei tanto tempo sem ver vocês. Temos que compensar os três meses perdidos... — disse ela, brincando com a gola da blusa de null. Ele mordeu o lábio, dando um sorriso malicioso.
— Depois eu que faço piadas sujas.
Puxou-a pela nuca, beijando seus lábios novamente. Enquanto o beijo de null era algo bem mais romântico, o de null parecia algo mais carnal. O beijo foi aumentando, até que ele levantou-a no colo, usando as pernas dela para envolver sua própria cintura.
A casa estava silenciosa, até serem interrompidos por uma irritante campainha.
— null já devia ter trocado essa droga — ela comentou, partindo o beijo.
— Tanta hora para alguém chegar, e me aparecem logo agora — reclamou null, depois de null ter pulado de seu colo e ido até a porta. Ele permaneceu de pé no meio da sala, de braços cruzados, querendo logo que a pessoa fosse embora.
Ah, pobre null. Mal sabia ele que a pessoa demoraria a sair de suas vidas.
Sem hesitar, null girou a chave e a maçaneta. De pé, usando sua conhecida jaqueta jeans, suas calças rasgadas e seus All Star, estava o que null considerava um peso em seu relacionamento com null. Aqueles cabelos loiros jogados para cima, bagunçados e rebeldes, aqueles incrivelmente brilhantes olhos castanho-esverdeados, aqueles lábios que pareciam fixados em um sorriso sarcástico eterno e arrebatador.
— E aí, parceiro? — perguntou a voz mansa de Tyler, que olhou para null.
— Alguém te chamou? — retrucou null.
— Ah, não precisa me tratar assim. Senti tantas saudades de null quanto você — ele devolveu, olhando para a mulher de pé em sua frente — Não vai me convidar para entrar?
— E eu preciso?
— Tem razão — disse Tyler, sorrindo e colocando um cigarro na boca, entrando na casa sem cerimônias. Sentou-se no sofá como se fosse da própria casa.
— Você não paga as contas, moço. Levanta — disse null, com o rosto sério.
— O que houve com ele? Faltou muita mulher nesses três meses? — perguntou Tyler, olhando para null. null rangeu os dentes de tanta raiva.
— null, vá para o quarto, eu já estou indo... — disse a mulher, tentando fugir da fumaça de cigarro.
— Não, quero saber quando ele vai embora.
— Assim você me ofende, null... Por que me tratar assim? Parece até que não sou bem-vindo — ele esparramou-se no sofá.
— null?! E eu nunca disse que você era.
— Tyler, só diga logo o que você quer... — pediu null.
Dando uma tragada, o loiro chegou para frente do sofá, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Com uma risada sarcástica, ele disse naturalmente:
— Posso ficar aqui um tempo?
— Como é que é?! — gritou null.
— Shh. null e null estão dormindo — alertou null.
— Ah vá. Acredita mesmo que estão?
— De qualquer jeito — interrompeu Tyler — Tive uns problemas e preciso de um lugar para ficar.
— Quando você não está com problemas, Tyler?
— null, acalme-se. Vou pensar no assunto, Tyler. Acabei de chegar, e não quero encher minha cabeça logo no primeiro dia. Posso te encontrar amanhã na delegacia?
— Na delegacia? Quer me ver no xadrez, é? — perguntou ele, com as sobrancelhas erguidas. null levantou a sobrancelha esquerda, e ele se deu por vencido. Levantou-se e encaminhou-se para a porta.
— Senti sua falta, null. Como estão as coisas? Seus amigos... Sua amiga.
— Bem, na medida do possível. null e null estão noivos, para a sua informação.
— Ah, sim, sim, saquei, bom saber... E null: abre o seu olho, cara. O pessoal já está sabendo.
Sem cerimônias, null fechou a porta com Tyler do lado de fora, expulsando-o de uma vez.
— Finalmente — ela falou, apoiando as costas na porta — Onde estávamos?
Quando virou-se para seu noivo, null estava em estado completo de choque. Não conseguia nem piscar, por um segundo sequer.
— null, você está bem? O que foi aquilo que o Tyler falou?
— Nada, null. Eu... Acho melhor hoje não fazermos nada. Pode ser amanhã?
— Nossa, deve ter sido realmente sério...
Dando um sorriso surpresa, null abraçou-a pela cintura e deu um longo selinho em seus lábios.
— Boa noite, amor. Te amo. Mais que tudo nesse mundo.
— Também te amo.
Algo estava estranho.
Havia apenas duas pessoas capazes de fazer a mente de null virar um caos terrível. As duas estavam ali.
Com passos curtos e leves, null andou até a porta entreaberta. Não parecia nervosa, afinal, algo que poderia se gabar era sua confiança. Deu uma leve espiada no meio da sala, onde um homem de pé conversava com o outro, este sentado em uma cadeira e com as mãos amarradas pelos cadarços de seus próprios sapatos. Ambos estavam igualmente bem vestidos, usando blusas caras, calças sociais e tênis. O que estava sentado era particularmente bonito, mas parecia apavorado com a ideia que talvez fosse se concretizar. O outro tinha uma pistola apontada para sua cabeça.
A cena lhe deu um pouco de agonia, mas não poderia se deixar abalar.
“Respire, null. O refém é um dos médicos mais importantes do estado. Você não pode deixar isso acontecer.”
Em uma das cadeiras, estava sentado o famoso null, o grande psicólogo. Acompanhara, por algumas semanas, as reportagens sobre ele. Imediatamente, quis conhecê-lo, já que suas contribuições para os estudos psicológicos tinham sido imensuráveis ultimamente. E era realmente um homem lindo.
“Foco, null! Como pode chamá-lo assim tão descaradamente?”
Havia uma arma apontada para a cabeça dele. Quem tinha a arma era um rapaz que já conhecia. Por toda cidade, todos o conheciam como “troublemaker”, o mimado Joe Durden. Parecia até mais velho para a idade que tinha, provavelmente tinha se acabado de tanto álcool. Seus cabelos eram curtos, rebeldes e claríssimos, quase brancos. Seus olhos eram verdes, quase doentios, e sua pele era clara. Era da altura e da idade de Beatrice, e tremia.
Na outra cadeira, estava Tyler.
— Joe... — disse null, mordendo o lábio e avançando um passo. Joe apontou a arma para ela.
— Mais um passo e vai ter miolos de psicólogo no chão.
“Vão. Ofende, mas não assassina o português.”
— Calma, Joey. Vamos conversar.
— Coloque sua arma no chão. Quero vê-la longe de suas mãos.
null segurou sua arma travada. Ergueu-a e pôde ver Joe tremer ainda mais. Decerto, era só um filhinho de papai surtando. Nem atirar aquele moleque devia saber.
— Só se você colocar a sua também — disse ela, tentando manter um null calmo e sugestivo em sua voz, e não de ordem.
Joe deu uma risada doentia, levantando a arma, assustando todos na sala. Como o prédio tinha sido evacuado depois que se soube dos dois reféns, não havia muito perigo.
— null, meu amor, não percebeu quem dita as ordens aqui?
— Sem ordens, Joey. Só parceria — disse ela, irritada pelo apelido carinhoso.
— Parceria? Você querer me mandar pro Manson que nem você quis fazer? Não soa parceria para mim!
— Joey, calma, eu não quis...
— Basta! — gritou ele, com uma voz desesperada, e deu um tiro para o alto. null soltou um grito abafado. Suava e chorava. Durden voltou a apontar a arma para null, em seguida para Tyler, que parecia não tão nervoso. Não era novidade que o rapaz já teve outras armas apontadas para sua cabeça.
— Estou cansado, null. Cansado de todos me olharem com inferioridade. Como uma criança. E não — começou a sorrir —, eu não sou uma criança.
Puxou o gatilho, porém, não chegou a apontar para ninguém.
— Criança não mata criança.
— Tyler! — gritou null, destravando sua arma, em desespero. Joe não chegou a atirar ou sequer apontar a arma para ninguém, deixando null boquiaberto. Durden sorriu novamente, satisfeito.
— Que egoísta, null... Salvar um parente a salvar um civil.
— Se apontar a arma para algum deles, eu atiro, Durden.
— Durden? null, amor, você já foi mais carinhosa.
A perseguição doentia de Joe por ela dava-lhe agonia.
— Joe, me deixe em paz — null queria chorar — Por favor. Eu não aguento mais.
— Relaxe, amor. Vou te deixar em paz...
null abaixou a arma, e Joe também.
— ...Vou apagar o seu problema maior.
E atirou em Tyler. Em desespero, null levantou a arma e atirou três vezes na barriga de Joe, que ficou de pé contra a parede, deixando suas pernas falharem lentamente, até cair sentado, com um sorriso satisfeito nos lábios finos e roxos. Pouco sangue escorreu.
— Tyler — gritou null, correndo até o irmão — Está bem?
— Vou ficar — ele disse, conferindo o sangue que lhe escorria pelo braço direito. O ferimento nem foi grave.
null sentiu um toque gelado em sua mão. Ao seu lado, estava um preocupado médico, que observava Tyler com cuidado.
— Vai ficar tudo bem. E a senhorita? Está bem?
Seus olhos brilhavam, em gratidão por ter salvado sua vida. null sentiu seu rosto corar.
— Estou, obrigada.
— Está vermelha.
— É o que normalmente acontece quando... — abaixou a cabeça, envergonhada.
— Acho que posso ouvir essa história no melhor restaurante da cidade mais tarde. Estou acostumado com conversas longas.
— Isso foi um convite? Uma proposta de encontro?
— Só se você disser “sim”. Se disser “não”, fingimos que foi uma brincadeirinha.
— Então prepare seus ouvidos, vamos conversar bastante.
Trocaram um sorriso. Mais um tiro foi ouvido.
O rosto de null assumiu uma aparência vazia. Ficou pálido, e null não conseguia compreender. Segurou-o pelos ombros e viu o sangue escorrendo de seu peito esquerdo. A bala tinha provavelmente se alojado ali.
Olhou para de onde tinha vindo o tiro. Tyler tinha um revólver em punhos... O revólver de null.
— Na verdade, estou melhor do que nunca — completou Tyler.
— Tyler! — gritou null, mas sentiu seus braços sendo seguros por um homem. Joe Durden usava um colete à prova de balas com pequenas bolsas para sangue falso, que ainda escorria.
— Surpresa, amor... Assim como todas que eu já fiz a você.
— Joe, me solta! — ela tentou desviar de seus braços.
— Com prazer — ele jogou-a contra o corpo sem vida de null. Sem ter como reagir, desarmada, null só pôde abraçar o corpo do médico, chorando.
— Tyler... Seu traidor...
— Negócios, maninha. Não confunda negócios com família.
E saiu porta afora. Joe Durden foi atrás, mas retornou alguns passos e apontou a arma para null, falando lentamente:
— Se serve de consolo, querida, isso não faz parte do trato.
E atirou. null sentiu o sangue em sua boca, cada vez mais pastoso, depois de um tiro perto do pescoço. Sentiu seu corpo cair, e...
Acordou com um sobressalto, ficando sentada na cama. Sentiu o sangue escorrendo por seus lábios, e pingando em suas mãos, mas, antes que seus olhos ficarem nítidos, já soube o que estava acontecendo.
Em sua boca, estava a mão de null, sangrando. Seu noivo a olhava aterrorizado como nunca esteve, de modo que null ficou mais assustada, e estava sentado em sua frente. A cama estava com os lençóis quase caindo no chão, com null deitada em pânico.
— O que houve, null? O que foi isso? — perguntou null, tentando tirar a mão da boca da noiva.
Não parecia haver mais ninguém em casa. null levantou, correndo, e foi até o banheiro. Encolheu-se em um canto e começou a chorar.
— null, deixa eu entrar — pediu null, batendo na porta. A moça cedeu, e abraçou forte seu amigo, enterrando o rosto em sua blusa, assim que a porta foi aberta.
— O Joe... Ele nunca vai parar de me atormentar — murmurou.
null a abraçou forte, aquecendo-a e dando a mesma sensação de segurança que ela sempre sentia. Era algo como o super poder dele, seu brilho mágico no olhar, de um homem quase que garoto, que olha tudo com bondade. null era o anjo de sua vida, e, abraçando-a naquele banheiro com seus braços fortes, ela não duvidou disso.
— Posso fazer algo por você?
Ela fungou.
— Ligue para Tyler. Quero ele dormindo sob o mesmo teto que eu ainda hoje.
Abre-se o caso Durden
O milionário Joe Durden está desaparecido desde a última quarta (12), depois de testemunhas terem o visto no Hotel Tate. Funcionários do hotel afirmam que o herdeiro da herança Durden estava em seu quarto e não saiu para jantar. Não há qualquer impressão digital suspeita na suíte, e uma testemunha que não quis se identificar diz que a última pessoa a entrar no quarto foi uma mulher ainda não identificada. A delegada Julie Stoner colocou o caso nas mãos da detetive null null, que não quis se pronunciar.
“Não vou mais assumir o caso”
Ontem à tarde, null null afirmou abertamente que não estaria mais investigando o caso Durden. Joe permanece desaparecido há dias. As investigações por parte da detetive null, a Serpente Vigilante, prosseguiram até a procura de pistas no quarto do hotel. A cama estava desfeita, suas roupas estavam no armário, e a banheira estava cheia d’água. A detetive afirma que não há chances do herdeiro ter fugido por opção, pois todo seu dinheiro foi encontrado no quarto. As únicas coisas sumidas foram suas roupas, segundo a namorada do milionário.
null desistiu do caso após afirmar estar tendo problemas familiares.
“Não sei o que fazer” diz Stoner sobre o caso Durden. E mais: “O desaparecimento está parecendo crime”
Depois de null null ter deixado o caso, ele voltou para as mãos da delegada Julie Stoner. Julie afirma não saber ainda para quem irá passá-lo: “null é nossa melhor detetive. Foi algo impressionante ela ter deixado o caso. Realmente não sei o que fazer, o desaparecimento já está parecendo crime profissional, algo bem planejado.”
Stoner diz que só vai se pronunciar novamente com mais informações.
Joe Durden teve seu corpo carbonizado
Foi encontrado o corpo do herdeiro Durden nesta manhã, dia 16 de junho. Completamente carbonizado e sem qualquer exame ser possível, a identificação foi feita a partir de suas tatuagens características. O autor do crime permanece desconhecido, e a pesquisa por digitais continua.
null null e Marla Bronx assumem o caso Durden
Desde que null null deixou de participar do caso Joe Durden, milionário que desapareceu, e teve seu corpo totalmente carbonizado, o caso permaneceu sem rumo. Mas foi anunciado hoje que ele está nas mãos do competente oficial null e da detetive Bronx. Com três dias de investigação, null afirma: “O caso não está difícil. Não tivemos qualquer impressão digital suspeita no quarto do hotel, mas podemos concluir muitas coisas a partir de relatos e filmagens. Posso lhes assegurar que teremos um criminoso atrás das grades em breve.”
Conclui-se o caso Durden: null null é declarada a principal suspeita
Depois de cerca de uma semana de investigação, Marla Bronx afirma que todas as investigações apontam para a detetive null. “Não podemos dar qualquer tipo de informação, mas tudo está indo contra a Srta. null. Por ora, resolvemos levá-la a julgamento” conta Bronx. Por outro lado, null null diz “Não há evidências contra ninguém além de null. Mas não temos como provar sua total inocência” e completa, finalizando sua entrevista: “Não quero ver null em julgamento, mas estou do lado da justiça.” null apenas afirmou que vai esperar mais provas.
A Serpente Vigilante é enjaulada
A conhecida detetive null null foi levada esta manhã para o Manson, a cerca de uma hora da cidade. Há uma semana vem sendo discutida a punição pelo que aconteceu há um mês, no dia 12 de junho. Hoje, exatamente uma semana depois, ela foi levada por julgamento de Marla Bronx. “É melhor para ela ficar afastada do caso Durden. Não quero o mal para null, mas todos irão julgá-la, apesar de não parecer ter motivos para o crime”.
null é suspeita do assassinado de Joe Durden, desaparecido no dia 12. Joe teve seu corpo carbonizado, e testemunhas afirmam que null chegou a vê-lo e discutir com ele no dia. null null, que também trabalha no caso, disse que não quer mais informações. Marla Bronx diz que manterá o caso arquivado.
O Manson é uma clínica de reabilitação para pessoas com saúde mental “delicada”, como os próprios afirmam. A detetive foi levada para lá esta manhã, e nosso repórter foi cobrir o acontecido. Ele conta: “null foi levada por null e Marla. Ela parecia não querer que a detetive a levasse. Quando perguntavam se tinha algo a dizer, apenas dizia ‘sou inocente, e todos sabem disso’. Quando Marla a deixou na porta do Manson, null cuspiu em seu rosto, sem dizer mais nada.”
O caso chocou a cidade, e muitos foram ver a ida de null para o Manson, que entrou ao som de vaias.
Quanto mais lia sobre o que tinha acontecido, mais raiva null sentia. A maneira com que todos pré-julgavam null era perturbadora, a ponto dele ter vontade de tirar satisfações com os dito cujos.
— ‘Tá fazendo o quê, cara? — perguntou uma voz vinda da porta. null pulou da cadeira de susto.
— Porra, null! — ele gritou, tentando voltar para frente do computador — Eu estou tentando trabalhar aqui!
— Tentando, exatamente, porque seu parceiro acabou de chegar para acabar com a sua alegria. E se levou um susto, com certeza estava fazendo algo que não devia. O que é isso aí? — perguntou o amigo, chegando perto do computador. Rapidamente, null abaixou a tela.
— São pesquisas.
— Ah, cara, me diz o que são. Quem sabe eu possa te ajudar. Eu não sou o seu parceiro? E eu sei de muitas coisas.
— Você até é, mas que você sabe das coisas eu tenho minhas dúvidas...
— Há, palhaço. Diz logo o que é.
null suspirou, rindo. Há três meses, desde que colocou os pés em Longview, dividia o apartamento com null. Ele não era exatamente o cara mais inteligente ou higiênico que já conheceu, porém, com certeza, era um dos mais malandros e confiáveis. Depois de quase se envolver com uma briga de rua, tinha sido null que tinha salvado-o.
— É sobre a null null.
null franziu o cenho.
— A null? Por que está pesquisando sobre ela? Achei que você estivesse com o caso Fox.
— Bem, eu... — se interrompeu — null, eu cheguei a comentar o caso Fox com você?
— Claro que chegou. Mas por que esse interesse na null?
null deu de ombros.
— Só curiosidade.
— Abre o teu olho, novato. A curiosidade matou o gato, e você está lidando com uma serpente.
Eu não cheguei a comentar com ele sobre o caso Fox.
— Acho que ela era inocente no caso Durden.
— Ah, o caso Durden de novo. Já não chega disso? Deixa o Joe descansar em paz!
— Mas eu estou falando sério! Ela pagou por um crime que não se tem certeza que cometeu, e talvez o assassino ainda esteja por aí, null.
— Deixe esse assunto quieto. O caso já não foi arquivado? E ela já não voltou? E você está com o Fox agora.
null ficou em silêncio e, segundos depois, sorrindo, falou:
— Acabei de assumir o caso Durden.
— Há! Essa eu quero ver — disse null, de um modo que null não achou graça — null null, null null e Marla Bronx assumiram o caso, e o jornalista null null vai conseguir concluir.
— Ih, o outro tá achando que é gente — disse null, girando os olhos, o que fez null fazer uma careta de quem também não achou graça — Eu não vou fazer isso sozinho.
— Você e mais quem, null?
— Eu e null.
— Ah sim. E ela sabe disso?
— Não. E eu vou investigá-la exatamente assim, sem ela é saber.
— Você é louco, null... Anda logo que a comida chinesa chegou.
Tenho certeza que não comentei sobre o caso Fox, tanto quanto tenho certeza de que null é inocente.
— null?
— O quê, null?
Ele pareceu em dúvida se falaria para null o que precisava dizer.
— Não confie nessa mulher. Ela é uma aranha, e está atraindo você para a teia dela.
— Que exagero...
— Depois não diga que eu não avisei.
Enquanto desciam as escadas, null se viu tentado em perguntar:
— Hey, null... Quando que eu falei com você sobre o caso Fox?
— Não... Foi você quem me falou.
— Quem foi?
— Marla Bronx.
null franziu o cenho.
— Qual é a cor dos olhos dela?
— Ela ligou para cá.
— E queria falar com você, é?
— Ih, agora o outro tá achando que é gente... Se você não andar logo, vou comer todo o seu yakisoba.
— Pode ficar com ele. Vou tentar descobrir mais algumas coisas sobre a null.
— Então vai passar a noite com fome. Qualquer coisa que queira saber, pode me perguntar.
null ia fechar a porta atrás de si, quando null chamou-o de novo.
— Que foi?
— Vou precisar da sua ajuda.
— Para o que precisar, cara.
— Vamos organizar uma festa.
So why should I care 'bout my bad reputation anyway?
Algumas casas têm cheiro de lavanda. Outras têm cheiro de comida estragada. A casa de null, null, null e null era uma mistura de pólvora, cano de descarga e gato molhado.
Mesmo assim, o prédio de três andares no centro de Longview chamava a atenção por ser a casa deles. Os boatos que rondavam o lugar eram dos mais variados, desde os que uma mulher misteriosa entrava lá todos os fins de semana, até os que eram entoados cantos em um idioma misterioso todas as noites.
O máximo que null pensava disso era que a sociedade estava perdendo criatividade.
Quando entrou em seu apartamento, foi saudada por um caloroso abraço de null e null.
— null! Queríamos tanto que você voltasse! — a amiga gritou, e depois assumindo uma feição de raiva — Por que você teve que ir?
null deu de ombros, querendo ao máximo não pensar no assunto. Em noventa dias de Manson, o caso Durden já havia a atormentado o bastante.
— Fizemos pizza! — falou null, também abraçando a amiga e a erguendo no ar, como sempre fez. Desde criança, null era uma amiga próxima de null. Ainda se lembrava de quando tinham cerca de cinco anos, e juraram que se protegeriam para sempre, e que morariam em Hogwarts como professores de Poções e Transfiguração. Mesmo com dificuldades, null ainda acreditava na segunda parte.
— Sempre gordo, null... — ela disse, abraçando-o e dando um beliscão em sua barriga — Seu flácido!
— As coisas não mudam...
Ambos foram interrompidos por um giro de calcanhares de null, que, de repente, virou-se para a janela da sala. Mirou a janela atentamente, parecendo atenta a qualquer movimento. Não havia ninguém na janela.
— null, o que foi?
— Nada, eu... achei que tinha visto alguém. Desculpem. Pizza?
— Não como nada gorduroso assim há uns três meses. Só sopa de cebola.
— Como você sobreviveu? — perguntou null, abraçando null pela cintura e dando-lhe um beijo no pescoço.
Ela virou-se de frente para seu noivo, abraçando-o pelo pescoço. Olhou para aqueles olhos profundos, apaixonados, que não via há tanto tempo. Com um pequeno sorriso, beijou seus lábios de leve.
— Acho que pior mesmo é pensar em como passei tanto tempo sem ver vocês. Temos que compensar os três meses perdidos... — disse ela, brincando com a gola da blusa de null. Ele mordeu o lábio, dando um sorriso malicioso.
— Depois eu que faço piadas sujas.
Puxou-a pela nuca, beijando seus lábios novamente. Enquanto o beijo de null era algo bem mais romântico, o de null parecia algo mais carnal. O beijo foi aumentando, até que ele levantou-a no colo, usando as pernas dela para envolver sua própria cintura.
A casa estava silenciosa, até serem interrompidos por uma irritante campainha.
— null já devia ter trocado essa droga — ela comentou, partindo o beijo.
— Tanta hora para alguém chegar, e me aparecem logo agora — reclamou null, depois de null ter pulado de seu colo e ido até a porta. Ele permaneceu de pé no meio da sala, de braços cruzados, querendo logo que a pessoa fosse embora.
Ah, pobre null. Mal sabia ele que a pessoa demoraria a sair de suas vidas.
Sem hesitar, null girou a chave e a maçaneta. De pé, usando sua conhecida jaqueta jeans, suas calças rasgadas e seus All Star, estava o que null considerava um peso em seu relacionamento com null. Aqueles cabelos loiros jogados para cima, bagunçados e rebeldes, aqueles incrivelmente brilhantes olhos castanho-esverdeados, aqueles lábios que pareciam fixados em um sorriso sarcástico eterno e arrebatador.
— E aí, parceiro? — perguntou a voz mansa de Tyler, que olhou para null.
— Alguém te chamou? — retrucou null.
— Ah, não precisa me tratar assim. Senti tantas saudades de null quanto você — ele devolveu, olhando para a mulher de pé em sua frente — Não vai me convidar para entrar?
— E eu preciso?
— Tem razão — disse Tyler, sorrindo e colocando um cigarro na boca, entrando na casa sem cerimônias. Sentou-se no sofá como se fosse da própria casa.
— Você não paga as contas, moço. Levanta — disse null, com o rosto sério.
— O que houve com ele? Faltou muita mulher nesses três meses? — perguntou Tyler, olhando para null. null rangeu os dentes de tanta raiva.
— null, vá para o quarto, eu já estou indo... — disse a mulher, tentando fugir da fumaça de cigarro.
— Não, quero saber quando ele vai embora.
— Assim você me ofende, null... Por que me tratar assim? Parece até que não sou bem-vindo — ele esparramou-se no sofá.
— null?! E eu nunca disse que você era.
— Tyler, só diga logo o que você quer... — pediu null.
Dando uma tragada, o loiro chegou para frente do sofá, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Com uma risada sarcástica, ele disse naturalmente:
— Posso ficar aqui um tempo?
— Como é que é?! — gritou null.
— Shh. null e null estão dormindo — alertou null.
— Ah vá. Acredita mesmo que estão?
— De qualquer jeito — interrompeu Tyler — Tive uns problemas e preciso de um lugar para ficar.
— Quando você não está com problemas, Tyler?
— null, acalme-se. Vou pensar no assunto, Tyler. Acabei de chegar, e não quero encher minha cabeça logo no primeiro dia. Posso te encontrar amanhã na delegacia?
— Na delegacia? Quer me ver no xadrez, é? — perguntou ele, com as sobrancelhas erguidas. null levantou a sobrancelha esquerda, e ele se deu por vencido. Levantou-se e encaminhou-se para a porta.
— Senti sua falta, null. Como estão as coisas? Seus amigos... Sua amiga.
— Bem, na medida do possível. null e null estão noivos, para a sua informação.
— Ah, sim, sim, saquei, bom saber... E null: abre o seu olho, cara. O pessoal já está sabendo.
Sem cerimônias, null fechou a porta com Tyler do lado de fora, expulsando-o de uma vez.
— Finalmente — ela falou, apoiando as costas na porta — Onde estávamos?
Quando virou-se para seu noivo, null estava em estado completo de choque. Não conseguia nem piscar, por um segundo sequer.
— null, você está bem? O que foi aquilo que o Tyler falou?
— Nada, null. Eu... Acho melhor hoje não fazermos nada. Pode ser amanhã?
— Nossa, deve ter sido realmente sério...
Dando um sorriso surpresa, null abraçou-a pela cintura e deu um longo selinho em seus lábios.
— Boa noite, amor. Te amo. Mais que tudo nesse mundo.
— Também te amo.
Algo estava estranho.
Havia apenas duas pessoas capazes de fazer a mente de null virar um caos terrível. As duas estavam ali.
Com passos curtos e leves, null andou até a porta entreaberta. Não parecia nervosa, afinal, algo que poderia se gabar era sua confiança. Deu uma leve espiada no meio da sala, onde um homem de pé conversava com o outro, este sentado em uma cadeira e com as mãos amarradas pelos cadarços de seus próprios sapatos. Ambos estavam igualmente bem vestidos, usando blusas caras, calças sociais e tênis. O que estava sentado era particularmente bonito, mas parecia apavorado com a ideia que talvez fosse se concretizar. O outro tinha uma pistola apontada para sua cabeça.
A cena lhe deu um pouco de agonia, mas não poderia se deixar abalar.
“Respire, null. O refém é um dos médicos mais importantes do estado. Você não pode deixar isso acontecer.”
Em uma das cadeiras, estava sentado o famoso null, o grande psicólogo. Acompanhara, por algumas semanas, as reportagens sobre ele. Imediatamente, quis conhecê-lo, já que suas contribuições para os estudos psicológicos tinham sido imensuráveis ultimamente. E era realmente um homem lindo.
“Foco, null! Como pode chamá-lo assim tão descaradamente?”
Havia uma arma apontada para a cabeça dele. Quem tinha a arma era um rapaz que já conhecia. Por toda cidade, todos o conheciam como “troublemaker”, o mimado Joe Durden. Parecia até mais velho para a idade que tinha, provavelmente tinha se acabado de tanto álcool. Seus cabelos eram curtos, rebeldes e claríssimos, quase brancos. Seus olhos eram verdes, quase doentios, e sua pele era clara. Era da altura e da idade de Beatrice, e tremia.
Na outra cadeira, estava Tyler.
— Joe... — disse null, mordendo o lábio e avançando um passo. Joe apontou a arma para ela.
— Mais um passo e vai ter miolos de psicólogo no chão.
“Vão. Ofende, mas não assassina o português.”
— Calma, Joey. Vamos conversar.
— Coloque sua arma no chão. Quero vê-la longe de suas mãos.
null segurou sua arma travada. Ergueu-a e pôde ver Joe tremer ainda mais. Decerto, era só um filhinho de papai surtando. Nem atirar aquele moleque devia saber.
— Só se você colocar a sua também — disse ela, tentando manter um null calmo e sugestivo em sua voz, e não de ordem.
Joe deu uma risada doentia, levantando a arma, assustando todos na sala. Como o prédio tinha sido evacuado depois que se soube dos dois reféns, não havia muito perigo.
— null, meu amor, não percebeu quem dita as ordens aqui?
— Sem ordens, Joey. Só parceria — disse ela, irritada pelo apelido carinhoso.
— Parceria? Você querer me mandar pro Manson que nem você quis fazer? Não soa parceria para mim!
— Joey, calma, eu não quis...
— Basta! — gritou ele, com uma voz desesperada, e deu um tiro para o alto. null soltou um grito abafado. Suava e chorava. Durden voltou a apontar a arma para null, em seguida para Tyler, que parecia não tão nervoso. Não era novidade que o rapaz já teve outras armas apontadas para sua cabeça.
— Estou cansado, null. Cansado de todos me olharem com inferioridade. Como uma criança. E não — começou a sorrir —, eu não sou uma criança.
Puxou o gatilho, porém, não chegou a apontar para ninguém.
— Criança não mata criança.
— Tyler! — gritou null, destravando sua arma, em desespero. Joe não chegou a atirar ou sequer apontar a arma para ninguém, deixando null boquiaberto. Durden sorriu novamente, satisfeito.
— Que egoísta, null... Salvar um parente a salvar um civil.
— Se apontar a arma para algum deles, eu atiro, Durden.
— Durden? null, amor, você já foi mais carinhosa.
A perseguição doentia de Joe por ela dava-lhe agonia.
— Joe, me deixe em paz — null queria chorar — Por favor. Eu não aguento mais.
— Relaxe, amor. Vou te deixar em paz...
null abaixou a arma, e Joe também.
— ...Vou apagar o seu problema maior.
E atirou em Tyler. Em desespero, null levantou a arma e atirou três vezes na barriga de Joe, que ficou de pé contra a parede, deixando suas pernas falharem lentamente, até cair sentado, com um sorriso satisfeito nos lábios finos e roxos. Pouco sangue escorreu.
— Tyler — gritou null, correndo até o irmão — Está bem?
— Vou ficar — ele disse, conferindo o sangue que lhe escorria pelo braço direito. O ferimento nem foi grave.
null sentiu um toque gelado em sua mão. Ao seu lado, estava um preocupado médico, que observava Tyler com cuidado.
— Vai ficar tudo bem. E a senhorita? Está bem?
Seus olhos brilhavam, em gratidão por ter salvado sua vida. null sentiu seu rosto corar.
— Estou, obrigada.
— Está vermelha.
— É o que normalmente acontece quando... — abaixou a cabeça, envergonhada.
— Acho que posso ouvir essa história no melhor restaurante da cidade mais tarde. Estou acostumado com conversas longas.
— Isso foi um convite? Uma proposta de encontro?
— Só se você disser “sim”. Se disser “não”, fingimos que foi uma brincadeirinha.
— Então prepare seus ouvidos, vamos conversar bastante.
Trocaram um sorriso. Mais um tiro foi ouvido.
O rosto de null assumiu uma aparência vazia. Ficou pálido, e null não conseguia compreender. Segurou-o pelos ombros e viu o sangue escorrendo de seu peito esquerdo. A bala tinha provavelmente se alojado ali.
Olhou para de onde tinha vindo o tiro. Tyler tinha um revólver em punhos... O revólver de null.
— Na verdade, estou melhor do que nunca — completou Tyler.
— Tyler! — gritou null, mas sentiu seus braços sendo seguros por um homem. Joe Durden usava um colete à prova de balas com pequenas bolsas para sangue falso, que ainda escorria.
— Surpresa, amor... Assim como todas que eu já fiz a você.
— Joe, me solta! — ela tentou desviar de seus braços.
— Com prazer — ele jogou-a contra o corpo sem vida de null. Sem ter como reagir, desarmada, null só pôde abraçar o corpo do médico, chorando.
— Tyler... Seu traidor...
— Negócios, maninha. Não confunda negócios com família.
E saiu porta afora. Joe Durden foi atrás, mas retornou alguns passos e apontou a arma para null, falando lentamente:
— Se serve de consolo, querida, isso não faz parte do trato.
E atirou. null sentiu o sangue em sua boca, cada vez mais pastoso, depois de um tiro perto do pescoço. Sentiu seu corpo cair, e...
Acordou com um sobressalto, ficando sentada na cama. Sentiu o sangue escorrendo por seus lábios, e pingando em suas mãos, mas, antes que seus olhos ficarem nítidos, já soube o que estava acontecendo.
Em sua boca, estava a mão de null, sangrando. Seu noivo a olhava aterrorizado como nunca esteve, de modo que null ficou mais assustada, e estava sentado em sua frente. A cama estava com os lençóis quase caindo no chão, com null deitada em pânico.
— O que houve, null? O que foi isso? — perguntou null, tentando tirar a mão da boca da noiva.
Não parecia haver mais ninguém em casa. null levantou, correndo, e foi até o banheiro. Encolheu-se em um canto e começou a chorar.
— null, deixa eu entrar — pediu null, batendo na porta. A moça cedeu, e abraçou forte seu amigo, enterrando o rosto em sua blusa, assim que a porta foi aberta.
— O Joe... Ele nunca vai parar de me atormentar — murmurou.
null a abraçou forte, aquecendo-a e dando a mesma sensação de segurança que ela sempre sentia. Era algo como o super poder dele, seu brilho mágico no olhar, de um homem quase que garoto, que olha tudo com bondade. null era o anjo de sua vida, e, abraçando-a naquele banheiro com seus braços fortes, ela não duvidou disso.
— Posso fazer algo por você?
Ela fungou.
— Ligue para Tyler. Quero ele dormindo sob o mesmo teto que eu ainda hoje.
Abre-se o caso Durden
O milionário Joe Durden está desaparecido desde a última quarta (12), depois de testemunhas terem o visto no Hotel Tate. Funcionários do hotel afirmam que o herdeiro da herança Durden estava em seu quarto e não saiu para jantar. Não há qualquer impressão digital suspeita na suíte, e uma testemunha que não quis se identificar diz que a última pessoa a entrar no quarto foi uma mulher ainda não identificada. A delegada Julie Stoner colocou o caso nas mãos da detetive null null, que não quis se pronunciar.
“Não vou mais assumir o caso”
Ontem à tarde, null null afirmou abertamente que não estaria mais investigando o caso Durden. Joe permanece desaparecido há dias. As investigações por parte da detetive null, a Serpente Vigilante, prosseguiram até a procura de pistas no quarto do hotel. A cama estava desfeita, suas roupas estavam no armário, e a banheira estava cheia d’água. A detetive afirma que não há chances do herdeiro ter fugido por opção, pois todo seu dinheiro foi encontrado no quarto. As únicas coisas sumidas foram suas roupas, segundo a namorada do milionário.
null desistiu do caso após afirmar estar tendo problemas familiares.
“Não sei o que fazer” diz Stoner sobre o caso Durden. E mais: “O desaparecimento está parecendo crime”
Depois de null null ter deixado o caso, ele voltou para as mãos da delegada Julie Stoner. Julie afirma não saber ainda para quem irá passá-lo: “null é nossa melhor detetive. Foi algo impressionante ela ter deixado o caso. Realmente não sei o que fazer, o desaparecimento já está parecendo crime profissional, algo bem planejado.”
Stoner diz que só vai se pronunciar novamente com mais informações.
Joe Durden teve seu corpo carbonizado
Foi encontrado o corpo do herdeiro Durden nesta manhã, dia 16 de junho. Completamente carbonizado e sem qualquer exame ser possível, a identificação foi feita a partir de suas tatuagens características. O autor do crime permanece desconhecido, e a pesquisa por digitais continua.
null null e Marla Bronx assumem o caso Durden
Desde que null null deixou de participar do caso Joe Durden, milionário que desapareceu, e teve seu corpo totalmente carbonizado, o caso permaneceu sem rumo. Mas foi anunciado hoje que ele está nas mãos do competente oficial null e da detetive Bronx. Com três dias de investigação, null afirma: “O caso não está difícil. Não tivemos qualquer impressão digital suspeita no quarto do hotel, mas podemos concluir muitas coisas a partir de relatos e filmagens. Posso lhes assegurar que teremos um criminoso atrás das grades em breve.”
Conclui-se o caso Durden: null null é declarada a principal suspeita
Depois de cerca de uma semana de investigação, Marla Bronx afirma que todas as investigações apontam para a detetive null. “Não podemos dar qualquer tipo de informação, mas tudo está indo contra a Srta. null. Por ora, resolvemos levá-la a julgamento” conta Bronx. Por outro lado, null null diz “Não há evidências contra ninguém além de null. Mas não temos como provar sua total inocência” e completa, finalizando sua entrevista: “Não quero ver null em julgamento, mas estou do lado da justiça.” null apenas afirmou que vai esperar mais provas.
A Serpente Vigilante é enjaulada
A conhecida detetive null null foi levada esta manhã para o Manson, a cerca de uma hora da cidade. Há uma semana vem sendo discutida a punição pelo que aconteceu há um mês, no dia 12 de junho. Hoje, exatamente uma semana depois, ela foi levada por julgamento de Marla Bronx. “É melhor para ela ficar afastada do caso Durden. Não quero o mal para null, mas todos irão julgá-la, apesar de não parecer ter motivos para o crime”.
null é suspeita do assassinado de Joe Durden, desaparecido no dia 12. Joe teve seu corpo carbonizado, e testemunhas afirmam que null chegou a vê-lo e discutir com ele no dia. null null, que também trabalha no caso, disse que não quer mais informações. Marla Bronx diz que manterá o caso arquivado.
O Manson é uma clínica de reabilitação para pessoas com saúde mental “delicada”, como os próprios afirmam. A detetive foi levada para lá esta manhã, e nosso repórter foi cobrir o acontecido. Ele conta: “null foi levada por null e Marla. Ela parecia não querer que a detetive a levasse. Quando perguntavam se tinha algo a dizer, apenas dizia ‘sou inocente, e todos sabem disso’. Quando Marla a deixou na porta do Manson, null cuspiu em seu rosto, sem dizer mais nada.”
O caso chocou a cidade, e muitos foram ver a ida de null para o Manson, que entrou ao som de vaias.
Quanto mais lia sobre o que tinha acontecido, mais raiva null sentia. A maneira com que todos pré-julgavam null era perturbadora, a ponto dele ter vontade de tirar satisfações com os dito cujos.
— ‘Tá fazendo o quê, cara? — perguntou uma voz vinda da porta. null pulou da cadeira de susto.
— Porra, null! — ele gritou, tentando voltar para frente do computador — Eu estou tentando trabalhar aqui!
— Tentando, exatamente, porque seu parceiro acabou de chegar para acabar com a sua alegria. E se levou um susto, com certeza estava fazendo algo que não devia. O que é isso aí? — perguntou o amigo, chegando perto do computador. Rapidamente, null abaixou a tela.
— São pesquisas.
— Ah, cara, me diz o que são. Quem sabe eu possa te ajudar. Eu não sou o seu parceiro? E eu sei de muitas coisas.
— Você até é, mas que você sabe das coisas eu tenho minhas dúvidas...
— Há, palhaço. Diz logo o que é.
null suspirou, rindo. Há três meses, desde que colocou os pés em Longview, dividia o apartamento com null. Ele não era exatamente o cara mais inteligente ou higiênico que já conheceu, porém, com certeza, era um dos mais malandros e confiáveis. Depois de quase se envolver com uma briga de rua, tinha sido null que tinha salvado-o.
— É sobre a null null.
null franziu o cenho.
— A null? Por que está pesquisando sobre ela? Achei que você estivesse com o caso Fox.
— Bem, eu... — se interrompeu — null, eu cheguei a comentar o caso Fox com você?
— Claro que chegou. Mas por que esse interesse na null?
null deu de ombros.
— Só curiosidade.
— Abre o teu olho, novato. A curiosidade matou o gato, e você está lidando com uma serpente.
Eu não cheguei a comentar com ele sobre o caso Fox.
— Acho que ela era inocente no caso Durden.
— Ah, o caso Durden de novo. Já não chega disso? Deixa o Joe descansar em paz!
— Mas eu estou falando sério! Ela pagou por um crime que não se tem certeza que cometeu, e talvez o assassino ainda esteja por aí, null.
— Deixe esse assunto quieto. O caso já não foi arquivado? E ela já não voltou? E você está com o Fox agora.
null ficou em silêncio e, segundos depois, sorrindo, falou:
— Acabei de assumir o caso Durden.
— Há! Essa eu quero ver — disse null, de um modo que null não achou graça — null null, null null e Marla Bronx assumiram o caso, e o jornalista null null vai conseguir concluir.
— Ih, o outro tá achando que é gente — disse null, girando os olhos, o que fez null fazer uma careta de quem também não achou graça — Eu não vou fazer isso sozinho.
— Você e mais quem, null?
— Eu e null.
— Ah sim. E ela sabe disso?
— Não. E eu vou investigá-la exatamente assim, sem ela é saber.
— Você é louco, null... Anda logo que a comida chinesa chegou.
Tenho certeza que não comentei sobre o caso Fox, tanto quanto tenho certeza de que null é inocente.
— null?
— O quê, null?
Ele pareceu em dúvida se falaria para null o que precisava dizer.
— Não confie nessa mulher. Ela é uma aranha, e está atraindo você para a teia dela.
— Que exagero...
— Depois não diga que eu não avisei.
Enquanto desciam as escadas, null se viu tentado em perguntar:
— Hey, null... Quando que eu falei com você sobre o caso Fox?
— Não... Foi você quem me falou.
— Quem foi?
— Marla Bronx.
null franziu o cenho.
— Qual é a cor dos olhos dela?
— Ela ligou para cá.
— E queria falar com você, é?
— Ih, agora o outro tá achando que é gente... Se você não andar logo, vou comer todo o seu yakisoba.
— Pode ficar com ele. Vou tentar descobrir mais algumas coisas sobre a null.
— Então vai passar a noite com fome. Qualquer coisa que queira saber, pode me perguntar.
null ia fechar a porta atrás de si, quando null chamou-o de novo.
— Que foi?
— Vou precisar da sua ajuda.
— Para o que precisar, cara.
— Vamos organizar uma festa.
So why should I care 'bout my bad reputation anyway?
Capítulo 4 — In the flesh
So ya, thought ya, might like to go to the show… To feel the warm thrill of confusion that space cadet glow…
null acreditava que era difícil causar uma primeira impressão. null ainda acreditava que é mais difícil mantê-la. Foi com esses pensamentos que os dois acordaram para trabalhar na manhã seguinte.
Tinha tido um ataque epilético, conforme a enfermeira null examinou. Nunca tinha aconteceido antes, mas, depois de tomar um remédio para dormir, null logo apagou novamente. Contudo, dormiu mal. E acordou de manhã em silêncio, não querendo acordar um null com a mão enfaixada, que insistira para continuar dormindo ao lado dela. Abraçou-a a noite inteira.
No sonho com Joe, os sentimentos que teve quando conheceu null tinham voltado. O sonho foi parcialmente fiel à realidade, quando um psicólogo famoso do estado visitou Longview para uma palestra e uma fã foi vê-lo, depois de um quase assalto. A conversa entre os dois fora quase igual mesmo, o que fez null sorrir, lembrando-se. Quis amar null, porém, percebeu como era algo arriscado.
Ela levantou da cama em silêncio, ainda perturbada. Serviu-se de um café e sentou-se à mesa, já com suas calças vestidas.
— Agora resolveu ter responsabilidade com o trabalho? — perguntou a voz doce vinda do corredor.
null ergueu o olhar para null, que estava parada perto da porta do quarto.
— Uma hora a gente toma vergonha na cara.
null riu e foi até a pia servir-se de café. A falta de ruídos tornou o clima mais pesado do que o normal.
— O que foi aquilo, hein? — perguntou null finalmente, cortando o silêncio. null mordeu o lábio.
— Isso nunca tinha acontecido antes, null. Você sonhou com alguma coisa que te incomodou? De repente foi só um ataque por causa de um pesadelo.
null pensou um pouco, refletindo se deveria mentir ou não.
— Joe. Sonhei com Joe.
— Joe? — null quase deixou a caneca cair — E o que acontecia?
— Não me lembro de muito. Joe, null e Tyler estavam lá.
— Não se lembra?
— Não.
— Sério?
— Também não. Cada detalhe eu lembro nítida e perfeitamente.
null riu.
— Você realmente não muda. Mas, continue, o que eles faziam?
— Joe tinha reféns, e eu deveria salvá-los.
— Quem eram os reféns?
— null, só que no sonho eu não o conhecia. E Tyler.
— Tinha algo de estranho no sonho?
— Não estranho, na verdade. Só o Joe me assediando como ele costumava fazer... — sentiu um peso na consciência. Como poderiam tê-la culpado pela morte de Joe? Sentiu pena pelo rapaz que tanto a irritava, entretanto, logo lembrou-se do que havia acontecido e sentiu raiva dele novamente.
“Boneca de papel.”
— Quem você salvou?
null terminou de tomar seu café.
— Tyler. Eu salvei o Tyler, mas ele me traiu, e acabou matando null. Joe fugiu... E me matou. E acordei.
null começou a sentir sua pele tremendo.
— Não quero sonhar com isso de novo — choramingou.
— Acho difícil que sonhe. Normalmente isso vem com outros sintomas, mas, com você, nunca aconteceu. Quer dizer... — sua voz ameaçou sumir, só que apenas voltou baixa, como se tivesse medo ou vergonha do que viesse a dizer — Só se no Manson...
— Não — cortou null, colocando a caneca na mesa — Nunca aconteceu no Manson.
— Melhor você tentar descobrir logo por que isso aconteceu.
— Eu sei por que aconteceu — disse null, com um pouco de raiva na voz, irritada por que null insistia naquele assunto — O problema vive comigo desde sempre, porém, agora, vou observá-lo mais de perto. Não acho que... Aquilo vá acontecer de novo.
Não, não "ataque epilético". "Aquilo", apenas.
— E qual seria o problema? — perguntou null, com um sorriso torto, já sabendo a resposta.
— É loiro, tem olhos verdes e é o fazedor de problemas.
null suspirou.
— Tyler é realmente um caso perdido — disse, murmurando.
— Ele é o meu caso perdido, obrigada — retrucou null, sorrindo e levantando da mesa — Agora, se me permite, vou voltar à ativa.
— Ah sim. Workaholic — disse null, com um sorrisinho.
— A workaholic que te sustenta, engraçadinha.
null parou na frente do espelho, e, por um instante, não se reconheceu. Agora, tinha uma aparência mais envelhecida, com olheiras e uma pele mais amarelada, quase que adoecida. Não gostava de se ver assim. Era jovem demais para isso.
“Boneca de papel.”
Foi para seu quarto, vestindo o restante de sua roupa e tomando cuidado para não acordar null. O coitado devia estar cansado depois do que aconteceu na noite anterior.
Toda equipe já estava sentada em suas cadeiras na sala de reuniões. null apertava repetidamente o botão de sua caneta, levemente entediado. A maior pergunta que passava por sua mente era qual era a cor do sabre de luz de Luke Skywalker, e, a partir disso, parou para perceber como tudo estava tão chato. Olhou em volta, vendo três mulheres na sala: Julie Stoner, que usava uma blusa social azul e calças sob medida cinzas, com os cabelos castanhos presos em um rabo-de-cavalo baixo e desajeitado, e óculos que disfarçavam seus olhos acinzentados; Marla Bronx, com seus cabelos ruivos soltos, usando uma blusa branca e calças sociais pretas, parecendo concentrada no caderno de anotações em suas mãos; e uma outra que ele não conhecia. Tinha os cabelos soltos e caindo por seus ombros, olhos cintilantes e usava uma blusa cinza com uma saia de cintura alta preta, e uma sandália de salto baixo e fino. Seu rosto era harmonioso, e ele percebeu que ela também o observava. Desviou o olhar com o cenho franzido, não por vergonha, mas por se sentir estranhamente observado por aquela bela moça. Ela parecia interessada em saber o que ele estava olhando, e o mirava como se pudesse ler sua mente. Como se ele não fosse um jornalista invisível naquele meio, mas sim, uma peça fundamental em todo aquele caso.
null null levantou-se lentamente, quase desfilando pela sala e cortando a linha de pensamento de null, com um sorriso confiante, indo até o projetor de imagens. Todas as mulheres ali reunidas, até Julie, chegaram a soltar um pequeno respiro enquanto homens como null rodaram os olhos discretamente.
null esticou a mão e apertou uma tecla, fazendo a fotografia de uma Samantha Fox viva aparecer na tela de projeção.
— Enquanto a detetive null não chega, podemos dar início ao trabalho — fez uma pausa, lembrando do que poderia estar havendo com null para que ela se atrasasse no primeiro dia de investigações — Todos receberam relatórios com os detalhes do crime. Mas, antes, detalharei a vítima — e apontou para Samantha.
Realmente, mesmo aquela podendo não ser a melhor foto de seu acervo, ela fazia jus à beleza da dona. Os cabelos de Samantha eram negros como ébano, porém brilhantes e sedosos, chegando à altura de seu busto, com ondas. A pele clara lhe destacava os cabelos e os olhos, azuis com pequenas manchas acinzentadas, quase como cristais. Seu rosto era fino, assim como seu nariz e seus lábios avermelhados. Incrivelmente, sorria com simplicidade, e não como se fosse a dona do mundo. Parecia uma mulher simples, já que a foto mostrava sua camiseta branca sem desenhos e sua pele sem maquiagem. null não conteve um pequeno suspiro de exclamação. Um dos motivos para null odiá-la, provavelmente, era sua beleza. Se bem que beleza era algo que a null não precisava invejar.
“Mas afinal, onde deve estar...”
Nesse momento, null abriu a porta lentamente, atraindo todos os olhares para si. Todos que estavam na mesa não resistiram observar a jovem mulher, que usava uma blusa de manga compridas vermelha, de ombro, do Homem-Aranha, calças cinzas e saltos baixos, pretos. Ela e a bela moça que estava na sala trocaram um olhar simpático, um dos mais amistosos que null já vira em null.
— “Uniforme” não está no seu vocabulário? — perguntou Marla Bronx, que estava tomando um café distante da mesa, virando os olhos para null.
— Três meses afastada e nem mandam meu terno para uma lavanderia. Realmente, lamentável. Vou te tirar pontos por isso, null — ela disse, brincando, sentando na cadeira da ponta.
— Essa cadeira é minha — disse Marla.
null olhou para a cadeira e fez bico.
— Ah, acontece, Marlinha. As pessoas pegam seu lugar.
— null — chamou null, tentando se mostrar profissional, interrompendo a briga e atraindo a atenção de null. Esta, por outro lado, finalizou o assunto:
— Se quiserem me enfiar num uniforme, pelo menos ele não pode me deixar com quarenta anos. Prossiga, null — ela voltou seu olhar para o amigo, apoiando o cotovelo na mesa e a cabeça em sua mão, em uma pose que parecia querer provocar o detetive.
Diante disso, null limitou-se a rir. Parecia aqueles novatos que brigavam entre si para impressionar o chefe. No caso, os chefes brigavam entre si para impressionar o novato.
— Está familiarizada com essa foto, null? — perguntou null, com um ar de desafio, querendo provocá-la.
null virou os olhos, afundando na cadeira com certa impaciência.
— Até demais. Limpa a baba, null — brincou ela, percebendo que ele também estava hipnotizado pela mulher da foto. Fugindo de seus divertidos devaneios, null sentiu sua pele corar — Tira isso, null, por favor.
— Bem, acho que vai se arrepender de ter me pedido isso — disse ele, esticando a mão para trocar o slide.
A foto seguinte permaneceria na mente de todos ali para sempre. Decerto era a mais perturbadora que todos naquela sala jamais tinham visto. A forma brutal com que Samantha foi morta com certeza era trabalho de um assassino desumano. O belo rosto da moça parecia gritar, mas desistindo de tal ato, aceitando seu destino. O corpo estava em uma pose estranha, com as pernas abertas e os braços próximos da barriga, como se tentassem tirar da mesma a dor que sentia. A pele de suas mãos estava perfeita se comparada à de sua barriga: esta estava em carne viva, aberta desde seus órgãos mais internos até o exterior. Parecia queimada, mas null percebeu que era algo além disso.
— Não temos muito a descobrir a partir disso — declarou null — Não fizeram muitos exames ainda. O corpo está no necrotério e vai começar a ser examinado hoje.
— Já temos até demais — disse null, atraindo todos os olhares para si. Julie sorriu com satisfação, orgulho.
— Temos? — perguntou null.
— Olhem só a carne da barriga dela.
— De verdade, evitamos olhar — murmurou null, com cara de nojo, fazendo uma curta e baixa onda de risadinhas soar. null pareceu não ter ouvido o comentário, e prosseguiu:
— A parte mais interna da barriga está muito mais... Queimada que a mais externa. O que quer que tenham colocado na barriga dela, com certeza, explodiu a barriga dela.
— O que quer dizer com isso?
null levantou-se e andou até a tela, apontando para a barriga de Samantha.
— Olhe só. Aqui está muito mais queimado, bem no estômago.
— E o que você tira a partir disso? — perguntou Marla, desviando os olhares de null e null entre si para ela.
A sala ficou em silêncio. Marla deu de ombros, sentando novamente em sua cadeira na ponta e cruzando as pernas.
— Ora, se vai fazer uma observação dessas, já deve ter uma teoria em mente, não, null?
null também tinha sido pego de surpresa, e limitou-se apenas a não se intrometer na troca de olhares intensa entre Marla e null. A segunda mordeu o lábio.
Nesse segundo, null já percebeu que null tinha em mente uma investigação bem mais avançada de onde eles todos estavam. Porém, faltava para ela alguma peça, e por isso ela não poderia prosseguir. null parecia o tipo de mulher que não revela seus pensamentos até ter certeza absoluta deles.
— Não, na verdade.
Marla fez uma careta triste e desapontada ao mesmo tempo.
— Bem, é uma pena mesmo, null. Mas, oficial null, prossiga.
null voltou o rosto para null. Trocaram um olhar cúmplice, null percebeu. Por fim, o oficial finalizou enquanto null apoiava o braço em um arquivo da sala, desistindo de sentar-se:
— Só faltou o anúncio oficial dos investigadores do caso. Alguém se interessa?
Uma mão levantou-se. A da moça que trocara olhares com null quando esta entrou na sala.
— null? Vai querer participar?
— Por que não, null? Faz tempo que não faço investigações nas ruas.
null apoiou-se na mesa e anotou o nome numa folha branca.
“Curioso. null é canhoto.” Observou null. null fazia círculos aleatórios em um papel em cima do arquivo.
— Quem mais? Apenas eu e null?
— Me coloque nessa também, null. Não perderia o caso Fox por nada, depois de meu sucesso com o caso Durden — disse Marla.
Todos ouviram um som de lápis quebrando, e olharam para null.
— Desculpem, tive uma noite... Complicada — ela emendou, jogando as metades do lápis na lixeira.
Marla deu uma risada tossida, que null ignorou.
— Eu, null e Marla? É isso?
null esperou que null se manifestasse, mas isso não aconteceu. Ela apenas observou todos na sala, esperando mais alguém se candidatar.
— null? — perguntou null, olhando para ela — Não vai querer?
— Ãhn? — null perguntou, distraída, apesar de null saber exatamente o que ela estava planejando — Ah, desculpe. Vou passar o caso Fox. Que tal deixá-lo com pessoas mais qualificadas? — ela olhou para Marla, que lhe deu um sorriso falso — Só tome cuidado. O verdadeiro culpado pode acabar preso dessa vez, não vamos querer que isso aconteça, não?
O clima na sala pesou completamente. null e null deram um sorrisinho, já que estavam do lado de null.
— Bem, se é assim... Marla e null, vamos começar com as investigações daqui a uma hora, arrumem suas coisas — declarou null — Dispensados.
Todos se levantaram de seus lugares e guardaram suas pastas. null deu um último clique na caneta e riu torto, percebendo claramente que null estava olhando-o. Os detetives foram, aos poucos, deixando a sala, até ficarem apenas null e null.
Ele desenhou em seus próprios lábios um pequeno sorriso, jogando a isca. Uniu suas coisas em um pequeno monte de relatórios, ignorando-as completamente. Percebeu que null estava realmente perturbada, como se algo bem sério tivesse acontecido. Talvez isso tivesse contribuído para sua pergunta:
— O que foi? Por que está rindo?
— Eu vi o que você fez ali — ele observou, sem erguer o olhar.
— Pudera. Não desgrudava os olhos de mim.
null riu, impressionando null. Aquela não era a reação que ela imaginava que ele fosse ter.
— É meu trabalho, null — ser firme daquele jeito com ela era algo inconcebível, mas, para chegar onde queria, e precisava chegar, era necessário — Fico de olho nas pessoas para reparar blefes.
— Sei. Acho que mais alguém nessa sala também trabalha assim.
Ele se viu pego de surpresa. O genial e o brilhante trocando palavras. Ele ergueu os olhos.
— Não quis ofender — ele foi na defensiva.
— Eu sei que não. O que você quis, então? — ela cruzou os braços.
null deu de ombros, levantando-se. null recuou, ficando contra a parede.
— Calma, eu não vou te chantagear ou algo assim. Longe de mim querer fazer isso com a Serpente Vigilante — disse ele — Não quero levar um fora que nem os que você deu em Marla ontem.
Ela tentou manter-se firme:
— Não achei que fosse.
— Então por que recuou quando me aproximei... Assim? — ele deu um passo mais longo, ficando frente a frente com null. Ela podia sentir seu perfume forte, incrivelmente hipnotizante, e a intensidade de seu olhar.
Falar com null não era como falar com null. Com o oficial, era fácil, afinal, ele achava que só por que era grande, era dois. Só que null fazia bem o dever de casa. Esse sim sabia do que era capaz, sabia usar a mente. Talvez tão bem quanto ela, talvez melhor.
Finalmente alguém à altura de null. Talvez isso fosse bom, talvez fosse ruim.
— A grande null ficou sem palavras? — ele perguntou, esticando o braço até apoiá-lo na parede, deixando-a sem poder escapar.
null percebeu que devia estar há meio minuto sem falar qualquer coisa, apenas olhando-o nos olhos, nervosa. Olhou para seus cabelos, jogados sem jeito, e sua camiseta preta. Ele estava com um sorriso torto no rosto. Um sorriso que lembrava completamente o de...
— Não vai participar do caso Fox, é? — ele perguntou, enfim.
Ela soltou um suspiro aliviado, por ter ouvido uma pergunta tão simples. Mas claro! O que mais ele iria perguntar?
“Boneca de papel.”
— Claro que vou — ela ficou mais calma, erguendo o corpo.
null tirou o braço da parede e cruzou com o outro. Assustada, ela também cruzou os seus, sem tirar seus olhos fixos dos dele.
— Sozinha?
— Claro que sim. Eu consigo.
— Sei. Mesmo não fazendo ideia de por que Samantha estava com a barriga completamente detonada.
Ela engoliu em seco.
— Você faz?
Ele deu de ombros. Ela prosseguiu:
— Eu vou descobrir isso. Aposto que você não percebeu que a barriga tinha na verdade explodido, e não somente queimado.
— Não aposte o que você não tem como ter certeza, null.
— E você tem alguma? — sua voz tornou-se morna — Podemos trabalhar muito bem, null. Eu e você.
— Não venha com “null” para mim — ele disse, rindo, não querendo parecer grosseiro — Eu não sou o null, o oficial “braços firmes e cérebro mole” — null não deixou de rir da brincadeira — Se eu sei algo, e você sabe de algo, é para trabalharmos juntos... Então, não vou dizer nada agora.
— Quando, então?
Ele pareceu respirar fundo. É agora ou nunca.
— Esteja no pátio atrás da delegacia às oito da noite, hoje... E só uma dica: eu disse que a barriga da Sam estava detonada... Não o estômago.
E saiu da sala de reuniões com as mãos nos bolsos, deixando null atônita para trás.
“Esse cara não é como os outros. Esse sim é um cara, não um menino. E se ele realmente for... Vamos ter que trabalhar juntos mesmo.”
Engoliu em seco.
“O que ele quis dizer com ‘barriga’?”
— Isso aí, novato — disse null, assim que null saiu da sala. O jornalista levantou as mãos, demonstrando a surpresa.
— O quê? — tentou driblar o susto recolocando as mãos nos bolsos.
— Eu ouvi um pedaço da conversa... E é assim que se faz, null. Não deixe ela te tratar como ela me trata...
— Por que ela te trata assim, oficial? — perguntou null, rápido, apoiando-se na porta com as costas.
null ia dizer algo, mas mordeu o lábio e riu, dando as costas para o jornalista.
— Você quase me pegou, null. Não vai ser fácil assim. Talvez daqui a uns... Anos.
null riu, acompanhando-o.
— Me chame só de null, oficial.
— Só null. E aquela garota... Prepare-se. Ela vai ser problema.
— Relaxe. Já solucionei piores.
— Não null... Bronx.
— Marla comunicou o null sobre o caso Fox? — perguntou null, franzindo o cenho.
— Ah, aquele seu amigo? Se dependesse da Marla, a cidade inteira saberia do caso Fox antes mesmo que eu. A diferença entre Bronx e null é que esta tem certeza de que pessoas não gostam dela, enquanto a outra... Bem...
— Entendi — disse null, rindo — E aquela outra, que também está fazendo parte do caso?
— Ah, a null? — perguntou null — Aquela garota sim... É um anjo que caiu do céu.
null lembrou-se da bela moça que também entrou no caso Fox. Com certeza, era bem bonita.
— Aquela festa que você falou antes da reunião... Vai acontecer? — perguntou null.
O jornalista deu de ombros.
— Julie não se opôs, e todos gostaram da ideia. Às sete. Vejo o senhor mais tarde? — perguntou, indo para sua sala.
null riu.
— Pode apostar. Eu, null e, com certeza, Marla.
null já tinha uma sala nova. Não era nem de longe a que uma detetive gostaria de ter, porém, para ela, era a ideal.
— Olá, colega de sala — disse null, da porta, para null.
— Sentiu saudades de mim? — perguntou a moça.
— Acredite, mais do que certas pessoas que eu conheço — as duas se abraçaram por alguns segundos — Perdi muito?
— Só aquele pedaço de mal caminho que virou o novo repórter policial daqui. O cara quer cobrir o caso Fox todinho... E olha, se ele quiser cobrir outra coisa, estou livre.
null riu.
— Ah, vai dizer que você não o achou bonitinho?
— Eu tenho noivo, null, sou uma moça comprometida — disse null, erguendo o anel.
— Pois sim, senhorita null null. Mas falemos de trabalho. Por que não quis participar do caso Fox? null deve estar possesso, já que ele só conseguiu sua liberação no Manson caso você ajudasse no caso...
— Eu vou dar meus toques. Porque eu tenho uma filosofia, null, de nunca assumir um caso sem finalizar o outro. Filosofia essa que nossa amada Bronx não tem.
— E que caso não finalizado seria esse? — perguntou null, cruzando os braços. Tinha feições de uma adolescente, não de uma mulher da mesma idade que null. Era linda, isso era óbvio, com um rosto gracioso. De um verdadeiro anjo.
— O Durden, óbvio. Você sabe que não fui eu, não é, null?
— Claro que não foi. Eu te conheço, null. Só que você não tinha nenhum álibi.
— Exato. Vou dar meu jeitinho.
Ouviram um som de vários guardas indo até a recepção da delegacia. As duas ficaram alarmadas, e se levantaram para verem o que estava acontecendo.
No centro da sala, estavam três policiais para segurar um único homem. O pobre coitado estava bambo, precisando realmente ser erguido para conseguir ficar de pé. O cheiro de bebida era forte, e o infeliz tinha uma grande mancha roxa no rosto, provavelmente vinda de uma bela surra. Qualquer pessoa normal concluiria que ele devia ter merecido o soco. Mas null não.
— null, deixe-o lá fora — ordenou Julie.
— Sra. Stoner, eu preciso falar com a senhora! — gritou o homem.
null marchou até onde ele estava e ergueu-o pelo braço, apertando-o a pele fortemente.
— Eu cuido dele, Julie — disse, andando com o homem até fora da delegacia, envolvendo seu próprio pescoço com o braço mole dele. Com dificuldade, desceu as escadas da delegacia. A rua estava deserta. Apoiou Tyler contra a parede, e apontou com o indicador para o rosto dele.
— O que você veio fazer aqui? — perguntou entre dentes.
— null, pelo amor de Deus, você precisa me ajudar — sua voz era desesperada, o que exigia de null uma força maior para continuar firme. Podia ver alguns policiais observando-a pela janela.
Ninguém poderia saber que aquele beberrão era Tyler null, irmão caçula de null.
— Tyler, você próprio disse que não quer me ver na delegacia. O que deu em você? Está fedendo a bebida!
— Eu não estou bêbado, null.
— Está quase a Amy Winehouse!
— Não, null! Eu fui agredido. Esse cheiro de bebida foi da garrafa que jogaram na minha cabeça!
— Tyler, por favor, estou sem tempo e sem paciência para essas coisas. Diga logo o que aconteceu.
— null! — ele segurou-a pelos ombros — É verdade! Esse soco foi dado na covardia. Ele me atacou por trás, com uma garrafada na cabeça. Quando caí, ele me virou e me deu uma surra. Jogou isso em cima de mim e foi embora.
Ergueu algo do bolso de seu casaco. Quando viu, null ficou sem reação. Era uma fotografia.
— Tyler... Você não conseguiu ver quem te deu isso?
— Não. Acho que era um homem, mas nem tenho muita certeza. Devia ser, para me bater assim.
— Acertaram uma garrafa na sua cabeça, não fique se gabando — ela arrancou a foto da mão do irmão e guardou-a no bolso — Vá para o hospital, avise para null o que aconteceu. E depois vá para casa.
— Nossa casa?
null mordeu o lábio.
— É. Nossa casa.
Tyler deu um sorriso torto e foi embora. null viu-o andar pela calçada, até sumir em uma esquina. Comprimiu os lábios e sentiu a pele da boca praticamente moída. Suas pernas estavam prontas para vacilar.
“Quem tirou essa foto pode estar do meu lado... Ou contra mim. Não quero ser a última a descobrir isso.”
Deu meia-volta e subiu as escadas para a delegacia. Abriu a porta de vidro e deu passos longos e rápidos até sua sala e de null. Julie e a moça estavam ali.
— null, conhecia aquele homem?
— Ah, era só um amigo do null. Já dei meu jeito.
— Não pode acertar contas aqui, null... — disse Julie, de braços cruzados.
— Não foi um acerto de contas, Julie. Já está resolvido, ele não vai mais te perturbar.
Sentou-se à mesa, claramente incomodada. Julie deu de ombros e saiu da sala.
— O que foi, null? — perguntou a amiga, tocando-lhe o ombro — Essa história de “amigo do null” não me engana.
— Nada, null. Eu dormi mal essa noite.
— Tenho aspirinas aqui, se quiser.
— Tenho as minhas, obrigada, querida.
null deu de ombros e colocou os fones de ouvido, para voltar a ler em paz os arquivos de Samantha Fox. Com as mãos tremendo, null segurou a foto.
Eram ela e Joe Durden no dia da morte de Joe. Em uma foto polaroid. Embaixo estava escrito em uma letra cursiva linda:
“Every breath you take...”
Na imagem, estavam null e Joe na mesma captura. Tinha sido tirada do corredor do hotel, e mostrava a moça de costas, parecendo fugir. Mas Joe ainda estava vivo. Atrás da foto, estava uma carinha feliz.
— Ainda não sei que roupa vou usar hoje à noite... — queixou-se null.
— Jeans? — perguntou null, mal prestando atenção na amiga.
— null! Vai dizer que não vai vir à festa de Halloween hoje à noite. O nosso pequeno Brad Pitt que organizou de última hora. A delegacia toda está sabendo.
null deu um sorriso torto. Segurou-se para sua risada não sair alta demais.
— Ah, sim, null, posso vir sim. Vou arrumar uma fantasia e venho. Que horas?
— Sete. Vai até a hora que você conseguir se aguentar em pé. Pode chamar um acompanhante de fora.
“Deve ter sido por isso que null marcou de me encontrar aqui às oito.”
Esticou a mão e mandou uma mensagem para null, falando do acontecido. Ele respondeu que estava ocupado e não poderia ir.
null terminou o que tinha que fazer na delegacia e chegou em casa às três da tarde. Abriu a porta e andou pela sala até seu quarto, no escuro, pois por algum motivo a lâmpada não estava funcionando.
Acendeu a luz. Penduradas por barbantes no teto, estavam suspensas várias fotografias polaroid de null e Joe Durden bem antes de sua morte, em um clima amistoso. No centro do quarto, tinha uma boneca de porcelana suspensa por um barbante... Com o rosto apagado.
“Boneca de papel”.
Não havia nada fora do lugar. Nada foi roubado, a cama estava arrumada. Quando olhou para a cabeceira, havia mais fotos coladas, essas causando maior medo em null. Eram fotografias dela andando na rua no dia anterior. Embaixo de cada uma, letras que formavam uma frase:
“I’ll be watching you.”
Aquela música nunca soou tão sombria para null null.
Segurou o telefone e, tremendo, discou o número de null. Ninguém atendeu.
null conferiu seu telefone novamente. Suava frio, pois sabia que não conseguiria evitar o que viesse a acontecer.
Não podia ter feito aquilo. Sabia que não podia.
Seu consultório estava vazio, a não ser por ele. Segurou a pasta em suas mãos e tremeu. Abriu-a lentamente, vendo todas as fotos ali presentes.
“Tem alguém me observando.”
Ouviu violentas batidas na porta. Jogou a pasta de qualquer maneira dentro da gaveta e pôs-se de pé.
— Pode entrar — mandou.
Entrou na sala a delegada Julie Stoner.
— Precisamos conversar, Sr. null. Sério.
I've got some bad news for you, sunshine…
null acreditava que era difícil causar uma primeira impressão. null ainda acreditava que é mais difícil mantê-la. Foi com esses pensamentos que os dois acordaram para trabalhar na manhã seguinte.
Tinha tido um ataque epilético, conforme a enfermeira null examinou. Nunca tinha aconteceido antes, mas, depois de tomar um remédio para dormir, null logo apagou novamente. Contudo, dormiu mal. E acordou de manhã em silêncio, não querendo acordar um null com a mão enfaixada, que insistira para continuar dormindo ao lado dela. Abraçou-a a noite inteira.
No sonho com Joe, os sentimentos que teve quando conheceu null tinham voltado. O sonho foi parcialmente fiel à realidade, quando um psicólogo famoso do estado visitou Longview para uma palestra e uma fã foi vê-lo, depois de um quase assalto. A conversa entre os dois fora quase igual mesmo, o que fez null sorrir, lembrando-se. Quis amar null, porém, percebeu como era algo arriscado.
Ela levantou da cama em silêncio, ainda perturbada. Serviu-se de um café e sentou-se à mesa, já com suas calças vestidas.
— Agora resolveu ter responsabilidade com o trabalho? — perguntou a voz doce vinda do corredor.
null ergueu o olhar para null, que estava parada perto da porta do quarto.
— Uma hora a gente toma vergonha na cara.
null riu e foi até a pia servir-se de café. A falta de ruídos tornou o clima mais pesado do que o normal.
— O que foi aquilo, hein? — perguntou null finalmente, cortando o silêncio. null mordeu o lábio.
— Isso nunca tinha acontecido antes, null. Você sonhou com alguma coisa que te incomodou? De repente foi só um ataque por causa de um pesadelo.
null pensou um pouco, refletindo se deveria mentir ou não.
— Joe. Sonhei com Joe.
— Joe? — null quase deixou a caneca cair — E o que acontecia?
— Não me lembro de muito. Joe, null e Tyler estavam lá.
— Não se lembra?
— Não.
— Sério?
— Também não. Cada detalhe eu lembro nítida e perfeitamente.
null riu.
— Você realmente não muda. Mas, continue, o que eles faziam?
— Joe tinha reféns, e eu deveria salvá-los.
— Quem eram os reféns?
— null, só que no sonho eu não o conhecia. E Tyler.
— Tinha algo de estranho no sonho?
— Não estranho, na verdade. Só o Joe me assediando como ele costumava fazer... — sentiu um peso na consciência. Como poderiam tê-la culpado pela morte de Joe? Sentiu pena pelo rapaz que tanto a irritava, entretanto, logo lembrou-se do que havia acontecido e sentiu raiva dele novamente.
“Boneca de papel.”
— Quem você salvou?
null terminou de tomar seu café.
— Tyler. Eu salvei o Tyler, mas ele me traiu, e acabou matando null. Joe fugiu... E me matou. E acordei.
null começou a sentir sua pele tremendo.
— Não quero sonhar com isso de novo — choramingou.
— Acho difícil que sonhe. Normalmente isso vem com outros sintomas, mas, com você, nunca aconteceu. Quer dizer... — sua voz ameaçou sumir, só que apenas voltou baixa, como se tivesse medo ou vergonha do que viesse a dizer — Só se no Manson...
— Não — cortou null, colocando a caneca na mesa — Nunca aconteceu no Manson.
— Melhor você tentar descobrir logo por que isso aconteceu.
— Eu sei por que aconteceu — disse null, com um pouco de raiva na voz, irritada por que null insistia naquele assunto — O problema vive comigo desde sempre, porém, agora, vou observá-lo mais de perto. Não acho que... Aquilo vá acontecer de novo.
Não, não "ataque epilético". "Aquilo", apenas.
— E qual seria o problema? — perguntou null, com um sorriso torto, já sabendo a resposta.
— É loiro, tem olhos verdes e é o fazedor de problemas.
null suspirou.
— Tyler é realmente um caso perdido — disse, murmurando.
— Ele é o meu caso perdido, obrigada — retrucou null, sorrindo e levantando da mesa — Agora, se me permite, vou voltar à ativa.
— Ah sim. Workaholic — disse null, com um sorrisinho.
— A workaholic que te sustenta, engraçadinha.
null parou na frente do espelho, e, por um instante, não se reconheceu. Agora, tinha uma aparência mais envelhecida, com olheiras e uma pele mais amarelada, quase que adoecida. Não gostava de se ver assim. Era jovem demais para isso.
“Boneca de papel.”
Foi para seu quarto, vestindo o restante de sua roupa e tomando cuidado para não acordar null. O coitado devia estar cansado depois do que aconteceu na noite anterior.
Toda equipe já estava sentada em suas cadeiras na sala de reuniões. null apertava repetidamente o botão de sua caneta, levemente entediado. A maior pergunta que passava por sua mente era qual era a cor do sabre de luz de Luke Skywalker, e, a partir disso, parou para perceber como tudo estava tão chato. Olhou em volta, vendo três mulheres na sala: Julie Stoner, que usava uma blusa social azul e calças sob medida cinzas, com os cabelos castanhos presos em um rabo-de-cavalo baixo e desajeitado, e óculos que disfarçavam seus olhos acinzentados; Marla Bronx, com seus cabelos ruivos soltos, usando uma blusa branca e calças sociais pretas, parecendo concentrada no caderno de anotações em suas mãos; e uma outra que ele não conhecia. Tinha os cabelos soltos e caindo por seus ombros, olhos cintilantes e usava uma blusa cinza com uma saia de cintura alta preta, e uma sandália de salto baixo e fino. Seu rosto era harmonioso, e ele percebeu que ela também o observava. Desviou o olhar com o cenho franzido, não por vergonha, mas por se sentir estranhamente observado por aquela bela moça. Ela parecia interessada em saber o que ele estava olhando, e o mirava como se pudesse ler sua mente. Como se ele não fosse um jornalista invisível naquele meio, mas sim, uma peça fundamental em todo aquele caso.
null null levantou-se lentamente, quase desfilando pela sala e cortando a linha de pensamento de null, com um sorriso confiante, indo até o projetor de imagens. Todas as mulheres ali reunidas, até Julie, chegaram a soltar um pequeno respiro enquanto homens como null rodaram os olhos discretamente.
null esticou a mão e apertou uma tecla, fazendo a fotografia de uma Samantha Fox viva aparecer na tela de projeção.
— Enquanto a detetive null não chega, podemos dar início ao trabalho — fez uma pausa, lembrando do que poderia estar havendo com null para que ela se atrasasse no primeiro dia de investigações — Todos receberam relatórios com os detalhes do crime. Mas, antes, detalharei a vítima — e apontou para Samantha.
Realmente, mesmo aquela podendo não ser a melhor foto de seu acervo, ela fazia jus à beleza da dona. Os cabelos de Samantha eram negros como ébano, porém brilhantes e sedosos, chegando à altura de seu busto, com ondas. A pele clara lhe destacava os cabelos e os olhos, azuis com pequenas manchas acinzentadas, quase como cristais. Seu rosto era fino, assim como seu nariz e seus lábios avermelhados. Incrivelmente, sorria com simplicidade, e não como se fosse a dona do mundo. Parecia uma mulher simples, já que a foto mostrava sua camiseta branca sem desenhos e sua pele sem maquiagem. null não conteve um pequeno suspiro de exclamação. Um dos motivos para null odiá-la, provavelmente, era sua beleza. Se bem que beleza era algo que a null não precisava invejar.
“Mas afinal, onde deve estar...”
Nesse momento, null abriu a porta lentamente, atraindo todos os olhares para si. Todos que estavam na mesa não resistiram observar a jovem mulher, que usava uma blusa de manga compridas vermelha, de ombro, do Homem-Aranha, calças cinzas e saltos baixos, pretos. Ela e a bela moça que estava na sala trocaram um olhar simpático, um dos mais amistosos que null já vira em null.
— “Uniforme” não está no seu vocabulário? — perguntou Marla Bronx, que estava tomando um café distante da mesa, virando os olhos para null.
— Três meses afastada e nem mandam meu terno para uma lavanderia. Realmente, lamentável. Vou te tirar pontos por isso, null — ela disse, brincando, sentando na cadeira da ponta.
— Essa cadeira é minha — disse Marla.
null olhou para a cadeira e fez bico.
— Ah, acontece, Marlinha. As pessoas pegam seu lugar.
— null — chamou null, tentando se mostrar profissional, interrompendo a briga e atraindo a atenção de null. Esta, por outro lado, finalizou o assunto:
— Se quiserem me enfiar num uniforme, pelo menos ele não pode me deixar com quarenta anos. Prossiga, null — ela voltou seu olhar para o amigo, apoiando o cotovelo na mesa e a cabeça em sua mão, em uma pose que parecia querer provocar o detetive.
Diante disso, null limitou-se a rir. Parecia aqueles novatos que brigavam entre si para impressionar o chefe. No caso, os chefes brigavam entre si para impressionar o novato.
— Está familiarizada com essa foto, null? — perguntou null, com um ar de desafio, querendo provocá-la.
null virou os olhos, afundando na cadeira com certa impaciência.
— Até demais. Limpa a baba, null — brincou ela, percebendo que ele também estava hipnotizado pela mulher da foto. Fugindo de seus divertidos devaneios, null sentiu sua pele corar — Tira isso, null, por favor.
— Bem, acho que vai se arrepender de ter me pedido isso — disse ele, esticando a mão para trocar o slide.
A foto seguinte permaneceria na mente de todos ali para sempre. Decerto era a mais perturbadora que todos naquela sala jamais tinham visto. A forma brutal com que Samantha foi morta com certeza era trabalho de um assassino desumano. O belo rosto da moça parecia gritar, mas desistindo de tal ato, aceitando seu destino. O corpo estava em uma pose estranha, com as pernas abertas e os braços próximos da barriga, como se tentassem tirar da mesma a dor que sentia. A pele de suas mãos estava perfeita se comparada à de sua barriga: esta estava em carne viva, aberta desde seus órgãos mais internos até o exterior. Parecia queimada, mas null percebeu que era algo além disso.
— Não temos muito a descobrir a partir disso — declarou null — Não fizeram muitos exames ainda. O corpo está no necrotério e vai começar a ser examinado hoje.
— Já temos até demais — disse null, atraindo todos os olhares para si. Julie sorriu com satisfação, orgulho.
— Temos? — perguntou null.
— Olhem só a carne da barriga dela.
— De verdade, evitamos olhar — murmurou null, com cara de nojo, fazendo uma curta e baixa onda de risadinhas soar. null pareceu não ter ouvido o comentário, e prosseguiu:
— A parte mais interna da barriga está muito mais... Queimada que a mais externa. O que quer que tenham colocado na barriga dela, com certeza, explodiu a barriga dela.
— O que quer dizer com isso?
null levantou-se e andou até a tela, apontando para a barriga de Samantha.
— Olhe só. Aqui está muito mais queimado, bem no estômago.
— E o que você tira a partir disso? — perguntou Marla, desviando os olhares de null e null entre si para ela.
A sala ficou em silêncio. Marla deu de ombros, sentando novamente em sua cadeira na ponta e cruzando as pernas.
— Ora, se vai fazer uma observação dessas, já deve ter uma teoria em mente, não, null?
null também tinha sido pego de surpresa, e limitou-se apenas a não se intrometer na troca de olhares intensa entre Marla e null. A segunda mordeu o lábio.
Nesse segundo, null já percebeu que null tinha em mente uma investigação bem mais avançada de onde eles todos estavam. Porém, faltava para ela alguma peça, e por isso ela não poderia prosseguir. null parecia o tipo de mulher que não revela seus pensamentos até ter certeza absoluta deles.
— Não, na verdade.
Marla fez uma careta triste e desapontada ao mesmo tempo.
— Bem, é uma pena mesmo, null. Mas, oficial null, prossiga.
null voltou o rosto para null. Trocaram um olhar cúmplice, null percebeu. Por fim, o oficial finalizou enquanto null apoiava o braço em um arquivo da sala, desistindo de sentar-se:
— Só faltou o anúncio oficial dos investigadores do caso. Alguém se interessa?
Uma mão levantou-se. A da moça que trocara olhares com null quando esta entrou na sala.
— null? Vai querer participar?
— Por que não, null? Faz tempo que não faço investigações nas ruas.
null apoiou-se na mesa e anotou o nome numa folha branca.
“Curioso. null é canhoto.” Observou null. null fazia círculos aleatórios em um papel em cima do arquivo.
— Quem mais? Apenas eu e null?
— Me coloque nessa também, null. Não perderia o caso Fox por nada, depois de meu sucesso com o caso Durden — disse Marla.
Todos ouviram um som de lápis quebrando, e olharam para null.
— Desculpem, tive uma noite... Complicada — ela emendou, jogando as metades do lápis na lixeira.
Marla deu uma risada tossida, que null ignorou.
— Eu, null e Marla? É isso?
null esperou que null se manifestasse, mas isso não aconteceu. Ela apenas observou todos na sala, esperando mais alguém se candidatar.
— null? — perguntou null, olhando para ela — Não vai querer?
— Ãhn? — null perguntou, distraída, apesar de null saber exatamente o que ela estava planejando — Ah, desculpe. Vou passar o caso Fox. Que tal deixá-lo com pessoas mais qualificadas? — ela olhou para Marla, que lhe deu um sorriso falso — Só tome cuidado. O verdadeiro culpado pode acabar preso dessa vez, não vamos querer que isso aconteça, não?
O clima na sala pesou completamente. null e null deram um sorrisinho, já que estavam do lado de null.
— Bem, se é assim... Marla e null, vamos começar com as investigações daqui a uma hora, arrumem suas coisas — declarou null — Dispensados.
Todos se levantaram de seus lugares e guardaram suas pastas. null deu um último clique na caneta e riu torto, percebendo claramente que null estava olhando-o. Os detetives foram, aos poucos, deixando a sala, até ficarem apenas null e null.
Ele desenhou em seus próprios lábios um pequeno sorriso, jogando a isca. Uniu suas coisas em um pequeno monte de relatórios, ignorando-as completamente. Percebeu que null estava realmente perturbada, como se algo bem sério tivesse acontecido. Talvez isso tivesse contribuído para sua pergunta:
— O que foi? Por que está rindo?
— Eu vi o que você fez ali — ele observou, sem erguer o olhar.
— Pudera. Não desgrudava os olhos de mim.
null riu, impressionando null. Aquela não era a reação que ela imaginava que ele fosse ter.
— É meu trabalho, null — ser firme daquele jeito com ela era algo inconcebível, mas, para chegar onde queria, e precisava chegar, era necessário — Fico de olho nas pessoas para reparar blefes.
— Sei. Acho que mais alguém nessa sala também trabalha assim.
Ele se viu pego de surpresa. O genial e o brilhante trocando palavras. Ele ergueu os olhos.
— Não quis ofender — ele foi na defensiva.
— Eu sei que não. O que você quis, então? — ela cruzou os braços.
null deu de ombros, levantando-se. null recuou, ficando contra a parede.
— Calma, eu não vou te chantagear ou algo assim. Longe de mim querer fazer isso com a Serpente Vigilante — disse ele — Não quero levar um fora que nem os que você deu em Marla ontem.
Ela tentou manter-se firme:
— Não achei que fosse.
— Então por que recuou quando me aproximei... Assim? — ele deu um passo mais longo, ficando frente a frente com null. Ela podia sentir seu perfume forte, incrivelmente hipnotizante, e a intensidade de seu olhar.
Falar com null não era como falar com null. Com o oficial, era fácil, afinal, ele achava que só por que era grande, era dois. Só que null fazia bem o dever de casa. Esse sim sabia do que era capaz, sabia usar a mente. Talvez tão bem quanto ela, talvez melhor.
Finalmente alguém à altura de null. Talvez isso fosse bom, talvez fosse ruim.
— A grande null ficou sem palavras? — ele perguntou, esticando o braço até apoiá-lo na parede, deixando-a sem poder escapar.
null percebeu que devia estar há meio minuto sem falar qualquer coisa, apenas olhando-o nos olhos, nervosa. Olhou para seus cabelos, jogados sem jeito, e sua camiseta preta. Ele estava com um sorriso torto no rosto. Um sorriso que lembrava completamente o de...
— Não vai participar do caso Fox, é? — ele perguntou, enfim.
Ela soltou um suspiro aliviado, por ter ouvido uma pergunta tão simples. Mas claro! O que mais ele iria perguntar?
“Boneca de papel.”
— Claro que vou — ela ficou mais calma, erguendo o corpo.
null tirou o braço da parede e cruzou com o outro. Assustada, ela também cruzou os seus, sem tirar seus olhos fixos dos dele.
— Sozinha?
— Claro que sim. Eu consigo.
— Sei. Mesmo não fazendo ideia de por que Samantha estava com a barriga completamente detonada.
Ela engoliu em seco.
— Você faz?
Ele deu de ombros. Ela prosseguiu:
— Eu vou descobrir isso. Aposto que você não percebeu que a barriga tinha na verdade explodido, e não somente queimado.
— Não aposte o que você não tem como ter certeza, null.
— E você tem alguma? — sua voz tornou-se morna — Podemos trabalhar muito bem, null. Eu e você.
— Não venha com “null” para mim — ele disse, rindo, não querendo parecer grosseiro — Eu não sou o null, o oficial “braços firmes e cérebro mole” — null não deixou de rir da brincadeira — Se eu sei algo, e você sabe de algo, é para trabalharmos juntos... Então, não vou dizer nada agora.
— Quando, então?
Ele pareceu respirar fundo. É agora ou nunca.
— Esteja no pátio atrás da delegacia às oito da noite, hoje... E só uma dica: eu disse que a barriga da Sam estava detonada... Não o estômago.
E saiu da sala de reuniões com as mãos nos bolsos, deixando null atônita para trás.
“Esse cara não é como os outros. Esse sim é um cara, não um menino. E se ele realmente for... Vamos ter que trabalhar juntos mesmo.”
Engoliu em seco.
“O que ele quis dizer com ‘barriga’?”
— Isso aí, novato — disse null, assim que null saiu da sala. O jornalista levantou as mãos, demonstrando a surpresa.
— O quê? — tentou driblar o susto recolocando as mãos nos bolsos.
— Eu ouvi um pedaço da conversa... E é assim que se faz, null. Não deixe ela te tratar como ela me trata...
— Por que ela te trata assim, oficial? — perguntou null, rápido, apoiando-se na porta com as costas.
null ia dizer algo, mas mordeu o lábio e riu, dando as costas para o jornalista.
— Você quase me pegou, null. Não vai ser fácil assim. Talvez daqui a uns... Anos.
null riu, acompanhando-o.
— Me chame só de null, oficial.
— Só null. E aquela garota... Prepare-se. Ela vai ser problema.
— Relaxe. Já solucionei piores.
— Não null... Bronx.
— Marla comunicou o null sobre o caso Fox? — perguntou null, franzindo o cenho.
— Ah, aquele seu amigo? Se dependesse da Marla, a cidade inteira saberia do caso Fox antes mesmo que eu. A diferença entre Bronx e null é que esta tem certeza de que pessoas não gostam dela, enquanto a outra... Bem...
— Entendi — disse null, rindo — E aquela outra, que também está fazendo parte do caso?
— Ah, a null? — perguntou null — Aquela garota sim... É um anjo que caiu do céu.
null lembrou-se da bela moça que também entrou no caso Fox. Com certeza, era bem bonita.
— Aquela festa que você falou antes da reunião... Vai acontecer? — perguntou null.
O jornalista deu de ombros.
— Julie não se opôs, e todos gostaram da ideia. Às sete. Vejo o senhor mais tarde? — perguntou, indo para sua sala.
null riu.
— Pode apostar. Eu, null e, com certeza, Marla.
null já tinha uma sala nova. Não era nem de longe a que uma detetive gostaria de ter, porém, para ela, era a ideal.
— Olá, colega de sala — disse null, da porta, para null.
— Sentiu saudades de mim? — perguntou a moça.
— Acredite, mais do que certas pessoas que eu conheço — as duas se abraçaram por alguns segundos — Perdi muito?
— Só aquele pedaço de mal caminho que virou o novo repórter policial daqui. O cara quer cobrir o caso Fox todinho... E olha, se ele quiser cobrir outra coisa, estou livre.
null riu.
— Ah, vai dizer que você não o achou bonitinho?
— Eu tenho noivo, null, sou uma moça comprometida — disse null, erguendo o anel.
— Pois sim, senhorita null null. Mas falemos de trabalho. Por que não quis participar do caso Fox? null deve estar possesso, já que ele só conseguiu sua liberação no Manson caso você ajudasse no caso...
— Eu vou dar meus toques. Porque eu tenho uma filosofia, null, de nunca assumir um caso sem finalizar o outro. Filosofia essa que nossa amada Bronx não tem.
— E que caso não finalizado seria esse? — perguntou null, cruzando os braços. Tinha feições de uma adolescente, não de uma mulher da mesma idade que null. Era linda, isso era óbvio, com um rosto gracioso. De um verdadeiro anjo.
— O Durden, óbvio. Você sabe que não fui eu, não é, null?
— Claro que não foi. Eu te conheço, null. Só que você não tinha nenhum álibi.
— Exato. Vou dar meu jeitinho.
Ouviram um som de vários guardas indo até a recepção da delegacia. As duas ficaram alarmadas, e se levantaram para verem o que estava acontecendo.
No centro da sala, estavam três policiais para segurar um único homem. O pobre coitado estava bambo, precisando realmente ser erguido para conseguir ficar de pé. O cheiro de bebida era forte, e o infeliz tinha uma grande mancha roxa no rosto, provavelmente vinda de uma bela surra. Qualquer pessoa normal concluiria que ele devia ter merecido o soco. Mas null não.
— null, deixe-o lá fora — ordenou Julie.
— Sra. Stoner, eu preciso falar com a senhora! — gritou o homem.
null marchou até onde ele estava e ergueu-o pelo braço, apertando-o a pele fortemente.
— Eu cuido dele, Julie — disse, andando com o homem até fora da delegacia, envolvendo seu próprio pescoço com o braço mole dele. Com dificuldade, desceu as escadas da delegacia. A rua estava deserta. Apoiou Tyler contra a parede, e apontou com o indicador para o rosto dele.
— O que você veio fazer aqui? — perguntou entre dentes.
— null, pelo amor de Deus, você precisa me ajudar — sua voz era desesperada, o que exigia de null uma força maior para continuar firme. Podia ver alguns policiais observando-a pela janela.
Ninguém poderia saber que aquele beberrão era Tyler null, irmão caçula de null.
— Tyler, você próprio disse que não quer me ver na delegacia. O que deu em você? Está fedendo a bebida!
— Eu não estou bêbado, null.
— Está quase a Amy Winehouse!
— Não, null! Eu fui agredido. Esse cheiro de bebida foi da garrafa que jogaram na minha cabeça!
— Tyler, por favor, estou sem tempo e sem paciência para essas coisas. Diga logo o que aconteceu.
— null! — ele segurou-a pelos ombros — É verdade! Esse soco foi dado na covardia. Ele me atacou por trás, com uma garrafada na cabeça. Quando caí, ele me virou e me deu uma surra. Jogou isso em cima de mim e foi embora.
Ergueu algo do bolso de seu casaco. Quando viu, null ficou sem reação. Era uma fotografia.
— Tyler... Você não conseguiu ver quem te deu isso?
— Não. Acho que era um homem, mas nem tenho muita certeza. Devia ser, para me bater assim.
— Acertaram uma garrafa na sua cabeça, não fique se gabando — ela arrancou a foto da mão do irmão e guardou-a no bolso — Vá para o hospital, avise para null o que aconteceu. E depois vá para casa.
— Nossa casa?
null mordeu o lábio.
— É. Nossa casa.
Tyler deu um sorriso torto e foi embora. null viu-o andar pela calçada, até sumir em uma esquina. Comprimiu os lábios e sentiu a pele da boca praticamente moída. Suas pernas estavam prontas para vacilar.
“Quem tirou essa foto pode estar do meu lado... Ou contra mim. Não quero ser a última a descobrir isso.”
Deu meia-volta e subiu as escadas para a delegacia. Abriu a porta de vidro e deu passos longos e rápidos até sua sala e de null. Julie e a moça estavam ali.
— null, conhecia aquele homem?
— Ah, era só um amigo do null. Já dei meu jeito.
— Não pode acertar contas aqui, null... — disse Julie, de braços cruzados.
— Não foi um acerto de contas, Julie. Já está resolvido, ele não vai mais te perturbar.
Sentou-se à mesa, claramente incomodada. Julie deu de ombros e saiu da sala.
— O que foi, null? — perguntou a amiga, tocando-lhe o ombro — Essa história de “amigo do null” não me engana.
— Nada, null. Eu dormi mal essa noite.
— Tenho aspirinas aqui, se quiser.
— Tenho as minhas, obrigada, querida.
null deu de ombros e colocou os fones de ouvido, para voltar a ler em paz os arquivos de Samantha Fox. Com as mãos tremendo, null segurou a foto.
Eram ela e Joe Durden no dia da morte de Joe. Em uma foto polaroid. Embaixo estava escrito em uma letra cursiva linda:
“Every breath you take...”
Na imagem, estavam null e Joe na mesma captura. Tinha sido tirada do corredor do hotel, e mostrava a moça de costas, parecendo fugir. Mas Joe ainda estava vivo. Atrás da foto, estava uma carinha feliz.
— Ainda não sei que roupa vou usar hoje à noite... — queixou-se null.
— Jeans? — perguntou null, mal prestando atenção na amiga.
— null! Vai dizer que não vai vir à festa de Halloween hoje à noite. O nosso pequeno Brad Pitt que organizou de última hora. A delegacia toda está sabendo.
null deu um sorriso torto. Segurou-se para sua risada não sair alta demais.
— Ah, sim, null, posso vir sim. Vou arrumar uma fantasia e venho. Que horas?
— Sete. Vai até a hora que você conseguir se aguentar em pé. Pode chamar um acompanhante de fora.
“Deve ter sido por isso que null marcou de me encontrar aqui às oito.”
Esticou a mão e mandou uma mensagem para null, falando do acontecido. Ele respondeu que estava ocupado e não poderia ir.
null terminou o que tinha que fazer na delegacia e chegou em casa às três da tarde. Abriu a porta e andou pela sala até seu quarto, no escuro, pois por algum motivo a lâmpada não estava funcionando.
Acendeu a luz. Penduradas por barbantes no teto, estavam suspensas várias fotografias polaroid de null e Joe Durden bem antes de sua morte, em um clima amistoso. No centro do quarto, tinha uma boneca de porcelana suspensa por um barbante... Com o rosto apagado.
“Boneca de papel”.
Não havia nada fora do lugar. Nada foi roubado, a cama estava arrumada. Quando olhou para a cabeceira, havia mais fotos coladas, essas causando maior medo em null. Eram fotografias dela andando na rua no dia anterior. Embaixo de cada uma, letras que formavam uma frase:
“I’ll be watching you.”
Aquela música nunca soou tão sombria para null null.
Segurou o telefone e, tremendo, discou o número de null. Ninguém atendeu.
null conferiu seu telefone novamente. Suava frio, pois sabia que não conseguiria evitar o que viesse a acontecer.
Não podia ter feito aquilo. Sabia que não podia.
Seu consultório estava vazio, a não ser por ele. Segurou a pasta em suas mãos e tremeu. Abriu-a lentamente, vendo todas as fotos ali presentes.
“Tem alguém me observando.”
Ouviu violentas batidas na porta. Jogou a pasta de qualquer maneira dentro da gaveta e pôs-se de pé.
— Pode entrar — mandou.
Entrou na sala a delegada Julie Stoner.
— Precisamos conversar, Sr. null. Sério.
I've got some bad news for you, sunshine…
Capítulo 5 — I write sins not tragedies
Haven't you people ever heard of closing a god damn door?
Em algumas festas de Halloween, as pessoas organizam entre os realizadores da festa uma brincadeira de investigação. Nessa brincadeira, uma das pessoas faz um teatro, fingindo-se de morta, no meio da festa. Então, os outros convidados devem procurar pistas espalhadas e descobrir quem é o assassino, e como a pessoa morreu.
null e null prepararam um jogo assim para a festa de Halloween da delegacia, mas não saiu como o planejado.
Depois do que aconteceu em sua casa, null não tardou a sumir com tudo antes que qualquer um chegasse. null e null estavam trabalhando, porém, qualquer um dos dois podia chegar em casa de surpresa, então null tirou todas as fotos do quarto, puxando os barbantes e jogando-os fora. Juntou todas as fotos e colocou-as em uma caixa de sapatos, junto com a boneca, escondendo a caixa debaixo de sua cama, apressada.
“Every breath you take, I’ll be watching you...”
Sentou-se na cama e tomou uma aspirina. Era como se Joe estivesse ali, ao lado dela. Podia sentir seu olhar fixo, ver o brilho de seus olhos verdes, podia ouvir sua voz rouca, sentir seu toque bruto. Podia vê-lo se acabar.
null não foi à cremação. Quando estava em casa, com null, na noite fatídica, provavelmente ele já tinha...
Nunca estamos preparados para algo assim. Para null, não era o caso de se colocar no lugar de pessoas mais próximas de Joe, mas a situação de “lembra de Joe Durden? Aquele que...” O fato de nunca mais ver, era como se ele simplesmente tivesse ido embora, sumido por um tempo, parado de dar notícias. Para ela, não era como se ele tivesse morrido. Era como se tempo tivesse parado para ele.
Acordou de seus devaneios, e foi para a rua, comprar uma roupa de Halloween.
Quando voltou para casa depois, encontrou Tyler deitado no sofá. Depois de estar vestida e maquiada, null deu um beijo na bochecha do irmão e cobriu-o.
Fechou a porta atrás de si, deixando o celular em casa. Queria ter seu momento de paz.
null olhava para o relógio novamente, depois de uma hora que a festa já tinha começado, no andar de reuniões da delegacia. Ela tinha ajudado null e null a organizarem todas as mesas, cadeiras, e todo o resto. Os coitados tinham quase virado a madrugada para arrumar tudo, e null ainda conseguira chegar na hora do trabalho.
E null nem fora capaz disso. Continuava curiosa para saber por que null demorara tanto para chegar de manhã.
Por vezes, enquanto null não percebia, null olhava-o com um jeito particularmente malicioso. Era uma mulher encantadora, e ela tinha plena certeza disso, então não deixava isso passar em branco. Nem isso, nem ela própria. Se você conhecia null, você tinha duas opções: ou você a odiava, ou a amava. Nos dois casos, ela ficava satisfeita, pois não conseguiria tirá-la de sua mente.
Agora, a festa já havia começado há uma hora e nenhum sinal de null null. Começou a se preocupar.
Foi para o banheiro conferir sua fantasia. A bonequinha de luxo ainda estava inteira, perfeita.
Quando voltou, foi direto para a janela, e colocou a cabeça para fora, apoiando os cotovelos no parapeito e cruzando os braços.
null estava lá embaixo. Sem null.
— null! — ela gritou, não recebendo resposta.
— null! — chamou Marla, vestida de Mulher-Gato, indo atrás dela.
null SE virou para ela, mas quando voltou a olhar para fora, null não estava mais lá.
— Marla, você sabe se a null vem?
— Pouco me importa que ela venha ou não.
— A pergunta não foi essa.
Marla ignorou-a e, quando voltou a olhar para a entrada da delegacia, null estava lá. Esperou a detetive chegar e recebeu-a, com um abraço. Claramente, null estava bem mais bonita do que ela.
— null... Você está magnífica — falou, sorrindo, quase gaguejando.
null deu um sorriso torto e olhou para baixo, arrumando o vestido branco que ia até um pouco menos que seu joelho.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou null — Você parece perturbada.
— Eu estou bem. Só uma dorzinha de cabeça.
— Ah, ok então. Vamos dançar?
— Já vou. Primeiro, vou comer alguma coisa, é capaz de meu estômago se engolir a qualquer instante.
Saindo de perto da colega, null foi até a mesa do canto do salão, repleta de comidas. Comeu um pedaço de pizza e subiu para o terraço, para poder olhar as estrelas. Levantou seu vestido com uma mão e subiu os degraus, abrindo a porta com a outra. Lá em cima, andou até um banco e sentou-se. Esticou suas luvas brancas, e ajeitou a parte de cima do vestido, para não desamarrar. Sua maquiagem estava impecável, e o batom vermelho deixava seus lábios bem desenhados.
Estava vestida de Marilyn Monroe.
As estrelas brilhavam bem acima de sua cabeça. Lembrou-se da época em que passava horas olhando para o céu, e queria tocar e roubar as estrelas para pendurá-las em seu quarto, quando criança. Pendurá-las em seu teto para admirá-las, como pontinhos de luz, não fotos de um passado perturbador. Talvez fosse isso, afinal. Todos somos pontinhos de luz. Uns brilham mais, outros são sempre esquecidos. Mas continuam lá, brilhando, mesmo que ninguém os veja. Será que perceberiam se este pontinho sumisse? Já deram falta do pontinho antes?
Pontinhos de quando era criança. Tyler criança.
Joe. A boneca de papel.
“Éramos só crianças, null...”
— Com licença, a Srta. Monroe daria ao esqueleto a honra de uma dança? — ouviu uma voz atrás de si. Ela se virou com um susto. Depois, riu, olhando para null.
— E sua Sally? Não deveria procurar por ela?
Ele deu de ombros.
— Uma Marilyn me satisfaz.
Ela riu baixo.
— Vir de Jack realmente foi bem original, null.
— Eu queria vir do meu super-herói preferido, o Homem Aranha, mas andar por aí com aquele colan não me agradou.
— Veja pelo lado bom. Se null viesse como super-herói preferido dele, ele ficaria ridículo com aquela cueca por cima da calça.
null riu, mas não resistiu ao perguntar:
— null não veio?
Ela fez que não com a cabeça, sem parecer decepcionada.
— Ele não pôde vir. Mas diga aí, novato — disse, se apoiando no terraço — Qual é a sua ideia para o caso Fox?
null deu um sorriso torto. Seu rosto estava pintado de branco, e ele vestia um smoking listrado verticalmente preto e branco, exatamente igual ao Jack de O Estranho Mundo de Jack. Os cabelos estavam penteados para trás, e tinha pintado o resto da boca de preto como se fosse a costura. Em volta dos olhos, preto. Mas não parecia sinistro, afinal era uma fantasia improvisada, então não estava perfeita. O modo com que sorria era reconfortante, e para null, aquilo era extremamente confuso.
— Vai ter que me deixar um pouco bêbado para me fazer falar.
— Isso me pareceu uma cantada.
— Bem, eu só disse, você quem interpretou...
Ela chegava a achar graça da maneira descarada de null. Tinha certeza de que toda aquela “admiração” era pura besteira, e ele queria sim passar de um relacionamento profissional para algo mais... Intenso. Rindo, preparou-se para retrucar, quando foi surpreendido por outra pessoa:
— null já traçando a mais gata da festa... — disse uma voz masculina, parecendo rir. null olhou para trás, e viu um homem da altura de null se aproximar, tombando levemente como se já estivesse em seu quinto copo... Em menos de cinco minutos. Usava um chapéu coco preto, e uma blusa social branca com as mangas dobradas até o cotovelo. As calças também eram brancas, e usava um par de botas pretas, e suspensórios também brancos. Em uma das mãos, uma bengala, e ele parecia suficientemente bêbado para saltitar de felicidade. E seu rosto fora maquiado apenas com cílios postiços no olho direito, além de delineador e lápis de olho no mesmo.
null sentiu suas pernas vacilarem. Era um fantasma, uma assombração, uma memória, um...
Um anjo que voltou.
— null, já conseguiu ficar tão bêbado a ponto de não conseguir mais conter as palavras. Daqui a pouco você cai morto em cima de um sofá.
— Não tão cedo, amiguinho — null apoiou a mão no ombro de null para manter-se de pé, e falou com a voz carregada, de brincadeira — Ainda vai ter que me aguentar na sua aba mais alguns meses.
null olhou para null, e depois para seu colegar de quarto. Rapidamente, fez as apresentações:
— null, esse é null, meu colega de quarto. Ele é novo na cidade, então não acho que se conheçam. null, essa é...
— null null — ele completou, estendendo a mão livre — Qualquer pessoa que pise em Longview sabe seu nome. Até o pobre null aqui.
null sorriu gentilmente, mas ainda um pouco alarmada, e null beijou as costas de sua mão, falando a seguir com um pequeno sorriso malicioso:
— O pequeno Alex DeLarge não teria chance alguma com Marilyn Monroe.
— Ok, null, já chega — cortou null, metendo-se entre os dois e fazendo null quase rir — Vai arrumar o que fazer, vai. Ouvi dizer que Marla precisa de uma ajudinha em algum lugar.
— Que lugar?
— Bem longe daqui! — retrucou null, praticamente empurrando o amigo de volta para a escada para descer do terraço. null saiu às gargalhadas, satisfeito por ter deixado null tão envergonhado. Bem, isso era uma de suas diversões. Dele e de todos os outros melhores amigos do mundo.
Pelo menos a maquiagem branca disfarçava a vergonha de null.
— Desculpa pelo null. Ele é... Hiperativo. E irritante. E desconsertado. E...
— E seu melhor amigo — completou null.
Ela estava quase catatônica. Tinha completado aquela última frase praticamente para si mesma, em memórias. Fitava o horizonte, todas as montanhas que dividiam Longview de qualquer outro lugar.
Fora ali. Fora há alguns anos. E fora Joe.
Joe Durden era Alex DeLarge.
Aquele era Joe Durden.
— null? — perguntou null, tocando-lhe o ombro — Você está bem? Quer uma bebida?
Joe está morto.
— Café — ela respondeu prontamente, voltando à realidade — Eu quero café.
null apenas riu.
— Você está numa festa com bebida alcoólica quase vazando pelas janelas, e me diz que quer beber café?
Ela balançou a cabeça e acompanhou-o em sua risada, sem conseguir lembrar exatamente o motivo desta.
— Está servida? — perguntou null, estendendo para null um copo de vidro com um líquido expresso e rosado dentro.
— O que é isso?
— Não é veneno e fui eu que fiz. Pode beber.
— Se você quem fez eu realmente fico com medo.
— Bebe logo, null.
Ela bebeu dois goles e fez uma careta, e depois riu.
— Brincadeira. Está bom.
Começou a andar em direção ao pátio. null a acompanhou. De algum modo que não conseguia compreender, não queria deixá-la sozinha. Queria seguir seus passos, imitá-los, e ver o caminho que ela traçaria. Afinal, não podia ver seu caminho já traçado, pois ela tinha apagado-o.
Porque a admirava.
— Pare de me enrolar. Diga logo o que você sabe sobre o caso Fox — ela se queixou quando estava longe o suficiente da maior concentração de pessoas.
null riu. Aquilo a deixou levemente irritada, já que parecia uma risada extremamente debochada. Não gostava de perceber que aquele novato, o invisível, estava no controle.
— Eu não sei nada, null. Nada que você não saiba.
— Aposto que você está blefando.
— Não aposte o que não pode ter certeza, null.
Não sabia se gostava ou não de como ele dizia seu apelido. Era engraçado, de certo modo, como ela se sentia exatamente no papel de null quando estava com null. E como as conversas entre ela e null costumavam ser sempre enigmáticas.
— Por que você ficou quase catatônica no terraço? — ele perguntou, enfim — Parece que o meio-tempo entre o null aparecer e eu te dado a bebida foram quase apagados da sua cabeça.
Ela engoliu em seco.
— Se eu te disser, você me diz o que sabe sobre a morte de Samantha?
null cruzou os braços.
— O preço da sua informação vale tudo isso?
— Depende do quanto você valoriza a mim, novato.
Ele viu-se contra a parede.
— Alex DeLarge foi a fantasia que Joe usou uma vez.
— Ele realmente foi importante para você, hein — observou.
Ouviram o som de uma badalada violenta de relógio vinda da delegacia. Ambos olharam para lá ao mesmo tempo, e todas as luzes se apagaram.
— O que foi isso? — perguntou null.
— Ah, foi um jogo que null e eu preparamos. É uma caça ao tesouro no escuro, desligamos a luz. Cada convidado deve procurar as pistas para descobrir o “assassino” e o local do “crime”. Lá vai estar o prêmio.
Ele segurou o pulso de null e puxou-a perigosamente para perto de si, murmurando com um sorriso torto ao seu ouvido:
— Vale duplas.
— Vale, é?
— Claro que vale. Só que os outros competidores não sabem disso.
— E null sabe?
— null... Não precisa saber.
Ela riu.
— Bem, Sr. Jack Esqueleto null null, podemos procurar a primeira pista. Enquanto isso, posso te contar melhor minha história.
— Sou todo ouvidos. E a primeira pista está bem aí embaixo — ele apontou para o copo.
null ergueu o copo e bebeu o que faltava, sentindo uma pequena tontura, e leu contra a luz da lua os números no fundo do copo.
— Quinze, vinte e cinco, sessenta e seis e nove. São os números de identificação de uma pessoa daqui da delegacia. Da Julie.
Os dois começaram a tomar seu caminho para o segundo andar da delegacia, até a sala de Julie Stoner. Enquanto isso, null tinha perguntado a null o que Joe representava para ela.
A tentação de responder “tudo” era absurda, mas não poderia.
— Eu e Joe éramos próximos bem antes de ele morrer. Foi por uma briguinha nossa que me culparam pelo assassinato.
— E você ficou catatônica por isso?
— Não. Porque null parece muito Joe.
null franziu o cenho e deu um sorriso sem mostrar os dentes, torto.
— null é o inverso de Joe, null.
— Sabia que você ia me achar louca. Todos me acham louca.
null, cala a boca. Ele não é null. Não vai entender.
— Eu não te acho louca.
Você não devia ter dito isso, novato...
Abriram a porta do escritório de Julie.
— Ah, que susto — disse uma voz masculina de atrás da mesa da delegada.
— Um oficial não pode se assustar com essa facilidade, null — observou null, entrando na sala e fechando a porta atrás de si — null ou Marla aí atrás?
— Nenhuma. Não foi por alguém ter vindo. Foi por vocês dois terem vindo... Ao mesmo tempo. null fez uma careta.
— Descobriu alguma coisa?
null ficou de pé, saindo de trás da mesa. null ficou paralisada ao vê-lo, mesmo no escuro. A luz da rua contra a janela permitiu a ambos terem uma ideia de como ele estava: aquele homem grande, forte e alto não poderia ter escolhido fantasia melhor. Do rebelde sem causa. Usava uma jaqueta de couro, com os cabelos bagunçados e para cima. Sua blusa era branca, ou de alguma cor clara, e sua calça era um pouco larga e parecendo ser marrom clara. Era o eterno símbolo da rebeldia, algo que com certeza representava null.
Aquele era null null vestido de James Dean.
null não estava daquele jeito como tinha ficado com null. Agora ela estava simplesmente deslumbrada. Os dois se encararam por um tempo, olhando um ao outro dos pés à cabeça.
— Wow. Foi original, null. Um avanço para quem sempre vai na onda dos outros.
Não vou ser o Jack de vela perto do James Dean e da Marilyn Monroe.
— Rebelde sem causa, null. Não sou o único.
Espera, eu pensei isso mesmo?
— Vocês combinaram — falou null, com o toque de algo que null não conseguiu reconhecer em sua voz.
— Achou alguma pista? — repetiu null, voltando à realidade.
null apontou para o chão perto da janela. Ali, havia uma seta feita com clipes, apontando para a janela. null andou até lá, já um pouco cansada por seus saltos, mas conseguiu abrir a janela já semiaberta.
— Eu... Eu descobri uma coisa. Eu descobri! — ela disse, sem olhar para lugar nenhum a não ser para o lado de fora.
— O quê, null? — perguntou null, curioso, tentando se conter.
Ela se virou lentamente, mantendo o mistério.
— Eu descobri... Que você é um lesado. Não está apontando para a janela...
null passou seus dedos finos e delicados pela madeira da moldura da janela.
— É para o que está preso a ela.
E ergueu um pequeno papel dobrado. Desdobrou-o, com null e null em cada ombro, querendo ler o que estava escrito.
— “Não se engane pelo que não pode ver, o monstro se transforma para quem não o conhecer. E nas asas de um anjo caído encontrará, o tesouro que está a buscar.”
— Um anjo caído? Só pode ser null! — observou null.
Os dois correram até a porta, parecendo realmente estar se divertindo com o jogo, e tentaram abri-la.
— Por que você trancou a porta se iríamos abri-la logo depois? — perguntou null, para null, que girava a maçaneta sem sucesso.
— Eu não... Eu não tranquei a porta.
As luzes se acenderam momentaneamente, e apagando-se de novo depois. Isso vezes seguidas, repetidamente, em um pisca-pisca aterrorizante.
— null, pode parar, isso está me assustando — murmurou null, apoiando-se na parede, com medo.
A janela se fechou com força, mesmo não havendo vento. As luzes começaram a piscar mais rápido.
— Não era para isso acontecer — murmurou null.
null sentia seu sangue ferver em suas veias, correndo rápido por elas, como que procurando um meio de sair daquela situação de perigo. Ela tentou fixar-se à ideia que estaria segura com null e null, mas sabia que não estava.
Tem um fantasma aqui. É o fantasma de Joe.
null se ajoelhou no chão, com as mãos no rosto, escondendo-o. Deu um grito agudo e curto, como uma criança assustada.
As luzes se apagaram ao mesmo tempo em que ouviram um som surdo no andar debaixo. A escuridão voltara, e null e null viraram apenas vultos. Apenas névoa, lembranças. Aquilo já estava parecendo um livro do Stephen King, e parecia que estavam bem longe do final.
null andou até a janela, empurrando null para o lado. Sabia que som tinha sido aquele, aquele barulho surdo, morto. Abriu-a rapidamente, desesperado. Olhou para baixo e, imediatamente, virou o rosto.
— null, não venha para cá.
— null... — falou null, levantando o rosto de null — Ela não está acordada.
James Dean está vivo.
Jack Esqueleto é gentil.
Alex DeLarge voltou do mundo dos mortos.
E Marilyn Monroe desceu como o anjo caído...
E se Romeu deixasse Julieta antes da hora? E se Julieta não visse Romeu?
null. null. null.
null.
— null — chamou null, levantando seu rosto pelo queixo. null abriu os olhos lentamente, e olhou para cima. Havia um rosto branco, com uma boca costurada, no céu, bem perto dela.
— null? O que aconteceu? Eu estou...
— Não, null. Não diga isso — ele colocou as mãos em seus ombros — Você está bem.
null percebeu que estava sentada no sofá do salão da festa. Não havia música, luzes, nem pessoas felizes. A festa tinha acabado.
Great party, isn’t it?¹
— Eu desmaiei?
— Por uma hora. Está tudo bem agora.
— O que eu perdi, null? Só me lembro das luzes apagando, e...
Do anjo caído.
— null, se poupe. Vá para a casa, a festa acabou.
— Mas null...
— null vai te levar. Vou ficar aqui um pouco. Só durma, tudo bem? Descanse.
Ela assentiu. Levantou-se com a ajuda de null e percebeu que estava descalça, com as pernas bambas.
— Me ligue quando chegar. Quero saber se está tudo bem.
— Tudo bem. Vou avisar que já estou indo para casa.
null mordeu o lábio.
— Ah, droga! Deixei meu celular em casa. Posso usar o seu?
— null...
— Ok, ok, já entendi! null vai me levar para casa. Meu Deus, null, parece até que quer me esconder alguma coisa...
E despediu-se com um aceno, indo até o Audi de null, já com ela no volante.
Por Deus, null, nem cogite algo assim... Não quero ver você quando souber...
— null! — falou null, quando a amiga escorregou para o banco do carona. Tinha seu vestido preto levantado até o meio das coxas, para poder dirigir direito — Que susto você me deu.
— Eu? Susto?
— Claro! Desmaiou e tudo.
— O que aconteceu, hein? — null perguntou, quando null já estava na rua da delegacia.
A bonequinha de luxo suspirou.
— Não sei, não me contaram. Onde já se viu? Uma detetive como eu não saber desses tipos de coisa. Vou dedurar essa galera toda para a Julie! — ela disse erguendo o indicador para frente, como se estivesse realmente fazendo aquilo.
null limitou-se a rir. O resto do trajeto foi preenchido com uma conversa descontraída sobre o que tinha acontecido na festa, mais especificamente quantos null conseguira “fisgar”. null estava na lista.
Sem dúvidas, depois de null, null era sua melhor amiga.
Desceu do carro e procurou as chaves na bolsa para entrar em casa. Todas as portas estavam fechadas, e Tyler continuava dormindo na sala. null andou até seu quarto e entrou no chuveiro, tomando um banho revigorante. Depois, vestiu sua camisola e deitou em sua cama, ao lado de null.
— Amor? — ele perguntou, quando ela apagou a luz do banheiro — Como foi a festa?
— Foi boa... Pelo menos metade dela, que foi o tempo que eu fiquei acordada. Amanhã eu te conto detalhes, estou sem energia.
Ele girou seu corpo na cama lentamente, e só parou quando o tinha em cima do dela. null era pequena e baixa se comparada à null, e isso fazia deles um casal bonito. Ele beijou seu pescoço feroz, mordendo-a levemente e chupando sua pele.
— Tenho todo tempo do mundo para fazer outra coisa...
null riu, e passou as mãos pelos cabelos da nuca de null. Segurou-os com força e puxou para sua cabeça.
— Tenho toda a energia do mundo também.
Ei, Joe. Eu vi seu fantasma essa noite.
E eles se amaram por uma madrugada quase inteira.
Eu te amo, null. Nunca duvide disso. Mesmo que queiram te provar o contrário, mesmo que os fatos não estejam ao meu favor, eu te amo. Eu te amo muito. Eu faria qualquer coisa por você...
Você poderia compreender isso, amor? Eu só preciso que as coisas continuem assim. Tente entender.
Não saia da linha. Não saia.
Não saia.
¹ — Frase do filme O Iluminado
No, it's much better to face these kind of things with a sense of poise and rationality…
Em algumas festas de Halloween, as pessoas organizam entre os realizadores da festa uma brincadeira de investigação. Nessa brincadeira, uma das pessoas faz um teatro, fingindo-se de morta, no meio da festa. Então, os outros convidados devem procurar pistas espalhadas e descobrir quem é o assassino, e como a pessoa morreu.
null e null prepararam um jogo assim para a festa de Halloween da delegacia, mas não saiu como o planejado.
Depois do que aconteceu em sua casa, null não tardou a sumir com tudo antes que qualquer um chegasse. null e null estavam trabalhando, porém, qualquer um dos dois podia chegar em casa de surpresa, então null tirou todas as fotos do quarto, puxando os barbantes e jogando-os fora. Juntou todas as fotos e colocou-as em uma caixa de sapatos, junto com a boneca, escondendo a caixa debaixo de sua cama, apressada.
“Every breath you take, I’ll be watching you...”
Sentou-se na cama e tomou uma aspirina. Era como se Joe estivesse ali, ao lado dela. Podia sentir seu olhar fixo, ver o brilho de seus olhos verdes, podia ouvir sua voz rouca, sentir seu toque bruto. Podia vê-lo se acabar.
null não foi à cremação. Quando estava em casa, com null, na noite fatídica, provavelmente ele já tinha...
Nunca estamos preparados para algo assim. Para null, não era o caso de se colocar no lugar de pessoas mais próximas de Joe, mas a situação de “lembra de Joe Durden? Aquele que...” O fato de nunca mais ver, era como se ele simplesmente tivesse ido embora, sumido por um tempo, parado de dar notícias. Para ela, não era como se ele tivesse morrido. Era como se tempo tivesse parado para ele.
Acordou de seus devaneios, e foi para a rua, comprar uma roupa de Halloween.
Quando voltou para casa depois, encontrou Tyler deitado no sofá. Depois de estar vestida e maquiada, null deu um beijo na bochecha do irmão e cobriu-o.
Fechou a porta atrás de si, deixando o celular em casa. Queria ter seu momento de paz.
null olhava para o relógio novamente, depois de uma hora que a festa já tinha começado, no andar de reuniões da delegacia. Ela tinha ajudado null e null a organizarem todas as mesas, cadeiras, e todo o resto. Os coitados tinham quase virado a madrugada para arrumar tudo, e null ainda conseguira chegar na hora do trabalho.
E null nem fora capaz disso. Continuava curiosa para saber por que null demorara tanto para chegar de manhã.
Por vezes, enquanto null não percebia, null olhava-o com um jeito particularmente malicioso. Era uma mulher encantadora, e ela tinha plena certeza disso, então não deixava isso passar em branco. Nem isso, nem ela própria. Se você conhecia null, você tinha duas opções: ou você a odiava, ou a amava. Nos dois casos, ela ficava satisfeita, pois não conseguiria tirá-la de sua mente.
Agora, a festa já havia começado há uma hora e nenhum sinal de null null. Começou a se preocupar.
Foi para o banheiro conferir sua fantasia. A bonequinha de luxo ainda estava inteira, perfeita.
Quando voltou, foi direto para a janela, e colocou a cabeça para fora, apoiando os cotovelos no parapeito e cruzando os braços.
null estava lá embaixo. Sem null.
— null! — ela gritou, não recebendo resposta.
— null! — chamou Marla, vestida de Mulher-Gato, indo atrás dela.
null SE virou para ela, mas quando voltou a olhar para fora, null não estava mais lá.
— Marla, você sabe se a null vem?
— Pouco me importa que ela venha ou não.
— A pergunta não foi essa.
Marla ignorou-a e, quando voltou a olhar para a entrada da delegacia, null estava lá. Esperou a detetive chegar e recebeu-a, com um abraço. Claramente, null estava bem mais bonita do que ela.
— null... Você está magnífica — falou, sorrindo, quase gaguejando.
null deu um sorriso torto e olhou para baixo, arrumando o vestido branco que ia até um pouco menos que seu joelho.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou null — Você parece perturbada.
— Eu estou bem. Só uma dorzinha de cabeça.
— Ah, ok então. Vamos dançar?
— Já vou. Primeiro, vou comer alguma coisa, é capaz de meu estômago se engolir a qualquer instante.
Saindo de perto da colega, null foi até a mesa do canto do salão, repleta de comidas. Comeu um pedaço de pizza e subiu para o terraço, para poder olhar as estrelas. Levantou seu vestido com uma mão e subiu os degraus, abrindo a porta com a outra. Lá em cima, andou até um banco e sentou-se. Esticou suas luvas brancas, e ajeitou a parte de cima do vestido, para não desamarrar. Sua maquiagem estava impecável, e o batom vermelho deixava seus lábios bem desenhados.
Estava vestida de Marilyn Monroe.
As estrelas brilhavam bem acima de sua cabeça. Lembrou-se da época em que passava horas olhando para o céu, e queria tocar e roubar as estrelas para pendurá-las em seu quarto, quando criança. Pendurá-las em seu teto para admirá-las, como pontinhos de luz, não fotos de um passado perturbador. Talvez fosse isso, afinal. Todos somos pontinhos de luz. Uns brilham mais, outros são sempre esquecidos. Mas continuam lá, brilhando, mesmo que ninguém os veja. Será que perceberiam se este pontinho sumisse? Já deram falta do pontinho antes?
Pontinhos de quando era criança. Tyler criança.
Joe. A boneca de papel.
“Éramos só crianças, null...”
— Com licença, a Srta. Monroe daria ao esqueleto a honra de uma dança? — ouviu uma voz atrás de si. Ela se virou com um susto. Depois, riu, olhando para null.
— E sua Sally? Não deveria procurar por ela?
Ele deu de ombros.
— Uma Marilyn me satisfaz.
Ela riu baixo.
— Vir de Jack realmente foi bem original, null.
— Eu queria vir do meu super-herói preferido, o Homem Aranha, mas andar por aí com aquele colan não me agradou.
— Veja pelo lado bom. Se null viesse como super-herói preferido dele, ele ficaria ridículo com aquela cueca por cima da calça.
null riu, mas não resistiu ao perguntar:
— null não veio?
Ela fez que não com a cabeça, sem parecer decepcionada.
— Ele não pôde vir. Mas diga aí, novato — disse, se apoiando no terraço — Qual é a sua ideia para o caso Fox?
null deu um sorriso torto. Seu rosto estava pintado de branco, e ele vestia um smoking listrado verticalmente preto e branco, exatamente igual ao Jack de O Estranho Mundo de Jack. Os cabelos estavam penteados para trás, e tinha pintado o resto da boca de preto como se fosse a costura. Em volta dos olhos, preto. Mas não parecia sinistro, afinal era uma fantasia improvisada, então não estava perfeita. O modo com que sorria era reconfortante, e para null, aquilo era extremamente confuso.
— Vai ter que me deixar um pouco bêbado para me fazer falar.
— Isso me pareceu uma cantada.
— Bem, eu só disse, você quem interpretou...
Ela chegava a achar graça da maneira descarada de null. Tinha certeza de que toda aquela “admiração” era pura besteira, e ele queria sim passar de um relacionamento profissional para algo mais... Intenso. Rindo, preparou-se para retrucar, quando foi surpreendido por outra pessoa:
— null já traçando a mais gata da festa... — disse uma voz masculina, parecendo rir. null olhou para trás, e viu um homem da altura de null se aproximar, tombando levemente como se já estivesse em seu quinto copo... Em menos de cinco minutos. Usava um chapéu coco preto, e uma blusa social branca com as mangas dobradas até o cotovelo. As calças também eram brancas, e usava um par de botas pretas, e suspensórios também brancos. Em uma das mãos, uma bengala, e ele parecia suficientemente bêbado para saltitar de felicidade. E seu rosto fora maquiado apenas com cílios postiços no olho direito, além de delineador e lápis de olho no mesmo.
null sentiu suas pernas vacilarem. Era um fantasma, uma assombração, uma memória, um...
Um anjo que voltou.
— null, já conseguiu ficar tão bêbado a ponto de não conseguir mais conter as palavras. Daqui a pouco você cai morto em cima de um sofá.
— Não tão cedo, amiguinho — null apoiou a mão no ombro de null para manter-se de pé, e falou com a voz carregada, de brincadeira — Ainda vai ter que me aguentar na sua aba mais alguns meses.
null olhou para null, e depois para seu colegar de quarto. Rapidamente, fez as apresentações:
— null, esse é null, meu colega de quarto. Ele é novo na cidade, então não acho que se conheçam. null, essa é...
— null null — ele completou, estendendo a mão livre — Qualquer pessoa que pise em Longview sabe seu nome. Até o pobre null aqui.
null sorriu gentilmente, mas ainda um pouco alarmada, e null beijou as costas de sua mão, falando a seguir com um pequeno sorriso malicioso:
— O pequeno Alex DeLarge não teria chance alguma com Marilyn Monroe.
— Ok, null, já chega — cortou null, metendo-se entre os dois e fazendo null quase rir — Vai arrumar o que fazer, vai. Ouvi dizer que Marla precisa de uma ajudinha em algum lugar.
— Que lugar?
— Bem longe daqui! — retrucou null, praticamente empurrando o amigo de volta para a escada para descer do terraço. null saiu às gargalhadas, satisfeito por ter deixado null tão envergonhado. Bem, isso era uma de suas diversões. Dele e de todos os outros melhores amigos do mundo.
Pelo menos a maquiagem branca disfarçava a vergonha de null.
— Desculpa pelo null. Ele é... Hiperativo. E irritante. E desconsertado. E...
— E seu melhor amigo — completou null.
Ela estava quase catatônica. Tinha completado aquela última frase praticamente para si mesma, em memórias. Fitava o horizonte, todas as montanhas que dividiam Longview de qualquer outro lugar.
Fora ali. Fora há alguns anos. E fora Joe.
Joe Durden era Alex DeLarge.
Aquele era Joe Durden.
— null? — perguntou null, tocando-lhe o ombro — Você está bem? Quer uma bebida?
Joe está morto.
— Café — ela respondeu prontamente, voltando à realidade — Eu quero café.
null apenas riu.
— Você está numa festa com bebida alcoólica quase vazando pelas janelas, e me diz que quer beber café?
Ela balançou a cabeça e acompanhou-o em sua risada, sem conseguir lembrar exatamente o motivo desta.
— Está servida? — perguntou null, estendendo para null um copo de vidro com um líquido expresso e rosado dentro.
— O que é isso?
— Não é veneno e fui eu que fiz. Pode beber.
— Se você quem fez eu realmente fico com medo.
— Bebe logo, null.
Ela bebeu dois goles e fez uma careta, e depois riu.
— Brincadeira. Está bom.
Começou a andar em direção ao pátio. null a acompanhou. De algum modo que não conseguia compreender, não queria deixá-la sozinha. Queria seguir seus passos, imitá-los, e ver o caminho que ela traçaria. Afinal, não podia ver seu caminho já traçado, pois ela tinha apagado-o.
Porque a admirava.
— Pare de me enrolar. Diga logo o que você sabe sobre o caso Fox — ela se queixou quando estava longe o suficiente da maior concentração de pessoas.
null riu. Aquilo a deixou levemente irritada, já que parecia uma risada extremamente debochada. Não gostava de perceber que aquele novato, o invisível, estava no controle.
— Eu não sei nada, null. Nada que você não saiba.
— Aposto que você está blefando.
— Não aposte o que não pode ter certeza, null.
Não sabia se gostava ou não de como ele dizia seu apelido. Era engraçado, de certo modo, como ela se sentia exatamente no papel de null quando estava com null. E como as conversas entre ela e null costumavam ser sempre enigmáticas.
— Por que você ficou quase catatônica no terraço? — ele perguntou, enfim — Parece que o meio-tempo entre o null aparecer e eu te dado a bebida foram quase apagados da sua cabeça.
Ela engoliu em seco.
— Se eu te disser, você me diz o que sabe sobre a morte de Samantha?
null cruzou os braços.
— O preço da sua informação vale tudo isso?
— Depende do quanto você valoriza a mim, novato.
Ele viu-se contra a parede.
— Alex DeLarge foi a fantasia que Joe usou uma vez.
— Ele realmente foi importante para você, hein — observou.
Ouviram o som de uma badalada violenta de relógio vinda da delegacia. Ambos olharam para lá ao mesmo tempo, e todas as luzes se apagaram.
— O que foi isso? — perguntou null.
— Ah, foi um jogo que null e eu preparamos. É uma caça ao tesouro no escuro, desligamos a luz. Cada convidado deve procurar as pistas para descobrir o “assassino” e o local do “crime”. Lá vai estar o prêmio.
Ele segurou o pulso de null e puxou-a perigosamente para perto de si, murmurando com um sorriso torto ao seu ouvido:
— Vale duplas.
— Vale, é?
— Claro que vale. Só que os outros competidores não sabem disso.
— E null sabe?
— null... Não precisa saber.
Ela riu.
— Bem, Sr. Jack Esqueleto null null, podemos procurar a primeira pista. Enquanto isso, posso te contar melhor minha história.
— Sou todo ouvidos. E a primeira pista está bem aí embaixo — ele apontou para o copo.
null ergueu o copo e bebeu o que faltava, sentindo uma pequena tontura, e leu contra a luz da lua os números no fundo do copo.
— Quinze, vinte e cinco, sessenta e seis e nove. São os números de identificação de uma pessoa daqui da delegacia. Da Julie.
Os dois começaram a tomar seu caminho para o segundo andar da delegacia, até a sala de Julie Stoner. Enquanto isso, null tinha perguntado a null o que Joe representava para ela.
A tentação de responder “tudo” era absurda, mas não poderia.
— Eu e Joe éramos próximos bem antes de ele morrer. Foi por uma briguinha nossa que me culparam pelo assassinato.
— E você ficou catatônica por isso?
— Não. Porque null parece muito Joe.
null franziu o cenho e deu um sorriso sem mostrar os dentes, torto.
— null é o inverso de Joe, null.
— Sabia que você ia me achar louca. Todos me acham louca.
null, cala a boca. Ele não é null. Não vai entender.
— Eu não te acho louca.
Você não devia ter dito isso, novato...
Abriram a porta do escritório de Julie.
— Ah, que susto — disse uma voz masculina de atrás da mesa da delegada.
— Um oficial não pode se assustar com essa facilidade, null — observou null, entrando na sala e fechando a porta atrás de si — null ou Marla aí atrás?
— Nenhuma. Não foi por alguém ter vindo. Foi por vocês dois terem vindo... Ao mesmo tempo. null fez uma careta.
— Descobriu alguma coisa?
null ficou de pé, saindo de trás da mesa. null ficou paralisada ao vê-lo, mesmo no escuro. A luz da rua contra a janela permitiu a ambos terem uma ideia de como ele estava: aquele homem grande, forte e alto não poderia ter escolhido fantasia melhor. Do rebelde sem causa. Usava uma jaqueta de couro, com os cabelos bagunçados e para cima. Sua blusa era branca, ou de alguma cor clara, e sua calça era um pouco larga e parecendo ser marrom clara. Era o eterno símbolo da rebeldia, algo que com certeza representava null.
Aquele era null null vestido de James Dean.
null não estava daquele jeito como tinha ficado com null. Agora ela estava simplesmente deslumbrada. Os dois se encararam por um tempo, olhando um ao outro dos pés à cabeça.
— Wow. Foi original, null. Um avanço para quem sempre vai na onda dos outros.
Não vou ser o Jack de vela perto do James Dean e da Marilyn Monroe.
— Rebelde sem causa, null. Não sou o único.
Espera, eu pensei isso mesmo?
— Vocês combinaram — falou null, com o toque de algo que null não conseguiu reconhecer em sua voz.
— Achou alguma pista? — repetiu null, voltando à realidade.
null apontou para o chão perto da janela. Ali, havia uma seta feita com clipes, apontando para a janela. null andou até lá, já um pouco cansada por seus saltos, mas conseguiu abrir a janela já semiaberta.
— Eu... Eu descobri uma coisa. Eu descobri! — ela disse, sem olhar para lugar nenhum a não ser para o lado de fora.
— O quê, null? — perguntou null, curioso, tentando se conter.
Ela se virou lentamente, mantendo o mistério.
— Eu descobri... Que você é um lesado. Não está apontando para a janela...
null passou seus dedos finos e delicados pela madeira da moldura da janela.
— É para o que está preso a ela.
E ergueu um pequeno papel dobrado. Desdobrou-o, com null e null em cada ombro, querendo ler o que estava escrito.
— “Não se engane pelo que não pode ver, o monstro se transforma para quem não o conhecer. E nas asas de um anjo caído encontrará, o tesouro que está a buscar.”
— Um anjo caído? Só pode ser null! — observou null.
Os dois correram até a porta, parecendo realmente estar se divertindo com o jogo, e tentaram abri-la.
— Por que você trancou a porta se iríamos abri-la logo depois? — perguntou null, para null, que girava a maçaneta sem sucesso.
— Eu não... Eu não tranquei a porta.
As luzes se acenderam momentaneamente, e apagando-se de novo depois. Isso vezes seguidas, repetidamente, em um pisca-pisca aterrorizante.
— null, pode parar, isso está me assustando — murmurou null, apoiando-se na parede, com medo.
A janela se fechou com força, mesmo não havendo vento. As luzes começaram a piscar mais rápido.
— Não era para isso acontecer — murmurou null.
null sentia seu sangue ferver em suas veias, correndo rápido por elas, como que procurando um meio de sair daquela situação de perigo. Ela tentou fixar-se à ideia que estaria segura com null e null, mas sabia que não estava.
Tem um fantasma aqui. É o fantasma de Joe.
null se ajoelhou no chão, com as mãos no rosto, escondendo-o. Deu um grito agudo e curto, como uma criança assustada.
As luzes se apagaram ao mesmo tempo em que ouviram um som surdo no andar debaixo. A escuridão voltara, e null e null viraram apenas vultos. Apenas névoa, lembranças. Aquilo já estava parecendo um livro do Stephen King, e parecia que estavam bem longe do final.
null andou até a janela, empurrando null para o lado. Sabia que som tinha sido aquele, aquele barulho surdo, morto. Abriu-a rapidamente, desesperado. Olhou para baixo e, imediatamente, virou o rosto.
— null, não venha para cá.
— null... — falou null, levantando o rosto de null — Ela não está acordada.
James Dean está vivo.
Jack Esqueleto é gentil.
Alex DeLarge voltou do mundo dos mortos.
E Marilyn Monroe desceu como o anjo caído...
E se Romeu deixasse Julieta antes da hora? E se Julieta não visse Romeu?
null. null. null.
null.
— null — chamou null, levantando seu rosto pelo queixo. null abriu os olhos lentamente, e olhou para cima. Havia um rosto branco, com uma boca costurada, no céu, bem perto dela.
— null? O que aconteceu? Eu estou...
— Não, null. Não diga isso — ele colocou as mãos em seus ombros — Você está bem.
null percebeu que estava sentada no sofá do salão da festa. Não havia música, luzes, nem pessoas felizes. A festa tinha acabado.
Great party, isn’t it?¹
— Eu desmaiei?
— Por uma hora. Está tudo bem agora.
— O que eu perdi, null? Só me lembro das luzes apagando, e...
Do anjo caído.
— null, se poupe. Vá para a casa, a festa acabou.
— Mas null...
— null vai te levar. Vou ficar aqui um pouco. Só durma, tudo bem? Descanse.
Ela assentiu. Levantou-se com a ajuda de null e percebeu que estava descalça, com as pernas bambas.
— Me ligue quando chegar. Quero saber se está tudo bem.
— Tudo bem. Vou avisar que já estou indo para casa.
null mordeu o lábio.
— Ah, droga! Deixei meu celular em casa. Posso usar o seu?
— null...
— Ok, ok, já entendi! null vai me levar para casa. Meu Deus, null, parece até que quer me esconder alguma coisa...
E despediu-se com um aceno, indo até o Audi de null, já com ela no volante.
Por Deus, null, nem cogite algo assim... Não quero ver você quando souber...
— null! — falou null, quando a amiga escorregou para o banco do carona. Tinha seu vestido preto levantado até o meio das coxas, para poder dirigir direito — Que susto você me deu.
— Eu? Susto?
— Claro! Desmaiou e tudo.
— O que aconteceu, hein? — null perguntou, quando null já estava na rua da delegacia.
A bonequinha de luxo suspirou.
— Não sei, não me contaram. Onde já se viu? Uma detetive como eu não saber desses tipos de coisa. Vou dedurar essa galera toda para a Julie! — ela disse erguendo o indicador para frente, como se estivesse realmente fazendo aquilo.
null limitou-se a rir. O resto do trajeto foi preenchido com uma conversa descontraída sobre o que tinha acontecido na festa, mais especificamente quantos null conseguira “fisgar”. null estava na lista.
Sem dúvidas, depois de null, null era sua melhor amiga.
Desceu do carro e procurou as chaves na bolsa para entrar em casa. Todas as portas estavam fechadas, e Tyler continuava dormindo na sala. null andou até seu quarto e entrou no chuveiro, tomando um banho revigorante. Depois, vestiu sua camisola e deitou em sua cama, ao lado de null.
— Amor? — ele perguntou, quando ela apagou a luz do banheiro — Como foi a festa?
— Foi boa... Pelo menos metade dela, que foi o tempo que eu fiquei acordada. Amanhã eu te conto detalhes, estou sem energia.
Ele girou seu corpo na cama lentamente, e só parou quando o tinha em cima do dela. null era pequena e baixa se comparada à null, e isso fazia deles um casal bonito. Ele beijou seu pescoço feroz, mordendo-a levemente e chupando sua pele.
— Tenho todo tempo do mundo para fazer outra coisa...
null riu, e passou as mãos pelos cabelos da nuca de null. Segurou-os com força e puxou para sua cabeça.
— Tenho toda a energia do mundo também.
Ei, Joe. Eu vi seu fantasma essa noite.
E eles se amaram por uma madrugada quase inteira.
Eu te amo, null. Nunca duvide disso. Mesmo que queiram te provar o contrário, mesmo que os fatos não estejam ao meu favor, eu te amo. Eu te amo muito. Eu faria qualquer coisa por você...
Você poderia compreender isso, amor? Eu só preciso que as coisas continuem assim. Tente entender.
Não saia da linha. Não saia.
Não saia.
¹ — Frase do filme O Iluminado
No, it's much better to face these kind of things with a sense of poise and rationality…
Capítulo 6 — In the flesh?
So ya, thought ya, might like to go to the show… To feel the warm thrill of confusion that space cadet glow…
— Agora eu entendo por que os cabelos daquela época eram tão armados. Esse gel não sai nem raspando — reclamou null, molhando os cabelos debaixo do chuveiro, vestindo apenas uma bermuda. Todos deviam estar em suas casas, dormindo, pelo menos era isso que ele esperava. Não queria ter que pensar o contrário.
O apartamento de null era grande demais para uma pessoa só. null fora educado desde criança a ser independente, mas o senhor e a senhora null não achavam que seu filho fosse levar isso tão a sério.
Não havia explicação para o que aconteceu. Um assassinato em plena festa de Halloween? Por favor, isso não fazia sentido nenhum!
E pior: o morto era um civil.
O telefone tocou gritante no quarto. Levando um susto por estar pensando tão concentrado, null pegou uma toalha e tentou secar o cabelo enquanto ia até o quarto para atender.
— Já vou! — falou, mesmo sabendo que falava com as paredes.
Olhou-se no espelho quando segurou o telefone. O peito musculoso estava estufado, pois sabia que, depois do que tinha acontecido, só podia ser uma ligação séria, e, por isso, ele precisava manter a voz firme.
— null null, quem fala? — ele disse, ainda olhando seu corpo quase escultural no espelho.
— null... É a null — disse uma voz fraca do outro lado da linha.
null sentiu seu corpo relaxar, não por ter percebido que não se tratava de uma ligação importante, mas porque era uma ligação de suma importância... E que provavelmente deveria ficar em segredo.
— null? Está tarde.
— Eu sei que está. O fuso horário da minha casa ainda é o mesmo do da sua — ela disse irônica, porém logo voltou à pose anterior — Achei que você talvez pudesse me dizer o que a aconteceu.
Ele engoliu em seco.
— Não sei muito mais do que você, null.
— Claro que sabe, null. Você e o resto da delegacia inteira.
Ele virou os olhos. null realmente não mudou muito desde a entrada no Manson: continuou cabeça-dura.
— null, null e eu mandamos você para casa por um motivo óbvio. Você não está preparada para assumir um caso.
— Então temos realmente um caso durante a festa?
— Eu não disse isso. Pode ser alarme falso. Não temos nada.
— Sem corpo, sem caso. É o que você sempre disse. E vice-versa, é o que eu sempre digo.
null ficou em silêncio.
— Alguma pista? — perguntou ela.
— Como está ligando a essa hora da noite? null, null e null não estão aí?
— null está, deve estar dormindo — null pôde imaginar o sorriso que se desenhava nos lábios rosados de null — null e null também. Pelo menos, eles não saíram do quarto. Mas me responda: temos alguma pista?
Um corpo esfaqueado, sem sinais de roubo, jogado de um terraço a princípio vazio. Até reconhecido ele foi.
Claro, porque identificar um corpo daqueles não seria nem um pouco difícil.
— Ok, se você não quer me contar, eu dou meu jeito — ela disse, interrompendo null do silêncio que ele, sem querer, se encontrava — Sei de uma pessoa que não vai conseguir esconder isso de mim por muito tempo.
— null. Escute o que eu estou te falando. Você não está autorizada a investigar qualquer caso sozinha. Se fosse ajudar em alguma coisa, deveria ser no caso da Fox, e não no caso novo.
— Então, temos um assassinato! — ela comemorou, vitoriosa por tê-lo feito falar — Obrigada, null. Sua contribuição foi de grande ajuda.
— null — ele interrompeu-a — Você continua insistindo no caso Durden?
— Claro que sim.
— Ele foi finalizado, null. Tivemos um culpado.
— Acontece que vocês prenderam a pessoa errada, e eu realmente suspeito que o assassino do Halloween e o assassino da Fox sejam a mesma pessoa. E quem sabe... — ela se interrompeu, pensativa — Até mesmo o assassino do Joe.
— Não consegue realmente chamá-lo de Durden, não é?
Ela desligou. Rindo, null se deitou no meio dos lençóis, sem camisa, sentindo seu corpo suar. E podia jurar que não estava sozinho naquela casa: o fantasma de Joe Durden assombrava todos de Longview.
— Não tem nada de errado com você, null. Nada que a gente já não saiba — brincou null, apontando uma lanterna diretamente para os olhos de null.
— Mas e a minha pressão? Você sabe que eu tenho histórico de hipertensos na família. Vai que...
— Hipertensa, no sentido literal da palavra, você não é. Mas que você está hipertensa, isso é verdade. O que houve?
null e null estavam na cozinha, e devia ser cinco da manhã. null e null dormiam pesadamente no andar de cima, e null tinha pedido para o amigo fazer uma consulta rápida, aproveitando que ele tinha levantado.
null costumava brincar que null era a ovelha negra da família.
Quando crianças, null e null eram inseparáveis. Se denominavam o Mr. Pink e a Mrs. Orange, personagens do filme Cães de Aluguel, e null foi a única do grupo que resolveu seguir carreira semelhante ao filme — como policial. Já null preferira ser médico, e ultimamente estava tentando ser forense. Quando houve o incidente Durden, ele já tinha trabalho quase garantido na polícia de Longview. Na faculdade, null entrara no grupo como a Mrs. White, pois acabou assumindo o papel da "mãezona" do trio. Não demorou muito para null e null serem um casal, e null nutrir por null um profundo sentimento de amizade e confiança. Mais tarde, null se uniu a eles como Mr. Blonde: o psiquiatra amante assíduo de distúrbios. Logo se tornou um membro do grupo como qualquer outro. Realmente, eram o quarteto perfeito, se não fosse o amigo de null que null chamava de "vírus", Joe Durden, e o irmão de null que null chamava de "doença", Tyler.
Realmente, havia muito sobre ela que eles desconheciam ou não compreendiam. Ela não se esforçava para tal.
null se surpreendeu ao perceber que null null sabia mais sobre ela do que seus melhores amigos.
— A festa não foi boa? Não gostaram da sua fantasia? Você estava mega gata. Se não fosse a null, eu já tinha te traçado.
— Senti falta do seu jeito especial de me elogiar, null — ela respondeu, e o amigo riu, cruzando os braços e apoiando-se na cozinha — A festa foi ótima, e levaram a brincadeira a sério até demais.
Ele se calou por um instante, e colocou a mão no bolso, ficando de frente para o amigo sentado na cadeira.
— Joe estava lá — arriscou null, parecendo ler a mente de null.
— Ele está em todo lugar. Eu só... Queria que ele estivesse aqui.
— Nem cogite falar uma merda dessas! Ele te mandou para o Manson — retrucou, irritado, quase dando um susto nela pelo jeito brusco com que se levantou.
— Não foi culpa dele. A única coisa que o coitado fez foi morrer!
null virou os olhos.
— Não se culpe, null. Você é a melhor pessoa que eu conheço. Não se torture por algo que você não fez.
Ele levantou o rosto dela com a ponta dos dedos em seu queixo, sua pele fria ao encontro da dela, fervente.
— Você é inocente. Nunca se esqueça disso. Você sabe que é.
— Eu sou, null?
— Você é. Não deixe ninguém te dizer o contrário.
Ela abaixou a cabeça e sentiu o toque seco dos lábios de null em sua testa, dando-lhe um beijo no meio desta, carinhoso.
— Eu te amo, null. Muito, demais. Tanto que eu te aguento há mais de vinte anos.
— Também te amo, pequena — ele retrucou, abraçando-a e apertando a cabeça da amiga contra seu peito. Agora ele parecia mais quente, como se a conversa dos dois pudesse ter dado a ele mais vida — Por mais irritante que você seja.
— A irritante que você ama.
— É, quase isso.
null se soltou do abraço.
— Se quiser, me livro do DVD de Laranja Mecânica. Ou vou assistir aquilo até meu cérebro se decompor, mas com você longe.
— Por favor, faça um dos dois.
E ele saiu da cozinha. null apagou as luzes e sentou-se na mesa com uma caneca de café na mão. Dormira o suficiente para descansar, já que sua mente pipocava.
Um assassinato? Fora um em dois dias seguidos.
Bebeu um gole do café e pegou seu caderno de anotações em cima da mesa. Segurou o lápis com força e começou a anotar o nome de todos os envolvidos na festa:
null
null
null
Marla
null
null
Juli...
Interrompeu-se. Não viu Julie na festa, apesar de ter praticamente certeza de que ela estava lá.
Alguém mais tinha ido? Lembrou-se de uma mensagem de texto que mandara para null no caminho de casa, falando da festa. A amiga confirmou sua presença com null, mas null também não tinha os visto. Pensou em gritar por null, e, de última hora, desistiu. Era como se estivesse sozinha em casa, com todos dormindo, apenas null acordada.
Como null sabe que não consigo mais ver Laranja Mecânica depois de hoje...?
Ela deitou em cima do caderno, e, logo depois, adormeceu.
O silêncio era predominante do lado de fora do prédio. Era como se a cidade inteira de Longview estivesse dormindo, e apenas null, null, Marla e um grande criminoso estivessem acordados.
O revólver tremia em suas mãos. Andava lentamente, medindo cada passo, como se estivesse no meio de um campo minado. Olhou para null ao seu lado, e ele indicou o prédio com a cabeça, olhando para Marla, atrás de null.
Sabia que estava sonhando. Dessa vez, sabia, apesar de não conseguir controlar o sonho.
Os três entraram lado a lado, ele na frente. Subiram dois andares de escada, e chegando ao último, ficaram atrás de uma parede para se protegerem.
O prédio estava abandonado.
null arriscou-se e, apontando a arma, deixou-se aparecer um pouco. Um tiro foi ouvido, e o oficial voltou para trás da parede, com o braço sangrando.
— Por Deus! — exclamou Marla.
null olhou para null, caído sentado, com um buraco de 9mm do braço. A expressão de dor no rosto do oficial foi suficiente para null ficar com raiva e, quase inconcientemente, avançar para o grande andar aberto do prédio.
Lá do outro lado, tinha um espelho, e seu reflexo com uma arma apontada para si mesma.
"Não é um espelho... Sou eu."
A arma abaixou-se devagar.
"Eu feri null.
Eu matei Joe.
Fui eu... Eu sou a culpada."
Acordou assustada e com todas as luzes apagadas. Devia ter dormido por quinze minutos, que já bastaram para um pesadelo. Levantou a cabeça e, pela primeira vez, sentiu o cheiro de queimado invadir seus pulmões.
Entornou uma caneca de café garganta abaixo.
Minha casa está em chamas.
Será que fui eu que a queimei também?
— Meu Deus, vai ter uma festa boa assim aqui em casa — exclamou null, aparecendo na cozinha sem camisa, vestindo apenas sua cueca boxer.
— Porra, null, essa imagem eu com certeza dispenso. Vai cobrir essa sua... Natureza humana direito! — retrucou null, que bebia seu café pensativo, e levou um susto ao ver o amigo seminu. Tapou os olhos.
— Ah, relaxa. O que bonito deve ser apreciado. Eu podia estar totalmente peladão. E não entra no meu quarto não, hein. Temos visita...
— Quem que vai pagar o táxi da visita?
null deu de ombros, servindo-se de um pouco de café e roubando um pedaço de bacon de null.
— A visita tem um carro. Um Audi, para ser preciso.
null ergueu as sobrancelhas e comprimiu os lábios.
— Que avanço, null.
— Concordo e comemoro. Só não tenta ver quem é, por favor. Ela não sabia que morávamos juntos. Quer deixar isso oculto, o que eu claramente acho muito mais sexy. De qualquer jeito, duvido que você adivinhe quem é...
— É a null — null respondeu, inexpressivo e tomando mais um gole de café.
— E como que essa mulher nunca cruzou meu caminho, null!? Me explica isso!
— Vai ver a sorte dela acabou.
null fez uma careta.
— E a null? Deu em alguma coisa?
— Não inventa, null. Temos uma relação estreitamente profissional.
— Você queria que não fosse.
— null, se eu vou trabalhar com a null, seja só nós dois ou não, preciso dar a ela motivos para confiar em mim. Foi o que fiz ontem.
Com um pouco de dor no coração, continuou:
— Ela está fragmentada. Estou me aproveitando disso, já que estou construindo meu caminho e minha reportagem. É duro fazer isso, mas é necessário.
Bebeu mais um gole de café, sentindo o calor da bebida quase queimar sua língua. Ele pensava que merecia aquilo.
null era comprometida com null. E, mesmo se não fosse, null nunca conseguiria competir com null. Então, o que quer que ele estivesse começando a nutrir por null deveria ser ignorado — o que quer que, aliás, ele não sabia mais diferenciar entre admiração, amizade ou o que fosse. Ele só sabia de uma coisa: não era bom o suficiente para ela. Não valeria a pena insistir com aquilo, então pelo menos tinha que se esforçar para terminar sua matéria. Naquele mesmo dia, deveria mandar para o jornal uma reportagem sobre o caso Fox, e agora sobre o caso do Halloween.
— Esse é meu garoto. Não a deixe fazer com você o que ela faz com null. null me contou que só existem três pessoas na delegacia que ela é gentil: null, Julie e você, null. Mas, mudando de assunto: alguma novidade sobre a morte de ontem?
null suspirou, pegando seu iPhone em cima da mesa.
— null vai surtar totalmente.
E viram a fumaça pela janela, apesar de ainda estar um pouco escuro.
— null, é da casa da null. Rápido, ligue para os bombeiros, aquele lugar vai virar pó!
A tela se iluminou, como se tivesse ouvido-o mencionar o nome de null. Tinha recebido uma mensagem de texto de um número desconhecido, que apenas dizia o seguinte:
“Cuidado com os amigos, null. Os piores se mantêm mais perto.”
Tell me, is something eluding you, sunshine? Is this not what you expected to see? If you wanna find out what's behind these cold eyes, you'll just have to claw your way through this disguise…
— Agora eu entendo por que os cabelos daquela época eram tão armados. Esse gel não sai nem raspando — reclamou null, molhando os cabelos debaixo do chuveiro, vestindo apenas uma bermuda. Todos deviam estar em suas casas, dormindo, pelo menos era isso que ele esperava. Não queria ter que pensar o contrário.
O apartamento de null era grande demais para uma pessoa só. null fora educado desde criança a ser independente, mas o senhor e a senhora null não achavam que seu filho fosse levar isso tão a sério.
Não havia explicação para o que aconteceu. Um assassinato em plena festa de Halloween? Por favor, isso não fazia sentido nenhum!
E pior: o morto era um civil.
O telefone tocou gritante no quarto. Levando um susto por estar pensando tão concentrado, null pegou uma toalha e tentou secar o cabelo enquanto ia até o quarto para atender.
— Já vou! — falou, mesmo sabendo que falava com as paredes.
Olhou-se no espelho quando segurou o telefone. O peito musculoso estava estufado, pois sabia que, depois do que tinha acontecido, só podia ser uma ligação séria, e, por isso, ele precisava manter a voz firme.
— null null, quem fala? — ele disse, ainda olhando seu corpo quase escultural no espelho.
— null... É a null — disse uma voz fraca do outro lado da linha.
null sentiu seu corpo relaxar, não por ter percebido que não se tratava de uma ligação importante, mas porque era uma ligação de suma importância... E que provavelmente deveria ficar em segredo.
— null? Está tarde.
— Eu sei que está. O fuso horário da minha casa ainda é o mesmo do da sua — ela disse irônica, porém logo voltou à pose anterior — Achei que você talvez pudesse me dizer o que a aconteceu.
Ele engoliu em seco.
— Não sei muito mais do que você, null.
— Claro que sabe, null. Você e o resto da delegacia inteira.
Ele virou os olhos. null realmente não mudou muito desde a entrada no Manson: continuou cabeça-dura.
— null, null e eu mandamos você para casa por um motivo óbvio. Você não está preparada para assumir um caso.
— Então temos realmente um caso durante a festa?
— Eu não disse isso. Pode ser alarme falso. Não temos nada.
— Sem corpo, sem caso. É o que você sempre disse. E vice-versa, é o que eu sempre digo.
null ficou em silêncio.
— Alguma pista? — perguntou ela.
— Como está ligando a essa hora da noite? null, null e null não estão aí?
— null está, deve estar dormindo — null pôde imaginar o sorriso que se desenhava nos lábios rosados de null — null e null também. Pelo menos, eles não saíram do quarto. Mas me responda: temos alguma pista?
Um corpo esfaqueado, sem sinais de roubo, jogado de um terraço a princípio vazio. Até reconhecido ele foi.
Claro, porque identificar um corpo daqueles não seria nem um pouco difícil.
— Ok, se você não quer me contar, eu dou meu jeito — ela disse, interrompendo null do silêncio que ele, sem querer, se encontrava — Sei de uma pessoa que não vai conseguir esconder isso de mim por muito tempo.
— null. Escute o que eu estou te falando. Você não está autorizada a investigar qualquer caso sozinha. Se fosse ajudar em alguma coisa, deveria ser no caso da Fox, e não no caso novo.
— Então, temos um assassinato! — ela comemorou, vitoriosa por tê-lo feito falar — Obrigada, null. Sua contribuição foi de grande ajuda.
— null — ele interrompeu-a — Você continua insistindo no caso Durden?
— Claro que sim.
— Ele foi finalizado, null. Tivemos um culpado.
— Acontece que vocês prenderam a pessoa errada, e eu realmente suspeito que o assassino do Halloween e o assassino da Fox sejam a mesma pessoa. E quem sabe... — ela se interrompeu, pensativa — Até mesmo o assassino do Joe.
— Não consegue realmente chamá-lo de Durden, não é?
Ela desligou. Rindo, null se deitou no meio dos lençóis, sem camisa, sentindo seu corpo suar. E podia jurar que não estava sozinho naquela casa: o fantasma de Joe Durden assombrava todos de Longview.
— Não tem nada de errado com você, null. Nada que a gente já não saiba — brincou null, apontando uma lanterna diretamente para os olhos de null.
— Mas e a minha pressão? Você sabe que eu tenho histórico de hipertensos na família. Vai que...
— Hipertensa, no sentido literal da palavra, você não é. Mas que você está hipertensa, isso é verdade. O que houve?
null e null estavam na cozinha, e devia ser cinco da manhã. null e null dormiam pesadamente no andar de cima, e null tinha pedido para o amigo fazer uma consulta rápida, aproveitando que ele tinha levantado.
null costumava brincar que null era a ovelha negra da família.
Quando crianças, null e null eram inseparáveis. Se denominavam o Mr. Pink e a Mrs. Orange, personagens do filme Cães de Aluguel, e null foi a única do grupo que resolveu seguir carreira semelhante ao filme — como policial. Já null preferira ser médico, e ultimamente estava tentando ser forense. Quando houve o incidente Durden, ele já tinha trabalho quase garantido na polícia de Longview. Na faculdade, null entrara no grupo como a Mrs. White, pois acabou assumindo o papel da "mãezona" do trio. Não demorou muito para null e null serem um casal, e null nutrir por null um profundo sentimento de amizade e confiança. Mais tarde, null se uniu a eles como Mr. Blonde: o psiquiatra amante assíduo de distúrbios. Logo se tornou um membro do grupo como qualquer outro. Realmente, eram o quarteto perfeito, se não fosse o amigo de null que null chamava de "vírus", Joe Durden, e o irmão de null que null chamava de "doença", Tyler.
Realmente, havia muito sobre ela que eles desconheciam ou não compreendiam. Ela não se esforçava para tal.
null se surpreendeu ao perceber que null null sabia mais sobre ela do que seus melhores amigos.
— A festa não foi boa? Não gostaram da sua fantasia? Você estava mega gata. Se não fosse a null, eu já tinha te traçado.
— Senti falta do seu jeito especial de me elogiar, null — ela respondeu, e o amigo riu, cruzando os braços e apoiando-se na cozinha — A festa foi ótima, e levaram a brincadeira a sério até demais.
Ele se calou por um instante, e colocou a mão no bolso, ficando de frente para o amigo sentado na cadeira.
— Joe estava lá — arriscou null, parecendo ler a mente de null.
— Ele está em todo lugar. Eu só... Queria que ele estivesse aqui.
— Nem cogite falar uma merda dessas! Ele te mandou para o Manson — retrucou, irritado, quase dando um susto nela pelo jeito brusco com que se levantou.
— Não foi culpa dele. A única coisa que o coitado fez foi morrer!
null virou os olhos.
— Não se culpe, null. Você é a melhor pessoa que eu conheço. Não se torture por algo que você não fez.
Ele levantou o rosto dela com a ponta dos dedos em seu queixo, sua pele fria ao encontro da dela, fervente.
— Você é inocente. Nunca se esqueça disso. Você sabe que é.
— Eu sou, null?
— Você é. Não deixe ninguém te dizer o contrário.
Ela abaixou a cabeça e sentiu o toque seco dos lábios de null em sua testa, dando-lhe um beijo no meio desta, carinhoso.
— Eu te amo, null. Muito, demais. Tanto que eu te aguento há mais de vinte anos.
— Também te amo, pequena — ele retrucou, abraçando-a e apertando a cabeça da amiga contra seu peito. Agora ele parecia mais quente, como se a conversa dos dois pudesse ter dado a ele mais vida — Por mais irritante que você seja.
— A irritante que você ama.
— É, quase isso.
null se soltou do abraço.
— Se quiser, me livro do DVD de Laranja Mecânica. Ou vou assistir aquilo até meu cérebro se decompor, mas com você longe.
— Por favor, faça um dos dois.
E ele saiu da cozinha. null apagou as luzes e sentou-se na mesa com uma caneca de café na mão. Dormira o suficiente para descansar, já que sua mente pipocava.
Um assassinato? Fora um em dois dias seguidos.
Bebeu um gole do café e pegou seu caderno de anotações em cima da mesa. Segurou o lápis com força e começou a anotar o nome de todos os envolvidos na festa:
null
null
null
Marla
null
null
Juli...
Interrompeu-se. Não viu Julie na festa, apesar de ter praticamente certeza de que ela estava lá.
Alguém mais tinha ido? Lembrou-se de uma mensagem de texto que mandara para null no caminho de casa, falando da festa. A amiga confirmou sua presença com null, mas null também não tinha os visto. Pensou em gritar por null, e, de última hora, desistiu. Era como se estivesse sozinha em casa, com todos dormindo, apenas null acordada.
Como null sabe que não consigo mais ver Laranja Mecânica depois de hoje...?
Ela deitou em cima do caderno, e, logo depois, adormeceu.
O silêncio era predominante do lado de fora do prédio. Era como se a cidade inteira de Longview estivesse dormindo, e apenas null, null, Marla e um grande criminoso estivessem acordados.
O revólver tremia em suas mãos. Andava lentamente, medindo cada passo, como se estivesse no meio de um campo minado. Olhou para null ao seu lado, e ele indicou o prédio com a cabeça, olhando para Marla, atrás de null.
Sabia que estava sonhando. Dessa vez, sabia, apesar de não conseguir controlar o sonho.
Os três entraram lado a lado, ele na frente. Subiram dois andares de escada, e chegando ao último, ficaram atrás de uma parede para se protegerem.
O prédio estava abandonado.
null arriscou-se e, apontando a arma, deixou-se aparecer um pouco. Um tiro foi ouvido, e o oficial voltou para trás da parede, com o braço sangrando.
— Por Deus! — exclamou Marla.
null olhou para null, caído sentado, com um buraco de 9mm do braço. A expressão de dor no rosto do oficial foi suficiente para null ficar com raiva e, quase inconcientemente, avançar para o grande andar aberto do prédio.
Lá do outro lado, tinha um espelho, e seu reflexo com uma arma apontada para si mesma.
"Não é um espelho... Sou eu."
A arma abaixou-se devagar.
"Eu feri null.
Eu matei Joe.
Fui eu... Eu sou a culpada."
Acordou assustada e com todas as luzes apagadas. Devia ter dormido por quinze minutos, que já bastaram para um pesadelo. Levantou a cabeça e, pela primeira vez, sentiu o cheiro de queimado invadir seus pulmões.
Entornou uma caneca de café garganta abaixo.
Minha casa está em chamas.
Será que fui eu que a queimei também?
— Meu Deus, vai ter uma festa boa assim aqui em casa — exclamou null, aparecendo na cozinha sem camisa, vestindo apenas sua cueca boxer.
— Porra, null, essa imagem eu com certeza dispenso. Vai cobrir essa sua... Natureza humana direito! — retrucou null, que bebia seu café pensativo, e levou um susto ao ver o amigo seminu. Tapou os olhos.
— Ah, relaxa. O que bonito deve ser apreciado. Eu podia estar totalmente peladão. E não entra no meu quarto não, hein. Temos visita...
— Quem que vai pagar o táxi da visita?
null deu de ombros, servindo-se de um pouco de café e roubando um pedaço de bacon de null.
— A visita tem um carro. Um Audi, para ser preciso.
null ergueu as sobrancelhas e comprimiu os lábios.
— Que avanço, null.
— Concordo e comemoro. Só não tenta ver quem é, por favor. Ela não sabia que morávamos juntos. Quer deixar isso oculto, o que eu claramente acho muito mais sexy. De qualquer jeito, duvido que você adivinhe quem é...
— É a null — null respondeu, inexpressivo e tomando mais um gole de café.
— E como que essa mulher nunca cruzou meu caminho, null!? Me explica isso!
— Vai ver a sorte dela acabou.
null fez uma careta.
— E a null? Deu em alguma coisa?
— Não inventa, null. Temos uma relação estreitamente profissional.
— Você queria que não fosse.
— null, se eu vou trabalhar com a null, seja só nós dois ou não, preciso dar a ela motivos para confiar em mim. Foi o que fiz ontem.
Com um pouco de dor no coração, continuou:
— Ela está fragmentada. Estou me aproveitando disso, já que estou construindo meu caminho e minha reportagem. É duro fazer isso, mas é necessário.
Bebeu mais um gole de café, sentindo o calor da bebida quase queimar sua língua. Ele pensava que merecia aquilo.
null era comprometida com null. E, mesmo se não fosse, null nunca conseguiria competir com null. Então, o que quer que ele estivesse começando a nutrir por null deveria ser ignorado — o que quer que, aliás, ele não sabia mais diferenciar entre admiração, amizade ou o que fosse. Ele só sabia de uma coisa: não era bom o suficiente para ela. Não valeria a pena insistir com aquilo, então pelo menos tinha que se esforçar para terminar sua matéria. Naquele mesmo dia, deveria mandar para o jornal uma reportagem sobre o caso Fox, e agora sobre o caso do Halloween.
— Esse é meu garoto. Não a deixe fazer com você o que ela faz com null. null me contou que só existem três pessoas na delegacia que ela é gentil: null, Julie e você, null. Mas, mudando de assunto: alguma novidade sobre a morte de ontem?
null suspirou, pegando seu iPhone em cima da mesa.
— null vai surtar totalmente.
E viram a fumaça pela janela, apesar de ainda estar um pouco escuro.
— null, é da casa da null. Rápido, ligue para os bombeiros, aquele lugar vai virar pó!
A tela se iluminou, como se tivesse ouvido-o mencionar o nome de null. Tinha recebido uma mensagem de texto de um número desconhecido, que apenas dizia o seguinte:
“Cuidado com os amigos, null. Os piores se mantêm mais perto.”
Tell me, is something eluding you, sunshine? Is this not what you expected to see? If you wanna find out what's behind these cold eyes, you'll just have to claw your way through this disguise…
Capítulo 7 — Smoke on the water
Smoke on the water, fire in the sky...
Normalmente, quando se há uma investigação de incêndio em um apartamento como o de null, é descoberto que o motivo foi uma pane elétrica. Quase sempre a energia gerada para alimentar muitas tomadas acaba entrando em curto-circuito, e o fogo começa, engolindo a seguir cortinas e móveis próximos. Normalmente, é assim. Às vezes, pessoas em má situação financeira saem de casa deixando para trás uma grande vela em uma poça de gasolina, com ramificações para o resto do apartamento. Isso é para pegar o seguro. De vez em quando, é um incêndio criminoso.
Nenhum desses foi o que aconteceu com null.
As luzes do prédio não se acendiam, mesmo depois de null ter pulado da cadeira e tentado acender as lâmpadas. A fumaça vinha do primeiro andar, e, naquele momento, null estava no segundo. De todos na casa, ela era a única que estava no segundo.
Saiu da cozinha e desceu as escadas de madeira para o primeiro andar, correndo pelo corredor em direção aos quartos. Olhou para a sala de entrada, toda consumida pelas chamas. A louça de vidro estava toda quebrada, o chão de carpete pegava fogo. Livros dos mais variados na prateleira queimavam, e null quase era capaz de ouvir os gritos de socorro dos personagens. Tossindo, e tropeçando, sentindo-se cansada, ela atravessou o corredor e chegou ao quarto de null.
— null! — gritou null, batendo na porta em desespero. A fumaça invadiu sua boca, parecendo inflá-la, e ela voltou a tossir — Por favor, abra! Precisamos sair daqui.
Não houve resposta. A outra porta foi aberta, de seu próprio quarto, e null saiu dali apressado. Chutou a porta de null com toda sua força e a fez abrir com um barulho forte. O fogo ameaçava alcançá-los.
null estava deitada na cama, desmaiada. O quarto tinha fogo brotando das paredes, destruindo totalmente os papéis de parede e engolindo todo guarda-roupa.
— Deve ter desmaiado pela fumaça.
null ainda queria entender como o fogo poderia ter começado. Estava em todo lugar.
null levantou null em seus braços e levou-a para fora do quarto.
— Rápido, vamos sair pela porta dos fundos!
Saiu do quarto, apenas com o fogo iluminando seu caminho, e foi até a sala de TV. Dali, null abriu a porta que dava para o jardim. Tyler estava ali, agradecendo aos céus pelos três estarem bem. Quando null já estava do lado de fora com null, e Tyler o ajudou a colocar a amiga no chão, null recuou.
A caixa com as fotos. Eu a coloquei na biblioteca.
— Eu já volto — e deu meia volta, entrando na casa novamente.
— null! Se voltar, não vai poder sair por aqui! — gritou null.
Ela voltou mais uma vez apenas para dizer:
— Não me siga.
E null não a viu mais.
null correu pelas escadas.
— null! — gritou.
— Estou aqui! null, rápido! — ele gritou do andar de cima.
null tropeçou no primeiro degrau, caindo com o joelho na madeira. Deu um grito agudo pela batida, mas logo se reergueu e voltou a subir, mesmo com a perna machucada.
— null! — gritou null, correndo pela escada até ela.
— Estou bem. Salve-se! — ela gritou, chegando finalmente ao segundo andar.
— Não saio daqui sem você.
null teria deixado uma lágrima escorrer, se não estivesse no meio de um incêndio.
Ela correu até a biblioteca, reunindo com os braços tudo que estivesse em cima da mesa do caso Fox ou do Durden. Quando reuniu tudo, tossiu e percebeu que sua visão se tornava turva. Abaixou e pegou embaixo da mesa a caixa de sapatos com as fotos. Aquilo não poderia se perder nunca.
— null! — gritou null, para que ela se apressasse.
Ela olhou para o lado. No fim do corredor, estava uma moça de pé. Tinha a mesma altura de null, mas era loira, com o cabelo fino e bem ondulado, na altura do busto. Vestia uma blusa roxa e um casaco preto pesado por cima. Os jeans azuis escuros eram rasgados, e também usava botas pretas. Os olhos eram azuis, bem azuis, como as chamas permitiam perceber. O nariz era fino, levemente arrebitado, e tinha lábios finos e rosados. Parecia usar muita maquiagem, do contrário, era perfeita. Os olhos tinham uma linha de delineador que seguiam demarcando além do limite da pálpebra. E tinha um sorriso discreto nos lábios, quase torto, quase sarcástico, quase divertido. Ela ergueu a mão e mostrou o pequeno isqueiro em suas mãos. null ficou de pé, olhando fixamente a moça do outro lado do curto corredor. null tentava fazê-la se mover, mas era impossível.
Você queimou minha casa. Você queimou minha história.
A moça riu insanamente. null não lembrava de tê-la conhecido algum dia de sua vida.
— Nunca deixe pessoas conhecerem seu lado feio, null — disse ela, com uma voz doce. Se não percebesse que ela tinha incendiado a casa, null poderia julgá-la um anjo. Porém, um anjo caído, consequentemente, um ser mentiroso. Bela apenas exteriormente.
— Conhece meu lado feio? — perguntou null.
Pôde ler no isqueiro “It’s only after we’ve lost everything that we’re free to do anything”.
Sua visão se tornava cada vez menos nítida, e podia sentir seus braços e pernas fraquejarem.
— Não podemos descer as escadas — observou null, olhando o fogo que subia até o segundo andar.
A moça loira riu graciosamente.
null olhou para seu melhor amigo. E, em seguida, para a janela.
— Fique tranquila. Do chão você não passa — avisou a moça loira.
— Quem é você? Como entrou na minha casa? — gritou null, andando até a moça.
— null! — gritou null, puxando-a pelo braço — Não temos tempo!
A moça andou até o outro lado do corredor, até a janela. Antes de pular como um gato para fora do prédio, finalizou:
— Me chame como quiser. Ramona seria seu melhor palpite.
Tinha praticamente certeza de que ela não se chamava Ramona, mas preferiu seguir sua dica e chamá-la assim.
null voltou para a biblioteca e olhou para a janela. Ela daria direto para o jardim, onde null e null estavam. Olhou para null.
— Vai primeiro — ele disse.
— null...
— null, vai primeiro.
Olhou para baixo e não pulou. Desmaiou pela fumaça e deixou seu corpo cair, não na grama. Tyler estava ali para amortecer a queda. Os dois caíram juntos, certamente machucados. E null não se lembrou mais de nada depois disso.
Abriu os olhos lentamente, como se acordasse depois de uma noite bem dormida e sem despertador. À sua volta, tudo era branco, inicialmente não sendo possível distinguir o que era o quê.
Eu morri?
Levantou a cabeça, e ouviu vozes ao seu lado.
— Finalmente!
null riu torto. Reconheceu que estava em uma ambulância, que não estava em movimento.
— Consegue respirar? — perguntou Tyler, colocando a mão na testa da irmã.
— É como se tivesse pedrinhas de calcário no meu pulmão. Fora isso, estou bem.
Olhou em volta. Estava na rua de seu prédio, deitada na maca da ambulância, com cinco médicos em volta de si.
— Quanto tempo fiquei assim?
— Uma hora. Apagaram o fogo.
— Adiantou alguma coisa?
Tyler deu de ombros.
— Não muito. Perdemos muita coisa.
— Perdemos? Você perdeu o quê? — perguntou null, revoltado, ao lado de Tyler. Foi só então que null o viu ali.
— Minha nova casa.
— Engraçado como você estava do lado de fora da casa quando começou a pegar fogo — observou null, sentado na ambulância, mas com as pernas balançando para fora, quase com os pés tocando o chão da rua.
— Assim que o fogo começou, eu saí. Vocês apareceram logo depois.
— Podia ter nos salvado, seu egoísta.
— Vocês dois. Não é hora. Os dois estão bem?
Ambos concordaram. Um dos médicos, um de cabelos pretos que aparentava ter uns cinquenta anos, com cara de rabugento, respondeu:
— Os dois estão bem. O Sr. null não teve qualquer problema, e seu noivo logo teve seu pulmão limpo novamente. A senhorita que teve algumas queimaduras, bem leves, nas mãos. E seu pulmão parecia uma nuvem de chuva.
— Estou melhor agora?
— Está viva.
null fez uma careta, tirando os pés da maca e tentando se manter de pé. Conseguiu, mas continuava tonta. Sentou no chão ao lado de Tyler, com null na ponta.
— null! — chamou null, que vinha correndo até a ambulância. Usava um short jeans e uma blusa dos Ursinhos Carinhosos, aparentemente seus pijamas — Você quase me matou.
— Eu quase me matei. Não faço ideia do que aconteceu lá em cima.
null segurou a mão da amiga e puxou-a, fazendo null ficar de pé e passando seu braço por seu próprio pescoço. Ela e null saíram de perto de Tyler e null, e andaram até o meio-fio.
— Você está bem?
— Estou melhorando. Viu null e null por aí?
— Não vi null. E null deve estar dando algum depoimento. Eu vim de casa desesperada, avisaram-me que sua casa estava pegando fogo, e eu vim te ver.
— Espera. Depoimento? Tem alguém da delegacia aí?
null apontou para lado, onde Marla e Julie anotavam o que uma histérica null ditava.
— Marla? Está de brincadeira.
— null, o que menos está acontecendo é uma brincadeira. Estamos suspeitando que tenha acontecido um incêndio criminal.
— Suspeitando?! Eu tenho certeza! Ei — gritou null, ficando de pé e quase caindo, apoiando-se em null e olhando para Marla —, Bronx! Tenho umas histórias para contar.
Marla girou os olhos. Andou até null. Usava calças jeans, sapatilhas e uma blusa qualquer, o que indicava que também saiu correndo de casa.
— Olha, null, eu realmente não quero ouvir a sua versão. Sua amiga me disse que você ficou um tempão lá dentro, então pode ter delirado.
— Delirado? Eu vi alguém — apontou para o prédio — E o nome dela é Ramona.
Marla cruzou os braços.
— Ramona?
— Foi o que ela me disse. Acho que não é esse o nome.
— Lembra-se do rosto dela?
— Perfeitamente.
null descreveu Ramona exatamente como tinha visto-a. Depois, deu um suspiro, sentindo-se muito mais leve.
— Ela saiu pela janela, como você disse? — perguntou Marla, agindo de modo profissional, como se não estivesse falando com a mulher que mais odeia no mundo.
— Saiu. Ela pulou.
— Agora ela deve estar longe. Mas vamos procurar por ela, null. Não se preocupe.
Saiu de perto de null e foi até a ambulância. Julie foi até null e null e abraçou a segunda.
— null! Graças a Deus!
— Obrigada, Julie — ela retrucou, retribuindo o abraço. A delegada era praticamente sua mãe, e ela estava certa disso.
— Você vai precisar ir para algum lugar enquanto o prédio não estiver em condições. Vai passar umas semanas fora pelo menos.
null olhou para null.
— Desculpa, eu realmente não posso. Minha família está vindo para uma visita e a casa é pequena.
null suspirou.
— Vou arrumar um jeito.
— Também poderia te oferecer minha casa, null, mas estou com problemas pelo divórcio. Não é clima de ter mais uma pessoa por lá.
— Não se preocupe, Julie. Vou falar com alguém. Senão, vou para um hotel.
— Tentou a Marla?
null ergueu a sobrancelha esquerda e cruzou os braços, como quem diz “sério?”.
— Ok, ok — disse Julie, rindo e com as mãos na altura do rosto, rendendo-se — Risque Marla das suas opções. Quem sobrou?
— O null! — disse null, rindo como uma adolescente e cutucando o braço de null.
— null está certa. Por que não fala com o novato, o null? — perguntou Julie.
— Posso falar com ele. Antes, talvez eu fale com null. Mas preciso saber onde Tyler, null e null podem ficar. E também tem outra coisa...
— O quê?
— Minha mãe.
null pegou o celular e discou o número de null. Ele logo atendeu, com a voz carregada.
— Alôôôôôôôôô...? — perguntou, finalmente. null podia imaginá-lo do outro lado da linha, passando as costas da mão pelos olhos.
— null? — perguntou.
— Ah. Oi, null. Sabe que horas são?
— Vou repetir que meu fuso horário ainda é o mesmo que o seu. Por mais que você não quisesse isso. Mas null, preciso da sua ajuda.
— Precisa, é? Logo da minha?
— Você anda me devendo umas.
null suspirou.
— Fala antes que eu me arrependa, null.
— Assim melhorou. E olha o respeito, colega. Não sei se você ficou sabendo, mas minha casa virou churrasco.
— O quê?! — ele perguntou quase gritando — Tudo bem? Estão todos bem?
— Tudo ótimo, ainda bem que ninguém se machucou gravemente — “Além de mim”, ela pensou — No entanto, preciso de um lugar para ficar.
null bufou.
— Ah sim. Eu cobro a estadia.
— Isso é um sim?
— null — ele começou, claramente mais acordado, prestando atenção na situação —, eu moro sozinho. Aqui é uma bagunça. Casa de homem, mas você não deve saber como é. Enfim, não acho uma boa ideia.
— Por quê, null?
— Porque...
null queria dizer muitas coisas. Queria dizer que não queria estar sob o mesmo teto que null. Que não a suportava nem por quinze minutos, que dirá por um dia inteiro. Queria dizer que uma mulher em sua casa era algo totalmente desconhecido — nem quando era casado se sentia bem. Queria dizer que null era insuportável. Queria dizer que tê-la por perto significava desenterrar coisas. Queria dizer que o que estava esquecido, deveria permanecer esquecido.
Queria dizer que ter null lá seria algo que o levaria ao pecado.
— Não é uma boa ideia, null. Você sabe que não — ele finalmente disse.
— Ok, null. Vou ver mais alguém.
— Ah, ligue para o novato. Ele já tem um colega de quarto. O cara é bacana. null, acho que é ele. Você não tem a casa dos seus pais?
— Não, null.
E desligou sem demorar. Ir para a casa da sua mãe era inaceitável.
— Ei, moça — chamou uma voz atrás dela — É preciso mais que um fósforo pra te derrubar, hein.
Olhando para trás, null viu que null e null se aproximavam.
— Tudo bem? — perguntou null, com as mãos nos bolsos. Não havia mais ninguém perto dos três, pois estavam no fim da rua.
— Estou bem. Minhas mãos não podem dizer a mesma coisa — null ergueu as mãos enfaixadas.
— Nós vimos a fumaça lá de casa — null se manifestou pela primeira vez — A gente mora a uns três quarteirões.
— Foram vocês que chamaram os bombeiros? Porque eles chegaram rápido demais para ter sido o null.
— Fui eu — disse null — Mas enfim. Perdeu muita coisa? Todos estão bem?
— O fogo detonou muito. Julie disse que se um terço das minhas roupas estiverem “vestíveis”, poderia usar essa sorte na loteria. E os outros estão bem.
O silêncio pesou, e null deu uma cotovelada de leve no braço de null. O último girou os olhos, e a cor subiu ao seu rosto.
— Você... Gostaria de ir morar com a gente por um tempo? — perguntou null.
null riu.
— Vocês estão me convidando para dividir apartamento?
— Tem espaço lá. Podemos pôr um colchão no chão do escritório — falou null.
— Por que estão fazendo isso? — ela perguntou, cruzando os braços e franzindo o cenho, com um sorriso torto.
— Porque ninguém foi legal com você. Nenhum daqueles egoístas te ofereceram um lugar para ficar — apontou null.
— É, null. Eles são idiotas. Falaram que não têm lugar para que você fique, mas tenho certeza de que poderiam dar um jeito.
— Não vou dar trabalho? — perguntou ela, com um pouco de vergonha — Não quero incomodar vocês.
— Ah, null, por favor — falou null, amistoso — Você não é uma criança, e nós não somos um casal gay.
— Por isso mesmo. Não posso espantar garotas?
— Bem, para o null, não vai fazer muita diferença, não é, parceiro? — perguntou null, rindo e dando um soquinho no braço do outro — E eu me garanto. Você não vai nem ver as garotas que eu levar. Nem ouvir.
null riu.
— Bem, então acho que posso ir. Se estiver tudo bem.
— Vai estar. Pode nos encontrar no carro quando quiser, vamos sair assim que você quiser.
— Podem ir. Só vou pegar algo que conseguiu se salvar.
null e null foram até o Audi de null e entraram, com o último dirigindo. null foi até onde estava um dos bombeiros.
— Senhor, alguma roupa está inteira?
— Algumas — ele respondeu, com cara de que tentava omitir ao máximo as notícias ruins, apontando para um montinho de roupas e alguns sapatos dentro de um saco — Acredito que essas sejam suas ou da sua amiga. Essa mala aqui também conseguiu se salvar. Só está um pouco molhada.
— Ah, muito obrigada — null se ajoelhou e abriu a mala, daquelas duras e de viagem longa. Pegou o saco e, tirando o máximo que pôde o ar deste, colocou ali dentro, fechando a mala a seguir. Levantou-a e perguntou: — E as coisas que eu consegui tirar da casa?
O bombeiro apontou para a caixa de papelão intacta e os papéis amontoados perfeitamente ali perto.
— Os papéis voaram pelo jardim, mas conseguimos juntar tudo. Espero que nada tenha se perdido — fez uma pausa — Devem ser coisas realmente importantes, Srta. null.
Ela não respondeu e agradeceu. Com a mala em mãos e a caixa com os papéis embaixo do braço, andou até onde estava null e Tyler.
— Já arrumei um lugar para ficar. E vocês?
— Vou para a casa de um casal de amigos lá do hospital. Os dois filhos estão na casa da avó, e eles têm dois quartos sobrando. Tyler e null também vão comigo.
— Graças a Deus, null — ela disse, abaixando a cabeça e dando um selinho nos lábios do noivo — Me ligue quando chegar. E peça para null me ligar, quero saber onde ele está.
E foi até o Audi de null, entrando atrás, com dor de cabeça. Depois de fechar a porta e se acomodar com a caixa e a mala, suspirou e disse:
— Muito obrigada mesmo. Vocês não imaginam como estão me ajudando.
— Tranquilo, null. Vamos logo se quiserem dormir antes de ir trabalhar — falou null.
O celular de null se acendeu. Quando ela olhou-o, estava uma mensagem de número desconhecido:
“Espero que possamos nos ver de novo, com mais calma. Posso terminar meu trabalho. Como está?”
Ramona.
“Inteira”, respondeu null.
Não houve resposta.
No matter what we get out of this, I know, I know we’ll never forget...
Normalmente, quando se há uma investigação de incêndio em um apartamento como o de null, é descoberto que o motivo foi uma pane elétrica. Quase sempre a energia gerada para alimentar muitas tomadas acaba entrando em curto-circuito, e o fogo começa, engolindo a seguir cortinas e móveis próximos. Normalmente, é assim. Às vezes, pessoas em má situação financeira saem de casa deixando para trás uma grande vela em uma poça de gasolina, com ramificações para o resto do apartamento. Isso é para pegar o seguro. De vez em quando, é um incêndio criminoso.
Nenhum desses foi o que aconteceu com null.
As luzes do prédio não se acendiam, mesmo depois de null ter pulado da cadeira e tentado acender as lâmpadas. A fumaça vinha do primeiro andar, e, naquele momento, null estava no segundo. De todos na casa, ela era a única que estava no segundo.
Saiu da cozinha e desceu as escadas de madeira para o primeiro andar, correndo pelo corredor em direção aos quartos. Olhou para a sala de entrada, toda consumida pelas chamas. A louça de vidro estava toda quebrada, o chão de carpete pegava fogo. Livros dos mais variados na prateleira queimavam, e null quase era capaz de ouvir os gritos de socorro dos personagens. Tossindo, e tropeçando, sentindo-se cansada, ela atravessou o corredor e chegou ao quarto de null.
— null! — gritou null, batendo na porta em desespero. A fumaça invadiu sua boca, parecendo inflá-la, e ela voltou a tossir — Por favor, abra! Precisamos sair daqui.
Não houve resposta. A outra porta foi aberta, de seu próprio quarto, e null saiu dali apressado. Chutou a porta de null com toda sua força e a fez abrir com um barulho forte. O fogo ameaçava alcançá-los.
null estava deitada na cama, desmaiada. O quarto tinha fogo brotando das paredes, destruindo totalmente os papéis de parede e engolindo todo guarda-roupa.
— Deve ter desmaiado pela fumaça.
null ainda queria entender como o fogo poderia ter começado. Estava em todo lugar.
null levantou null em seus braços e levou-a para fora do quarto.
— Rápido, vamos sair pela porta dos fundos!
Saiu do quarto, apenas com o fogo iluminando seu caminho, e foi até a sala de TV. Dali, null abriu a porta que dava para o jardim. Tyler estava ali, agradecendo aos céus pelos três estarem bem. Quando null já estava do lado de fora com null, e Tyler o ajudou a colocar a amiga no chão, null recuou.
A caixa com as fotos. Eu a coloquei na biblioteca.
— Eu já volto — e deu meia volta, entrando na casa novamente.
— null! Se voltar, não vai poder sair por aqui! — gritou null.
Ela voltou mais uma vez apenas para dizer:
— Não me siga.
E null não a viu mais.
null correu pelas escadas.
— null! — gritou.
— Estou aqui! null, rápido! — ele gritou do andar de cima.
null tropeçou no primeiro degrau, caindo com o joelho na madeira. Deu um grito agudo pela batida, mas logo se reergueu e voltou a subir, mesmo com a perna machucada.
— null! — gritou null, correndo pela escada até ela.
— Estou bem. Salve-se! — ela gritou, chegando finalmente ao segundo andar.
— Não saio daqui sem você.
null teria deixado uma lágrima escorrer, se não estivesse no meio de um incêndio.
Ela correu até a biblioteca, reunindo com os braços tudo que estivesse em cima da mesa do caso Fox ou do Durden. Quando reuniu tudo, tossiu e percebeu que sua visão se tornava turva. Abaixou e pegou embaixo da mesa a caixa de sapatos com as fotos. Aquilo não poderia se perder nunca.
— null! — gritou null, para que ela se apressasse.
Ela olhou para o lado. No fim do corredor, estava uma moça de pé. Tinha a mesma altura de null, mas era loira, com o cabelo fino e bem ondulado, na altura do busto. Vestia uma blusa roxa e um casaco preto pesado por cima. Os jeans azuis escuros eram rasgados, e também usava botas pretas. Os olhos eram azuis, bem azuis, como as chamas permitiam perceber. O nariz era fino, levemente arrebitado, e tinha lábios finos e rosados. Parecia usar muita maquiagem, do contrário, era perfeita. Os olhos tinham uma linha de delineador que seguiam demarcando além do limite da pálpebra. E tinha um sorriso discreto nos lábios, quase torto, quase sarcástico, quase divertido. Ela ergueu a mão e mostrou o pequeno isqueiro em suas mãos. null ficou de pé, olhando fixamente a moça do outro lado do curto corredor. null tentava fazê-la se mover, mas era impossível.
Você queimou minha casa. Você queimou minha história.
A moça riu insanamente. null não lembrava de tê-la conhecido algum dia de sua vida.
— Nunca deixe pessoas conhecerem seu lado feio, null — disse ela, com uma voz doce. Se não percebesse que ela tinha incendiado a casa, null poderia julgá-la um anjo. Porém, um anjo caído, consequentemente, um ser mentiroso. Bela apenas exteriormente.
— Conhece meu lado feio? — perguntou null.
Pôde ler no isqueiro “It’s only after we’ve lost everything that we’re free to do anything”.
Sua visão se tornava cada vez menos nítida, e podia sentir seus braços e pernas fraquejarem.
— Não podemos descer as escadas — observou null, olhando o fogo que subia até o segundo andar.
A moça loira riu graciosamente.
null olhou para seu melhor amigo. E, em seguida, para a janela.
— Fique tranquila. Do chão você não passa — avisou a moça loira.
— Quem é você? Como entrou na minha casa? — gritou null, andando até a moça.
— null! — gritou null, puxando-a pelo braço — Não temos tempo!
A moça andou até o outro lado do corredor, até a janela. Antes de pular como um gato para fora do prédio, finalizou:
— Me chame como quiser. Ramona seria seu melhor palpite.
Tinha praticamente certeza de que ela não se chamava Ramona, mas preferiu seguir sua dica e chamá-la assim.
null voltou para a biblioteca e olhou para a janela. Ela daria direto para o jardim, onde null e null estavam. Olhou para null.
— Vai primeiro — ele disse.
— null...
— null, vai primeiro.
Olhou para baixo e não pulou. Desmaiou pela fumaça e deixou seu corpo cair, não na grama. Tyler estava ali para amortecer a queda. Os dois caíram juntos, certamente machucados. E null não se lembrou mais de nada depois disso.
Abriu os olhos lentamente, como se acordasse depois de uma noite bem dormida e sem despertador. À sua volta, tudo era branco, inicialmente não sendo possível distinguir o que era o quê.
Eu morri?
Levantou a cabeça, e ouviu vozes ao seu lado.
— Finalmente!
null riu torto. Reconheceu que estava em uma ambulância, que não estava em movimento.
— Consegue respirar? — perguntou Tyler, colocando a mão na testa da irmã.
— É como se tivesse pedrinhas de calcário no meu pulmão. Fora isso, estou bem.
Olhou em volta. Estava na rua de seu prédio, deitada na maca da ambulância, com cinco médicos em volta de si.
— Quanto tempo fiquei assim?
— Uma hora. Apagaram o fogo.
— Adiantou alguma coisa?
Tyler deu de ombros.
— Não muito. Perdemos muita coisa.
— Perdemos? Você perdeu o quê? — perguntou null, revoltado, ao lado de Tyler. Foi só então que null o viu ali.
— Minha nova casa.
— Engraçado como você estava do lado de fora da casa quando começou a pegar fogo — observou null, sentado na ambulância, mas com as pernas balançando para fora, quase com os pés tocando o chão da rua.
— Assim que o fogo começou, eu saí. Vocês apareceram logo depois.
— Podia ter nos salvado, seu egoísta.
— Vocês dois. Não é hora. Os dois estão bem?
Ambos concordaram. Um dos médicos, um de cabelos pretos que aparentava ter uns cinquenta anos, com cara de rabugento, respondeu:
— Os dois estão bem. O Sr. null não teve qualquer problema, e seu noivo logo teve seu pulmão limpo novamente. A senhorita que teve algumas queimaduras, bem leves, nas mãos. E seu pulmão parecia uma nuvem de chuva.
— Estou melhor agora?
— Está viva.
null fez uma careta, tirando os pés da maca e tentando se manter de pé. Conseguiu, mas continuava tonta. Sentou no chão ao lado de Tyler, com null na ponta.
— null! — chamou null, que vinha correndo até a ambulância. Usava um short jeans e uma blusa dos Ursinhos Carinhosos, aparentemente seus pijamas — Você quase me matou.
— Eu quase me matei. Não faço ideia do que aconteceu lá em cima.
null segurou a mão da amiga e puxou-a, fazendo null ficar de pé e passando seu braço por seu próprio pescoço. Ela e null saíram de perto de Tyler e null, e andaram até o meio-fio.
— Você está bem?
— Estou melhorando. Viu null e null por aí?
— Não vi null. E null deve estar dando algum depoimento. Eu vim de casa desesperada, avisaram-me que sua casa estava pegando fogo, e eu vim te ver.
— Espera. Depoimento? Tem alguém da delegacia aí?
null apontou para lado, onde Marla e Julie anotavam o que uma histérica null ditava.
— Marla? Está de brincadeira.
— null, o que menos está acontecendo é uma brincadeira. Estamos suspeitando que tenha acontecido um incêndio criminal.
— Suspeitando?! Eu tenho certeza! Ei — gritou null, ficando de pé e quase caindo, apoiando-se em null e olhando para Marla —, Bronx! Tenho umas histórias para contar.
Marla girou os olhos. Andou até null. Usava calças jeans, sapatilhas e uma blusa qualquer, o que indicava que também saiu correndo de casa.
— Olha, null, eu realmente não quero ouvir a sua versão. Sua amiga me disse que você ficou um tempão lá dentro, então pode ter delirado.
— Delirado? Eu vi alguém — apontou para o prédio — E o nome dela é Ramona.
Marla cruzou os braços.
— Ramona?
— Foi o que ela me disse. Acho que não é esse o nome.
— Lembra-se do rosto dela?
— Perfeitamente.
null descreveu Ramona exatamente como tinha visto-a. Depois, deu um suspiro, sentindo-se muito mais leve.
— Ela saiu pela janela, como você disse? — perguntou Marla, agindo de modo profissional, como se não estivesse falando com a mulher que mais odeia no mundo.
— Saiu. Ela pulou.
— Agora ela deve estar longe. Mas vamos procurar por ela, null. Não se preocupe.
Saiu de perto de null e foi até a ambulância. Julie foi até null e null e abraçou a segunda.
— null! Graças a Deus!
— Obrigada, Julie — ela retrucou, retribuindo o abraço. A delegada era praticamente sua mãe, e ela estava certa disso.
— Você vai precisar ir para algum lugar enquanto o prédio não estiver em condições. Vai passar umas semanas fora pelo menos.
null olhou para null.
— Desculpa, eu realmente não posso. Minha família está vindo para uma visita e a casa é pequena.
null suspirou.
— Vou arrumar um jeito.
— Também poderia te oferecer minha casa, null, mas estou com problemas pelo divórcio. Não é clima de ter mais uma pessoa por lá.
— Não se preocupe, Julie. Vou falar com alguém. Senão, vou para um hotel.
— Tentou a Marla?
null ergueu a sobrancelha esquerda e cruzou os braços, como quem diz “sério?”.
— Ok, ok — disse Julie, rindo e com as mãos na altura do rosto, rendendo-se — Risque Marla das suas opções. Quem sobrou?
— O null! — disse null, rindo como uma adolescente e cutucando o braço de null.
— null está certa. Por que não fala com o novato, o null? — perguntou Julie.
— Posso falar com ele. Antes, talvez eu fale com null. Mas preciso saber onde Tyler, null e null podem ficar. E também tem outra coisa...
— O quê?
— Minha mãe.
null pegou o celular e discou o número de null. Ele logo atendeu, com a voz carregada.
— Alôôôôôôôôô...? — perguntou, finalmente. null podia imaginá-lo do outro lado da linha, passando as costas da mão pelos olhos.
— null? — perguntou.
— Ah. Oi, null. Sabe que horas são?
— Vou repetir que meu fuso horário ainda é o mesmo que o seu. Por mais que você não quisesse isso. Mas null, preciso da sua ajuda.
— Precisa, é? Logo da minha?
— Você anda me devendo umas.
null suspirou.
— Fala antes que eu me arrependa, null.
— Assim melhorou. E olha o respeito, colega. Não sei se você ficou sabendo, mas minha casa virou churrasco.
— O quê?! — ele perguntou quase gritando — Tudo bem? Estão todos bem?
— Tudo ótimo, ainda bem que ninguém se machucou gravemente — “Além de mim”, ela pensou — No entanto, preciso de um lugar para ficar.
null bufou.
— Ah sim. Eu cobro a estadia.
— Isso é um sim?
— null — ele começou, claramente mais acordado, prestando atenção na situação —, eu moro sozinho. Aqui é uma bagunça. Casa de homem, mas você não deve saber como é. Enfim, não acho uma boa ideia.
— Por quê, null?
— Porque...
null queria dizer muitas coisas. Queria dizer que não queria estar sob o mesmo teto que null. Que não a suportava nem por quinze minutos, que dirá por um dia inteiro. Queria dizer que uma mulher em sua casa era algo totalmente desconhecido — nem quando era casado se sentia bem. Queria dizer que null era insuportável. Queria dizer que tê-la por perto significava desenterrar coisas. Queria dizer que o que estava esquecido, deveria permanecer esquecido.
Queria dizer que ter null lá seria algo que o levaria ao pecado.
— Não é uma boa ideia, null. Você sabe que não — ele finalmente disse.
— Ok, null. Vou ver mais alguém.
— Ah, ligue para o novato. Ele já tem um colega de quarto. O cara é bacana. null, acho que é ele. Você não tem a casa dos seus pais?
— Não, null.
E desligou sem demorar. Ir para a casa da sua mãe era inaceitável.
— Ei, moça — chamou uma voz atrás dela — É preciso mais que um fósforo pra te derrubar, hein.
Olhando para trás, null viu que null e null se aproximavam.
— Tudo bem? — perguntou null, com as mãos nos bolsos. Não havia mais ninguém perto dos três, pois estavam no fim da rua.
— Estou bem. Minhas mãos não podem dizer a mesma coisa — null ergueu as mãos enfaixadas.
— Nós vimos a fumaça lá de casa — null se manifestou pela primeira vez — A gente mora a uns três quarteirões.
— Foram vocês que chamaram os bombeiros? Porque eles chegaram rápido demais para ter sido o null.
— Fui eu — disse null — Mas enfim. Perdeu muita coisa? Todos estão bem?
— O fogo detonou muito. Julie disse que se um terço das minhas roupas estiverem “vestíveis”, poderia usar essa sorte na loteria. E os outros estão bem.
O silêncio pesou, e null deu uma cotovelada de leve no braço de null. O último girou os olhos, e a cor subiu ao seu rosto.
— Você... Gostaria de ir morar com a gente por um tempo? — perguntou null.
null riu.
— Vocês estão me convidando para dividir apartamento?
— Tem espaço lá. Podemos pôr um colchão no chão do escritório — falou null.
— Por que estão fazendo isso? — ela perguntou, cruzando os braços e franzindo o cenho, com um sorriso torto.
— Porque ninguém foi legal com você. Nenhum daqueles egoístas te ofereceram um lugar para ficar — apontou null.
— É, null. Eles são idiotas. Falaram que não têm lugar para que você fique, mas tenho certeza de que poderiam dar um jeito.
— Não vou dar trabalho? — perguntou ela, com um pouco de vergonha — Não quero incomodar vocês.
— Ah, null, por favor — falou null, amistoso — Você não é uma criança, e nós não somos um casal gay.
— Por isso mesmo. Não posso espantar garotas?
— Bem, para o null, não vai fazer muita diferença, não é, parceiro? — perguntou null, rindo e dando um soquinho no braço do outro — E eu me garanto. Você não vai nem ver as garotas que eu levar. Nem ouvir.
null riu.
— Bem, então acho que posso ir. Se estiver tudo bem.
— Vai estar. Pode nos encontrar no carro quando quiser, vamos sair assim que você quiser.
— Podem ir. Só vou pegar algo que conseguiu se salvar.
null e null foram até o Audi de null e entraram, com o último dirigindo. null foi até onde estava um dos bombeiros.
— Senhor, alguma roupa está inteira?
— Algumas — ele respondeu, com cara de que tentava omitir ao máximo as notícias ruins, apontando para um montinho de roupas e alguns sapatos dentro de um saco — Acredito que essas sejam suas ou da sua amiga. Essa mala aqui também conseguiu se salvar. Só está um pouco molhada.
— Ah, muito obrigada — null se ajoelhou e abriu a mala, daquelas duras e de viagem longa. Pegou o saco e, tirando o máximo que pôde o ar deste, colocou ali dentro, fechando a mala a seguir. Levantou-a e perguntou: — E as coisas que eu consegui tirar da casa?
O bombeiro apontou para a caixa de papelão intacta e os papéis amontoados perfeitamente ali perto.
— Os papéis voaram pelo jardim, mas conseguimos juntar tudo. Espero que nada tenha se perdido — fez uma pausa — Devem ser coisas realmente importantes, Srta. null.
Ela não respondeu e agradeceu. Com a mala em mãos e a caixa com os papéis embaixo do braço, andou até onde estava null e Tyler.
— Já arrumei um lugar para ficar. E vocês?
— Vou para a casa de um casal de amigos lá do hospital. Os dois filhos estão na casa da avó, e eles têm dois quartos sobrando. Tyler e null também vão comigo.
— Graças a Deus, null — ela disse, abaixando a cabeça e dando um selinho nos lábios do noivo — Me ligue quando chegar. E peça para null me ligar, quero saber onde ele está.
E foi até o Audi de null, entrando atrás, com dor de cabeça. Depois de fechar a porta e se acomodar com a caixa e a mala, suspirou e disse:
— Muito obrigada mesmo. Vocês não imaginam como estão me ajudando.
— Tranquilo, null. Vamos logo se quiserem dormir antes de ir trabalhar — falou null.
O celular de null se acendeu. Quando ela olhou-o, estava uma mensagem de número desconhecido:
“Espero que possamos nos ver de novo, com mais calma. Posso terminar meu trabalho. Como está?”
Ramona.
“Inteira”, respondeu null.
Não houve resposta.
No matter what we get out of this, I know, I know we’ll never forget...
Capítulo 8 — Mama
Mama, we all go to hell...
“Você podia pelo menos ter ficado mais tempo. Acho que temos contas a acertar.” Mandou null.
“Temos sim. Meu trabalho não acabou ainda, querida, ainda vamos nos encontrar.”
“Eu nunca te vi. O que quer comigo?”
“Tudo. Você não faz ideia, não? Sequer sabe quem está falando com você?”
“Ramona. É tudo que sei sobre você.”
“Acredite, você sabe bem mais do que isso.”
Depois de ter arrumado o colchão na casa de null e null, null ficou inquieta com as mensagens trocadas. Tinha acordado às nove da manhã e estava levantando, quando viu a última. Colocou sua blusa branca, uma camiseta, e vestiu as calças pretas. O sapato mais adequado que tinha sobrado foi um tênis Vans. Pelo menos, para o que ela pretendia fazer, ele era a melhor opção.
Foi para o banheiro e viu uma escova de dentes reservada especialmente para ela. Escovou os dentes e foi, timidamente, até a cozinha. null e null já estavam lá, ambos tomando café e conversando.
— Bom dia, raio de sol — falou null, com um sorriso simpático — Dormiu bem?
— Muito! Obrigada por terem me deixado ficar.
— Sem problemas. Foi o null aqui que me encheu o saco para te convidar.
— Cala a boca, null — retrucou null, bebendo alguns goles de café da caneca do Coringa que segurava, e indo até a pia para servir null de café também.
— Alguma novidade? Sobre qualquer coisa?
— Nadinha. Não que tenham nos avisado — informou null, entregando uma caneca dos Simpsons para null. A mão da garota fervia.
— Não vão te avisar. Vão avisar a ela — disse null, claramente tirando sarro do amigo.
— Ultimamente, não estou acreditando muito nisso, null — ela disse, sentando à mesa.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Se não se importam, o dever me chama. As chaves do seu Audi estão na bancada perto da porta, Romeu. Adiós, amigos!
null saiu porta afora, sorrindo e carregando uma valise preta. null olhou para null com o cenho franzido.
— Ele é sempre assim?
— Normalmente, perto de mulheres. Comigo ele é o capeta. Mas já me salvou de umas.
— Vocês se conhecem há muito tempo? — ela perguntou, bebendo um gole do café.
— Uns três meses, por aí. Seus amigos estão bem?
— Todos estão na casa de colegas do trabalho, e Tyler está com eles — mais um gole e riu — Acho que eles queriam me expulsar. Tem mais café?
— Meu Deus, parece que você bebeu água! Quer ir numa cafeteria por aqui? É ótima.
— Tem cafeteria por aqui?
— Abriu há pouco tempo. Venha, acho que você vai gostar de lá — pegou a caneca de null e colocou dentro da pia. Ela foi atrás dele até a porta e os dois desceram até a garagem juntos. null foi no banco do motorista, e null ficou de carona. Ele saiu da garagem, ligando o rádio e reproduzindo um CD.
— Gosta de Pink Floyd? — ela perguntou.
— Um pouco. É bom para acalmar os nervos.
The Dark Side of The Moon ecoou pelo carro.
Ticking away the moments that make up a dull day...
Sun is the same in a relative way, but you’re older...
Every year is getting shorter, never seem to find the time...
Seis minutos depois, ele parou o carro perto da calçada e desligou-o.
— Não vejo nenhuma cafeteria.
— Venha comigo. Preciso que você veja uma coisa.
Os dois saíram do carro simultaneamente. null o seguiu pela calçada e viu que estavam perto da delegacia, distante da porta de entrada. Ninguém poderia vê-los dali. null olhou para os lados, tendo certeza de que ninguém os percebia ali. Indicou para null segui-lo e parou perto de uma área com a passagem proibida por faixas amarelas. Ali fora o lugar onde o corpo da festa de Halloween caiu.
— Eu sei que você consegue descobrir coisas que não descobriram. Não mexeram em nada ainda. Lembre-se de que a morte foi há algumas horas, ou, pelo menos, a queda do corpo.
null conferiu o relógio. O corpo caiu mais ou menos 00:20. Eram 09:00.
Olhou o chão de concreto do pátio. Havia uma marca de giz indicando como o corpo caíra.
— Ele já caiu morto. Morreu lá em cima, no terraço.
— Como pode ter certeza? — perguntou null, cruzando os braços.
— Certeza eu não tenho. Mas olha essas gotas de sangue: são enormes. Caíram de uma altura grande. Ele já sangrava na queda. Deve ter sido atacado no terraço. Quando chegou aqui embaixo, já devia estar morto.
Fez uma pausa.
— Eu precisaria ver o cadáver.
— Não acho uma boa ideia.
— É uma boa ideia eu ver o cadáver, null.
— null, consegue concluir mais coisas?
Ela parou para pensar por um instante e segurou o braço de null, entrando na delegacia. Deu bom dia a todos, porém não olhou em especial para ninguém. Subiu as escadas dos três andares e chegou ao terraço. Foi até onde o corpo tinha sido deixado, com null atrás de si, tentando acompanhá-la, quase sem fôlego. Chegou ao terraço quase se arrastando pelos degraus.
— Olha — null apontou — Tem sangue aqui na parede, e sangue muito próximo, quase como borrifado. Foi um ataque rápido. E, a não ser que ele tenha usado um silenciador na arma, aposto que ele usou foi uma faca.
— Na mosca — falou null, apoiado em seus joelhos em uma pose engraçada, ainda sem fôlego — Foi com faca.
— E ele deve ter conseguido se defender por um tempo. Tem muito sangue aqui. Ele lutou com o agressor e foi empurrado já sangrando daqui de cima.
— Isso aí — falou null, ainda tentando tomar ar, apoiando-se no parapeito com os cotovelos e respirando fundo.
— Morreu na queda, e o sangue já pingou daqui do alto, o que deixou aquela baita gota lá embaixo. O agressor o empurrou para que morresse logo. Mas, se a vítima lutou com o agressor, é possível que tenha o ferido. E, se feriu, e o agressor usava uma faca, provavelmente temos o DNA dele por aí.
— Tirar DNA de concreto não é a coisa mais fácil.
— Provavelmente por isso que ele matou aqui em cima. Acho que ele marcou de encontrar a vítima aqui, e o atacou de surpresa. Acertou, mas não matou. A vítima tentou se defender e talvez o feriu, e ele o empurrou daqui do alto. Depois, fugiu. Tanta gente correu para o pátio que ele deve ter aproveitado isso para sair da zona do crime. Porém... — ela pareceu pensar alto — Não podemos suspeitar apenas dos policiais. Era uma festa, todo mundo devia estar conhecendo o suficiente da planta do prédio para transitar por aí.
— O ferimento de faca foi maior nas costas. A vítima foi atacada de surpresa.
— Você se lembra de alguém que estava longe na hora que o corpo caiu? — perguntou null.
null deu de ombros.
— Não consigo me lembrar de ninguém.
Ela bufou, apoiando os braços no parapeito e repousando o queixo em cima deles. A brisa confortavelmente fria batia contra seu rosto.
— Ele foi jogado daqui logo depois de ser atacado, ou o assassino só jogou o corpo tempo depois?
— Claro que ele jogou logo depois. Senão, não teria aquela gota de sangue enorme lá embaixo.
null olhou para null, recuando o corpo um pouco.
— Quando falaram que você era boa, eu acreditei. Mas meu Deus, você é genial.
Ela riu timidamente.
— Ainda gostaria do café.
Os dois desceram até a cafeteria da delegacia. Enquanto null tomava seu tão amado café, Marla Bronx se aproximou dos dois.
— null, procuramos no sistema a Ramona que você me descreveu. Ela não está em lugar nenhum.
— Bom dia também, Bronx — disse null, tomando mais um gole.
— null, isso aqui é sério. Não achamos essa Ramona nos sistemas.
— Ela pode ter pintado o cabelo. Estava bem maquiada, podia estar de lente. Sei lá. Mas eu tenho certeza de que eu a vi.
— Bem, se lembrar de alguma coisa, estou com o caso. Acho que você não seria responsável o suficiente para tratar de um caso quando você mesma é a vítima.
E saiu andando de volta para sua sala.
— Ainda dou uma surra nessa vagabunda — murmurou null entre dentes. null riu.
— Vou querer ver isso. Bem, te vejo mais tarde.
null estava em sua sala com null, sozinha. Sentou-se à mesa e viu uma pasta em cima desta.
“Joseph William Durden”
Com as mãos trêmulas, segurou a pasta e abriu-a. Logo na frente, havia uma foto. Uma antiga, de quando null devia ter uns três anos.
Era null null e Joe Durden.
— Ãhn, null? — perguntou a voz de Julie na porta. Rapidamente, null fechou a pasta. Ninguém poderia ver os arquivos de Joe ali, com ela.
Não fui eu quem pegou essa pasta. Quem quer que eu veja o caso Durden? Joe, é você? Volte para mim. Sinto saudades... Do que nunca mais tivemos.
— Sim?
— Tem alguém lá embaixo querendo falar com você.
— Quem, Julie? Estou com um pouco de dor de cabeça...
— A Sra. null.
null se pôs de pé e marchou para fora da sala, descendo até a entrada da delegacia.
— Eu quero ver null! Onde essa garota está? — perguntou a voz histérica da mãe de null. Era uma mulher aos seus cinquenta anos, alta, bem magra, com tanta maquiagem no rosto que era difícil saber se ela tinha realmente pele ali embaixo. Os cabelos negros e ondulados estavam soltos, e mais longos do que null costumava ver. Os olhos azuis há tempos não brilhavam.
— Essa garota cresceu — falou null, sem animação na voz.
— Ah. Você chegou. Esqueceu que tem mãe?
— Você sempre esqueceu que tinha filha.
Todos olharam para a mãe de null com um olhar cobrador. Ela segurou o braço da filha parecendo delicadamente, porém, com seus dedos magros quase a machucando. Levou-a para o lado de fora da delegacia.
— Vou cortar sua língua, menina. Quem te deixou falar assim comigo?
— O que você veio fazer aqui?
— Eu só vim ver você e seu irmão.
— Tyler está bem. Eu também. Estou cuidando para ele não ir para o mesmo lado que você.
A Sra. null virou os olhos.
— Sempre dramática, null. Eu devia prever algo assim. E eu sei que não está tudo bem. Fiquei sabendo do incêndio.
null perdeu um pouco a firmeza.
— Quem falou?
— Sua amiga null. Ela é bem doce. Por que nunca me apresentou a ela?
— Porque você não fala comigo desde que fui para o Manson. Você deveria ser a primeira pessoa a me ajudar. E sabe quem foi me tirar de lá? O null. Ele e um novato. Não foi você, não foi o Tyler. Mas ele eu até desculpo.
— Eu não podia ficar tão perto de você.
— Por que não? — perguntou null, já irritada, com os olhos mergulhados em lágrimas. Sem nenhuma escorrer.
— Porque você era uma assassina! O que você faria se estivesse no meu lugar?!
— Eu?! — null gritou, quase histérica, rindo — Para começar, nunca teria dois filhos sem ter dinheiro para sustentá-los. Depois, nunca seria viciada em jogos de azar! Nunca deixaria faltar comida para meus filhos! Nunca faria qualquer uma das coisas que você fez. E pior: nunca deixaria minha filha mais velha, aquela que sempre me sustentou, que sempre me emprestou dinheiro, ser presa. Pelo menos, se deixasse, faria o mínimo de mandar cartas para ela. Ou ligar.
— Você só sabe olhar para seu próprio nariz, garota! Sempre foi egoísta! Só sabe olhar para si mesma!
— Claro. Se eu não olhasse quando era criança, quem mais olharia?
Foi quando null sentiu seu rosto ser violentamente acertado por um tapa de sua mãe. null cambaleou e caiu no chão, sentada.
— Eu não queria fazer isso, mas você não me deu outra opção.
— Sempre foi seu jeito de me fazer calar a boca. Não queria que eu dissesse a verdade. Vá em frente, pode bater. Eu sei que você veio me pedir mais dinheiro.
A Sra. null engoliu em seco e relaxou o punho.
— Eu devia ter deixado você sozinha desde o começo. Tenho amigas a quem pedir dinheiro, null. Não preciso de você.
— Você sempre precisou de mim — disse null, levantando o rosto. Seu lábio sangrava.
— Vá e se case com aquele médico miserável. Vocês não vão durar um mês.
Entrou no carro caindo aos pedaços que estava estacionado ali perto. Ligou e saiu pela rua, com o vidro aberto, provavelmente porque não havia vidro para fechar.
— Você podia ter se importado comigo! — gritou null, tentando ficar de pé, tonta — Eu podia ter sido uma filha melhor!
O carro parou.
— Você já deixou de ser minha filha há muito tempo — retrucou a Sra. null, olhando para trás com a cabeça para fora da janela. E foi embora pretendendo nunca mais voltar.
null chegou nesse momento. Ajudou null a entrar na delegacia e sentou-a na cadeira de sua sala, cuidando do corte em seu lábio.
— O que houve?
— Briga de família. Minha mãe viciada em jogos de azar deu o ar de sua graça. Mas enfim, avise ao null que tenho uma ideia brilhante sobre onde vamos almoçar.
— Vai almoçar com o novato, é?
— Acredite, é trabalho.
— Posso saber onde é?
null sorriu, mesmo com um pouco de sangue em seu lábio.
— A casa da Samantha. null, você trabalha com forense. Preciso do que quer que tenha sido encontrado dentro do estômago da Fox.
null parou de fazer o curativo.
— Não posso te entregar. Quer mesmo entrar no caso Fox? Vou avisar para o null...
— Não vai não. Só quero saber o que estava dentro dela. Vou tirar minhas próprias conclusões.
— Já estou vendo a corrida entre você e ele para desvendarem o caso.
— Acho, null, que descobrindo o que aconteceu com a Samantha, posso descobrir o que aconteceu com Joe. Acho que o assassino foi o mesmo.
— O que te faz pensar assim?
null passou o indicador no machucado em seu lábio.
— Ambas as mortes me atingiriam de algum modo. E acho que o assassino deles também pôs fogo na minha casa.
null estava apoiado em seu Audi, de braços cruzados. Usava uma camiseta cinza e uma calça jeans preta. Quando null finalmente apareceu e entrou no carro, a primeira coisa que ela fez foi erguer um tubo de ensaio de cinco centímetros.
— Sabe o que é isso? — ela perguntou, com um pequeno sorriso torto.
null olhou bem para o pequeno líquido azul brilhante dentro do frasco.
— Bem, levando em conta que eu não sou químico, eu acho que é glitter.
null riu.
— Não é glitter.
— Parece um drink que eu vi null bebendo na festa de Halloween. Parecia veneno, mas eu beberia.
— Se você beber isso aqui — ela agitou o frasco — Você vai morrer. Isso aqui é césio. Um elemento químico altamente radioativo. Em contato com a pele, ou pior, com a boca, mata em horas.
— Me lembre de nunca pedir isso numa pizzaria — ele disse, ligando o carro.
Ela riu novamente.
— Colocaram isso na comida da Samantha. Ela ingeriu césio com a comida e ele reagiu com o alimento e o ácido gástrico. Essa reação causou queimaduras de dentro para fora do corpo, e queimou os órgãos internos, mas isso a gente já sabia.
— Os outros já perceberam isso?
— Não.
— E onde você arrumou o seu amiguinho César?
null deu de ombros.
— Peguei emprestado. Ainda hoje devolvo para a null.
— Você roubou?
Ela deu de ombros.
— Me dê sua palavra de que não roubou.
— Você confiaria nela?
— Não.
— É um bom começo. Vamos para o apartamento da Samantha. Tenho meus próprios meios de investigar.
— Tem a autorização para invadir a casa dela?
— 'Tá brincando? Eu tenho a chave. null me deu. Eu vou à casa dela como convidada... E tenho certeza de que serei bem vinda se fizer um bom trabalho.
Ele estacionou o Audi na frente da grande casa de Samantha Fox. Ou que era de Samantha Fox. null tirou a chave e abriu a porta da frente da casa, lentamente, depois de vestir suas luvas de látex e passar pelas fitas amarelas na varanda.
— Ponha luvas também. Tenho essas — ela deu a null um par de luvas azuis.
Ele as colocou. Realmente, a última coisa que precisava era ser suspeito da morte de Samantha.
A porta abriu com um rangido. A casa toda estava em perfeita ordem. Os dois entraram lentamente, trancando a porta atrás de si. Tiraram os sapatos ainda em cima do tapete e encaixaram os pés em dois pares de chinelos de Samantha colocados perto da porta. Pelo menos, não deixariam pegadas. — É triste ver uma casa assim, abandonada — comentou null.
null concordou com a cabeça e foi até a cozinha.
— Aqui foi o último lugar que a Fox esteve viva. Ela comeu o que quer que tivesse césio e caiu morta aqui mesmo, provavelmente.
— null, posso te fazer uma pergunta?
— Faça — ela disse, ajoelhando-se, porém, sem encostar os joelhos no chão de ladrilho branco.
— Por que você odiava Samantha?
Ela olhou para ele com o canto do lábio erguido. Não iria falar.
— Posso te fazer uma pergunta? — foi a vez dela.
— Faça.
— Posso responder isso outro dia?
Ele deu de ombros. Um dia, conseguiria respostas dela.
null abriu a prateleira.
— O césio fica “preso” em certos alimentos, acho. Ele pode ter sido implantado aqui qualquer dia.
— Então você não pode dizer isso a ninguém, null.
— Por que não?
— Porque... Isso implica que pode ter sido você, antes de ir para o Manson.
null quase deixou a prateleira bater.
— Por favor, novato. Não conte isso a ninguém. Estou confiando em você.
— Pode confiar — ele se interrompeu — Está sentindo esse cheiro?
— Cheiro?
Ele arregalou os olhos e puxou o pulso de null para o corredor, abrindo a porta rapidamente. Quando conseguiram tirá-la da fechadura, pularam da varanda para o gramado, ao mesmo tempo em que a casa de Samantha Fox explodiu em milhões de pedacinhos. null protegia o corpo de null, e ambos taparam seus ouvidos.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Sofri dois atentados em doze horas. Ou querem me matar, ou querem me dar muita moral.
null estava no banco do motorista novamente, vendo os bombeiros apagarem o fogo que tinha destruído a casa de Samantha. O que sobrara da casa era só o esqueleto, algumas das tábuas que formavam aquela graciosa casa, quase que de boneca. Era uma casinha de madeira no meio de outras de concreto, e, agora, foi destruída.
— Podem me ver? — perguntou null, abaixada no banco do carona.
— Se virem, vão pensar muita besteira.
Ela deu um tapa no joelho de null, que reclamou com um “ai” baixo.
— null! — chamou null, aproximando-se do Audi. Rapidamente, null saiu do carro e fechou a porta.
— null! — retrucou. Se havia algo que null não sabia fazer, era mentir.
— Destruíram a casa.
— Eu vi.
— Você estava aqui quando aconteceu?
null balbuciou algumas palavras e passou a mão pelos cabelos, desarrumando-os.
— Eu só vi tudo explodir. Deve ter sido gás.
— Ninguém entra nessa casa desde que Samantha morreu. Há dois dias.
Ele balbuciou mais um pouco e deu de ombros.
— Foi o que eu vi, oficial.
— Sei — disse null, não confiando em null. Soube que o garoto escondia alguma coisa — E a null?
— Eu sei lá da null.
— Quis dizer se ela realmente foi para sua casa e do null.
— Ah. Ela foi sim. Deve estar lá agora.
— Aham. Ela dormiu com vocês?
null franziu o cenho, quase rindo.
— Claro que não. Que pergunta é essa?
— Eu... Foi... — null se perdeu em suas palavras, e olhou para o lado, fingindo procurar alguém. null chegava a achar aquilo engraçado, o modo com que falar o nome de null o deixava totalmente perdido — Foi curiosidade.
— Curiosidade — repetiu null — Oficial, se me permite a pergunta... null realmente mexe com o senhor.
— Claro que não.
— Eu afirmei. A pergunta é essa: até quando o senhor vai fingir que não mexe?
null comprimiu os lábios. Uh-oh.
— Ela é minha colega de trabalho. Já trabalhamos juntos algumas vezes. Foi assim que chegamos aonde chegamos: um com o outro.
— Sei. Apoiando-se um no outro. Mas não acho que isso tenha continuado, não desde que null foi para o Manson.
— null foi para o Manson por um motivo. A mandamos para lá porque o Manson cuida de pessoas que foram culpadas de um crime, mas sem total certeza. Como o caso dela foi assassinato, mesmo não tendo provas suficientes, precisamos mandá-la para lá.
— Espera. Achei que o Manson fosse para pessoas com saúde “delicada”. Foi isso que eu li.
— O que você leu? — null voltou à pose de oficial, com a voz firme — Ou melhor, por que você leu sobre o caso Durden?
null deu de ombros. Temeu que aquela conversa fosse acabar causando alguma confissão. Até então, fora apenas da parte de null; algo inaceitável.
— Eu dei uma pesquisada. O senhor não me disse nada sobre ele, quis procurar sozinho. Estava curioso.
— Viu por que null foi culpada pelo caso?
— Não, null.
— Pergunte a ela, já que está tão íntimo de null. Isso se ela lhe contar a verdade.
— Ela não mentiria.
— Ela já nem sabe mais o que é a verdade, null. Não confie tanto nela.
— O senhor deve saber o que é confiar em null, não?
null deu meia volta sem responder null. Por que estava dando tanta satisfação para aquele garoto? Era só um jornalistazinho. Um ser insignificante.
Ele não é nada para null. Eu sou melhor do que ele. Mas null... null não a merece.
— Faça bom proveito, novato. Esses crimes todos podem te colocar no topo.
Só não se aproveite dos outros como null fez.
Era perto das quatro da tarde quando null recebeu uma ligação. Era de null, que queria vê-la o mais cedo possível. Saiu da delegacia sem a pasta do caso Durden — alguém estava de olho em null, e, se pegassem-na com a pasta, não queria nem imaginar o que poderia acontecer — e foi à pé até a cafeteria que null queria encontrá-la.
A rua estava deserta, e poucos postes de iluminação faziam seu trabalho. A luz amarelada vinda deles era assustadora, no clima perfeito de cidade abandonada. null parou para pensar se não era quase isso que Longview era.
Alguém cruzou a esquina. Usava saltos altos salmão, calças jeans azuis e uma blusa alaranjada, com babados. Os cabelos loiros ondulados agora estavam com os lados presos na parte de trás da cabeça, por uma pequena presilha brilhante. Uma fumaça fina saía do cigarro seguro em sua mão esquerda, enquanto a direita segurava a bolsa nude no ombro, e seu andar era como de uma modelo. Se uma pessoa qualquer a visse, nunca diria que ela tinha posto fogo no apartamento de null naquela madrugada. E, provavelmente, tinha explodido a casa de Samantha Fox há algumas horas.
— Ramona, estranho te ver assim. Sem pôr fogo em nada — gritou null, a cerca de cinco metros distante da mulher.
Esperava que ela fosse fugir, porém, Ramona virou o corpo para null, e esperou que a null chegasse até ela.
— Tenho minhas horas de folga — retrucou a loira, com o canto dos lábios erguido. Os olhos azuis faiscavam como se o fogo que ela costumava colocar na verdade saísse dela, do calor de suas íris — Não imaginava que pudéssemos nos encontrar assim, na rua. Achei que você frequentasse lugares melhores, null.
— Não fale assim, Ramona. Você não me conhece.
— Conheço sim. Sei como você tem medo de que, depois do Manson, perca todo seu prestígio. Sei que você odeia que tomem seu lugar. Sei como você quer ser o centro das atenções, porque você nunca teve a chance de ser boa suficiente para sua mãe. Você é insegura, null. Nunca teve nada. Agora tem tudo. Por isso que se sente sozinha... E se prende ao que tem. Você não quer mudar, porque não quer perder o que conquistou.
— Whoa — disse null, inexpressiva — Tirou isso de que livro de Freud?
— Tirei isso da sua cabeça, null — empurrou null contra a parede de um prédio com o braço que segurava o cigarro — Segure-se ao que tem, null.
— Eu tenho null. Eu tenho null. Tyler, null, null. Eu tenho tudo.
— Você acha que tem. Qual foi a última vez que eles te ligaram? Seu noivo quer te encontrar? Você sabe o que ele quer.
Tragou o cigarro e jogou-o no chão, pisando com seu salto para apagá-lo.
— Ele quer romper.
— null é o amor da minha vida.
— Não. null foi o único até hoje que correspondeu seu amor.
Um casal de idosos que passava pela rua nesse momento encarou-as com medo. Ramona tirou o braço do pescoço de null.
— Não ouse dizer que mais alguém te correspondeu, null. Não ouse dizer que Joe Durden te correspondeu.
null deu um tapa no rosto de Ramona, que permaneceu de pé, sem nem virar o pé dos saltos altos. Ela riu insanamente.
— Não faça isso.
E devolveu o tapa, exatamente no mesmo lugar que null tinha batido: perto do nariz. O casal de idosos saiu logo de perto das duas, claramente assustados.
— Vá logo levar um pé na bunda, se é isso que você quer. Eu sei que você não vai se importar — disse Ramona, apontando para o fim da rua.
— O que lhe faz pensar assim? — perguntou null, passando as costas da mão no nariz, onde um filete de sangue escorria.
— Seu coração está dividido ao meio. Entre null e null. Você sabe disso.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Não? — perguntou Ramona, sorrindo. Apontou para o fim da rua novamente, e null seguiu seu indicador. Quando olhou de volta, Ramona já estava indo embora.
Você não faria isso, null. Sei que não faria. Faria?
Eu te odeio, Ramona. Quem quer que você seja.
Ela sabia que Ramona falava a verdade. A verdade que sempre estava enterrada em sua mente, como um medo. Sua mãe já tinha lhe dito que null a deixaria. Mas null não queria encarar isso, tinha fé. Apenas ela tinha fé. Um pedaço de seu coração não queria que aquilo fosse verdade, e ela se prendia àquilo. Tanto que não se imaginava mais sem null. Ele era seu futuro.
No entanto, seu futuro tinha mudado por causa de um assassinato. Isso sim causou uma cadeia de catástrofes. E não podia estragar mais nada.
Quem era Ramona, que sabia tanto de null? Foi Ramona quem tirou as fotos da noite da morte de Joe? Não importava. Enquanto Ramona aparecesse só para null, tudo estaria sob controle.
Ou quase tudo.
Well mother, what the war did to my legs and to my tongue? You should have raised a baby girl, I should have been a better son…
“Você podia pelo menos ter ficado mais tempo. Acho que temos contas a acertar.” Mandou null.
“Temos sim. Meu trabalho não acabou ainda, querida, ainda vamos nos encontrar.”
“Eu nunca te vi. O que quer comigo?”
“Tudo. Você não faz ideia, não? Sequer sabe quem está falando com você?”
“Ramona. É tudo que sei sobre você.”
“Acredite, você sabe bem mais do que isso.”
Depois de ter arrumado o colchão na casa de null e null, null ficou inquieta com as mensagens trocadas. Tinha acordado às nove da manhã e estava levantando, quando viu a última. Colocou sua blusa branca, uma camiseta, e vestiu as calças pretas. O sapato mais adequado que tinha sobrado foi um tênis Vans. Pelo menos, para o que ela pretendia fazer, ele era a melhor opção.
Foi para o banheiro e viu uma escova de dentes reservada especialmente para ela. Escovou os dentes e foi, timidamente, até a cozinha. null e null já estavam lá, ambos tomando café e conversando.
— Bom dia, raio de sol — falou null, com um sorriso simpático — Dormiu bem?
— Muito! Obrigada por terem me deixado ficar.
— Sem problemas. Foi o null aqui que me encheu o saco para te convidar.
— Cala a boca, null — retrucou null, bebendo alguns goles de café da caneca do Coringa que segurava, e indo até a pia para servir null de café também.
— Alguma novidade? Sobre qualquer coisa?
— Nadinha. Não que tenham nos avisado — informou null, entregando uma caneca dos Simpsons para null. A mão da garota fervia.
— Não vão te avisar. Vão avisar a ela — disse null, claramente tirando sarro do amigo.
— Ultimamente, não estou acreditando muito nisso, null — ela disse, sentando à mesa.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Se não se importam, o dever me chama. As chaves do seu Audi estão na bancada perto da porta, Romeu. Adiós, amigos!
null saiu porta afora, sorrindo e carregando uma valise preta. null olhou para null com o cenho franzido.
— Ele é sempre assim?
— Normalmente, perto de mulheres. Comigo ele é o capeta. Mas já me salvou de umas.
— Vocês se conhecem há muito tempo? — ela perguntou, bebendo um gole do café.
— Uns três meses, por aí. Seus amigos estão bem?
— Todos estão na casa de colegas do trabalho, e Tyler está com eles — mais um gole e riu — Acho que eles queriam me expulsar. Tem mais café?
— Meu Deus, parece que você bebeu água! Quer ir numa cafeteria por aqui? É ótima.
— Tem cafeteria por aqui?
— Abriu há pouco tempo. Venha, acho que você vai gostar de lá — pegou a caneca de null e colocou dentro da pia. Ela foi atrás dele até a porta e os dois desceram até a garagem juntos. null foi no banco do motorista, e null ficou de carona. Ele saiu da garagem, ligando o rádio e reproduzindo um CD.
— Gosta de Pink Floyd? — ela perguntou.
— Um pouco. É bom para acalmar os nervos.
The Dark Side of The Moon ecoou pelo carro.
Ticking away the moments that make up a dull day...
Sun is the same in a relative way, but you’re older...
Every year is getting shorter, never seem to find the time...
Seis minutos depois, ele parou o carro perto da calçada e desligou-o.
— Não vejo nenhuma cafeteria.
— Venha comigo. Preciso que você veja uma coisa.
Os dois saíram do carro simultaneamente. null o seguiu pela calçada e viu que estavam perto da delegacia, distante da porta de entrada. Ninguém poderia vê-los dali. null olhou para os lados, tendo certeza de que ninguém os percebia ali. Indicou para null segui-lo e parou perto de uma área com a passagem proibida por faixas amarelas. Ali fora o lugar onde o corpo da festa de Halloween caiu.
— Eu sei que você consegue descobrir coisas que não descobriram. Não mexeram em nada ainda. Lembre-se de que a morte foi há algumas horas, ou, pelo menos, a queda do corpo.
null conferiu o relógio. O corpo caiu mais ou menos 00:20. Eram 09:00.
Olhou o chão de concreto do pátio. Havia uma marca de giz indicando como o corpo caíra.
— Ele já caiu morto. Morreu lá em cima, no terraço.
— Como pode ter certeza? — perguntou null, cruzando os braços.
— Certeza eu não tenho. Mas olha essas gotas de sangue: são enormes. Caíram de uma altura grande. Ele já sangrava na queda. Deve ter sido atacado no terraço. Quando chegou aqui embaixo, já devia estar morto.
Fez uma pausa.
— Eu precisaria ver o cadáver.
— Não acho uma boa ideia.
— É uma boa ideia eu ver o cadáver, null.
— null, consegue concluir mais coisas?
Ela parou para pensar por um instante e segurou o braço de null, entrando na delegacia. Deu bom dia a todos, porém não olhou em especial para ninguém. Subiu as escadas dos três andares e chegou ao terraço. Foi até onde o corpo tinha sido deixado, com null atrás de si, tentando acompanhá-la, quase sem fôlego. Chegou ao terraço quase se arrastando pelos degraus.
— Olha — null apontou — Tem sangue aqui na parede, e sangue muito próximo, quase como borrifado. Foi um ataque rápido. E, a não ser que ele tenha usado um silenciador na arma, aposto que ele usou foi uma faca.
— Na mosca — falou null, apoiado em seus joelhos em uma pose engraçada, ainda sem fôlego — Foi com faca.
— E ele deve ter conseguido se defender por um tempo. Tem muito sangue aqui. Ele lutou com o agressor e foi empurrado já sangrando daqui de cima.
— Isso aí — falou null, ainda tentando tomar ar, apoiando-se no parapeito com os cotovelos e respirando fundo.
— Morreu na queda, e o sangue já pingou daqui do alto, o que deixou aquela baita gota lá embaixo. O agressor o empurrou para que morresse logo. Mas, se a vítima lutou com o agressor, é possível que tenha o ferido. E, se feriu, e o agressor usava uma faca, provavelmente temos o DNA dele por aí.
— Tirar DNA de concreto não é a coisa mais fácil.
— Provavelmente por isso que ele matou aqui em cima. Acho que ele marcou de encontrar a vítima aqui, e o atacou de surpresa. Acertou, mas não matou. A vítima tentou se defender e talvez o feriu, e ele o empurrou daqui do alto. Depois, fugiu. Tanta gente correu para o pátio que ele deve ter aproveitado isso para sair da zona do crime. Porém... — ela pareceu pensar alto — Não podemos suspeitar apenas dos policiais. Era uma festa, todo mundo devia estar conhecendo o suficiente da planta do prédio para transitar por aí.
— O ferimento de faca foi maior nas costas. A vítima foi atacada de surpresa.
— Você se lembra de alguém que estava longe na hora que o corpo caiu? — perguntou null.
null deu de ombros.
— Não consigo me lembrar de ninguém.
Ela bufou, apoiando os braços no parapeito e repousando o queixo em cima deles. A brisa confortavelmente fria batia contra seu rosto.
— Ele foi jogado daqui logo depois de ser atacado, ou o assassino só jogou o corpo tempo depois?
— Claro que ele jogou logo depois. Senão, não teria aquela gota de sangue enorme lá embaixo.
null olhou para null, recuando o corpo um pouco.
— Quando falaram que você era boa, eu acreditei. Mas meu Deus, você é genial.
Ela riu timidamente.
— Ainda gostaria do café.
Os dois desceram até a cafeteria da delegacia. Enquanto null tomava seu tão amado café, Marla Bronx se aproximou dos dois.
— null, procuramos no sistema a Ramona que você me descreveu. Ela não está em lugar nenhum.
— Bom dia também, Bronx — disse null, tomando mais um gole.
— null, isso aqui é sério. Não achamos essa Ramona nos sistemas.
— Ela pode ter pintado o cabelo. Estava bem maquiada, podia estar de lente. Sei lá. Mas eu tenho certeza de que eu a vi.
— Bem, se lembrar de alguma coisa, estou com o caso. Acho que você não seria responsável o suficiente para tratar de um caso quando você mesma é a vítima.
E saiu andando de volta para sua sala.
— Ainda dou uma surra nessa vagabunda — murmurou null entre dentes. null riu.
— Vou querer ver isso. Bem, te vejo mais tarde.
null estava em sua sala com null, sozinha. Sentou-se à mesa e viu uma pasta em cima desta.
“Joseph William Durden”
Com as mãos trêmulas, segurou a pasta e abriu-a. Logo na frente, havia uma foto. Uma antiga, de quando null devia ter uns três anos.
Era null null e Joe Durden.
— Ãhn, null? — perguntou a voz de Julie na porta. Rapidamente, null fechou a pasta. Ninguém poderia ver os arquivos de Joe ali, com ela.
Não fui eu quem pegou essa pasta. Quem quer que eu veja o caso Durden? Joe, é você? Volte para mim. Sinto saudades... Do que nunca mais tivemos.
— Sim?
— Tem alguém lá embaixo querendo falar com você.
— Quem, Julie? Estou com um pouco de dor de cabeça...
— A Sra. null.
null se pôs de pé e marchou para fora da sala, descendo até a entrada da delegacia.
— Eu quero ver null! Onde essa garota está? — perguntou a voz histérica da mãe de null. Era uma mulher aos seus cinquenta anos, alta, bem magra, com tanta maquiagem no rosto que era difícil saber se ela tinha realmente pele ali embaixo. Os cabelos negros e ondulados estavam soltos, e mais longos do que null costumava ver. Os olhos azuis há tempos não brilhavam.
— Essa garota cresceu — falou null, sem animação na voz.
— Ah. Você chegou. Esqueceu que tem mãe?
— Você sempre esqueceu que tinha filha.
Todos olharam para a mãe de null com um olhar cobrador. Ela segurou o braço da filha parecendo delicadamente, porém, com seus dedos magros quase a machucando. Levou-a para o lado de fora da delegacia.
— Vou cortar sua língua, menina. Quem te deixou falar assim comigo?
— O que você veio fazer aqui?
— Eu só vim ver você e seu irmão.
— Tyler está bem. Eu também. Estou cuidando para ele não ir para o mesmo lado que você.
A Sra. null virou os olhos.
— Sempre dramática, null. Eu devia prever algo assim. E eu sei que não está tudo bem. Fiquei sabendo do incêndio.
null perdeu um pouco a firmeza.
— Quem falou?
— Sua amiga null. Ela é bem doce. Por que nunca me apresentou a ela?
— Porque você não fala comigo desde que fui para o Manson. Você deveria ser a primeira pessoa a me ajudar. E sabe quem foi me tirar de lá? O null. Ele e um novato. Não foi você, não foi o Tyler. Mas ele eu até desculpo.
— Eu não podia ficar tão perto de você.
— Por que não? — perguntou null, já irritada, com os olhos mergulhados em lágrimas. Sem nenhuma escorrer.
— Porque você era uma assassina! O que você faria se estivesse no meu lugar?!
— Eu?! — null gritou, quase histérica, rindo — Para começar, nunca teria dois filhos sem ter dinheiro para sustentá-los. Depois, nunca seria viciada em jogos de azar! Nunca deixaria faltar comida para meus filhos! Nunca faria qualquer uma das coisas que você fez. E pior: nunca deixaria minha filha mais velha, aquela que sempre me sustentou, que sempre me emprestou dinheiro, ser presa. Pelo menos, se deixasse, faria o mínimo de mandar cartas para ela. Ou ligar.
— Você só sabe olhar para seu próprio nariz, garota! Sempre foi egoísta! Só sabe olhar para si mesma!
— Claro. Se eu não olhasse quando era criança, quem mais olharia?
Foi quando null sentiu seu rosto ser violentamente acertado por um tapa de sua mãe. null cambaleou e caiu no chão, sentada.
— Eu não queria fazer isso, mas você não me deu outra opção.
— Sempre foi seu jeito de me fazer calar a boca. Não queria que eu dissesse a verdade. Vá em frente, pode bater. Eu sei que você veio me pedir mais dinheiro.
A Sra. null engoliu em seco e relaxou o punho.
— Eu devia ter deixado você sozinha desde o começo. Tenho amigas a quem pedir dinheiro, null. Não preciso de você.
— Você sempre precisou de mim — disse null, levantando o rosto. Seu lábio sangrava.
— Vá e se case com aquele médico miserável. Vocês não vão durar um mês.
Entrou no carro caindo aos pedaços que estava estacionado ali perto. Ligou e saiu pela rua, com o vidro aberto, provavelmente porque não havia vidro para fechar.
— Você podia ter se importado comigo! — gritou null, tentando ficar de pé, tonta — Eu podia ter sido uma filha melhor!
O carro parou.
— Você já deixou de ser minha filha há muito tempo — retrucou a Sra. null, olhando para trás com a cabeça para fora da janela. E foi embora pretendendo nunca mais voltar.
null chegou nesse momento. Ajudou null a entrar na delegacia e sentou-a na cadeira de sua sala, cuidando do corte em seu lábio.
— O que houve?
— Briga de família. Minha mãe viciada em jogos de azar deu o ar de sua graça. Mas enfim, avise ao null que tenho uma ideia brilhante sobre onde vamos almoçar.
— Vai almoçar com o novato, é?
— Acredite, é trabalho.
— Posso saber onde é?
null sorriu, mesmo com um pouco de sangue em seu lábio.
— A casa da Samantha. null, você trabalha com forense. Preciso do que quer que tenha sido encontrado dentro do estômago da Fox.
null parou de fazer o curativo.
— Não posso te entregar. Quer mesmo entrar no caso Fox? Vou avisar para o null...
— Não vai não. Só quero saber o que estava dentro dela. Vou tirar minhas próprias conclusões.
— Já estou vendo a corrida entre você e ele para desvendarem o caso.
— Acho, null, que descobrindo o que aconteceu com a Samantha, posso descobrir o que aconteceu com Joe. Acho que o assassino foi o mesmo.
— O que te faz pensar assim?
null passou o indicador no machucado em seu lábio.
— Ambas as mortes me atingiriam de algum modo. E acho que o assassino deles também pôs fogo na minha casa.
null estava apoiado em seu Audi, de braços cruzados. Usava uma camiseta cinza e uma calça jeans preta. Quando null finalmente apareceu e entrou no carro, a primeira coisa que ela fez foi erguer um tubo de ensaio de cinco centímetros.
— Sabe o que é isso? — ela perguntou, com um pequeno sorriso torto.
null olhou bem para o pequeno líquido azul brilhante dentro do frasco.
— Bem, levando em conta que eu não sou químico, eu acho que é glitter.
null riu.
— Não é glitter.
— Parece um drink que eu vi null bebendo na festa de Halloween. Parecia veneno, mas eu beberia.
— Se você beber isso aqui — ela agitou o frasco — Você vai morrer. Isso aqui é césio. Um elemento químico altamente radioativo. Em contato com a pele, ou pior, com a boca, mata em horas.
— Me lembre de nunca pedir isso numa pizzaria — ele disse, ligando o carro.
Ela riu novamente.
— Colocaram isso na comida da Samantha. Ela ingeriu césio com a comida e ele reagiu com o alimento e o ácido gástrico. Essa reação causou queimaduras de dentro para fora do corpo, e queimou os órgãos internos, mas isso a gente já sabia.
— Os outros já perceberam isso?
— Não.
— E onde você arrumou o seu amiguinho César?
null deu de ombros.
— Peguei emprestado. Ainda hoje devolvo para a null.
— Você roubou?
Ela deu de ombros.
— Me dê sua palavra de que não roubou.
— Você confiaria nela?
— Não.
— É um bom começo. Vamos para o apartamento da Samantha. Tenho meus próprios meios de investigar.
— Tem a autorização para invadir a casa dela?
— 'Tá brincando? Eu tenho a chave. null me deu. Eu vou à casa dela como convidada... E tenho certeza de que serei bem vinda se fizer um bom trabalho.
Ele estacionou o Audi na frente da grande casa de Samantha Fox. Ou que era de Samantha Fox. null tirou a chave e abriu a porta da frente da casa, lentamente, depois de vestir suas luvas de látex e passar pelas fitas amarelas na varanda.
— Ponha luvas também. Tenho essas — ela deu a null um par de luvas azuis.
Ele as colocou. Realmente, a última coisa que precisava era ser suspeito da morte de Samantha.
A porta abriu com um rangido. A casa toda estava em perfeita ordem. Os dois entraram lentamente, trancando a porta atrás de si. Tiraram os sapatos ainda em cima do tapete e encaixaram os pés em dois pares de chinelos de Samantha colocados perto da porta. Pelo menos, não deixariam pegadas. — É triste ver uma casa assim, abandonada — comentou null.
null concordou com a cabeça e foi até a cozinha.
— Aqui foi o último lugar que a Fox esteve viva. Ela comeu o que quer que tivesse césio e caiu morta aqui mesmo, provavelmente.
— null, posso te fazer uma pergunta?
— Faça — ela disse, ajoelhando-se, porém, sem encostar os joelhos no chão de ladrilho branco.
— Por que você odiava Samantha?
Ela olhou para ele com o canto do lábio erguido. Não iria falar.
— Posso te fazer uma pergunta? — foi a vez dela.
— Faça.
— Posso responder isso outro dia?
Ele deu de ombros. Um dia, conseguiria respostas dela.
null abriu a prateleira.
— O césio fica “preso” em certos alimentos, acho. Ele pode ter sido implantado aqui qualquer dia.
— Então você não pode dizer isso a ninguém, null.
— Por que não?
— Porque... Isso implica que pode ter sido você, antes de ir para o Manson.
null quase deixou a prateleira bater.
— Por favor, novato. Não conte isso a ninguém. Estou confiando em você.
— Pode confiar — ele se interrompeu — Está sentindo esse cheiro?
— Cheiro?
Ele arregalou os olhos e puxou o pulso de null para o corredor, abrindo a porta rapidamente. Quando conseguiram tirá-la da fechadura, pularam da varanda para o gramado, ao mesmo tempo em que a casa de Samantha Fox explodiu em milhões de pedacinhos. null protegia o corpo de null, e ambos taparam seus ouvidos.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Sofri dois atentados em doze horas. Ou querem me matar, ou querem me dar muita moral.
null estava no banco do motorista novamente, vendo os bombeiros apagarem o fogo que tinha destruído a casa de Samantha. O que sobrara da casa era só o esqueleto, algumas das tábuas que formavam aquela graciosa casa, quase que de boneca. Era uma casinha de madeira no meio de outras de concreto, e, agora, foi destruída.
— Podem me ver? — perguntou null, abaixada no banco do carona.
— Se virem, vão pensar muita besteira.
Ela deu um tapa no joelho de null, que reclamou com um “ai” baixo.
— null! — chamou null, aproximando-se do Audi. Rapidamente, null saiu do carro e fechou a porta.
— null! — retrucou. Se havia algo que null não sabia fazer, era mentir.
— Destruíram a casa.
— Eu vi.
— Você estava aqui quando aconteceu?
null balbuciou algumas palavras e passou a mão pelos cabelos, desarrumando-os.
— Eu só vi tudo explodir. Deve ter sido gás.
— Ninguém entra nessa casa desde que Samantha morreu. Há dois dias.
Ele balbuciou mais um pouco e deu de ombros.
— Foi o que eu vi, oficial.
— Sei — disse null, não confiando em null. Soube que o garoto escondia alguma coisa — E a null?
— Eu sei lá da null.
— Quis dizer se ela realmente foi para sua casa e do null.
— Ah. Ela foi sim. Deve estar lá agora.
— Aham. Ela dormiu com vocês?
null franziu o cenho, quase rindo.
— Claro que não. Que pergunta é essa?
— Eu... Foi... — null se perdeu em suas palavras, e olhou para o lado, fingindo procurar alguém. null chegava a achar aquilo engraçado, o modo com que falar o nome de null o deixava totalmente perdido — Foi curiosidade.
— Curiosidade — repetiu null — Oficial, se me permite a pergunta... null realmente mexe com o senhor.
— Claro que não.
— Eu afirmei. A pergunta é essa: até quando o senhor vai fingir que não mexe?
null comprimiu os lábios. Uh-oh.
— Ela é minha colega de trabalho. Já trabalhamos juntos algumas vezes. Foi assim que chegamos aonde chegamos: um com o outro.
— Sei. Apoiando-se um no outro. Mas não acho que isso tenha continuado, não desde que null foi para o Manson.
— null foi para o Manson por um motivo. A mandamos para lá porque o Manson cuida de pessoas que foram culpadas de um crime, mas sem total certeza. Como o caso dela foi assassinato, mesmo não tendo provas suficientes, precisamos mandá-la para lá.
— Espera. Achei que o Manson fosse para pessoas com saúde “delicada”. Foi isso que eu li.
— O que você leu? — null voltou à pose de oficial, com a voz firme — Ou melhor, por que você leu sobre o caso Durden?
null deu de ombros. Temeu que aquela conversa fosse acabar causando alguma confissão. Até então, fora apenas da parte de null; algo inaceitável.
— Eu dei uma pesquisada. O senhor não me disse nada sobre ele, quis procurar sozinho. Estava curioso.
— Viu por que null foi culpada pelo caso?
— Não, null.
— Pergunte a ela, já que está tão íntimo de null. Isso se ela lhe contar a verdade.
— Ela não mentiria.
— Ela já nem sabe mais o que é a verdade, null. Não confie tanto nela.
— O senhor deve saber o que é confiar em null, não?
null deu meia volta sem responder null. Por que estava dando tanta satisfação para aquele garoto? Era só um jornalistazinho. Um ser insignificante.
Ele não é nada para null. Eu sou melhor do que ele. Mas null... null não a merece.
— Faça bom proveito, novato. Esses crimes todos podem te colocar no topo.
Só não se aproveite dos outros como null fez.
Era perto das quatro da tarde quando null recebeu uma ligação. Era de null, que queria vê-la o mais cedo possível. Saiu da delegacia sem a pasta do caso Durden — alguém estava de olho em null, e, se pegassem-na com a pasta, não queria nem imaginar o que poderia acontecer — e foi à pé até a cafeteria que null queria encontrá-la.
A rua estava deserta, e poucos postes de iluminação faziam seu trabalho. A luz amarelada vinda deles era assustadora, no clima perfeito de cidade abandonada. null parou para pensar se não era quase isso que Longview era.
Alguém cruzou a esquina. Usava saltos altos salmão, calças jeans azuis e uma blusa alaranjada, com babados. Os cabelos loiros ondulados agora estavam com os lados presos na parte de trás da cabeça, por uma pequena presilha brilhante. Uma fumaça fina saía do cigarro seguro em sua mão esquerda, enquanto a direita segurava a bolsa nude no ombro, e seu andar era como de uma modelo. Se uma pessoa qualquer a visse, nunca diria que ela tinha posto fogo no apartamento de null naquela madrugada. E, provavelmente, tinha explodido a casa de Samantha Fox há algumas horas.
— Ramona, estranho te ver assim. Sem pôr fogo em nada — gritou null, a cerca de cinco metros distante da mulher.
Esperava que ela fosse fugir, porém, Ramona virou o corpo para null, e esperou que a null chegasse até ela.
— Tenho minhas horas de folga — retrucou a loira, com o canto dos lábios erguido. Os olhos azuis faiscavam como se o fogo que ela costumava colocar na verdade saísse dela, do calor de suas íris — Não imaginava que pudéssemos nos encontrar assim, na rua. Achei que você frequentasse lugares melhores, null.
— Não fale assim, Ramona. Você não me conhece.
— Conheço sim. Sei como você tem medo de que, depois do Manson, perca todo seu prestígio. Sei que você odeia que tomem seu lugar. Sei como você quer ser o centro das atenções, porque você nunca teve a chance de ser boa suficiente para sua mãe. Você é insegura, null. Nunca teve nada. Agora tem tudo. Por isso que se sente sozinha... E se prende ao que tem. Você não quer mudar, porque não quer perder o que conquistou.
— Whoa — disse null, inexpressiva — Tirou isso de que livro de Freud?
— Tirei isso da sua cabeça, null — empurrou null contra a parede de um prédio com o braço que segurava o cigarro — Segure-se ao que tem, null.
— Eu tenho null. Eu tenho null. Tyler, null, null. Eu tenho tudo.
— Você acha que tem. Qual foi a última vez que eles te ligaram? Seu noivo quer te encontrar? Você sabe o que ele quer.
Tragou o cigarro e jogou-o no chão, pisando com seu salto para apagá-lo.
— Ele quer romper.
— null é o amor da minha vida.
— Não. null foi o único até hoje que correspondeu seu amor.
Um casal de idosos que passava pela rua nesse momento encarou-as com medo. Ramona tirou o braço do pescoço de null.
— Não ouse dizer que mais alguém te correspondeu, null. Não ouse dizer que Joe Durden te correspondeu.
null deu um tapa no rosto de Ramona, que permaneceu de pé, sem nem virar o pé dos saltos altos. Ela riu insanamente.
— Não faça isso.
E devolveu o tapa, exatamente no mesmo lugar que null tinha batido: perto do nariz. O casal de idosos saiu logo de perto das duas, claramente assustados.
— Vá logo levar um pé na bunda, se é isso que você quer. Eu sei que você não vai se importar — disse Ramona, apontando para o fim da rua.
— O que lhe faz pensar assim? — perguntou null, passando as costas da mão no nariz, onde um filete de sangue escorria.
— Seu coração está dividido ao meio. Entre null e null. Você sabe disso.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Não? — perguntou Ramona, sorrindo. Apontou para o fim da rua novamente, e null seguiu seu indicador. Quando olhou de volta, Ramona já estava indo embora.
Você não faria isso, null. Sei que não faria. Faria?
Eu te odeio, Ramona. Quem quer que você seja.
Ela sabia que Ramona falava a verdade. A verdade que sempre estava enterrada em sua mente, como um medo. Sua mãe já tinha lhe dito que null a deixaria. Mas null não queria encarar isso, tinha fé. Apenas ela tinha fé. Um pedaço de seu coração não queria que aquilo fosse verdade, e ela se prendia àquilo. Tanto que não se imaginava mais sem null. Ele era seu futuro.
No entanto, seu futuro tinha mudado por causa de um assassinato. Isso sim causou uma cadeia de catástrofes. E não podia estragar mais nada.
Quem era Ramona, que sabia tanto de null? Foi Ramona quem tirou as fotos da noite da morte de Joe? Não importava. Enquanto Ramona aparecesse só para null, tudo estaria sob controle.
Ou quase tudo.
Well mother, what the war did to my legs and to my tongue? You should have raised a baby girl, I should have been a better son…
Capítulo 9 — Help!
When I was younger so much younger than today, I never needed anybody's help in any way…
Quando tivesse dezoito anos, iria morar fora com o irmão enquanto fizesse faculdade. Aos vinte e dois faria sua primeira prova para polícia. Se passasse com vinte e três, começaria como detetive de homicídios até conseguir o posto de delegada. Queria casar-se aos vinte e seis e ter seu primeiro filho aos vinte e oito: uma menina chamada Lyn. Aos trinta, se mudaria com seu marido para uma cidade grande, para que Lyn pudesse estudar em uma metrópole, como Nova York. Aos trinta e dois, teria o pequeno Billie enquanto vivesse em NY como romancista. Editaria seus livros e ficaria famosa, escreveria suspenses sobre seus casos e ganharia dinheiro com isso. Quando tivesse quarenta anos, se mudaria para Vermont, e quando Lyn estivesse fazendo faculdade, iria morar com a filha onde quer que ela fosse. E Billie também. Por fim, quando os dois filhos estivessem formados — Lyn sendo uma advogada e Billie um cirurgião, isso que ela desejava —, iria viver em uma casa de praia, talvez um sítio, até o fim da vida, com seu marido.
Era isso que null planejava, mas não deu muito certo.
Entrou na cafeteria Lover’s Lane e sentou-se na primeira mesa vazia que encontrou. Esperou cinco, dez, vinte, trinta minutos. O relógio na parede era impiedoso. Mandava repetidas mensagens para null, perguntando onde ele estava. Ele só respondia “espere”. Estava em sua sexta xícara de café, e seus dedos estavam inquietos em cima da mesa. O cabelo era nervosamente colocado atrás da orelha, e a mão que não segurava a xícara apoiava sua cabeça. Ainda era um mistério o motivo do encontro.
Depois de um pouco mais de um ano namorando, e de null ter se mudado para Longview, null e null tinham saído para ir a um parque de diversões que estava de passagem na cidade. Eles passaram por uma barraca dos namorados, que fazia pequenos enfeites de casal, como broches, chaveiros... E esses guardanapos.
— Olha aquilo, null. Parece até de casamento — ele comentou, abraçando-a pela cintura.
— Ah. É bonito — ela disse inexpressiva, olhando para a barraca.
— Só bonito?
— Eu não gosto muito dessas coisas. Sabe, não consigo me imaginar vestida de noiva... Esse negócio de para sempre não é para mim.
Ela olhou para null e tapou a boca.
— Não ache que estamos perdendo tempo, por favor. Eu te amo.
Ele riu e beijou sua testa.
— Também te amo.
No fim da noite, ele dissera que precisava atender o telefonema de um paciente. Quando voltou, entregou-a uma caixinha de papel, preta. null a abriu, e ali tinha o guardanapo com as iniciais dos dois, uma aliança com um pequeno diamante na ponta e um papel com as palavras “eu quero você para sempre. Quer ser para sempre minha? Quer casar comigo, null null?”
Quando a sétima xícara de café chegou, o garçom trouxe um guardanapo branco, com a borda dourada e trançada. Em uma ponta, tinham as iniciais dos dois. E no papel estava escrito:
“O para sempre acabou. Perdoe-me. Eu não soube ser bom para você.”
Tinha uma aliança em cima do papel.
O lindo guardanapo estava jogado na mesa, friamente estragado com aquelas seis palavras. Seu sobretudo pesava em seus ombros, apenas acumulando cada vez mais o que tinha nas costas. Tudo, basicamente. Desde o caso Durden, a suspeita de culpa pela morte de Samantha, e agora o rompimento com null. Por que ele fez isso? Não podia pelo menos aparecer na Lover’s Lane?
Abaixou a cabeça e tampou o nariz e a boca com a mão, fechando os olhos com força. Aquilo não podia estar acontecendo. Há um dia, estavam se amando (em todos os sentidos) e agora ele estava terminando o noivado. Há um dia, estavam em casa, antes das chamas, antes de ela ter ido... Para a casa de null.
Era por isso? null estava com ciúmes de null? Mesmo se estivesse, era exagero romper um noivado por aquilo.
— A senhorita gostaria de mais alguma coisa? — perguntou um garçom magro, bem branco, e com a voz sumindo. Sete xícaras de café em meia hora não era para qualquer um não.
null ergueu a cabeça. Fungou, bebeu o café todo de uma vez, tirou a aliança do dedo anelar e a pôs em cima da mesa.
— Põe na conta desse bastardo.
E pegou o guardanapo, saindo da Lover’s Lane a seguir.
null estava com o jaleco pendurado no ombro, suspirando. Ficar vendo tantos psicopatas era algo fora do comum para ele. Cansado, dirigiu até um prédio que a secretaria do hospital o mandara ir, para tratar de um paciente psicótico que nunca saía de casa. Subiu as escadas lentamente, não querendo assustar ninguém do lugar. Chegou ao sétimo andar e andou até o fim do corredor, chegando ao 713. A porta fora deixada entreaberta, e ele abriu-a mergulhando na escuridão. Fechou a porta atrás de si, trancando-a. Fora realmente deixada aberta? Até onde sabia, a sala estava vazia desde de manhã.
Virou-se para a sala do apartamento. As luzes da rua mal chegavam tão alto no prédio. Havia um sombreado incomum no centro da sala, uma sombra já na escuridão. Um clima pesado, como uma bomba caindo em suas costas, um cadáver.
Acendeu as luzes e ligou desesperado para null.
— null, tem um suicida no apartamento onde estou. É uma armadilha, esse é o apartamento onde a amiga de null veio depois do incêndio. Eu preciso sair daqui, eu... Ligue para null vir também...
E desmaiou, perto da mesa, com o telefone dependurado pelo fio. E as pernas do morto permaneciam suspensas, quase flutuantes, sob a corda que o segurava pelo pescoço, como um anjo que nunca conseguiria subir ao reino dos céus.
— null, preciso que venha a um endereço — disse null, balbuciando.
A cabeça de null girava. O trabalho estava atolando-o, e em apenas três dias, coisas demais tinham acontecido. A pior delas foi a volta da Serpente Vigilante. Ao mesmo tempo, foi a melhor. Queria poder não ter aquele pensamento, mas era algo inevitável. Era null null, e ele sentia aquilo há anos. Os três meses dela em Manson só reforçavam a atração de null, e em vez de aliviarem o desejo, o intensificaram.
— O que houve, novato? — ele perguntou, sinceramente preocupado. null não parecia um cara que balbuciava com facilidade.
— Venha para a casa onde o noivo, a amiga e o irmão de null estão.
null desligou. Em menos de cinco minutos, null null já estacionava o carro na frente do prédio onde null e null estavam. Havia dois carros policiais parados do lado de fora, e todos os moradores estavam na rua, provavelmente assustados. Afinal, um incêndio tinha acontecido na noite anterior. Conforme null andava até o prédio, via mais claramente a maca que levava um corpo ensacado.
Meu Deus. É uma chacina com intervalos.
Subiu as escadas até o apartamento. Quando chegou, a porta já estava aberta. null estava sentado no sofá, com as mãos tremendo, e com null ao seu lado, entregando-lhe uma aspirina. No centro da sala, pendurada ao ventilador, havia uma corda torcida e apertada, e um banco logo abaixo.
— Você viu acontecer? — perguntou null, para null.
Para quem costumava ser animado e piadista, null estava bem perturbado.
— Não — ele negou com a cabeça, quase gaguejando — Trato doentes mentais, mas isso para mim é coisa de filme. Me atraíram até aqui para uma consulta, e vi o corpo. Fiquei com medo de estarem querendo me matar também, mas desmaiei antes que pudesse fugir.
— O que é essa bagunça lá embaixo, eu... — disse null, entrando no apartamento de repente. Olhou a cena toda na sala, e todos olharam para ela. null e null sentados, e null de costas. null tinha seus olhos inchados.
O que eu fiz para null? E o que ele fez para mim?
— null? — ela interrompeu-se — O que aconteceu aqui?
— Quando eu cheguei do trabalho, tinha um louco suicida pendurado nessa sala — explicou null, antes que qualquer outro pudesse responder alguma coisa.
— Um louco suicida? — ela olhou para a corda e o banco. null concordou.
Ela olhou para null e se aproximou.
— O que veio fazer aqui? — ele perguntou, não querendo soar grosseiro.
— Vim tentar falar com null, Tyler ou null. Parece que nenhum deles está aqui — ela fez uma pausa — Posso ficar com o caso?
Ele já estava com raiva suficiente acumulada para dizer “não, óbvio que não, nem com o Fox você quis ficar...”, mas apenas respondeu com a cara fechada e os braços cruzados:
— Nem fudendo. Esse é meu.
Saiu da sala e foi falar com policiais no corredor.
null voltou a olhar para a corda e o banco.
— Quanto o suicida media, mais ou menos? — ela perguntou, sem desviar o olhar.
null ergueu a sobrancelha direita e o canto do lábio.
— Desculpa, me importei mais em olhar que tinha UM SUICIDA NA PORRA DA SALA.
— null... — ela pediu, olhando para ele.
— Ah, devia ter a altura do oficial null. Por quê?
null suspirou e olhou para o banco, sentando ao lado de null.
— Ele não se matou. Isso aqui foi uma cena armada.
null levantou a cabeça e olhou para null. Chegava a suar frio, enquanto ela parecia assustadoramente calma.
— Como pode achar uma coisa dessas?
— O banco não está virado.
— UM SUICIDA MORREU NA MINHA FRENTE E VOCÊ PRESTOU ATENÇÃO NA PORRA DO BANCO? — disse null, quase gritando.
— Shh. Não grite, não quero que roubem minha ideia para o caso.
— O seu caso? — perguntou null.
— O meu caso — ela confirmou — Um suicida que se enforca dá um pontapé no banco, depois de pôr o pescoço na corda. Quando o banco cai, ele fica pendurado e resiste até se sufocar. Mas o banco não está caído... E acredito que o “assassino” não tenha feito isso de propósito. Se ele queria fingir um suicídio, ele tentaria deixar isso mais real possível.
null e null ponderaram a questão por alguns segundos.
— Você acha que assassinaram o pobre coitado, e montaram essa cena para nos enganar?
— Eu meio que tenho certeza.
— Modesta — tossiu null.
Ela deu uma risada gentil, e em seguida começou a chorar. null e null preferiram não dizer nada, e apenas a abraçaram.
A madrugada parecia sem fim na casa dos três. null pegou seu iPhone, fechou a porta do escritório e ligou para null. Inicialmente, ninguém atendeu, até que ouviu sua voz.
— Alô?
Agradeceu por ele ter atendido, e quis chorar por ele ter, aparentemente, apagado seu nome do registro de chamadas.
— null? É a null.
— Ah, null. Ainda bem que ligou.
— Você podia ter ido à Lover’s Lane.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
— null... Está tudo tão difícil... Estamos nos distanciando ultimamente. O tempo que você ficou fora me deixou isso claro, eu percebi que não era hora.
— Eu precisei ficar três meses fora e ser acusada de assassinato para você me dar um belo de um pé na bunda?
— Não pense assim. Estamos só... Variando o pessoal.
— Você já está com outra?!
— null! Calma! — ele gritou, querendo que ela parasse de chorar — Não estou com outra. Mas, sinceramente, percebi que você gostaria de estar com outro.
— Como assim, null?
— O null, o “null”, null. Sou lerdo, mas não sou trouxa, e muito menos corno. Você ter ido para casa dele foi a gota d’água.
— Eu posso ir embora daqui, null — ela disse, com a voz chorosa, quase se lamentando.
— Pode mesmo?
Ela ponderou a questão por alguns segundos.
— Não. Não posso. Desculpe, queria muito te ver de novo. Podemos resolver isso direito.
— Podemos. Venha à nossa casa, onde tudo começou. Podemos conversar.
— Quando?
— Quando você quiser. Me avise e eu estarei lá.
Ela quase sorriu. Não quis falar do suicida, pois se null não havia comentado, certamente ele não deveria saber. Não quis amedrontá-lo.
— Não deveria dormir?
— Tenho trabalho a fazer — ela respondeu.
— Ok. Qualquer problema, me ligue. Ainda somos amigos.
— Tudo bem, null.
Não houve um “eu te amo” dessa vez.
null foi até a cozinha e preparou uma caneca de café. Dessa vez, a que bebeu foi do Homem-Aranha. Usava uma blusa grande do Star Wars, que ia até metade de suas coxas, com um short por baixo. Sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada desta, tomando cuidado para null e null não acordarem.
Não fazia sentido. Césio pode realmente ficar em alimentos, até por muito tempo, mas matar Samantha assim era muita covardia. Era guardar sua morte em uma lata. null imaginou Fox indo até o armário, ou à geladeira, pensando “acho que hoje vou fazer uma massa” e pegando justamente a massa errada... Além disso, para o césio estar na casa dela... Só havia duas chances plausíveis: ou alguém próximo dela era o assassino, próximo o suficiente para colocar aquele veneno por lá, ou alguém próximo também deu a ela um alimento envenenado em lata ou embalado. De qualquer modo, o assassino era íntimo de Samantha.
Ouviu a porta de um dos quartos se abrindo, e acabou riscando fortemente o papel em suas mãos com o susto que levou. null apareceu na sala logo depois, com os olhos miúdos, os cabelos bagunçados e para cima, e os pijamas de manga curta.
— O que você ‘tá fazendo, sua doente? — ele perguntou.
— Tomando café.
— Isso eu já esperava.
Ele se aproximou e pegou uma das cadeiras da mesa de jantar, virando-a em 180º graus e sentando-se a seguir, apoiando os braços e o queixo no encosto.
— Falta algo. Tudo se encaixa, mas ainda falta uma peça.
— Quem sabe eu possa ajudar — ele disse, apoiando o cotovelo na mesa e bagunçando mais o cabelo. Perigosamente perto de null, ela podia sentir o cheiro de seu perfume forte, e, com um suspiro, ela levantou da mesa rapidamente e arrastou a cadeira no chão.
— Olha isso — ela retrucou, irritada, de costas para a mesa e para null, apontando para o papel em cima do vidro. A Serpente Vigilante, em seu heroico retorno, não consegue desvendar seu primeiro caso? — Não faz sentido. A maneira com que a Fox morreu foi algo muito bem planejado. Não se mata por queimaduras internas todos os dias, sabe?
— Pode ser um assassino que gosta de inovar — arriscou null, bocejando — Eu trabalho mal quando estou com sono.
— Toma café. E não acho que vá ser isso. Senão, provavelmente as outras mortes seguiriam essa mesma faixa, desde a Maldição de Halloween e o Louco Suicida.
— Você apelidou os casos? — perguntou null, olhando para ela ainda com os olhos apertados.
Ela deu de ombros, nervosa.
— Eu faço isso quando não sei as vítimas. O caso não é esse — ela disse, balançando as mãos como se fosse para cortar aquele assunto — Por que matar Samantha assim? Porque matar por matar, bala é mais rápido e mais eficiente. Pelo menos, quase sempre.
— Isso importa tanto?
null parou e mordeu o lábio.
— Mais do que você pode imaginar.
null voltou a encarar o emaranhado de rabiscos feitos por null. Teorias das mais variadas, nomes de filmes que ele poderia ter se inspirado, assassinos em série com modus operati conhecidos. Nada encaixava.
null deu uma risadinha.
— O que foi? — ela pareceu curiosa, também rindo. Sentia raiva de si mesma quando ria depois dele. A risada dele era tão contagiosa assim? Tão adorável assim?
— Só... Uma ideia. Besteira — jogou o papel na mesa.
null debruçou-se na mesa.
— Fale — ela pediu, mansa.
null olhou-a nos olhos. Inocentes, como sempre aparentavam ser. Mas claro, se null tivesse aquela informação, ele com certeza estaria fora da jogada.
Se null quer brincar, que seja com as minhas regras.
Deu um sorriso torto.
— Besteira — ele praticamente soletrou.
Lentamente, null passou as unhas pela mesa enquanto levantava, ficando reta. Cruzou os braços e fez um rosto de, ao mesmo tempo, desaprovação e admiração.
— Você não vale um centavo, novato. Diga o que você pensa, estamos juntos nisso — ela disse.
— Aprendi com a melhor. Preste atenção — ele apanhou novamente o papel. null ficou atrás dele, debruçada em seu ombro, com seu rosto colado no dele. null podia sentir a respiração morna dela em seu ouvido, e sua mão tocando levemente seu ombro. A qualquer pequeno movimento, a Serpente poderia atacá-lo.
Eu estou no controle.
— E se o foco fosse, justamente, matar de dentro para fora? Digo, acabar com algo que estava dentro dela?
— Você diz... Um veneno?
null deu de ombros.
— Se quiser chamar assim...
— Aonde quer chegar? Colocaram o césio para encobrir uma tentativa anterior de assassinato? — ela perguntou, com um pequeno sorriso. O novato estava aprendendo a jogar.
Lentamente, null virou seu rosto. Poucos centímetros distanciavam ele de null. Com calma, ele murmurou:
— Um bebê.
Ágil, fugiu das mãos de null e levantou-se da cadeira, saindo da sala.
— Um bebê? Mataram Fox para matar um bebê? — perguntou ela em sussurros agoniados, sem entender o raciocínio. Seguiu null, que, a essa altura, se sentia o homem mais inteligente da cidade — Fox não queria ter filhos!
— Justamente! Pense comigo — ele virou-se para null, ficando perto dela — Uma mulher como Samantha: inteligente, bem sucedida e, claro, muito bonita. Qualquer homem iria se envolver.
— Mas Samantha não queria engravidar. E se mataram o bebê, é porque ele não deveria estar ali.
— Ou não queriam que o vissem ali.
— Isso está me cheirando a pulada de cerca — comentou null.
— Bem a sua cara pensar assim.
Ela ergueu as sobrancelhas, parecendo levemente surpresa com o comentário. Prosseguiu:
— Um homem casado se envolve com Samantha, a engravida, e a mulher traída a mata e a criança. Destruindo a barriga dela, não tem como saber se ela estava grávida. Até descobrirem, o assassino já conseguiu tempo — pensou null — Assassino que pode ser a traída...
— ... Ou o pai da criança, irritado depois de Fox ameaça contar a todos a gravidez.
null deu uma risadinha, com as mãos na cintura.
— Parabéns, novato. Você pegou a manha logo.
— Como eu disse, aprendi com a melhor.
— null, está tudo bem?
— Ah, null. Está, quer dizer, além daquele suicídio. Estou com saudades, quero te ver. Depois de três meses...
Ela riu.
— Também estou com saudades. A null falou com você?
— Não, ela...
A chamada foi interrompida por null. null atendeu-a rapidamente.
— null, eu estava tão...
— null — null interrompeu — Preciso que você preste muita atenção em mim. Entendido?
— null, o que está...
— null, eu vou ter que viajar por um tempo. Até ficar tudo bem, isso tudo está me assustando muito. Desde Durden até agora. null pode te dizer o que está havendo.
— Eu e null rompemos o noivado.
O silêncio dominou a chamada.
— Desculpe.
— Soube do suicídio? — perguntou null, querendo fugir do assunto “null” o quanto antes.
— Suicídio?
— É. Acharam um suicida na casa dos amigos do null. Mesma casa que você está hospedada.
null ficou calada.
— Percebe como não é uma boa hora para eu ficar aqui? Estou indo agora mesmo para a rodoviária. Quando eu estiver lá, te ligo.
— E null?
null pareceu não querer responder.
— Essa chamada não é segura. Tem pessoas ouvindo isso. Só peço, null, para que você não me procure por um mês. Eu vou viajar. Não quero pôr terror, apesar de te deixar amedrontada.
— Você vai viajar.
— É. Eu vou viajar. Por um tempo.
— E quando você volta?
null pareceu calcular.
— Em uns três meses.
— Pode me dizer o que houve?
— Não, null. Perdão.
— null, você acha que null não era bom o suficiente para mim?
null pareceu não querer dizer.
— Preciso ir, null. Vou sentir sua falta.
— Tente mandar notícias.
— Tentarei. E null... Cuidado com Ramona.
— Como você sabe...?
null pareceu desligar.
null tentou retomar a ligação com null, mas ele já tinha desligado. Ela deitou-se e logo adormeceu.
Won't you please, please, help me?
Quando tivesse dezoito anos, iria morar fora com o irmão enquanto fizesse faculdade. Aos vinte e dois faria sua primeira prova para polícia. Se passasse com vinte e três, começaria como detetive de homicídios até conseguir o posto de delegada. Queria casar-se aos vinte e seis e ter seu primeiro filho aos vinte e oito: uma menina chamada Lyn. Aos trinta, se mudaria com seu marido para uma cidade grande, para que Lyn pudesse estudar em uma metrópole, como Nova York. Aos trinta e dois, teria o pequeno Billie enquanto vivesse em NY como romancista. Editaria seus livros e ficaria famosa, escreveria suspenses sobre seus casos e ganharia dinheiro com isso. Quando tivesse quarenta anos, se mudaria para Vermont, e quando Lyn estivesse fazendo faculdade, iria morar com a filha onde quer que ela fosse. E Billie também. Por fim, quando os dois filhos estivessem formados — Lyn sendo uma advogada e Billie um cirurgião, isso que ela desejava —, iria viver em uma casa de praia, talvez um sítio, até o fim da vida, com seu marido.
Era isso que null planejava, mas não deu muito certo.
Entrou na cafeteria Lover’s Lane e sentou-se na primeira mesa vazia que encontrou. Esperou cinco, dez, vinte, trinta minutos. O relógio na parede era impiedoso. Mandava repetidas mensagens para null, perguntando onde ele estava. Ele só respondia “espere”. Estava em sua sexta xícara de café, e seus dedos estavam inquietos em cima da mesa. O cabelo era nervosamente colocado atrás da orelha, e a mão que não segurava a xícara apoiava sua cabeça. Ainda era um mistério o motivo do encontro.
Depois de um pouco mais de um ano namorando, e de null ter se mudado para Longview, null e null tinham saído para ir a um parque de diversões que estava de passagem na cidade. Eles passaram por uma barraca dos namorados, que fazia pequenos enfeites de casal, como broches, chaveiros... E esses guardanapos.
— Olha aquilo, null. Parece até de casamento — ele comentou, abraçando-a pela cintura.
— Ah. É bonito — ela disse inexpressiva, olhando para a barraca.
— Só bonito?
— Eu não gosto muito dessas coisas. Sabe, não consigo me imaginar vestida de noiva... Esse negócio de para sempre não é para mim.
Ela olhou para null e tapou a boca.
— Não ache que estamos perdendo tempo, por favor. Eu te amo.
Ele riu e beijou sua testa.
— Também te amo.
No fim da noite, ele dissera que precisava atender o telefonema de um paciente. Quando voltou, entregou-a uma caixinha de papel, preta. null a abriu, e ali tinha o guardanapo com as iniciais dos dois, uma aliança com um pequeno diamante na ponta e um papel com as palavras “eu quero você para sempre. Quer ser para sempre minha? Quer casar comigo, null null?”
Quando a sétima xícara de café chegou, o garçom trouxe um guardanapo branco, com a borda dourada e trançada. Em uma ponta, tinham as iniciais dos dois. E no papel estava escrito:
“O para sempre acabou. Perdoe-me. Eu não soube ser bom para você.”
Tinha uma aliança em cima do papel.
O lindo guardanapo estava jogado na mesa, friamente estragado com aquelas seis palavras. Seu sobretudo pesava em seus ombros, apenas acumulando cada vez mais o que tinha nas costas. Tudo, basicamente. Desde o caso Durden, a suspeita de culpa pela morte de Samantha, e agora o rompimento com null. Por que ele fez isso? Não podia pelo menos aparecer na Lover’s Lane?
Abaixou a cabeça e tampou o nariz e a boca com a mão, fechando os olhos com força. Aquilo não podia estar acontecendo. Há um dia, estavam se amando (em todos os sentidos) e agora ele estava terminando o noivado. Há um dia, estavam em casa, antes das chamas, antes de ela ter ido... Para a casa de null.
Era por isso? null estava com ciúmes de null? Mesmo se estivesse, era exagero romper um noivado por aquilo.
— A senhorita gostaria de mais alguma coisa? — perguntou um garçom magro, bem branco, e com a voz sumindo. Sete xícaras de café em meia hora não era para qualquer um não.
null ergueu a cabeça. Fungou, bebeu o café todo de uma vez, tirou a aliança do dedo anelar e a pôs em cima da mesa.
— Põe na conta desse bastardo.
E pegou o guardanapo, saindo da Lover’s Lane a seguir.
null estava com o jaleco pendurado no ombro, suspirando. Ficar vendo tantos psicopatas era algo fora do comum para ele. Cansado, dirigiu até um prédio que a secretaria do hospital o mandara ir, para tratar de um paciente psicótico que nunca saía de casa. Subiu as escadas lentamente, não querendo assustar ninguém do lugar. Chegou ao sétimo andar e andou até o fim do corredor, chegando ao 713. A porta fora deixada entreaberta, e ele abriu-a mergulhando na escuridão. Fechou a porta atrás de si, trancando-a. Fora realmente deixada aberta? Até onde sabia, a sala estava vazia desde de manhã.
Virou-se para a sala do apartamento. As luzes da rua mal chegavam tão alto no prédio. Havia um sombreado incomum no centro da sala, uma sombra já na escuridão. Um clima pesado, como uma bomba caindo em suas costas, um cadáver.
Acendeu as luzes e ligou desesperado para null.
— null, tem um suicida no apartamento onde estou. É uma armadilha, esse é o apartamento onde a amiga de null veio depois do incêndio. Eu preciso sair daqui, eu... Ligue para null vir também...
E desmaiou, perto da mesa, com o telefone dependurado pelo fio. E as pernas do morto permaneciam suspensas, quase flutuantes, sob a corda que o segurava pelo pescoço, como um anjo que nunca conseguiria subir ao reino dos céus.
— null, preciso que venha a um endereço — disse null, balbuciando.
A cabeça de null girava. O trabalho estava atolando-o, e em apenas três dias, coisas demais tinham acontecido. A pior delas foi a volta da Serpente Vigilante. Ao mesmo tempo, foi a melhor. Queria poder não ter aquele pensamento, mas era algo inevitável. Era null null, e ele sentia aquilo há anos. Os três meses dela em Manson só reforçavam a atração de null, e em vez de aliviarem o desejo, o intensificaram.
— O que houve, novato? — ele perguntou, sinceramente preocupado. null não parecia um cara que balbuciava com facilidade.
— Venha para a casa onde o noivo, a amiga e o irmão de null estão.
null desligou. Em menos de cinco minutos, null null já estacionava o carro na frente do prédio onde null e null estavam. Havia dois carros policiais parados do lado de fora, e todos os moradores estavam na rua, provavelmente assustados. Afinal, um incêndio tinha acontecido na noite anterior. Conforme null andava até o prédio, via mais claramente a maca que levava um corpo ensacado.
Meu Deus. É uma chacina com intervalos.
Subiu as escadas até o apartamento. Quando chegou, a porta já estava aberta. null estava sentado no sofá, com as mãos tremendo, e com null ao seu lado, entregando-lhe uma aspirina. No centro da sala, pendurada ao ventilador, havia uma corda torcida e apertada, e um banco logo abaixo.
— Você viu acontecer? — perguntou null, para null.
Para quem costumava ser animado e piadista, null estava bem perturbado.
— Não — ele negou com a cabeça, quase gaguejando — Trato doentes mentais, mas isso para mim é coisa de filme. Me atraíram até aqui para uma consulta, e vi o corpo. Fiquei com medo de estarem querendo me matar também, mas desmaiei antes que pudesse fugir.
— O que é essa bagunça lá embaixo, eu... — disse null, entrando no apartamento de repente. Olhou a cena toda na sala, e todos olharam para ela. null e null sentados, e null de costas. null tinha seus olhos inchados.
O que eu fiz para null? E o que ele fez para mim?
— null? — ela interrompeu-se — O que aconteceu aqui?
— Quando eu cheguei do trabalho, tinha um louco suicida pendurado nessa sala — explicou null, antes que qualquer outro pudesse responder alguma coisa.
— Um louco suicida? — ela olhou para a corda e o banco. null concordou.
Ela olhou para null e se aproximou.
— O que veio fazer aqui? — ele perguntou, não querendo soar grosseiro.
— Vim tentar falar com null, Tyler ou null. Parece que nenhum deles está aqui — ela fez uma pausa — Posso ficar com o caso?
Ele já estava com raiva suficiente acumulada para dizer “não, óbvio que não, nem com o Fox você quis ficar...”, mas apenas respondeu com a cara fechada e os braços cruzados:
— Nem fudendo. Esse é meu.
Saiu da sala e foi falar com policiais no corredor.
null voltou a olhar para a corda e o banco.
— Quanto o suicida media, mais ou menos? — ela perguntou, sem desviar o olhar.
null ergueu a sobrancelha direita e o canto do lábio.
— Desculpa, me importei mais em olhar que tinha UM SUICIDA NA PORRA DA SALA.
— null... — ela pediu, olhando para ele.
— Ah, devia ter a altura do oficial null. Por quê?
null suspirou e olhou para o banco, sentando ao lado de null.
— Ele não se matou. Isso aqui foi uma cena armada.
null levantou a cabeça e olhou para null. Chegava a suar frio, enquanto ela parecia assustadoramente calma.
— Como pode achar uma coisa dessas?
— O banco não está virado.
— UM SUICIDA MORREU NA MINHA FRENTE E VOCÊ PRESTOU ATENÇÃO NA PORRA DO BANCO? — disse null, quase gritando.
— Shh. Não grite, não quero que roubem minha ideia para o caso.
— O seu caso? — perguntou null.
— O meu caso — ela confirmou — Um suicida que se enforca dá um pontapé no banco, depois de pôr o pescoço na corda. Quando o banco cai, ele fica pendurado e resiste até se sufocar. Mas o banco não está caído... E acredito que o “assassino” não tenha feito isso de propósito. Se ele queria fingir um suicídio, ele tentaria deixar isso mais real possível.
null e null ponderaram a questão por alguns segundos.
— Você acha que assassinaram o pobre coitado, e montaram essa cena para nos enganar?
— Eu meio que tenho certeza.
— Modesta — tossiu null.
Ela deu uma risada gentil, e em seguida começou a chorar. null e null preferiram não dizer nada, e apenas a abraçaram.
A madrugada parecia sem fim na casa dos três. null pegou seu iPhone, fechou a porta do escritório e ligou para null. Inicialmente, ninguém atendeu, até que ouviu sua voz.
— Alô?
Agradeceu por ele ter atendido, e quis chorar por ele ter, aparentemente, apagado seu nome do registro de chamadas.
— null? É a null.
— Ah, null. Ainda bem que ligou.
— Você podia ter ido à Lover’s Lane.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
— null... Está tudo tão difícil... Estamos nos distanciando ultimamente. O tempo que você ficou fora me deixou isso claro, eu percebi que não era hora.
— Eu precisei ficar três meses fora e ser acusada de assassinato para você me dar um belo de um pé na bunda?
— Não pense assim. Estamos só... Variando o pessoal.
— Você já está com outra?!
— null! Calma! — ele gritou, querendo que ela parasse de chorar — Não estou com outra. Mas, sinceramente, percebi que você gostaria de estar com outro.
— Como assim, null?
— O null, o “null”, null. Sou lerdo, mas não sou trouxa, e muito menos corno. Você ter ido para casa dele foi a gota d’água.
— Eu posso ir embora daqui, null — ela disse, com a voz chorosa, quase se lamentando.
— Pode mesmo?
Ela ponderou a questão por alguns segundos.
— Não. Não posso. Desculpe, queria muito te ver de novo. Podemos resolver isso direito.
— Podemos. Venha à nossa casa, onde tudo começou. Podemos conversar.
— Quando?
— Quando você quiser. Me avise e eu estarei lá.
Ela quase sorriu. Não quis falar do suicida, pois se null não havia comentado, certamente ele não deveria saber. Não quis amedrontá-lo.
— Não deveria dormir?
— Tenho trabalho a fazer — ela respondeu.
— Ok. Qualquer problema, me ligue. Ainda somos amigos.
— Tudo bem, null.
Não houve um “eu te amo” dessa vez.
null foi até a cozinha e preparou uma caneca de café. Dessa vez, a que bebeu foi do Homem-Aranha. Usava uma blusa grande do Star Wars, que ia até metade de suas coxas, com um short por baixo. Sentou-se à mesa e acendeu a lâmpada desta, tomando cuidado para null e null não acordarem.
Não fazia sentido. Césio pode realmente ficar em alimentos, até por muito tempo, mas matar Samantha assim era muita covardia. Era guardar sua morte em uma lata. null imaginou Fox indo até o armário, ou à geladeira, pensando “acho que hoje vou fazer uma massa” e pegando justamente a massa errada... Além disso, para o césio estar na casa dela... Só havia duas chances plausíveis: ou alguém próximo dela era o assassino, próximo o suficiente para colocar aquele veneno por lá, ou alguém próximo também deu a ela um alimento envenenado em lata ou embalado. De qualquer modo, o assassino era íntimo de Samantha.
Ouviu a porta de um dos quartos se abrindo, e acabou riscando fortemente o papel em suas mãos com o susto que levou. null apareceu na sala logo depois, com os olhos miúdos, os cabelos bagunçados e para cima, e os pijamas de manga curta.
— O que você ‘tá fazendo, sua doente? — ele perguntou.
— Tomando café.
— Isso eu já esperava.
Ele se aproximou e pegou uma das cadeiras da mesa de jantar, virando-a em 180º graus e sentando-se a seguir, apoiando os braços e o queixo no encosto.
— Falta algo. Tudo se encaixa, mas ainda falta uma peça.
— Quem sabe eu possa ajudar — ele disse, apoiando o cotovelo na mesa e bagunçando mais o cabelo. Perigosamente perto de null, ela podia sentir o cheiro de seu perfume forte, e, com um suspiro, ela levantou da mesa rapidamente e arrastou a cadeira no chão.
— Olha isso — ela retrucou, irritada, de costas para a mesa e para null, apontando para o papel em cima do vidro. A Serpente Vigilante, em seu heroico retorno, não consegue desvendar seu primeiro caso? — Não faz sentido. A maneira com que a Fox morreu foi algo muito bem planejado. Não se mata por queimaduras internas todos os dias, sabe?
— Pode ser um assassino que gosta de inovar — arriscou null, bocejando — Eu trabalho mal quando estou com sono.
— Toma café. E não acho que vá ser isso. Senão, provavelmente as outras mortes seguiriam essa mesma faixa, desde a Maldição de Halloween e o Louco Suicida.
— Você apelidou os casos? — perguntou null, olhando para ela ainda com os olhos apertados.
Ela deu de ombros, nervosa.
— Eu faço isso quando não sei as vítimas. O caso não é esse — ela disse, balançando as mãos como se fosse para cortar aquele assunto — Por que matar Samantha assim? Porque matar por matar, bala é mais rápido e mais eficiente. Pelo menos, quase sempre.
— Isso importa tanto?
null parou e mordeu o lábio.
— Mais do que você pode imaginar.
null voltou a encarar o emaranhado de rabiscos feitos por null. Teorias das mais variadas, nomes de filmes que ele poderia ter se inspirado, assassinos em série com modus operati conhecidos. Nada encaixava.
null deu uma risadinha.
— O que foi? — ela pareceu curiosa, também rindo. Sentia raiva de si mesma quando ria depois dele. A risada dele era tão contagiosa assim? Tão adorável assim?
— Só... Uma ideia. Besteira — jogou o papel na mesa.
null debruçou-se na mesa.
— Fale — ela pediu, mansa.
null olhou-a nos olhos. Inocentes, como sempre aparentavam ser. Mas claro, se null tivesse aquela informação, ele com certeza estaria fora da jogada.
Se null quer brincar, que seja com as minhas regras.
Deu um sorriso torto.
— Besteira — ele praticamente soletrou.
Lentamente, null passou as unhas pela mesa enquanto levantava, ficando reta. Cruzou os braços e fez um rosto de, ao mesmo tempo, desaprovação e admiração.
— Você não vale um centavo, novato. Diga o que você pensa, estamos juntos nisso — ela disse.
— Aprendi com a melhor. Preste atenção — ele apanhou novamente o papel. null ficou atrás dele, debruçada em seu ombro, com seu rosto colado no dele. null podia sentir a respiração morna dela em seu ouvido, e sua mão tocando levemente seu ombro. A qualquer pequeno movimento, a Serpente poderia atacá-lo.
Eu estou no controle.
— E se o foco fosse, justamente, matar de dentro para fora? Digo, acabar com algo que estava dentro dela?
— Você diz... Um veneno?
null deu de ombros.
— Se quiser chamar assim...
— Aonde quer chegar? Colocaram o césio para encobrir uma tentativa anterior de assassinato? — ela perguntou, com um pequeno sorriso. O novato estava aprendendo a jogar.
Lentamente, null virou seu rosto. Poucos centímetros distanciavam ele de null. Com calma, ele murmurou:
— Um bebê.
Ágil, fugiu das mãos de null e levantou-se da cadeira, saindo da sala.
— Um bebê? Mataram Fox para matar um bebê? — perguntou ela em sussurros agoniados, sem entender o raciocínio. Seguiu null, que, a essa altura, se sentia o homem mais inteligente da cidade — Fox não queria ter filhos!
— Justamente! Pense comigo — ele virou-se para null, ficando perto dela — Uma mulher como Samantha: inteligente, bem sucedida e, claro, muito bonita. Qualquer homem iria se envolver.
— Mas Samantha não queria engravidar. E se mataram o bebê, é porque ele não deveria estar ali.
— Ou não queriam que o vissem ali.
— Isso está me cheirando a pulada de cerca — comentou null.
— Bem a sua cara pensar assim.
Ela ergueu as sobrancelhas, parecendo levemente surpresa com o comentário. Prosseguiu:
— Um homem casado se envolve com Samantha, a engravida, e a mulher traída a mata e a criança. Destruindo a barriga dela, não tem como saber se ela estava grávida. Até descobrirem, o assassino já conseguiu tempo — pensou null — Assassino que pode ser a traída...
— ... Ou o pai da criança, irritado depois de Fox ameaça contar a todos a gravidez.
null deu uma risadinha, com as mãos na cintura.
— Parabéns, novato. Você pegou a manha logo.
— Como eu disse, aprendi com a melhor.
— null, está tudo bem?
— Ah, null. Está, quer dizer, além daquele suicídio. Estou com saudades, quero te ver. Depois de três meses...
Ela riu.
— Também estou com saudades. A null falou com você?
— Não, ela...
A chamada foi interrompida por null. null atendeu-a rapidamente.
— null, eu estava tão...
— null — null interrompeu — Preciso que você preste muita atenção em mim. Entendido?
— null, o que está...
— null, eu vou ter que viajar por um tempo. Até ficar tudo bem, isso tudo está me assustando muito. Desde Durden até agora. null pode te dizer o que está havendo.
— Eu e null rompemos o noivado.
O silêncio dominou a chamada.
— Desculpe.
— Soube do suicídio? — perguntou null, querendo fugir do assunto “null” o quanto antes.
— Suicídio?
— É. Acharam um suicida na casa dos amigos do null. Mesma casa que você está hospedada.
null ficou calada.
— Percebe como não é uma boa hora para eu ficar aqui? Estou indo agora mesmo para a rodoviária. Quando eu estiver lá, te ligo.
— E null?
null pareceu não querer responder.
— Essa chamada não é segura. Tem pessoas ouvindo isso. Só peço, null, para que você não me procure por um mês. Eu vou viajar. Não quero pôr terror, apesar de te deixar amedrontada.
— Você vai viajar.
— É. Eu vou viajar. Por um tempo.
— E quando você volta?
null pareceu calcular.
— Em uns três meses.
— Pode me dizer o que houve?
— Não, null. Perdão.
— null, você acha que null não era bom o suficiente para mim?
null pareceu não querer dizer.
— Preciso ir, null. Vou sentir sua falta.
— Tente mandar notícias.
— Tentarei. E null... Cuidado com Ramona.
— Como você sabe...?
null pareceu desligar.
null tentou retomar a ligação com null, mas ele já tinha desligado. Ela deitou-se e logo adormeceu.
Won't you please, please, help me?
Capítulo 10 — Dead end justice
Your momma says you’re going straight to hell…
null era o tipo de pessoa que não é nenhum tipo de pessoa. Ou você a ama, ou você a odeia, e, para isso, não era necessário muito tempo de convivência. null estava exatamente na linha tênue entre esses dois, enquanto null estava bem longe de qualquer um deles.
Os investigações para o caso Fox estavam mais lentas do que livro do Stephen King, e isso só deixava null cada vez mais ansioso. null tinha voltado dia 30 de outubro. Samantha morreu dia 29. Dia 31, morreu alguém na festa de Halloween. E agora, dia 1º de novembro, tinha morrido mais alguém.
Sabia que tudo aquilo provavelmente girava em torno do caso Durden, e sabia cada vez mais que precisava descobrir coisas sobre a família Durden que ninguém tinha contado.
Meu Deus, é realmente preciso muita covardia e muita coragem para cometer suicídio.
Dormiu até oito da manhã naquela quinta-feira. Quando acordou, logo vestiu uma camiseta azul-marinho e as calças jeans, bebendo seu café enquanto pesquisava na internet sobre a família Durden:
Os dois magnatas e pais da família, Johnny e Johanna, tinham se casado jovens. Ele, empresário e o único herdeiro de uma fortuna absurda: os hotéis Tate. Ela, uma atriz conhecida por todo mundo. Johanna e Johnny Durden eram realmente o que hoje é representado pelo casal Pitt e Jolie, porém, com uma história bem mais trágica. O casal gerou os herdeiros James, Jacqueline, Justin e Joseph Durden. O primeiro era um biólogo que construiu riqueza, mas foi totalmente destruído pela bebida. Jacqueline tinha seguido os passos da mãe, e não demorou a ver sua carreira desmoronar por causa de drogas. Joe, o pequeno Joey Durden, tinha sido brutalmente assassinado por uma detetive conhecida por toda cidade: null null. Aquele era Joe Durden, um homem, um dia um garoto, que fora morto com vinte e cinco anos. Seus cabelos tinham sido loiros, mas agora eram um castanho quase alaranjado. Bem, pelo menos quando ele morreu. Joe já tinha pintado o cabelo de tantas cores que era difícil vê-lo duas vezes em dois meses com a mesma cor. Os olhos eram de um verde invejável, assim como de todos os Durden. Ele nunca envelheceria.
A foto que seguia da família Durden era algo que se tinha vontade de enquadrar, se não parecesse representar um medalhão de assombrações.
Johnny e Johanna tinham morrido em um acidente de avião. Toda a herança fora transferida diretamente para Joey, pois seus irmãos não estavam em condições de cuidar dela. Ele e sua ajuda no tribunal para que obtivesse a herança era algo incrivelmente invejável. E, como era de se esperar, ele não fez bom uso daquele dinheiro todo. O playboy da família Durden, a pequena ovelha negra, estava quase rasgando o dinheiro que tinha. O mundo era de Joe, e Joe era o mundo.
Então houve o julgamento e, não muito depois, a morte do pequeno magnata.
Todo dinheiro da herança Durden — uma das maiores do país — fora guardado a sete chaves no cofre nacional, e não sairia de lá enquanto não houvesse uma série de processos judiciais para que fosse determinado, enfim, com quem ficaria o dinheiro.
Um pequeno nome surgiu na matéria: Tyler.
null encarou o relógio e viu que estava atrasado, então desligou o computador e tomou seu caminho para o trabalho.
null null tinha ido para o trabalho com uma dor de cabeça infernal, quase sobre-humana. Era como se seu crânio estivesse rachando lentamente. Ela folheava a pasta sobre o caso Durden e o Fox lentamente, apoiando a cabeça com a outra mão. null entrou na sala abrindo a porta e imediatamente falando:
— Por Cristo, null! Você viu aquilo? O suicida...
— Eu vi, null — null respondeu com um meio-sorriso sonolento.
— Ah. Perdão. Está passando bem?
— É uma dorzinha de cabeça.
— Você está com uma cara de que foi na sua cabeça que o Titanic se chocou.
null foi obrigada a rir do comentário. A noite inteira, a imagem de null não saía de sua cabeça.
A porta abriu-se de repente, e a voz de null null foi ouvida.
— null, queria conversar com você uma coisa.
— A null morreu — a própria anunciou.
— Ouviram minhas preces — ele retrucou, com um sorriso sarcástico.
null e null trocaram olhares, e a última bufou. null entrou na sala enquanto null saía, e fechou a porta atrás da moça.
— null, por que você não assumiu o caso Fox conosco?
— Porque eu não quis.
— Uma resposta melhor, e menos infantil, por favor.
null girou a cadeira e ficou de frente para null, que estava de pé e braços cruzados.
— Porque eu odiava Samantha. Eu não quero participar do assassinato dela. Investigando, quer dizer.
null ergueu as sobrancelhas depois da última frase.
— Eu dei uma olhada nos Durden. Vi o nome do seu irmão por lá.
Ela arrumou-se na cadeira, claramente nervosa.
— Tyler? No caso Durden?
— Não disse isso. Eu disse... — falou null, apoiando uma mão em cada braço da cadeira, prendendo null e deixando-a sem chance de fugir — Que o nome dele tem algo a ver com a família. Você saberia me explicar sobre... O julgamento?
Ela engoliu em seco. O rosto de null null estava a centímetros do seu, e a respiração pesada dele tocava sua pele, quase queimando-a. Ele parecia uma máquina em combustão. Os olhos a fitavam firmes, porém, ameaça era o que ele menos parecia estar demonstrando em seu tom.
A porta foi aberta de repente por Julie Stoner. null recuou a tempo, sem deixar Julie ver qualquer coisa que pudesse incriminá-lo de assédio. Ele só queria respostas imediatas, mas com null null, isso não seria assim tão fácil.
Menos, talvez, para null null.
— null — chamou a delegada — James Durden está aqui. Quer usar o teste do polígrafo?
null e null trocaram olhares novamente. Os olhos dele agora transbordavam surpresa, e os dela, um nível incrível de ironia. Ela vestia também seu pequeno sorriso com o canto do lábio erguido, capaz de transformar em ruínas qualquer tipo de afirmação que ela não concordasse.
— Polígrafo sou eu. Manda o cara pra lá.
null precisa tomar cuidado. Muito cuidado.
A imagem de James era de um homem com seus trinta e cinco anos, cabelos castanho-escuros e lisos, e olhos verdes incrivelmente brilhantes. O sorriso tinha se perdido entre uma garrafa e outra de bebida, em uma mesa de bar qualquer, em uma meia-noite qualquer.
Você sabe, James. Você sabe que perdeu o tiro de largada.
O tempo tinha sugado James Durden de um modo que ele não desejaria para ninguém.
— Por que estou aqui? — ele perguntou, parecendo estar de ressaca, sentando-se de um lado da mesa. A pequena sala de depoimento tinha paredes cinzas, mas era iluminada fortemente por lâmpadas brancas.
— Você soube o que aconteceu com Samantha Fox? — perguntou null, sentando-se na cadeira. Usava nesse dia algo bem mais formal: uma blusa cinza sem mangas e uma saia de cintura alta branca, com uma sandália preta com saltos baixos. Deveria impor respeito, mostrar aos outros que não estava de brincadeira. Não poderia de modo algum passar simpatia a quem ela estivesse entrevistando para o caso. Cruzou as pernas e tinha o cotovelo direito apoiado no braço da cadeira, segurando a cabeça deitada levemente para este mesmo lado.
James deu de ombros.
— Só soube que ela morreu.
— Mataram-na.
— Como pode saber que não foi suicídio? Sei que, em todo caso de polícia, deve-se considerar suicídio. Samantha nunca teve inimizades com ninguém. Não a ponto de assassinato.
— A barriga dela saiu arrebentada. Não acho que seja suicídio, ainda mais com o elemento químico que foi colocado na casa dela. Até onde eu sei, você é um Durden, e Samantha tinha muita amizade pela sua família.
null observava tudo através do espelho falso.
Como null sabe de tudo isso? Ela não está no caso!
Meu Deus. Ela está no caso. Sempre esteve. Mas ninguém sabia.
— Sabe certo. A Fox realmente costumava frequentar a mansão Durden antes de você matar o Joe.
As unhas de null fincaram-se à cadeira.
Puta merda.
— O que está acontecendo? — perguntou null, batendo na porta — Me mandaram vir pra cá...
— Shhh — falou Marla Bronx, animada com o rumo da conversa entre James e null.
— Chamamos você aqui para contribuir com o caso Fox, James. O caso Durden já foi arquivado — avisou null, entre dentes.
— Mas eu quero falar sobre o caso Durden. Afinal, meu nome está nele, e todo mundo quer saber do que envolve seu nome.
— Se veio aqui para falar do caso Durden, pode sair. Não é para isso que te chamamos.
— Quer mesmo que eu saia?
Meu Deus, esse homem não tem a menor noção do perigo.
null ficou imóvel. Os olhos eram apontados para James como um míssil. Ele não podia estar fazendo aquilo.
James deu um sorrisinho e também cruzou as pernas, repousando as mãos trançadas em cima do joelho.
— Ah, acho que isso é novidade para você, null. Ser a dominadora virou algo normal. Só que você deveria aprender a controlar um pouco melhor seu poder, sabe? Você se lembra de como o Joe conseguia ter poder sobre você.
Todos, sem exceção, prenderam a respiração. Julie. null. Marla. null. null. null. James.
— Sim, Joe Durden — ele disse, completando seu monólogo — Você deve se lembrar dele.
— Quer falar do caso Durden? — ela perguntou, interrompendo-o e arrastando a cadeira. Todos na sala atrás do espelho recuaram, enquanto viam null levantar na mesa e ficar de joelhos em cima desta, parecendo prestes a avançar contra o pescoço de James — Ok, pode falar. Só prepare-se, porque eu tenho tanto para falar em relação a Joe quanto você.
— Imagino que tenha, null. Eu não duvido nem um pouco que você e Joe se conheciam muito bem. Vocês sempre foram parte um do outro. Você era a boneca de papel dele, e ele era sua estrela — James levantou-se e ficou com o rosto na frente do de null, apoiando as mãos na mesa — Sem ele, você não é nada, e vice-versa. Foi tudo culpa do Tyler.
null desceu da mesa e abaixou sentou-se na cadeira, abaixando a cabeça, com o cabelo em sua frente e uma pose de desistência.
Esse cara só pode estar pedindo para morrer.
— Joe deixou de ser algo para mim há muito tempo — ela disse, murmurando.
— Mentirosa! — James retrucou.
Rapidamente, null empurrou a mesa de madeira em sua frente e prensou-a contra James. A cadeira dele arrastou-se fazendo um barulho irritante, e ele sentiu sua cabeça bater contra a parede. Julie fez um movimento de tentar ir até a porta para interromper null, mas Marla a interrompeu.
— Ela está conseguindo. Dê tempo à garota.
James fitou null, que o olhava com raiva.
— Joe Durden está morto. Se me permite a piada, ele foi cremado antes até mesmo de morrer. Joe Durden não fará diferença no caso Fox. E você sabe quem matou Samantha, James — ela começou a não ir na defensiva, mas sim, no ataque — James Durden, um biólogo derrotado. James Durden, conhecedor das ciências, conhecedor da química, da biologia. James Durden, o perdedor que não ganhou alguns milhões de uma das famílias mais ricas do país... Por causa de seu irmão caçula. James Durden, o assassino de Samantha Fox.
Silêncio profundo. null levantou-se da cadeira e aliviou a força na mesa que prendia James.
— Foi você, não foi, James? — perguntou ela, andando até ficar na frente dele, abaixando a cabeça até ficar da altura de seu rosto, e apoiando as mãos nos joelhos.
— Não fui eu. Acredite, eu não sei sobre o caso Fox muito além do que você sabe — James pareceu desistir de discutir com null.
— Talvez você se lembre do caso Justin Durden, então.
James engoliu em seco.
— E... Talvez você se lembre do que levou esse caso Durden — ela completou.
— Eu lembro — ele cortou.
null se ergueu, com um sorriso satisfeito e uma mão na cintura, de frente para James.
— Agora me diga o que você sabe sobre Samanha Fox que eu não sei.
James Durden pôs a mão em cima da própria perna. Lentamente, tateou o com o indicador e o dedo do meio, como se fossem duas perninhas caminhando em direção às coxas de null. Chegando em seu destino, ele apalpou fortemente a carne de null e disse:
— Samantha Durden, você quer dizer.
— Onde está o null? — perguntou Julie, do outro lado do espelho.
null estava entrando na sala de depoimentos e arrancando James da cadeira, e jogando-o contra o chão. null rapidamente entrou na sala e colocou os braços do Durden para trás, declarando:
— Surpreendente, James. E eu que achava que você não fosse entrar para a história obscura da família Durden.
null estava sentada na cadeira, com as mãos no rosto, e depois colocando-as no cabelo e colocando-o todo para trás.
— Eu não devia ter o chamado para depor.
— Você fez a coisa certa. Estamos um passo à frente agora — disse null, sentada na mesa.
null estava de pé perto delas, e evitava olhar para null. Tinha feito aquilo totalmente descontrolado. Foi contra seu instinto e, ao mesmo tempo, seguiu o que deveria ter feito. Mesmo com a vergonha o consumindo e o deixando totalmente sem graça.
— Você me odeia, não odeia? — ele perguntou a ela, ainda de braços cruzados e encarando o chão.
null ergueu a cabeça e olhou para null, com o canto do lábio erguido.
— Ainda não. Que bosta eu tinha na cabeça para fazer aquilo tudo? Eu podia ter sido presa.
— A mesma bosta que eu tinha para fazer o que eu fiz — ele respondeu.
— Então os dois tinham lindas bostas nas cabeças — falou null, sorrindo, fazendo os dois rirem.
— Ei, você, garoto — chamou Durden — Venha cá.
null olhou em volta, levemente confuso, e percebeu que James falava com ele.
— Venha logo, não tenho o dia todo, antes que eu perca totalmente a paciência.
A passos longos, null foi para frente de James, que o puxou violentamente pelo braço para que sentasse ao seu lado. Percebendo que se trataria de uma conversa informal, o jornalista preparou-se para o que viesse a ouvir e filtrar, a partir disso, o que pudesse ser interessante para o caso.
— A null — ele apontou para null com os dedos trêmulos de um bêbado, o que aparentemente ele estava, e com voz de desdenho — Você está totalmente encantado por ela.
— Eu?
— Não. Meu amigo imaginário que também está conversando com a gente — respondeu James com a voz rouca arranhando-lhe a garganta.
— E o que o senhor tem a ver com isso? — retrucou null, devolvendo a grosseria que lhe foi estendida.
James recuou, parecendo alarmado. null tinha dado seu recado de que, apesar de ser jovem e novato na delegacia, não era um idiota.
— Sabe quem é null null?
— Certa e precisamente.
— Aí que você se engana. Não sabe não. Ninguém sabe. Você sabe que não sabe. Ninguém sabe mais sobre ela do que um único homem nesse mundo, e sabe quem é esse homem?
null percebeu que null observava os dois com insegurança, temendo que James pudesse ser algum tipo de ameaça e pudesse machucar null. O jornalista, discreto, balançou a cabeça lentamente em sinal de positivo, para indicar que não havia perigo. Pelo menos, não eminente. Voltou a olhar para James com interesse.
— Esse homem — continuou Durden — Está morto. Queimado.
— Joe?
— É. Joey foi o único homem que a null já amou. E sabe o que ela fez?
— Ela o matou.
— Não. Ela o fritou.
null engoliu em seco.
— null não o matou.
— Eu disse que você estava caidinho por ela.
— Estou? Então o que eu devo fazer em relação a isso?
James Durden deu de ombros, levantando e indo até onde null null o chamava.
— Rezar.
Marla Bronx sabia que poderia chegar longe, e, por isso, resolveu fazer a coisa mais perigosa do dia: chamar Tyler null para fazer um interrogatório.
Tyler estava usando uma jaqueta preta, e os cabelos loiros estavam despenteados e para cima, bagunçados com a mão. Ele parecia estranhamente relaxado, com os olhos verdes brilhando.
Não havia mais ninguém na sala de depoimento, nem atrás do vidro, além de Marla e Tyler.
— null — começou a ruiva, sentando do outro lado da mesa — Queria agradecer por ter vindo.
Tyler deu de ombros, realmente não se importando muito. Isso deixou Marla levemente irritada, fazendo-a estalar os dedos. Ela ficou na posição caso fosse escrever alguma coisa.
— Queria saber se conhecia Samantha Fox.
— Eu conhecia sim — ele afirmou, parando por aí. Marla ergueu as sobrancelhas.
— E...?
— Você quer saber se eu conhecia a Sam. Eu conhecia. Pronto. Posso ir embora agora? Tava afinzão de mijar.
— Não, senhor null — ela interrompeu o loiro, que já estava se levantando — Interrogamos James Durden e ele comentou o seu nome durante o interrogatório.
— O meu nome? Nem sei quem é James. Deve ser um irmão do Joe, mas não me lembro do rosto dele.
Marla folheou os papéis em sua mão até encontrar uma foto de James mostrando para Tyler. Ele pareceu ficar desconfortável na cadeira, e limpou a garganta. A foto foi colocada em cima da mesa, entre o null e a Bronx. Os olhos verdes dele não se desgrudavam da imagem.
— Ah. Lembrei. Acho que conheci esse cara.
— O senhor parece desconfortável. Gostaria de um copo d’água?
— Não, não. Eu estou bem — ele passou a mão pelo nariz e cruzou os braços, comprimindo os lábios — Quando meu nome foi comentado?
Há. Estamos chegando a algum lugar.
Toma essa, “Serpente Vigilante”. Eu vou te colocar no zero.
— Estávamos falando sobre o caso Durden.
— De novo?!
— Não o caso Joe. O do Justin. E, se me permite, Sr. null, eu não tomei conhecimento do caso — ela inclinou-se sobre a mesa.
Tyler deu de ombros.
— Põe no Google.
— Sr. null — interrompeu Marla com a voz alta, ficando com a coluna reta novamente. Fechou os olhos e controlou-se para não quebrar ao meio o lápis em sua mão — Eu gostaria de ouvir a sua versão do caso Justin Durden. Até onde eu sei, o senhor se envolveu até demais.
Tyler olhou para a porta. Sentia-se como uma criança. Sem seu protetor, seus pais, seu anjo da guarda.
null.
— null me deixou falar essas coisas?
— O senhor já é maior de idade, senhor Durden. Tem quantos? Vinte e dois? — ela falou em tom quase de deboche, levantando e andando até ficar de frente para Tyler — null comentou o caso Justin. Ela está incomodada com o interrogatório de James, então preferi não perguntar nada a ela. O que o senhor, enfim, pode me informar?
Tyler prendeu a respiração.
— Justin Durden está morto. O caso não evoluiu porque Joe era uma testemunha. E ele fez parte do julgamento.
— E o que aconteceu?
— Eu matei Justin Durden. Pelo menos, foi isso que a justiça decretou.
Dois assassinos. A família null parece tão abençoada quanto a família Durden.
— Prossiga — Marla pediu, satisfeita e voltando a sentar-se na cadeira.
Uma das poucas vantagens que null podia contar era que tinha coisas que apenas ela sabia. O caso Justin Durden ficou restrito apenas ao envolvidos, já que mal passou pela polícia. Os tribunais ficaram com o trabalho pesado.
Mal sabia null que agora Marla Bronx sabia de tudo.
null estava sentada na entrada da delegacia, sentada nos degraus. O dia estava mais frio que o normal. Suas pernas nuas estavam geladas, e os braços abraçavam seu próprio corpo. Deveria agradecer null por aquela roupa dela ser um pouco mais larga, mas culpá-la por a amiga só ter roupas de calor.
null, null e null. Todos tinham sumido de repente, ido para longe. E a única coisa que restara a null ultimamente tinha sido null e o trabalho.
O caso Justin Durden... Nunca tinha pegado caso pior antes. Foi o que desencadeou tudo.
“Tyler, está frio lá fora. Não é uma boa ideia sair hoje.”
O telefone tocou de repente no bolso da saia.
— Alô? — perguntou null, com a voz um pouco rouca.
— Senti sua falta. Como está o trabalho?
— Ramona... Eu realmente não estou passando muito bem.
Precisava rastrear o número que a ligava.
— Relaxe. As coisas estão sempre prestes a ficarem piores.
— Isso eu já sei.
— Muitas coisas que você sabe, eu sei.
— Diga uma novidade.
Ramona riu do outro lado da linha. Sua voz era estranhamente doce.
— Você me agrada, null. É realmente uma pena que não possamos nos encontrar sempre. Agora eu preciso ir. Que tal uma surpresinha para animar o dia?
O telefone foi desligado, e um grito ecoou pela sala da delegacia.
— Arma! Ele tem uma arma! — gritou Julie Stoner.
null levantou-se com um salto e entrou na delegacia, parando na frente da porta assim que colocou o pé no prédio novamente. Com calma, colocou as mãos na altura do rosto, com as palmas viradas para James Durden.
— Hey, Jim — ela cumprimentou, falando devagar.
James estava dando uma gravata em Tyler null, enquanto tinha em mãos uma arma de um dos policiais.
— Se alguém der um passo, eu explodo os miolos desse merdinha.
A arma parecia firme em suas mãos, e os olhos de James eram insanos. Marla e null estavam abaixadas atrás de uma mesa, e null estava atrás da parede do corredor. Julie e null estavam com suas pistolas apontadas para o Durden.
— Não é Tyler que você quer. Você quer a mim, Jim. Jogue o garoto para cá — null disse.
— Não. Eu quero esse bosta aqui. Você sabe por quê.
null engoliu em seco. Abaixou as mãos, fazendo James apertar o gatilho.
— Essa arma é sua? — ela perguntou, erguendo as mãos novamente.
— Estava com o oficial null, no bolso — James apontou para null com a arma, fazendo o oficial apontar sua pistola para ele. Então, o Durden deu uma curta risada histérica e doentia — Achei que você andasse armada, Serpente Vigilante.
— Não posso mais andar armada. Não desde o acidente. Essa arma que está nas suas mãos é a minha, Jim.
James olhou por um segundo para o que estava em suas mãos.
— Será uma honra manchar esse revólver de sangue.
— Hey, Jim, espere um pouco — null o interrompeu.
O rosto de Tyler já estava vermelho, porém, quando a última frase foi proferida, ele ficou quase roxo, pois James apertou seu pescoço ainda mais forte.
— Pare com essa merda de mania! Pare de me chamar de Jim, e de chamar meu irmão de Joe! Não quero nem ouvir sua voz, sua vagabunda! Foi por sua causa que isso tudo aconteceu. Você transformou minha vida em um inferno!
— James, eu não...
— Cala a boca, sua vadia! — James retrucou, com a voz cada vez mais alta, e o rosto suado — Foi esse merda desse seu irmão que fez isso tudo acontecer! Se não fosse por ele — apontou o cano da arma para os cabelos loiros de Tyler — Joe ainda estaria vivo, e Justin também. Estaria tudo bem. Estaria tudo muito bem...
— Agora! — gritou null.
null deu um tiro no joelho de James, que, mesmo gritando de dor, ainda tentou dar o tiro fatal em Tyler.
Mas a arma estava descarregada.
O null soltou-se do braço do Durden e correu até null, que o abraçou no pescoço. null rapidamente algemou James e murmurou:
— Eu tinha razão. Você não vale nada, que nem Joe.
null saiu do trabalho exausta. O dia tinha sido incrivelmente cansativo. Foi a pé pela rua, indo para onde menos gostaria de ficar.
A Singer Street, número 1537.
O prédio ainda estava em más condições, com as janelas sem vidros, mas estava melhor do que estava antes. Os móveis tinham sido retirados, com exceção de algumas cadeiras e um sofá que tinham sobrevivido. A chave encaixou perfeitamente na fechadura, que se abriu silenciosa.
— null? — ela perguntou.
— Estou aqui! — ele disse, do terceiro andar.
A porta fechou-se e o escuro permaneceu dentro do prédio. O clima melancólico era perturbador, apesar de null não se sentir tão mal com isso. O escuro era bem pior.
Acendeu a iluminação do celular e foi pelas escadas até o andar que a voz vinha. Logo a luz iluminou os cabelos de null.
— Hey, você — ela disse.
null estava abaixado, parecendo querer pegar algo debaixo da mesa do escritório.
— Você viu que aqui as coisas não foram tão destruídas? — ele perguntou, animado.
Tirou dali uma caixa com um porta-retratos antigo. Na fotografia, estavam duas crianças: um menino de cabelos loiros e olhos bem verdes, sorrindo como se não houvesse amanhã, abraçando uma garotinha. A menina o abraçava pela cintura, já que era mais baixa do que ele, com o mesmo tipo de sorriso. Para as crianças, não havia amanhã.
O amanhã já tinha acabado há muito tempo.
— Não esqueça Joe Durden, null — falou null, com um pequeno sorriso.
Ela abraçou seu ex-noivo e percebeu que, agora, tinha um amigo.
null encontrou null no meio-fio da Singer Street.
— Hey, null — ele disse, tentando animá-la.
— Hey, null. Como está null?
— Bem. Ela viajou e volta daqui a umas semanas. É para uma palestra ou alguma coisa assim.
— Andei com saudades.
Ele sentou-se junto à amiga e abraçou-a de lado.
— Ande sem ela, então. Não vou nunca parar de te encher.
— Também andei com sono. O que veio fazer aqui?
— null me chamou para vir aqui também. Ele disse que achou algo importante que pode te ajudar.
— Achei isso aqui — disse a voz de null, dentro do prédio. A Singer Street estava totalmente deserta. null e null entraram e fecharam a porta, tentando achar null na escuridão. Ele levantou uma pasta.
— Isso é... Do caso Justin.
— Acho que pode acabar sendo interessante para seu trabalho.
— Hey! — disse null, atrás deles, com uma flecha atravessada na cabeça — Índio quer cachimbo!
— Acho que já teve cachimbo demais hoje, null — falou null, rindo e pegando a flecha. O resto da noite foi repleta de risadas e brincadeiras bobas, mas que os três sempre gostavam. Desde que eram Mrs. Orange, Mr. Pink e Mr. Blonde. Até que null se deitou no sofá e adormeceu. O silêncio permaneceu na casa, até que o celular tocou, sinalizando uma mensagem.
Quando abriu os olhos, o prédio estava vazio de novo. Com ele, a sensação de vazio.
“Espero que tenha se divertido hoje, null. Espero que não tenha ficado com medinho. Porque aquilo não é nem a metade do que eu posso fazer.”
Havia outra:
“Você conhece meus truques.”
Eram mensagens de cerca de uma hora antes.
O telefone começou a tocar. Com a voz rouca, null tentou se manter firme, para atender ao número desconhecido (que ela já tinha praticamente certeza de quem era):
— Estava demorando para você ligar.
— Que bom ver que você está acordada, null. Procure não tentar ser assim tão firme. Eu sei que você está constantemente tremendo na base, deitada nesse sofá. Não acho nem um pouco saudável que tenha voltado para casa — disse Ramona.
— O que você q... — a detetive interrompeu-se, olhando para a janela, tentando ver algo sem nenhuma luz na casa estar acesa — Como soube que eu estava aqui?
Ramona pareceu dar de ombros.
— Você, null, deveria tomar mais cuidado. Se eu fosse você, prestaria mais atenção. Eu estou sempre te vendo.
— Ramona, por favor, tente me poupar. Estou com uma dor de cabeça desde de manhã, como se tivesse uma pessoazinha martelando meu cérebro.
— Eu quero te mostrar algo.
null ergueu as sobrancelhas e pegou sua bolsa.
— Não, pare. Não precisa disso. Suba as escadas para o segundo andar.
— O que você quer, Ramona?
— Suba.
A detetive foi obrigada a obedecer.
— Você morava perto da delegacia porque gosta de acordar tarde, e tinha medo de se atrasar para o trabalho. Sempre foi metódica, então acordar cinco minutos depois do tempo certo seria um caos. E você não sabe dirigir. Por isso, ia sempre a pé.
— Ramona, pare. Me deixe em paz.
— Suba até o terceiro. Sabe, null, eu acho que estou dando muita bandeira para você. Estou te dando todas as coisas em uma bandeja.
— Você acha? — perguntou a outra, virando os olhos, desistindo de entender a lógica de Ramona.
— Eu tenho certeza. Mas só porque eu gosto muito de você, vou facilitar para o seu lado. Olhe pelo corredor.
Estava tudo escuro, e a única coisa capaz de ser ouvida por null era a voz de Ramona. A luz da rua sombreava as janelas que se moviam em ondas dentro de um quarto, com a porta aberta. Podia jurar que estavam todas fechadas antes de acabar dormindo.
— Sabe onde estou, null?
A detetive foi andando lentamente até chegar ao quarto com a porta aberta. A janela estava entreaberta e os móveis estavam arrastados para longe da parede. A parede estava toda queimada, mas a única que permanecera amarela era agora vermelha. O vermelho sangue coloria parte da parede com palavras amedrontadoras, e um grande desenho de uma carinha com um sorriso.
— Não — respondeu null, lendo o que estava escrito na parede.
“Joe Durden vive, queime até o chão os null, queime Tyler null até os ossos.”
— Eu estou em todo lugar. Tente achar Tyler. Antes que ele vire apenas mais um corpo no necrotério.
E desligou.
Justice, justice… Or worldwide disorder.
null era o tipo de pessoa que não é nenhum tipo de pessoa. Ou você a ama, ou você a odeia, e, para isso, não era necessário muito tempo de convivência. null estava exatamente na linha tênue entre esses dois, enquanto null estava bem longe de qualquer um deles.
Os investigações para o caso Fox estavam mais lentas do que livro do Stephen King, e isso só deixava null cada vez mais ansioso. null tinha voltado dia 30 de outubro. Samantha morreu dia 29. Dia 31, morreu alguém na festa de Halloween. E agora, dia 1º de novembro, tinha morrido mais alguém.
Sabia que tudo aquilo provavelmente girava em torno do caso Durden, e sabia cada vez mais que precisava descobrir coisas sobre a família Durden que ninguém tinha contado.
Meu Deus, é realmente preciso muita covardia e muita coragem para cometer suicídio.
Dormiu até oito da manhã naquela quinta-feira. Quando acordou, logo vestiu uma camiseta azul-marinho e as calças jeans, bebendo seu café enquanto pesquisava na internet sobre a família Durden:
Os dois magnatas e pais da família, Johnny e Johanna, tinham se casado jovens. Ele, empresário e o único herdeiro de uma fortuna absurda: os hotéis Tate. Ela, uma atriz conhecida por todo mundo. Johanna e Johnny Durden eram realmente o que hoje é representado pelo casal Pitt e Jolie, porém, com uma história bem mais trágica. O casal gerou os herdeiros James, Jacqueline, Justin e Joseph Durden. O primeiro era um biólogo que construiu riqueza, mas foi totalmente destruído pela bebida. Jacqueline tinha seguido os passos da mãe, e não demorou a ver sua carreira desmoronar por causa de drogas. Joe, o pequeno Joey Durden, tinha sido brutalmente assassinado por uma detetive conhecida por toda cidade: null null. Aquele era Joe Durden, um homem, um dia um garoto, que fora morto com vinte e cinco anos. Seus cabelos tinham sido loiros, mas agora eram um castanho quase alaranjado. Bem, pelo menos quando ele morreu. Joe já tinha pintado o cabelo de tantas cores que era difícil vê-lo duas vezes em dois meses com a mesma cor. Os olhos eram de um verde invejável, assim como de todos os Durden. Ele nunca envelheceria.
A foto que seguia da família Durden era algo que se tinha vontade de enquadrar, se não parecesse representar um medalhão de assombrações.
Johnny e Johanna tinham morrido em um acidente de avião. Toda a herança fora transferida diretamente para Joey, pois seus irmãos não estavam em condições de cuidar dela. Ele e sua ajuda no tribunal para que obtivesse a herança era algo incrivelmente invejável. E, como era de se esperar, ele não fez bom uso daquele dinheiro todo. O playboy da família Durden, a pequena ovelha negra, estava quase rasgando o dinheiro que tinha. O mundo era de Joe, e Joe era o mundo.
Então houve o julgamento e, não muito depois, a morte do pequeno magnata.
Todo dinheiro da herança Durden — uma das maiores do país — fora guardado a sete chaves no cofre nacional, e não sairia de lá enquanto não houvesse uma série de processos judiciais para que fosse determinado, enfim, com quem ficaria o dinheiro.
Um pequeno nome surgiu na matéria: Tyler.
null encarou o relógio e viu que estava atrasado, então desligou o computador e tomou seu caminho para o trabalho.
null null tinha ido para o trabalho com uma dor de cabeça infernal, quase sobre-humana. Era como se seu crânio estivesse rachando lentamente. Ela folheava a pasta sobre o caso Durden e o Fox lentamente, apoiando a cabeça com a outra mão. null entrou na sala abrindo a porta e imediatamente falando:
— Por Cristo, null! Você viu aquilo? O suicida...
— Eu vi, null — null respondeu com um meio-sorriso sonolento.
— Ah. Perdão. Está passando bem?
— É uma dorzinha de cabeça.
— Você está com uma cara de que foi na sua cabeça que o Titanic se chocou.
null foi obrigada a rir do comentário. A noite inteira, a imagem de null não saía de sua cabeça.
A porta abriu-se de repente, e a voz de null null foi ouvida.
— null, queria conversar com você uma coisa.
— A null morreu — a própria anunciou.
— Ouviram minhas preces — ele retrucou, com um sorriso sarcástico.
null e null trocaram olhares, e a última bufou. null entrou na sala enquanto null saía, e fechou a porta atrás da moça.
— null, por que você não assumiu o caso Fox conosco?
— Porque eu não quis.
— Uma resposta melhor, e menos infantil, por favor.
null girou a cadeira e ficou de frente para null, que estava de pé e braços cruzados.
— Porque eu odiava Samantha. Eu não quero participar do assassinato dela. Investigando, quer dizer.
null ergueu as sobrancelhas depois da última frase.
— Eu dei uma olhada nos Durden. Vi o nome do seu irmão por lá.
Ela arrumou-se na cadeira, claramente nervosa.
— Tyler? No caso Durden?
— Não disse isso. Eu disse... — falou null, apoiando uma mão em cada braço da cadeira, prendendo null e deixando-a sem chance de fugir — Que o nome dele tem algo a ver com a família. Você saberia me explicar sobre... O julgamento?
Ela engoliu em seco. O rosto de null null estava a centímetros do seu, e a respiração pesada dele tocava sua pele, quase queimando-a. Ele parecia uma máquina em combustão. Os olhos a fitavam firmes, porém, ameaça era o que ele menos parecia estar demonstrando em seu tom.
A porta foi aberta de repente por Julie Stoner. null recuou a tempo, sem deixar Julie ver qualquer coisa que pudesse incriminá-lo de assédio. Ele só queria respostas imediatas, mas com null null, isso não seria assim tão fácil.
Menos, talvez, para null null.
— null — chamou a delegada — James Durden está aqui. Quer usar o teste do polígrafo?
null e null trocaram olhares novamente. Os olhos dele agora transbordavam surpresa, e os dela, um nível incrível de ironia. Ela vestia também seu pequeno sorriso com o canto do lábio erguido, capaz de transformar em ruínas qualquer tipo de afirmação que ela não concordasse.
— Polígrafo sou eu. Manda o cara pra lá.
null precisa tomar cuidado. Muito cuidado.
A imagem de James era de um homem com seus trinta e cinco anos, cabelos castanho-escuros e lisos, e olhos verdes incrivelmente brilhantes. O sorriso tinha se perdido entre uma garrafa e outra de bebida, em uma mesa de bar qualquer, em uma meia-noite qualquer.
Você sabe, James. Você sabe que perdeu o tiro de largada.
O tempo tinha sugado James Durden de um modo que ele não desejaria para ninguém.
— Por que estou aqui? — ele perguntou, parecendo estar de ressaca, sentando-se de um lado da mesa. A pequena sala de depoimento tinha paredes cinzas, mas era iluminada fortemente por lâmpadas brancas.
— Você soube o que aconteceu com Samantha Fox? — perguntou null, sentando-se na cadeira. Usava nesse dia algo bem mais formal: uma blusa cinza sem mangas e uma saia de cintura alta branca, com uma sandália preta com saltos baixos. Deveria impor respeito, mostrar aos outros que não estava de brincadeira. Não poderia de modo algum passar simpatia a quem ela estivesse entrevistando para o caso. Cruzou as pernas e tinha o cotovelo direito apoiado no braço da cadeira, segurando a cabeça deitada levemente para este mesmo lado.
James deu de ombros.
— Só soube que ela morreu.
— Mataram-na.
— Como pode saber que não foi suicídio? Sei que, em todo caso de polícia, deve-se considerar suicídio. Samantha nunca teve inimizades com ninguém. Não a ponto de assassinato.
— A barriga dela saiu arrebentada. Não acho que seja suicídio, ainda mais com o elemento químico que foi colocado na casa dela. Até onde eu sei, você é um Durden, e Samantha tinha muita amizade pela sua família.
null observava tudo através do espelho falso.
Como null sabe de tudo isso? Ela não está no caso!
Meu Deus. Ela está no caso. Sempre esteve. Mas ninguém sabia.
— Sabe certo. A Fox realmente costumava frequentar a mansão Durden antes de você matar o Joe.
As unhas de null fincaram-se à cadeira.
Puta merda.
— O que está acontecendo? — perguntou null, batendo na porta — Me mandaram vir pra cá...
— Shhh — falou Marla Bronx, animada com o rumo da conversa entre James e null.
— Chamamos você aqui para contribuir com o caso Fox, James. O caso Durden já foi arquivado — avisou null, entre dentes.
— Mas eu quero falar sobre o caso Durden. Afinal, meu nome está nele, e todo mundo quer saber do que envolve seu nome.
— Se veio aqui para falar do caso Durden, pode sair. Não é para isso que te chamamos.
— Quer mesmo que eu saia?
Meu Deus, esse homem não tem a menor noção do perigo.
null ficou imóvel. Os olhos eram apontados para James como um míssil. Ele não podia estar fazendo aquilo.
James deu um sorrisinho e também cruzou as pernas, repousando as mãos trançadas em cima do joelho.
— Ah, acho que isso é novidade para você, null. Ser a dominadora virou algo normal. Só que você deveria aprender a controlar um pouco melhor seu poder, sabe? Você se lembra de como o Joe conseguia ter poder sobre você.
Todos, sem exceção, prenderam a respiração. Julie. null. Marla. null. null. null. James.
— Sim, Joe Durden — ele disse, completando seu monólogo — Você deve se lembrar dele.
— Quer falar do caso Durden? — ela perguntou, interrompendo-o e arrastando a cadeira. Todos na sala atrás do espelho recuaram, enquanto viam null levantar na mesa e ficar de joelhos em cima desta, parecendo prestes a avançar contra o pescoço de James — Ok, pode falar. Só prepare-se, porque eu tenho tanto para falar em relação a Joe quanto você.
— Imagino que tenha, null. Eu não duvido nem um pouco que você e Joe se conheciam muito bem. Vocês sempre foram parte um do outro. Você era a boneca de papel dele, e ele era sua estrela — James levantou-se e ficou com o rosto na frente do de null, apoiando as mãos na mesa — Sem ele, você não é nada, e vice-versa. Foi tudo culpa do Tyler.
null desceu da mesa e abaixou sentou-se na cadeira, abaixando a cabeça, com o cabelo em sua frente e uma pose de desistência.
Esse cara só pode estar pedindo para morrer.
— Joe deixou de ser algo para mim há muito tempo — ela disse, murmurando.
— Mentirosa! — James retrucou.
Rapidamente, null empurrou a mesa de madeira em sua frente e prensou-a contra James. A cadeira dele arrastou-se fazendo um barulho irritante, e ele sentiu sua cabeça bater contra a parede. Julie fez um movimento de tentar ir até a porta para interromper null, mas Marla a interrompeu.
— Ela está conseguindo. Dê tempo à garota.
James fitou null, que o olhava com raiva.
— Joe Durden está morto. Se me permite a piada, ele foi cremado antes até mesmo de morrer. Joe Durden não fará diferença no caso Fox. E você sabe quem matou Samantha, James — ela começou a não ir na defensiva, mas sim, no ataque — James Durden, um biólogo derrotado. James Durden, conhecedor das ciências, conhecedor da química, da biologia. James Durden, o perdedor que não ganhou alguns milhões de uma das famílias mais ricas do país... Por causa de seu irmão caçula. James Durden, o assassino de Samantha Fox.
Silêncio profundo. null levantou-se da cadeira e aliviou a força na mesa que prendia James.
— Foi você, não foi, James? — perguntou ela, andando até ficar na frente dele, abaixando a cabeça até ficar da altura de seu rosto, e apoiando as mãos nos joelhos.
— Não fui eu. Acredite, eu não sei sobre o caso Fox muito além do que você sabe — James pareceu desistir de discutir com null.
— Talvez você se lembre do caso Justin Durden, então.
James engoliu em seco.
— E... Talvez você se lembre do que levou esse caso Durden — ela completou.
— Eu lembro — ele cortou.
null se ergueu, com um sorriso satisfeito e uma mão na cintura, de frente para James.
— Agora me diga o que você sabe sobre Samanha Fox que eu não sei.
James Durden pôs a mão em cima da própria perna. Lentamente, tateou o com o indicador e o dedo do meio, como se fossem duas perninhas caminhando em direção às coxas de null. Chegando em seu destino, ele apalpou fortemente a carne de null e disse:
— Samantha Durden, você quer dizer.
— Onde está o null? — perguntou Julie, do outro lado do espelho.
null estava entrando na sala de depoimentos e arrancando James da cadeira, e jogando-o contra o chão. null rapidamente entrou na sala e colocou os braços do Durden para trás, declarando:
— Surpreendente, James. E eu que achava que você não fosse entrar para a história obscura da família Durden.
null estava sentada na cadeira, com as mãos no rosto, e depois colocando-as no cabelo e colocando-o todo para trás.
— Eu não devia ter o chamado para depor.
— Você fez a coisa certa. Estamos um passo à frente agora — disse null, sentada na mesa.
null estava de pé perto delas, e evitava olhar para null. Tinha feito aquilo totalmente descontrolado. Foi contra seu instinto e, ao mesmo tempo, seguiu o que deveria ter feito. Mesmo com a vergonha o consumindo e o deixando totalmente sem graça.
— Você me odeia, não odeia? — ele perguntou a ela, ainda de braços cruzados e encarando o chão.
null ergueu a cabeça e olhou para null, com o canto do lábio erguido.
— Ainda não. Que bosta eu tinha na cabeça para fazer aquilo tudo? Eu podia ter sido presa.
— A mesma bosta que eu tinha para fazer o que eu fiz — ele respondeu.
— Então os dois tinham lindas bostas nas cabeças — falou null, sorrindo, fazendo os dois rirem.
— Ei, você, garoto — chamou Durden — Venha cá.
null olhou em volta, levemente confuso, e percebeu que James falava com ele.
— Venha logo, não tenho o dia todo, antes que eu perca totalmente a paciência.
A passos longos, null foi para frente de James, que o puxou violentamente pelo braço para que sentasse ao seu lado. Percebendo que se trataria de uma conversa informal, o jornalista preparou-se para o que viesse a ouvir e filtrar, a partir disso, o que pudesse ser interessante para o caso.
— A null — ele apontou para null com os dedos trêmulos de um bêbado, o que aparentemente ele estava, e com voz de desdenho — Você está totalmente encantado por ela.
— Eu?
— Não. Meu amigo imaginário que também está conversando com a gente — respondeu James com a voz rouca arranhando-lhe a garganta.
— E o que o senhor tem a ver com isso? — retrucou null, devolvendo a grosseria que lhe foi estendida.
James recuou, parecendo alarmado. null tinha dado seu recado de que, apesar de ser jovem e novato na delegacia, não era um idiota.
— Sabe quem é null null?
— Certa e precisamente.
— Aí que você se engana. Não sabe não. Ninguém sabe. Você sabe que não sabe. Ninguém sabe mais sobre ela do que um único homem nesse mundo, e sabe quem é esse homem?
null percebeu que null observava os dois com insegurança, temendo que James pudesse ser algum tipo de ameaça e pudesse machucar null. O jornalista, discreto, balançou a cabeça lentamente em sinal de positivo, para indicar que não havia perigo. Pelo menos, não eminente. Voltou a olhar para James com interesse.
— Esse homem — continuou Durden — Está morto. Queimado.
— Joe?
— É. Joey foi o único homem que a null já amou. E sabe o que ela fez?
— Ela o matou.
— Não. Ela o fritou.
null engoliu em seco.
— null não o matou.
— Eu disse que você estava caidinho por ela.
— Estou? Então o que eu devo fazer em relação a isso?
James Durden deu de ombros, levantando e indo até onde null null o chamava.
— Rezar.
Marla Bronx sabia que poderia chegar longe, e, por isso, resolveu fazer a coisa mais perigosa do dia: chamar Tyler null para fazer um interrogatório.
Tyler estava usando uma jaqueta preta, e os cabelos loiros estavam despenteados e para cima, bagunçados com a mão. Ele parecia estranhamente relaxado, com os olhos verdes brilhando.
Não havia mais ninguém na sala de depoimento, nem atrás do vidro, além de Marla e Tyler.
— null — começou a ruiva, sentando do outro lado da mesa — Queria agradecer por ter vindo.
Tyler deu de ombros, realmente não se importando muito. Isso deixou Marla levemente irritada, fazendo-a estalar os dedos. Ela ficou na posição caso fosse escrever alguma coisa.
— Queria saber se conhecia Samantha Fox.
— Eu conhecia sim — ele afirmou, parando por aí. Marla ergueu as sobrancelhas.
— E...?
— Você quer saber se eu conhecia a Sam. Eu conhecia. Pronto. Posso ir embora agora? Tava afinzão de mijar.
— Não, senhor null — ela interrompeu o loiro, que já estava se levantando — Interrogamos James Durden e ele comentou o seu nome durante o interrogatório.
— O meu nome? Nem sei quem é James. Deve ser um irmão do Joe, mas não me lembro do rosto dele.
Marla folheou os papéis em sua mão até encontrar uma foto de James mostrando para Tyler. Ele pareceu ficar desconfortável na cadeira, e limpou a garganta. A foto foi colocada em cima da mesa, entre o null e a Bronx. Os olhos verdes dele não se desgrudavam da imagem.
— Ah. Lembrei. Acho que conheci esse cara.
— O senhor parece desconfortável. Gostaria de um copo d’água?
— Não, não. Eu estou bem — ele passou a mão pelo nariz e cruzou os braços, comprimindo os lábios — Quando meu nome foi comentado?
Há. Estamos chegando a algum lugar.
Toma essa, “Serpente Vigilante”. Eu vou te colocar no zero.
— Estávamos falando sobre o caso Durden.
— De novo?!
— Não o caso Joe. O do Justin. E, se me permite, Sr. null, eu não tomei conhecimento do caso — ela inclinou-se sobre a mesa.
Tyler deu de ombros.
— Põe no Google.
— Sr. null — interrompeu Marla com a voz alta, ficando com a coluna reta novamente. Fechou os olhos e controlou-se para não quebrar ao meio o lápis em sua mão — Eu gostaria de ouvir a sua versão do caso Justin Durden. Até onde eu sei, o senhor se envolveu até demais.
Tyler olhou para a porta. Sentia-se como uma criança. Sem seu protetor, seus pais, seu anjo da guarda.
null.
— null me deixou falar essas coisas?
— O senhor já é maior de idade, senhor Durden. Tem quantos? Vinte e dois? — ela falou em tom quase de deboche, levantando e andando até ficar de frente para Tyler — null comentou o caso Justin. Ela está incomodada com o interrogatório de James, então preferi não perguntar nada a ela. O que o senhor, enfim, pode me informar?
Tyler prendeu a respiração.
— Justin Durden está morto. O caso não evoluiu porque Joe era uma testemunha. E ele fez parte do julgamento.
— E o que aconteceu?
— Eu matei Justin Durden. Pelo menos, foi isso que a justiça decretou.
Dois assassinos. A família null parece tão abençoada quanto a família Durden.
— Prossiga — Marla pediu, satisfeita e voltando a sentar-se na cadeira.
Uma das poucas vantagens que null podia contar era que tinha coisas que apenas ela sabia. O caso Justin Durden ficou restrito apenas ao envolvidos, já que mal passou pela polícia. Os tribunais ficaram com o trabalho pesado.
Mal sabia null que agora Marla Bronx sabia de tudo.
null estava sentada na entrada da delegacia, sentada nos degraus. O dia estava mais frio que o normal. Suas pernas nuas estavam geladas, e os braços abraçavam seu próprio corpo. Deveria agradecer null por aquela roupa dela ser um pouco mais larga, mas culpá-la por a amiga só ter roupas de calor.
null, null e null. Todos tinham sumido de repente, ido para longe. E a única coisa que restara a null ultimamente tinha sido null e o trabalho.
O caso Justin Durden... Nunca tinha pegado caso pior antes. Foi o que desencadeou tudo.
“Tyler, está frio lá fora. Não é uma boa ideia sair hoje.”
O telefone tocou de repente no bolso da saia.
— Alô? — perguntou null, com a voz um pouco rouca.
— Senti sua falta. Como está o trabalho?
— Ramona... Eu realmente não estou passando muito bem.
Precisava rastrear o número que a ligava.
— Relaxe. As coisas estão sempre prestes a ficarem piores.
— Isso eu já sei.
— Muitas coisas que você sabe, eu sei.
— Diga uma novidade.
Ramona riu do outro lado da linha. Sua voz era estranhamente doce.
— Você me agrada, null. É realmente uma pena que não possamos nos encontrar sempre. Agora eu preciso ir. Que tal uma surpresinha para animar o dia?
O telefone foi desligado, e um grito ecoou pela sala da delegacia.
— Arma! Ele tem uma arma! — gritou Julie Stoner.
null levantou-se com um salto e entrou na delegacia, parando na frente da porta assim que colocou o pé no prédio novamente. Com calma, colocou as mãos na altura do rosto, com as palmas viradas para James Durden.
— Hey, Jim — ela cumprimentou, falando devagar.
James estava dando uma gravata em Tyler null, enquanto tinha em mãos uma arma de um dos policiais.
— Se alguém der um passo, eu explodo os miolos desse merdinha.
A arma parecia firme em suas mãos, e os olhos de James eram insanos. Marla e null estavam abaixadas atrás de uma mesa, e null estava atrás da parede do corredor. Julie e null estavam com suas pistolas apontadas para o Durden.
— Não é Tyler que você quer. Você quer a mim, Jim. Jogue o garoto para cá — null disse.
— Não. Eu quero esse bosta aqui. Você sabe por quê.
null engoliu em seco. Abaixou as mãos, fazendo James apertar o gatilho.
— Essa arma é sua? — ela perguntou, erguendo as mãos novamente.
— Estava com o oficial null, no bolso — James apontou para null com a arma, fazendo o oficial apontar sua pistola para ele. Então, o Durden deu uma curta risada histérica e doentia — Achei que você andasse armada, Serpente Vigilante.
— Não posso mais andar armada. Não desde o acidente. Essa arma que está nas suas mãos é a minha, Jim.
James olhou por um segundo para o que estava em suas mãos.
— Será uma honra manchar esse revólver de sangue.
— Hey, Jim, espere um pouco — null o interrompeu.
O rosto de Tyler já estava vermelho, porém, quando a última frase foi proferida, ele ficou quase roxo, pois James apertou seu pescoço ainda mais forte.
— Pare com essa merda de mania! Pare de me chamar de Jim, e de chamar meu irmão de Joe! Não quero nem ouvir sua voz, sua vagabunda! Foi por sua causa que isso tudo aconteceu. Você transformou minha vida em um inferno!
— James, eu não...
— Cala a boca, sua vadia! — James retrucou, com a voz cada vez mais alta, e o rosto suado — Foi esse merda desse seu irmão que fez isso tudo acontecer! Se não fosse por ele — apontou o cano da arma para os cabelos loiros de Tyler — Joe ainda estaria vivo, e Justin também. Estaria tudo bem. Estaria tudo muito bem...
— Agora! — gritou null.
null deu um tiro no joelho de James, que, mesmo gritando de dor, ainda tentou dar o tiro fatal em Tyler.
Mas a arma estava descarregada.
O null soltou-se do braço do Durden e correu até null, que o abraçou no pescoço. null rapidamente algemou James e murmurou:
— Eu tinha razão. Você não vale nada, que nem Joe.
null saiu do trabalho exausta. O dia tinha sido incrivelmente cansativo. Foi a pé pela rua, indo para onde menos gostaria de ficar.
A Singer Street, número 1537.
O prédio ainda estava em más condições, com as janelas sem vidros, mas estava melhor do que estava antes. Os móveis tinham sido retirados, com exceção de algumas cadeiras e um sofá que tinham sobrevivido. A chave encaixou perfeitamente na fechadura, que se abriu silenciosa.
— null? — ela perguntou.
— Estou aqui! — ele disse, do terceiro andar.
A porta fechou-se e o escuro permaneceu dentro do prédio. O clima melancólico era perturbador, apesar de null não se sentir tão mal com isso. O escuro era bem pior.
Acendeu a iluminação do celular e foi pelas escadas até o andar que a voz vinha. Logo a luz iluminou os cabelos de null.
— Hey, você — ela disse.
null estava abaixado, parecendo querer pegar algo debaixo da mesa do escritório.
— Você viu que aqui as coisas não foram tão destruídas? — ele perguntou, animado.
Tirou dali uma caixa com um porta-retratos antigo. Na fotografia, estavam duas crianças: um menino de cabelos loiros e olhos bem verdes, sorrindo como se não houvesse amanhã, abraçando uma garotinha. A menina o abraçava pela cintura, já que era mais baixa do que ele, com o mesmo tipo de sorriso. Para as crianças, não havia amanhã.
O amanhã já tinha acabado há muito tempo.
— Não esqueça Joe Durden, null — falou null, com um pequeno sorriso.
Ela abraçou seu ex-noivo e percebeu que, agora, tinha um amigo.
null encontrou null no meio-fio da Singer Street.
— Hey, null — ele disse, tentando animá-la.
— Hey, null. Como está null?
— Bem. Ela viajou e volta daqui a umas semanas. É para uma palestra ou alguma coisa assim.
— Andei com saudades.
Ele sentou-se junto à amiga e abraçou-a de lado.
— Ande sem ela, então. Não vou nunca parar de te encher.
— Também andei com sono. O que veio fazer aqui?
— null me chamou para vir aqui também. Ele disse que achou algo importante que pode te ajudar.
— Achei isso aqui — disse a voz de null, dentro do prédio. A Singer Street estava totalmente deserta. null e null entraram e fecharam a porta, tentando achar null na escuridão. Ele levantou uma pasta.
— Isso é... Do caso Justin.
— Acho que pode acabar sendo interessante para seu trabalho.
— Hey! — disse null, atrás deles, com uma flecha atravessada na cabeça — Índio quer cachimbo!
— Acho que já teve cachimbo demais hoje, null — falou null, rindo e pegando a flecha. O resto da noite foi repleta de risadas e brincadeiras bobas, mas que os três sempre gostavam. Desde que eram Mrs. Orange, Mr. Pink e Mr. Blonde. Até que null se deitou no sofá e adormeceu. O silêncio permaneceu na casa, até que o celular tocou, sinalizando uma mensagem.
Quando abriu os olhos, o prédio estava vazio de novo. Com ele, a sensação de vazio.
“Espero que tenha se divertido hoje, null. Espero que não tenha ficado com medinho. Porque aquilo não é nem a metade do que eu posso fazer.”
Havia outra:
“Você conhece meus truques.”
Eram mensagens de cerca de uma hora antes.
O telefone começou a tocar. Com a voz rouca, null tentou se manter firme, para atender ao número desconhecido (que ela já tinha praticamente certeza de quem era):
— Estava demorando para você ligar.
— Que bom ver que você está acordada, null. Procure não tentar ser assim tão firme. Eu sei que você está constantemente tremendo na base, deitada nesse sofá. Não acho nem um pouco saudável que tenha voltado para casa — disse Ramona.
— O que você q... — a detetive interrompeu-se, olhando para a janela, tentando ver algo sem nenhuma luz na casa estar acesa — Como soube que eu estava aqui?
Ramona pareceu dar de ombros.
— Você, null, deveria tomar mais cuidado. Se eu fosse você, prestaria mais atenção. Eu estou sempre te vendo.
— Ramona, por favor, tente me poupar. Estou com uma dor de cabeça desde de manhã, como se tivesse uma pessoazinha martelando meu cérebro.
— Eu quero te mostrar algo.
null ergueu as sobrancelhas e pegou sua bolsa.
— Não, pare. Não precisa disso. Suba as escadas para o segundo andar.
— O que você quer, Ramona?
— Suba.
A detetive foi obrigada a obedecer.
— Você morava perto da delegacia porque gosta de acordar tarde, e tinha medo de se atrasar para o trabalho. Sempre foi metódica, então acordar cinco minutos depois do tempo certo seria um caos. E você não sabe dirigir. Por isso, ia sempre a pé.
— Ramona, pare. Me deixe em paz.
— Suba até o terceiro. Sabe, null, eu acho que estou dando muita bandeira para você. Estou te dando todas as coisas em uma bandeja.
— Você acha? — perguntou a outra, virando os olhos, desistindo de entender a lógica de Ramona.
— Eu tenho certeza. Mas só porque eu gosto muito de você, vou facilitar para o seu lado. Olhe pelo corredor.
Estava tudo escuro, e a única coisa capaz de ser ouvida por null era a voz de Ramona. A luz da rua sombreava as janelas que se moviam em ondas dentro de um quarto, com a porta aberta. Podia jurar que estavam todas fechadas antes de acabar dormindo.
— Sabe onde estou, null?
A detetive foi andando lentamente até chegar ao quarto com a porta aberta. A janela estava entreaberta e os móveis estavam arrastados para longe da parede. A parede estava toda queimada, mas a única que permanecera amarela era agora vermelha. O vermelho sangue coloria parte da parede com palavras amedrontadoras, e um grande desenho de uma carinha com um sorriso.
— Não — respondeu null, lendo o que estava escrito na parede.
“Joe Durden vive, queime até o chão os null, queime Tyler null até os ossos.”
— Eu estou em todo lugar. Tente achar Tyler. Antes que ele vire apenas mais um corpo no necrotério.
E desligou.
Justice, justice… Or worldwide disorder.