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Última atualização: Julho de 2024

Prólogo – Réquiem

Requiem aeternam done eis, Domine, et lux perpetua luceat eis...

Você está deitada em uma cama desconhecida. Você sabe onde está, mas não sabe como foi parar lá. Você não consegue se mover. Há música no fundo, uma música estranha. Todas as vezes em que você acorda nesse quarto, a música é diferente.
O teto é bonito. Você não consegue olhar para os lados, a luz está fraca, ou você só está mal demais para enxergar alguma iluminação.
Descanso.
A porta se abre. Você ouve o barulho, e pode ver uma sombra se projetar na parede ao seu lado. Não sabe dizer de quem é, ou o sexo da pessoa.
Você só consegue olhar para cima, e não consegue se mover.
Está sentindo? Imagino que não. Sua pele está áspera demais. O toque dele é distinto, queima.
A música torna-se mais baixa.
Ele encosta nas costas da sua mão. Seus músculos se contraem sem querer.
A sombra dele se projeta no teto quando ele fica sobre você.
Você reconhece a música. É um réquiem.
Ele olha em seus olhos. Você não consegue não olhar para cima, mas pode ver os olhos dele. São verdes e vacilantes, mesmo que ele pareça saber o que está fazendo.
Vamos. Sabemos que você quer isso.
Toda noite.
Ele olha você no fundo dos olhos, e você não sabe mais quando o que ele falou deixou de ser verdade.
Ele tira a roupa e você começa a chorar, sem saber exatamente o porquê.
Você o olha esperando que ele pare. Que ele nem comece, que ele desista antes de começar.
Ele a olha e diz que isso vai durar o quanto você quer que dure.
E então, você morre.
Você precisa relaxar para não doer.
Ao menos é o que ele diz.
Você morre. Aos poucos.
Você tem marcas. Suas costas têm marcas.
E a cada nova força, você morre mais.
Seus músculos relaxam e você morre.
Tem alguém te machucando, alguém que não deveria nunca, jamais, te ferir.
E seus membros perdem a força, suas mãos relaxam, seu corpo adormece, seus olhos desfocam. E você morre.
Levantam-se. Você não consegue não olhar para cima.
Algo nasceu. Mas você está morto.
A música continua tocando, e agora parece mais apropriada.

Julie não gostava de ser a última a sair. Mesmo que isso fosse algo relativamente comum, ela detestava. Essa ideia de “chefe dedicada” era muito incômoda; soava como se ela fosse uma viciada em trabalho.
Mas, ultimamente, talvez ser viciada em trabalho fosse uma boa ideia.
A pilha de pastas se acumulava sobre a mesa. Quando ela pegou a primeira pasta da pilha, ouviu um grito no fim do corredor. Vinha da entrada da delegacia.
Julie ficou de pé rapidamente e correu em direção à entrada com a arma preparada. Quando virou a esquina do corredor, congelou. Uma das poucas policiais daquele horário estava desmaiada no chão. Outros três apontavam suas armas para o homem no centro do saguão de entrada.
Ele. Óbvio que seria ele.
estava com os braços erguidos em rendição. Sua camisa social branca estava encharcada de sangue, pingando. Ele levantou os olhos para Julie e sussurrou:
— Eu posso explicar.

Kyrie eleison, Christe eleison, Kyrie eleison...


“O Inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.” – A Tempestade, William Shakespeare.


Parte I – Homens



Capítulo 1 — Kids

Control yourself, take only what you need from them…

A reunião teria início às oito da manhã. Foi nesse horário que acordou.
Era início de março, uma segunda-feira, e era a Singer Street. A primavera começaria em poucas semanas, mas, ainda assim, o frio ainda se fazia muito presente na Pensilvânia. não acordou com o sol adentrando sua cortina, fazendo seus olhos arderem e ficarem avermelhados. Um gato não subiu em sua cama, tocando a pata de leve em seu rosto, fazendo-a despertar. Seu despertador não tocou, acordando-a de um belo sonho no qual era uma reconhecida detetive.
Não. simplesmente abriu os olhos, olhou o despertador desligado e xingou-o de filho da puta.
Saltou da cama e foi em direção à muda de roupas dobradas em cima da cômoda. Desde que recebera a correspondência com o aviso que fora selecionada para a segunda fase do concurso da delegacia de Longview, passou noites imaginando qual seria a roupa ideal para comparecer à reunião.
Por algum motivo, na noite anterior, pareceu ter achado o conjunto de jeans, blusa social preta e sapatos fechados pretos uma decisão sensata.
Vestiu as calças aos pulos e ajeitou a blusa enquanto ia para o banheiro. Penteou os cabelos e fez sua higiene, sem tempo de se maquiar. Teria que ir com o rosto pálido, manchas ocasionais de espinhas antigas e um pouco de olheiras. Saiu do quarto e foi até a cozinha.
Prestara em janeiro daquele ano o concurso interno para detetive da delegacia de Longview. Estranhou estarem escolhendo policiais diretamente para homicídios, mas tinha 27 anos e um ano de academia. Pareceu uma escolha inteligente.
Chegou à cozinha com pouco fôlego. Patricia estava sentada à mesa, com um prato de torradas e vestindo um roupão. Segurava um livro que não conseguia ver a capa.
— Bom-dia — cumprimentou , enquanto ia para a cadeira na frente da amiga, com pressa. Sua voz saiu mais ofegante do que gostaria.
— Que bicho te acordou? Está doente? — perguntou Patricia, servindo o café nas canecas. — A última vez que você acordou tão cedo foi por causa daquele pesadelo com o Jack Nicholson. E aquele concurso.
— Estou acordando cedo por causa do resultado do concurso — ela explicou, com a voz seca e uma careta cínica. Odiava o humor de Patricia antes das dez da manhã.
— Até onde você tinha dito — lembrou ela, pondo duas torradas em um prato para —, a reunião dos classificados começava às oito.
— Começou.
Patricia pôs as canecas na mesa. bebericou alguns goles, mas negou metade, já levantando. Patty tocou o ombro da amiga, para acalmá-la, e disse com a voz doce:
— Relaxe. Essas reuniões de convocação sempre são marcadas para mais ou menos uma hora de antecedência. Quantas pessoas foram classificadas?
Ela estava errada.
— Vinte — respondeu , arrastando os cabelos para trás, com a mão. — Mas o edital dizia que só tinha quatro vagas. Dezesseis pessoas vão ser desclassificadas nas provas práticas.
— E qual foi a sua classificação?
— Décimo oitavo lugar — respondeu, com desânimo.
Patty fez uma careta com os lábios comprimidos. Recebeu um tapa no ombro por isso.
— Ei, você falou de provas práticas. A probabilidade de você passar é, agora, a mesma de todos os outros.
deu um sorriso fraco, comendo uma das torradas.
— Não é como se eu tivesse muita opção agora. — Ela apontou com a cabeça para as poucas caixas ainda empilhadas perto da porta. — O próximo aluguel é só meu.
— Eu ainda posso te ajudar com isso...
negou com a cabeça, murmurando baixo enquanto comia uma das torradas de pé.
— Se você vai me abandonar, me abandone de uma vez — disse, com a boca cheia.
Patricia riu, desarmada.
— E para de drama — exclamou, com migalhas de torrada caindo de sua boca. — Você deve ser uma das melhores classificadas para esse concurso. Você só estava nervosa na hora da prova. Animação! Você vai ser a mais jovem detetive de Longview.

não era uma das melhores classificadas para aquele concurso.
Pegou um táxi para a delegacia de Longview. Era um prédio preto, com muitos janelões de vidro e uma das faces viradas para a encosta da floresta. Chegou, subiu as escadas da entrada e entrou na recepção. Uma mulher de meia idade, de cabelos cacheados e pretos, com cara de que preferiria estar em uma praia, estava sentada do outro lado de um balcão. Lia um livro com total desinteresse.
— Bom-dia — cumprimentou . Ia continuar, quanto a mulher a interrompeu:
— O concurso?
Nem sequer olhou para .
A jovem recuou um pouco, com o rosto murcho em um pouco de tristeza pela hostilidade, mas assentiu.
— Você está atrasada — completou a morena.
franziu o cenho.
Eu sei.
Preferindo não soar tão grosseira, já que não havia tempo para isso, preferiu apenas perguntar onde era a reunião.
— Elevador, terceiro andar. Você vai ver as placas.
Não se deu ao trabalho de agradecer à mulher. Apenas assentiu com a cabeça. Foi em direção ao elevador, tocou o botão do terceiro andar e esperou o fechar das portas. Assim que elas se abriram novamente, foi a passos largos para a “sala de reuniões” indicada nas placas.
Bateu na porta antes de entrar, e, só após fazê-lo, percebeu que tinha sido uma atitude idiota. A reunião já estava acontecendo.
Tinha atrapalhado algo, certamente.
Alguém tinha se incomodado, alguém estava falando algo e foi interrompido, ou qualquer coisa assim. Atrapalhou. E não havia jeito de reverter isso.
Sentia seu coração bater e sua respiração era quase asmática.
Explosão.
Implosão.
Respire.
Abriu a porta lentamente. Era leve, silenciosa. Ainda assim, quando pôs a cabeça por entre a pequena fresta que se formou, todas as pessoas da sala a observavam.
Implosão.
Ao abrir mais um pouco, viu que uma mulher estava de pé, em frente à porta, parecendo ter sido interrompida no meio de um discurso importante.
Explosão.
No crachá, “Delegada Julie Stoner”.
Respire.
Boom.
murmurou um “com licença” quase inaudível e esgueirou-se para dentro da sala. Era longa e predominantemente cinza. As paredes eram de drywall e havia quatro fileiras de cadeiras, todas ocupadas, exceto por uma. não tardou em encaminhar-se para esta, na primeira fileira, evitando observar qualquer outro detalhe.
Sentou-se e sentiu as mãos tremerem. Os olhos de oliva da delegada, a poucos metros, a analisavam com ardor. Parecia capaz de lançar raios.
estudou-a com a cabeça baixa. Usava saltos altos, pretos, que a deixavam maior do que qualquer um naquela sala. Era morena, de cabelos curtos, com ondas sutis nas pontas. Não conseguia adivinhar sua idade.
Seus olhos eram cor de oliva, bem brilhantes. As rugas de seu rosto eram sutis, provavelmente não devido à velhice. Vestia um terninho azul-marinho que não delineava nada de seu corpo. A sobrancelhas eram grossas e seu olhar era intenso. Encarava .
Tinha olhos frios, duros.
já tinha gostado dela. Não retrucou. Apenas encarava-a de volta com o rosto relaxado, quase pueril. Julie não parecia querer provocar . Pelo contrário: parecia mais curiosa do que furiosa agora.
Era uma criança? Uma criança fez a prova para detetive? Só podia ser brincadeira.
Tentou lembrar do nome daquela moça. Tinha uma boa memória para nomes e rostos, mas tentar gravá-los por fotos 3x4 era uma missão praticamente impossível.
Bronx? Não, essa é ruiva.
Neveu? Não, era mais velha.
A moça tinha olhos ingênuos. Sentiu pena dela, por um instante.
Sentiu um arrepio pelo corpo. Achou que, talvez, já conhecesse aquela jovem.
Julie continuou, deixando a voz mais firme e grossa, depois da pausa:
— Há motivos de extrema urgência para justificar o concurso repentino.
Fez outra pausa. Suas falas eram acompanhadas de gesticulações abertas, receptivas, mas sempre terminavam fechados. Sua boca parecia ter o desenho permanente de um arco no canto dos lábios. Era inegavelmente bonita e incrivelmente grave, sisuda.
— Resolvemos pular muitas burocracias e adotamos um modelo de seleção mais dinâmico para uma situação tão específica. O passo de hoje será uma série de entrevistas realizadas por nossos policiais — ela prosseguiu e virou o rosto para quatro pessoas sentadas atrás dela. Dois homens e duas mulheres. Elas e um deles estavam sentados com a postura ereta, e olhares indiferentes, vazios. Pareciam manequins.
Um dos homens tinha os olhos focados na delegada. Mesmo parecendo entediado, ele olhava para a mulher com um olhar canino. não conseguiu reconhecer exatamente o que ele parecia pensar. Seus olhos estavam semicerrados, e teve a impressão de que eles doíam.
— Cada policial entrevistará cinco candidatos — Julie prosseguiu a explicação, depois de voltar a olhar para as fileiras de cadeiras à sua frente. — Após a análise do perfil de cada um, ele escolherá um candidato para seguir com o mês de provas práticas. Como um estágio — adicionou, com uma careta. — No fim desse período, será decidido se o candidato terá a vaga ou não. Se não for, outro candidato do grupo inicial será escolhido para as provas práticas.
A sala ficou silenciosa por um momento. Uma mulher, ao lado de , ergueu a mão. Vestia uma blusa social amarela e calças azuis. Seu cabelo era ruivo e possuía algumas sardas nas bochechas e no nariz arrebitado. Seus olhos eram grandes, de um azul vívido.
— Por que as mudanças na burocracia?
— Confidencial — respondeu Stoner, seca.
Outra pergunta partiu do fundo da sala:
— Todos os candidatos terão a mesma chance de vaga, independentemente de sua colocação no concurso?
Julie pareceu hesitar. leu isso como uma resposta.
— Sim. Outra pergunta?
Silêncio.
O policial entediado limpou a garganta. O som ressoou por toda sala e foi prontamente ignorado por Julie. olhou para ele. Tinha o rosto um pouco erguido, o corpo grande, claramente maior que o de . Imaginou que ele fosse dez ou quinze anos mais velho do que ela. Seus olhos sem qualquer interesse aparente. Cor fechada, quase restritos. Olheiras, olhos fundos, algumas poucas rugas demarcando seu rosto fino. Achou que notara algum ponto de melancolia. Eram olhos cansados.
Parecia um estágio permanente de cansaço. Como se já conhecesse aquele processo. Como se já soubesse o final da história, e ele não fosse nem um pouco animador.
Os olhos dele pararam nela. O homem apertou as pálpebras. fugiu o olhar.
Julie deve ter dito algo relevante, já que tinha deixado a sala, o que fez pensar se teria valido a pena prestar atenção. A sala estava um pouco barulhenta, com um conjunto de sussurros entre os candidatos. Parecia uma sala de aula depois do diretor ter dado um recado.
Uma mulher entre as policiais ficou de pé. O silêncio se fez novamente.
Tinha os cabelos loiros presos em um coque e vestia seu uniforme. Pegou uma folha de papel do bolso e leu os nomes:
— Margareth Albany, , Damien Persons, Annaliese Smiths e Christopher Johnston.
Cinco pessoas se levantaram. A policial não disse mais nada e indicou a porta. Seis pessoas deixaram a sala.
A outra policial se ergueu. Pegou um papel do bolso e disse, com a voz mais alta e limpa:
— Marla Bronx, Jamie Norton, Francis Hamilton, Lawrence Jones e Marie Neveu.
Mais cinco pessoas se ergueram. Uma delas foi a ruiva ao lado de , com um pequeno sorriso confiante no rosto.
Antes que um dos policiais restantes se levantassem, houve mais um pequeno burburinho na sala. imaginou que, dos dez candidatos restantes, nenhum queria ficar com o policial de semblante carregado. Torceu para que ele não fosse responsável por ela.
— Lucy Sant’anna, Angelina Bittencour, Harold Felix, Emily Evans e .
Cinco pessoas ficaram de pé. Uma delas era um homem ao lado de . Saíram da sala, seguidos pelo policial que os chamou.
A porta fechou-se. Bolha.
Todos os cinco que sobraram, duas mulheres e três homens, olharam para o policial restante. Esperaram alguma reação, alguma autorização ou algo do estilo.
O homem levantou-se, olhando para a porta. Sem desviar o olhar, foi até ela e disse:
— Sigam-me.
Sabia que tinha ficado com a escória.

A sala que ele tinha os levado era pequena, no terceiro andar. Assim que se abria a porta, via-se o escritório. Ao lado da entrada da saleta, estendia-se um banco acolchoado e longo.
Em uma placa, na porta, lia-se “ ”.
— Esperem aqui — instruiu ele. Sua voz era grossa e firme, mas baixa e um pouco rouca. Entrou no escritório e fechou a porta, deixando os cinco candidatos para trás.
Envergonhados, todos se sentaram no banco, lado a lado. Não ousavam se olhar; apenas encaravam o chão, respirando do modo mais silencioso possível.
É um pouco angustiante estar em uma sala e saber que só uma pessoa sairá dela satisfeita. Dizer um “boa sorte” soa mentiroso, dizer “você vai bem” soa sarcástico. A solução ideal é, de fato, ficar calado.
se perguntou se o senhor tinha consciência disso.
Pensou um pouco na aparência dele. Os cabelos estavam bem divididos, o que parecia um pouco contraditório. Sua postura ia contra postura e ordem, pelo que percebera. Se tinha prestado atenção suficiente, ele estava usando uma corrente por debaixo da camisa branca. As calças eram sociais, mas surradas. Não eram, definitivamente, calças de trabalho. A blusa também não parecia muito apropriada. O jeito que ele andava, menos ainda. Parecia apressado, um pouco irritado. Mas não irritado como se estivesse com ódio, ou algo parecido.
Parecia ansioso, mas de um jeito negativo.
Como se soubesse o fim ruim de um filme, onde o protagonista não terminaria bem.
Por um instante, arrependeu-se de ter prestado o concurso.
Observou as outras pessoas da sala, com discrição. Pareciam-se com ela mesma. Prendeu os próprios cabelos, enquanto olhava para o chão, e passou a olhar para os próprios anéis, mexendo neles de um jeito despretensioso.
— Perry — chamou , de dentro da sala. Tinha se passado meia hora desde que chegaram ali. Eram nove horas da manhã.
ergueu a cabeça. Um homem, com as mãos tremendo um pouco, ficou de pé. Foi até a porta e atravessou-a. A sensação era de que ele estava indo para um tipo de tribunal.
A porta se fechou de modo categórico, quase taxativo. Soou sentencioso.
teve pena de Perry. Parecia um menininho que acabou de entrar no colégio e já foi chamado para visitar o diretor.
Não era possível ouvir nada de dentro da sala. conferiu o relógio, mas uma moça tocou seu antebraço. Olhou-a: era loira, parecia uma boneca recém-saída da caixa.
— Primeira vez?
— Sim — tentou dar um sorriso encorajador. — E você?
— Terceira.
Puta merda.
A moça sorriu arrogante. Parecia fingir algum tipo de compaixão, o que deixou um pouco irritada, um pouco surpresa. Imaginou se não seria alguma tática para deixar nervosa. Um blefe.
A loira continuou:
— Quem sabe na segunda vez, né.
não respondeu. Sentiu a mão coçar e o sangue ferver, mas não respondeu.
A moça voltou a ler seu livro e voltou a mexer nos anéis.
Uma hora depois de ter entrado, Perry saiu da sala. Foi direto para a saída. Seu rosto estava inexpressivo.
— Roberts.
A moça loira olhou para com confiança. Ficou de pé e andou até a sala com passos firmes.
— Boa sorte — falou , baixo. Parecia ser algo indicado a se falar.
A moça não respondeu. Limitou-se a dar um sorriso pequeno, antes de fechar a porta do escritório.
Uma hora depois, Roberts saiu, fechando a porta da sala com força.
— Foi bem? — perguntou , enquanto a moça pegava sua bolsa na poltrona.
Roberts olhou-a de lado.
— Vai se foder.
Pegou sua bolsa e saiu batendo o pé. Era bem patético, na verdade. Uma adolescente mimada.
comentou:
— Quem sabe na quarta vez.
Roberts bateu a porta da sala com raiva. voltou a mexer no celular, com um pequeno sorriso.
— Anderson — chamou , na porta do escritório.
ergueu o olhar para o policial. Ele ergueu o canto da boca e as sobrancelhas, e fechou a porta atrás de si.

Depois que Anderson saiu da sala, o acompanhou. e um homem que também esperava se assustaram, acreditando que o teste teria acabado. estava com uma pasta na mão. Apoiou a mão na maçaneta e olhou para os dois sentados na poltrona. Seus olhos estavam foscos. Não olhava para nenhum deles.
— Pausa para o almoço. A cafeteria é no primeiro andar, nos fundos.
Saiu na frente. e os dois homens o seguiram, mas foi para a sala da delegada, com a cabeça abaixada e os olhos apontados para papéis na pasta. Anderson foi embora, mas e o outro homem foram para a cafeteria.
Era um lugar bem espaçoso. As paredes eram verde-claras, as mesas eram para duas pessoas. pegou um prato e serviu-se de macarrão com queijo. Ainda havia poucas pessoas na cafeteria, então conseguiu escolher uma mesa vazia. Sentou-se.
Pegou o celular. Havia uma mensagem de Patty:
“Como foi?”
respondeu que não tinha sido entrevistada ainda. Passou pelos contatos, até a letra T. O nome “Tracy” era um dos primeiros na lista. Encarou o número e devolveu o celular para a bolsa.
— Acompanhada? — perguntou alguém à sua frente.
Ergueu os olhos, com os talheres nas mãos ainda limpos. Uma ruiva.
— Perdão? — perguntou, em resposta, com as sobrancelhas erguidas.
— Está acompanhada? — Os olhos azuis dela brilhavam. — Posso sentar aqui?
Tinha um sorriso amistoso. Não lembrava seu nome, só lembrava que ela tinha sido rapidamente chamada para a entrevista.
— Pode, pode — confirmou, apontando para a cadeira à sua frente, com um pequeno sorriso.
A moça ruiva sentou-se lentamente. Sua coluna estava ereta e ela não tocava os cotovelos na mesa. Pegou os talheres para comer sua salada. Olhou para com um sorriso tímido.
— Seu policial terminou as entrevistas? — questionou, comendo um pouco de folhas.
— Não, faltam duas pessoas.
tentou comer de um jeito mais... Sutil. Aquela moça ruiva parecia muito educada, deixando-a até um pouco desconfortável. Era lindíssima, inegavelmente. Tinha um sorriso que parecia emitir luz própria.
— Para mim também — comentou a moça, com a mão tampando sua boca. — Disseram que o resultado sairia ainda hoje.
franziu o cenho.
— Falta apenas eu e mais um. E não avisaram sobre o resultado.
— Os outros três foram bem?
Ergueu as sobrancelhas e comprimiu os lábios.
— Não. Já foram mandados para casa.
A ruiva não pareceu entender.
— O meu também liberou alguns. Não sei o que isso deve significar.
— Acha que pode ser uma boa notícia? — perguntou , tentando soar amigável.
A moça ergueu as sobrancelhas e seus olhos brilharam.
— A sua é a mesma que a minha, de qualquer jeito — comentou, pegando mais um pouco de salada. — Qual seu nome?
. Me chame de .
— Prazer em conhecer, . Meu nome é Marla. Marla Bronx.
— Prazer, Marla — falou, enquanto colocava um pouco de macarrão na boca, e acrescentou um comentário. — É um nome bonito.
A ruiva sorriu.
— Obrigada. O seu também é.
Ficaram alguns segundos em silêncio. Por algum motivo, não pareciam nem um pouco desconfortáveis.
— Por que você acha que estão fazendo esse concurso surpresa?
deu de ombros. Não imaginava o motivo, e, sinceramente, não se importava em continuar sem sabê-lo. No entanto, a moça ruiva à sua frente parecia especialmente curiosa.
Pegou-se imaginando se havia muita diferença entre elas duas.
— Não faço ideia. Divulgaram o concurso e o edital bem em cima da hora.
Marla concordou, com um rosto incrédulo.
— Pois é. Eu quase não consegui me inscrever. Não conheço praticamente metade das pessoas daqui.
não comentou, porque não conhecia ninguém.
— Acho que essa convocação às pressas pode ter sido um tiro no pé. Entende? — perguntou, colocando mais folhas na boca. — Só algumas pessoas ficaram sabendo. Não dá para saber se foram as pessoas mais competentes, as mais qualificadas.
continuava a comer seu macarrão. Não quis responder, porque não imaginava que falaria algo bom.
— Acho que muita gente realmente boa ficou de fora — prosseguiu Marla, imparável. — E que muita gente ruim acabou entrando, porque divulgaram o concurso mal. Entende o que quero dizer?
Sua voz era morna. imaginou se ela estava confundindo-a com alguém, ou se só era realmente muito confiante. Se ela própria havia transparecido uma confiança tão grande. Se talvez tivesse visto isso, se ela o tivesse enganado.
— Eu tenho medo disso — comentou a ruiva. — Tenho medo de eles estarem querendo pessoas aptas para o trabalho e acabarem só com pessoas incompetentes. Pessoas que não levam o trabalho a sério.
— Você morava aqui? — perguntou , mudando de assunto. — Fizemos a academia juntas?
— Não. Sou de Winterstone. É a umas duas horas daqui.
— Era da academia de lá?
Marla assentiu com certo orgulho.
— Sempre quis ser detetive. Era meu sonho desde criança.
E por isso tinha medo de estar entre pessoas desqualificadas. Isso arruinaria seu imaginário e seu sonho de trabalho perfeito.
sentiu um arrepio na espinha. Esperou estar bem, nos parâmetros de Marla.
— E você? — perguntou Marla. — É daqui?
assentiu.
Uma voz microfonada soou na cafeteria:
— Por favor, todos os candidatos que ainda não foram entrevistados, retornem às suas salas. O trabalho de admissão prosseguirá em cinco minutos.
Marla deu um pequeno sorriso, amigável e gentil. Estendeu a mão.
— Boa sorte. Gostei de você, espero que passe.
devolveu o sorriso e apertou a mão da moça. Tinha gostado mesmo de Marla, embora ela soasse um pouco arrogante.
— Obrigada. O mesmo para você, Marla.
Se despediram com um aceno.

Boom.
O coração de batia com força, cada vez mais rápido. Podia sentir a própria pulsação na nuca. A respiração era veloz e seus pensamentos eram conflitantes.
Confusão.
Medo.
Marla.
Por que se importaria com a opinião de uma moça que nem sequer conhecia bem? Por que, hein, ?
Porque queria ser o que ela queria encontrar.
Queria ter a segurança, a coragem, determinação. Mas não, estava aterrorizada com a ideia de ser entrevistada. Que coisa ridícula. não parecia nem um pouco disposto a facilitar, e isso piorava quando pensava que, por ser a última, a paciência dele teria esgotado.
Queria poder entrar na sala dele e ser confiante. Só responder as coisas do jeito que ele queria ouvir, soar natural o suficiente para que ele a visse como confiante, original. E ela era? Não sabia responder.
De qualquer outra coisa no mundo, queria poder ser como Marla Bronx naquele momento.
A porta foi aberta. O homem saiu, tão inexpressivo quanto entrou. Seu nome era Sommerfield. tentou decorar os nomes de todos para procurar entre os selecionados depois.
? — perguntou , da porta do escritório. Segurava a maçaneta. Seu rosto era magro e a barba estava por fazer. Parecia estar mascando um chiclete.
se levantou. Ajeitou a camisa e tentou manter a respiração constante e normalizada. Não ouvia nada além de seu próprio coração. deixou a porta aberta e voltou para sua mesa, e entrou no escritório e fechou a porta atrás de si.
O espaço era pequeno. Um retângulo de paredes marfim, com uma estante marrom e uma escrivaninha também marrom. A decoração era simples, quase essencial. Não havia fotografias nas paredes; só uma na mesa, que ela não tinha como ver naquele ângulo. A única coisa pendurada era seu diploma da faculdade. Nas prateleiras, alguns livros de Direito, mas, na maioria, pastas com arquivos. caminhou despretensioso até a cadeira atrás da escrivaninha e indicou a outra cadeira para que também se sentasse. Ficava a cerca de um metro da mesa, isolada no centro da sala.
— Por favor — disse, com cansaço na voz.
Ela obedeceu. sentou-se na frente dela, com uma pasta amarela nas mãos. Deixou-a aberta na escrivaninha, à sua frente, e olhava para o que estava escrito com atenção, enquanto estalava os dedos das mãos. A luz adentrava a sala por detrás dele e criava uma imensa sombra do corpo do policial sobre a mesa. Escurecia os papéis à sua frente, parecia devorar a imagem da pequena .
Ela encolheu-se.
ergueu a sobrancelha esquerda e bufou. Pegou uma folha de papel e uma caneta e deixou a mão repousada por cima da folha. Tinha a cabeça levemente abaixada, quando a olhava nos olhos.
— Nome.
.
Marla.
.
.
Anotou a resposta. Mesmo que o nome já estivesse escrito na ficha, pareceu achar importante ter ele em sua própria caligrafia. Os olhos se abaixaram para o papel, parecendo carregados, e suspirou pesadamente. imaginava por que teriam colocado um homem tão desinteressado para entrevistar os candidatos. Ele ergueu a cabeça.
— Idade.
27.
27.
28.
32.
Seus olhos foram diretamente para as mãos de . Fez uma anotação.
Deixou a caneta cair na mesa.
— Então... — fez uma pausa, enquanto levantava a cabeça e erguia as sobrancelhas. — Sabe o que está fazendo aqui?
Ela franziu o cenho.
— Perdão? — perguntou, com inocência.
— Você sabe o que está fazendo aqui? — repetiu, em um tom igualmente mole, parecendo soletrar.
respondeu com o olhar fugitivo. Olhava para a porta sem querer. Queria olhar para qualquer outra coisa a não ser os olhos do senhor .
— Estou me candidatando para o trabalho de detetive.
Seu tom soou tão fraco que era patético. Teve pena de , que teria que escolher o candidato menos pior. parecia chutar a resposta.
— Você não está se candidatando, garota — comentou , enquanto ainda anotava algo. Nem se deu o trabalho de erguer a cabeça.
Engoliu em seco.
Estúpida.
O que está acontecendo? Não imaginava que fosse ser tão ruim.
Erga-se.
Ele não é um leão. Não é um animal.
Ele não morde.
A princípio. Não o provoque.
Erga-se.

— Estou me... — hesitou, e sentiu que isso foi a pior coisa que podia ter feito. — Estou concorrendo.
— Bom, mas ainda está ruim — respondeu . A cabeça pendia levemente para o lado direito.
— Almejando.
— Troque de assunto — ele sugeriu, balançando a mão e olhando novamente para a pasta. — Você já falou besteira.
sentiu seu coração apertar, como se estivesse tendo um curto ataque cardíaco. Sentiu ele parar por poucos instantes.
Ela comprimiu os olhos e bufou baixo. Acreditou que ele não tinha ouvido. Ela estava repleta de ódio. era arrogante, estúpido, grosseiro. Queria dar respostas reais, cuspidas. Isso iria contra o código mundial das entrevistas de emprego, mas nossa, como queria ser uma babaca com ele.
Ele não merece sua educação.
Boom.
Sentia-se uma experiência em laboratório.
Acalme-se.
Respire.
— chamou-a. comprimiu os lábios.
Olhou para . Seu próprio rosto, pequeno, se comparado ao dele, estava um pouco abaixado. Ao olhar para ele, acertou seus olhos. Acertou-os e sustentou seu olhar.
Sustentaram-se por poucos segundos. Ele queria ser incisivo. Ela deixava-o entrar.
pareceu gostar daquilo, pelo menos um pouco. Porque os olhos dela estavam bem abertos. Ergueu o canto do lábio, o que deu a ela um pouco de esperança.
Os olhos de eram brilhantes. Tinham inocência, quase ingenuidade. Ele gostava disso. Gostava de destruir essas coisas.
Antes, não. Agora, sim.
Já fora uma pessoa boa.
— Por que está aqui? — ele perguntou. Sua voz estava firme, quase didática.
desviou o olhar. Pareceu pensar, enquanto olhava para o canto da sala. Imaginava que aquilo transmitiria insegurança.
— Porque quero garantir a segurança da população.
— Vá trabalhar na área civil — disse , com a voz arrastada. — A de homicídios não garante a segurança de ninguém. Dependemos de cadáveres.
Ela engoliu em seco novamente. Ele soava cansado, prestes a expulsá-la dali o quanto antes.
— Quero estar em um caso. Fazer investigações, tirar depoimentos.
— Não diga que sua base para isso são livros do Conan Doyle ou da Agatha Christie.
Seu tom era de desdém. O rosto continuava inexpressivo desde o começo da entrevista.
— Não são.
— O que é, então?
— Eu sei que estão matando as adolescentes. Queria poder investigar coisas assim.
apertou os olhos para analisá-la melhor. Quando ele fez isso, imaginou que tinha feito a coisa certa.
— Sabe? Você e todos que leem o jornal.
— Eu quero poder trabalhar nisso.
Nisso?
Ele parecia prestes a forçar uma risada. não se intimidou. Esperou que aquele teatro ridículo passasse.
Segure-se. Ele ainda é seu superior.
A raiva borbulhava dentro da moça.
— Você quer trabalhar com mortes? É isso?
Ela não disse nada. , que queria rir, diminuiu o sorriso e franziu o cenho. Lia algo nela. Em seu silêncio.
— Você gosta de trabalhar com morte?
— Eu gosto de solucionar mortes.
— Você não me respondeu — ele disse, com a voz um pouco mais alta, inclinando o corpo para frente. De forma proposital ou não, pareceu um pouco mais interessado. Mais do que esteve o dia inteiro.
estudou-a por um momento. Era uma moça bonita até, mas com muita cara de sonsa. Vestia roupas ridículas. Sua voz era fraca, seu olhar era trêmulo. Seus lábios estavam descascados. As mãos eram inquietas.
— Eu...
— Qual é o trabalho de um detetive de homicídios?
não respondeu, porque sabia que não devia. Estava trêmula, de rosto abaixado, olhando para as próprias mãos. Não era uma pergunta para ela. E ela ter percebido isso pareceu deixar mais interessado em seguir aquela conversa.
Um deslize. Era tudo que ele queria.
— Nós cuidamos das pessoas? Protegemos os cidadãos? — ele pausou, o cenho franzido e algo que parecia um pequeno sorriso, que não conseguiu entender. — Nós lidamos com mortos. Você diz que o nosso trabalho é dar uma conclusão para essas histórias?
— Bobagem.
Ele não seguiu de imediato. Sustentou o olhar dela por alguns segundos. Ela parecia esperá-lo.
Ela estava vermelha. Não tremia mais. Nesse ponto, os outros já quase choravam. Mas ela não. Ela estava irritada.
— Qual é o trabalho de um detetive de homicídios?
Acalme-se.
Olhou para a mulher. Pequena, encolhida. Com roupas ridículas. Minúscula. E com raiva. Muita raiva.
ergueu o olhar para . E sorriu.
Ele apertou os olhos. Ela sorriu.
Essa era a resposta dela. Era “me mostre”.
Ele sorriu pequeno. Abaixou o rosto e anotou algo.
E assim, soube que conseguiu.
— Que experiências na área você tem? — ele voltou a perguntar, pegando a caneta. Sua voz estava com mais animação.
— Fiz um estágio com uma associação de advogados penais de porta de cadeia. Fiquei em uma delegacia por alguns meses.
— Por quanto tempo? — Colocou a ponta da caneta no papel e o olhou, esperando a resposta.
— Seis meses.
Pegou o relatório da academia de polícia, na pasta.
— Experiência na área de luta corporal.
Foi uma pergunta? Não sabia se a resposta estava na ficha na mão dele.
— Ganhei duas vezes a competição estadual de boxe de estudantes do ginásio.
ergueu o olhar. Franziu o cenho, rindo.
já tinha entendido que ele só sorria para tirar sarro dela. A cada momento, gostava menos de . Por outro lado, isso era um bom incentivo: amava pessoas arrogantes.
— Duas vezes? — perguntou ele, com o cenho franzido.
Ela deu de ombros.
— Na terceira vez, fiquei em segundo lugar.
achou que ela estivesse mentindo, mas não se importou. Cedo ou tarde, ela ia acabar tendo que provar aquilo. Abaixou os olhos e anotou algo. Quando terminou, ergueu o rosto e voltou a encarar a moça. Por um instante, achou que ela tinha se aproximado um pouco com a cadeira. Imediatamente, rejeitou a ideia.
— Tem algo relevante a acrescentar?
tentou conferir o relógio com discrição. Estava ali faziam vinte minutos.
— Algo relevante? — ela perguntou, com o cenho franzido.
— Tem mais algo para colocar aqui?
Quando tinha entrado na sala, tinha colocado a bolsa no chão, ao seu lado. Estrategicamente, deixou o celular do lado de fora, como se tivesse caído. Conseguiria olhar as horas, desse modo, e conferir caso chegasse uma mensagem ou recebesse uma ligação.
O celular começou a vibrar e o nome no visor era o de sua mãe.
Começou a tremer.
Olhou para o celular e o nome piscava.
Voltou a olhar para . Ele parecia ansioso por uma resposta.
— ele chamou.
Ela olhou para o celular novamente.
Olhou para . Os olhos dele brilhavam e pareciam respirar.
Emergência.
.
Emergência.
Pouso forçado.
E silêncio.
Silêncio completo.
Ergueu os olhos para . Apertou as pálpebras. Levantou o rosto e alinhou-se ao dele. estava com as costas na cadeira, jogado de qualquer jeito. O queixo apoiado na mão, o cotovelo no apoio da cadeira. Os olhos dele estavam apertados.
Ambos tinham o rosto sério. Cobrador.
, por que está aqui? — ele perguntou.
— Porque eu quero entender um assassino.
Ele franziu o cenho. Apoiou os cotovelos na mesa e inclinou o corpo para frente.
— Explique.
não tinha reação alguma. Seu rosto estava impassível, frio. Olhava diretamente para os olhos de .
— Eu quero prender um assassino e ver como ele é. Quero saber o que leva uma pessoa a cometer um assassinato.
— Isso é parte da psiquiatria forense — ele observou, não como um desestímulo, mas como uma provocação. Queria mantê-la falando.
— Não — ela contestou. — Eu quero entender um assassino de verdade.
Relaxou o rosto. Sua resposta veio enquanto ela olhava para o chão.
— Quero ver ele de verdade, sem análises. Sem defesas pelo passado dele, sem doenças diagnosticadas. Quero ver ele de verdade, ele como um animal. Ele cru. Puro.
franziu o cenho.
— Por quê?
Ela olhou para seus olhos. Arqueou de leve o canto da boca.
— Porque eu sou uma curiosa.
sorriu, de verdade. Porque ele sabia que ela estava mentindo.
— Obrigada pela sua participação, Srta. — ele falou, fechando a pasta. Olhava para a moça, que parecia estar voltando de um transe.
Ela ergueu o canto do lábio.
— Obrigada pela atenção, Sr. .
Ela levantou-se. Nem esperou que apertasse sua mão. Pegou a bolsa e conferiu a ligação perdida da mãe. O policial apontou para a porta, enquanto se levantava.
— Espere na sala de reuniões. Vamos dar os resultados em quinze minutos.
assentiu, com pressa para ligar para Patricia e saber o que tinha acontecido com . Ela virou o rosto para novamente, da porta, enquanto ele arrumava a mesa.
— Ei.
Porque eu quero ver uma pessoa que tenha perdido a cabeça, mas que ainda seja tão humana quanto eu e você.
olhou-a.
— Sinto muito pela sua esposa.
Ele não respondeu. Abaixou o rosto novamente e voltou sua atenção para o que fazia antes.
foi para a sala de reuniões sem adicionar outra coisa.
Porque eu gosto.

Um ataque de pânico pode ser reconhecido por sintomas externos, como tremedeira, inquietude e hiperventilação, ou por sintomas internos, como desespero repentino, visão trêmula e taquicardia.
Durante todo o tempo que esperou os resultados na sala, encarava o celular. O contato da mãe selecionado, e não discava. Por quinze minutos.
A sala tinha poucas pessoas. Além dela, deviam ter mais dez pessoas ali. Quando entrou no ambiente, mesmo que metade das cadeiras estivessem ocupadas, teve opção de sentar-se na penúltima fileira. A duas cadeiras dela, estava o mesmo homem que, mais cedo, estava ao seu lado. Marla estava na fileira da frente. Quando faltavam poucos minutos para que receberem as notícias, ela virou-se para trás.
— chamou.
levantou o olhar do celular, com um susto. Guardou o aparelho instintivamente.
— Como foi?
As mãos de tremiam, mas ela não queria que Marla visse isso.
— Foi... Tudo bem.
— Acha que consegue?
deu de ombros, com um sorriso quase infantil.
— Sou a única pessoa do meu grupo que ele mandou vir para cá.
Marla deu um sorriso aberto. Tocou o ombro de , de leve, e comemorou:
— Parabéns, !
— Tem mais alguém do seu responsável aqui? — perguntou .
— Não falaram para ninguém ir embora, mas acho que ninguém estava muito esperançoso.
Marla tinha um sorriso satisfeito. Não como se estivesse diminuindo os outros candidatos. Não estava, e era gentil o suficiente para confirmar isso, só estava satisfeita consigo mesma.
agradeceu por não ter ficado no mesmo grupo que Marla.
— Vamos ser colegas de trabalho, — ela continuou, ainda em tom comemorativo. — Ainda bem que sentei contigo no almoço.
riu em concordância, embora estivesse um pouco desconfortável.
A porta foi aberta e cinco pessoas entraram no salão. Julie e os quatro policiais. A delegada posicionou-se no centro do espaço em frente às cadeiras, enquanto os policiais ficaram perto da porta. era o único com braços cruzados, nem um pouco ansioso para saber o resultado.
Todos os candidatos ajeitaram suas posturas. olhava para Julie Stoner, mas sabia que estava olhando para ela.
— Gostaríamos de, primeiramente — começou Julie —, agradecer a paciência de vocês por aguardarem os resultados por tanto tempo.
quis rir. Apenas ergueu as sobrancelhas por um instante, e voltou a relaxá-las.
— Os escolhidos deverão vir para a delegacia amanhã às oito horas. E sem atrasos.
Julie abaixou o olhar para os papéis em sua mão. fingiu não ter ouvido a observação da delegada, enquanto podia ver, com o canto do olho, rindo levemente.
— anunciou.
Um homem na primeira fileira se levantou. Ajeitou o blazer.
— Marla Bronx.
Marla ergueu os cantos dos lábios, em um sorriso disfarçado. Ficou de pé.
.
O homem na fileira de também se levantou, com as mãos atrás do corpo. Vestia uma camisa social preta, de mangas compridas, e tinha o semblante fechado.
— E .
ficou de pé. Não conseguiu evitar olhar para , rapidamente. Ele a olhava do mesmo jeito que a olhou de manhã. Desafio.
— Amanhã. Às oito — lembrou Julie. — Dispensados.
As pessoas que permaneceram sentadas foram as primeiras a fugir da sala. , Marla, e foram até a delegada e os policiais e, um a um, começaram a apertar suas mãos.
— Obrigada, delegada — agradeceu . Sua voz era grossa, limpa.
A delegada assentiu com um pequeno sorriso, mas não respondeu.
Todos os outros fizeram o mesmo que ele, mas em silêncio. foi a última. Apertou a mão de cada policial, e, quando chegou a , murmurou:
— Por que me escolheu?
Ele segurou a mão dela e apertou-a.
— Porque eu sou um curioso.

I thought this wouldn’t hurt a lot, I guess not…


Capítulo 2 – Have a cigar

You’re never gonna die, you’re gonna make it, if you try they’re gonna love you…

Acorde. Abra seus olhos. Levante-se. Vá ao banheiro. Lave o rosto. Vá até a esteira. Corra por meia hora. Tome um banho. Não se toque. Vá para a cozinha e prepare um chocolate quente.
Espere.
Volte.
Está vendo aquela mulher em cima da sua cama? Ela tem cabelos escuros, longos. Seus olhos são azuis, tão claros que parecem acinzentados. Cor de neblina. Seu rosto tem traços finos, o corpo é magro e a pele tem cor de arroz. Ela olha para o chão. A face melancólica e carregada, os pés sustentando na ponta dos dedos todo seu peso.
Linda, linda.
vestia apenas sua camiseta branca quando preparou seu chocolate. Tudo na mais perfeita ordem, como sempre. Olhou, de longe, a imagem em cima da cama.
Era uma criança prodígio, ao menos era isso que sua família costumava dizer. Formou-se com louvor em Direito há cerca de quinze anos. Não tinha pretensão de continuar em Longview por muito mais tempo; sua ideia era de ir com sua família para Toronto.
Então, Ariana estragou tudo.
Linda, linda.
Olhos enormes, rosto simétrico e de feições firmes.
O que Ariana acharia de você agora, ?
Gostava de acordar toda manhã olhando para ela. Uma criatura complexa, encantadora. Ela odiaria ter aquele quadro pendurado ali, bem em cima da cama. Teria vergonha e ficaria irritada daquele jeito tão adorável.
sorriu.
Ajeitou o cabelo com as mãos, enquanto esperava o chocolate ficar pronto. Ariana não gostava quando fazia isso. Viajou os olhos pela sala.
Volte.
O espelho não tinha uma visão agradável. Lembrava-se do de um mês antes, e da Ariana. Imaginava o que ela acharia dele hoje em dia. Antes, um homem que tentava arduamente ser o melhor de si. Todo dia, cada momento, era a melhor pessoa que conseguia ser. Isso porque Ariana tinha um mantra que costumava levar a sério:
— Se você tem como fazer algo bom, você é obrigado a fazê-lo.
Era ingênuo e adorável ver uma policial de homicídios com um princípio tão infantil.
O primeiro dia foi o pior. Enterrar Ariana não foi a pior parte. A missa depois do enterro, contra o que Ariana gostaria, não foi o pior.
O pior foi entrar em casa e sua casa estar exatamente do mesmo jeito de sempre.
Perfeita. Com várias Ariana olhando para ele.
Os livros nas estantes, as fotografias nas paredes, todos os cômodos arrumados, como Ariana bem gostava.
As paredes verdes, as imagens de Ariana nas paredes.
Acalme-se. As notas ainda estão baixas.
Passou o resto da tarde em total silêncio. Não ligou a televisão. Era cortante e desrespeitoso fazer algo assim. Naquela noite, olhou para cada móvel, cada objeto, cada traço da casa, e teve raiva. Muita raiva. Era insuportável a ordem.
Tudo gritava para ele manter a calma.
. . Um homem sério.
Fechou a porta atrás de si. Jogou uma cadeira contra a parede. Cada livro foi jogado contra o chão e a parede. A mesa foi virada, as roupas foram jogadas no quintal, uma cadeira quebrou-se com um chute, além das várias outras que foram agredidas em silêncio.
E então, paz.
Havia uma canção cantando no fundo, que não conseguia fazer parar.
Por que, ? Por que fez isso?
Olhou para uma estante. Pegou um livro e leu-o durante toda a madrugada.
“Não há maior dor do que recordar a felicidade nos tempos de miséria.”
Com o livro ao seu lado, caiu no sono em cima da cama e, na manhã seguinte, achou que veria Ariana. Naquela mesma tarde, colocou o quadro em cima da cômoda. Sua casa estava em perfeita ordem.
Um mês depois, ali estava ele.
Ah, . Você costumava ser um homem bom.
Com uma caneca de chocolate quente na mão, foi até a mesa no canto da sala. Era um pequeno retângulo branco preso direto à parede, como Ariana achava mais elegante. Pegou as pastas em cima da mesa, cada uma com a ficha de cada novato. Abriu a primeira pasta e leu a primeira ficha.
.
Educado na Suíça. Certificados inclusos. Formação em Direito por Yale. Nascido em Longview.
. Conhecia esse sobrenome. Coçou o queixo, tentando lembrar-se de onde vira isso antes. Anotou o nome na primeira página de sua caderneta para lembrar-se de pesquisar mais tarde.
A ficha do rapaz era exemplar, mas desanimadora. não gostava do mais inspirador, o arquetípico. Tornava-se um padrão do que deveria ser seguido e, principalmente, copiado. E essa era a ideia que incomodava .
Olhou para a foto com mais atenção. , um homem de beleza indiscutível e, talvez, inexplicável. Era desagradável tentar resumir em poucas palavras o que o deixava tão bonito. olhava sua fotografia, um pequeno, quase imperceptível (talvez inexistente) sorriso formado na boca de . Como se visse através da foto. Como se soubesse o que ele estava fazendo naquele momento.
Estou vendo sua casa, inspetor. Estou vendo a bagunça que você deixou. Estou vendo o seu fantasma agora.
Olhe para mim, inspetor. O que o aflige?
Conte-me, inspetor.
Fechou a pasta com agonia. Detestava o tipo de . O cara ideal, o homem exemplar e digno de imitação. Completamente desanimador. Nada vindo de um rapaz assim seria notável: tudo não é nada além do excelente. Nada se destaca.
Deplorável.
Abriu a segunda ficha. Marla Bronx. Uma versão feminina de .
Ou seria ele uma versão masculina de Bronx? Era difícil escolher. Marla não tinha ido estudar na Suíça (afinal, quem tinha?), mas seus documentos impressionavam tanto quanto os de . Parecia ter uma origem um pouco mais modesta, mas conseguira bolsa integral em Princeton, um feito particularmente admirável. Ele próprio era formado em Princeton e voltara para sua cidade natal e nunca mais saíra, por causa de Ariana.
Agora estava enterrado em Longview para sempre.
parecia o tipo de cara que compra cada título. Marla, por outro lado, era impressionante por si só, e ainda era incrivelmente entediante.
A próxima ficha era de , sua própria novata. Sua foto lembrava uma cabra aterrorizada. Uma foto surpresa. Seus olhos estavam em dilatados, ao contrário dos dois colegas anteriores.
Afundou seus olhos na fotografia da jovem. Ela prestava atenção ao redor. olhava fixo para a câmera, lia-a. Marla era fechada, segura.
deixava a câmera atravessá-la.
.
Ele olhou o fundo de seus olhos.
Como Ariana os acharia bonitos.
.
Tocou o anel no pescoço. Tirou a corrente e guardou-a no bolso.
, você precisa se arrumar.
Ergueu a cabeça para a imagem de . Soava um pouco mais agradável agora. Esperou ter feito uma boa escolha.
A última ficha era de um rapaz um pouco mais velho. Seu nome era . Calculou que ele era apenas dez anos mais velho que . Nasceu em Los Angeles, formou-se na Universidade da Califórnia. Campeão de tiro e de luta corporal, sem especificações quanto ao tipo de luta. Experiência como detetive em outra cidade, ao norte de Longview.
era o menino prodígio.
Olhou sua foto. Traços finos. O rosto rude, irônico. Uma barba fina e completa. Olhava para a câmera, mas bloqueava sua leitura.
desejou, por um instante, que ele mesmo tivesse ficado com o grupo de . No entanto, rejeitou a ideia.
Trabalhar com fracassados sempre é mais interessante.
Olhou para cima. Ariana não estava lá, por mais que quisesse que ela estivesse. Às vezes, fechava os olhos com força e se concentrava em sua voz. Vez ou outra, conseguia ouvi-la. Mas se abrisse os olhos, era tudo como antes.
Não estava sozinho, e talvez isso fosse o pior disso tudo. Ariana estava ali, ele só não conseguia tocá-la.
Desde que ficara viúvo, passou a visitar um psicólogo. Julie teria insistido que aquilo faria bem a ele, mesmo insistindo que não precisava daquilo. Era uma moça jovem, sonsa, que ele encontrava uma vez por semana. O de praxe. já sabia exatamente o que dizer, e exatamente por isso, foi fácil convencer a todos de que poderia continuar trabalhando, mesmo que desarmado.
Ainda assim, a mocinha o tinha ensinado algumas coisas sobre luto. Lera um livro de Freud durante o tempo que ficara lendo sozinho. Ariana teria gostado de vê-lo lendo Freud.
Olhou novamente para a figura na ponta dos pés, melancólica. Tocou o anel no bolso.
Não mais.
Ainda não.
Apertou os olhos. Nada escapou-lhe.
Em perda.
Eterno presente da perda.
O telefone começou a tocar. O chocolate estava frio.
Olhou para o telefone fixo com a luz piscando. Pegou-o e levou-o ao ouvido.
Não existem cicatrizes de amor. Todos estão constantemente em carne viva.
, o menino prodígio.
— ele afirmou.
— Julie — retrucou a mulher do outro lado da linha.
— Você nunca liga antes das oito.
— Você nunca atende antes das nove.
Conferiu o relógio. Não estava atrasado.
— Por que está me ligando? Precisa de companhia?
— Já tenho — ela disse, com um suspiro cansado. — Benjamin Kerauc acabou de chegar.
Olhe para cima.
Mordeu o lábio e xingou em silêncio.
— Kerauc? Mandaram gente pesada.
— Conhece?
— O estado é todo dele.
Ouviu Julie suspirar de novo.
— Achei que a ideia fosse deixar isso escondido — ele prosseguiu.
— Estávamos deixando. Não temos divulgação.
— Se mandaram Kerauc, é porque sabem o que está acontecendo.
— Não sabem — retrucou ela.
preferiu não estender a conversa. Conhecia Julie desde que entrou na delegacia. Lembrava-se bem do dia que ele ou Julie seria promovido a delegado. Ariana dizia que tinham escolhido ela por política. Na época, discordara e acreditava que Julie realmente fosse uma opção melhor. Atualmente, concordava.
— Olhou a ficha da sua novata? — perguntou Julie.
Olhou para a ficha em cima da mesa.
— Dei uma olhada. Viu o ?
? — Fez uma pausa, enquanto abria novamente a pasta de , junto à de . — Ah, o novato do Dennis. Sim, por quê?
— O nome dele não te diz nada?
— Não que eu me lembre. Mas e sua novata?
deu de ombros, certo de que, mesmo pelo telefone, Julie entenderia o que ele queria dizer.
— Nada demais.
— Então por que preferiu chamar ela a outra pessoa?
Ele riu baixo. O sorriso que, há alguns meses, derretia qualquer pessoa que visse. Atualmente, era só deprimido.
— Ela percebeu que sou viúvo.
Julie não respondeu.
— O que ela disse?
— Só me desejou pêsames. Ela deve ter notado a marca de sol e a corrente.
— Você contratou a porra do Sherlock Holmes.
riu.
— A garota parece bem comum. Nada demais, nada de menos. Só normal.
— Espero que não tenha feito a escolha errada.
Releu seu nome. .
— Acredito que não.
— Kerauc está entrando — ela continuou, com a voz abafada contra o fone. — Venha logo, não se atrase. Precisamos decidir logo o primeiro a ser promovido.
murmurou um “ok” e desligou. Não queria colocar Julie em problemas. Foi até seu quarto e vestiu o que faltava de sua roupa. Pegou o livro que estava lendo e colocou-o na mochila. Pegou as fichas e guardou-as, e apertou o anel em seu bolso.
.
No fim, gostava dos detestáveis.
Dante acreditava que, para subir aos céus, primeiro deve-se descer.

Marla chegou cedo à delegacia. Tomou seu café lá, na cafeteria, e voltara para o corredor. Havia um banco ao lado da entrada da sala de reuniões e ela escolhera aquele lugar para aguardar o horário. Olhava para o chão, quando um homem de terno entrou na sala, e quando ela tentou furtar um olhar para dentro da porta, esta foi fechada na frente de seu rosto.
Voltou-se para si mesma enquanto bebericava o café. Inúmeras pessoas passavam pelo corredor. Marla conferiu o relógio: meia hora para o horário marcado. Gostava da ideia de ser a primeira pessoa a chegar para um compromisso; achava que isso passava uma boa impressão. Não achava que isso fosse ridículo, mesmo que de fato fosse.
Não lembrava bem quem tinha sugerido isso.
Brincava com os dedos. Um homem veio pelo corredor e sentou-se em outro banco, no mesmo corredor, do outro lado da porta. Vestia um blazer cinza e uma blusa azul por baixo. O cabelo penteado para parecer que não estava penteado. Relógio de pulso, um luxo desnecessário, quase old fashioned. Tinha um copo de café na mão, de uma cafeteria do lado de fora da delegacia. Ele deixou o copo no chão, perto de seu pé, e pegou um livro em sua bolsa lateral. Tinha o corpo grande e ombros largos, e Marla lembrava-se que ele tinha sido chamado antes dela no dia anterior.
O livro em suas mãos estava aberto no primeiro terço. Marla olhou para a capa com um ato furtivo, quase ilegal. Não conseguiu reconhecer o título de imediato.
Hesitou um pouco, mas terminou por inclinar um pouco o rosto para perto do homem. Desenhou um leve sorriso com os lábios para perguntar:
— O que é?
Ele deu um sorriso tão belo e educado que estava óbvio que era falso.
O Processo — respondeu, seco.
— É bom? — perguntou novamente.
Ele mal respondera. Limitou-se apenas a um aceno positivo com a cabeça, e ela preferiu não insistir mais. Não gostava de leitores de Kafka.
Voltou a olhar para o corredor. Várias pessoas passavam com seus copos de café na mão, prestando atenção em qualquer coisa exceto o caminho. Ainda assim, seus passos eram perfeitamente coreografados para que ninguém esbarrasse em ninguém. Marla pensava em quanto tempo deveria ficar na delegacia para que tudo se tornasse tão automático assim. Passara meses estudando sobre assassinos, a perspectiva psicológica de cada um deles (um assunto que atraía Marla em específico), os modus operandi, as cenas de crime.
Tudo isso a fascinava de um jeito quase assustador, o que poderia causar certo estranhamento em qualquer pessoa que não fosse da área.
A melhor aluna, a destaque.
Olhou para o corredor. Todos passavam sem sequer olhar para ela, e isso a revoltava por dentro. Apenas quatro pessoas tinham reparado em sua existência — os quatro policiais que eram responsáveis pelos quatro estagiários. Todos deram um "bom-dia" automático e correram para dentro da sala de reuniões.
Nem um único policial reparou em sua presença.
Olhou para seu próprio sapato. Tinha uma pequena sujeira na ponta da sapatilha preta. Esfregou a sujeira, mas não saiu. Vestia calças pretas e uma blusa social azul.
Outros três policiais passaram. Olhou para o homem ao seu lado. Nada.
Acalme-se.
Olhou para a palma de sua mão. Tremia.
Anne.
Anne?
Não, Aya.
Aquele filho da puta.

Quando estava prestes a sair de casa, o celular de acendeu com o nome de sua mãe no visor. Juntou sua carteira e sua caderneta de anotações em uma pequena mochila, pegou um casaco e encarou o telefone por alguns segundos.
Apressada e sem jeito, correu pelo corredor e chegou à porta de casa. Girou a maçaneta, gritou um “até mais” para Patty e fechou a porta atrás de si. Tinha dormido cedo na noite anterior, mesmo depois de uma pizza comemorativa. O jantar caro ficaria para o fim de semana.
Conferiu o relógio. Ainda tinha como chegar na hora, mesmo não indo de carro ou de ônibus. Patricia ainda estava tomando café, então não conseguiria pegar uma carona. Foi para o ponto de ônibus mais próximo.
Quando chegou ao ponto, conferiu o relógio mais uma vez. Vinte minutos. Calculou que, quando o ônibus chegasse, chegaria à delegacia em cinco minutos. Se fosse a pé, provavelmente chegaria em cima da hora.
Era a única pessoa no ponto. Não havia sinal de que algum ônibus passaria, entre os poucos carros que se atreviam a se mostrar.
Conferiu o relógio. Vinte minutos.
Ajeitou o pequeno crachá que lhe fora dado no dia anterior. Tinha seu nome, o título “policial assistente” e um código de barras. Sorriu. Vestia um suéter azul-marinho e calças jeans pretas. Colocou o cabelo atrás da orelha, enquanto olhava para o final da rua.
.
Quis voltar para casa. Quis voltar e dormir.
Um carro branco entrou na rua, desacelerando ao se aproximar do ponto de ônibus. Era um carro caro, mas certamente não um dos exclusivos ao pequeno nicho rico de Longview.
Estremeceu ao lembrar dessas pessoas.
— Ei — chamou o motorista, abrindo a janela que era mais próxima de .
Ela abaixou o corpo e olhou-o. Reconheceu-o de algum lugar, não sabia precisar qual.
— Olá — retrucou ela, esforçando-se para lembrar de onde conhecia aquele homem. Vestia um blazer preto por cima de uma blusa social azul clara, levemente amarrotada. O rosto estava sério, mas sua voz era simpática e doce. Tinha interesse em fazer ouvi-lo, e conseguira.
— Você é da delegacia — disse, com o canto da boca erguido. — Foi selecionada ontem.
apertou os olhos. Fez uma careta envergonhada.
— Eu te conheço?
— Ainda não — ele falou, com um sorriso. — Também fui selecionado ontem. , não?
deu uma pequena risada envergonhada. Lembrou-se que ele era o outro selecionado, o que não parecia tão carrancudo. Tinha um rosto simpático, principalmente seus olhos.
Eram grandes e muito, muito opacos.
— Desculpe, não reconheci você — ela disse, a voz baixa. O homem sorriu em resposta, acompanhando com um gesto para que ela não pensasse assim.
— Sem problemas. — Fez uma pausa para apertar um botão do carro. — Quer uma carona?
olhou para a rua. Sem sinal do ônibus.
— Não negaria — respondeu e ficou de pé para ir até o carro. — Não quero ter a fama de atrasada já no primeiro dia.
Abriu a porta e entrou no carro.
— Meu nome é — continuou o homem, enquanto soltava o freio do carro e olhava-a nos olhos.
— ela retrucou, com um sorriso simpático.
assentiu e começou a dirigir. Emendou pouco depois, sem olhar para a moça:
— Sinto ser a pessoa a te informar, mas acho que você já está com fama de atrasada.
fez uma careta triste e colocou a mão na frente dos olhos.
— Já?
— Você roubou a cena ontem, na reunião — ele disse, com um pequeno sorriso. — Nem a delegada conseguiu competir com você.
— Não foi o jeito mais positivo de “roubar a cena” — ela retrucou, rindo nervosa.
— Acho que você roubou a cena de vários jeitos.
sentiu seu rosto ficar vermelho. Olhou para fora da janela, para a rua, com um sorriso envergonhado. olhou-a e comprimiu os lábios.
— Ficou com o pior mentor de todos — ele emendou.
O rosto de perdeu a vergonha e ela riu. Bom, realmente, nisso ela chamou a atenção. .
— Como é seu mentor? — ela perguntou, voltando a olhar para ele. olhava para a rua à sua frente, concentrado. Ele deu de ombros.
— Indiferente. Estava meio impaciente para nos entrevistar. Honestamente, ele parecia estar fazendo isso por protocolo, porque ia me deixar trabalhando sozinho de qualquer jeito.
franziu o cenho. Ajeitou o cabelo.
— Eles vão nos acompanhar pelo resto das investigações?
— Acho que vamos ter que mostrar relatórios para eles com frequência, mas nos acompanham os que quiserem — respondeu, com um tom de que não se importava muito com a pergunta ou com a resposta. — Mas diga, , como é ter o policial mais babaca como mentor?
Ela fez uma careta e deu uma risadinha. não tinha mais o semblante sério: parecia bem mais simpático e próximo.
não é babaca.
— Não? — questionou, com ironia, rindo. — Ele parecia achar graça da situação toda. Nós todos rezávamos internamente para que não fosse ele a nos chamar.
— Ele só é um pouco direto demais — ela disse, a voz baixa. Temeu que a achasse muito afável para ser uma policial.
— Bem, se ele não é difícil de lidar, vai virar — comentou , como se isso fosse algo natural. — Ele e aquela delegada. Julie. Stoner, não?
— Por que acha isso?
— Nenhum policial é tão bonzinho como eles pareceram de primeira. — Parou o carro em um sinal e suspirou. — Dei uma pesquisada ontem à noite. O meu mentor está com um pé na transferência. Ele quer sair de Longview, acredito que por medo.
— Medo de quê?
O sinal acendeu em uma luz verde. voltou a dirigir, com a voz preguiçosa em pouco interesse no tema da conversa. tentou adivinhar se o desinteresse vinha do assunto ser entediante, ou porque ele já sabia do que ela viria a dizer.
— Do que fez a delegacia abrir um concurso relâmpago de detetives.
— Não divulgaram o motivo do concurso — ela retrucou. Tentou não demonstrar sua confusão, imaginando que essa informação devia ter sido divulgada aos recém-chegados, mas ela não sabia.
Ele assentiu com a cabeça. Manobrou o carro para entrar no estacionamento da delegacia. Sem pressa, desligou o carro e abriu as portas.
— Quer um café? — perguntou, conferindo o relógio de pulso. — Estamos uns cinco minutos adiantados.
Olhou para . Tinha um sorriso convidativo, cuja negação poderia ser considerada um crime. Ela não podia negar: o sorriso dele era hipnotizante. conseguiria chegar a qualquer lugar que quisesse, apenas com seu rosto.
Bem, ela já estava entregue e era ridículo negar isso.
Um café não faria mal a ninguém, mas preferia um chá. Ela assentiu. Saíram do carro e se encaminharam para a porta que saíra do estacionamento, que já dava para um corredor próximo à cafeteria. perguntou, no trajeto, apenas trivialidades ligadas aonde estudara e o que ela fazia antes de prestar o concurso. Ela entendeu que o assunto que discutiam antes de sair do carro era algo confidencial.
Gostou de notar isso. Deu-lhe não apenas segurança sobre si mesma, como também a deixou mais à vontade com aquele homem tão atraente e cheio de si.
— Um chá — ela pediu. A moça bateu o pedido, mas só pagariam na saída. já estava sentado em uma mesa, na pequena varanda da cafeteria. Tinha um copo de isopor em sua frente e acendia um cigarro em seus lábios.
— Não divulgaram muito, mas há um mês, teve uma explosão em um armazém numa parte afastada da cidade — ele continuou, quando ela sentou-se à sua frente. Tinha os olhos apertados por causa da luz do sol que incidia contra ele. olhava-o com o máximo de atenção, como se ele fosse um professor.
— Não tiveram só quatro vítimas — comentou.
— Não, realmente. — fez uma pausa para bebericar o café, com os olhos apontados para enquanto organizava o que viria a falar. — Foi algo que aconteceu de repente, bem longe do centro.
— Identificaram as vítimas? — perguntou ela, bebericando um pouco do chá.
— Não. O armazém estava abandonado, mas disseram que os canos ainda tinham gás correndo, algo assim. O gás vazou, uma faísca de qualquer registro elétrico fez o resto do trabalho.
fez uma nova pausa para beber mais café. Olhava no fundo de seus olhos, enquanto ela o observava com fascínio. Ele gostava, e muito, daquela posição. Principalmente porque era inegavelmente admirável. Era como um quadro renascentista. Olhá-la só o fazia querer olhá-la mais.
Ainda assim, algo nela parecia estar morrendo de vontade de fugir.
— E você não comprou essa versão — ela comentou, com a sobrancelha erguida.
Ele sorriu enquanto tragava o cigarro.
— Não é questão de não comprar. Eu só acho que isso não está completo.
— E qual sua teoria? — perguntou , bebericando o chá.
estudou-a por um instante. não parecia o tipo de mulher que ia querer se aproveitar das informações ou teorias dele. De qualquer modo... Uma aliada assim, bem cedo, não parecia ser uma opção ruim. O que tinha a perder?
Ela parecia tão ingênua que, pelo contrário, ele só tinha a ganhar.
— Somos substitutos.
— Policiais de homicídios foram mortos no armazém? — ela perguntou. Seu rosto demonstrava um pouco de descrença, ou apenas dúvida.
Ele tragou mais uma vez.
— Talvez não todos de homicídios. Ainda assim, o concurso foi feito às pressas, procurando um número muito específico de candidatos. E usaram uma nova metodologia para decidir quem ficará com o distintivo mais rápido. Não te parece uma medida desesperada?
deu de ombros. Bebeu mais de seu chá.
— Por que não divulgar mais o concurso?
— Pressa?
Ela terminou seu chá. também finalizou seu café, enquanto a observava. Pela primeira vez, não olhou para ele.
Olhava para o chão.
.
— Então não somos candidatos. Nem tapa-buracos.
Ele a olhava com interesse.
— Você sabe que eles não vão mais arriscar os policiais experientes para ir para campo. O conflito vai ficar com a carne nova.
Ela olhou-o no fundo de seus olhos. Ele tragou de novo, sem tirar os olhos dela. Ela sentiu que poderia ler sua alma. Podia ouvir o que ele ainda não conseguiu expressar em palavras selecionadas. Podia ouvir seu convite. E respondia em silêncio.
Eu aceito.
sorriu novamente. Agora, seu sorriso era bem mais malicioso.
Sabia que ela jamais negaria.
— Vamos andando. Senão vamos nos atrasar — ele falou, jogando a ponta do cigarro no chão.
tinha olhos estonteantes. Mas não podia dizer que os seus também não exerciam certo nível de atração.
Dariam uma bela dupla.
Saíram da cafeteria sem dizer mais nada. Apenas tinham pequenos sorrisos nos rostos. Instintivamente, andaram separados em direção à sala de reuniões.

— Marla — chamou , enquanto se aproximava do banco. Marla ergueu a cabeça para ela.
— disse, com alívio. Sua voz escapou-lhe como se estivesse ofegante. Apontou para o seu lado no banco e tirou a bolsa para que se sentasse.
— Um minuto adiantada.
Marla deu uma pequena risada. passou a mão nos cabelos para prendê-los em um rabo de cavalo.
— Não perdeu nada, na verdade — comentou Marla, sem muita animação. Apontou, com a cabeça para o homem que lia Kafka. olhou-o com o canto dos olhos. Ainda concentrado em sua leitura, ele não pareceu perceber que era observado.
Marla apontou com o olhar para alguém que vinha pelo corredor. A primeira reação de foi olhar para trás. Assim que viu se aproximar, a porta da sala de reuniões se abriu.
— Entrem — chamou uma mulher. Colocou a cabeça para fora da porta e falou quase como um cuspe. e Marla perceberam que não era Julie, mas não conseguiam ter um palpite de quem poderia ser. Elas levantaram-se e foram para dentro da sala. Os dois homens as seguiram.
Quem os tinha chamado foi a policial responsável pelo leitor de Kafka, cujo nome Marla achava que fosse .
Assim que os quatro estavam dentro da sala, uma mulher loira fechou a porta atrás deles. A trinca soou. Sentiu-se como um rato na gaiola do laboratório. A moça loira tinha o rosto inchado e parecia um sapo. Postou-se junto à porta, com as mãos atrás do corpo.
Olharam para uma mesa longa no centro da sala. Julie Stoner estava sentada em uma cadeira na lateral da mesa, de costas para eles, e mordia a tampa de uma caneta. À sua frente, tinha os braços cruzados. A boca de Julie estava aberta como se ela tivesse sido interrompida de uma conversa sigilosa. Olhou para os visitantes com surpresa, quase susto. O olhar de era apreensivo, não perdendo o toque levemente irritado pela interrupção.
Um homem olhou para os quatro recém-chegados. Estava do lado de Julie, com as mãos unidas, os dedos entrelaçados. Era alto, seus ombros eram largos e suas mãos saltavam as veias. Sua pele era tão branca que parecia algo puro, intocável, que ao mais sutil contato ficaria manchada. Seus cabelos eram curtos e cacheados. Seu rosto parecia com o de uma cobra, com os olhos pequenos, quase brancos. Virou o rosto para olhá-los, e, por alguns segundos, pendeu os olhos sob Marla.
Ela sentiu um refluxo, mas engoliu rápido o suficiente para que ninguém percebesse.
Os outros mentores estavam na sala, longe da mesa, tomando seus cafés e fumando seus cigarros. Eles abandonaram suas posições e foram para a mesa, como se o momento em que seus pupilos entraram uma sirene tocasse anunciando o fim do intervalo. Sentaram-se de modo que, ao lado de cada um, havia uma cadeira vazia.
não parava de pensar como aquilo era ridículo.
seguiu para seu lugar, e assim fizeram , Marla e . suspirou em alívio. Sentia-se um pouco mais segura ao lado de . Ele continuava com os braços cruzados, as costas caídas na cadeira.
Olhou-a de lado. Seu rosto parecia levemente preocupado, mas conseguiu erguer o canto do lábio com discrição. Ela entendeu.
Isso tudo é teatro. É cena, é para deixar vocês com medo.
O homem com rosto de cobra clicou uma caneta e suspirou.
— Podemos começar agora.
soltou um suspiro baixo e olhou para novamente.
Relaxe.
Lembre-se, você é uma curiosa.
Julie ficou de pé assim que ele terminou de falar. Andou até um projetor, no canto da mesa, que apontava para a parede.
— Bom dia — ela começou, sem olhar para ninguém — Para começar, gostaria de felicitar novamente os escolhidos para entrar para a equipe de homicídios. A reunião de hoje foi convocada para apresentá-los para seus casos-teste.
Um feixe de luz foi lançado contra a parede oposta. Algumas pessoas encararam a parede iluminada, outras continuaram olhando para a delegada. Ela colocou as mãos atrás do corpo e falou, direcionando seu olhar entre cada um sentado à mesa, um por vez:
— Gostaria de apresentá-los ao superintendente Kerauc. — O homem com cara de cobra abaixou a cabeça em cumprimento, olhou para frente por um breve instante e fingiu escrever algo em seu bloco. — Ele veio até Longview exclusivamente para acompanhar o andamento de nossas investigações. As ordens do superintendente Kerauc devem ser seguidas à risca, sem exceções ou ressalvas. Perguntas devem ser feitas aos policiais responsáveis ou a mim, em últimos casos.
estudou o homem com rosto de cobra. Kerauc. Kerauc o quê? Não fazia muita diferença, na verdade. Não parecia ser o tipo de homem que gostava de ter pessoas falando por ele. Não, definitivamente não parecia ser um homem que fica calado enquanto alguém fala por ele. Estranhou.
Ah, sim.
Ele só não queria se dar o trabalho.
Olhou-o. Kerauc assentiu com a cabeça e olhou para Julie. Ela prosseguiu com o olhar apontado para a parede iluminada:
— Foi acordado que cada dupla de policiais deveria ficar com algum caso em andamento, na nossa cidade.
— Não têm outros policiais para isso? — perguntou , baixo, para seu mentor. Ele não respondeu. Olhou de lado para Julie, que os repreendeu com a voz dura, ainda olhando para a parede:
— Guarde suas perguntas para o final, e, por favor, não me interrompa novamente.
afundou um pouco na cadeira.
Puta que pariu.
fez uma careta para , com as sobrancelhas erguidas e os lábios arqueados para baixo. Ela deu uma pequena risada, baixa e disfarçada.
A delegada pegou um pequeno cartão e posicionou-o na frente do projetor. Uma fotografia de uma mulher apareceu, em preto e branco. Tinha um rosto cheio, redondo. Olhar para seus ombros daria a certeza de que ela sofria de obesidade mórbida. Sorria abertamente, seus dentes tortos dando um ar mais humilde à senhora. Os cabelos pretos eram claramente tingidos. Suas rugas eram pesadas e deixavam seu rosto mais caído. Parecia um buldogue.
— O nome dessa mulher é Juliet Ramsey. Ela foi encontrada carbonizada no chão da própria casa, no meio das cinzas. Tinha sido esfaqueada 32 vezes.
engoliu em seco. Pensou se, um dia, falaria sobre um crime tão hediondo com o mesmo tom indiferente da delegada.
— Ela foi assassinada pelas facadas, todas na parte da frente de seu corpo, e foi encontrada entre os escombros de sua casa.
A foto mudou. Era para o interior de uma casa de drywall pequena.
— Ramsey demorou para ser identificada. Seu ex-marido a identificou de sua casa no Maine, por fotos. Seu corpo estava em um estado extremo de desfiguração.
A foto foi alterada novamente. O rosto de Juliet, redondo, cheio, continuava assim, mas preto. Não sorria. As cascas de pele queimada estavam saltando de seu rosto (ou do que sobrou dele), por vezes avermelhadas, com o que sobrou como prova de que aquele saco de carne queimada fora, momentos antes, um ser vivo com sangue nas veias.
Bem, pelo menos um pouco de sangue. A barriga de Juliet estava dilacerada. A fotografia não mostrava o cenário atrás dela. acreditava que fosse o chão de sua casa.
— Uma dupla de policiais será responsável pelo caso de Ramsey.
— Quais as circunstâncias? — perguntou Marla, inclinando o corpo para frente.
— Confidenciais — respondeu a delegada, com o canto da boca erguido de modo discreto. — Até que haja um responsável pelo caso.
Marla recuou. Seu rosto estava franzido e demonstrava total atenção. Sua mente parecia trabalhar a todo vapor, já pensando em possibilidades, cortando pistas falsas. encarava tudo e irritava-se por sua cabeça estar mais focada em tentar separar a imagem do superintendente Kerauc da de uma cobra.
— Alguém mais estava na casa? — perguntou um policial.
A delegada fez que não.
Um silêncio pesado instalou-se na sala. conseguia sentir seu peso em suas costas, caindo na cadeira, fazendo-a mais baixa que todos os outros. Baixa, minúscula, invisível. Era uma criança no meio dos adultos, realmente. Nem sabia o que estava fazendo lá.
Talvez você devesse só desistir.
Cale a boca.
Olhe para Marla, . Olhe para ela.
Olhe para frente.
— Ficaremos com esse — ela falou.
virou o rosto para ela bruscamente.
“Você é louca?”, ele moveu os lábios.
— Ficarão? — perguntou Julie, em um tom de confirmação, com as sobrancelhas levemente arqueadas.
— Não houve diálogo quanto a isso ainda, Julie — falou , depois de balbuciar um pouco. — Pode... — Ele molhou os lábios. — Reservar esse para nós?
— Não — respondeu Kerauc, com sua voz grave entoando por toda sala. Ele fitava e com atenção. Suas mãos estavam abertas, as palmas unidas, com um lápis no centro delas.
e se olharam por um momento breve. Ela ergueu a sobrancelha e expressou indiferença, talvez um pouco de desânimo.
— Ficaremos com Ramsey então — confirmou , olhando para .
Ela assentiu com a cabeça para ele. Tinha a ilusão de que estavam trabalhando em dupla, ela dando sua opinião, talvez estabelecendo suas vontades. No entanto, a verdade era que estava com muita, mas muita raiva dela.
— Todo de vocês — falou Julie, e jogou na frente deles uma pasta parda.
Trocou as fotos, mas e já não prestavam atenção. bufava baixo, enquanto lia a ficha de Juliet Ramsey.
O que essa garota está fazendo que eu faça?
Fechou os olhos.
Não posso parar agora. Ela já está aqui.
Olhou de lado. Ela mordeu o lábio, nervosa. Percebeu o que tinha feito.
Não posso parar agora.
Não, não agora.
Colocou a mão no bolso. Tocou o anel e soltou o ar de seu nariz.
Ariana. Olhe para cá.
Continue. Acalme-se. Precisa ser ela.
Não obteve resposta.
— Próxima — falou Julie, trocando a foto do projetor.
não estava mais prestando atenção.

fechou a porta de seu escritório depois de dar passagem para que entrasse. As persianas estavam fechadas e apenas uma série de filetes de luz idênticos conseguia transpassar e atingir o chão. O tom rústico das cores do cômodo conseguia trazer certa hospitalidade, mas, definitivamente, o que predominava era a sensação de estar em um lugar escondido.
sentou-se na mesma cadeira que se sentou no dia anterior. Curiosamente, seus sentimentos enquanto estava sentada naquela cadeira não tinham mudado.
Olhou para . Ele estava de costas para ela, mexendo em algum livro, de frente para a estante. Inclinou a cabeça para o lado, mas não conseguiu ler o título.
Tremeu. segurava aquele livro como um homem qualquer seguraria a bíblia. Olhava para ele como se isso fosse livrá-lo de algo ruim. Não interrompeu.
— Em que você estava pensando? — ele disse, surpreendendo-a. Virou o corpo para ela, mas não olhava em seus olhos. Em vez disso, apenas sentou-se em sua cadeira. Sua voz era calma, mas seus olhos eram incisivos.
— Alguém teria que pegar o caso.
— Ninguém estava muito ansioso — ele retrucou. Pegou um cigarro e acendeu-o.
— Os outros eram tão difíceis quanto — ela tentou justificar-se novamente, ao sustentar uma voz firme.
estava claramente nervoso, mas não entendia o porquê. Não parecia ansiedade por um caso difícil.
Era mais como se algo fugisse ao seu planejamento.
Olhe para mim.
— O casal asfixiado parecia mais promissor — ele comentou, a voz baixa. Jogou a pasta de Ramsey em cima da mesa.
estremeceu. O jeito com que falava como se estivesse se referindo a um filme, um jogo, qualquer coisa, menos um cadáver.
— Sempre fique com o casal asfixiado, menina — ele falou, e fez uma breve pausa para tragar. — São sempre casos mais simples.
desceu os olhos para a foto do rosto feliz e vivo de Juliet Ramsey, preso por um clipe de papel do lado de fora da pasta. Parecia uma senhora respeitável, bondosa.
Bem, sua própria mãe também parecia. Na verdade, a Sra. era uma coitada, de fato.
— Acorde, — ele falou, com a voz raivosa, batendo a mão na mesa. — Você precisa ficar acordada.
— Eu estou, senhor — respondeu, tremendo e olhando para baixo. — Eu estou acordada.
— Isso é importante — ele continuou, ficando de pé e tragando novamente. — Isso é o que vai dizer se você vai entrar na delegacia ou não. Então, você não pode ser a porra de uma precipitada.
A mão de tremia. via seu nervosismo, sua mão tremendo com o cigarro entre os dedos. O policial andou até atrás dela e alcançou um cinzeiro para bater a ponta do cigarro.
A respiração de estava rápida, ofegante. Seus olhos tremiam e seus ombros se contraíam ainda mais.
Respire.
Respire.
— Eu te chamei porque você parecia ser uma pessoa que sabia o que fazer. Que não era impulsiva.
— Não sou — ela murmurou, abrindo a pasta.
— Você é uma impulsiva, . Você não se aguenta.
— Não, eu não sou impulsiva — repetiu, a voz um pouco mais alta.
— Você não vai chegar em lugar nenhum assim, novata. Ninguém suporta alguém precipitado e desesperado por atenção.
Nome: Juliet Ramsey (26/5/1940).
Filiação: Carl Gordon (17/06/1920) e Harriet Ramsey (30/08/1922).
Família: Dahlia Ramsey (15/10/1980) e Patrick Ramsey (5/3/1983).
Olhe o rosto dela.
O rosto dela.
Marla.
— Ninguém.
Ninguém.
Acorde.
— Ela teve uma filha com quarenta anos?
— chamou, irritado.
— Por que você está preocupado comigo? — perguntou ela, olhando para trás com rapidez.
franziu o cenho. Tragou novamente.
— Por que você está preocupado com o que pode acontecer comigo?
— Porque eu sou responsável por você — ele retrucou, como se fosse algo óbvio, com uma careta.
— Não, não é. Eu sou responsável por mim. Não faz a menor diferença para você quem fica ou quem sai. Por que você está tão preocupado comigo?
— Porque... — Hesitou por um momento em que apertou a ponta do cigarro no cinzeiro. — Se você sair, eu sou chamado a atenção.
Ela franziu o cenho e fez uma careta debochada.
...
— Não me chame de — ele cortou-a.
— Não me chame de . Eu não sou sua amiga.
Ele sustentou seu olhar. Parecia prestes a pular no pescoço dela e fazê-la engolir o que sobrou do cigarro em suas mãos.
Mas aquela não era a morta que ele viu há alguns segundos.
Os olhos dela estavam opacos. Ela ficou de pé e recuou inconscientemente.
— Não tente passar por cima da merda da hierarquia, garota. Você devia ter esperado minhas ordens para aceitar algum caso — ele disse, com rispidez. Sua voz saía baixa, por dentro de seus dentes e do maxilar rígido.
— Não me diga que se importa com hierarquia — ela retrucou, dando um passo a mais para perto dele. — Vocês queriam atitude de nós. Todos os outros novatos que deram os sinais para pegar um caso.
— Você é menor aqui, . Você é cachorro pequeno.
Ela apertou os olhos. Seus pulmões expeliam fogo.
Olhe para mim.
Ele não queria uma pequena. podia lê-lo inteiro.
sorria, por dentro. Ele a olhava e sorria.
— Por que você fez isso, garota? — ele perguntou, tragando mais uma vez.
Menos de um metro separava-os, mas por dentro estavam enclausurados na mesma caixa.
— Me parecia um caso interessante. — Ela deu de ombros para responder.
Ele não respondeu. Riu com deboche.
— Eu conheço o seu tipo, . Você não se aguenta perto de uma figura de autoridade.
— Não? — ela perguntou, com um sorriso pequeno.
Ela lia-o por completo.
— Você não conseguiu se conter na frente do Kerauc.
— Não. Isso foi você.
Boom.
murchou. Aquela garota, aquela criança olhava-o por cima. E ele não conseguia subir mais alto.
Você queria se mostrar pro Kerauc. Você que não se aguentou quando sua pupila foi mais rápida e determinada que você.
Ele olhava os olhos daquela jovem. Estavam vívidos como já vira poucos na vida antes. E, por Deus, como aquilo era paradisíaco. O amor, o desespero, a audácia de uma garota prestes a explodir.
Ela tinha os olhos mais lindos que ele já vira quando estava tomada por ira.
E ele sabia que ela não queria se mostrar para Kerauc. Não, ele sabia que uma mulher como jamais se colocaria numa posição humilhante por causa de um homem engravatado.
— Por que você não queria ficar com o caso de Ramsey? — ela perguntou, depois de algum tempo em silêncio.
olhava-a sem reação. não soltava-se dos olhos dele. Não, ela desviava-o a cada instante. Não poderia perder nada, nem um único milímetro daqueles olhos. Prendia-o de uma forma que ele se sentia angustiado, tentando fugir sem se mexer.
— Porque tinha casos mais fáceis — ele respondeu, com um pequeno sorriso. — Por que você quis ficar com o caso de Ramsey?
Ela sabia que ele mentia. Sabia que tinha planos, e que ele não queria sair deles. Principalmente por causa de uma mulher impulsiva.
Mas não era impulsiva. Ao menos, não no sentido pejorativo.
— Porque me parecia um caso interessante. Eu sou curiosa.
Ela sorria.
iria conseguir fazer tudo aquilo. E não precisava se preocupar. Ele a incluiria em seus planos cedo ou tarde.
Olhe para mim, .
Eu sou uma bomba-relógio.
O dito pelo não-dito.
— Vá atrás dos outros. — Ele deixou o cigarro no cinzeiro e voltou para sua cadeira. — O dever de casa de vocês será ir até cada cena do crime, juntos. Se vão seguir as investigações juntos ou não, é com vocês. Falem conosco se tiverem dúvidas.
Ele riu da última frase.
— Por que isso?
— Queremos saber o mais inútil.
riu. Colocou a mochila nas costas.
— Eles estão na sala?
Ele assentiu.
É um grande começo.
Estendeu a pasta para , que segurou-a olhando nos olhos de . Nenhum dos dois tinha conseguido partir aquele vínculo ainda, e nem queriam.
— Chamamos isso aí de “andar no Trem da Alegria”. Ir para as cenas do crime, ver sangue e marcas de bala. Alto-astral.
Ela riu novamente. Saiu da sala sem falar mais nada.
tocou o anel novamente. Ficou de pé, e encaminhou-se para a sala de Julie. Todos os outros policiais já estavam lá, aguardando-o. Kerauc estava no centro da sala, sentado em uma mesa. Falava com outros policiais, mas não deixou de escorregar o olhar para . Julie, tremendo, fugiu para perto de . Não conseguia manter sua postura perto de Kerauc.
— E então? — perguntou ela, baixo. Estendeu um cigarro para ele.
aceitou. Tragou.
tem uma personalidade insuportavelmente forte.
— Isso é bom. Gostei da atitude dela de querer o primeiro caso de uma vez. Corajosa.
— Ou só burra.
Ela deu de ombros.
— Não me pareceu.
teve um estalo.
Marla. É esse o nome dela?
Sorriu.
— É um grande começo para ela. — Fez uma pausa para sorrir. — Acho que estou criando um monstro.
Se estivesse criando algum tipo de rixa com a mulher ruiva, seria o primeiro a incentivar.

It’s a hell of a start, it could be made into a monster, if we all pull together as a team…


Capítulo 3 — Welcome to the machine

Welcome my son… Welcome to the machine…

Marla, e estavam indo para o estacionamento da delegacia, e ficara para trás. A sala de reuniões estava vazia e, pela janela, viu e acendendo seus cigarros enquanto esperavam por ela no estacionamento. Olhou para uma foto de Juliet Ramsey, contra a luz da janela, com a persiana fechada. Seu rosto era bem redondo, seus olhos estavam um pouco fechados pelo sorriso. Não conseguiu identificar de onde aquela foto poderia ter saído. Os cabelos cacheados estavam atrás de suas orelhas e seu rosto gritava “mãe”. Ela era uma mãe em sua forma mais pura, simples. O sorriso de uma mãe, os olhos. Como se, em sua imagem, se mesclassem todas. Como se pudesse ter qualquer personalidade do mundo e todas as mães do mundo se mesclassem nela.
Percebeu que segurava a foto com as pontas dos dedos brancas.
Pegou a pasta do caso de Juliet e guardou a foto dela no bolso. Era uma cópia, então imaginou que isso não teria problema.
e fumavam perto do carro que usariam, enquanto a esperavam. Falavam algo baixo entre si, que não conseguia identificar o quê. Era como se só falassem murmúrios. Marla não participava. Estava apoiada na mureta do estacionamento, ao lado do carro prata de , e folheava os relatórios de seu caso. Seu olhar era sóbrio e carregado, mas quando apareceu, pareceu ficar um pouco mais leve.
jogou metade do cigarro no chão e pisoteou a bituca até a fumaça sumir. chegou a abrir a boca para falar algo, seguir a conversa, mas desistiu com um suspiro e voltou a tragar.
— Com que carro? — perguntou, soltando a última tragada para cima.
deu de ombros, e e Marla não responderam.
— Tudo bem — ele prosseguiu, com um suspiro que pareceu bufar. — Vamos com o meu.
destrancou as portas de seu carro, um Audi azul-marinho, com cara de recém-comprado.
Ou recém-ganhado.
Não seja tão invejosa.
jogou o final do cigarro no chão e sentou-se no banco do carona, enquanto e Marla se acomodaram no banco de trás. Marla olhou-a e deu um pequeno sorriso.
— Relaxe.
tentou retribuir o sorriso, mas não conseguiu. Talvez tivesse parecido apática.
— Qual vai ser a primeira parada? — perguntou.
— A casa de Juliet Ramsay — falou Marla. — Vamos fazer na ordem com que a delegada Stoner nos mostrou tudo.
— É mais prático ir para a rua em que encontraram o garoto — falou , com a voz firme. — É mais perto daqui.
— A casa de Ramsay fica bem longe — retrucou, a voz baixa.
virou o rosto para ela, tocando o queixo em seu ombro direito. Olhava-a, mas sequer dava o trabalho de ser em seus olhos.
— Vamos para o lugar mais longe e depois passamos pelos outros no caminho da volta — falou . Sua voz estava cansada.
— Qual o endereço de Ramsay? — perguntou , dando a partida no carro.
abriu a pasta de Juliet e olhou, na primeira folha do relatório, o endereço do crime.
— Vila Lui, casa 21. Em Blanche.
— Ela era imigrante? — questionou, enquanto manobrava para sair do estacionamento. — Blanche é um bairro de imigrantes.
— Os pais eram irlandeses. Ela nasceu lá e veio para cá.
— Já leu o arquivo dela?
— Só as primeiras folhas.
Passaram alguns segundos em silêncio, até que Marla puxasse um assunto:
— Quem vocês acharam pior? Stoner ou Kerauc?
deu uma pequena e baixa risada, como uma tosse que lhe escapou.
— Julie só estava muito tensa por causa da pressão de escolher a equipe nova — defendeu-a, o rosto impassível. — Kerauc não está ajudando em nada.
— De fato, ele parece querer atrapalhar — comentou Marla. — E ele me assusta um pouco...
— Não só você — cortou-a. — A Julie só faltava gaguejar com ele.
— O que ele veio fazer? — perguntou Marla.
suspirou baixo. Não foi discreto.
— Vai acompanhar nossos progressos e um caso que já estavam investigando.
franziu o cenho em deboche.
— Ele não poderia se importar menos com a gente. Com certeza, é alguma coisa maior que nós.
Seu tom foi quase conspiratório. Parecia irritado para um comentário tão desimportante. não achava que valia a pena se incomodar com (ou sequer pensar em) o que quer que o agente Kerauc estava fazendo lá. Porém, parecia pessoalmente envolvido, ou ofendido, com toda a situação.
— O que realmente temos que fazer lá? — perguntou , cortando o assunto. — Os supervisores vão estar lá?
— Já coletaram material e provas antes — respondeu, com os olhos direcionados para pelo retrovisor —, vamos só fazer reconhecimento de cena e tentar achar mais alguma coisa. Se acharmos algo que não viram antes...
— Pretencioso acharmos que vimos algo que ninguém viu — Marla comentou, folheando seu próprio caso em seu colo.
concordou com a cabeça. O resto do carro continuou conversando, mas ela não ouvia mais depois de abrir a pasta de Juliet Ramsey de novo. Estremeceu com uma ansiedade agradável. Era extasiante imaginar que fazer justiça sobre um assassinato era algo que ela iria escolher. Talvez não descobrisse o assassino, o caso permaneceria um mistério e Juliet nunca teria sua justiça. Mas, se dependesse dela, alguém seria preso, ficaria preso por anos. A justiça seria feita e alguém definharia por todos os erros que fizera em sua vida.
Sorriu. Estava entrando no clima. Era isso que quis dizer com o motivo de ser um detetive de homicídios?

Blanche era um carro perto da saída da cidade. A maioria das casas era pequena, mas antigas, bem-cuidadas pelos moradores que tendiam a ser das mesmas famílias há gerações. Era uma vizinhança esquecida pela prefeitura e pelo condado, e que deixava claro que não fazia questão de ser lembrada. A pequena praça no centro do bairro se chamava “Praça dos Imigrantes” por uma razão.
Não se aproximem, estranhos. Somos nós por nós.
A Vila Lui ficava em um ponto mais afastado da vizinhança. Era uma vila sem muros, só com uma cerca de ferro separando-a do resto do bairro. estacionou o carro na rua, perto da entrada. Enquanto se preparavam para sair do carro, ele avisou, com a voz autoritária que já tinham entendido que era sua voz natural:
— Não deixem claro que somos da polícia. Alarde não é uma boa opção.
saiu do carro e apertou os olhos contra a luz do sol. Andou até a frente do carro, perto da entrada da vila. parou ao seu lado, ajeitou o blazer e colocou os óculos escuros. Enquanto Marla e foram até a mala para pegar o equipamento de limpeza individual, sussurrou para :
— O sapato dele é mais caro que nossos salários somados, e quer falar de discrição.
não queria comentar, mas realmente era irresistível. Olhou para de lado. Por um segundo, ele sustentou o olhar dela enquanto fechava a mala.
— É. Ele é só um cara rico querendo provar algo para alguém.
Sabia que era impossível ter ouvido, mas ele franziu o cenho como se tivesse.
Andaram juntos em direção ao arco de ferro da entrada da Vila. Não havia um portão realmente, já que ele sempre estava aberto — e ainda se não estivesse, ele estava tão enferrujado que um chute o transformaria em pó. As hastes de ferro que formavam a cerca eram altas o suficiente para atrapalhar a vista de algumas das casas, mas poderia ser saltado sem dificuldades. Era um campo fechado, mas não tão fechado. Quase como uma armadilha.
foi o que tomou a frente para que passassem pelo arco. O som estridente de algo rangendo era a campainha de todas as casas: logo várias pequenas cabeças (a maioria não devia passar dos dez anos) surgiram pelas portas, janelas ou vielas.
Alarde não é uma boa opção.
agarrou-se à sua pasta nesse momento. Sentia-se uma intrusa, mesmo que nenhum dos rostos sugerisse algo além de curiosidade. O céu acinzentado acima deles causava a sensação de que estavam em uma paisagem de fotos dos anos 60. As casinhas eram pequenas, mas de aparência acolhedora: a maioria tinha uma bandeira saudosista na porta e cores vibrantes nas paredes já sujas. A distância entre as áreas de cada casa era grande, como se um pequeno muro invisível existisse também ali dentro. Um microcosmos do mundo. Cada construção parecia algo falso, uma maquete, mesmo que atraente. sentia algum tipo de radiação emanando de cada casa e cada sorriso.
Eles sabem. Eles sabem quem vocês são.
E a melhor parte é que vocês não sabem quem eles são.
A parte mais baixa, nem cidadãos eles são.
Estranhos em uma terra estranha.
A Vila Lui era um bloco de concreto que flutuava sob Longview, aparte do resto da cidade.
olhou em volta. Uma senhora muito, muito idosa a observava. Sorriu.
Talvez fosse um bloco enterrado por debaixo das terras da cidade. Uma base que precisavam, mas fingiam não ter.
E, ainda assim, eles olham para você e debocham. Porque eles sabem.
Você não, menina. Você não sabe de nada. Você é engrenagem nova, não conhece a máquina por inteiro.
Eles sabem o que está esperando por você. Eles conhecem a violência.
— Casa 21 — anunciou Marla, apontando para uma das últimas casas da vila, cujos fundos iam de encontro às grades de ferro. Passaram pela rua principal e por algumas vielas, sem que tivesse sequer reparado. Marla passou para e um par de luvas e de toucas para sapatos para cada um, que as vestiram olhando para a casa queimada.
Olharam para o que restou da casa de Ramsay. A casa ainda estava de pé, mas não tinha mais cor. Uma das laterais da casa estava completamente destruída. O telhado tinha desmoronado em um dos cômodos, mas permanecia inteiro em outras partes. Toda a construção estava cinza ou preta.
olhou para todo aquele esqueleto e sentiu-se na frente de um monstro colossal, morto. Uma força divina, indestrutível, morta. Olhou para o chão. Podia ver seu fantasma. A casa tinha a cor do céu.
Sentiu o telefone vibrar, mas sabia que não estava sequer ligado.
— Quer um momento? — perguntou Marla, por detrás de .
Olhou para a casa em chamas.
.
Queime a bruxa, .
!

Olhou para Marla por cima do ombro. Fez que “não” com a cabeça. Com ao seu lado, tomou a frente e empurrou a porta de madeira.
Os móveis de Ramsay continuavam todos em seus lugares, cobertos de cinzas espessas. Talvez alguns móveis, como seu sofá, tenham virado as próprias cinzas. A saleta não tinha separação com a cozinha, e um pequeno corredor levava aos dois quartos e ao único banheiro da casa. O centro da saleta tinha o chão de madeira bem queimado, mas com visíveis manchas de sangue.
entrou na saleta e permaneceu perto da mancha de sangue no chão. Analisava com atenção o fantasma de uma poça, com algumas gotas escapando. Tinha a foto de Juliet em sua cabeça. Sentiu o coração palpitar, mas não sabia por quê.
— O que estamos procurando aqui? — perguntou , baixo. ajoelhou-se para perto da madeira manchada. Ele acompanhou-a, olhando para seu rosto.
tinha o rosto concentrado no chão. Passou o dedo pela madeira seca.
— Consegue pegar lascas da madeira para fazermos testes com o sangue? — perguntou ela, olhando para .
Ele franziu o cenho.
— Acredito que sim.
Abriu a pequena bolsa e passou um saco plástico para . tirou do bolso um pequeno canivete e entregou-o a ela, que levantou uma pequena lasca de madeira do centro da mancha. Enquanto Marla e entravam na cozinha, ela tirava uma lasca de uma gota de sangue no chão e de uma das extremidades da poça. Colocou as lascas no saco plástico e fechou-o.
— Anote seu nome no saco.
passou para uma caneta preta. Ela olhou-o com atenção. Seu rosto estava sóbrio, extremamente indiferente e sério. Não conseguiu ler nada. Só que ele seguia olhando-a, sem deixar seus olhos fugirem.
Ela colocou o saco na bolsa de provas. Preferiu não o deixar nas mãos de .
— Ela morava sozinha? — perguntou Marla, abrindo um dos armários.
— Com o filho caçula. A filha mais velha tinha se mudado há alguns anos. — olhou-a para responder, mas logo passou a dedicar sua atenção à janela. — Ela não estava na casa na hora do incêndio.
— E o marido está fazendo o que no Maine?
olhou para a porta. Além do fogo, toda parte de metal estava intacta.
— Divorciados. O marido é casado com uma mulher e tem dois filhos do novo casamento.
— Pensão? — perguntou, indo até o corredor.
— Em dia.
Marla fechou a porta do armário. voltou para a porta e pegou o celular no bolso.
— chamou —, venha para cá.
seguiu para o corredor, com Marla atrás. continuou perto da porta.
— Que força esse cara faz para ser um pé no saco — observou , em um comentário baixo. Estava de pé, perto da porta do quarto de Juliet. No pequeno quarto, havia apenas uma cama de casal e um armário.
— Por que me chamou? — ela perguntou. Mudar de assunto seria mais proveitoso.
Marla olhava para o quarto por cima do ombro de , como uma criança curiosa.
apontou para o quarto com a mão. entrou no quarto e foi até a cama queimada, mas perfeitamente organizada. Passou a mão no lençol.
— Alguém viu como o incêndio começou? — Marla perguntou.
não soube responder. olhava para ela com um pequeno sorriso, observando-a a estudar a cena. Podia ver seus pequenos olhos brilhando. Sentia-se como se estivesse tendo a chance de assistir uma estreia de um novo clássico.
Ele sabia bem o que estava na cabeça daquela moça que parecia uma criança.
foi até o armário. Abriu-o e passou a mão pelas poucas roupas que tinha ali. Duas bolsas estavam em uma gaveta do armário, dobradas e fechadas com cuidado, mas uma terceira bolsa estava aberta.
olhou para a cama novamente. Voltou a olhar para o armário, em total silêncio. Pôde ouvir o som dos passos de Marla voltando para a sala, deixando ela e sozinhos. Ele cruzou os braços.
— É só uma bolsa, . Ela não vai fazer nada especial.
— Não falaram com ninguém da vila sobre o incêndio — ela observou, fechando a porta do armário. — Acha que conseguimos fazer algumas perguntas?
— Talvez — ele deu de ombros. — Mas acho melhor liberarmos nossos amigos. Eles parecem ansiosos.
— Prefere deixar eles irem sozinhos? — aproximou-se de com as mãos na cintura. — Para mim, não faz diferença. Posso te acompanhar na sua cena.
— Não sei se eles estão realmente pouco interessados, ou se não viram nada.
deu de ombros dessa vez. Voltou para a sala, diretamente para a bolsa com material para recolher evidências.
— Vamos fazer umas perguntas para a vizinhança — anunciou, enquanto tirava as luvas. — Podem ir para o carro, se quiserem.
— Não vão pegar mais evidências? Se formos embora, vão começar a limpeza — perguntou , com o cenho franzido. Sua voz, entretanto, não subira meio volume.
— Não achamos nada muito relevante — murmurou , enquanto colocava alguns materiais na mochila sem qualquer cerimônia.
Olhou para a janela. A madeira de suas arestas se desfazia em cinzas. Era como neve escura, desfazia-se nas mãos.
Pule.
Cintilam contra a luz da janela, grudam na sua pele.
Pule. Pule!
Sentia suas mãos suarem. falava algo com e Marla, mas ela não conseguia ouvir.
Olhe para a janela. A madeira ainda chamusca. Ninguém consegue ver isso, só você.
Há uma criança do lado de fora. Ela está parada e olhando para frente. Para a casa-mausoléu. Para os fantasmas.
Evite todo tipo de contato visual.
Ataque de pânico.
Respire fundo, mas o ar no seu pulmão está quente.
Se você falhar, você queima.
Olhe para mim, . Eu não vou embora daqui.
Tocou o bolso do jeans. Sentiu a foto de Juliet quente. Tirou-a.
Ela não sorria mais.
Você fez isso.
— chamou .
Você queimou esse lugar.
Não reaja. Respire.
Queime a bruxa.
!
Guardou a foto no bolso de novo. Tirou as luvas e foi até a porta, onde a esperava.

e Marla foram para o carro com a bolsa de evidências. fechou a porta da casa atrás de si e desceu um par de degraus para a rua da vila.
— Você está bem? — perguntou . Tocou seu ombro.
olhou-o com um susto. Não se lembrava de algum momento que tivesse tocado seu corpo antes. Isso era incômodo.
— É um clima estranho para mim — suspirou e voltou a olhar para a rua. — Vou custar a me acostumar.
Respire.
deu um sorriso reconfortante.
— Não demora tanto assim.
Andaram até a casa mais próxima, com uma bandeira colombiana na janela.
— Você fala espanhol? — perguntou ele. estudou a casa: cores sóbrias, nada na porta ou nas janelas além da bandeira. Poderiam jurar que estava sem moradores.
— O suficiente para pedir um frango com batatas. Não acho que ajuda muito em um depoimento.
bateu na porta três vezes e apertou o botão de um pequeno gravador, que guardou no bolso do blazer. Não pediu autorização ou perguntou nada para . Ela olhou de lado para o gravador, mas não falou nada. Uma mulher de meia-idade, alta e de longos cabelos negros atendeu-os. Seus olhos pareciam grandes avelãs e olhavam para os dois policiais com curiosidade, mas apreensão.
— Sim? Em que posso ajudar? — perguntou. Seu inglês era fluente. se perguntou se observar isso era um pensamento babaca.
— Bom-dia — cumprimentou , mostrando sua credencial da polícia de Longview. — Gostaríamos de fazer algumas perguntas sobre o que aconteceu com sua vizinha, Juliet Ramsay. É possível?
A mulher hesitou por um momento. Saiu da casa e fechou a porta atrás de si com cuidado, sem fazer barulho.
— É possível, sim, mas gostaria que pudesse ser aqui fora.
franziu o cenho. A mulher se apressou em se explicar:
— Nossa vizinhança é muito unida. Todos sempre sabemos o que acontece aqui dentro.
— Por quê? — perguntou .
A moça suspirou.
— Aqui todos precisamos nos ajudar. Nunca teve polícia por aqui e a gente se cuida sozinho. É bem raro alguém sair daqui. Não somos bem-recebidos lá fora.
— “Lá fora”? — perguntou .
— Fora de Blanche — ela respondeu, sinalizando com a mão, como se indicasse algo muito além do que podiam ver.
— Perdão, senhora...
— Cortez.
— Sra. Cortez — prosseguiu ele —, mas acredito que a polícia ia ajudar muito vocês.
— Acredite, rapaz — ela falou, com as sobrancelhas erguidas. — Já tivemos coisas piores que um incêndio, e não foi a polícia que resolveu.
olhou para baixo e engoliu em seco. Sem abrir um grande espaço para reflexões, emendou com uma pergunta:
— A senhora sabe precisar que horas começou o incêndio?
— Foi de madrugada, umas, o que, três da manhã? — Cruzou os braços e olhou para cima. — Algo assim. Ninguém estava acordado nessa hora, mas acordamos com o barulho e a luz. Foi bem rápido, mas não conseguimos apagar tudo a tempo.
— Não chamaram os bombeiros? — perguntou .
— Chamamos, mas eles chegaram depois que já tínhamos apagado.
— E o filho de Juliet Ramsay? Ele estava do lado de fora na hora do incêndio? — voltou a fazer as perguntas.
Cortez ficou alguns segundos em silêncio.
— Eu não vi. Mas não sei se ele estava do lado de dentro da casa. Vi ele chegando da escola e depois não soubemos mais dele até a hora do incêndio.
— O menino está desaparecido desde o dia do incêndio, na madrugada de antes de ontem para ontem.
Cortez não reagiu. Comprimiu os lábios e balançou a cabeça negativamente de leve.
— Patrick não ia conseguir fugir do incêndio sozinho.
— Como Patrick é?
— Bem pequeno, miúdo — ela girou a mão para apontar para baixo — Fraquinho. Juliet dizia que ele nasceu muito pequeno, então tinha problema de crescimento. Todos nós tínhamos que lembrar das alergias dele quando ele jantava na casa de alguém.
Interrompeu-se para limpar a garganta. sentia-se muito mal em estar fazendo uma mulher falar da família vizinha, com uma mulher morta e um menino desaparecido.
— Elas tinham muitos desafetos?
— Não, não mesmo. O pai de Patrick e Dahlia às vezes brigava com Juliet, mas ele sempre dava a pensão deles sem atrasar e trocavam mensagens.
— Ele mora no Maine, não?
— Mora.
— Dahlia tinha algum namorado? Ou Juliet? — emendou.
— Não. Dahlia não vive mais aqui. E Juliet nunca namorava. Eram bem reservados e viviam praticamente uns pelos outros.
— Vocês conseguiriam ver se alguém tivesse entrado na casa — comentou .
— Sim, alguém teria visto. Mas acredito que de madrugada seria mais fácil para alguém entrar.
— E as janelas?
— Juliet trancava todas, à noite. Com cadeado do lado de dentro e tudo. Tinha medo de alguém fazer algo com Patrick.
franziu o cenho.
— Fazer algo com Patrick? Por que alguém iria querer tentar fazer algo com ele?
Antes que a Sra. Cortez respondesse, a cortou:
— Como era a janela da casa?
— Ah — a mulher retomou —, era de madeira, toda fechada, sem nenhuma fresta. E tinha um ferro protetor do lado de fora.
— Difícil de arrombar.
A Sra. Cortez concordou.
— Impossível até.
— Agradecemos a colaboração, Sra. Cortez. Se precisarmos, como podemos contatar a senhora? — perguntou .
— Batam na minha porta. Sempre estou em casa.
Soara incrivelmente grosseira e simpática ao mesmo tempo.
Com um sorriso, ela entrou em casa novamente e fechou a porta. e se olharam.
— Não sabia que Patrick estava desaparecido.
— Ele voltou para casa depois do colégio, mas sumiu na hora do incêndio.
— Quem colocou fogo na casa também o sequestrou?
olhou para trás. Algumas janelas se fecharam com seu movimento.
— É uma hipótese.
começou a caminhar em direção ao portão. seguiu-o, percebendo todos os olhares que os acompanhavam pela larga rua da Vila Lui.
Nós sabemos onde você mora.
Estremeceu. Sentia-se chutada para fora daquele microcosmos. De alguma forma, eles sabiam.
Queime a bruxa.
Queime a bruxa!


Jimmy Sundance tinha sido encontrado em uma viela perto do colégio em que estudava, na parte nobre de Longview. Tinha um tiro na barriga e um no peito, e tinha perdido a carteira, o celular e o relógio de marca. Tinha 16 anos. Jimmy Sundance era o caso de , que colocou suas luvas e tirou fotos do local com sua câmera. Tirou algumas amostras de algo que não entendeu o motivo, e voltou para o carro.
E foram para a cena do crime de .
não fez comentários, mas para si mesma, teve nojo e um pouco de raiva da forma com que encarava toda a situação. Parecia que ele estava em um laboratório, e não onde um garoto de 16 anos tinha sido assaltado e assassinado.
Estacionaram o carro perto da entrada de um parque em uma região periférica da cidade. Marla e preferiram não sair, mas fizera questão de acompanhar . Caminharam calmamente em direção ao centro do parque, onde o corpo de uma mulher tinha sido encontrado.
— Acho que eles estão enciumados com a nossa proximidade — murmurou , com uma risada um pouco debochada.
Ela franziu o cenho e riu.
— Não exagere. Eles só preferiram nos dar privacidade.
Ele olhou-a de lado. Mordeu o lábio e desviou o olhar.
— Qual é o nome dela? — perguntou , quando chegaram à fita amarela que isolava um pequeno canteiro com arbustos.
— Tiana Benson. Tinha 30 anos e era jornalista.
moveu um dos arbustos. tirou algumas fotos do lugar.
— Alguém viu alguma coisa? — ela perguntou, analisando o entorno. Era um parque municipal, que ficava aberto à noite e costumava ficar sem supervisão de madrugada.
— Sem testemunhas. Quem achou o corpo foi um guarda do parque, há uns três dias, de manhã.
— E como ela estava?
cruzou os braços e pegou um cigarro no bolso.
— Braços abertos, pernas esticadas, estrangulada e com muitos machucados no rosto e nos braços.
Acendeu o cigarro e tragou-o, com o cenho franzido.
— Causa da morte?
— Estrangulamento.
— Algo específico para ela?
— Tinha acabado de ser admitida no jornal da cidade. Era negra e de origem humilde, mas se mudou para o centro há algum tempo.
— Acha que pode ser um crime de racismo?
Ele fez que não.
— Não pensaria como primeira opção. Temos poucos registros de crime de racismo em Longview.
— Você fez o dever de casa — ela observou.
olhou-a de lado novamente, enquanto tragava. Analisou os cabelos de , presos em um rabo de cavalo. Suas roupas, suas mãos e seus braços cruzados. Ela virou o rosto, envergonhada.
— Desculpe — ele murmurou, sorrindo.
— Algum namorado enciumado?
— Não namorava, ao menos não oficialmente. Vou entrevistar a colega de quarto dela hoje à tarde.
— O que espera ouvir?
— Sinceramente? — ele tragou, dando as costas para o canteiro para poder ir embora. — Algum ex-namorado enciumado. Não parece ser algo tão difícil. Ainda assim, pelo que eu li na ficha, Tiana não parecia ser uma mulher que deixaria um louco correr atrás dela no meio de um parque.
— Por quê? O que acha que ela faria?
Ele deu de ombros. Caminhavam de volta para o carro de .
— No mínimo, se um cara tentasse ameaçá-la assim, ela chamaria a polícia. Me pareceu uma pessoa de personalidade forte. Pelo que vi, ela já conseguiu coisa muito boa para o jornal dela.
— Estava cobrindo algo perigoso?
— Não que ela tivesse anunciado — fez uma pausa para tragar novamente. — É triste ver uma carreira promissora ser interrompida assim, tão cedo.
concordou. Chegaram até o carro de e, em silêncio, foram para a última cena do crime.

— Acho que houve um engano — comentou . Olhou pela janela do carro de , que apenas olhou para Marla.
— Este é o endereço — ele reiterou.
Marla deu um suspiro. tocou sua mão, envolvendo-a com pouca força. Marla não reagiu. Olhou pela janela.
— Não. É aqui mesmo.
Abriu a porta do carro e deixou os documentos no banco. Começou a subir as escadas sem olhar para os degraus. Eram nove e ela nem percebeu.
A fachada da igreja não tinha nada de especial. Era católica, como a minoria, e era laranja, como a maioria. Era pequena e românica, e isso talvez fosse o que a distinguisse de igrejas protestantes. Tinha suas portas fechadas e protegidas por faixas amarelas que indicavam a área restrita.
Marla queria chorar.
Bateu na porta duas vezes, mesmo imaginando que não teria resposta. , e apenas a seguiram. Não quiseram atrapalhar.
A porta foi aberta por um homem baixinho, carrancudo e careca. Era miúdo, amassado.
— Pois não? — ele perguntou, a voz tossida. — A Igreja está fechada.
— Meu nome é Marla Bronx — a moça falou, com o crachá erguido. — Sou da polícia. Preciso olhar o lugar.
Não quis completar.
O homenzinho suspirou. Apontou para a direita dos detetives.
— Tem uma portinhola do lado que leva para os fundos. Não tinha cadeados, fechaduras, o que seja. Andei pensando em colocar. “Para quê?”, me perguntaram. Agora já não adianta mais.
Fechou a porta.
Marla andou até a portinhola com passos largos. Era de sua altura, bem mais baixa que a porta da igreja. Abriu-a e deixou aberta para que os outros passassem. Andou pelo estreito corredor entre as paredes da igreja e o muro da casa ao lado, da moça que ligara para os bombeiros para relatar o “cheiro de queimado que vinha do terreno ao lado”.
Ela estranhara que os fiéis estariam fazendo um churrasco de madrugada.
Marla chegou a um pequeno jardim atrás da igreja. Não tinha nada além de algumas cadeiras de plástico empilhadas. Em seu centro, o concreto do chão estava manchado com uma imagem disforme, como se algo tivesse feito um buraco naquele lugar, e depois, o buraco tivesse se fechado sozinho.
Havia uma porta que conectava o interior da igreja com os fundos do terreno. Marla pensou que fosse por ali que o homem entrara. Por alguns segundos, tentou entender por que ele ainda gostava de estar ali dentro, mesmo que a igreja continuasse vazia.
Bem, talvez fosse por isso que ela fosse ateia.
Marla ajoelhou-se e tirou uma foto do chão. Pareceu ter feito aquilo por pura obrigação. sabia que não iriam achar nada ali: qualquer tipo de evidência estaria na casa da vítima, com seus amigos ou familiares, ou até mesmo dentro da igreja.
Mas Marla precisava daquilo.
Precisava tocar o chão manchado de fogo, precisava estar do lado de fora da igreja, não dentro dela.
estremeceu. Fechou os olhos.
Acalme-se. Respire.
Tocou o bolso. Vazio.
— Helen Süskind. Tinha 17 anos. Colocaram fogo nela.
Ninguém perguntou. E ninguém retrucou. A voz de Marla era baixa, serena. Não era exatamente calma, não teria como ser. Era como se conduzisse uma oração.
— Só encontraram os restos do corpo. Não conseguimos fazer exame de corpo de delito, para saber se houve agressão sexual. Ela sumiu na tarde anterior, e na manhã seguinte, estava aqui.
Levantou-se e olhou para a mancha no chão.
— Que Deus tenha piedade de sua alma.
Girou os calcanhares e passou pelos outros para que fosse para a saída.

dirigiu de volta para a delegacia. Estavam todos em silêncio, fazendo qualquer coisa que não fosse se encarar. Não chegava a ser um clima pesado ou mórbido: cada um respeitava seu próprio espaço, e pensava em seu próprio caso. , por outro lado, calculava se valia mais a pena trabalhar sozinha ou aliada a alguém.
Olhou de lado para Marla. Ela anotava algo em uma pequena agenda de capa amarela. Tinha gostado dela, parecia uma pessoa inteligente. Imaginou que Marla também tinha gostado dela. Ainda assim, algo a incomodava um pouco. Marla parecia ter cada movimento seu cuidadosamente ensaiado, e cada frase dita com um tom meticulosamente preparado.
Não gostava disso.
era um homem odioso; nem se deu o trabalho de pensar muito sobre ele.
Não teve tempo de tentar imaginar-se trabalhando com . estacionou o carro no estacionamento da delegacia. Ele e Marla foram diretamente para o porta-malas, enquanto e se demoraram em sair do veículo.
— Vamos deixar as evidências no laboratório — informou Bronx —, e então podemos almoçar.
— Vamos ter alguma reunião à tarde? — perguntou .
Marla fez que não com a cabeça.
— Nada formal, pelo menos. Podemos nos encontrar na sala de reuniões para compartilhar nossas conclusões.
— Vão na frente e me passem seus telefones — indicou , pegando algo nos bolsos. — Vamos fumar um cigarro e encontramos vocês depois.
— Não sabia que fumava, — comentou Marla, com um pequeno sorriso. Parecia sem jeito.
tentou não hesitar, enquanto e Marla passavam seus contatos para o celular de .
— Só acompanhada — retrucou, estendendo a mão para receber um cigarro de .
Marla teve dois segundos de demora antes de dar de ombros. Ela e deram as costas para os dois, ele já impaciente, e entraram no prédio da polícia. , que já tinha o cigarro seguro entre seus lábios, devolveu-o a com uma careta.
— Tem gosto de poeira.
Ele riu enquanto acendia o cigarro que pendia em sua boca. Sua risada era como um canto, mas interrompido.
— Você ainda não se acostumou — retrucou com uma pausa para a primeira tragada. — Depois do primeiro par, isso vira sua gasolina.
— Ainda não estou preparada para isso. Quem sabe mês que vem — ela rebateu, enquanto colocava o cigarro no bolso do blazer de .
— Vamos logo atrás do casal prodígio, capaz de alguém dar uma cola para eles no meio do caminho.
fez uma careta descrente e se apoiou na mureta do estacionamento, ao lado de .
— O que te incomodou tanto neles?
Ele deu de ombros, mas certamente estava incomodado. Tragou novamente.
— Não gosto de gente que quer se afirmar.
Ela franziu o cenho e riu.
— Eles não fizeram nada demais, você está cismado com o .
riu de uma forma infantil. sabia que, provavelmente, ela não prestaria atenção nenhuma nisso, mas, naquele contexto, isso a incomodou.
achava-a ingênua, com certeza.
Como se já não fosse suficiente.
Desviou os olhos para o céu azul-acinzentado. A fumaça do cigarro de parecia ter manchado o céu.
Respire.
Saia.
Acalme-se.
— Vai almoçar por aqui? — ele perguntou.
— Não. Preciso estar em um lugar logo depois do almoço.
Seu tom era calmo, quase preguiçoso. Ele tragou novamente.
— Posso te dar uma carona.
Ela olhou-o com o semblante sério.
— É urgente.
— Já sabemos o que acontece quando você depende dos ônibus dessa cidade — ele retrucou, com tom de piada.
continuava com um tom sério. Seus olhos estavam opacos.
olhou-a e estremeceu.
— Você não é de Longview — ela comentou, com tom de sentença.
Estudava com cuidado, em um pequeno sorriso no canto de seus lábios.
Ele armou-se.
Olhe no fundo dos olhos dela, e diga-me o que você vê.
A noite.
De verdade, .
podia soar como uma criança, mas ela sabia subverter isso.
— Sou de Irvine — retrucou. Seus olhos estavam semicerrados pela luz do sol e fitavam os de com cuidado. Ela analisava cada movimento de suas mãos ao tragar o cigarro, cada respiração.
Cuidado. Ela sabe o que você está pensando.
tinha experiência suficiente para reconhecer quando alguém está estudando suas atitudes. O que mais o incomodou naquela situação foi como parecia analisá-lo como se já soubesse o que ele iria falar e estivesse apenas conferindo.
Touchè.
— A escória da escória — ela retrucou.
A escória da escória.
Aquela garota sabia o que estava fazendo. Ela não iria se deixar aceitar assim, de cara.
Não, conhecia esse tipo de pessoa.
— O que fez você vir até Longview?
Ele deu de ombros.
— Me acompanhe no almoço, e eu conto.
Ela ergueu o canto do lábio. Agora, sim, estavam conversando.

Controle. É tudo sobre controle.
Foram andando em silêncio até um restaurante pequeno que ficava a poucos quarteirões da delegacia. Era um lugar relativamente barato, com decoração que lembrava as diners dos anos 50. Chamava-se Norton’s.
Escolheram o balcão de tampa vermelha, com dois bancos acolchoados azuis-turquesa lado a lado. Uma moça loira e jovem deixou no balcão um par de cardápios, que foram recebidos com um “obrigado” por e um sorriso de .
Ah, amava restaurantes tradicionais americanos. A única coisa que seguia uma dieta nutricional diária adequada era o café puro.
— Então? — ela perguntou.
ergueu os olhos para a figura da mulher. Ela erguia as sobrancelhas demonstrando expectativa no que ele tinha a dizer, ao mesmo tempo que tinha certa conotação infantil. Seus cotovelos estavam apoiados na tampa vermelha, sustentando seu corpo de aparência frágil e acanhado. Mas, acima de tudo, era extremamente provocativa pelo claro tom irônico.
Ele quis rir. Esperava algo bem mais simples do que aquilo, mas surpreendera-se. E, de certo modo, entretinha-se.
— Eu trabalhava na delegacia de Irvine, era policial de narcóticos. Cinco anos. — Ergueu a mão aberta e fechou-a instantes depois. — Não gostava muito. Nos filmes e séries, parecia que eu ia entrar em vielas e correr atrás de traficantes de cocaína, mas eu só fazia umas operações isoladas em universidades e escolas procurando moleques que levavam maconha para os amigos e conseguiam companhia para a hora do almoço. Era peixe pequeno. Muito pequeno.
Ela riu. Tinha soltado seus cabelos, que já alcançavam seu busto.
— E preferiu vir para Longview e tentar homicídios? — perguntou.
Nem sequer pisca. Nossa, ela sabe realmente jogar esse jogo.
— Depois de hoje, tenho certeza de que é melhor do que ter continuado em Irvine.
A garçonete voltou e ambos fizeram seus pedidos. voltou a observar como se tentasse encontrar um furo, uma brecha.
— Fazer um concurso-surpresa sem nenhuma garantia de resultado era melhor do que ter ficado na sua cidade natal?
Ele deu de ombros e pegou um pão meio amassado na cesta no centro da mesa.
— Você já deve ter ouvido falar de Irvine. Nós só arrombávamos portas de prédios abandonados e dávamos uns tapinhas nos ombros de viciados em heroína, só para saber que eles estariam lá de novo em algumas semanas.
— Qualquer coisa era melhor do que aquilo — ela comentou.
Não precisou completar. Mordiscou o pão, procurando disfarçar o claro nervosismo.
Sentiu a barriga coçar.
Segure-se.
Ela sabia. Ela certamente sabia.
Ataque de pânico.
Fique calmo.
— Ainda assim, se mudar para uma cidade pequena, com um concurso que tinha pouquíssimas vagas...
Nossa, praticamente ria de bem na sua cara.
Crie algo melhor.
— Eu não tinha nada a perder — ele disse. Sua voz tentava ao máximo soar calma, controlada. Seu olhar era furtivo e seus ombros estavam tão soltos que ele parecia tonto.
não tinha acreditado nisso. Então, quando ela fez uma careta de satisfação, isso deixou indignado.
Precisava manter aquela conversa. Precisava mantê-la interessada.
e Marla já fizeram uma dupla. Sim, certamente, sem dúvidas. Então você não pode perder tempo.
Olhe para ela, . Olhe para ela. Você não pode deixá-la ir embora sem que ela aceite isso.
Sentia seus batimentos cardíacos aumentarem em completa ansiedade. Olhou para o relógio: estavam ali há dez minutos, mesmo que parecessem dois. Céus, como conseguia?
Boom.
Olhe para ela. Não fuja.
— Acha que eles estão falando dos casos? — ele perguntou.
Sim, parecia ser uma boa pergunta. Era sim.
estava mexendo no celular preguiçosamente. Digitou algo.
Dra. Rinsburg: “Está confirmada nossa consulta?”
: “Estou indo”
Ela estava mexendo no celular?
— “Eles” quem? — perguntou ela, sem erguer o olhar.
Puta que pariu.
Respire.
Olhe para ela. É isso que ela quer.
— Marla e .
— Por que essa fixação por eles? — ela questionou, com desinteresse. Deixou o celular de lado e voltou a olhar para com o mesmo tom infantil, como se a conversa fosse uma total perda de tempo.
Bem, talvez acabasse vindo a ser, se não fizesse alguma coisa de uma vez.
Retrucou incisivo:
— Eu não gosto de me sentir deixado para trás.
Ela pareceu sorrir. Estava seguindo o caminho certo. Foram servidos e ambos começaram a cortar a comida quase que no mesmo momento, mas, ainda assim, não desviava o olhar de .
Se ela poderia estudá-lo, ele também poderia.
— Você não foi deixado para trás. Eles provavelmente nem estão juntos agora.
— Você não tem como saber. Nós estamos juntos agora.
— Porque você está cismado que tem alguém querendo te passar a perna.
Strike 1.
Céus, o que tinha acontecido com a garota que tinha ficado vermelha quando ele a cantou algumas horas mais cedo?
— Eu aprendi a tomar atitudes o mais rápido possível.
Ela virou os olhos em desprezo. Aquilo estava tirando do sério, ao mesmo tempo que o animava.
— Marla não faria dupla com o .
Ele sentiu a barriga coçar novamente. Tentou ser discreto para coçá-la por dentro da blusa.
— Você não tem como saber. Conheceu ela ontem.
— Duvido que o iria querer fazer uma dupla para os casos.
— Ele não ia querer perder a chance de sair na vantagem. Na verdade, nenhum de nós deveria.
Ela ergueu o olhar. Sustentou os olhos de por alguns segundos.
— São quatro casos, .
— Todos vão ganhar o distintivo, afinal.
— Sim, mas você não acha mais importante ganhar mais rápido?
Ela inclinou-se para frente um pouco, quase imperceptível. sorriu.
— É inocente demais achar que eles não estão falando dos casos agora.
Aquela palavra.
— Eles não iam perder tempo. Principalmente ele, ainda mais depois de eu ter falado para eles deixarem você sozinha comigo.
Ela ergueu o canto do lábio novamente.
— De deixarem você sozinho comigo.
Ele não respondeu. Sorriu um sorriso pequeno, disfarçado, o qual imitou e acompanhou.
— Se eles fizeram isso, é porque você deixou bem claro que queria ficar sozinho comigo.
Ele deu de ombros e deixou as costas descansarem no banco.
— Pelo menos, eu dei o tiro de largada.
olhou para sua comida e deu a primeira garfada na carne bem passada. Mordeu-a com cuidado.
— Fazer um grande grupo em que todos se ajudariam seria bem mais fácil — ela comentou, quase que para si mesma.
franziu o cenho.
— Isso nunca iria acontecer. A não ser que disséssemos isso, mas atuássemos sozinhos no final.
— Isso me parece trauma — disse ela.
Ergueu os olhos e sustentaram olhares novamente. não conseguia detalhar exatamente o que era, mas algo no olhar extremamente expressivo de conseguia atrair qualquer olhar para os dele. Tinha percebido isso: todos os interlocutores que tivera naquele dia não conseguiam se conter; sempre mantinham seus olhares fixos nos olhos de . Imaginou que fosse pelo tamanho deles: eram grandes e muito brilhantes. Logo, concluiu que não. A atração por seus olhos vinha de como eles eram intensos quando encaravam uma pessoa nos olhos. Ele olhava para alguém com completo interesse, um interesse que poucas vezes alguém sente que recebe. ouviria alguém por horas, dias, em silêncio. Ele tinha os olhos que qualquer pessoa gostaria de ver em alguém.
Ele virou o rosto um pouco para o sentido anti-horário, como um tique. Tinha um pequeno sorriso e os olhos em .
— O que você espera do seu caso? — ele perguntou, mudando de assunto.
— Você viu o mesmo que eu. Sabe que eu já sei por onde começar.
Ele não respondeu.
Continue, .
Eu sou a única pessoa que quer te ouvir.

Ela suspirou em alívio.
— “A singularidade é sempre uma pista”.
— Temos uma leitora de Sherlock Holmes na mesa.
Ela riu e deu de ombros.
— Que detetive de homicídios, não é?
Ele pareceu concordar em silêncio. Continuou:
— Depois do almoço, devo ir até o apartamento de Tiana, falar com sua colega de quarto.
— O que houve com a reunião que a Marla comentou?
franziu o cenho em descrença.
— Não convocaram nada.
— Nesse caso, à noite vou estudar algumas coisas. Fazer algumas pesquisas.
— Sozinha?
Ela olhou de lado para , com um pequeno sorriso. Sentiu seu rosto ficar vermelho.
— Sim, sozinha.
— Se quiser minha ajuda, ligue. Vou para casa depois das seis.
Ela assentiu. Seguiram o almoço em silêncio. Pouco antes de pagarem a conta, limpou os lábios com o guardanapo e perguntou:
— Pode me deixar em um lugar?
— Acredito que sim. Onde?
Ela suspirou, esperando que ele não fizesse perguntas.
— O Hospital das Clínicas.
Se tinha alguma curiosidade quanto àquilo, não demonstrou de forma explícita. Foram até seu carro, no estacionamento da delegacia, e estacionou na frente do hospital poucos minutos depois.
— Você não me disse seu sobrenome — ela comentou, colocando a mochila nas costas.
tentou estudá-la. Apertava um pouco os olhos e sorria com curiosidade. Olhou para seus cabelos, seu olhos, suas roupas, suas mãos.
Nada. Nada de diferente.
Você está ficando louco, . Sua barriga está deixando você louco.
.
— Vou te mandar mensagens mais tarde, .
— Vou te responder, .
Ela saiu do carro e entrou no hospital.
e . Duas almas perdidas.

— Eu preciso voltar a tomar os remédios.
A Dra. Rinsburg franziu o cenho.
— A gente não tinha combinado que você evitaria remédios?
hesitou.
— Eu tive outra crise de pânico hoje mais cedo.
A mulher inclinou-se na mesa e uniu as mãos em frente à boca.
— Precisamos falar sobre isso, .
— Eu... Só preciso voltar com os remédios.
.
Ela suspendeu o olhar.
— Por favor. Eu vou voltar para a terapia de novo. Eu comecei um emprego novo ontem, e preciso dos remédios.
... Você sabe que não é essa a minha preocupação.
— Por favor, Dra. Rinsburg. Eu vou tomar todos quando eu estiver em crise.
A médica franziu o cenho.
repetiu.
Dra. Rinsburg ergueu os olhos de novo. Olhou para o receituário em cima da mesa e anotou.
— Não me faça me arrepender de ter te ouvido. Você não é mais uma adolescente.
sorriu e pegou a receita.
— Você não vai. Nos vemos de novo no mês que vem?

Chegou em casa e Patty ainda não tinha chegado. Ficaria lá até sexta-feira, então só tinham mais três dias juntas. Foi até a geladeira e serviu-se de um pouco de cereal com leite, e uma caneca de café com leite. Abriu o computador e digitou na barra de pesquisa: “ ”.
Sabia que não encontraria muita coisa: mesmo que tivesse falado a verdade, matérias de jornal tendem a ocultar policiais envolvidos em operações, a não ser que envolva óbito ou que a pessoa em questão esteja comandando uma operação. Encontrou uma lista do portal da polícia de Irvine, com os policiais pertencentes a cada divisão. O nome de realmente figurou entre os policiais de Narcóticos, mas em uma lista salva dois anos antes. Conferiu a atualizada e o nome dele já tinha sumido.
Bem, isso era verdade, pelo menos. chegou a ser policial de Narcóticos quando morava em Irvine.
Pesquisou seu sobrenome e a palavra “tragédia”. Nenhum resultado relevante.
Ok, não deixou a cidade por conta de algum acidente com familiares ou parceiros.
Franziu o cenho. Suas informações ainda eram muito escassas, principalmente se comparadas às de . Decidiu deixar o assunto dele para depois e começou a estudar o que poderia encontrar sobre a explosão no galpão. Salvou alguns links para uma olhada minuciosa no futuro e pesquisou o nome de Marla. Nada de muito relevante, além de antigas páginas universitárias que informavam que Bronx tinha ganhado menções honrosas e prêmios acadêmicos quando estudava. O que veio de realmente interessante foi no último nome da pesquisa.
Semicerrou os olhos. Olhou para o artigo, que mencionava não o nome de , mas seu sobrenome. Atribuído a várias pessoas de influência, como médicos, políticos e até outros advogados.
Era um artigo de alguns anos antes, falando da vida e carreira de cada membro da família , começando em sua primeira geração, pouco depois da Guerra Civil. De lá para cá, os vinham conseguindo prosperar de maneira invejável. Cada pessoa tinha sua própria biografia, incluindo filiação, educação, detalhes da carreira, casamento e filhos. Conseguia contar por volta de dez nomes na lista, incluindo pessoas de quem já ouvira falar antes.
Exceto . Ele não estava na lista.

não bateu na porta do apartamento de Tiana Benson naquela tarde. Não que tivesse mentido para mais cedo: até planejava passar, rapidamente, na casa de Tiana. Sua ideia era de tentar conversar um pouco com a amiga dela, tentar conseguir alguma confiança com um pouco de carisma, para só depois encaminhar as primeiras perguntas para começar a analisar os depoimentos.
Mas não conseguiu. Em vez disso, dirigiu diretamente para sua casa.
Morava em um apartamento modesto, mas espaçoso, no subúrbio de Longview. Subiu as escadas apertadas e abriu a porta de casa. Suas paredes eram verdes, em sua maioria, e tinha uma pequena cozinha americana apontada para uma sala quadrada, que dividia um escritório, sofá, televisão e aparelho de som entre si. Seu quarto era em outro cômodo, mas o espaço para circulação dentro do apartamento era suficiente para uma dúzia de pessoas.
Assim que chegou, foi até o aparelho de som e selecionou um álbum do Deep Purple. Assim que as primeiras notas começaram a ressoar, tirou seu blazer e jogou-o no apoio de sua cadeira de trabalho. Andou com passos lentos até o banheiro, dentro de seu quarto, e ligou o chuveiro na temperatura mais quente. Fechou a porta e esperou a fumaça se acumular, como um sinal de que já poderia entrar no banho.
Olhou para seu rosto no espelho. Tocou suas bochechas, emagrecidas, que começavam a voltar a ser rosadas e tomar forma. Segurou a barra de sua blusa e puxou-a por cima de seu rosto.
Por muito tempo, não gostava de olhar para aquela região, mas agora já tinha aceitado. Tocou a cicatriz de três centímetros de comprimento. Ainda achava que podia sentir os pontos ali, dependurados como um exoesqueleto que o mantinha no lugar.
Está tudo sob controle, eles diziam.
Controle.
Controle.

Tocou a cicatriz com a ponta dos dedos como se ela fosse se desmanchar. Como se ela pudesse se abrir novamente. Olhou-a com curiosidade. Ficava perto de sua vesícula, de uma forma charmosa. Passou a ponta do indicador por toda sua extensão, sentindo cada centímetro de sua cura, e fechou os olhos.

What did you dream? It’s alright, we told you what to dream…


Capítulo 4 — Fireside

There's all these secrets that I can’t keep…

Na literatura grega clássica em geral, a crença unânime era de que a tragédia que recaía sobre um mortal advinha de uma resposta divina diante das atitudes do próprio mortal, por conta do que se chamava de “desequilíbrio”.
sabia bem disso.
Ele devia saber.
Acorde. Corra por meia hora. Vá tomar banho. Não se toque. Coma.
levantou com preguiça naquela manhã. Tinha ficado acordado até tarde na noite anterior, preocupado com seus colegas de trabalho. Pesquisara os antecedentes de cada um com cuidado, mas não achou nada de relevante além do fato de já ter experiência policial.
Forçou-se a lembrar de passar um tempo na academia da delegacia, treinando.
Tomou cuidado para não acordar Claire. Ela também tinha trabalhado até tarde na noite anterior, preparando trabalhos e lendo textos de coisas que jamais conseguiria entender, mas ele acabara indo para a cama mais cedo. Foi até o banheiro e tomou um banho rápido, gelado, para despertar. Desceu até a cozinha e serviu-se de um café e um cigarro. Nunca conseguia acordar bem sem um cigarro.
Pegou o jornal jogado no tapete de casa, do lado de fora. Não tinha nada de interessante, mas gostava de folhear as páginas como se prestasse alguma atenção. Soava como “o homem da casa”, responsável e preocupado.
Quando chegou em casa na noite anterior, Claire já lia seus textos, então ele foi imediatamente para o computador, procurar o que precisava. Marla Bronx, aquela mulher que tinha ido com ele até o laboratório. Tinha achado ela simpática, com ar de mulher incisiva o suficiente para ser competente, mas simpática o suficiente para ser cativante.
A outra, , parecia inteligente, mas assustadoramente insegura. Parecia uma estagiária que presta atenção nos outros para não fazer nada de errado e tem medo de falar qualquer coisa, porque sabe que não vai ser levada a sério (mesmo que abrir a boca seja crucial para sua reputação).
De tinha apenas pena, de sua óbvia mania de achar que todos estavam brigando em um tipo de competição. De qualquer modo, ele até estava na frente, mas não se importava exatamente com isso: sua preocupação maior era de fazer seu serviço direito e não com pressa.
Vestiu uma blusa social azul-clara e as calças pretas. Claire moveu-se um pouco, mas viu que ela ainda dormia. Não tinha comentado muito sobre o trabalho ultimamente. Não queria atrapalhá-la.
Desceu até a cozinha e foi até a varanda. Pegou o telefone e discou o primeiro número da chamada rápida.
— Alô? — uma voz rouca e pesada falou, do outro lado da linha.
— Bom-dia, mãe — ele disse baixo.
Podia saber que, do outro lado, ela abriu um sorriso.
— Ah, . Há tanto tempo que não ouço de você.
— Tenho novidades, mamãe — falou, com um sorriso. — Você vai gostar de ouvir.
— Tenho certeza que sim, . Como está Camilla?
— Claire, mãe. Sim, está bem. Como a senhora está?
Ela deu de ombros com um suspiro.
— Fiz mais alguns exames. Você sabe que meu fígado nunca funcionou muito bem. Ele com certeza vai ser a primeira coisa a morrer em mim.
riu antes de tragar. Fez-se um rápido silêncio na linha.
— Isso se seus pulmões não morrerem antes — ela continuou.
Ele fez uma careta e olhou para o cigarro.
— Como sabia?
— Não é difícil. Você só não fuma quando dorme.
Ele apertou o cigarro no aço da sacada e riu.
— Quando você vai visitar sua velha?
— O mais cedo possível, mãe. Mas andei ocupado.
— E o filho da puta do seu pai?
— Olha a língua, mãe.
Ela fez um estalo com a boca.
— Ele é a única pessoa que você tem a autorização de xingar na minha frente.
— Não sei do meu pai. Vou ligar para ele depois.
— Tudo bem, meu filho. Estarei te esperando quando tiver tempo. Traga Claire com você.
— Tudo bem, mãe. Eu amo você.
— Também amo você, .
Desligou. Discou outro número.
— Alô? — perguntou uma voz carregada.
— Lenny, aqui.
— Seu filho da mãe, são seis e meia da manhã.
— Eu sei. Preciso de um favor.
— Que favor?
— Me consiga informações sobre um homem chamado Benjamin Kerauc, por favor.
— Você que é a porra do policial, .
— Eu sei, Lenny, e por isso estou pedindo isso a você.
— Eu sou só um advogado.
— Ele é agente do FBI.
A linha ficou muda.
— Você é um dos maiores advogados do país — prosseguiu.
— Não venha babar meu ovo, . Te passo o que eu achar amanhã de manhã. Vou pedir para meus estagiários.
— Você é um babaca, Lenny.
— É genético, primo.
Desligaram.

tinha acordado mais cedo naquela manhã, para não chegar tão atrasada. Era quarta-feira, e Patty tinha preparado um café da manhã especial para a despedida do apartamento. Conseguiu se levantar sem pressa, mesmo ainda estando um pouco sonolenta, e pegou um ônibus para a delegacia. Chegou cerca de quinze minutos antes do horário requisitado, então ainda se deu ao luxo de ver alguns policiais chegando.
Antes de passar no concurso, nunca tinha entrado em uma delegacia de homicídios antes. Acertara quanto às cores predominantes serem cinza e azul, mas imaginava policiais bem mais velhos e carrancudos.
Estava indo para a sala de , quando cruzou com a delegada Julie. Ela lia algo em uma pasta, parecendo especialmente concentrada. Usava um par de óculos de aros finos e uma blusa verde musgo que fazia sua beleza murchar. entrou na saleta de sem bater e deixou a bolsa em cima da pequena poltrona, para então bater no escritório.
— Entre — ele respondeu. Ela abriu a porta com lentidão, apenas liberando uma fresta para que ele pudesse ver quem entrava. estava atrás da mesa, com um livro aberto e um bloco de anotações ao lado. Vestia uma camisa social azul-clara e tinha a ponta de uma caneta na boca, com o corpo caído de lado na cadeira. Uma das mãos estava repousada no joelho cruzado. Quando entrou na saleta, ele ergueu o olhar com um pouco de surpresa.
— Mas já? — perguntou, rindo.
não soube se deveria rir ou não, mas percebeu que tinha ficado um pouco irritada.
— Estou brincando — falou ele, com seriedade de quem não estava, enquanto se levantava e fechava o livro. — Sente-se. Quer um café?
— Não, obrigada.
Sentou-se de frente para a mesa novamente. fechou a porta e, pela primeira vez, ouviu uma trinca sendo fechada. Ele voltou para a mesa enquanto ela pegava uma caderneta e um lápis na bolsa, posicionando-os contra seu joelho.
— O que achou ontem? — ele perguntou. Sentou-se na cadeira e apoiou os dois cotovelos na mesa, com uma mão fechada envolvida pela outra, na frente do nariz. teve a sensação de que ele esperava algo, ainda que ela não tivesse quase nada para oferecer.
Ela hesitou por um instante.
— Colhemos algumas amostras de sangue. Talvez o sangue do agressor esteja na sala, se Juliet tentou resistir. Mas vai ser difícil diferenciar do sangue dela.
— Além do fogo — ele completou, os olhos cansados. Olhava diretamente para .
Burra.
Ele só a esperava falar o que ele já sabia.
— Além do fogo — concordou. — Olhei a casa, as janelas eram grandes o suficiente para passar uma pessoa adulta e grande, mas as grades eram trancadas por dentro e não têm sinal de arrombamento.
— Testemunhas?
— Aparentemente, nenhuma — ela disse, com a voz cansada. — E ainda que tivesse, ninguém da vila parece disposto a colaborar com a polícia local.
— Não imagino o porquê.
— Vou tentar procurar mais testemunhas depois — falou e fez anotações no papel —, mas sei que Juliet e Patrick eram reclusos e tinham um bom relacionamento com o pai de Patrick e Dahlia. Sei que Dahlia morava com eles e se mudou há alguns... Meses. — Conferiu nas anotações. — O pai não estava no estado no dia do incêndio e não se sabe se elas tinham inimigos.
— Ninguém viu nada incomum?
— Uma das vizinhas dela não indicou nada.
— E sobre Patrick?
limpou a garganta e endireitou a postura. Perdeu pontos ao hesitar.
— Nenhum indício de fuga, nem de sequestro, ao menos dentro da casa.
— Não tivemos registros de uso de celular e ele não tinha conta bancária.
— Como o dinheiro da pensão dele era retirado?
deu de ombros.
— Descubra. Não temos esses registros.
ignorou o fora e fez uma anotação para procurar saber sobre aquilo.
— Temos o endereço novo de Dahlia?
— Temos acesso a essa informação. Vá atrás dela.
— Temos os contatos do pai deles?
— George Ramsay? Temos um telefone fixo.
— Ele concordou em colaborar com a investigação?
— Ele não negou — falou , rindo. Apoiou as costas na parte de trás da cadeira, e começou a coçar o queixo de leve. Tinha se barbeado naquela manhã.
— Vou falar com ele depois — finalizou , olhando para suas anotações. Pensou em algo bom para acrescentar, mas não chegou a nada.
— E seus colegas?
não tinha certeza, mas o tom de pareceu debochado. Referia-se a eles como se fossem várias crianças que eram obrigadas a conviver na caixinha de areia e depois iam falar para os pais como fora o dia.
— Ficamos muito pouco tempo na cena de , mas um pouco mais na de Bronx e de .
— Algum já tem teorias?
— Por enquanto, nenhum, que eu saiba.
— Então você está atrasada.
Ela franziu o cenho.
— Com qual você está trabalhando? — ele continuou, voltando a olhar para o livro e puxando-o de volta para sua frente.
. Concordamos em nos ajudar.
— Já se encontraram?
— Já.
— Para discutir os casos?
Ela engoliu em seco.
— Falamos pouco. Não sei quando vou poder encontrá-lo novamente.
— Tente hoje. O colégio de Patrick relatou que ele não estava estranho durante o dia, mas a professora de história falou que ele parecia inquieto e anormalmente atencioso ao conteúdo, como se estivesse querendo passar mais tempo na escola. Disse que ele parecia nervoso. Patrick foi visto entrando em casa antes do incêndio, mas não foi visto saindo e seu corpo não foi encontrado. Suas coisas não foram encontradas reviradas e não pareceu ter nada faltando. Procure saber se Patrick tinha algum amigo na escola, um tipo de confidente. O mesmo para Juliet. Procure saber se eles requisitaram algum serviço em casa, e se algo de valor foi tirado ou deixado na casa. Fale comigo apenas quando tiver algo a me acrescentar e não para passar relatórios. Não sou seu professor. Meu tempo é mais valioso do que dar “ok” nas suas anotações.
tinha dito tudo sem pausas para pensar. Fez um sinal com a mão para que saísse da sala. Ela engoliu em seco e se levantou, colocando a bolsa no ombro ainda aberta. Tocou a maçaneta e girou-a.
Olhou para .
— Sr. ?
Ele ergueu a cabeça, como se estivesse tão imerso em sua leitura que os últimos segundos fossem algo que se passou em sua cabeça, não fora dela. Como uma distração.
— Sim?
— Alguém mexeu nas janelas?
Ele franziu o cenho.
— Como assim?
— Só isso. Alguém mexeu nas janelas durante a perícia?
— Sim, para tentar coletar impressões digitais — ele respondeu, com tom óbvio. — Mas deixamos a posição exatamente igual a como encontramos. Por quê?
— Por nada. Aviso se tiver novidades.
Saiu fechando a porta com cuidado. sorriu.

O apartamento de Tiana Benson ficava na parte sul da cidade, conhecida por suas lojas pequenas e excesso de redes de restaurantes baratos. Seu prédio era um apertado entre uma loja de departamento e um mercadinho, feito de tijolos vermelhos e com um outdoor vertical com uma propaganda de perfume.
preferiu ir até lá de ônibus. Vestiu uma camiseta branca e uma jaqueta verde-musgo por cima, seus jeans mais surrados e tênis. A ideia era não afugentar a amiga de Tiana: outros policias já tinham a contatado por telefone e deixado a pobre universitária amedrontada. Iria se apresentar como policial, mas mostrar a ela que ela não precisava ter medo de nada.
Era um erro comum entre os policiais de Narcóticos, pelo menos em Irvine. Eram muito durões, incisivos. Para falar com possíveis colaboradores, a tática tinha que ser outra: deixar a pessoa à vontade, relaxada, sem nunca a deixar esquecer que você tem um par de algemas no bolso.
não tinha um par de algemas, mas não custava deixar os outros acreditarem nisso.
Conferiu o endereço. Tocou o interfone, que já tinha uma fita isolante por cima do botão.
Coitada de Faye Mars. A moça deve ter entrado em pânico quando a polícia ligou.
— Quem é? — ela perguntou, com a voz firme.
— Meu nome é , Srta. Mars, sou da polícia. Gostaria de fazer algumas perguntas sobre sua colega de quarto.
— Eu já falei com a polícia.
— Eu sei — ele fez uma pausa, medindo seu tom para soar cômodo. — Mas eu sou o policial encarregado do caso.
— Eu não tenho nada a declarar.
Pareceu prestes a desligar. imaginava que esse cenário deveria ser comum, mas não que fosse encará-lo já no primeiro dia.
— Faye — chamou. Ela não respondeu, mas não desligou.
Pense rápido. Se ela não colaborar, você pode dizer que ela está obstruindo informação. Mas faça-a colaborar.
— Eu sei que você não quer falar com a polícia porque está com medo. Imagino como a polícia deve agir quando vem para esse bairro. Mas eu estou sozinho. Se a senhorita preferir, posso falar por telefone, mas é crucial que responda minhas perguntas. Posso chamar uma amiga, se isso a deixar mais segura.
Ela hesitou.
— Não tem mais ninguém com você agora? — ela repetiu.
— Não. Estou sozinho. E eu não estou gravando nossa conversa. Posso gravar, se preferir. Ou não gravar.
Faye pareceu engolir em seco. Ficou cinco segundos em silêncio, até que abriu o portão. suspirou em alívio e empurrou o pesado portão de ferro, deixando-o fechar atrás de si com um estrondo. As escadas à sua frente eram apertadas e vermelhas, com uma lâmpada amarela trepidante no teto. Subiu até o segundo andar, onde um par de portas o esperavam. Uma delas estava aberta em uma fresta, com metade de um corpo feminino para fora. A jovem era bem branca, com o rosto magro, deixando sua mandíbula facilmente visível. Os cabelos loiros tinham mecha pretas e estavam presos, e ela vestia uma camiseta e calças jeans. imaginou que ela estivesse se preparando para sair.
— Achei que o senhor fosse mais velho — ela comentou, com a voz um pouco trêmula.
Ele sorriu, tentando deixá-la mais confortável. Estendeu a mão para apertar a de Faye.
— Recém-formado, Srta. Mars.
— Faye — ela disse, apertando a mão de e olhando para baixo. — Aceita um chá?
— Por favor — ele disse, com leve empolgação enquanto entrava no pequeno apartamento. — Eu não consigo começar o dia sem chá.
odiava chá.
A sala de Faye era pequena, mas organizada o suficiente para parecer do tamanho ideal. Os dois quartos eram conectados diretamente com a sala, com uma porta separando cada cômodo. A cozinha também era conectada à sala, apenas com uma bancada separando-a. murmurou um “com licença” e foi até o sofá. Sentou-se devagar e com os joelhos juntos. Faye foi até o armário e pegou a caixa com os chás.
— Você também é jornalista? — ele perguntou, observando uma modesta estante de livros posicionada ao lado do sofá.
— Eu? Não, sou engenheira civil. Ou estou tentando ser.
Ela concluiu a frase com uma risada nervosa.
— Na faculdade?
— Desempregada — Faye respondeu, com desânimo, voltando para a sala momentos depois. Sentou-se na poltrona ao lado de e entregou a ele a caneca cheia.
Ele observou-a fazendo o chá, e viu que não tinha adicionado nada na mistura. Dividiram a água e o sachê estava lacrado. Bebericou e fingiu gostar.
— Não gosto de gravar meus encontros com parentes de quem investigo — ele começou, posicionando a caneca ainda cheia em cima da pequena mesa de centro e tomara cuidado para não usar as palavras “depoimento” e “vítima”. — Mas, se preferir, posso gravar nossa conversa, se isso for deixá-la mais segura.
Faye negou com a cabeça, a boca ainda na caneca.
— Não. Faça como preferir, senhor...
.
— Qual o seu sobrenome? — ela perguntou, colocando a caneca em cima da mesa.
.
— Não me entenda mal, oficial. Eu não estou acostumada a lidar com policiais, nunca estive.
— Sempre morou nesse bairro? — ele perguntou, enquanto pegava no bolso do casaco uma pequena agenda e uma caneta.
— Não — ela começou. Fez uma pausa, esperando-o escrever algo. anotou: “insegura”.
— Eu vim morar em Longview para fazer faculdade. Minha tia vive aqui, e eu tinha passado para uma universidade aqui perto. Morar aqui era mais barato.
— Não foi morar com sua tia?
— Morei lá durante a faculdade, mas depois que me formei, precisei arrumar alguém para dividir apartamento.
— E Tiana concordou em morar com você — ele disse, em tom quase afirmativo.
— Na verdade, já nos conhecíamos da faculdade. Eu era da engenharia, mas ela conhecia gente de muitos cursos. Nos conhecemos porque ela ia em muitas festas da minha turma. Acho que namorava um cara de lá.
— E quando começaram a morar juntas?
— A Tiana tinha esse apartamento — sua voz começou a soar chorosa. — Ela aluga o outro quarto, e eu fiquei sabendo na época que me formei. Faz uns três anos.
— Vocês eram muito próximas? — ele perguntou, inclinando sutilmente o corpo para frente e deixando a caneta em cima da agenda. Apoiou o queixo com uma das mãos.
— Não muito. Digo, na faculdade não passávamos de conversas superficiais envolvendo conhecidos nossos e assuntos gerais. Viemos morar juntas por oportunidade. Mas não éramos muito próximas.
Passou as costas da mão na pálpebra. a esperou voltar à postura original, em respeito.
— Não éramos melhores amigas, entende? Mas isso não diminui o que aconteceu.
— Eu entendo.
Compaixão. Como com as mães, em Irvine.
— Ela costumava comprar a comida sempre. Mesmo nos últimos meses. Eu tinha acabado de ser demitida, mas ela repetia que a situação ia melhorar. Ela nem me cobrou o aluguel de fevereiro.
— A situação estava apertada?
— Tiana ganhou um bom dinheiro como free-lancer na época do Ano-Novo, mas, em fevereiro, a coisa desandou um pouco.
— Trabalhando no Ano-Novo?
Faye deu de ombros.
— Ela não era tão próxima da família. Passou o natal e o Ano-Novo sozinha.
— Você pode confirmar isso?
Ela franziu o cenho. Não pareceu entender; sua palavra parecia ser confirmação suficiente.
— Como assim?
— Que Tiana passou os feriados sozinha.
— Eu viajei para encontrar minha família. Estive no Colorado durante todo feriado — Sua voz começou a tremer novamente. — Posso mostrar as passagens aéreas, passar minhas informações para perguntar à companhia.
— Não será necessário, Faye. Só me mostre as passagens. Vou fotografá-las.
Deixou a palavra “álibi” implícita.
— Não tenho confirmações de que Tiana passou o feriado aqui, sozinha. Talvez o senhor do mercado aqui ao lado possa confirmar. Ele sempre a cumprimentava, e a mim também. Ele dirá que ela estava sozinha.
— Perguntarei a ele depois. — Ele fingiu tomar mais notas. — Sobre Tiana — prosseguiu, voltando a olhar para Faye —, ela tinha muitos colegas de trabalho?
Ela deu de ombros.
— Tiana falava muito do trabalho, mas pouco de pessoas. Muita gente não gostava dela. Na faculdade também era assim. Diziam que ela forçava amizades, só para dizer que “conhecia muita gente”.
— Mas ela era desagradável?
— De modo algum — ela negou com rapidez. — Tiana era uma pessoa ótima, mas sempre cuidava muito do trabalho dela. Às vezes, até arriscava sua reputação.
Ele franziu o cenho. Faye desviou o olhar e apanhou a caneca como se ela fosse fugir e bebeu goles grandes do chá.
— Como assim?
— Uma vez — ela começou a contar, com a voz baixa, inclinando o corpo um pouco para frente —, eu e ela estávamos jantando. Ela recebeu uma ligação de um redator para quem ela tinha vendido uma reportagem. Ele estava gritando muito, mas eu não entendia bem o porquê. Tiana me explicou depois, orgulhosamente, que ela tinha acabado com a carreira de um dos anunciantes da revista, provando um escândalo sexual envolvendo a família do dono da empresa. O redator disse que todos do meio sabiam quem a Tiana era, porque ela não media palavras para se identificar. Parecia um tipo de troféu. Ela podia dizer “fui eu quem fiz”.
voltou a pegar a caderneta, mas dessa vez, anotou.
— Muita gente a conhecia?
— Pelo jeito, sim. Mas não sei se ela falou isso para se gabar. E não é a minha área, não tenho como confirmar.
— E a família dela?
Faye deu de ombros novamente.
— Costa Leste. Ela costumava manter contato com a maior parte da família, mas não era uma relação muito próxima. Os pais dela são divorciados e nunca pareceram se incomodar com a distância.
— Ela cresceu com os pais divorciados?
Faye fez que sim com a cabeça. Completou:
— Morou com a mãe até vir fazer faculdade.
— Ela tinha algum namorado?
Ela abaixou o olhar. Fez uma careta de sutil ar infantilizado.
— Não. Tiana nunca trazia ninguém para cá.
— Mas ela dormia aqui sempre?
— Sim — respondeu, olhando para a caneca enquanto a devolvia para a mesa. — Sempre. E eu também. Posso confirmar isso.
— Tudo bem, Faye — disse, com um pequeno sorriso. — Mas preciso de outras testemunhas para confirmar isso.
Ela deu de ombros, mas ele podia perceber suas mãos inquietas.
— Então não sei como confirmar.
Sua desistência soou um pouco arrogante, quase uma birra. fez questão de anotar isso.
— Sobre o dia do acidente... — ele prosseguiu. — Foi à noite.
Ela confirmou, mais como um pedido para que ele continuasse.
— Ela estava em um parque. Era comum que ela passasse pela região?
— Tiana passava ou passaria pela cidade inteira por uma reportagem. Não dá para afirmar que lugares são ou não comuns para ela.
— Mesmo àquela hora da noite, em um parque fechado, na chuva?
Faye deu de ombros e fungou.
— Eu sei que devia ter feito mais perguntas a ela. Mas sabia que era parte do trabalho. Nunca questionei.
— Então era comum ela passar dias ou noites em lugares... Diferentes do comum?
Ela confirmou com a cabeça.
— Onde você estava no dia?
— Eu tinha tentado um concurso. Passei a tarde incomunicável, não falei com Tiana o dia inteiro. Ela saiu antes que eu acordasse.
— Que horas foi isso?
— Por volta das nove. Quando saí da prova, umas cinco da tarde, vim para cá, tomei banho e já pelas nove da noite, eu fui encontrar alguns amigos aqui perto, em um bar.
— Tem alguma foto ou vídeo disso?
— Temos fotos e o bar tinha câmeras de segurança. É só pedir para eles. Posso te passar o endereço. Saí de lá quando já era mais ou menos meia-noite.
— E não sabe o que Tiana fez no dia, nem onde ela estava?
— Infelizmente, não. Quando cheguei em casa e vi que ela não tinha chegado ainda, me preocupei.
— Mas a polícia só recebeu sua ligação na manhã seguinte.
— Ela ainda não tinha chegado. Me desesperei. Mas sei que devia ter ligado mais cedo.
Ele fitou-a por um momento.
Pouco depois da ligação de Faye, um homem que trabalhava no parque também ligou, dizendo que achara um cadáver.
— Precisarei do seu contato mais imediato possível, Faye. E precisarei de mais informações no futuro.
— Sem problemas — disse, se levantando. — Eu fico feliz em ajudar a descobrir quem fez isso com Tiana.
— Logo descobriremos quem fez isso e você ficará sabendo — falou, enquanto guardava suas coisas despretensiosamente. — Para onde Tiana tinha mandado seus últimos textos?
— Vou lhe passar o telefone. Ela o deixava na geladeira. E o endereço do bar.
Anotou o número em um pedaço de papel e se despediu de , que seguiu porta afora. Desceu as escadas, foi até o ponto de ônibus e subiu no primeiro que apareceu cujo itinerário passava por sua casa. Pegou o celular e selecionou o contato de .
— Alô? — ela perguntou.
?
— É ela.
aqui. Como está?
— Bem, um pouco ocupada. — Fez uma pausa. — Por quê?
— Hoje à noite você tem algum compromisso?
Ela hesitou.
— Acho que não.
— Tem um restaurante na River Street, no centro. Barulhento o suficiente para conversarmos sem que prestem atenção.
Mais uma hesitação.
— Você já descobriu alguma coisa? — ela perguntou, com a voz trêmula.
— Acho que sim. Tem como ir hoje?
— Sim. Que horas?
— Às sete. O nome do lugar é Purple Light.
— Sei onde fica. Estarei lá.
— Ok. Te vejo mais tarde.
Desligaram.

teve sorte de o telefone tocar antes de tocar a campainha, não dentro de casa.
Era uma casa pequena e azul-clara. Fazia algum tempo desde a última vez que estivera ali. Fora há o que, dois, três anos? Estava recém-pintada, algo especialmente curioso.
Tocou a campainha, mesmo sabendo que já era aguardada. Só não sabia precisar desde quando.
Ela chegou à porta com os olhos apertados. Poderia dar a entender que acabara de acordar, sabia que ela era uma criatura noturna que deixava todas as luzes da casa apagadas o dia inteiro. O sol das nove da manhã era forte demais para seus olhos fracos, para seu corpo cansado. Pelo menos àquela hora, ela era fraca.
Como um vampiro.
— Eu te liguei? — ela perguntou, do outro lado da fina tela de proteção na porta.
molhou os lábios.
— Não. Mas eu queria falar com você.
Tracy passou a mão pelos cabelos, bem pretos e de fios grossos. Abriu a maçaneta.
— Não tenho nenhum café da manhã para oferecer.
— Tudo bem.
Ela só queria terminar com aquilo logo.
— E o seu namorado?
Fechou a porta e apontou para a sala de estar. encolheu-se no suéter e colocou a mochila ao seu lado no sofá quando se sentou.
— Ex-namorado.
— Vocês não voltaram? — Tracy perguntou, sentando-se na poltrona do outro lado da sala.
fez que não com a cabeça.
— Não.
— Pois deveriam. — Sua voz ficou mais firme e alta, enquanto procurava um cigarro. — Você já está na idade de se estabelecer. Você não sabe aceitar pessoas diferentes. Não está mais com idade de escolher.
— Passei no concurso de detetive.
Acendeu o cigarro, olhando para o fogo do isqueiro. Tragou uma vez e disse, olhando para a filha:
— Meus parabéns. O que você faz?
— Por enquanto, estou investigando um homicídio.
— Pessoas mortas merecem sua atenção?
não respondeu. O tom de Tracy já dava o prelúdio do que viria.
— Mais do a sua mãe, que está bem viva?
Não dera qualquer ênfase na frase. Tentava tratar o assunto com o máximo de impessoalidade, ou naturalidade.
A morte era uma velha amiga da família .
Tragou novamente. via o hábito de fumar da mãe com uma pequena satisfação sádica.
Seus lábios estavam muito secos, rachados, e sua pele estava um pouco mais enrugada que o normal. Ainda era uma mulher bonita, mas longe de seus dias de glória.
— Um dia, você vai estar como eu, fodida, e vai querer ter começado a fumar mais cedo.
Ficou de pé e circundou o sofá. Seus pés se arrastavam no chão de carpete azul, com um ruído quase imperceptível, suficiente apenas para incomodar. estremeceu e abraçou seus próprios braços.
O vampiro.
Circundou o sofá como se pudesse atacá-la a qualquer momento.
Essa é a minha casa.
sentiu uma vontade súbita de chorar, mas conseguiu se conter. Olhou para a janela, para o pequeno filete de luz que a fazia lembrar que poderia fugir daquela casa.
— Andou falando com o seu irmão?
— Sim.
— E o que ele disse? — Tracy perguntou ríspida.
hesitou por um instante. Respondeu com a voz estremecida:
— Ele disse que está com saudades.
A mãe riu. Não pareceu deboche, mesmo que não fosse capaz de afirmar isso categoricamente.
A figura de Tracy invadiu a luz que perpassava com rebeldia pela cortina. De uma perspectiva, poderia parecer que a luz emanava dela. No entanto, sabia que era sua escuridão que invadia a luz.
— Vocês se viram ao vivo?
— Por telefone.
— E onde ele está morando?
— Não sei.
— Que merda, ! — bateu no parapeito da janela. — Você é burra, criança. Não sabe de nada que não tenha a ver com você. Seu irmão pode estar precisando de você.
— Ele não está na Pensilvânia. Está ocupado. Não precisa de mim.
— Realmente, você não faria diferença.
Tragou novamente. começou a sentir seu corpo arrepiar-se, e a náusea subir por sua garganta.
A imagem da casa de Juliet invadiu sua cabeça, como Tracy invadiu a luz.
Acabe com isso.
— Tyler não precisa de mim.
— Você não tem como saber — disse, com deboche. — Você nem esteve lá.
Acabe com isso.
— Ele sabe onde me procurar. Não fala comigo porque não quer.
— Você nem me procura, . Se tudo dependesse de você, você nem saberia que Tyler está pedindo sua ajuda.
— Ele não está — afirmou quase para si mesma.
— Ele é o seu irmão caçula. Óbvio que ele nunca ia ser explícito quanto a isso.
Tocou sua testa. Sentiu uma onda fria passar por seu corpo e o vômito subir.
— Se ninguém te procurar, se ninguém for até você, você não vai até ninguém. Você é muito egoísta, .
Acabe com isso.
Vá embora. Você não aguenta mais isso.
Vá embora.
— Por que você está aqui? — perguntou Tracy, finalmente. A frase soou como uma cuspida.
— Hoje completa mais um ano da morte do meu pai.
— E eu com isso?
Não respondeu. Tracy completou:
— Ou melhor, e você com isso?
Juliet.
Juliet Ramsay tinha uma filha. Juliet Ramsay tinha um filho. Sua filha está morta.
Sua filha está morta.
Queime a bruxa.

— Você só dirá que me ama quando eu estiver deitada no meu caixão. — Sua voz tornou-se chorosa de repente. — A mim e ao seu irmão. Você precisa cuidar dele. Você precisa cuidar do Tyler, eu não posso mais fazer isso.
olhou para Tracy de lado.
— Eu não tenho mais como cuidar de você.
Pai. Pai, onde você está?
— Você precisa cuidar dele, . Revise o caso dele. Aproveite que você é policial agora. Use isso para ajudar os vivos.
Juliet Ramsay.
Por que essa fixação com os mortos?
Não sabia se tinha perguntado isso a si mesma, ou se a voz de Tracy ecoara em sua cabeça até que soasse como sua própria.
— Preciso ir. Tenho que trabalhar.
Tracy suspirou com uma risada debochada. Ficou de costas em silêncio, olhando para o céu através da janela, e tragou novamente. sabia o que estava por vir. Sabia o que ia ouvir. Ah, aquele discurso era o mesmo de anos.
Abriu os olhos e focou no pequeno isqueiro em cima da mesa de centro. Antes de formar uma reação consciente, agarrou o isqueiro como se ele fosse um pequeno animal que pudesse lhe escapar dos dedos. Ficou de pé e preparou-se para a fuga.
— Tchau, mãe — disse e foi a passos largos para a porta.
Tracy não se moveu. saiu da casa com a sensação de que ela iria explodir.

Depois de almoçar, comprou um pequeno girassol das mãos de uma senhora simpática, e deitou-o em cima do túmulo de Timothy . Era um túmulo antigo, de pedra cinza-clara. sabia como isso era injusto com Tim. Ele merecia algo mais feio.
Fechou os olhos e tentou rezar.
Você é a única coisa boa no mundo, filha.
Olhou para o isqueiro que guardara no bolso. Chegou ao nível de ridículo de roubar um isqueiro da própria mãe, mesmo que ela não fumasse. Não era um tipo de ato heroico, já que não tinha o menor interesse em fazer Tracy largar o cigarro. Só precisava segurar aquilo, o pequeno isqueiro quadrado e de envoltório preto.
Olhou novamente para o túmulo de Timothy e foi para casa.

Marla não sabia bem como lidar com pessoas em luto.
Sua família não sofreu por uma perda fazia muitos anos, e nem seus amigos mais próximos (os poucos que ainda cultivava). Por isso, quando bateu na porta da casa dos Süskind, não tinha nada planejado além do padrão.
“Meus pêsames”, “minhas condolências” e “quem você acha que podia ter colocado fogo na sua filha?”.
Definitivamente, era algo que precisaria treinar. Nunca teve talento com tato. Para ela, a situação sempre fora o mais direta possível.
O bairro em que Helen vivia com os pais era o mesmo da igreja em que ela fora encontrada. Marla bateu na porta da casa em estilo tradicional americano, com direito a uma bandeira hasteada ao lado da porta. Quem atendeu foi um homem de meia-idade, de feições grosseiras e rosto magro. Era inegavelmente bonito, mas parecia incontavelmente cansado.
— Sr. Süskind? — ela perguntou.
Ele vestia uma camisa social e calças de flanela. Parecia prestes a sair do trabalho.
— Eu sou a detetive Bronx, do departamento de homicídios da polícia de Longview — falou, erguendo o crachá — Fui designada para investigar o caso de sua filha. O senhor pode me receber?
Ele pareceu calcular alguma reação, mas, em vez disso, deu apenas um suspiro de desistência e deu lugar para Marla entrar. Ela murmurou um agradecimento tímido, contrastante com sua voz e postura do lado de fora da casa. Ali dentro, só parecia ter invadido um templo da família Süskind, onde eles afirmavam para si mesmos que ainda estava tudo bem.
Até Marla entrar e impregnar o local com todo seu “homicídios”.
— Sua esposa está em casa? — ela perguntou, parada no corredor atrás do homem que, por sinal, era bem maior do que ela. Marla vestia um terninho cinza, que escolhera com cuidado para lembrar aos Süskind que, por mais que ela fosse nova, ainda era uma detetive. Agora, se arrependia.
Ah, claro, também porque cinza valorizava seus cabelos ruivos e seus olhos claros.
— Na sala — ele disse, em um murmúrio, fechando a porta. — Por favor, não se incomode com a casa, Srta. Bronx. Ainda não conseguimos arrumar nada.
Marla tinha um pouco de vergonha de si mesma por ter que ir até a casa de um casal em luto questioná-los até o fim de sua paciência sobre a filha deles, morta carbonizada. A autópsia tinha saído naquela manhã: os pulmões de Helen tinham graves queimaduras. Ainda estava viva, respirando, quando algum louco ateou fogo em seu corpo. Marla perguntou-se o que os Süskind sabiam sobre a morte da filha.
Entrou na sala da família. Não parecia cara, muito menos simples: era a medida ideal de sofisticada, sem parecer um desperdício a um salário modesto. A Sra. Süskind era tão bonita quanto seu marido, e, sem dúvidas, a família toda poderia estrelar em um comercial de margarina. E parecia tão acabada quanto ele. Estava sentada à mesa, vestia pijamas cinzas e tinha uma caneca de café à sua frente.
— Amor — murmurou o Sr. Süskind, com o tom de voz de quem fala com um animal extremamente perigoso que pode atacar a qualquer momento —, a detetive Bronx precisa falar conosco.
— Detetive? — perguntou ela, como se ele tivesse acabado de acordá-la.
Ele assentiu. Apontou para Marla, que tinha ficado parada na entrada da sala. Entrou e cumprimentou a Sra. Süskind com um aperto de mãos.
— Detetive Bronx.
Ela apertou com um rosto confuso.
— Sr. e Sra. Süskind, eu sou a detetive responsável por investigar o que aconteceu com sua filha...
— Sabemos o que aconteceu — a mulher interrompeu. — Ela morreu.
O marido tocou-lhe o ombro e murmurou:
— Diane...
Marla não reagiu, mas sabia que seu rosto tomara feições aversivas. Não queria estar ali, tanto quanto sabia que eles não a queriam ali.
— Gostaria de fazer algumas perguntas — achou apropriado adicionar uma pergunta. — Seria possível?
O casal trocou olhares por um breve momento. Ambos assentiram, olhando para Marla e segurando as mãos um do outro.
— Ok — ela começou, olhando para o pequeno gravador em sua mão e ligando-o. — Primeiro, gostaria de afirmar que essas perguntas estão sendo gravadas e qualquer obstrução a isso impossibilitará o questionário de continuar.
— De acordo — disse o homem.
REC.
— Seus nomes.
— Walter e Diane Süskind.
— Helen costumava sair muito de casa?
— Que relevância essa pergunta teria? — perguntou Diane, com asco.
— Amor...
Pause.
— Ela saía bastante. Na maioria das vezes, com algumas de suas amigas do colégio. Raramente saía sozinha — Diane respondeu.
— E como costumava voltar?
— Sozinha.
— As amigas estavam agindo de modo incomum com Helen, ultimamente?
— Não que percebêssemos. — Walter tomou a voz.
— Os professores fizeram alguma reclamação?
— Ainda que eu ache que isso é papel da polícia investigar — falou Diane —, não, não fizeram. Ligamos para a escola. Eles disseram que não viram nenhuma mudança nas atitudes de Helen.
— Alguém na vizinhança requisitou algum serviço?
— Não que saibamos.
— Vocês requisitaram?
— Qual a relevância dessa pergunta?
Pause.
— Sra. Süskind, talvez alguma pessoa já estivesse observando Helen previamente. Uma pessoa que foi chamada para prestar serviços dentro de uma casa ou na vizinhança é uma boa pista.
Pause.
— Não. Ninguém foi chamado aqui em casa.
— Helen era uma pessoa sociável?
— Ela tinha muitos amigos. Alguns vinham para cá. Eu e Diane gostávamos de ver amigos dela aqui em casa, porque não costumamos ter tempo livre. Era... Bom ver Helen ter um bom momento com pessoas da idade dela.
Pare.
— Pessoas da idade dela?
Pause. Hesitação.
— Helen gostava de frequentar lugares para pessoas mais velhas. Não tão mais velhas — Walter se apressou em acrescentar —, não me entenda mal, nossa filha não era promíscua. Ela ainda tinha sua virgindade. Mas preferia a companhia de pessoas de vinte, vinte e cinco anos. Dizia que gostava mais da maturidade.
— Dizia que os garotos da idade dela só pensam em sexo — prosseguiu Diane —, e não entendiam a escolha dela.
— Pode me informar onde ela conhecia esses homens?
— Não eram só homens, Srta. Bronx.
— Detetive.
— Detetive Bronx — Walter se corrigiu. — Helen não tinha envolvimentos românticos com essas pessoas. Eram relacionamentos como quaisquer outros.
— Entendo. Onde Helen tinha contato com essas pessoas?
— Por amigas, na maioria das vezes. Ela dizia que algumas de suas amigas conheciam pessoas mais velhas e frequentavam seus círculos, por conta de suas irmãs.
— Vocês nunca se posicionaram contra isso? Contra Helen preferir se relacionar com pessoas muito mais velhas?
Ambos deram de ombros.
— Nunca nos opusemos. Se isso era o que parecia deixar Helen bem, não víamos motivos em proibir. — A voz de Diane tornou-se chorosa enquanto ela encarava o café já frio.
Marla tinha a testa franzida em pena.
— Sabem o nome de algum desses amigos de Helen, com quem eu possa entrar em contato?
— Posso lhe passar alguns nomes e telefones, detetive Bronx — falou Walter, sacando do bolso da camisa um papel e uma caneta. — Helen nos dava todos os contatos de pessoas com quem andava.
— Por quê?
Eles recuaram em surpresa.
— Como assim “por quê”? Para termos para quem telefonar, caso o celular de Helen ficasse fora do ar.
Marla franziu o cenho.
— Isso acontecia com frequência? O celular dela ficar incomunicável?
Diane Süskind pareceu ser atingida por um raio, caiu a cabeça na mesa e começou a chorar.
— Devíamos ter visto, Walter... Devíamos ter visto...
Seu marido parecia estar lutando para não desabar. Acariciava suas costas. Entregou um pequeno papel dobrado a Marla, que o guardou sem conferir.
— Por favor, detetive Bronx, saia.
Marla obedeceu, e pela primeira vez em muito tempo, teve vontade de chorar.

abriu a porta de casa um pouco antes do sol começar a se pôr. Tirou o suéter e jogou a mochila no sofá, indo diretamente para a cozinha. Abriu a geladeira e pegou uma barra de chocolate. Pegou um copo d'água na pia e colocou tudo em cima da mesa, ao lado do frasco do seu remédio. Pôs as mãos na cintura e encarou o remédio e o chocolate, como se fosse uma questão de escolha.
Acalme-se. Você está bem.
Você ainda está bem.

Pegou o remédio com pressa e jogou a pílula garganta abaixo, com a água para forçá-la a descer. De imediato, sentiu os ombros abaixarem.
Subiu para seu quarto e sentou-se no parapeito da janela, uma pequena área quadrada, aconchegante o suficiente para sentir o frio do vidro. Gostava de olhar para a rua dali. Para o céu.
Eu sou o céu.
Comeu um pedaço do chocolate e suspirou. O céu estava laranja.
Tracy. Tracy .
Pegou, no bolso, o pequeno isqueiro quadrado. Acendeu-o e observou a pequena chama azul se formar.
Tinha uma imagem. Juliet Ramsay chegando em casa. Ela abre a porta, de manhã, depois de fazer compras.
É alguém que ela conhece. Sim, só pode ser.
Ela dá as costas.
Aí, ele corta sua garganta e a faz cair.
Não, está errado.
O primeiro corte foi em casa. Mas não na sala.
Não tinha achado o primeiro jato de sangue. E sabia que o primeiro corte não foi no abdome.
Ela teria tentado resistir. Seja como for, a morte foi instantânea.
Mas, se ela morreu na hora, como o corte não teria sido na sala?
Você está confusa, . Precisa organizar sua cabeça.
Fechou o isqueiro e conferiu as horas. Encontraria em uma hora.
Encontraria?
Não sabia se deveria contar a ele o que estava pensando. Definitivamente, deveria esperar ele falar algo primeiro.
Sim, faça isso.
Comeu mais uma parte do chocolate. Embrulhou o que sobrou e foi para o banheiro. Tomou outro banho, mais demorado e com a água bem quente. Saiu e vestiu sua roupa social.
? — perguntou Patty.
— No quarto — ela indicou. Patricia apareceu na porta instantes depois, ainda com suas roupas do hospital.
— Vai sair de novo? — perguntou a enfermeira, com os braços cruzados e a voz em tom malicioso.
— Reunião de trabalho — respondeu , fechando os botões de sua camisa, com indiferença.
— Sei. Reunião de dois, você e um cara, potencialmente bonito e em algum lugar que não é a delegacia. Acertei?
riu. Havia um motivo para considerar Patty uma irmã.
— Estamos trabalhando juntos.
— Nossa! Não errei nenhuma. Ele é bonito mesmo?
— Cala a boca.
— Já valeu a resposta e essa sua cara vermelha. O que fez o dia inteiro?
suspirou.
— Vi a minha mãe.
O rosto de Patricia murchou.
— O que ela falou?
— Merda, para variar.
Sua voz saiu como um rugido. Patty recuou, mas não pareceu ter percebido.
— Hoje faz mais um ano.
— Eu sei.
— Seu irmão está bem?
— Pergunta para ele.
Patricia engoliu em seco.
— Ok, . Vou deixar alguma comida na geladeira, caso você tenha fome quando voltar. Queria lanchar com você hoje. Vou para meu apartamento novo na sexta.
passou pela porta e desceu as escadas com pressa.
— Não espere por mim — avisou.
Pegou a bolsa e saiu. Do lado de fora, já estava escuro. Tomou outro comprimido antes de encontrar .

O Purple Light tinha um pequeno painel neon com seu nome em cima de uma porta apertada, envolvida por uma luz azul-clara. A porta era escura e levava a uma escada que descia um único lance, onde ficava o pub. Havia várias mesas para quatro pessoas, mal iluminadas, e um pequeno palco com espaço para uma pequena apresentação. O bar era longo, estendendo-se por todo o cômodo. Muitas pessoas estavam de pé. prendeu seus cabelos em um rabo de cavalo e foi até o bar, onde a luz era um pouco mais intensa. Pegou o isqueiro no bolso da calça, mas não o acendeu.
— Quer um cigarro? — perguntou alguém, do outro lado do balcão. Era um homem que não devia ser muito mais velho que ela.
Pelo susto, hesitou, dizendo “não” com a voz trêmula.
— Uma bebida, então? — ele completou, adicionando um sorriso. — Por esta, você vai ter que pagar.
— Estou esperando uma pessoa.
Ele levantou as mãos em sinal de rendição e deu as costas para . Parecia um pouco irritado.
Por caixas de som baixas o suficiente para não incomodar as conversas, reconhecia notas isoladas de Deep Purple. Passou os olhos pelo lugar: as mesas se concentravam perto das paredes, mas a maioria estava vazia. Em vez disso, muitas pessoas (na maioria homens) se aglomeravam em pequenos círculos.
Parecia o lugar onde ele gostaria de estar.
Ele. Ali.
Ele está aqui.
Essa imagem dele na sua cabeça, onde quer que você esteja.
Sempre.
Balançou a cabeça em negação. Ele não estaria ali.
Agarrou o isqueiro e apertou-o com força na palma da mão.
Passou os olhos novamente pelo salão mal iluminado. Embaixo de um pôster de algum álbum de rock que desconhecia, bebericava uma garrafa de cerveja e olhava com preguiça para as pessoas ao redor. Não pareceu ter localizado ainda. Ela aproximou-se da pequena mesa em que ele estava.
! — chamou, antes de se sentar.
Ele olhou para ela. Seu rosto pareceu animar-se, como se ele tivesse esperado o dia inteiro para encontrá-la e dizer tudo que aconteceu.
— disse, ao se levantar para cumprimentá-la. — Posso te chamar assim?
Ela assentiu e sentou-se na frente dele. A mesa que os separava era redonda, que não devia ter nem um metro de diâmetro.
— Vai querer beber algo? — ele perguntou. Vestia uma camiseta branca por debaixo de uma jaqueta preta.
— Aceito o mesmo que você.
Ele fez um sinal para o bar. O mesmo homem que abordara anteriormente levou, a contragosto, uma garrafa para ela. não estava acostumada a beber durante a semana, mas sabia que isso era um gosto adquirido. Pelo menos o gosto era bom.
— Já tinha vindo aqui? — ele perguntou.
— Conhecia, mas nunca tinha entrado. Parece agradável, mesmo eu não gostando tanto de rock.
fez uma careta de choque.
— Como assim?
deu de ombros com um sorriso. Bebeu mais um pouco de sua garrafa.
— Entrevistou alguém hoje? — ela perguntou, tentando voltar o foco para o objetivo do encontro.
O rosto de saiu da despretensão para uma completa concentração. Ajeitou sua postura, deixou a garrafa na mesa e pegou o bloco de notas no bolso interno de sua jaqueta.
— Falei hoje com a amiga de Tiana. Ela só tremia, parecia que eu ia dar o bote a qualquer momento.
— Ninguém lida bem com policiais de primeira.
— Sim, mas por isso eu tentei uma abordagem mais calma. — abriu o caderno enquanto falava rápido, ansioso. — Ela reagiu bem à todas as perguntas. Mas tem uma coisa que não casou.
— Sou toda ouvidos.
— O nome dela é Faye, ela mora com a Tiana em um quarto alugado. Disse que Tiana nunca dormiu fora de casa, o que já é estranho o suficiente. Falou que ela era uma mulher extremamente sociável, e que passava o dia fora fazendo pesquisas para reportagens. E outra: Faye só ligou para a polícia na manhã do dia seguinte, quando já até sabíamos onde estava o corpo. Mesmo tendo passado o dia inteiro sem vê-la.
— O dia do crime?
— Sim. Ela acordou e Tiana já tinha saído. Confirmei isso com a câmera externa de uma loja do quarteirão. Tiana passou por lá. Então, Faye faz um concurso à tarde, volta tarde para casa e Tiana ainda não apareceu. Sai novamente, volta de madrugada. E ainda não percebe que Tiana não chegou?
— Foi nessa hora que ela percebeu que não devia ter mentido sobre Tiana dormir fora.
— Mas, no dia seguinte, ela liga para a polícia por volta das nove da manhã, porque não tem sinais de Tiana. Encontraram o corpo dela e recebemos a ligação sobre isso às 8:30. E outra: disse tudo isso olhando no meu olho. — Apontou para os próprios olhos. — Mas quando eu perguntei sobre namorados da Tiana, ela não conseguia olhar para mim.
— Você a pegou na mentira... — comentou , bebendo mais um pouco.
deu de ombros, com um sorriso de falsa modéstia.
— Parte da ideia de ser o “policial bom”. Eles nunca estão preparados para o momento de mentir.
— Acha ela pode estar encobrindo algo?
— Sim. Muito provavelmente, ela conhece algum cara que tenha saído com a Tiana e tenha se desencantado com ela. E está querendo encobrir ele. Não sei. — Começou a olhar para o teto. — Pode ser algum amigo dela.
falava incrivelmente rápido, mas sua dicção não falhava em nenhum momento.
— Ou ela não sabe quem ele é, mas se vê na obrigação de saber.
Voltou a olhar para . Bebeu um pouco acompanhando-a.
— Como assim?
— Ela está arrependida por não saber onde Tiana dormia, e, por isso ser comum, não estranhou ela não dormir em casa no dia do crime. Mas agora sabe que pode ser considerada suspeita. Se ela quisesse encobrir alguém, já teria desistido da ideia para se salvar. Teria dito para você “falar com o fulano”, porque “talvez” ele tenha alguma informação. Ia passar a merda adiante. Mas se ela não passou e só se explicou, é porque ela não sabe com quem Tiana estava. Ela não conseguiu voltar atrás na mentira. Conferiu os álibis dela?
apertou os olhos e tomou um gole da garrafa sem parar de olhar para .
— Conferi. Ela só está sem álibi para o momento em que voltou para casa depois do bar. Nenhuma câmera da vizinhança estava ligada de madrugada.
— Mas ela ainda está com medo. Porque sabe que não está totalmente livre de suspeitas.
— Acha que eu deveria tentar ser mais duro na próxima vez? Supor que ela está sob suspeita?
pensou um pouco enquanto bebia. Olhou para as pessoas aglomeradas e voltou a olhar para .
— Não, por enquanto. Só diga a ela que sabe que ela mentiu. Um blefe leve. Diga que tem vídeos de Tiana com um homem e que precisa saber quem ele é.
— Ela vai entrar em parafuso se me vir de novo e eu estiver a acusando de ter mentido.
deu de ombros.
— Se tivesse falado logo que não sabia com quem ela estava saindo, não estaria nessa situação.
— Sabia que devia ter me aproximado de você.
Trocaram uma risada cúmplice.
— E você? Entrevistou alguém hoje?
fez que não.
— Tive um dia cheio. Amanhã precisaremos voltar à vila. Preciso pegar mais informações com a vizinhança, conhecer mais eles.
— Sem sinal do menino, ainda?
Ela negou com a cabeça.
— Nada. Estamos atentos à linha de desaparecidos, mas ainda não sabemos onde ele possa estar.
— E a filha mais velha? Dahlia?
— Problema da do futuro. Vou procurar o endereço dela, para ligar. Não recebemos registros de onde ela se mudou ainda.
Bebeu mais um pouco e tomou um momento para ficar em silêncio e observar os próprios dedos, que ainda apertavam o isqueiro.
— Desistiu? — perguntou .
— De quê?
Ele apontou para o isqueiro. riu e negou com a cabeça enquanto guardava o isqueiro no bolso.
— Próximo passo? — ela perguntou.
— Vou questionar Faye de novo. O lugar para onde ela trabalhava também quer falar comigo, mas não sei quando vou conseguir. Agora, a prioridade é o seu caso.
franziu o cenho com um pequeno sorriso.
— É?
— Você usou o plural ainda agora — ele respondeu, com um sorriso. — “Precisaremos”. Não me culpe.
desviou o olhar. ainda a examinava, olhando para seus olhos com atenção.
— Mas, você estava dizendo que não gosta de rock.
— Nunca ouvi com atenção.
Ele terminou de beber e inclinou o corpo para frente. fez o mesmo, como se fosse ouvir algum tipo de confissão.
— Conhece “The end”, do The Doors?
— Sim. O que tem?
— É uma música interessante. Eles têm alguma influência da cultura grega, sabia? Essa música, para mim, é o que deixa isso mais claro. — Apontou para a caixa de som, e ela reconheceu a música. — O Jim declama todos os versos e faz referências ao mito de Édipo. Mas o mais interessante é como eles tratam a guerra nessa música. É claro que eles estavam falando do Vietnã, mas aqui é uma batalha clássica. Eles estão cheios de melancolia, de tristeza, em ir para a guerra. É uma despedida, porque eles sabem que vão morrer. Vão morrer como pessoas quaisquer. É um tipo de último choro. Agora, você conhece “Immigrant song”, do Led Zeppelin?
— Quem não?
— Aqui — ele apontou para a mesa, fazendo os olhos de se distraírem por um momento, mas logo voltaram a olhar para os seus —, eles também falam da guerra, mas na perspectiva nórdica. Não é um choro, não é uma lamúria. É um grito animado, ansioso. Eles correm até a guerra, não o contrário. Eles ovacionam a guerra, dizem que vão ao Valhala, que é um tipo de paraíso para os guerreiros. Eles querem guerrear, mesmo que não vençam. A morte é a honra máxima.
— Por que está me falando isso? — perguntou.
fez sinal para que lhe servissem outra bebida.
— Porque me faz lembrar de nós. Nós estamos indo para o Valhala.

— falou Lenny, assim que atendeu o telefone.
— Eu.
— Seu filho da mãe — murmurou. — Em menos de um dia.
— O que você tem, Lenny?
— Benjamin Keurac tem quarenta e três anos, dez de FBI, divisão de homicídios, mas essa parte final você já deve saber — citou Lenny, como se lesse um discurso. — Casado com uma professora de inglês para colegiais. Nasceu em Chicago. Ficou dois anos sem poder andar armado porque tinha perdido sua arma em uma operação. Nunca levou um tiro, mas já foi hospitalizado uma vez por estresse pós-traumático. Odeia a mídia durante a investigação, mas a ama quando já solucionou o caso. Teve uma condecoração do nosso ex-presidente, veja só. E, uma curiosidade, o filme favorito dele é Platoon. Achei simbólico.
— Onde é a parte interessante?
— Espere só, cara. O seu agente é especialista nacional, e até internacional, em serial killers. Já deu até aulas sobre o assunto. Tem formação na área, certificado dos melhores centros de estudo do país. Prendeu cinco serial killers e inúmeros outros assassinos. Boa sorte com o que quer que você esteja envolvido, .
engoliu em seco, mas abriu um pequeno sorriso.
— Obrigado, Lenny.
Desligaram.

Isn't it hard to make up your mind? When you're losing and your fuse is fireside…


Capítulo 5 — Paranoid

People think I’m insane because I am frowning all the time...

A paranoia (ou delírio paranoide) é um sintoma comum de estresse pós-traumático. Trata-se do medo exagerado que algo aconteça, normalmente, algo improvável. O temor costuma ser de que alguém possa lhe causar algum dano, seja ele físico ou psicológico. O paranoico costuma demonstrar sinais de ansiedade e medo, além de uma acentuada desconfiança e fadiga. Por vezes, a resposta à paranoia se mostra frustrada, uma tentativa de manter-se no controle.
Os pacientes paranoicos tendem a não reconhecer que são paranoicos.

acordou de madrugada. Tinha chegado em casa tarde na noite anterior, depois de deixar em casa e de beber um pouco mais do que o aconselhado para uma quarta-feira. Fumou um cigarro na pequena varanda de casa e tomou um banho antes de dormir.
Acordou às três da manhã. Estava sem sua camisa, apenas com suas calças de moletom. Andou tonto até o banheiro e olhou-se no espelho, com a luz da rua refletida. Tinha cara de doente.
Não podia fumar ou comer. Isso só o deixaria mais desperto. Tentou ler, para cansar os olhos, mas não conseguiu ficar desinteressado. Por fim, desistiu e passou a olhar para a janela.
Sua cortina branca transparente dançava em movimentos lentos, em uma brincadeira de esconder o cubículo que considerava uma varanda. O apartamento pequeno foi alugado às pressas no final do ano anterior; por sorte, conseguiu um preço bom perto do final do ano. Mudou-se antes do Ano-Novo e passou as festas sozinho. Na maioria das noites, tinha a visita de mulheres cujos nomes não lembrava e cujos corpos conhecia bem. E, na manhã seguinte, trancava-se em uma fortaleza estranha na qual ele mesmo era um estrangeiro.
Irvine.
Outono.
Tentava não se lembrar, mas, aos poucos, se convencia de que podia criar uma fantasia em que ele era um mártir. Lá, de madrugada, era um policial que tinha feito a coisa certa.
Tocou sua cicatriz e começou a coçar. Naquela noite, coçou mais do que o normal.
Nós estamos indo para o Valhala.
Irvine.
Outubro.
Fechou os olhos e continuou coçando a cicatriz. Tinha alguma coisa ali que doía como em muito tempo não doía. Correu as unhas com rapidez e agressividade pela cicatriz até que seu rosto se contorceu de dor e soltou um grunhido baixo.
Irvine, operação confidencial para acabar com um esquema de venda de cocaína.
Olhe para o teto.
Feche os olhos.
colocou a arma no coldre, mas não pretendia atirar. Nunca pretendia.
Mais forte.
Não atire.
Estendeu os braços para cima.
Irvine, tiroteio num galpão.
Mais forte.
Olhe para frente. O galpão é cinza e você lembra disso porque era a cor do seu colete. O colete que você usava. O colete que salvou a sua vida.
Tiros, muitos tiros. Tiros como você nunca imaginou que fosse ver ou ouvir em um único dia.
Feche os olhos. Você está aqui.
Mais forte, tire isso de você.
Abra os olhos. Acorde.
Você tira o colete porque já acabou.
Só têm você e mais três policiais. Todos tiraram seus coletes também. Acabou.
Mais forte. Ela ainda está aí.
Você tira seu colete porque não tem mais medo.
Então, quando você olha para frente, você cai de costas.
Você ouve um barulho, cai e sente uma poça de sangue se formando na sua camisa preta.
Mais forte. A bala ainda está aí.
Não atire.
Não atire!
Você gritou e sabe que se eles quisessem te matar, já podiam ter feito isso.
Não, isso é só um aviso.
Tire a bala daí.
Eles vão até você. Um remove sua arma do coldre. O outro está segurando a arma de um dos traficantes. O terceiro só está rindo.
Tire ela daí. Arranque ela daí.
Está sentindo isso? É o seu sangue e ele está indo embora.
Um deles disse que você ia sobreviver para que calasse a boca e não se metesse em assuntos alheios.
Mais forte.
Olhe para o teto. Olhe para baixo. Suas mãos estão cheias de sangue de novo.
O corte maior era agora uma poça de sangue que escorria por cortes menores. Sujou os lençóis e um pouco da calça. Suas unhas estão ensanguentadas.
Sua cabeça caiu no travesseiro. Sentia que a bala ainda estava ali. Correu para o banheiro e lavou o sangue. Fez um curativo com o que ainda tinha em casa. Odiava quando isso acontecia.
Queria que isso acabasse. Não aguentava mais os delírios, os pesadelos, os ataques de pânico.
Controle.
O problema fora que fechara a ferida sem remover a bala.

Quando eram nove da manhã, não sabia se devia ou não ligar para . Tinham combinado que ele iria buscá-la na porta de casa para voltarem para a Vila de Lui, mas já tinha se passado meia hora e nenhum sinal dele.
Volte para dentro, ele não vem.
encarou o celular. Não, ele disse que iria.
Ele vem.
O carro de apareceu virando a esquina da Singer Street. Estava tão lento que se preferisse andar ao lado dele, estaria sendo mais rápida. parou na frente do prédio de e abriu a janela.
— Desculpe o atraso — falou, com a cabeça inclinada para a janela. — Tive uma noite ruim.
— Sua namorada não gostou de você ter saído para beber com uma colega de trabalho?
tossiu uma risada e completou com um baixo “que namorada?”. entrou no carro e colocou o cinto.
— Tem remédio para dor de cabeça? — ele perguntou, com uma careta de dor.
— Não. — apertou os olhos para analisar o rosto de . — Você não parece com cabeça para uma investigação.
— Estou bem — suspirou e começou a dirigir em direção ao Blanche. — Quem pretende entrevistar hoje?
deu de ombros.
— Pensei na Sra. Cortez de novo, dessa vez algo mais profissional. Vizinhos diretos das Ramsay.
— A divisão de desaparecidos deu alguma informação nova sobre o menino?
— Patrick? Nada. Nem sinal dele.
— Provavelmente, está num poço ou num matagal qualquer.
— Cala a boca.
Olhou pela janela. Queria não ter ficado com o caso do incêndio.
Quando entraram na vila, passaram pelas mesmas ruas que tinham caminhado dois dias antes, mas agora com um pouco menos de insegurança. A casa de Juliet continuara do mesmo jeito. Agora, no entanto, já não via mais o que sobrou como uma destruição total. Parecia só uma casa qualquer.
Apertou o isqueiro da mãe e agarrou a foto de Juliet no outro bolso. A blusa preta que vestia cobria o cós do jeans. Naquele dia, percebeu que era preferível usar roupas que não a afastassem tanto de com quem fosse falar.
Foi até a casa da Sra. Cortez. Bateu na porta, que foi prontamente atendida por uma jovem.
— Sim? — Sua voz era fraca e tímida.
colocou as mãos atrás do corpo e vestiu seu melhor sorriso. Atrás dela, não reagia.
— Podemos falar com a Sra. Cortez?
— Quem quer?
— Somos da polícia. Ela falou conosco há dois dias.
A moça fez menção de fechar a porta, mas uma voz gritou do lado de dentro da casa:
— Melissa!
A Sra. Cortez abriu a porta por detrás da jovem. Arqueou as sobrancelhas e sorriu.
— Ah. Vocês voltaram.
Parecia um pouco cínica. recuou um pouco, batendo as costas no corpo de .
— Precisamos falar com a senhora. Está ocupada?
— Até estou, mas posso falar um pouco. Querem entrar? — Ela abriu o espaço. — O café ainda está quente.
hesitou enquanto procurava o rosto de . Em dúvida, ele também não respondeu.
Perguntou-se o quão seguro seria entrar na casa de uma vila que odeia policiais.
— Claro, um café.
fez questão de exibir seu coldre com uma arma, mesmo que descarregada, quando entrou na casa. Tirou o blazer preto e deixou-o ao seu lado no pequeno sofá. sentou-se do seu outro lado.
— Tem certeza? — ela murmurou, apontando para a arma com os olhos.
— Não se preocupe.
A anfitriã veio até eles com duas canecas de café. aceitou e começou a beber, olhando para a casa. Tentou identificar algo que poderia ser uma ameaça, ou que pudesse dar alguma indicação do que fazer, ou perguntar. Não achou nada.
Não me prepararam para isso na academia.
— Sra. Cortez...
— Amelia — ela cortou, com um sorriso simpático. — Me chamem de Amelia.
— Amelia... Tem notícias de Dahlia ou Patrick? — Tentou uma abordagem mais descontraída, com as costas apoiadas no sofá e as pernas cruzadas. — Ele apareceu por aqui?
A senhora fez que não com a cabeça e deixou o café em cima da mesa.
— Está sem açúcar? Posso pegar açúcar, se quiserem.
— Está ótimo, Amelia, obrigada — agradeceu , com um sorriso amistoso.
— Bem — ela começou, enquanto se ajeitava na poltrona —, o Patrick não era um menino que saía com frequência. Ele era bem pequeno, nem parecia ter a idade que tinha. Duvido um pouco que tenha saído de espontânea vontade.
— Entendo — murmurou , anotando algo em uma caderneta. — Acha que alguém pode ter tirado ele de lá à força?
— Convenhamos que não seria difícil.
— Mas passar pela Juliet talvez fosse.
Amelia concordou com a cabeça. sabia que ela não queria falar algo. Responder perguntas do lado de fora de casa era uma coisa, mas dentro...
— Sim — concordou a senhora —, ela era muito zelosa em relação aos filhos. Lembro quando a Dahlia apareceu namorando um rapaz. Ela não gostou nem um pouco. Todos nós ouvimos a gritaria. Ela se mudou logo depois. Imagino que ela tenha ficado ainda mais… "Em cima" de Patrick depois disso.
— Sabia que ela foi esfaqueada em casa? — perguntou, apoiando o cotovelo direito na perna e o queixo na mão direita. Apertou os olhos sutilmente, analisando Amelia desde seus cabelos espessos até suas unhas dos pés. A senhora ergueu as sobrancelhas ao mesmo tempo que fez o mesmo. Ele, com discrição, cutucou a perna de , sem deixar de olhar para a Sra. Cortez.
O que ela pensa que está fazendo?
— Não. Não sabia.
— E a porta não pareceu ter sido arrombada.
— Mesmo com o fogo, deu para saber disso?
só assentiu com a cabeça.
— Vocês são bons.
A moça deu de ombros com uma risada amistosa.
— Já têm suspeitos?
— Isso é informação confidencial, Amelia — ela murmurou, pegando a caneca para beber um pouco mais. Afinal, era realmente gostoso.
passou a mão na testa e arrastou os cabelos para trás.
— Estávamos pensando em começar a procurar por algum tipo de serviço prestado na casa delas. Consertos ou instalações no geral, até entrega de comida. Sabe onde podemos ter essa informação?
— Não lembro dos Ramsay pedindo algum serviço, mas talvez eu tenha me esquecido.
inclinou o corpo para frente e ajeitou sua postura. Tentava evitar uma atitude repulsiva, autoritária, que deixasse claro que ela era policial. A Vila Lui já era hostil o suficiente. Preferia algo quase ingênuo. não soube precisar se isso era intencional ou não.
— Sabe onde consigo essa informação?
Amelia fez uma careta, torcendo o lábio e olhando para cima.
— Não sei. Não sei se no telefone delas tem essa informação.
direcionou seu rosto para :
— Me lembre de falarmos mais tarde com o pessoal sobre isso.
Ele assentiu.
— Juliet saía muito?
— Não tanto. Dia sim, dia não, talvez.
— Quando tinha sido a última vez que ela tinha saído, antes do incêndio?
— Não sei precisar, talvez na véspera. Mas normalmente, quando saía, era de manhã e voltava duas ou três horas depois.
— Ela tinha uma boa relação com os vizinhos?
Amelia suspirou. sentiu um tipo de nostalgia em seu semblante.
— Acho que ninguém tinha problemas com a Juliet. Ela era uma mulher muito boa, entende, detetive? Chegou aqui quando a Dahlia era criança e Patrick era bebê. Costumávamos organizar eventos de crianças, para arrecadar roupas e brinquedos entre a comunidade. Juliet costumava cuidar de crianças pequenas, preparar comidas. Era algo de contos de fadas.
A detetive engoliu em seco. Temia que o discurso fosse ensaiado, mas o rosto choroso de Amelia parecia genuíno.
— Acha que ninguém na Vila teria motivações?
Amelia fez que não. e se olharam, em uma mútua concordância de averiguar isso melhor depois.
— Patrick costumava sair muito?
— Não, ele era muito jovem para isso, segundo Juliet. Ia e voltava sozinho da escola, a pé. De tarde, ficava em casa com a mãe. Às vezes ela o deixava brincar na rua com outros meninos, mas só quando ela estivesse com bom humor.
— E Dahlia? Ela saía muito? Tinha muito contato com outras pessoas?
— Dahlia costumava ir e voltar da escola sozinha, quando era mais nova. Melissa já a acompanhou algumas vezes.
— Sua filha?
Amelia assentiu com a cabeça.
— Podemos falar com ela também?
— Sim, por que não? — ela retrucou, com o mesmo sorriso de antes. — Mel!
A moça reapareceu na sala. tinha demorado a perceber que ela saíra, de tão esguia que ela aparentava ser. Continuava com a postura acanhada.
— Venha aqui, os policiais querem te perguntar algumas coisas — chamou Amelia, dando tapinhas no braço da poltrona em que estava sentada. Frisara a palavra “policiais” de um jeito incômodo, quase com asco.
e se entreolharam nervosos. O ideal seria falarem com Melissa em particular, mas sabiam que estar interrogando uma moradora da vila já era um milagre por si só. Teriam que deixar as burocracias para depois.
— Oi, Melissa, eu sou a detetive — ela disse, estendendo a mão para a moça e usando sua voz mais cordial. — E este é...
. . Só — ele disse, também apertando sua mão. — Estamos aqui para falar da Dahlia e do Patrick.
A moça assentiu, olhando para baixo. Seus fios de cabelo pretos e grossos tapavam-lhe as bochechas e um pouco dos olhos.
— Não éramos próximas — ela logo emendou.
apoiou os cotovelos em seus joelhos, se aproximando mais da moça. Tomou a voz para acalmá-la:
— Não estamos procurando suspeitos ainda, Melissa.
— Por enquanto, só queremos entender a cronologia do que aconteceu e onde está o Patrick.
A jovem parecia suar.
— Eu não estava acordada quando o fogo começou. Não vi Patrick nem Juliet.
— Ele foi para a escola no dia?
— Foi.
— Você o viu?
— Não, naquele dia ele chegou antes de mim.
— E isso é comum?
Ela envolveu-se em um misto de hesitação e desinteresse.
— Até era. Às vezes, ele ia mais cedo para pegar o ônibus mais vazio.
— Você viu Patrick voltando para casa?
Melissa fez que não. suspirou, com pena da garota. Estava desesperada para sair dali.
— Melissa, você teria o endereço ou telefone de Dahlia? Para fazermos algumas perguntas para ela.
— Ela não soube do incêndio ainda?
hesitou. Não tinha ligado para a filha da vítima. Não avisou Dahlia que a mãe dela tinha morrido.
— Não somos nós que entramos em contato — respondeu, interrompendo o silêncio. — Não sabemos se ela já está ciente. Vamos ver com o departamento responsável.
Melissa assentiu, olhando para baixo. notou que Amelia segurou a mão da mãe e a apertou, como se a reconfortasse.
— Obrigada pela colaboração, Sra. Cortez — ela disse, se levantando. — Se tivermos mais perguntas, voltaremos. Pode nos passar algum contato?
— Pois não — Amelia começou a citar os números, que foram anotados por . pegou um papel e entregou-o na mão da mulher.
— Se precisar falar comigo, ligue para esse número e diga que está procurando pela .
Cumprimentou Amelia e Melissa com apertos de mão, a filha inicialmente. Depois, ela e foram em direção à porta. Assim que se fecharam do lado de fora, cruzou os braços e murmurou, andando para mais perto da casa das Ramsay:
— Deixei meu número pessoal com Melissa. Acho que ainda hoje recebo uma ligação.
— Ela me pareceu um pouco mais arisca, hoje. Amelia.
deu de ombros.
— Não esperava menos. Ela não quer correr o risco de botar algum vizinho na linha da polícia.
— Ou a si mesma.
— Duvido que ela tenha feito algo. Queimar a casa faz parecer algo bem mais pessoal do que uma rixa de vizinhança. E você ouviu o que ela falou sobre a Juliet.
— Acho que cedo ou tarde vai aparecer algum corpo, de algum rebelde sem causa fazendo justiça. Tem alguma coisa nessa vila que a gente não sabe, e eles vão resolver isso com ou sem a gente por perto.
Pararam na porta da casa.
— Você acha mesmo? — ela perguntou.
pegou um cigarro no bolso e acendeu-o com o isqueiro. Ele tragou para trás, olhando ao redor.
— Eles se veem em um país próprio. Devíamos ficar mais tempo por aqui. Tem parentes estrangeiros?
— Meu bisavô era italiano.
Ele riu. Sentaram-se no pequeno degrau firme na frente da casa das Ramsay.
— Acho que é um caso perdido. É o tipo de coisa que se resolve sozinha.
— Cala a boca — ela murmurou, olhando para o chão.
— Só cuidado, porque logo vamos ter outro morto na Vila Lui.
suspirou, brincando com o isqueiro.
— Sabe o que me incomodou? Ela sempre se referia ao Patrick no passado.
— Eles também acham que ele está morto — ele respondeu com desinteresse.
— Eu não acho.
— É porque você é nova.
Ela virou os olhos. Passava os olhos pelas casas, imaginando as pessoas do lado de dentro.
— Eu não consigo imaginar ninguém daqui fazendo isso. Queimar uma das casas da vila me mostra um tipo de descrédito ao que ela significa. Me parece coisa de algum estranho.
— Pode ter sido de alguém que não gosta de viver aqui. — Ele tragou novamente.
— Pode, mas é algo muito remoto.
— O fogo pode ter sido acidental.
Ela negou com a cabeça enquanto acendia e apagava o isqueiro.
— Pegando quase a casa inteira? Duvido. Viria muito a calhar.
Um grupo de jovens estava reunido na frente de uma casa a alguns metros de onde eles estavam. Eram cinco, no total, três hispânicos, entre eles uma garota. Um garoto era preto e a última, caucasiana. Conversavam com rostos cheios de pesar, e por vezes, alguns escapavam os olhares para os detetives.
— Vou confirmar a história tocante da Amelia, e você lida com o Clube dos Cinco.
— Ei! — ela gritou, olhando para frente. — Ei, vocês!
Levantou-se rapidamente e tomou passos largos. não a acompanhou de imediato, demorando alguns segundos para se levantar e ir até uma casa qualquer. Precisou bater na porta de três, até que o deixassem entrar.
aproximou-se do grupo, que encolheu os ombros, com exceção de um dos garotos. Este manteve uma postura ereta, tentando soar intimidador. Devia ter 15 anos. se arrependeu por não ter pedido a sua arma.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou o garoto.
Ela franziu o cenho com indignação.
— Sou da polícia — disse, mostrando sua identificação. — Estou investigando o incêndio.
— A polícia nunca veio aqui — disse o garoto, levando aos lábios um cigarro já na metade e com o rosto de desdenho. — Nem quando aconteceram coisas piores que um churrasco.
tentou evitar o desrespeito e cruzou os braços antes de dizer:
— Juliet era cidadã americana. Vocês a conheciam bem?
Uma das meninas ia responder, antes que o garoto a cortasse:
— Não deveria ser coisa do FBI? Somos uma região internacional.
Meu deus.
Me peça para lidar com serial killers, mas não com uma criança dessas.

— O FBI tem coisas mais importantes para lidar do que um incêndio.
O garoto recuou. Jogou o cigarro no chão com um som de birra e cruzou os braços.
— Vocês a conheciam?
— Comíamos as comidas dela de vez em quando. Nada demais. Ela já cuidou da minha irmã mais nova algumas vezes.
— E Dahlia?
— Ela vivia trancada no quarto — disse uma menina, com as mãos na cintura. — Sempre que a Juliet fazia almoços na casa dela, a Dahlia nunca aparecia. Se eu cruzasse com ela na rua, não reconheceria.
— E Patrick?
O garoto riu.
— Era um chato. Não fazia nada, não falava nada. Vivia na saia da mãe. De vez em quando jogava bola com a gente, mas era só a mãe aparecer que ele sumia igual fumaça.
— Ele é uma criança.
— Ele está morto — murmurou um menino. — Sabemos que ele está morto.
Todos olharam para ele. Era o caucasiano, que ainda tinha os ombros encolhidos.
— Na verdade, não sabemos — mencionou, estudando-o com cuidado. — Mas por que você acha isso?
— Ele não ia durar um dia. É um bebêzão.
— Acho que sim — concordou o terceiro menino. — Ela precisava de uns remédios específicos, porque tinha um problema no pulmão. E tudo ficou no incêndio.
— Acham que alguém teria interesse em levar o Patrick embora?
Todos deram de ombros.
— Acho que não — falou outra menina. — Ele não servia para muita coisa.
estremeceu.
— Talvez o pai?
— Se ele quisesse, estaria aqui — retrucou a menina.
— E a irmã dele?
Um dos garotos franziu o cenho e cerrou os punhos. Falou como se bufasse:
— Você acha que a Dahlia queimou a casa?
não recuou, mas ficou alguns segundos em silêncio. Queria poder pegar mais uma pílula.
Acalme-se.
— Vocês têm quantos anos?
— Quinze — respondeu o garoto que fumava.
A detetive mordeu o lábio. Precisaria de uma autorização dos pais para ter direito a um interrogatório oficial.
Naquela época, ainda se importava com formalidades.
— Onde vocês moram? — ela perguntou.
Todos os jovens se olharam com hesitação.
— Desculpa, moça, mas nossos pais não iam gostar de nos ver falando com a polícia — justificou um dos garotos, fazendo menção para se retirar.
— Não? Por quê?
Uma menina, tremendo, fez que não com a cabeça e saiu a passos mais rápidos. Dos três que restaram, a outra menina tomou a voz:
— Já falamos, moça. A polícia nunca vem aqui. E se vem, não queremos ser os que dão com a língua nos dentes.
Ela se levantou e se retirou.
Dois garotos sobraram: o jovem negro e um hispânico. O primeiro olhou no fundo de seus olhos e falou:
— Acho que você devia ir embora. Aqui não é lugar para estranhos. Já estão comentando sobre vocês.
Se retirou como um artista deixando seu palco. bufou. O menino que restara fora o que continuara com seus ombros retraídos.
— A Dahlia era uma garota legal. Patrick também. Não mereciam nada. Mas a Sra. Ramsay... Eu não gostava dela.
franziu o cenho.
— Não? Ela fez algo com você?
Ele começou a andar, mas seus passos lentos indicavam que ele convidava a segui-lo. Ela acompanhou o garoto em direção à casa queimada, lentamente.
— Você é detetive mesmo? Achei que fosse algo bem difícil de conseguir ser.
Considerou aquilo um elogio.
— Entrei quase que por sorte.
Ele olhou-a com curiosidade.
— Como assim?
— A polícia abriu vagas para detetives de homicídios. Esse é meu primeiro trabalho.
— Ah — ele murmurou, com desânimo. — Entendi.
Merda.
Precisava mantê-lo interessado.
— Qual seu nome?
— Rodrigo.
— Meu nome é . Você sabia que muitos dos incêndios em casas começam com uma vela em cima de uma poça de gasolina para o dono da propriedade ganhar dinheiro do seguro?
Os olhos dele se iluminaram. Olhava para ela como se fosse algum tipo de professor.
— Acha que a Sra. Ramsay fez isso? — ele perguntou.
Ela deu de ombros.
— Não sei. A casa não estava sob seguro. E não havia registros de que ela estava com problemas financeiros.
— Que foda. E o que mais?
Pense, pense.
— A maioria dos assassinos de mulheres faz isso por causa de traumas com as mães. A lista é bem longa e conhecida. Você gosta disso, Rodrigo?
— Leio um pouco. Mas minha mãe não gosta — ele respondeu, com melancolia. — Diz que eu deveria ler coisas mais... Felizes.
Ela virou os olhos.
— Eu gosto de entender assassinos o suficiente para evitá-los — ela comentou.
— Eu gosto de ler sobre assassinos porque gosto de ver quando eles são mais inteligentes que a polícia.
olhou o menino de lado.
Eu também.
— Por que você não gostava da Sra. Ramsay?
Ele deu de ombros.
— Eu não gostava de como ela queria mandar em todas as pessoas mais novas que ela. Agia como se fosse mãe de todo mundo, querendo cuidar de todo mundo. Isso me irritava, porque a maioria das pessoas dava ouvidos a ela, inclusive quando ela não sabia o que estava falando.
— Acha que só você se incomodava com isso?
Ele assentiu com a cabeça.
— Todo mundo gostava dela. Eu também até que gostava, mas isso me irritava um pouco. A Dahlia e o Patrick eram legais. Mas iam morrer de qualquer jeito.
Ele olhou para com um susto, de repente.
— Eu não fiz isso.
— Eu sei que não fez. Por que você acha que iam morrer de qualquer jeito?
Ele hesitou. A voz saiu baixa, um murmúrio, quase uma confissão:
— Porque era a Sra. Ramsay.
Pararam na frente da casa. estava se aproximando, com outro cigarro na boca.
— Não posso levar nada que você falou em consideração, Rodrigo. Mas caso seus pais aprovem sua colaboração com a polícia, entre em contato com o policial . Ele vai saber o que fazer.
E talvez me dê pelo menos um aperto de mão.
O garoto assentiu e estendeu a mão para apertar. Ela prontamente o fez.
— Tudo bem. Prazer em te conhecer, .
Saiu andando com calma.
aproximou-se de e tragou. Indicou com a cabeça a saída da vila. Enquanto andavam, ele disse:
— Falei com duas pessoas, das cinco casas que bati. As duas confirmaram a história da Amelia Cortez. Incluíram até outras pequenas boas ações da Juliet na lista. Coisas como fazer tardes de cinema grátis para crianças da vila, além de ter fugido de uma casa de pais abusivos quando criança, mas ela seguia pagando comida e algumas contas dos pais. Disseram que ela até cuidava de algumas pessoas idosas, com sua formação técnica em enfermagem. Boatos de que vão chamar a Meryl Streep para fazer o papel dela.
— Conheço o tipo.
Ele olhou-a com o cenho levemente franzido, mas preferiu não prosseguir naquele tópico. Foram até o carro em silêncio, mas com rostos satisfeitos. e foram para a casa de Faye, amiga de Tiana Benson. Esperavam vê-la ainda em casa, antes do almoço.
O mais curioso era como olhava para a casa queimada das Ramsay como se ela fosse um tipo de templo.

— Nós íamos casar. Eu tinha certeza disso.
tentava não rir. Becca era uma garota bonita, mas demasiado “adulta” para sua idade. Tinha quinze anos, um ano a menos que Jimmy Sundance. Seu cabelo era preto, e sua pele era branca de um modo não-saudável.
— Vocês se conheciam há quanto tempo? — ele perguntou, com os braços cruzados e apoiado na parede. O quarto de Becca Stevenson (não Rebecca, apenas Becca) era todo branco e tinha luzes de natal em volta de sua janela. As quatro camas do quarto estavam perfeitamente arrumadas, e os dois estavam sozinhos no quarto.
Antes, tivera que passar dez minutos falando com a Sra. Stevenson sobre as regras e a legislação sobre um interrogatório com um menor de idade, e passara cinquenta minutos ouvindo a Sra. Stevenson falar da infância e educação de Becca, de seu futuro e de como Jimmy Sundance era uma péssima influência para a garota. Também conseguiu, no dia anterior, as autorizações para entrevistar Kay Williams, ex-namorada de Jimmy, e Victor Bell, seu melhor amigo.
Seria um dia bem divertido.
— Desde o ano passado. Namoramos por seis meses.
A menina usava uma camiseta preta, assim como suas calças e sandálias.
— Conheceu os pais dele?
— Almocei na casa dele no Dia de Ação de Graças. Eles pareciam ter uma boa relação, Jimmy nunca se queixou.
Começou a fungar. rezou para que ela não começasse a chorar.
— Ele era filho único — prosseguiu Becca.
tomou um tempo para coçar a nunca e deixar Becca ter seu momento. Ela respirou fundo e finalizou:
— Estou bem.
— Como ele era visto na escola? — ele perguntou, enquanto ia para a cama. Sentou-se de frente para Becca.
— A maioria das pessoas gostavam dele. Quem via o Jimmy pela primeira vez, poderia imaginar que ele era um tipo de atleta metido que vemos em filmes, mas ele não tinha problema com ninguém. Falava com todo mundo, ia bem nas notas, ajudava quem podia e quando podia...
Pareceu se interromper. apertou os olhos e apoiou os cotovelos nos joelhos, o corpo inclinado para frente.
— Nenhuma exceção? Parece realmente o garoto dos sonhos.
— Até tinham. Algumas pessoas não eram de falar com ele, não sei por quê. Mas acho que seja algo pessoal, porque o Jimmy também não parecia saber. Tirando a Kay.
— Quem é Kay?
— Ex do Jimmy, Kay Williams. Namoraram por uns quatro meses. Ouvi dizer que ele tinha tirado a virgindade dela e ela é meio estranha. É meio… Esquisita.
— Como assim, “estranha”? — ele perguntou, aproximando mais o gravador de Becca. Por instinto, ela falou mais devagar:
— Roupas, assuntos, coisas que ela quer estudar.
— Por quê? O que ela gosta?
— Filmes obscuros. Coisas conspiratórias, bruxaria. Umas bizarrices assim.
— Vou procurá-la depois. Ela tinha amigos que também não gostavam do Jimmy, mais por causa dela. Mas só uns dois ou três. Não sei se algum tem uma arma.
— Ainda não temos o resultado completo sobre a arma, mas a balística já apontou uma arma popular. Pode ser de qualquer um, comprada pela internet até. Vocês costumam ter uma identidade falsa?
Becca arregalou os olhos e ficou com a coluna ereta.
— Sr. ...
— Não estou aqui para multar ou prender vocês por comprar álcool. Mas preciso saber o quão comum é vocês mentirem a idade, porque assim alguém pode conseguir uma arma.
A garota tentou relaxar, mas sabia que tinha a colocado em uma posição de alerta.
— Meus pais vão ouvir esse interrogatório?
— Não. É confidencial da polícia. Se quiser, posso sugerir que esse trecho é anônimo.
Não podia, mas Becca não precisava saber disso.
— É bem comum. Não tenho carteira falsa, mas sei que muita gente tem. O Jimmy tinha, o Victor também.
— Perdoe a pergunta, mas por que você não tem?
Ela deu de ombros.
— Nunca precisei. Todo o álcool que eu consumi foi comprado por pessoas maiores de idade.
— E onde você costuma beber?
— Eu parei há um mês, depois de ver uma garota da minha idade entrando em coma alcóolico. Mas sempre tinham festas na casa de alguém.
— Os pais estavam presentes?
— Algumas vezes, sim. Diziam que preferiram que a gente bebesse perto deles, se fôssemos beber.
desviou o olhar de desdenho com um suspiro.
— E Jimmy era presença garantida na maioria das festas — ele afirmou. Becca balançou a cabeça em confirmação.
— Eu ia a algumas, mas Jimmy ia à maioria.
— E o que era comum nessas festas, além de álcool?
Becca ajeitou a postura e trocou as pernas cruzadas.
— O que quer saber, Sr. ?
— Não sou de narcóticos, Becca. E não estou perguntando se você usava algo. Só quero saber se tinham drogas nas festas.
— Prefiro não responder essa pergunta, Sr. — ela respondeu, com a voz subitamente grave, que voltou a ser suave segundos depois. — Mas o senhor teve a nossa idade e chuto que não faz muito tempo. O senhor sabe a resposta.
ajeitou a postura e ficou em silêncio por alguns segundos. Prosseguiu:
— O relacionamento de vocês ia bem?
— Sim, senhor. Muito bem.
— Ele se queixou de alguma inimizade recentemente?
— Não para mim. Mas sei que ele tinha tido uma desavença com alguém, no ano passado.
— Como você sabe disso?
— Ele já evitou ir a uma ou duas festas porque alguém ia lá. Chamava o cara de Led. Não sei quem é.
— Você nunca viu esse homem?
— Não. Não sei nada sobre ele. Jimmy já tinha se afastado dele antes de começarmos a namorar.
— Ele é da escola de vocês?
— Não. Dizem que ele é um… Fornecedor.
Consciente ou não, ela mexeu no nariz quando terminou a frase.
— Sabe como posso encontrar esse “Led”?
— Se você for falar com Kay, talvez ela saiba quem é. Nunca falei com ela, mas sei que ela já foi a eventos em que o Led estava.
— Como sabe?
Ela deu de ombros.
— Porque a Kay gosta de usar algumas coisas, às vezes.
apoiou as mãos nos joelhos e ficou de pé. Estendeu a mão para Becca e disse:
— Obrigado pelas respostas, Becca.
A menina apertou sua mão em retorno e ele saiu do quarto. Conferiu no relógio que horas era: poderia procurar Kay Williams, que disse que estaria disponível para encontrá-lo em poucos minutos, no fim da aula. Olhou, em sua pequena agenda, o número da sala que o diretor cedera para eles conversarem. preferira não causar pânico e ser discreto ao interrogar.
Kay era uma jovem de cabelos muito pretos, cacheados até o meio de suas costas. Sua pele era incrivelmente lisa e preta, assim como a cor de seus olhos. Sequer parecia ter poros, parecia ser de cerâmica. Estava séria, como se nunca tivesse sorrido na vida. Vestia uma blusa muito maior que ela, além de calças que pareciam ter saído de um armário dos anos 80. Percebeu, nesse momento, como Becca tinha sido tendenciosa.
Ela sentou-se na primeira cadeira de uma fileira. pegou a cadeira atrás da mesa do professor e levou-a para a frente da garota, que parecia estar imersa em um profundo tédio.
— ele apresentou-se, apertando sua mão. — Quero fazer algumas poucas perguntas sobre Jimmy Sundance.
— Pois não.
— Vocês se conheciam há quanto tempo?
— Há três anos. Tivemos um relacionamento conflituoso por algum tempo.
— Quanto tempo?
— Quatro meses, no começo do ano passado.
— Becca Stevenson já me falou um pouco sobre vocês.
Ela fez que não com a cabeça.
— Não ouça muito da Becca. Pode comprometer seu Q.I.
riu.
— Ela acha que conhecia o Jimmy — prosseguiu ela, no mesmo tom. — Mas ele era um babaca com pessoas que ele queria transar. E, numa dessas, arrumou problema com um dos caras que conseguiam os doces para as festas.
— Como assim “ele era um babaca”?
Kay ajeitou sua postura e percebeu que ela quem deveria estar na cadeira do professor.
— Jimmy era um cara simpático, não estou dizendo que ele não era. Mas era um mimado com garotas. Se ele queria transar com alguém, imediatamente começava a manipular a garota até conseguir o que queria. E quando conseguia, também achava que poderia ter isso quando ele quisesse.
limpou a garganta.
— Ele abusou de você?
— Não. E acho que, se ele fez isso com a Becca, ela não ia se dar conta. É uma sonsa. O Victor, amigo dele, era o que mais ouvia dele sobre essas manipulações.
— Victor Bell?
— Ele mesmo. Eram unha e carne. Victor, coitado, ouvia tudo que o Jimmy tinha a dizer. Ouviu muito sobre essas garotas.
— Como sabe?
— Ainda sou amiga do Victor, mesmo depois do Jimmy e eu terminarmos. Mas nem todo mundo sabe. Não queríamos que isso fosse parar nos ouvidos do Jimmy.
O investigador deitou as costas na cadeira com um suspiro. Analisou-a dos pés à cabeça.
— Não está nervosa, Kay?
Ela fez que não, com seu nariz levemente apontado para o teto.
— Não, Sr. . Não tenho o que esconder.
— Becca disse que você tinha costume de usar drogas.
Ela deu de ombros.
— Ela exagerou. Já usei algumas coisas em festas, mas poucas vezes. Só que experimentei um pouco de cada coisa. Mas não faço mais isso desde que as minhas notas começaram a sofrer. Preciso pegar uma bolsa boa.
— Quantos anos você tem, Kay?
— Dezessete. Fiz mês passado.
— Seus pais gostavam de Jimmy?
— Eles não chegaram a conhecê-lo como meu namorado. Mas eram indiferentes.
— Entendo. E sobre a desavença entre ele e o traficante?
Ela franziu o cenho e segurou uma risada.
— “Traficante” é um pouco forte. Ele é só uma ponte. Cobrava barato.
— Quem é?
— Chamamos ele de Led, mas não sabemos o nome de verdade. Ele e o Jimmy vendiam juntos e dividiam os lucros. Só que, uma vez, numa festa, já depois de terminarmos, o Jimmy começou a dar em cima de uma garota que o Led tinha alguma coisa. Só que o Jimmy já estava bêbado, então a abordagem foi um pouco... Agressiva.
— Como foi?
— Ele a segurou pelo pulso. Como eu disse, ele era uma criança mimada quanto a garotas e sexo. O Led chegou e eles começaram uma discussão. Quando a festa começou a prestar atenção, eles subiram para um quarto e conversaram em particular, aos gritos. Como não sou boba nem nada, fui atrás para ouvir. Ainda me preocupava um pouco com o Jimmy, mesmo depois de terminarmos. O Jimmy gritava que não queria mais vender nada, que estava com medo de ser pego por alguém. O Led estava muito irritado pelo que tinha acontecido no andar de baixo e não ia levar isso na brincadeira. Então o Jimmy gritou que tinha sempre “gente para comer” e que não precisava da “piranha do Led”. E saiu.
— Ele viu você?
— Viu, mas estava tão tonto que não acho que tenha se tocado que era a ex dele. Perguntei para onde ele ia. Ele disse que ia para a casa do Victor.
— Quando foi isso?
— Meados de julho. Não tenho certeza.
— Ele realmente tinha muitos casos de sexo casual?
Ela deu de ombros.
— Não sei com certeza.
— E Victor?
— Imagino que ele saberia dizer.
— E você acha que Jimmy tratava mal as... Pessoas que ele “comia”? As transas casuais?
— Imagino que sim. Eu falei, ele era um mimado com sexo. Imagino que ele tinha uma pessoa fixa, com quem ele transava sempre que queria. A foda garantida.
— Acha que, depois de ver Victor, Jimmy foi para a casa dessa “foda garantida”?
— Arriscaria que sim. Isso era bem a cara do Jimmy. Às vezes, enquanto ele estava solteiro, depois de levar um toco, ele ia embora das festas. Dava para saber que ele ia para quem ele sabia que o queria.
estendeu para Kay um cartão.
— Me ligue se tiver algo interessante a acrescentar. Você, definitivamente, tem coisas interessantes para me dizer.
conferiu o relógio. Victor Bell pedira para vê-lo na sexta-feira. Até lá, poderia encaminhar outros estudos do caso.
Foi embora da escola e encaminhou-se para a delegacia.

Durante os julgamentos de Salém, 20 pessoas foram executadas e 150 suspeitos foram presos, todos acusados de bruxaria. A “vítima” que supostamente começou a perseguição era uma menina, filha de um religioso, que sofria de uma doença desconhecida. A hipótese que a população acreditou era a de que ela fora alvo de bruxarias, mas provavelmente ela só teve episódios simultâneos de asma e epilepsia, ou comeu um fungo. Ainda assim, os episódios de histeria coletiva de Salém firmaram a fogueira pública como o mais conhecido método de execução por heresia.
Marla se prendia à essa história enquanto estudava na sala de Felicia, sua mentora. Para ela, estava clara a referência à “caça às bruxas”. Uma garota, jovem, de família cristã, queimada no território de uma igreja. Parecia lógico.
Mas a questão de Helen se envolver com homens mais velhos ainda parecia mais relevante. Ainda assim, preferiu tirar o dia para estudar o simbolismo da cena do crime.
Criminoso organizado.
Além do lugar em que Helena foi encontrada em si, não havia outro sinal de desordem. O portão para os fundos da igreja ficava aberto sempre, sem cadeados, segundo o dono do lugar. Marla imaginava que, provavelmente, Helena foi levada até lá desacordada, e então...
Mas e se ela foi até lá com algum conhecido? Não havia provas de que ela foi levada até a igreja desacordada. Ela poderia ter ido acompanhada, e lá, foi atacada. Em qualquer opção, isso indicaria que o criminoso era um homem, ou mais de um.
Rezou para saber se a autópsia revelaria sinais de estupro ou violência física. Isso facilitaria muito as coisas. Ainda estava tudo muito turvo.
Pôs uma mão sobre o coração. Podia ouvi-lo nas paredes.
Ouviu um ruído vindo da porta. Ergueu a cabeça em susto e, pela sala já mal iluminada, viu o corpo de um homem. Contava apenas com uma luminária baixa em cima da mesa; todo resto do cômodo tomava tons azuis acinzentados. Ainda assim, conseguiu reconhecer que o homem era o detetive .
— Estou atrapalhando? — ele perguntou. O tom de sua voz era baixo, além de doce. Fechou a porta atrás de si como se estivesse escondido.
Ela engoliu em seco.
— Não. Estou repassando alguns dados. — Fez uma pausa. — Felicia não está.
— Ah — ele exclamou, em sutil surpresa. — Não estou procurando por ela.
Marla recuou na cadeira. Por um momento, estremeceu e sentiu o sangue esquentar.
— Marla, não é? Posso me sentar?
Ela assentiu e completou:
— Fique à vontade.
pegou a cadeira ao lado de Marla e posicionou-a à sua frente. Novamente, ela recuou.
— Como andam seus estudos? — ele perguntou. Estava claramente desconfortável, como que obrigado a estar ali.
— Comecei há pouco tempo, mas por enquanto estão bem. E você?
Céus, nunca tinha passado por uma conversa desagradável como aquela.
Ele deu de ombros.
— Fiz dois interrogatórios, mas não acho que tenha andado muito. Sabe dos outros?
— Da e do ? — Dessa vez, ela deu de ombros. — Não soube de nada. Não os vejo desde terça.
escapou os olhos para os papéis na frente de Marla. Em vez de cobri-los ou escondê-los, ela escolheu empurrá-los na direção dele.
— Está na crença do culto?
— Soa lógico para mim.
Ele arrastou o papel para sua frente e segurou-o diante dos olhos, com a mão livre apoiando seu queixo. Seus olhos azuis fitavam cada palavra e cintilavam sob a luz da luminária.
— Esse seria o primeiro de vários, ainda nesta teoria — comentou.
— Pode ser. Ainda estou tentando decifrar os símbolos.
Devolveu os papéis a Marla. Uniu as mãos na frente da boca, uma protegendo a outra, fechadas.
— Amanhã devo entrevistar outra pessoa, o exame de balística saiu hoje. Nenhum suspeito tem armas registradas para comparação.
— Você... Quer companhia na entrevista? — Marla arriscou. Estava um pouco mais confortável com a presença de , um homem que certamente não passava despercebido em espaço algum. Sua figura já tinha certa intensidade impossível de imaginar.
Ele riu. Marla duvidou se fora debochado ou queria soar simpático.
— Não foi minha intenção, mas se quiser, fique à vontade. Se eles estão em dupla, seria bem ingênuo da nossa parte não acompanhar.
Marla franziu o cenho e inclinou o corpo para frente.
— Não sei se podemos trabalhar em duplas.
— Eles estão trabalhando, de qualquer modo.
— Como sabe?
— Eles não fizeram questão de disfarçar.
Marla uniu os papéis em uma pilha e fechou-os dentro de uma pasta transparente. Começou a arrumar suas coisas com um pouco de pressa. recuou e balbuciou um pouco, antes de prosseguir:
— Não quis deixá-la ofendida.
— Não se preocupe, Sr. . Mas acho que todos os casos são complexos demais. Duas cabeças podem se atrapalhar mais do que se ajudar — retrucou ríspida.
deu de ombros e levantou-se da cadeira.
— Duvido um pouco, Sra. Bronx. Ainda assim, respeito que você prefira trabalhar sozinha. Aqui está meu telefone. Se precisar de mim.
Deixou um papel em cima da mesa e deu as costas para Marla. Seguiu até a porta com passos pouco certos, inseguros.
Marla olhou para o papel com o número de . Era grosso, como um papel que ela própria deixava ao lado de seu telefone, para recados. Ele entrou lá com essa intenção. Procurou-a para isso.
Ouviu alguém bater na porta alguns segundos depois. Ergueu a cabeça e viu esgueirar-se para dentro, escondida.
?
fechou a porta sem fazer barulho.
— Felicia não morde. Pode entrar aqui sem medo.
— O morde.
Marla riu empurrou uma cadeira ao seu lado.
— Como anda o seu caso? — perguntou , se sentando. As folhas estavam espalhadas por cima da mesa, mas nenhuma delas era uma foto do corpo de Helen ou da cena do crime. As únicas fotos eram de Helen viva, sorrindo.
A sala de Felicia era bem mais organizada que a de . Marla até tinha sua própria escrivaninha. Imaginou se ela era a única que mal ficava na sala do próprio mentor.
Marla amontoou as anotações em uma única pilha, sem olhar para .
— Complicado. Sem muitas pistas.
mordeu o lábio. Marla não queria falar.
— E você?
Não responda.
— Caminhando. Vou ligar para o ex-marido da vítima. E estou esperando retorno da divisão de Desaparecidos.
Não pergunte.
— E você?
Marla deu de ombros, sem deixar de olhar para . Tinha algo ali.
— Sem nenhum indício, por enquanto.
— Seus depoimentos saíram bem?
Ela hesitou. sentiu a foto de Juliet Ramsay queimar em seu bolso.
— Não tanto. E os seus?
Sentia o corpo queimar. Coçou a nuca.
— Caminhando.
Silêncio.
— Seu mentor está te ajudando? — Marla emendou. Não olhava mais para . Encarava suas próprias anotações.
— Não. A sua está?
Marla deu de ombros de novo e riu.
— Ela me emprestou uma mesa.
— Pelo menos isso.
Vá logo, pergunte. Você já está aqui. Já está fazendo isso.
— E o ?
Marla ergueu o olhar de novo. Franziu o cenho, quase rindo. sentiu seu peito apertar.
Aya.
— O que tem ele?
Aya.
— Está trabalhando com você?
Marla ergueu as sobrancelhas e olhou em volta da sala, apontando para as paredes com os olhos.
— Está vendo-o aqui?
Strike 1.
estremeceu. Não sabia se Marla tinha tido a intenção de ser tão grosseira.
está trabalhando com você? — ela seguiu.
Não responda.
Não responda.
Silêncio. Fique em silêncio.
— Nós conversamos um pouco.
Marla não respondeu. Ergueu um pouco o nariz, aguardando o resto da resposta.
— Nos... Ajudamos um pouco. Só repassando algumas informações.
— Estão trabalhando juntos, então.
Aya.
Aya.
Aya.
Mantenha a calma.

— Eu não chamaria de “trabalhar juntos”.
Marla franziu o cenho de novo. Tinha escolhido a resposta errada. A foto de Juliet parecia crescer em seu bolso. Seu sorriso estaria maior. Rasgava.
— Só conversamos sobre os casos. Achei que você e faziam o mesmo.
— Sabe se isso é permitido?
Strike 2.
— Não entendi bem...
— Trabalhar com outro candidato — Marla cortou-a. — Não sei se é permitido.
se encolheu.
— Podemos falar sobre seu caso depois. Se você quiser.
Marla sorriu, mas não conseguiu identificar por quê.
— Tudo bem.
escapou os olhos para as folhas. Só conseguiu ler uma palavra, sublinhada e circulada: Salém.
Ela acha que é uma perseguição? Que é um tipo de...
— Estou à disposição — disse, enquanto ficava de pé.
— Podemos conversar amanhã, durante o almoço. Que tal?
Olhou para os olhos verdes de Marla. Não havia nada lá. Não era como segunda, ou terça, ou quarta. Estavam opacos.
— Amanhã, no almoço. Nos vemos lá.
Deixou a sala como entrou.

A cada toque, o telefone ficava mais pesado.
Tinha voltado para a delegacia com mais cedo, bem quando o sol estava se pondo. Tinham passado a tarde analisando, em diferentes estabelecimentos, vídeos de segurança em que Tiana Benson aparecera. Nada especial. Faye não estava em casa, então tiveram que usar o tempo para outra coisa. Depois, seguiram com alguns poucos depoimentos de pessoas da Vila Lui. Fora um procedimento tão entediante que não valeria à pena narrar.
foi para a sala de Robert, seu próprio mentor, para pegar os arquivos e atualizar o que tinha feito no dia. Depois de finalizar a ligação, iriam embora juntos, com ele dando carona novamente. permitiu que ela usasse o telefone de sua sala para falar com o pai de Dahlia e Patrick, ex-marido de Juliet, George. Dera licença para ela, mas não ofereceu uma mesa. encolhia-se contra a parede, sentada na mesma cadeira que fora entrevistada e com o cotovelo apoiado em cima da mesa, de frente para a cadeira de .
Pensava em Marla, em sua cadeira pequena, mas confortável, e sua pequena mesa amontoada de papeis e anotações. Na imagem de Helen, sorrindo. Mesclava-se com Juliet, mas Helen parecia mais... Pura. Inocente.
— Alô?
A voz de George acordou-a. Era grave, mas doce ao mesmo tempo.
— Sr. Ramsay?
Ouviu-o rir do outro lado da linha.
— Faz anos que não me chamam assim. Me chame de George. Não sou um Ramsay há anos. Esse é o sobrenome da minha ex-esposa.
— Juliet, você diz.
— Sim. Eu adotei o sobrenome dela quando nos casamos. Ela me convenceu de que isso demonstrava meu apoio aos direitos femininos. — Ele riu de novo, dessa vez mais melancólico. — É muito fácil convencer um garoto de vinte anos que tinha acabado de engravidar a namorada.
demorou alguns segundos para rir. Não sabia se era o certo a se fazer. Ele pareceu ter percebido.
— Só me chame de George.
— Aqui é , sou... Detetive de Longview. Meu superior disse que avisou que ligaríamos.
— Sim, o Detetive me ligou na última terça.
Ele não enfatizou o dia, mas a palavra soou mais longa quando ela a ouviu.
— Ele me avisou sobre Juliet.
ficou alguns segundos em silêncio. Deixou-o absorver de novo a informação.
— Nos falávamos todo mês, para falar das crianças. Eu conversava com eles, mandava presentes. Eles me falavam da escola e dos amigos do bairro. E…
Sua voz ficou embargada. Percebeu que ele prendia o choro não por Juliet, mas pelos filhos.
— Vocês eram próximos?
— Eu e as crianças?
— Não. O senhor e Juliet.
— É — pôde ouvir que ele dava de ombros, e que sua voz voltava ao normal — Não posso dizer que sim.
— Quando foi o último contato entre vocês?
— Há quase um mês. Eu ia ligar na última segunda, mas foi quando soube que... — George fez uma pausa, como se tivesse seguido a frase na própria cabeça, e depois prosseguiu em voz alta. — Não tenho como ir para a Pensilvânia. Não por enquanto. Por isso esperei a ligação de vocês.
— Gostaria de deixar o senhor ciente de que essa ligação está sendo gravada.
— Eu já imaginava que seria — ele respondeu com uma risada. — Qual o seu nome mesmo, detetive?
— ela hesitou e se corrigiu. — .
— Você parece ser jovem, Detetive . Quantos anos você tem?
— Tenho 27.
— Na sua idade, eu já tinha dois filhos.
— O senhor morou aqui em Longview?
— Não. Eu e Juliet morávamos aqui no Maine, com Dahlia e Patrick. Depois que nos divorciamos, ela foi para Pensilvânia, morar perto da casa dos pais.
— Quando foi isso?
— Foi... Quando Patrick tinha três anos. Há doze anos. 1986.
— Desde então, ela vive aqui em Longview?
— Sim. No mesmo endereço, desde que foi para a cidade.
— Pode confirmar o endereço para mim, por favor?
Ele demorou alguns segundos para achar o endereço anotado em sua carteira, mas disse exatamente o endereço que ela tinha ido.
— Lembra de Juliet ou Patrick fazendo algum comentário incomum? Algo que chamou sua atenção?
George demorou a responder, mas, assim que falou, as esperanças de diminuíram de novo:
— Não, nada. Juliet e eu não falávamos. Ela disse que Dahlia estava bem e pôs Patrick na linha. Ele me falou de um concurso de desenho que estava concorrendo, na escola.
— E Dahlia?
— Ela estava na casa nova. Não conseguimos nos falar nesse dia.
Pergunte. Pergunte o que você quer.
— Juliet se queixou de alguém recentemente? Relatou alguma briga, discussão...?
— Não, nada.
Pergunte.
— E... Com Dahlia e Patrick?
Ela teve uma filha com quarenta anos.
— Não entendi sua pergunta.
— Ok, eu vou fazer algumas perguntas e entendo que elas são muito íntimas. Mas gostaria de lembrar que todas as perguntas são importantes para a investigação.
Pergunte logo.
— Tudo bem — ele respondeu, a voz explicitando sua confusão.
— Por que houve um divórcio entre você e Juliet?
Quando George hesitou, imaginou que teria ido para o lado errado. Mas quando ouviu-o rir, não soube reagir.
— Bom, porque ela foi presa.
Emergência.
— Ela foi presa?
— Ela falsificava cheques, foi presa quando Patrick tinha dois anos.
— No Maine?
— Em Portland, sim. Vocês conseguem puxar os dados do processo?
— Sim. — anotou no papel sobre a falsificação. — Temos acesso a esses dados. Foi em 1985.
— Bom, foi por isso que eu pedi o divórcio. Ela foi presa, e eu percebi que estava perdendo tempo da minha vida com coisas que eu não queria. Eu queria estudar, trabalhar com o que eu gosto.
— Foi amigável?
— Sim. Eu sabia que Juliet também queria o divórcio. Ela queria ir para a Pensilvânia, eu queria fazer faculdade.
— Você vem para a Pensilvânia para visitar Dahlia e Patrick?
— Não, mas já viajei com eles para a Disney duas vezes, com minha esposa e minha filha mais nova. Eles sempre gostaram delas.
— E Juliet?
Ele hesitou.
— Não é muito fã da minha família do Maine.
— E a relação de Juliet com os filhos?
Ouviu George suspirar.
Ela teve uma filha com quarenta anos. Com um rapaz de vinte.
— Era conturbada.
— Sabe dar detalhes?
— Ela e Dahlia discutiam às vezes. Patrick entrava no meio, para baixar a poeira. Sair de casa foi o melhor para a Dahlia. E acho que Patrick queria ir atrás.
— O senhor chegou a sugerir...
— Sim — ele interrompeu, a voz mais grossa. — Eu sugeri que eles viessem morar comigo, mas Juliet não aprovou. Ela preferia que eles fossem morar sozinhos a irem morar comigo e minha esposa.
— E foi isso que eles fizeram? Porque Patrick desapareceu.
— Você acha que Dahlia pode ter matado Juliet?
prendeu a respiração.
— Não acho que Dahlia faria isso. Isso passou pela minha cabeça. Elas brigaram muito uma época.
— Por quê?
— Não sei. Quando eu falava com ela pelo telefone, Juliet sempre estava perto. Não deixava Dahlia falar sobre nada. Dizia que assuntos domésticos só eram para os envolvidos da casa. Mas eu percebia que não estavam bem. Era algo um pouco...
— Passivo-agressivo.
— É. Algo assim.
— E quando isso melhorou?
— Depois de Dahlia ter se mudado. Faz uns três, quatro meses. Conviver só com Patrick deixou Juliet mais tranquila.
— E você fala com Dahlia com frequência?
— Bem, não — Ele fez uma pausa. — Tem tempo que não nos falamos. Desde que ela se mudou.
Emergência.
— Há três meses?
— É.
— Você não tem o número dela?
— Juliet disse que ela ainda não tinha instalado a linha de telefone. E ela não gostava de visitar Juliet.
— Ela ficou esse tempo todo sem ver Patrick.
— Eu... Não sei. É. Não sei.
Eles pareciam estar pensando na mesma coisa.
abriu a porta e apoiou-se na maçaneta. olhou para trás e ele ergueu as sobrancelhas, cobrando-a de desligar.
— Se precisarmos de mais alguma coisa, o senhor está disponível para outro depoimento? — ela perguntou. Sua voz apressava-o. Com na porta, a urgência ficou ainda maior.
— Claro, certamente. Posso pedir uma coisa?
olhou para de novo, com o canto do olho. Ele ergueu novamente as sobrancelhas. Seus cabelos estavam bagunçados.
— Claro, senhor. Faremos o possível.
— Se vocês conseguirem um endereço da Dahlia, um telefone, podem me passar? — Ele ficou alguns segundos em silêncio. — Tem tempo que eu não falo com ela.
engoliu em seco. Confirmou repetindo a mesma frase que tinha acabado de dizer e imaginou que isso não passara tanta confiança para George. Agradeceu e desligou.
— Estava falando com quem? — perguntou. A delegada Julie passou por ele e parou ao seu lado. fechou a porta atrás de si e andou até sua cadeira, na frente de . Julie passou por ela como se passasse por uma pedra e parou ao lado da cadeira dele, com as costas apoiadas no batente da janela. Vestia um suéter cinza que deixava seu corpo morto.
— Com o ex-marido de Juliet Ramsay. Peguei algumas coisas interessantes.
Ele sentou-se e passou a mão nos cabelos, jogando-o para trás. Deitou as costas na cadeira e perguntou, como se nada daquela conversa importasse de verdade, mas precisava deixá-la acreditar que sim:
— Como o quê?
— Acho que... Agora temos dois desaparecidos.
Ele franziu o cenho e olhou para Julie, que não reagiu. Em vez de parecer confuso, sentiu que finalmente fisgou seu interesse.
— Temos?
— O pai de Dahlia não fala com ela desde que ela se mudou. Ele não tem o endereço dela e diz que ela não tem telefone. Precisamos ver se temos registros do novo endereço dela, de qualquer processo de aluguel.
— Você acha que ela também desapareceu?
— Quem sequestrou Patrick pode ter sequestrado Dahlia também.
— E se ela estiver morta?
sentiu a coluna pinçar. Ficou ereta e engoliu em seco.
— Ela pode estar morta.
— E Patrick também.
— E Patrick... Também — ela repetiu, em concordância, quase didática.
— O que mostra que devemos descobrir logo onde ele está.
Ela concordou com a cabeça.
— Isso chegou hoje mais cedo. Não veio selado — Julie declarou e ergueu um envelope de papel que segurava desde que entrou na sala. Colocou o papel, dobrado, em cima da mesa e arrastou-o até a frente de .
Ela hesitou. Franziu o cenho e olhou para sem erguer a cabeça. Ele não a olhava; seus olhos estavam fixados na delegada. Ela, por sua vez, olhava para as mãos de e seu caminho entre o colo da moça, o envelope e o papel em seu interior.
Segurou o envelope e abriu-o como se, caso fizesse um movimento errado, ele explodiria na sua mão.
Leu a mensagem devagar. Quando terminou, ergueu os olhos para , e esperou a reação dele.

Prestem atenção. Estou com Patrick. Ele não está machucado. Eu matei a mamãezinha dele e acabei com ela. Eu a esfaqueei e ela gritou antes de morrer. Vou matar o garoto se não seguirem minhas ordens. Ele está bem. Soltarei ele se não seguirem as minhas ordens. Há uma chance de 99% de ele morrer se insistirem. Deixem 100 mil dólares na entrada da vila para que Patrick seja libertado. Não brinquem comigo. Eu matei a mamãezinha dele e vou matar de novo. Se eu vir vocês de novo dentro da vila, vou matá-los, assim como matei Juliet. Vocês sabem quem eu sou. Eu vivo debaixo do nariz de vocês. Eu preciso de ajuda.

— Bom, e agora?

Can you help me occupy my brain?


Capítulo 6 — Pressure

But you will come to a place where the only thing you feel are loaded guns in your face, and you'll have to deal with pressure!

entrou em parafuso.
Segurou a folha com ansiedade e um pouco de medo, um tipo de nervosismo saudável. Sabia que não podia sorrir. Seria assustador se sorrisse. Qual deveria ser a reação mais adequada?
Patrick estava vivo. Talvez muito doente, talvez debilitado ao máximo. Isso só reforçava como ele precisaria da ajuda da polícia. Mas como fazer? O que fazer?
teria que agir com cautela, mais cautela do que jamais agira na vida. Criara, de um jeito curioso, uma relação de proteção pessoal com Patrick. De alguma forma, projetava-se no menino, fraco, miúdo, com uma mãe que exercia total poder sobre ele e um mundo que o via como frágil. Então, um dia, do nada, tudo desmorona, e Patrick só tem a si mesmo.
E agora, viu que ele ainda estava vivo. Podia ser salvo. Por .
Uma criança inexperiente, mas uma heroína.
Olhou para o envelope da carta. Tinham escrito "para e " em letras tremidas nele.
e .
Pensava em como poderia ser essa operação. Certamente, o sequestrador de Patrick vivia na Vila Lui. Se ele queria que se afastassem da vila, se ele conseguia manter Patrick em uma daquelas casas, em um daqueles esqueletos-fantasma.
Olhou para . Ele parecia esperar alguma reação dela, com as mãos descansadas nos apoios da cadeira. Julie tinha as mãos unidas e os dedos entrelaçados, na frente de sua boca.
Eles pareceram impressionados pela forma com que ela estava.
respirou fundo. Tinha que falar algo enfático o suficiente, algo forte. Falou, finalmente:
— Quando vamos começar a operação de resgate?
suspirou. Coçou as bolsas dos olhos com o indicador e o polegar em forma de pinça.
— Você é inocente, criança.
Julie escondeu uma risada baixa, quase inaudível. Voltou a arrumar algumas folhas em cima da mesa, com completo desinteresse em e . Como se contasse com uma reação de , mas em sua pergunta, percebeu que não valia seu trabalho.
retraiu seu corpo fraco na cadeira.
— O bilhete é falso — murmurou .
Boom.
— Como assim? — Foi a única coisa articulada que conseguiu dizer.
— Essa carta chegou há algumas horas. É falso, mas pode indicar algumas coisas.
Ela ainda não sabia bem o que responder. Nada parecia apropriado, ainda mais depois de soar tão estúpida. Podia sentir seu rosto quente. Coçou o bolso do isqueiro.
— Como pode saber que é falso? — perguntou ela.
— Acredito que vocês precisam de uma reunião — Julie murmurou.
ergueu o olhar para a delegada. Ela sustentou-o, até que o oficial suspirou, ficando de pé e tateando os bolsos enquanto andava até a saída com Julie atrás de si. aguardou, sem sequer olhar para Julie: tinha vergonha o suficiente para não o fazer. Sabia o que lhe esperava. Aqueles olhos miúdos atrás de um par de óculos finos, quase protegendo as pessoas do olhar fixo e duro de Julie Stoner. Seu olhar simples era capaz de deixar a pessoa mais segura encurvada, envergonhada. ainda não sabia, mas havia uma frase de Julie que sempre dizia quando ela tinha desprezo:
— Depois nos falamos, minha querida.
E se despedia.
Julie saiu da sala e fechou a porta com calma elegante, o que só deixava mais inquieta. Ele voltou para o já conhecido e hostil escritório do policial. Desta vez, fizera questão de trancar as duas portas. Sentou-se na frente da janela novamente, mas agora só a luz de uma luminária alta ao lado da prateleira se encarregava da iluminação. A mesa do oficial estava quase vazia, a não ser por alguns poucos papéis empilhados. Ah, e sua Bíblia pessoal.
já se sentia na cadeira do réu, em menos de uma semana de trabalho.
— Você realmente acreditou que o bilhete fosse real? — ele perguntou. não seria capaz de descrever a fisionomia dele, já que seus próprios olhos estavam apontados para o chão. Mas tinha um olhar ambíguo. Era, ao mesmo tempo, de reprovação e de pena. Mesmo que ambos os sentimentos fossem pejorativos, sua mistura era estranhamente curiosa.
tentava analisar, como sempre, o livro em cima da mesa de . Depois de sua pergunta, ela ergueu o olhar com hesitação.
, você achou que o bilhete era real?
— Sim — ela tentou uma voz firme. — Não vi nenhum indício de que fosse falso.
Ele balançou a cabeça em reprovação. Agora, soava um pouco mais impaciente.
— Não é assim que se lê um bilhete de um suposto assassino. Você procura indícios de que ele seja verdadeiro. E esse bilhete não tem nenhum.
não respondeu. sacou o papel de dentro do envelope e colocou-o na mesa, de frente para a moça. Ela engoliu em seco, mas prestava toda a atenção possível na fala dela. Os olhos dele cintilavam e suas mãos escreviam palavras-chave em um papel de rascunho.
— O envelope tem o meu nome completo, mas não tem o seu. Não divulgamos que você ou qualquer outro candidato esteja com esses casos. O que saiu nos jornais é que o responsável por esse caso sou eu. Então quem escreveu isso foi alguém da vila, ou alguém que falou com você diretamente. Que sabe o seu nome.
apertou o bolso. Sua garganta estava seca, desesperada por um comprimido do remédio.
— O seu assassino planejou o crime, considerando a cena do crime. Ele não apenas não deixou vestígios no corpo de Juliet, como também não deixou nada na casa e também conseguiu incendiar o lugar sem ninguém o ver. Não temos como provar que ele de fato está com Patrick, ou se ele fugiu. A princípio, Patrick está com ele e não demonstrou resistência, já que não há qualquer prova de conflito na casa. De qualquer modo, é um crime difícil porque ele planejou. Ele sabe tudo que está na casa, não foi um acidente. Por isso, para chegarmos até ele, precisamos estudar o cenário antes, não depois do crime. De qualquer modo... A carta não sugere isso. Ela sugere que ele é tão caótico, que é incapaz de articular uma frase direito.
— E esses trechos? — perguntou.
Ele franziu o cenho, mas com um sorriso.
— Que trechos?
pegou o lápis da mão de e marcou, na própria carta, a frase que indicava o valor do resgate e a da ameaça final, “se eu vir vocês de novo...”. Quando ela reergueu os olhos para ele, viu que o sorriso aumentara.
— A carta é repetitiva, confusa e com frases curtas, com exceção desses trechos — ela respondeu — Que ele instrui.
— Isso — começou, com a voz mais calma e recuperando seu lápis — é o que essa carta diz. Ele quer o dinheiro, e não nos quer na vila. Ele não usou a gramática certa no começo, mas usou no final.
— O que...
Ela tentou falar algo, mas hesitou no último momento.
— Fale — ele pediu, debruçado sobre a mesa.
— É uma burrice.
— Fale logo.
ergueu os olhos para . Ela, agora, estava extremamente séria. Ele, com olhos receptivos.
— O que pode dizer que são dois criminosos escrevendo a carta, e por trás do sequestro — ela perguntou.
sorriu. Continuou com mais satisfação na voz:
— Se estivermos trabalhando com um criminoso organizado e com um caótico, supondo que o caótico escreveu a carta, ele mencionaria o resgate no começo ou não escreveria bilhete nenhum, já que isso seria um risco de ser pego. Na maioria dos casos em que recebemos uma nota, o criminoso exige um valor bem superior, ou se exibe, ou demonstra confusão. Aqui, tudo isso entra em confusão. Além disso, o parceiro organizado dificilmente permitiria que essa carta fosse escrita, a não ser que isso envolva algum prazer sádico em nos fazer persegui-lo.
— São muitas variáveis.
— Exatamente! — disse ele, com ânimo e alegria quase juvenil. — São muitas informações conflitantes. De qualquer modo, o trecho que o redator da carta mais se aplicou em escrever foi o essencial: ele não quer que entremos na Vila Lui. Toda a carta soa perturbada, menos a mensagem a ser transmitida. Tudo parece querer indicar algum indivíduo louco e impulsivo, que manda uma carta para a polícia esperando ser descoberto, menos esse trecho. Que, por coincidência, é uma mensagem que toda a vila quer dar. Parece algo de uma pessoa com muitas informações na cabeça, e que viu muitos filmes de detetive.
Parou para respirar, ainda com um pequeno sorriso desenhado nos lábios finos e rosados. Deitou as costas na cadeira e começou a mordiscar o lápis.
Olhou para o envelope. “ e ”.
. e .
Gostava do som daquilo.
— Só mencionei o seu nome para uma pessoa — ela murmurou, cruzando os braços e deixando as costas relaxarem na cadeira. — É um adolescente. Como devemos prosseguir?
— Do mesmo modo que prosseguimos com qualquer notícia falsa. — Ele deu de ombros, sem piscar enquanto analisava a figura de . — Ignoramos. E, se possível, fingimos que nos importamos, se isso parecer produtivo no resto da investigação.
— Obedecer a carta não me parece inteligente.
— E não é.
— Vou pensar no que fazer.
— Pense rápido.
Ela olhou-o novamente. Mordeu o lábio enquanto anotava algo para conferir depois.
— Você já pensou em alguma coisa?
só negou com a cabeça.
Queime a bruxa.
Tocou o isqueiro no bolso da calça.
— Nada chamou a sua atenção?
Ela repetiu o gesto. Fechou os olhos com força e continuou a anotar.
Queime a bruxa.
— Nada de interessante. Nenhuma prova.
— Fale o que quer que tenha feito você ler a mesma coisa duas vezes. Costuma ser importante.
soava como o professor que sabia que o aluno conhecia o conteúdo, mas tinha medo do erro.
— Juliet não morreu dentro de casa. Ao menos, não com as facadas.
Ele não retrucou. Apertou os olhos com sutileza e esperou.
— As facadas foram feitas de frente. Sem primeiro ataque aparente. No centro da sala. Marcas fortes, padronizadas, só um esfaqueador. E muitas marcas.
— Acalme-se — disse, indicando com as mãos para ela relaxar. — Você está misturando as informações. Uma coisa de cada vez.
respirou fundo. Continuou:
— O corpo foi queimado ao ponto de não conseguirmos reconhecer nenhuma marca que pudesse indicar outros ferimentos. Nenhum componente químico incomum foi encontrado na autópsia. Mas ela não resistiu aos ferimentos na barriga, o que pode indicar que ela estava morta, ou desacordada, antes de ser esfaqueada. Mas uma marca chamou a minha atenção.
pegou sua pasta do caso e abriu-a. Girou a pasta na mesa, para que ela ficasse de frente para , e cruzou os braços. Agora, a aguardava.
e .
— Essa. — Ela apontou para a imagem de Juliet no chão, para o pescoço. Parece uma facada no pescoço, mas não conseguimos ver direito, pelas queimaduras.
— O que pode deixar alguém desmaiado sem grandes marcas e sem envolver remédios?
— Estrangulamento por fio fino.
— Continue — pediu, novamente com os olhos um pouco apertados.
— Ela foi estrangulada dentro de casa, a princípio. Ninguém a viu sair o dia inteiro, mas como conferi com alguns vizinhos, Juliet saía raramente. Dahlia e Patrick só saíam para o colégio. Talvez tenha sido fora de casa.
— A janela.
— Estava aberta, mas sem arrombar. Juliet conferia as janelas todos os dias.
— A porta.
— Fechada, sem arrombar.
— Como alguém pode ter entrado na casa sem ninguém ver? — ela murmurou e voltou a encarar as anotações.
esperou com clara ansiedade. Inclinou novamente o corpo para cima da mesa.
— A noite não acabou. Você não está pensando o suficiente.
apertou os olhos.
A porta.
A janela.
Merda.
Por onde mais alguém poderia entrar em uma casa?
— A dispensa — disse, finalmente. — Eles têm uma dispensa.
— Qual o tamanho?
— Um cubículo apertado, mas que caberia alguém agachado.
Não é que conseguiram entrar sem ver. Conseguiram não sair.
— Esconderam-se na dispensa por um dia, uma hora, o que fosse.
— Quem?
— Um homem. Provavelmente alto, para conseguir dominar ela, e jovem. Provavelmente uns 25, 30 anos.
— Vigor físico?
— Para conseguir estrangular Juliet e ainda impedir que ela gritasse? Imagino que fosse forte.
— Proximidade com a vítima?
— Imagino que muita. 32 facadas.
— Que horas ele entrou na casa?
— Não sei. Seja como for, ele conseguiu ficar escondido lá dentro até o momento propício para atacar Juliet.
— E Patrick?
Ela negou com a cabeça.
— Você sabe, . A janela te mostrou.
Boom.
— A janela não pode ser trancada por fora, com o cadeado. A parte de madeira não deixa. E ela estava sem cadeado, mas sem estar arrombada.
— O criminoso entra de madrugada, espera Patrick sair de casa e ataca Juliet de manhã.
— A mata e, quando o garoto chega, ele consegue rendê-lo e foge pela janela quando já escureceu. Deve ter um cúmplice, que o esperou com um carro. Não consegue trancar a janela. Isso indica que Patrick está vivo?
— Não. Isso indica para onde ele foi. Mas agora, o importante é nos atermos aos dados do assassino que já temos. Qual a profissão de Juliet?
— Técnica de enfermagem.
Ele sorriu.
— Monte seu quebra-cabeça.
estremeceu, exatamente como fizera ao ler o bilhete do suposto assassino minutos antes.
— Eu sabia que você não era entediante.
Não conseguiu sorrir, mas desviou o olhar com vergonha. Aquilo devia ser um elogio, para .
— Não me acelere mais. Eu estou pegando o ritmo.
O policial ficou de pé e caminhou até o outro lado da sala.
— Está sendo muito lenta. O que define um bom detetive não é o que pensamos. É o que percebemos logo de cara.
Juliet Ramsay teve uma filha com quarenta anos.
Serviu-se de um cigarro. Voltou para sua cadeira e foi até a janela, apoiando a mão do lado de fora dela, de modo que a fumaça não alcançasse .
Ela não viu, mas tinha encarado a aliança em sua corrente, do outro lado da sala. Guardou-a novamente no bolso.
— Eu estou conseguindo. Vou conseguir descobrir o culpado logo.
— Recebemos ordens de esperar, no máximo, três semanas para a primeira avaliação. Se, até esse tempo...
Sua voz soava sentencial. Ele tragou olhando para baixo, com seu já conhecido olhar de reprovação.
— Não se preocupe — ela logo cortou. — Até esse tempo, já teremos um culpado para encaminhar para o tribunal.
— Não estou preocupado. Você é perfeitamente capaz de me mostrar um suspeito amanhã, ou no mínimo, uma teoria muito boa. O problema é que eu sempre preciso te dar um empurrão para isso.
franziu o cenho.
— Sr. ...
— Me chame de . — Tragou, mas ela não ousou interferir. — O seu problema, , é que você ainda não acordou. Você precisa de alguém para te falar o que fazer. E não é disso que precisamos.
Ela tocou o isqueiro no bolso. Deus, como precisava de um cigarro.
notou o buraco no muro.
— Achei que já tivesse deixado claro. Esse mundo não é para você.
Falava cada letra analisando cada aspecto da reação de . Era daquilo que ela precisava.
Ela precisava de algo ou alguém para fazê-la virar o melhor de si.
— Eu já estava... Pensando em uma coisa.
Podia ouvir os gritos. Podia ouvir as unhas se arrastando nas paredes, as criaturas escalando as nervuras nos tijolos mal colocados e a estrutura fraca.
Sua pedra-base é um grão de café.
Tentou inclinar o corpo para frente sem que ela notasse. Então, ela murchou.
— Ainda preciso de um tempo para estudar. Não sei se...
interrompeu-a e saltou da cadeira, começando a andar pela sala —, você ainda não entendeu.
Ela começou a ficar vermelha.
— Você não pode analisar cada hipótese minuciosamente, como se tivesse todo tempo do mundo ao seu dispor. Precisamos ganhar tempo. Para isso, usamos algumas técnicas. Leu o livro que eu te entreguei?
— Li metade. É muita informação. E se eu acabar fazendo alguma besteira?
fez uma careta, incrédulo.
— O mundo está pegando fogo lá fora e você está preocupada com a sua reputação. Nem sempre usamos o método ortodoxo para conseguirmos uma confissão ou uma prova. E isso é a diferença entre um detetive e um policial de rua.
sentia seu sangue ferver. olhou-a e falou com a voz mais grossa:
— Por que você está aqui?
Queime. Queime.
Acabe com tudo isso.
Pegue esse isqueiro. Ele está no seu bolso.
— Você está em fase de testes. Ninguém é garantido aqui. Você sabe que pode ganhar o distintivo, mas não está se esforçando o suficiente.
— Você não...
— Todos estão lutando pela estrela dourada, criança. Todos vocês são ótimos, geniais, alunos-modelo — falou com a voz grossa, de costas.
Feche os olhos. Grite.
Não, você não pode fazer isso. Não aqui.
Acalme-se, . Ela é só uma criança.
Não se encaravam. Pela primeira vez, não queriam se olhar. Porque sabiam o que veriam, se olhassem para o outro.
Ela, alguém forte, resistente.
Ele, alguém fraco e débil.
Fechou os olhos com força. Não podia deixar ver a pequena lágrima que escorreu por eles.
Pai.
Ergueu os olhos. Ele não estava lá.
olhou para o livro em cima da mesa. Poesia italiana.
olhou para o chão. Merda.
Você não era um filho da puta assim, .
Respire fundo. É disso que ela precisa. Ela precisa de você.
E eu preciso dela.
Ela precisa servir. Precisa ser ela.
Você não tem tempo para que não seja.
Se ela não for uma policial de verdade, você precisa fazer com que ela seja.
— Eu não sou isso — ela murmurou.
— Você ainda não é. Mas eu posso fazer você ser.
Ela olhou para por cima do ombro. Ele fez o mesmo.
— Eu vou te ensinar que você não precisa de mim. Mas para isso, você tem que fazer algumas coisas sozinha.
Ela pigarreou. Tentou disfarçar para limpar os olhos.
— O que eu posso fazer?
— Na maioria dos crimes intencionais, o criminoso volta à cena. Você sabe disso.
— Porque eles fantasiaram sobre o crime por bastante tempo.
— Isso. Isso mesmo.
— E o que eu devo fazer?
— Essa é a pergunta que você não deve fazer a mim.
Ele sorriu novamente. já não entendia mais nada de . Só desejava deixar aquela sala o mais cedo possível.
Ele notou esse sentimento de repulsa e murchou o sorriso. Merda, aquela não era a intenção.
— Tente ir na sala da perícia. Veja se acha algum exame conclusivo do corpo.
Ela assentiu com a cabeça e ficou de pé. Seguiu até a porta de cabeça baixa.
— Estou muito satisfeito com você.
— Obrigada.
— Desculpe.
Ela franziu o cenho.
— Não entendi.
— Desculpe. Por como falei com você agora há pouco. Todo esse caso é...
— Forte demais.
Ele se demorou na resposta.
— É. Forte demais.
Ela sorriu amarelo.
— Pode conseguir um documento para mim?
— Posso tentar.
— Queria os registros telefônicos de Juliet nos últimos dois meses. E também do endereço da casa dos pais dela.
franziu a testa novamente.
— O ex-marido dela mencionou os pais. Imaginei que seria promissor.
— Bom. — Ele deu de ombros, mas tentando forçar um sorriso. — Farei o possível.
Ela sorriu pequeno em resposta, como agradecimento. Saiu da sala de cabeça baixa.
Desejo que sejamos estranhos melhores.
desarmou. Como não conseguia simplesmente ser agradável? Ser o mesmo que sempre fora, antes daquele caos todo? Antes de Ariana, antes de Dante.
Ainda assim, estava impressionado.

A sala de perícia era uma porta pequena no primeiro andar. Escondida, no fundo do corredor. bateu, mas não esperou a resposta: já imaginava que a sala estivesse vazia.
Abriu a porta subitamente. Atrás de uma bancada branca, anotando algo em relatórios, tinha uma única mulher.
— Desculpe. Não ouvi ninguém responder — murmurou, envergonhada, já pronta para voltar.
A moça abriu um sorriso simpático.
— Não tive tempo de responder. Posso ajudar?
Tinha cabelos negros e espessos, presos em um coque dentro de uma touca. Os braços finos estavam escondidos pelo jaleco branco. Ainda assim, o uniforme não diminuía a clara beleza da mulher. Os olhos de âmbar eram pequenos e era uma mulher baixa. Tinha, provavelmente, a mesma idade de .
— Você tem o resultado da autópsia de Juliet Ramsay?
A moça ajeitou a coluna, como se tivesse soado um alarme dentro de si para fazê-lo. Foi até uma mesa atrás de si e procurou, entre alguns papéis em cima da mesa, um relatório. Conferiu o nome e voltou para a bancada.
— Que coincidência, eu quem fiz esse exame ontem. Pode me mostrar uma identificação?
ergueu o crachá e completou:
— Sou nova. Trabalho para .
— É um prazer... — a moça hesitou — .
pegou o papel e passou os olhos por ele.
— Pode ficar — completou. — Sempre fazemos cópias dos exames, para nós e para os investigadores responsáveis. O que houve com ela?
— Diga-me você — respondeu , rindo.
A moça pegou, no jaleco, uma caneta de ponta fina. Apontou para uma imagem de Juliet já com os cortes na barriga.
— Esse foi o primeiro corte. Eles tiveram um padrão de força, o que indica que foram infringidos pela mesma pessoa. Sem drogas no corpo. Também fizemos um exame de DNA de um fio de cabelo que nos passaram — prosseguiu, apontando para uma seção do relatório. — Não identificamos como pertencente à Juliet ou aos filhos. Mas identificamos outros fios como pertencentes à mesma pessoa. Mas fomos incentivados a não confiar nesse dado, pode ser uma pista falsa.
— Indícios de estrangulamento?
— Sim, mas não muitos na pele, então talvez seja arriscado confiar nisso para levar para a promotoria. Identificamos um corte fino e longo no pescoço, compatível com corte por fio metálico, mas não temos como garantir por conta das queimaduras. De início, achamos que o corte tivesse sido do mesmo objeto cortante que feriu o resto do corpo, mas...
— Perceberam que era um fio metálico fino.
— O padrão e a quantidade de sangue na cena indicam que ela só estava desacordada, então a morte foi por esfaqueamento. Ela foi atacada por faca enquanto estava deitada. Mas as horas dos crimes foram relativamente próximas: ela deve ter ficado desacordada por uma hora ou uma hora e meia. Talvez tenha sido asfixiada mais de uma vez, mas não temos como confirmar.
— E sobre os fios de cabelo e sangue da cena?
— Todas as amostras de sangue eram de Juliet Ramsay. Ela não resistiu durante as facadas e o assassino não se feriu. Mas achamos um fio de cabelo não compatível com os moradores da casa.
— Onde?
A mulher apontou para uma foto do corpo de Juliet.
— Na mão dela.

passara muito tempo esperando no estacionamento. Quando ela finalmente chegou, não conseguiu conter a pergunta:
— Por que demorou?
— Estava levando esporro do .
Ele riu enquanto dava partida no carro.
— Não é engraçado — ela reclamou.
— Não é mesmo. É porque eu já imaginava.
— Já pegou sua autópsia?
— Sim, nada de muito interessante. Mas tem a chance de duas pessoas terem agredido a Tiana.
— Como assim?
— As marcas de agressão e de estrangulamento não batem. As primeiras foram feitas sem proteção, sem luvas, e deixaram marcas mais profundas, além de terem sido mais espalhadas. Quem a estrangulou depois usava luvas.
suava frio.
estava mais rápido.
— Acha que foram pessoas diferentes?
— É o que está sugerido. O que só complica tudo mais ainda — ele completou, com um sorriso. — Estou realmente animado com tudo isso.
engoliu em seco.
— E você? — ele perguntou, olhando-a de lado.
— Nada ainda. Ainda estou sem nada.
franziu o cenho.
— Mesmo depois de tudo que conseguimos até agora? Você ficou mais de uma hora lá, só levando bronca?
Fiquei quinze minutos chorando no banheiro, esperando meu remédio fazer efeito.
gosta de falar.
Ele sentiu suas mãos ficarem quentes. Suas veias começaram a ficar expostas. Ficou em silêncio alguns instantes. Se não queria falar nada, ele não poderia (e nem deveria) insistir.
Então, ele levaria o tiro novamente.
Tocou a cicatriz. Ela já não coçava mais. Só ardia.
Não teve todo o cuidado em escolhê-la como dupla para isso. Para ela esconder informações.
— Não me jogue para escanteio, . Eu estou querendo te ajudar, e também quero sua ajuda.
Tentou falar aquilo com toda a calma que conseguiria reunir, mas a verdade era que queria gritar.
Ela comprimiu os lábios e passou a mão pelos cabelos, puxando-os para trás da cabeça.
— A autópsia confirmou que Juliet foi asfixiada antes de ser esfaqueada. Talvez mais de uma vez. O assassino guardou o corpo para realmente matá-la mais tarde. Isso pode indicar um ritual. Pode indicar que Patrick chegou na casa durante o ataque, e por isso foi sequestrado.
— Foi isso que te falou?
quer que eu seja proativa — retrucou com a voz cansada — Acha que eu estou muito fora do ritmo, se comparada a vocês.
— Ele não sabe como os outros estão indo. E eu já tenho experiência policial. — Fez uma pausa, pensando no que seria mais apropriado para acrescentar. — Ele só quis te pressionar. Te deixar mal.
— Sim, mas minutos antes recebemos um suposto bilhete do sequestrador de Patrick.
As pálpebras de abriram-se. Seus olhos, que já eram grandes, pareciam prestes a saltar.
— Um bilhete?
— Era falso — ela logo emendou. — Aparentemente, estava óbvio. Ele e a delegada fizeram questão de me assistir sendo uma imbecil.
deu de ombros.
— Só confirma o que todos já sabíamos desde o começo da semana: é um babaca. E Julie não está muito longe.
— Mas quando ele foi me explicar, na sala dele, por que o bilhete era falso... Ele foi tão... — Procurou a palavra correta por alguns instantes. — Atencioso.
franziu o cenho, já se aproximando da casa de .
— Atencioso? Tem certeza de que ele só não foi extremamente didático?
— Não. Ele realmente foi atencioso. Fez parecer que ele estava preocupado em aproveitar o “melhor de mim”.
Ele fez uma careta e parou o carro na frente do prédio.
— Amanhã já pela manhã devo ir visitar a amiga de Tiana de novo. Quer me acompanhar?
— Óbvio. Para me sentir um pouco mais útil de novo.
arqueou o canto do lábio em uma careta entristecida.
— Quando ele disse que queria uma atitude proativa, ao que você acha que ele estava se referindo?
Ela deu de ombros.
— Não sei. Vou pensar um pouco nisso antes de dormir. O mesmo horário de sempre?
— O mesmo horário de sempre — ele concordou, com o mesmo sorriso do momento em que se conheceram. não conseguiu evitar um sorriso igual, mesmo que envergonhado por sua situação patética.
Saiu do carro e foi para casa.

provavelmente estava certo: ela precisava fazer algo. Talvez estivesse atrasando-a com suas próprias investigações. Será que a intenção dele era, justamente, atrasá-la?
Não, é prepotência sua pensar algo assim.
Juntou os documentos e anotações em cima da mesa da sala. Patricia já estava dormindo. Vestiu seus pijamas e sentou-se diante de tudo aquilo.
Colocou o livro na sua frente. Nem era muito grosso, mas com certeza, era assustador.
E esperou.
Algo devia acontecer, não?
Algum plano, alguma dica, que nem nos filmes. Algo deve pipocar na sua cabeça, e você entender tudo. Ou teria que pendurar tudo na parede, unindo cada informação com um alfinete e barbante coloridos?
Ser proativo significava estudar o caso até o momento em que algo fosse fazer sentido?
O que ele quis dizer com “ortodoxo”?
Olhou para os dados. Juliet tinha tido os filhos já em meia-idade, e foi morar em outro estado praticamente sozinha com duas crianças.
Ela foi presa.
Apertou os olhos para as fotos do cadáver. Um trabalho sujo, nojento. Mas passional.
32 facadas.
Acendeu o isqueiro na mão esquerda, enquanto lia a autópsia, segurando a folha com a mão direita.
O criminoso entrou na casa de madrugada. Esperou Patrick sair de casa, esperou Juliet ficar sozinha. Como?
? — perguntou alguém, do corredor. vestia sua camisola de algodão. Seus cabelos estavam bagunçados e seus olhos, apertados.
— Achei que estivesse dormindo.
— Estava. Meu sensor do bom-senso explodiu quando você começou a brincar com um isqueiro dentro de casa.
Fechou o isqueiro e guardou-o no bolso com vergonha.
Patty começou a se aproximar lentamente, o peso do corpo fazendo-o se arrastar pelo chão.
— Também posso? — ela perguntou, apontando para os papeis.
assentiu e apontou para a cadeira ao seu lado.
— Por mais que eu não ache que tenha muito para você fazer. Estou tentando entender como pode ser a “atitude proativa” e o método “não-ortodoxo” que meu mentor indicou.
— Ele falou isso? — perguntou novamente, segurando as fotos do corpo de Juliet — Em que contexto?
Ela deu de ombros.
— Qualquer um. Ele só me repreende.
— Você consegue dormir depois de ver isso tudo? Que horror.
— Me responda você. Não fui em quem acabou de ser promovida em um hospital.
— Bem, pode me aproveitar como profissional de saúde que não perde um episódio de CSI. Em que eu posso te ajudar?
— Ele frisou a quantidade de facadas.
— E o que mais?
— Eu não consigo parar de pensar que ela teve a filha com quarenta anos.
Patty ergueu a foto de Juliet Ramsay antes de morrer. O sorriso familiar, a pele brilhando.
— Ela parece a sua mãe.
pegou um dos comprimidos no frasco em cima da mesa. Bebeu com um pouco de água.
— E o que você acha que aconteceu? — perguntou Patricia, colocando a foto de novo na mesa.
— Acho que foi alguém próximo, talvez um vizinho ou um antigo desafeto. Foi planejado e cometido por alguém que chegou a ir na casa mais de uma vez, provavelmente. Estudou o lugar. Sabia o que fazer.
— Mas você não sabe quem frequentava a casa, não é?
Ela fez que não.
— Minha aposta é em alguém que prestou algum serviço. Eles moravam sozinhos na Vila Lui. Talvez algum vizinho...
Então, o boom.
A atitude proativa.
O método não-ortodoxo.
— Pat — ela murmurou, ainda olhando para a autópsia — Você sabia que às vezes o criminoso volta ao lugar do crime?
— Volta? Para quê?
Ela deu de ombros.
— Talvez se gabar, talvez reviver a fantasia do crime, talvez conferir que está tudo seguro. Foi organizado o suficiente para indicar uma preparação e uma fantasia por muito tempo. Voltar ao local do crime só o faria se sentir mais seguro, eu imagino.
— Seu instrutor te ensinou isso?
Ela olhou para a foto da casa em chamas. Ah, lembrava-se de seus melhores dias.
— Sim. E que o que define um bom detetive não é o que pensamos. É o que percebemos logo de cara.
— Uau. Estou começando a ficar com medo — Patty riu — Vou sentir falta de comer pizza com você enquanto falamos desse tipo de assunto alto-astral.
Patricia voltou para o quarto. E, quando estava sozinha de novo, abriu o livro e começou a ler, estalando o isqueiro com a outra mão.

Tiana me explicou depois, orgulhosamente, que ela tinha acabado com a carreira de um dos anunciantes da revista, provando um escândalo sexual envolvendo a família do dono da empresa. O redator disse que todos do meio sabiam quem a Tiana era, porque ela não media palavras para se identificar. Parecia um tipo de troféu. Ela podia dizer “fui eu quem fiz”.”
Rebobinou a fita.
...ela não media palavras para se identificar. Parecia um tipo de troféu. Ela podia dizer “fui eu quem fiz”.
De novo.
““fui eu quem fiz”.
Pause.
Sabia que Tiana tinha cavado seu próprio túmulo, só não sabia como.
Jornalismo.
No dia seguinte, de tarde, iria para o trabalho de Tiana. Precisava saber sobre o que ela vinha escrevendo.
Acelerou um pouco a fita.
Ela tinha algum namorado?” ouviu sua própria voz perguntar.
Ficou alguns instantes em silêncio.
Não. Tiana nunca trazia ninguém para cá.” “Mas ela dormia aqui sempre?” “Sim” uma breve pausa. “Sempre. E eu também. Posso confirmar isso.
Espere. Volte.
Posso confirmar isso.
riu. A voz de Faye tinha se tornado bem mais vacilante.
É bem mais fácil identificar uma mentira quando nos fazemos de policial bom.
Fez uma anotação. A caixa de fitas estava cheia, sabia que ia precisar de uma caixa nova. Dois meses de material de campo recolhido.
Bem, talvez não só material de campo.
Pegou uma fita um pouco mais recente. Tinha só duas letras escritas no plástico. As inicia de .
Colocou a fita para reproduzir. Ouviu a risada de em uma das partes, uma risada calma, relaxante. O mundo pegando fogo, mas aquela risada conseguia acalmar tudo.
Adiantou a gravação um pouco.
Nós estamos indo para o Valhala.
Aquela era a moça que queria deixá-lo para trás?
Tocou a cicatriz. Não coçava mais, nem irritava, mas sabia que precisava tocá-la. Acalmá-la. Indicar que se lembrava de que ela ainda estava ali.
Valhala.
Fechou os olhos e tocou-se.
Precisava de . Sabia que precisava. E que ela não iria decepcioná-lo.

Faye Mars serviu duas canecas de chá para seus convidados. Tremia bem mais do que no último dia que a visitou.
Algo na aura de a deixou bem mais perturbada.
Os olhos de estavam mais opacos. Tinha a impressão de que, por mais que ela estivesse ali com ele, ela na verdade estava viajando por outros universos e por casas queimadas. Definitivamente, ela pensava em mil outras coisas. Mas isso não interessava.
Gostava de tê-la ali. Sua presença era intensa o suficiente para incomodar qualquer suspeito.
— Precisa de mais alguma coisa?
— Sim — murmurou como se estivesse distraído — Faltaram alguns dados.
— Eu respondi todas as suas perguntas... — ela respondeu, se sentando lentamente.
— É, mas teve uma parte que faltou.
Pôde ver Faye engolir em seco.
— Qual?
— Eu percebi que você não me falou a verdade.
Teve a certeza de que o coração de Faye parara de bater por alguns segundos. Seu rosto ficou completamente pálido, e não piscou. Depois de um breve choque, recuperou a cor e a fala:
— Não senhor. Eu falei toda a verdade. Tudo que eu sabia.
— Faye — ele começou com pesar, deixando a caneca em cima da mesa de centro enquanto se sentava. — Eu tenho carreira policial de quase dez anos. Eu sei reconhecer uma mentira.
— Eu não menti, senhor — sua voz começou a soar chorosa.
— Alguém pediu para você não nos contar algo? — perguntou , de repente. Seus olhos retomaram o brilho.
Faye mergulhou o rosto nas mãos.
— Não. Eu devia ter ligado mais cedo. Sei que devia.
Esperaram alguns segundos. Os ombros de Faye balançaram e ouviram um baixo choro. Ela levantou a cabeça com os olhos marejados e pigarreou.
— Eu não sabia onde Tiana estava. Ela não me falava nada. Dormiu fora algumas vezes, na casa de um cara que ela tinha conhecido. Me deu o endereço, por garantia, mas falou para eu não contar a ninguém.
Abaixou a cabeça nas mãos de novo e voltou a chorar.
e se olharam. Deram um sorriso simultâneo pelo acerto mútuo.
— Você chegou a conhecê-lo? — perguntou .
— Não — respondeu a engenheira, limpando as lágrimas — Eu preferi não questionar. Se Tiana não falava o nome de alguém, ou não me apresentava, era porque era algo do trabalho.
— Esse homem era do trabalho dela? — perguntou, com o cenho franzido.
— Não. Ele era o trabalho.
inclinou o corpo para frente, apoiando os braços nos joelhos. O sofá já estava apertado demais para ele e .
— Quando ela morreu, eu guardei o endereço que ela me deu. Sabia que não podia me meter. Mas tive medo de ela ter mencionado meu nome. Sei que Tiana assinou o próprio atestado de óbito, mas o senhor me entende, não entende? Eu tive medo. E culpa.
— Não era sua culpa, Faye — murmurou , tentando uma voz mansa — Infelizmente, você não poderia fazer nada.
analisava os movimentos de Faye. Pareciam verdadeiros. Além disso, ela não ganharia nada com a morte de Tiana. Provavelmente, a teoria de que ela se protegia era mais legítima que a que Faye estava acobertando alguém.
— Eu não podia ter feito nada, eu sei. Já tinha tentado falar para a Tiana desistir dos métodos dela.
riu diante da última frase. e Faye a encararam com choque.
— Perdão. É que eu estava pensando exatamente na mesma coisa. Prossiga.
Faye olhou-a de lado, com uma careta ofendida. Retomou, olhando para baixo:
— Ela costumava dar um jeito de se aproximar do furo. Sempre me deixava informada sobre onde ela estava, mas não dizia nomes. Acho que nunca pensou que fosse acontecer algo assim...
— Você ainda tem o endereço de onde ela costumava passar as noites?
— Tenho. Só um momento.
Levantou-se e dirigiu-se para o quarto. Usou o pé para fechar a porta e deixar os dois detetives na sala.
— Uma semana — murmurou, olhando para .
Ela ergueu as sobrancelhas e arqueou o canto do lábio.
— E você nem precisou falar com outras pessoas.
— Peguei o depoimento dos pais por telefone. Nada de interessante. A minha galinha dos ovos de ouro estava aqui mesmo.
Faye retornou com um pequeno papel dobrado, junto de uma camiseta vermelha. Entregou-o na mão de antes de se sentar novamente.
— Indico procurar o endereço e dados dos moradores antes de ir até lá. — Fez uma pausa. — Não quero mais cadáveres puxando meu pé à noite.
— Não se preocupe. Posso mantê-la informada sobre o que eu descobrir.
Ela fez que não com a cabeça.
— Só quero informações quando vocês tiverem o nome do culpado por isso.
assentiu com a cabeça. Faye estendeu a camisa como se ela fosse algo sujo que ela estivesse querendo se livrar. Tinha a postura decidida e a voz firme:
— Essa camisa estava aqui há algum tempo. Sabia que eu precisaria dela.
— Alguém deixou ela aqui?
— Não. Tiana trouxe de uma vez que ela dormiu fora.
— Podemos achar fios de cabelo aqui?
— Duvido um pouco. Já devemos ter lavado essa camiseta mais de uma vez.
pegou a camiseta com o rosto confuso.
— Só devolva essa camiseta a quem ela pertence. Eu não quero isso comigo.
— Obrigada, Faye. Vai nos ajudar muito.
— Não terei problemas?
— Não. Você não obstruiu nada. Está tudo bem.
Ela suspirou de olhos fechados. Parecia estar se livrando de um peso.
— Obrigada, Sr. . Me ligue se precisar de mais informações. Para o que eu puder ajudar, vou fazer meu máximo.
ficou de pé e estendeu a mão para a moça. Sorriu enquanto ela apertava a mão. De algum modo, pareceram estar fechando um acordo silencioso.
Ele e saíram logo depois.

Victor Bell era um rapaz bem magro, mas alto o suficiente para ser categorizado como “esguio”. teve que ir até a casa dele naquela manhã, em um horário que os pais reservaram para o depoimento. Pelo que ouvira, o garoto tinha aulas extras na sexta de manhã. Não que ele realmente se importasse, mas os pais de Victor fizeram questão de explicar.
E não quiseram sair do escritório.
Quando entrou na saleta pouco organizada, acompanhado pelo Sr. Bell, a Sra. Bell já estava de pé atrás de Victor com a mão em seu ombro, como se estivesse afagando-o. O garoto, de cabelos pretos lisos que iam até seus ombros, tinha os olhos apontados para baixo em um tipo de melancolia estranha. interpretou o óbvio. O menino só queria sair dali, acabar logo com aquilo.
— Sra. Bell. Victor — ele cumprimentou-os com apertos de mão e sentou-se em uma cadeira na frente do jovem. — Como estão se sentindo?
— Exaustos — ela respondeu.
— Outros policiais falaram com vocês sobre o caso de Jimmy Sundance?
Eles não responderam. entendeu que aquilo era uma negativa.
— Gostaria de lembrá-los que tudo que for dito durante o depoimento será gravado e usado na investigação.
A Sra. Bell assentiu com a cabeça. olhou-a de baixo, percebendo qual a intenção ela queria passar.
Suspirou. Não estava com paciência para aquilo.
Ficou de pé novamente, seus 1,90m de músculos definidos, seu blazer e calça social, seus olhos azuis frios.
— Sra. Bell, o depoimento é individual.
— Meu filho não falará nada sem a presença de um advogado ou minha. Ele é menor de idade.
Nossa, que comparação precisa.
— Mãe... — o menino murmurou, envergonhado.
— As perguntas não podem ser respondidas pela senhora.
— Tudo bem. Victor falará tudo que você precisar.
comprimiu os lábios. Desviou o olhar para baixo, procurando o gravador no blazer. A Sra. Bell olhava-o confusa, mas tentando não desviar o olhar.
— Sra. Bell, as outras cinco pessoas que interroguei não estavam acompanhadas. Todos têm a mesma idade de seu filho, ou bem próxima. Em nossa legislação, seu filho já responde por seus atos e sabe falar por si mesmo. Se a senhora insistir em permanecer aqui, devo dizer que isso só levantará suspeitas em relação ao seu filho.
Ela recuou com os olhos um pouco mais abertos.
— O que o senhor está insinuando, Sr. ?
— Nada, senhora. Só o senso comum.
A mulher ia falar algo, mas não conseguiu. Hesitou, balbuciou, mas nada saiu de sua boca. Por fim, comprimiu os lábios e apertou os olhos, com o rosto apontado para baixo. aguardou sua reação com toda a paciência do mundo.
— Se precisar de mim, me chame, Victor — ela murmurou, dando um tapinha no ombro do garoto. Olhou com os olhos pesados para e deixou o escritório com a porta aberta atrás de si. suspirou com impaciência e foi até a porta, fechando-a finalmente.
— Inacreditável — ele murmurou para si mesmo.
Victor deu um pequeno sorriso. percebeu, mas não comentou nada.
— Ela sempre faz isso?
— Quase sempre. É normal. Não gosto de discutir.
— Ela tem motivos? Você tem irmãos problemáticos?
— Filho único.
— Explicado — disse, rindo, enquanto olhava para sua caderneta. Victor também riu.
Gelo quebrado. Agora, ele precisava afundar ou boiar.
— Você conhecia o Jimmy há muito tempo, não, Victor?
Ele ficou com a cara entristecida novamente. imaginou que fosse por conta do tempo verbal escolhido por ele.
— Desde criança. Éramos vizinhos e sempre estudamos juntos.
— Sua mãe tinha problemas com ele?
— Na verdade, não. Ela conhece os pais do Jimmy desde sempre, então não tem problemas com a família Sundance.
— E sua relação com Jimmy?
Ele engoliu em seco, com os olhos começando a ficar marejados.
— Era muito boa. Quase nunca brigávamos. Éramos bem diferentes, Jimmy era bem popular na escola, mas eu nunca tive problemas com isso. Sempre andávamos juntos, e ele sempre tinha o cuidado de me deixar à vontade, confortável.
— Ouvi falar que uma pessoa andava tendo problemas com o Jimmy.
Ele franziu o cenho, mas tinha um ar animado, curioso.
— Quem?
— Um rapaz chamado “Led”. Fornecia drogas para algumas pessoas do seu colégio. Pelo que eu soube, eles tiveram uma briga pouco tempo antes, numa festa.
— Uma briga? Não me lembro.
— Por conta de uma garota.
Aqui, veio o vacilo.
poderia não ter notado, até porque tinha sido algo muito sutil. Mas ele não perdeu aquele segundo crucial que o rosto de Victor pareceu prestes a enrubescer.
— Uma garota?
— Aparentemente, uma namorada, ou quase isso, de Led. Você soube disso?
— Ah, sim — ele disse, com uma careta de confusão, como que querendo reorganizar sua mente. — Lembrei. Eu estava lá. Não foi nada bonito, todo mundo viu.
— E você? Tem alguma namorada?
O garoto olhou para baixo e encolheu os ombros. Ficou vermelho novamente.
— Não, senhor. Sou muito fechado. Nada além da companhia de Jimmy.
— Mas ele tinha namoradas.
— Sim. Eu sei, acompanhava a maioria dos relacionamentos dele. Sempre que tinham problemas, ele vinha falar comigo. Sempre conversava comigo sobre os relacionamentos dele.
— Você era um tipo de confidente?
Ele pareceu começar a sorrir, mas se conteve. Talvez, tivesse se lembrado de algo bom.
— Talvez um pouco mais. Eu e Jimmy éramos muito próximos. Ele costumava ter muitos problemas com a Kay, então quase sempre, ele me procurava. Eu tentava deixá-lo melhor. Gostava dessa época, ainda sou amigo dela.
— E Becca? Becca Stevenson?
Victor parou de sorrir e deu de ombros.
— Não brigavam tanto. Pelo menos, Jimmy não falava muito a respeito comigo. Pareciam... Estar num relacionamento bom.
— Becca acredita que eles iriam se casar um dia.
Ele deu de ombros novamente.
— Jimmy nunca me falou nada sobre isso. Não vou saber confirmar.
— Você era bem próximo do Jimmy. Imagino que saiba caso ele tivesse encontrado o Led, para se resolverem.
— Não se encontraram, acho. Por quê? Led é um suspeito?
— Todos são, não temos provas o suficiente para incriminar ou inocentar ninguém — respondeu sem emoção. — Sabe como posso entrar em contato com ele?
— Becca Stevenson certamente consegue o contato dele — Victor retrucou, com um pouco de asco na voz. — Se ela não tiver, alguém que ela conhece tem.
— Ela usa alguma coisa que ele vende? Quando conversamos, ela disse que não conhecia o Led.
— Não sei se usa, mas com certeza ela o conhece. Ela já cansou de organizar festas do bairro, tem contatos de inúmeros fornecedores de álcool e doces. Mas a Becca se finge de sonsa com qualquer autoridade. Não ia querer colocar a chance dela de ir para Yale em risco.
fingiu fazer anotações. Disse:
— Kay Williams falou que ouviu a briga de Jimmy e Led, num quarto da casa. Ela disse ter ouvido Jimmy dizer que “tinha alguém para transar” ou algo parecido com isso. Imagino que ele tivesse um caso fora de seu relacionamento.
Victor endireitou a postura, mostrando-se em estado de alerta novamente.
— Você sabe algo sobre isso?
Ele fez que não.
— Se Jimmy estava traindo a Becca, ou se ele chegou a trair a Kay, não sei dizer. Mas... — Apontou os olhos para o vazio, pensando.
— Sim? — perguntou , inclinando sutilmente o corpo para frente.
— O senhor já pensou que, talvez, ele tivesse um caso fixo, e os namoros com as garotas foram escondidos?
— Como assim? — ele perguntou novamente, com o cenho franzido e os olhos um pouco apertados.
— Em vez de Jimmy trair Becca ou Kay com alguém, alguém foi traído por Jimmy com Becca ou Kay.
— Você está falando sério?
O menino enrubesceu de novo. Deu de ombros, envergonhado.
— É uma teoria. Desculpe. Eu vejo Law & Order.
— Kay Williams disse que Jimmy era manipulador quando estava atrás de sexo.
Victor hesitou.
— Eu sei que ele talvez pegasse um pouco pesado, mas talvez essa palavra seja exagerada. Estou defendendo meu melhor amigo que morreu.
— O que quer dizer com “pegar pesado”?
— Se fazia de simpático, dizia o que alguém quer ouvir. Mas não era na maldade. O senhor entende, às vezes, as pessoas querem agradar um potencial interesse sexual ou amoroso.
— Ela disse que você sabia de tudo sobre garotas que ele tivesse interesse.
Victor deu de ombros, mas confirmou com a cabeça.
— Em meados de março, entre o relacionamento de Jimmy com Kay e o com Becca, ele costumava ter transas casuais com alguém?
O jovem se ajeitou na cadeira. Balbuciou um pouco, antes de responder:
— Sim, senhor. Não sei com quem. Não me sinto confortável respondendo essas perguntas.
— Por que, Victor?
— Não quero colocar as suspeitas em cima de alguém que talvez seja inocente.
— Se forem inocentes, nós não vamos prendê-los. Fique tranquilo.
— Nunca eram garotas muito próximas, na maioria das vezes.
— E a tal “foda fixa”?
Victor engoliu em seco. pôde vê-lo cerrar os punhos. Usar esse tipo de vocabulário se referindo a entes queridos mortos sempre dava certo.
— Não sei, Sr. . Como eu disse, Jimmy podia ter alguém que ele via constantemente, mas com um pouco mais de respeito do que uma “foda fixa”. Mas, como eu sugeri, talvez fosse alguém que não tivesse problema com ele estar com outras garotas.
— Você quer uma água, Victor?
O garoto interrompeu-se e pareceu perder o ar. Respirou fundo e pareceu reordenar seus pensamentos por um instante, e voltar à postura.
— O quê?
— Você quer um copo d’água?
Respirou fundo.
— Não, estou bem, detetive.
— Você viu Jimmy no dia do crime?
— Vi algumas horas antes. Eu estava em casa na hora do que aconteceu, no quarto, estudando.
— Acredito que, quem quer que tenha feito o crime, tenha tentado fazer parecer um assalto.
— O que faz o senhor achar isso?
— Os tiros foram dados no tronco, com intenção de matar. Nada sugere briga ou resistência da parte do Jimmy. Mesmo nesse cenário, é improvável que um assaltante o matasse por pânico. Três tiros indicam nervosismo e impulsividade, mas objetivo de matar. Um assaltante qualquer não agiria assim.
— É o que o senhor pensa?
— É o padrão.
Victor comprimiu os lábios e assentiu com a cabeça, os olhos viajando pelo cômodo.
— Foram tiros à queima-roupa. Sabe de algo de valor que Jimmy possuísse?
— Ele costumava usar roupas de marca, além de relógios e óculos escuros.
tomou mais notas. Ficou de pé e estendeu a mão para o garoto, que apertou prontamente.
— Obrigado, Victor. Você foi de grande ajuda à investigação.
— É bom saber disso, Sr. . Sempre que eu puder ajudar...
Saiu da sala antes que ele completasse. O cheiro de mofo estava acabando com sua asma.
Preferiu não ter contado a Victor que já conseguira o contato de Led com Becca Stevenson, na noite anterior. Ela o providenciara sem qualquer complicação, e disse que em um primeiro momento preferiu evitar para perguntar coisas a seu advogado.
Gostava de assistir aqueles adolescentes jogando a culpa uns para os outros.

e voltaram para o mesmo restaurante do dia em que se conheceram, para tomarem um café juntos. Era especialmente curioso notar como, em menos de uma semana, a relação dos dois parecera evoluir. Agora, estavam em total silêncio.
Ele pediu um café puro e ela pediu um suco com torradas e, assim que a garçonete os deixou, encolheram-se sobre suas anotações.
— Que merda foi aquela, ? — ele perguntou, baixo. — Você dar risada no meio do interrogatório?
— Foi um deja vu — ela respondeu, dando de ombros. — Nada demais. Faye nem se ofendeu.
— Claro que você não acha “nada demais” — retrucou, bufando. — Não era o seu caso. O que deu em você?
olhou-o de lado, com feições infantis. Adorava fazer aquela cara, quando queria soar cínica.
— Eu ri porque tinha ouvido quase a mesma coisa ontem, pelo . Só soou irônico.
— Ele te falar algo assim não te dá o direito de descontar em mim.
suspirou pesadamente. Não se importava de verdade, mas sabia que preferiria que ela cooperasse.
— Tem razão. Desculpe. É que eu andei com umas teorias.
— Que teorias? — ele perguntou, já com a voz mais calma, quando a comida chegou.
A moça tomou mais alguns segundos antes de continuar, quando começou a servir-se. Sua voz estava mais baixa.
— Estava olhando dados telefônicos que tinha separado da casa dos Ramsay, e as últimas contas e tudo no nome de Juliet. Algumas coisas me chamaram a atenção. É verdade que Juliet e o pai dos filhos dela se falavam periodicamente, e ela tinha acesso às contas bancárias dos pais para comprar comidas e utensílios para os pais, que são bem idosos. A casa dos pais também está no nome dela há alguns anos. E eu não sei por quê.
— Entendi. Mas qual a sua teoria?
suspirou com exaustão.
— Isso ainda não posso falar. — Balançou as mãos, para que seguissem por outro assunto. — Mas o estava me falando ontem sobre a casa da Juliet. Andamos tentando entender exatamente o que fez o assassino de Juliet queimar a casa, além de matá-la.
— É precipitado você achar que a mesma pessoa que matou Juliet também incendiou a casa.
— Mesmo que não seja. É algo que sugere alguém organizado e que fantasiou o crime por muito tempo. A casa acabou tendo um significado quase divino para a pessoa, um tipo de templo que ela destruiu.
— Aonde você quer chegar?
respirou fundo e tirou da bolsa um caderno pequeno, com várias páginas preenchidas com fichamentos e esquemas. Escolheu uma delas e apontou para o que tinha escrito.
— É muito comum que o criminoso, principalmente um piromaníaco, volte à cena do crime para reviver suas memórias. Isso o deixa seguro, por saber que ainda está impune. É o que reforça mais ainda minha ideia de que o criminoso mora na Vila.
Ela nem precisou prosseguir, já que interrompeu-a:
— Você não vai fazer uma coisa dessas. Ninguém naquela vila nos quer por perto. Isso é extremamente perigoso.
— Mas você sabe como isso pode nos dar resultados bem mais rápidos.
— Não compensa se você levar um tiro por isso.
girou os olhos.
— Eu não vou levar um tiro, e ainda assim, também vou ter algo para me defender.
— Você estará numa parte estranha da cidade — ele continuou, com a voz pausada —, e não tem autorização de portar uma arma enquanto detetive.
— “Alto risco, alto ganho” — falou, com um pequeno sorriso cínico, mas interrompeu-se rapidamente. — Ok, falando sério. Eu não preciso fazer um alarde. Basta eu ir para a casa, bem equipada, fazer rondas e ficar atenta. Na madrugada, que é a hora que o criminoso atuou. É capaz de ele estar indo lá todas as noites e ninguém sabe.
ergueu o nariz para cima. Seus olhos verdes brilharam e suas pupilas dilataram por um instante, enquanto seus lábios abriram lentamente para anunciar:
— Então eu vou com você.
Para a surpresa dele, ela retrucou:
— Melhor ainda. Leve uma arma.
— O que te faz achar que eu tenho uma arma?
— Porque você já é policial há mais tempo. E você parece ser o tipo de pessoa que gosta de andar armado.
não soube o que responder. Aquela mulher parecia ter ares diferentes da que ele lidara no meio da semana, mas assemelhava-se à do começo. De algum modo, aquilo soava extremamente atraente, um pouco extasiante. Ela soava decidida, mesmo que um pouco inocente sobre o que realmente estava prestes a fazer.
— Só eu e você? Parece cada vez mais uma missão suicida.
— Pensei em chamar a Marla. Mas não sei se é uma boa ideia. Acho que distinção é o básico na nossa situação. Vou almoçar com ela hoje, então posso decidir até lá.
— Melhor não envolver mais ninguém. — Bebeu um pouco do café. — Qual seu plano?
— Encontro você hoje à noite, na minha casa. Você pode se preparar e ir me buscar, e vamos para a vila. Entramos na casa e ficamos perto das portas e janelas, para tentar identificar caso alguém se aproxime.
— Não é melhor ficar do lado de fora?
— Qualquer um na vila nos veria.
— E se chegar alguém?
Ela deu de ombros.
— Não podemos ir atrás de imediato. Mas podemos segui-lo com o carro.
— Isso é um plano bem ruim.
— Tem uma ideia melhor? — perguntou, com a voz firme.
— Ficamos dentro do carro. Do lado de fora. Em segurança — frisou.
riu de forma cínica.
— Sinto que realmente estou chegando perto de descobrir alguma coisa. O criminoso aqui está tão seguro que provavelmente vai cometer um deslize.
— Como sabe?
— Vou à seção de assessoria da delegacia logo que chegarmos. Vou pedir para liberarem uma nota, ainda hoje, sobre como ainda não temos uma pista do caso das Ramsay. Isso só vai deixar o criminoso com mais certeza de que não vai ser pego tão cedo.
está sabendo disso tudo?
comprimiu os lábios e cerrou um dos punhos.
— Robert sabe de tudo que você está fazendo? — ela perguntou sem olhar para ele.
suspirou.
— Tem certeza que está fazendo a coisa certa?
Ela deixou o prato com metade da comida ainda espalhada e levantou-se.
— Estou fazendo meu melhor. Vamos logo para a delegacia. Parece que vai chover.

Marla conferiu o endereço mais de uma vez antes de bater na porta de uma casa grande, em uma rua próxima à casa de Helen. Era uma construção de paredes rosa e dois andares, além de uma bandeira estadunidense hasteada ao lado da porta, por algum motivo que Marla desconhecia. Sentia um frio na barriga enquanto batia na porta, que foi prontamente atendida por uma moça loira de meia-idade, talvez tão bonita quanto a Sra. Süskind.
— Posso ajudá-la? — perguntou ela, as sobrancelhas levemente franzidas, e os lábios em um sorriso.
— Meu nome é Marla Bronx — falou a ruiva, erguendo seu crachá. — Sou da polícia. Gostaria de falar com... Amma Muller. É sua filha?
O rosto da mulher transformou-se em traços hostis.
— É. Pode entrar, Srta. Bronx. Vou chamar a Amma.
Deixou a porta aberta e entrou pelo corredor. Marla entrou na casa e fechou a porta atrás de si, em dúvida se deveria seguir a Sra. Muller ou ficar parada. Preferiu ficar onde estava.
Uma jovem de cabelos longos, loiros e cacheados desceu as escadas em pulos, parando apenas quando virou para ver Marla. Sua pele parecia porcelanada e vestia seus pijamas.
— Desculpe. É fim de semana — ela respondeu, baixo.
Marla sorriu amarelo e uniu as mãos na frente do colo.
— Não se preocupe, Amma. Se quiser, pode trocar de roupas antes do depoimento.
— Não precisa. Se a senhora não se incomodar.
A garota foi até a sala da casa e sentou-se à mesa. Todo o cômodo era espaçoso e de cores claras, o que causava um pouco de náuseas a Marla. A ruiva sentou-se ao seu lado e pegou seu gravador.
— Você tem quantos anos?
— Dezoito — respondeu Amma, a coluna ereta.
— Você não prefere dar o depoimento com a presença da sua mãe, ou de um responsável?
Amma fez que não com a cabeça, decidida.
— Não, senhora Bronx. Mas obrigada.
— Senhorita — Marla corrigiu, ligando o gravador. — Seu nome?
— Amma Muller. Tenho dezoito anos, sou estudante e amiga de Helen Süskind. Andávamos juntas e estudávamos juntas.
Amma mal piscava. Seu rosto estava neutro, como Marla poucas vezes já vira em alguém sob depoimento.
— Você conhecia Helen desde quando?
— Há uns dois anos. Mas nos aproximamos logo.
— E como você achava que Helen era?
Deixou escapar um sorrisinho.
— Helen era louca. Uma louca varrida.
Marla franziu o cenho e deixou um breve silêncio pelo gravador.
— Como assim? — perguntou, tentando ser sutil.
Amma deixou escapar novamente uma pequena risada. Desviou o olhar, mas voltou a sustentar os olhos verdes de Marla:
— Se você dizia para Helen sussurrar, ela gritava. Se você dizia que algo era branco, ela dizia que era preto. E se você mandasse Helen parar, ela continuava até chegar ao intolerável.
Falou tudo aquilo com um sorriso em seu rosto pequeno e redondo.
— Acredito que alguém devia se incomodar com isso. Quem sabe... Um professor, alguma autoridade?
— Tirando um ou outro professor que não teria a coragem de fazer qualquer coisa, não me lembro de ninguém.
— Helen tinha relações com outros garotos?
Amma franziu o cenho, apesar de Marla não acreditar que fosse uma reação verdadeira.
— Como assim, “relações”?
— Você não é criança, Amma — respondeu, com uma sobrancelha erguida. — Eu sei que Helen tinha voto de castidade, vi o anel em todas suas fotos. Ela quebrou esse voto?
Hesitou por um momento, mas logo balançou a cabeça negativamente.
— Não sei, Srta. Bronx. Você não conseguiu saber disso na autópsia?
— Foi inconclusiva. O corpo estava extremamente carbonizado. Mas não parece ter havido invasão corporal recente.
O rosto de Amma reduziu-se a receio.
— Como assim?
— Ela não foi abusada. Mas não sabemos se ela era virgem.
Amma abaixou o olhar para seu colo, com suas mãos repousadas por cima de seus shorts.
— Você tem uma irmã mais velha?
— Tenho. Jessica. Ela está no treino de vôlei agora.
— Ela conheceu Helen?
Pôde ver Amma engolir em seco.
— Sim. Nós saíamos juntas. Eu, Helen, Jessica e mais algumas amigas dela.
— Da Jessica?
Assentiu com a cabeça.
— Costumávamos sair para comer. Nada demais.
— Vocês costumavam beber quando estavam juntas?
— Não. Fizemos promessa para a igreja.
— Amma — chamou-a e só prosseguiu quando ela voltou a olhá-la nos olhos. — Eu tive a idade de vocês e também frequentava a igreja. Eu não tinha irmã mais velha para me levar num bar, mas me conheço o suficiente para saber o que faria se tivesse.
— Não me entenda mal, detetive — retrucou, com a voz firme —, mas não somos como garotas de filmes, que são reprimidas pela igreja, mas fora de casa agem exatamente contra tudo que pregam na frente da cruz. Não vamos contra nossas promessas.
Marla recuou o corpo. Abaixou os olhos para o papel à sua frente e fez uma anotação qualquer, apenas para desviar o olhar da garota por um momento.
— Então posso riscar uma procura a ex-namorados?
— Nem eu, nem Helen tivemos relacionamentos sexuais com homens.
— Isso não anula a possibilidade de um criminoso sexual ter atacado Helen. Vocês frequentam a mesma igreja?
Amma assentiu com a cabeça.
— Tinha alguém, homem ou mulher, que parecesse suspeito entre os fiéis?
— Não que eu tenha reparado.
— Ninguém que olhasse para Helen de uma forma mais sugestiva?
Ela fez que não, mas pareceu pensar um pouco. Marla deu-a tempo de refletir o quanto precisasse.
— Creio que não, detetive. Mas Helen tinha descoberto coisas bem... Sérias em relação ao nosso pastor.
Marla inclinou-se para frente, para ouvir melhor a garota. Em resposta, Amma limpou a garganta e continuou:
— Conhecemos uma garota chamada Sonya. Ela tem uns quinze, dezesseis anos. Tinha muitos problemas para se relacionar, acho que ela tem alguma... Coisa.
— Continue.
— Sonya é de um orfanato que fica em território da igreja. Eu e Helen já fizemos alguns trabalhos voluntários lá, principalmente recreação.
— É uma das casas ao lado da igreja?
— É no mesmo quarteirão. Helen estava ajudando a Sonya uma vez, estava fazendo um desenho de referência. Quando Sonya terminou, ela parecia realmente feliz, então, foi agradecer a Helen.
Interrompeu-se. De repente, seus olhos azuis encheram-se de água e ela abaixou a cabeça.
— Precisa de um momento, Amma?
— Estou bem. — Limpou a garganta novamente e prosseguiu. — Sonya foi até a Helen e colocou a mão por baixo de sua saia, tocou sua virilha. Helen a reprimiu imediatamente. Então, Sonya saiu correndo e começou a chorar.
Marla sentiu seu sangue concentrar-se em sua barriga, em uma dor instantânea e quase insuportável.
Logo em seu primeiro caso.
— Vocês contaram isso a algum responsável?
As lágrimas de Amma começaram a escorrer. Ainda assim, sua voz permanecia firme e clara:
— Não. De primeira, preferimos não contar a ninguém. Só eu tinha visto o que ela tinha feito com a Helen. E Helen tinha certeza que tinha sido nosso pastor que tinha feito isso com a Sonya.
— De onde ela tinha tanta certeza?
Amma deu de ombros.
— Era a Helen. Quando ela colocava algo na cabeça, ela tentava se provar certa até o último momento. Só sabíamos que ele costuma fazer sessões individuais de confissão e frequentava o orfanato com frequência.
— Quando foi isso?
— No dia que Helen sumiu, mas de manhã. À tarde, ainda não sabíamos o que fazer.
— Acha que outra pessoa além de você sabe do que aconteceu?
— Duvido um pouco, sinceramente. Ela passou o dia comigo. Só nos separamos à noite.
— E para onde ela foi?
— Passamos a tarde na casa dela e ela disse que iria à polícia de noite. Falamos para os pais dela que sairíamos com a minha irmã.
— E os pais dela não estranharam.
— Não. Eu e Helen viemos para cá, e depois, ela foi embora.
— Que horas?
— Por volta das sete.
— E ela não reapareceu?
— Não soube dela até o dia seguinte.
— Os pais dela deviam ter achado que ela dormiria aqui. Acha que Helen pode ter ido até a igreja, para confrontar o pastor?
Amma abaixou o olhar em um desleixo. Voltou a sustentar o olhar de Marla.
— Acredito que ela pode ter ido à igreja sim. Mas ela disse que iria à polícia.
— Não recebemos nenhuma denúncia com o nome de Helen. Vou repassar a lista de ocorrências do dia em que ela sumiu e sigo para um depoimento do pastor.
Marla ficou de pé e estendeu a mão para a garota, que a apertou prontamente.
— Obrigada, Amma. Ligo se precisar de mais um encontro.
— O que precisar, detetive.
Marla saiu da casa e entrou em seu carro. Chorou por cinco minutos, encolhida sobre seus joelhos, antes de dar a partida e deixar o quarteirão.

percebeu que era hora do almoço depois de sua barriga roncar. Conferiu o relógio do escritório de , que marcava uma da tarde. Ele não estava lá, o que a deixava aliviada.
Viu em seu próprio escritório poucas vezes. Ficava mais aliviada com isso do que preocupada.
Fechou a porta atrás de si com o material ainda em cima da mesa, mas encolhido próximo ao canto. Pensava se valia a pena encontrar , pedir para ter uma reunião com ele antes de ir para a Vila Lui novamente. Pensava no que ele diria sobre “não-ortodoxo”, sobre a ideia dela de fazer uma ronda.
Se ele negasse a ideia.
Chegou ao refeitório. A maioria das mesas estava cheia, e esperou que Marla tivesse chegado cedo o suficiente — e que ela tivesse se lembrado de almoçarem juntas. Serviu-se de um pouco de comida, e procurou os cabelos ruivos pela sala. Pelas janelas, via uma chuva fina cair.
Encontrou Marla sozinha em uma das mesas e apressou-se para sentar com ela. Quando se aproximou, o rosto de Marla pareceu surpreso, mas não de forma boa.
— Desculpe pelo atraso, perdi a hora — avisou e colocou a bandeja na mesa, na diagonal de Marla.
Marla comprimiu os lábios e sorriu forçado.
— Não tem problema. Eu achei que você não vinha, mas pode sentar.
estranhou.
— Você está esperando alguém?
Assim que terminou, viu alguém se sentar ao lado de Marla. Recuou o corpo, como se o homem precisasse de espaço. Ele se sentou devagar, ou apenas tivesse sentido como se fosse devagar.
Não se lembrava de estar tão próxima dele antes. Era alto, com o cabelo loiro bem penteado, mas sem parecer exagerado. Sua barba era curta, de poucos dias, o suficiente para marcar seu maxilar. Não se lembrava de estar tão perto dele, de se olharem em silêncio, de ter notado como os olhos dele eram azuis.
Não se lembrava de olhar para os olhos dele, e de ele olhar para os olhos dela, e, por um segundo, ela só conseguir ver azul. Por um segundo, sentiu que tudo tinha caminhado até ali para que isso acontecesse. E, de alguma forma, parecia que tinha sentido o mesmo. Quando ele se sentou na frente de , se perguntou por que isso tinha demorado tanto para acontecer. Como se ambos estivessem atrasados para aquele momento. Onde ela esteve até agora?
— Não lembro se vocês se apresentaram — Marla disse, alheia, olhando para . — Essa é a . , esse é o .
— Não fomos apresentados direito. — virou o rosto para Marla, mas não desviou os olhos. — Prazer em conhecê-la, .
— É um prazer... Também.
Comprimiu os lábios e olhou para a própria comida. Sabia que continuava olhando-a, mas já não sabia mais o que fazer.
— Você está conseguindo avançar bem no seu caso? — ele perguntou, finalmente. Antes, quando tinham se falado no carro dele e na primeira visita de cenas de crime, sua voz soava bem mais firme. agora parecia à vontade, desarmado. A pergunta soava mais sincera.
— Sim, eu já tenho uma linha de raciocínio.
— “Eu”? — Marla perguntou. — Achei que você estava em dupla com o .
deu de ombros.
— Só conversamos e nos ajudamos. Achei que vocês também estavam trabalhando juntos.
— Não, só nos falamos ontem — retrucou, olhando para o prato.
— E como estão os casos de vocês?
— Indo bem, também — Marla respondeu rápido, quase antes de deixar terminar a pergunta. — Vou falar com a Felicia hoje à tarde para começarmos a pedir mandados de busca. E você, ?
levantou o olhar para Marla, mas olhou furtivamente para . Esperou alguns segundos antes de responder, como se esperasse alguma reação dela.
— Já tenho um suspeito. Ainda estou indo com cuidado, mas já tenho um primeiro suspeito.
engoliu em seco. e Marla olhavam para baixo, para seus próprios pratos, e continuaram comendo sem falar mais nada. De repente, sentiu que perdeu a fome.
— Vocês estão repassando tudo para os mentores?
— Eu deixo um relatório para Felicia todos os dias.
riu para .
— Eu só falei com Angie na segunda-feira.
Instintivamente, ela retribuiu.
— Preciso ir — Marla declarou, já ficando de pé. — O relatório de hoje para Felicia vai ser longo. Falo com vocês depois.
Tirou sua bandeja e se retirou, com e murmurando “até depois” para ela. Quando se viu sozinha com ele, baixou o olhar de novo para o prato já esvaziando.
— Preciso dizer que temi por você, quando vi que ficou com aquele cara no começo da semana.
riu. Não esperava que, de qualquer coisa que ele pudesse dizer, seria isso.
é... Estranho.
— Estranho como “esquisitão” ou “diferente”?
— Diferente. Ele... Me cobra muito. Mas não sei ler bem se é pelo meu bem, ou porque ele gosta de cobrar.
deu de ombros.
— Se funcionar para você, acho que não muda tanto.
Ela sorriu. Não sabia bem como continuar aquela conversa, e ambos já acabavam de comer, mas não queria sair dali. Não por enquanto.
— Parabéns pela colocação no concurso, aliás — ela comentou.
deu de ombros, mas não pôde evitar um pequeno sorriso pouco modesto.
— Obrigado. E parabéns pela coragem de pegar o primeiro caso na terça-feira. Pareceu ser o mais difícil.
deu de ombros, com um sorriso amarelo.
— Não sei se foi coragem. É um caso difícil.
— Se você já tem uma ideia e está sem a ajuda do seu mentor, é porque dá conta. É um caso que demanda muito, emocionalmente.
está me acompanhando também. Mas o que está sendo mais difícil para mim é organizar todas as informações, estudar tudo. Não consigo me concentrar bem, anotar...
— Eu normalmente... Ouço músicas enquanto estudo, em casa.
— Que tipo de música?
— Eu gosto de Marvin Gaye.
fez uma careta, com uma risada que pegou de surpresa. Ele também riu, sem saber exatamente por quê.
— Não esperava que você gostaria de Marvin Gaye.
— Eu gosto de música boa — ele retrucou. — Você não gosta de Marvin Gaye?
— Eu quase nunca ouvi músicas dele.
fez uma careta como se estivesse ofendido.
— Isso devia ser o mínimo para qualquer pessoa que gosta de música, por favor! Que tipo de música você ouve para relaxar?
— Não costumo ouvir música para relaxar... Eu só, não sei, tento estudar.
— Tente fazer isso, dá certo para mim.
apertou os olhos, olhando nos olhos.
— Só se você fizer o mesmo enquanto ouve David Bowie.
Ele franziu a testa e fez uma careta, deixando claro que não entendia a relação entre as duas coisas.
— Por que eu estudaria ouvindo David Bowie?
— Porque eu gosto de David Bowie, e eu vou ouvir Marvin Gaye.
— E eu preciso ouvir David Bowie?
— Sim, senão eu não vou ouvir Marvin Gaye.
Ambos já tinham terminado de comer. Aquela conversa não tinha relevância alguma para o trabalho, um para o outro. Mas queriam ficar ali. Qualquer motivo, qualquer assunto. Qualquer razão para continuar ali.
Não olhavam para o relógio. Não existia hora.
— Bom, apesar de isso ser uma perda imensurável para você, eu aceito essa troca. E segunda-feira eu vou cobrar isso de você.
ergueu as mãos em rendição.
— Sem problemas. Segunda-feira eu também vou cobrar isso de você.
sorriu de novo, e ela o imitou. Ele conferiu seu relógio, depois de notar que todo refeitório já estava quase vazio.
— Preciso ir também. Espero que fique tudo bem no seu caso.
Ela assentiu e se despediu. Conferiu o relógio na parede. Tinha passado meia hora lá, mas parecia um minuto.

Don't ask for help, you're all alone… You'll have to answer to your own… Pressure!


Capítulo 7 — Burn the witch

Avoid all eye contact… Do not react… Shoot the messengers… This is a low flying panic attack.

Pela primeira vez, estacionou o carro na frente da casa de e tocou a campainha. Vestia uma roupa preta, de mangas compridas, e calças jeans. Mesmo com dúvidas se aquele seria o uniforme apropriado, preferiu vestir algo confortável e discreto.
Março. Nem estava tão quente assim.
Conferiu o relógio e tocou novamente a campainha. A maçaneta rangeu e abriu-se lentamente. Os olhos amendoados e verdes de uma mulher que não conhecia apareceram na fresta.
— Está procurando alguém?
hesitou por um segundo e ouviu a voz de de dentro da casa.
— Deixe-o entrar, Patricia!
Pat abriu a porta, com os olhos apertados em desconfiança. Ela estava com roupas à vontade, mas com seus cabelos cacheados ainda presos em um coque firme, como se estivesse pronta para sair caso precisasse. entrou na casa, pedindo licença e parou perto da porta.
— Pode entrar, está na cozinha. Estávamos terminando uma pizza.
olhou em volta. Havia algumas caixas perto da entrada. A cozinha ficava depois da sala e podia ver de onde estava. Ela terminava um pedaço de pizza em cima da mesa de jantar.
— Pode vir, já estou terminando de comer — ela disse, depois de engolir o pedaço.
Ele andou a passos curtos até a cozinha, deixando Pat para trás. Parou ao lado de e, coçando a orelha, murmurou:
— Você tinha esquecido do nosso combinado?
— Eu tinha esquecido do combinado com ela. Mas já vamos sair, minha mochila está pronta.
Patty foi até a pia e começou a lavar os pratos, atrás de . Bufou baixo e lavava os pratos com força.
— Espero você acordada?
— Não, vou para uma ronda. Não sei que horas deve terminar.
— Tudo bem. Estou de stand by no hospital. Se precisar, pode ligar para o nosso número ou para o número de lá.
assentiu e Patty deixou-os sozinhos. Foi para seu quarto, provavelmente. sentou-se de frente para e apoiou o rosto em uma mão, com o cotovelo em cima da mesa.
— Descobri de quem é o endereço que Faye me deu. É de um cara chamado Michael Young Junior.
— Quem é? — perguntou ela, ficando de pé e indo até a bancada da sala, onde deixara a mochila.
— Empresário. Ele e o pai comandam uma construtora.
— E o que faremos com essa informação?
deu de ombros.
— Ainda não sei. Hoje vamos cuidar do seu caso. Quem vai com a gente?
Com o cenho franzido, colocou a mochila nos ombros.
— Somos só nós dois. Foi o que combinamos.
estremeceu e sentiu seu sangue esquentar. Cerrou os punhos e limpou a garganta.
— Você não ligou para outro policial? ou Bronx?
Ela fez uma careta, parada ao lado do sofá com os braços cruzados. , ainda sentado, olhava-a de baixo para cima. vestia uma jaqueta verde-escura, jeans e tênis. Seus cabelos estavam soltos e formavam ondas por cima dos ombros.
— Você queria que eu ligasse para ou Marla?
olhou-a nos olhos.
— Você deve estar brincando que vamos só eu e você.
— Você está armado?
— Trouxe duas e silenciadores. Não é nossa salvação caso tenhamos algum problema mais sério.
começou a andar na direção da porta.
— Tenho um taser, caso precisemos de algo mais corpo-a-corpo.
passou a mão pela testa e suspirou.
— Porque se um piromaníaco sequestrador aparecer na casa, resolveremos o problema com um choque para ele dormir.
bufou e sentou-se no sofá. levantou e andou até perto dela, que afundou ainda mais nas almofadas, as costas jogadas para trás.
— Pegue alguma arma, pelo menos — ele continuou. — Uma arma de verdade.
— Não sou autorizada a portar uma arma ainda.
— Então ligue para alguém. Precisamos de algum apoio.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Quer que eu chame ou Marla?
— Precisamos de apoio.
— Não perguntei isso. Perguntei se você quer que eu chame ou Marla.
ergueu um lábio, em um suspiro. Murmurou:
ou Robert poderiam oferecer algum apoio.
não faria nada para me ajudar nisso. E você sabe que Robert também não.
Olharam para o telefone, em uma mesinha ao lado do sofá. voltou a olhar para , que parecia ponderar a melhor opção.
— Eu posso ligar para Marla. Ela já deve estar mais aliviada com o caso dela. Ela nem hesitaria em ir conosco para a Vila Lui.
Ele olhou-a de lado. Suspirou e ficou de pé.
— Vamos logo. O mais cedo que chegarmos lá, o mais cedo sairemos.
gritou uma despedida para Pat e foram para o carro de . Cada um tinha, nos bolsos internos dos casacos, um par de algemas, um silenciador e suas armas. dirigiu rezando até a vila.
Talvez fosse esse o perigo das ondas. Ficar tempo demais olhando para elas.
As ondas nunca se dispersam realmente quando viram espuma na areia.

estacionou o carro a cerca de meio quilômetro da Vila Lui, dentro de um posto de gasolina. Estava em dúvida se deveria deixar seu crachá exposto ou não durante a operação, então conferiu a roupa de com discrição. Não tinha o crachá. Antes de sair do carro, vestiu um casaco para esconder a arma.
— Avisou que estaríamos aqui? — perguntou, baixo. Encolhia-se por dentro do casaco, os cabelos tremelicando pelo vento. Não queria deixar transparecer para que estava aterrorizado. As ruas mais próximas à Vila Lui tinham pouca ou, por vezes, nenhuma iluminação.
Olhou para ela pelo canto dos olhos. tinha os cabelos presos e as mãos dentro dos bolsos do casaco. Seus olhos estavam inexpressivos e o nariz estava apontado levemente para cima.
— Avisei — respondeu.
sentiu sua pressão aumentar.
Welsh. Tudo de novo.
Parou, no meio da rua, e falou:
— Você não avisou.
— Se soubesse que eu viria, ele daria algum jeito de não permitir.
— Estamos em risco porque você quer provar um ponto para o seu mentor — ele continuou, com a voz pausada e firme.
apertou os olhos.
— Eu avisei outros policiais civis e disse para a delegada que ia fazer outro relatório na vila — respondeu, com a voz inexpressiva, mesmo que estivesse visualmente irritada. — Quatro carros policiais armados estão no quilômetro da vila, caso tenhamos algum problema e precisemos de reforços.
Tirou de um dos bolsos um pequeno walkie-talkie e estendeu-o para . Contrariado, ele pegou e colocou no bolso do casaco.
— Se achar que precisamos de reforços, é só apertar o botão em cima e falar.
— A janela está aberta?
— Sim, do mesmo jeito que estava quando o crime aconteceu. Vamos entrar por ela assim que as luzes se apagarem no resto da vila.
apontou para frente, para a entrada da vila a alguns metros.
— Logo, então.
— Vamos dar a volta — indicou, cortando-o por uma rua perpendicular à que estavam.
Entraram por uma rua sem saída e passaram por um beco atrás de alguns prédios. Quando chegaram aos fundos da vila, perceberam que, antes do muro, tinha uma cerca viva baixa.
— Eles decoraram o muro — observou, com uma risada baixa. — Bastante otimista, levando em conta a hostilidade que eles insistem que existe.
— Você não acha que exista? — ela perguntou, passando uma das pernas pelo muro com plantas rasteiras crescendo ao seu redor. — A chance desse crime ter sido de ódio é grande. Queimar a casa faria muito sentido.
— Faz, mas por que levar Patrick? Crimes de ódio não costumam envolver sequestro.
assentiu. A verdade era que a situação ainda estava bastante turva, e não queria compartilhar sua única teoria.
Chegaram ao muro, baixo o suficiente para ser pulado, alto o suficiente para que ajuda fosse necessária. ajudou a subir e aproveitou sua ajuda quando ela estava em cima. Ambos desceram em silêncio, pisando diretamente em uma grama baixa. As casas ao redor eram longe o bastante para não ouvirem caso alguém tentasse pular com cuidado.
O mais difícil seria passar pela janela. Era pequena, e estava queimada demais. Algum pedaço de madeira podia se soltar, ou ranger. partiu na frente e esticou o corpo para dentro. Colocou a mochila no chão e tirou o corpo para, enfim, passar uma das pernas. Pisou na mochila e, sem qualquer ruído, passou a segunda perna. Apoiara uma mão na parede, do lado de fora, para ter mais equilíbrio; todo peso de seu corpo estava na perna, mas pôde ouvir um baixo ruído da madeira.
— Não se apoie na madeira. Use minha mão — ele sussurrou, a mão estendida para . Ela repetiu os movimentos dele, segurando-se em sua mão.
suspirou em alívio. A casa parecia bem mais com um mausoléu de noite, próximo à madrugada. sentou-se ao lado da cama de Patrick, encolhido, ao lado da porta da sala totalmente aberta. foi direto para o armário: abriu-o e abriu uma das gavetas, remexendo-a um pouco.
— O que está fazendo? Venha logo — chamou.
— Estava só conferindo uma coisa — ela respondeu, enquanto andava na direção dele e se sentava ao seu lado.
— Sua arma está carregada? — ele perguntou, baixo. Seu rosto estava próximo do de , seus narizes a poucos centímetros de distância. olhou-o. A face iluminada de parecia cintilar contra a luz que vinha da janela e pela sala.
— Descarregada e travada.
— Vou verificar as janelas da sala. Ver se tem alguma coisa nova.
— Vou verificar a despensa.
Se separaram, mas poucos minutos depois voltaram para o quarto de Patrick. tirou algumas fotos da dispensa com uma câmera de filme que levara, e confirmou que não houve alterações aparentes na sala ou cozinha. Sentaram-se no chão, dentro do quarto de Patrick.
— Mostre sua arma se tivermos algum perigo. Eu atiro caso sinta que estamos ameaçados — ele avisou, abrindo a mochila em seu colo. — Está com fome?
— Melhor eu comer algo agora.
Abriu sua própria mochila e pegou um dos sanduíches. Suas vozes estavam tão baixas que mal conseguiam se ouvir. Do lado de fora, ainda podiam ouvir alguém assistindo televisão em um volume exageradamente alto.
— O quão próximo você acha que estamos? — ela perguntou, olhando-o de lado.
franziu o cenho.
— De encontrarmos o seu criminoso? Se você estiver certa, bem próximos. Talvez, mais próximos que Bronx ou . Você andou falando com eles?
Ela fez que não com a cabeça, já na metade do sanduíche.
— Só coisas sobre a delegacia, nada sobre os casos. E sobre o seu caso? Acha que consegue algo com esse cara? — Fez uma pausa para engolir. — Quando quis ser policial, acho que esperava casos mais... Surpreendentes. No mínimo, com soluções mais interessantes.
riu baixo. Olhou para ela com seus lábios formando um pequeno sorriso e seus olhos claros bem abertos.
— Meu pai era policial. Sempre soube que era algo mais monótono que os livros mostram.
— Então você faz isso por tradição familiar?
fez uma careta ofendida.
— Deus me livre. Meu pai odiava ser policial. Entrei exatamente para frustrá-lo. Ele queria que eu fosse promotor de justiça.
— O namorado da Patty é promotor. Talvez tenha um trabalho tão chato quanto o nosso está sendo.
— Sim, mas eles não podem carregar uma arma e mostrar um distintivo.
riu baixo.
— “Eu sou advogado” não tem o mesmo poder de “eu sou policial”.
— Sua família também é da polícia?
Ela virou os olhos e amassou o papel do sanduíche.
— Meu pai era eletricista. Minha mãe era governanta.
“Governanta”. Bem vitoriano.
notou que tinha entrado em uma zona restrita. Esperou alguma reação de , mas nada veio.
— Desculpe. Fui evasivo.
— Não tenho problemas em falar da minha família. Já estou resolvida em relação a eles.
— Eles ficaram felizes em você trabalhar na polícia?
Ela riu baixo.
— Minha mãe quer usar o adesivo “minha filha é policial”, meu pai morreu quando eu tinha três anos.
comprimiu os lábios.
— Incêndio na nossa antiga casa. Algo bem parecido com isso aqui — ela falou, olhando em volta do quarto. — Eu e minha mãe saímos rápido, ele estava dormindo. O cigarro dele que começou tudo.
— Talvez isso que tenha feito você entrar para a polícia — ele sugeriu, tocando o braço dela com o seu próprio. Tentou dar um sorriso reconfortante.
— Talvez — ela murmurou, em resposta, desviando os olhos para o chão. — Vai amanhã na casa do dono de construtora?
— Não tenho tempo a perder. Acho que parei de correr em círculos.
— Amanhã é sábado.
Ele riu.
— Acho que logo você vai perceber que, como em muitas outras profissões, nós trabalhamos aos fins de semana. Às vezes, porque uma imagem não sai da nossa cabeça e só queremos nos livrar dela.
— Me fale sobre uma imagem que não saía da sua cabeça, .
Ouviram o som de algo rangendo na sala. enrijeceu os músculos e, lentamente, girou a cabeça para olhar pela porta. Voltou com o corpo relaxado.
— Fique aqui. Vou para a janela. Foi só a madeira rangendo, mas estamos nos aproximando da hora do crime.
ficou de pé e andou agachado até a janela. Postou-se ao lado dela, com o corpo completamente na escuridão, em um ângulo que a possibilitasse de olhar para o lado de fora. Respirou fundo e apoiou na parede para começar:
— Quando eu ainda estava em Welsh, tive um caso de tráfico que parecia promissor. Cheguei a fazer algumas operações de invasão, foi especialmente animador, na época. Mas, já no fim da operação, chegamos à casa de um dos caras que comandava. E encontramos uma chacina.
Os olhos de estavam apontados para o chão, nostálgicos. esperou que ele continuasse.
— O caso foi para a Homicídios, mas eu não conseguia deixar de pensar naquilo. Dois homens, uma mulher jovem, uma criança. Um dos homens estava com o tronco praticamente separado do corpo, todo aberto. A mulher teve a língua cortada, a criança perdeu as orelhas. O outro homem estava com a cabeça estourada.
Fez mais uma pausa. Cruzou os braços e seu rosto ficou relaxado e inexpressivo.
— O ritual. Eu já tinha lido sobre algumas execuções de organizações de tráfico. Sempre é algo perturbador. Mas a criança com as orelhas cortadas... Eu nunca vou esquecer. Porque nunca achamos as orelhas.
Sua voz falhou e notou que ele parecia começar a chorar.
— Nunca achamos as orelhas.
Ficaram em silêncio. comprimiu os lábios, mas não disse nada. Encolheu-se e abraçou os joelhos.
passou as costas da mão pelos olhos.
— Eu acabei participando de outro caso grande depois. Me machuquei durante a operação. Larguei o trabalho e saí de Welsh, porque já tinha decido que preferia ficar na Homicídios.
Ainda está procurando pelas orelhas.
Ele coçou a barriga, em cima da cicatriz.
conferiu o relógio. A hora aproximada do crime ainda demoraria um pouco e ainda podiam conversar.
acendeu um cigarro e olhou para ela enquanto tragava. começou a tatear a mochila de e murmurou algo como “onde está o resto da comida...?”. Achou o pente, colocou-o no colo e suspirou em derrota.
Deixar o pente na arma não significava que ela iria usá-la. não iria querer que ela estivesse armada, mas não poderia arriscar.
Não significava que iria usá-la.
tragou mais uma vez. pegou um comprimido do remédio.
Um tempo depois, só havia o silêncio.
Ele estava fumando o terceiro cigarro, o que imaginava ser cerca de meia hora depois de quando fumou o primeiro. Ela tinha certeza de que tinham se passado 42 minutos.
— Vou ficar no andar de cima. Eu consigo ver pela janela se alguém chegar perto — disse, ficando de pé. Ela tremeu com um pequeno susto.
— Eu fico aqui sozinha?
Ele franziu o cenho, mas riu enquanto levantava.
— Agora ficou com medo do escuro?
não achou graça. Ficou em silêncio, esperando a resposta.
— De cima, eu consigo ter uma visão melhor da fachada. Você fica de olho nos fundos, tudo bem?
O olho de começou a pesar. Não sabia se por sono ou pelo remédio.
— Quando eu voltar, revezamos.
— Por que você precisa olhar a fachada?
Não pensou bem antes de perguntar.
— Relaxe. Daqui a pouco revezamos.
passou pela porta devagar, custando a sair. A madeira crepitou quando ele passou pelo quarto, iniciando um silêncio tão profundo que parecia sugar o quarto.
As luzes da vizinhança já tinham se apagado.
Olhou para o frasco de remédio. Estava pela metade. Precisava voltar à doutora Rinsburg o quanto antes.
Quando foi a última vez que tomou meio frasco em menos de uma semana?
Abriu e tomou mais um. O segundo da noite.
quando estava ansiosa.
A Dra. Rinsburg não parecia lembrar que ela quase sempre estava ansiosa.
Ansiosa pelo quê? Nada aconteceu. Nada está acontecendo.
Silêncio. O quarto parecia um vácuo.
ficou de pé. Cambaleou e precisou se apoiar em uma mesinha de cabeceira para não cair. A luz da lua se projetava janela adentro, formando um corredor para fora do quarto — ou para dentro.
Silêncio.
O armário do quarto que Patrick e sua irmã um dia dividiram era pequeno. Boa parte dele sobreviveu ao incêndio. A pior parte da casa foi a sala, e o andar superior, onde ficava o quarto de Juliet. abriu a porta novamente.
Com certeza tinha uma foto do armário aberto no arquivo. Ela lembrava de ter tirado uma. Ou tiraram uma. Ou ela achava que tinha visto uma foto, mas na verdade era uma memória?
As coisas pareciam mais turvas de madrugada. Como se fossem desenhos sem linhas de limite.
Silêncio.
Sentiu-se sugada pelo quarto.
Silêncio.
Conferiu o relógio. Se aproximava das quatro da manhã.
Silêncio.
Talvez Patrick tenha fugido de casa, realmente. Pelo perfil de Juliet até agora, faria sentido. Talvez Dahlia tenha fugido antes e quem matou Juliet foi um assaltante nervoso.
Você sabe que não foi.
Talvez tenha sido.
Mas não foi.
O número de facadas. As primeiras tão profundas. O fogo para destruir tudo. Não foi queima de arquivo. Foi finalização. Foi acabar. Foi destruir tudo de Juliet Ramsay. Tudo que existia, tudo que faltava.
Foi raiva. E raiva era algo que conhecia bem.
Quem fez aquilo, fez porque odiava Juliet. Quem fez aquilo concluiu o que queria, ao menos com Juliet. Talvez quisesse matar Patrick e Dahlia para uma conclusão completa.
Mas, no fundo de seu coração, sabia que não. Que era sobre Juliet.
Acendeu o isqueiro na sua frente. O fogo dançou por alguns segundos.
Tão perto.
Queime a bruxa.
Queime a bruxa.
Ouviu algo do lado de fora.
O corredor de luz não mudou. Era o som de um carro desligando.
aproximou o corpo da parede da janela e se agachou. O muro era alto, então não conseguiria ver o carro. Bisbilhotou o canto da janela, mas não havia nada. Olhou para fora do quarto e também nada mudara. O quarto de Patrick parecia separado da própria casa.
agarrou o pente e encolheu o corpo. Ouviu a madeira estalar na porta e, quando olhou, colocou o dedo na frente dos lábios e desapareceu na escuridão. O som diminuiu até sumir.
— A sala — murmurou, quase inaudível. — Ouvi algo lá.
assentiu com a cabeça e destravou a arma com cuidado. O silenciador já estava posicionado. Andou, pé ante pé, em direção a ela, o corpo colado à parede. ficou de pé e escondeu o pente no bolso do casaco quando se aproximou.
— Me espere aqui. Vou checar a casa. Acho que ouvi alguém entrar. Fique de olho lá fora.
não passou pelo corredor de luz. Em vez disso, andou pela escuridão, atravessou a luz com pressa e foi para a sala.
Motor antigo.
Sentiu cheiro de queimado. Tudo de novo.
Colou o corpo contra a parede e tapou os olhos com a mão. não tinha ouvido o carro; estava concentrado demais na sala, talvez tivesse ido para o segundo andar. Pôs o pente na pistola e deixou-a travada, antes de colocá-la no cós da calça.
Respire fundo. Fundo.
Sentia as mãos tremerem.
Fundo.
Isso é o que chamamos de um ataque de pânico.
Ouviu alguém andando em direção ao muro, pelo gramado. Se alguém entrasse na casa, não saberia o que fazer. Não poderia tentar render quem quer que fosse: se o homem conseguiu render Juliet Ramsay, quebraria com pouco esforço. Ele provavelmente entraria pela janela do primeiro andar. Pela janela que estava.
.
!
Não. Controle-se.
Ouviu os passos se aproximarem do muro. Pareciam pouco cautelosos, com a certeza de que não seriam pegos.
O assassino arrogante que queria. Que queria.
. Você não pode deixar decepcionado.
Respire fundo. Você não pode chamar . Você tem que fazer alguma coisa sozinha.
Alguma coisa.
Faça alguma coisa.
Pôs o canto do olho para fora. Não conseguia ver direito a pessoa que estava ali, tanto pela falta de luz, quanto pela rapidez com que precisou voltar a se esconder.
Segurou a arma com as duas mãos, rezando para que aparecesse no quarto o quanto antes. Pelo menos precisava da cobertura dele, caso o homem estivesse armado. Sentia as mãos tremerem. Olhou para o teto e respirou fundo.
não está aqui. não vai aparecer.
E se você não fizer alguma coisa, você vai morrer.
Mexa-se, .
Segurou com força a arma e tentou ficar com ela firme. O homem do lado de fora parecia interessado em entrar na casa, então precisava agir rápido.
Respire fundo.
Quando viu a primeira perna do homem entrar pela janela, não havia mais tempo.
Assim que ele passou o tronco, agarrou a gola de seu casaco e girou-o, batendo suas costas contra a parede. Estava escuro demais para conseguir ver seu rosto com distinção. A primeira certeza que teve foi que ela nunca o vira antes.
— Quem é você? — ela perguntou.
Deu três passos para trás, firme, enquanto segurava a arma apontada para ele. O homem não reagiu. Continuou parado, com as costas na parede, e ergueu as mãos. Ele tremia.
— Você é da polícia? — ele perguntou, baixo. conseguiu ver, mesmo no escuro, que ele era um homem branco, de barba baixa. Não conseguia enxergar a cor de seus olhos ou seu cabelo, por dentro do capuz.
— Quem é você? — ela repetiu.
Ele hesitou. Olhou para e sussurrou:
— Você sabe onde estão os remédios, não sabe?
franziu o cenho. O homem tremia.
Remédios.
deixou o chão ranger enquanto descia as escadas. Em um segundo de distração de , o homem deu-lhe as costas, apoiou a mão esquerda no parapeito da janela e lançou-se para fora, com o impulso dos pés. Caiu em pé e começou a correr em direção ao muro.
— Vá atrás dele! — gritou, correndo até ela.
apoiou a mão esquerda no parapeito e se jogou para fora. A madeira do parapeito chegou a ceder, mas conseguiu cair de pé, com um joelho cedendo apenas. Segurou a arma com as duas mãos novamente e correu em direção ao muro.
— Pare! — Foi a primeira coisa que ela pensou em falar, depois de anos de formação em Law & Order.
só não imaginava que ela estaria correndo atrás de um imbecil.
O homem estava com o casaco, mas o capuz caíra e não havia qualquer coisa que não mostrasse seu rosto. Ele parou e tentou sacar uma arma, apontando-a para . Estava tão nervoso quanto ela, então teve tempo de pensar no que faria em seguida. Ele não hesitou em atirar.
abaixou-se atrás do muro e viu a bala estourar uma das paredes. Chegou a atravessar, mas imaginou que não passaria do quarto. E ouviu-o correr na direção oposta.
! — gritou , do lado de dentro da casa.
congelou parou por um instante e respirou fundo, a arma segura perto de seu peito.
Pense rápido.
Rápido.
levantou a cabeça e apontou para o homem, que corria em direção ao carro.
Não, ele não.
Não poderia matá-lo. Não poderia feri-lo, isso poderia virar uma vantagem para ele, caso ele fosse futuramente considerado um suspeito.
Apontou para o carro.
Boom.
Um dos faróis da frente explodiu.
O homem alcançou o carro e tentou abrir a porta, travada.
contou até três.
Respire.
Três.
Respire.
!
Dois.
?
Um.
Ficou agachada atrás do muro e esticou a mão por cima dele e atirou no outro farol, assim que o homem ligou o carro. Nesse momento, ouviu um som de tiro.
não saberia ordenar o que aconteceu a partir desse momento, para quando fizesse a ocorrência de sobre o tiro. Não saberia precisar a altura do homem, sua idade. Só sabia que ele tinha o cabelo baixo, raspado e preto. não apertou o gatilho, nem soltou a arma.
Não atire. De preferência, não mate ninguém.
Mantenha a calma.
Tentou gritar o nome de . Não houve tempo.
Sentiu o corpo ser jogado para trás. Parecia pesado e quente.
! Reforços! — gritou.
A arma tinha caído no chão. Pôde ouvir o carro dar partida e ir embora mais rápido do que chegou. Sentiu os olhos doerem de tanta luz acesa em poucos segundos e uma dor crescente no abdome.
O ar saiu rapidamente de seu pulmão.
Sangue.
Respire.
Não respire.
Não respire.
O rosto de apareceu turvo em cima do seu, no meio das estrelas.
— Fique parada. Não se mexa.
Ela obedeceu, tentando manter os olhos abertos. Sentia o corpo ficar mais quente. Não olhava para baixo, para o sangue que escorria por seu suéter rasgado. O suéter que segurava o sangue contra ela, transformava-a em uma poça, em um pano ensopado.
— Preciso de reforços! Chame uma ambulância! Policial ferido! — ele disse no walkie talkie, ou para trás, ou para algum lugar.
olhava para o céu com a mão pressionada contra o ferimento. Sentia o sangue em suas mãos e abaixou os olhos. Pressionou com mais força, toda que conseguia. Mas conseguia muito pouco.
Queime a bruxa.
Durma um pouco.
chamou. Podia sentir a respiração dele contra seu rosto, mas já não o via com nitidez. Sua voz era calma.
Fechou os olhos e deixou a cabeça apoiar-se na parede. Ouvia vozes misturadas, como uma multidão em sua cabeça. Não soube quanto tempo se passou até voltar.
, olhe para mim. Preste atenção.
Podia ouvir a voz dele calma, mas não podia vê-lo. Sentia os olhos pesarem e a mão cair contra o chão. O som era como se sua mão caísse na lama.
, fique de olhos abertos — ele falou, a voz um pouco mais preocupada, segurando o rosto dela com uma das mãos enquanto a acariciava para mantê-la calma. — Olhe para mim. Estou com você aqui, ok? Você está bem.
conseguiu abrir os olhos por pouco tempo, mas fechou-os em seguida. Pareceu ter sorrido.
, você não vai desmaiar agora. Você não vai fazer isso sozinha. Fique acordada, . Olhe para mim.
A outra mão de foi para seu rosto com um pouco mais de desespero. A voz dele parecia chorosa.
, somos nós dois na emboscada. Não faça isso sem mim. Fique acordada.
Ouvia a ambulância no meio do lamaçal. Muitas vozes, gritos.
Valhalla.
— Fique acordada.

A próxima voz que conseguiu reconhecer, já sem o caos de vozes e luzes, foi de Patricia. Devia ter se passado algum tempo desde quando desmaiou. Abriu os olhos com dor, em uma sala de emergência extremamente clara e com luz forte.
— Meu Deus, — ela suspirou, com a mão na frente da boca. — Que merda você fez?
fechou os olhos novamente e suspirou com preguiça. Quis voltar a dormir.
Dormir. Que piada de mal gosto.
Os olhos de começaram a se adaptar à claridade. Reconheceu a cortina azul em volta de sua maca. Reconheceu a pele cintilante de Patty contra a luz. O rosto de , seus braços cruzados e seus cabelos para trás.
Não estava com olhos adaptados o suficiente para conseguir enxergar as horas no relógio de parede.
— O que houve?
coçou o queixo. Talvez ele também precisasse um pouco dos remédios.
— Eu tinha dito que foi uma péssima ideia.
— Que merda você foi fazer lá, ? — Patrícia sussurrou, entre dentes, tentando conter a raiva e a preocupação.
— Onde conseguiu as balas? — emendou, olhando para baixo.
— São suas.
Ele apertou os olhos e pressionou a ponte entre eles com os dedos em forma de pinça.
— Eu mesmo vou te dar um tiro agora.
— Você precisa avisar os outros, — ela retrucou, e olhou para Patty. — Depois eu explico melhor, Pat.
— Não, você vai me explicar agora. Você passou a semana inteira sem falar nada direito, fazendo mistério. E aparece agora, na madrugada de um sábado, em um plantão que nem é meu, com uma bala na barriga. Eu quero e mereço saber o que está acontecendo.
passou a mão na barriga, onde sentia as ataduras amarradas. Sentia o corpo pesar para baixo, como se em vez de ter perdido sangue, tivesse ganhado quilos de chumbo na região. Sentia o tronco quase paralisado, preso à maca.
— Isso foi ideia sua? — perguntou ela, olhando para , os olhos de amêndoa apertados e cheios de raiva.
— Eu fui contra. A ideia foi dela.
— Pat. — Ela segurou a mão de Patricia enquanto falava com a voz mansa. — Eu prometo que te explico melhor daqui a pouco. Mas só quando estivermos a sós. Pode ser?
Patricia pareceu prestes a responder, mas desistiu em um suspiro cansado.
— Você ligou para alguém? — perguntou para , que seguia de braços cruzados no canto da delimitação da cortina.
— Bom, liguei para quem tinha que saber de você.
O chumbo ficou mais pesado. O corpo de agora estava afundado na cama como uma vala feita no exato entorno de seu corpo.
— Não.
— Ele ligou para cá há alguns minutos. Autorizei a entrada.
— Não, por favor. Não ele.
Ouviram a porta da sala de emergência ser aberta em um sol alto e passos pesados. Não podia ser outra pessoa.

— Vocês só fazem merda.
e não estavam com cabeça para ouvirem uma bronca. Patricia tinha saído e voltaria mais tarde, para conferir os pontos, e deixou os três sozinhos. O relógio na parede mostrava seis da manhã.
vestia uma camiseta e uma calça de moletom. Tinha os braços cruzados e os olhos brilhando de raiva.
— Vocês estarem vivos agora só mostra como os culpados dos crimes são tão incompetentes quanto vocês. Você — ele continuou, olhando para e com a voz grave e pausada — não foi atingida no pulmão por um triz. E você — olhou para — não é sequer minha responsabilidade e não está dentro de um saco preto porque Deus teve pena de você.
notou que, normalmente, ficaria irritado. No entanto, quase que de modo surpreendente, seu rosto estava calmo. Parecia aliviado.
— O que o médico falou? — perguntou, se esforçando. Sua mão direita estava em cima da barriga com curativo.
— Não chegou a perfurar muito nenhum órgão vital. A bala ficou alojada e não te deixou sangrar tanto quanto sangraria se tivesse atravessado.
— Não atravessou?
não olhava para ele. Era como se falasse sobre outra pessoa, sobre outra pobre mulher que tinha levado um tiro.
— Não. Você está fora de perigo. Já removeram a bala e fecharam o buraco. Mas — prosseguiu , andando em volta da maca — se ele tivesse tido outra chance, podia ter sido bem feio.
olhou para , que estava apoiado na barra da maca, com os braços cruzados na frente do peito e o rosto inexpressivo. Respirou fundo, coçando o queixo, e olhou para baixo. Voltou a olhar para e pediu:
— Pode se retirar, por favor? Preciso falar com ela.
e trocaram um olhar breve. Ela assentiu com a cabeça e ele suspirou. Abriu a cortina e saiu do espaço.
— E sem cigarro! — falou, assim que ele saiu.
estremeceu. Estar na presença de já era intimidador o suficiente; estar na presença dele deitada em uma maca, com curativos na barriga e tranquilizante às seis da manhã era não ter direito algum a se defender. Deveria só esperar em silêncio.
estava de braços cruzados e com as costas apoiadas na parede, olhando para o chão. Suspirou. Parecia se esforçar ao máximo para se manter calmo.
— Você estava armada?
engoliu em seco. Qualquer resposta era estúpida.
— Sim, mas... Não quando ele entrou na casa.
Aquela, no caso, era a resposta mais estúpida.
ergueu as sobrancelhas em surpresa e sarcasmo.
— Ah, então antes da casa ser invadida você não estava armada, e depois você simplesmente conseguiu uma arma?
— Não foi isso...
— Você nem pode portar uma arma, . Você nem é policial ainda. E a polícia já tem que arcar com os seus custos, com o processo que vamos levar por sua causa. — Começou a andar em volta da cama, como em um tribunal, com os braços cruzados e olhando fixamente para . — E para quê? Você vai de madrugada para sua cena do crime e não consegue nada além de uma cicatriz.
— Eu consegui mais do que uma cicatriz, Sr. .
Ele parecia querer continuar, mas sua raiva fez com que se calasse. Fechou o punho e o colocou na frente da boca, soltando o ar com força na mão. Ficou alguns segundos em silêncio antes de voltar a cruzar os braços e falar:
— O que você trouxe para mim então?
tentou se ajeitar na maca, com algum esforço. Não poderia forçar os pontos. tentou ajudá-la, mas ela já tinha conseguido quando ele ia tocá-la.
— Eu estava armada, sim, mas a arma era do . Se nos processarem, o que eu duvido que vá acontecer, porque agora o invasor é um suspeito do assassinato e do sequestro, podemos dizer que ele quem atirou. Até lá, já vou ter limpado toda prova de que eu quem estava com a arma. não atirou em momento algum, podemos alegar que eu fiquei com a arma dele, e sem balas no pente. Que foi ele quem atirou.
ficou em silêncio, em atenção.
— Foram dois tiros. Invertemos nossos lugares na história para que ele tenha disparado. Ninguém vai estar fora da lei aqui.
— Depende de onde você tenha atirado — ele retrucou, a voz pouco disposta. Ou, talvez, incitando-a.
sorriu. Sentiu o ferimento latejar.
— Eu atirei em um carro. E dois tiros foram disparados contra mim. Chame isso de legítima defesa.
— Espere. O quê? — ele perguntou, com uma careta. Puxou o banco da parede e sentou-se ao lado de . Apoiou a mão no queixo e o cotovelo na maca quando ela começou a falar:
— Ele entrou na casa. Perguntou sobre remédios, achou que eu sabia onde eles ficavam.
— Remédios?
— Só um segundo — ela pediu, apertando os olhos. Sentiu uma pontada na barriga, que se espalhou pelo abdome inteiro.
— E o que mais?
— Remédios. Sei que Patrick tem uma deficiência de cálcio. Ele precisa ser medicado com frequência, com remédios que são caros e controlados.
se calou, um pouco irritado, mas com o rosto satisfeito ao mesmo tempo. , no entanto, aproveitou o momento.
— Se aquele homem está com Patrick, quer mantê-lo vivo. Não quer recompensa.
— Pode ser um parente.
estava no segundo andar. O suspeito passou pela janela e eu consegui rendê-lo. Não quis atirar de primeira. E nem ele quis atirar em mim.
— Foi uma atitude estúpida.
— O protocolo é estúpido.
deu de ombros em conformidade.
— Tem razão. Prossiga.
— Ele conseguiu fugir e tentou atirar em mim, mas errou. Subi no muro para conseguir ver melhor e ele tentou usar o carro para fugir. Então, eu atirei.
— No suspeito?
— Nos faróis do carro. Acertei dois. Foi quando ele me acertou e foi embora.
coçou a testa. Tentava disfarçar o nervosismo.
— E por que você fez tudo isso?
sorriu novamente.
— Porque o carro era um modelo ultrapassado, mas não tão antigo. Provavelmente era um carro herdado. Estava minimamente conservado. E eu explodi dois de seus faróis. Ligue para algumas oficinas na cidade e faça eles avisarem quando aparecer um carro com os dois faróis da frente estourados e lataria marrom. A roda era mais nova que o modelo do carro. O suspeito deve aparecer ainda hoje. E é provável que ele divida o carro com algum familiar, então precisa consertar logo.
ficou em silêncio. Então sorriu. O sorriso dele foi tão honesto e orgulhoso que não conseguiu evitar imitá-lo.
— Você é maluca. Você faz tudo que eu digo para você não fazer.
— E eu descobri outra coisa também. Quando eu receberei alta?
— Se sua situação ficar estável, hoje, próximo à hora do almoço. Mas alguém deve cuidar dos seus pontos.
Se a Pat me perdoar — disse, com um riso trêmulo —, ela vai me ajudar. Mas queria ter uma reunião com você e com na hora do almoço.
Ele franziu o cenho, ainda sorrindo. Céus, como adorava aquela garota. Nunca se cansava de se surpreender com ela.
Ariana iria adorá-la, com certeza.
— Por quê?
— Porque eu conferi o armário de Patrick. Já estava prestando atenção nisso desde que fui lá pela primeira vez. E toda vez as gavetas parecem um pouco mais vazias. E pelo que o homem disse quando entrou.
quis responder, mas não conseguiu.
— Esse homem está pegando roupas do Patrick todo dia. Ele foi atrás de remédios do Patrick. Esse homem não tem dinheiro para comprar roupas novas e pegar novos remédios.
— Então...
— Esse homem quer ele vivo. Precisamos ser mais rápidos e com mais cuidado, porque ele não pode se estressar...
Se interrompeu, mas continuou sorrindo. também sorriu e dormiu poucos minutos depois.

Acordou às onze horas com Pat tocando seu ombro. Em silêncio, conferiu os pontos de .
— Agora, não. Vamos jantar juntas hoje. E você vai me falar tudo.
não se opôs. O médico autorizou que ela fosse para um quarto, então Pat a ajudou a sentar em uma das cadeiras de rodas e a levou para o andar certo.
O quarto era pequeno e pouco confortável. Era laranja claro, mas sujo. Patricia instalou na cama e avisou que voltaria para deixá-la com o almoço.
Alguns minutos depois, ouviu batidas na porta. Avisou que poderiam entrar, e já sabia quem seria.
entrou no quarto mascando algo e de braços cruzados. Assim Patricia fechou a porta atrás dele, ele abaixou os braços e agradeceu. Patricia colocou a bandeja do almoço em cima da mesa da maca e os deixou sozinhos.
— Não sabia que eu ia receber esse tratamento especial — murmurou, ajeitando-se na cadeira assim que a porta do quarto foi fechada.
— Eu ainda respondo por você, na delegacia. Essa sua festa do pijama vai me custar um relatório.
puxou uma poltrona para mais perto da maca. Sentou-se e apoiou os cotovelos nos joelhos.
— Que agradável. Vai me acompanhar no almoço? — ela perguntou, apontando para a bandeja de purê de batatas, carne passada e cenouras cortadas em cubos.
— Vamos nos alinhar um pouco. Eu adiantei a papelada para te liberar durante as próximas duas semanas, mas você vai ficar 60 dias em observação.
— Tudo bem. Se puder levar para a minha casa os arquivos do caso, eu iria gostar.
olhou-a com uma careta de estranhamento.
— Você está duas semanas liberada do trabalho.
— Eu me machuquei na barriga. Não na cabeça.
— Não indico que você faça isso, mas prossiga como preferir.
Ele vestia suas roupas sociais de trabalho e tinha enormes olheiras embaixo dos olhos. sentiu a barriga doer, mas não falou nada. Ainda demoraria até o dia seguinte para tirar os pontos.
A porta foi aberta novamente e esgueirou-se para dentro como se precisasse se esconder. Ele segurava um copo cheio de suco e cumprimentou os dois com um pequeno sorriso. Vestia uma camiseta escura e calças jeans. Os cabelos estavam um pouco desarrumados, como se ele tivesse se preocupado em deixá-los assim.
— Bem na hora.
Puxou uma cadeira e sentou-se perto de . Acariciou sua mão por alguns segundos, como uma garantia de que tudo estava bem. Sob controle.
— Achei que você estivesse liberado do trabalho hoje — comentou , educado, de uma forma que estranhou. — É fim de semana.
riu. Ela notou que ele coçava o queixo repetidamente.
— Querem que eu desça para pegar algo para comer?
— Pretendo ser breve — avisou. — Onde está Robert?
— Imagino que na casa dele.
— Ele não vem?
deu de ombros e bebericou o suco. seguia em silêncio, assistindo. Notou que não fazia contato visual com os olhos cansados de . Poucos faziam.
— Ele ainda não sabe do que houve ontem. Assim que abrirmos a investigação sobre o tiroteio, ele vai saber.
batia repetidamente uma caneta contra sua coxa direita. Estava desesperado por um cigarro.
— Quero saber exatamente o que aconteceu ontem na Vila Lui — falou.
Eles contaram.
— Agora, quero saber exatamente o que vocês vão falar caso isso vire um caso formal.
Eles falaram.
coçou a testa em um suspiro. Apoiou os cotovelos em seus joelhos, enquanto inclinava o corpo para frente.
— Já iniciei a busca dos carros com faróis quebrados e pela descrição dada do suspeito. Por enquanto, a imprensa ainda não comentou. Como vocês também não estavam autorizados a estar na casa naquela hora, melhor deixarmos assim.
franziu o cenho.
— Não vamos fazer uma coletiva?
— Você quer fazer isso?
— Ele me deu um tiro.
— E você invadiu propriedade privada e uma cena de crime.
Ela ficou em silêncio. suspirou de novo. A cada segundo, um pouco mais cansado, com um pouco mais de olheiras e deixando se sentindo um pouco pior por ter sido a responsável.
— Deixe isso morrer. Temos registros. No pior dos casos, chamamos um repórter amigo e você ensaia algumas falas antes de ser entrevistada. O melhor é evitar um furo.
e assentiram com os rostos atenciosos, como alunos prestando atenção em seu professor.
— Algo sobre as oficinas? — ela perguntou, imediatamente depois de concluir.
— Já fui em todas hoje de manhã. Não chegam a dez na cidade inteira. Todos aceitaram cooperar, viram meu distintivo e começaram a gaguejar. Ainda não temos nada, mas é provável que apareça uma pista ainda hoje.
e riram baixo. Ele desviou o olhar para baixo, mas voltou a olhá-la com o rosto apreensivo.
— Vocês foram muito bem ontem. É provável que Patrick Ramsay ainda esteja vivo, mas isso quer dizer que precisamos ser mais rápidos ainda. E precisamos ser mais cautelosos. Isso significa — ele prosseguiu, olhando diretamente para e com a voz mais firme — que vocês não podem fazer nada sem que eu esteja ciente. Eu posso não aprovar, mas preciso estar ciente. Estamos em acordo sobre isso?
Ambos assentiram.
— O senhor tem alguma informação sobre os casos de e Bronx? — perguntou, coçando o queixo de novo.
— Por que eu saberia?
engoliu em seco.
Menos.
negou com a cabeça.
— Não sei de nada, oficialmente. — Fez uma pausa breve, com um sorriso pequeno. — Mas, extraoficialmente, não acho que eles estejam muito na frente de vocês. Ninguém está comentando nada. Como você está indo?
engoliu em seco. Com , você nunca parece saber quando ou de onde vem a grosseria. Só sabe que ela vem, de um jeito ou de outro.
— Bem. Hoje vou atrás de uma entrevista.
olhou para e deitou a mão em seu antebraço. sentiu a mão de quente, em uma atitude para deixá-la confortável e calma. O efeito foi inverso. Assim que sentiu a palma áspera, estremeceu.
— Pode nos deixar sozinhos um segundo?
franziu o cenho rapidamente. Comprimiu os lábios e, devagar, ficou de pé.
— Claro. Vou aproveitar e pegar algo para comer.
pegou um cigarro e começou a batê-lo na mesa assim que ouviram a porta bater.
— Finalmente. Estou com pena do garoto — murmurou, com uma pausa. — Você vai ficar acompanhada hoje? Tem alguém para ficar com você aqui?
Ela negou com a cabeça. O purê de batatas tinha gosto azedo.
— Não. Só mais tarde, anoitecendo, talvez. Você falou com minha amiga?
— Não. Só sei quem ela é porque ela é o seu número de contato de emergência. Você não tinha autorizado nada. Isso é a sua vida pessoal e não tenho nada a ver com isso.
suspirou.
— Prefiro que seja assim. Minha amiga é muito preocupada. Aviso a ela tudo quando chegar.
— Essa sua amiga... — ele perguntou, hesitante. — Vocês se conhecem há muito tempo?
franziu o cenho, com um sorriso pequeno. Não entendeu bem o que aquela pergunta queria dizer.
— Desde a adolescência. Ela é praticamente minha irmã.
riu. Parecia ter visto graça em uma memória que não conhecia.
— Bom, você pode conseguir um presente para ela mais tarde. Morar com um policial novato e que consegue levar um tiro na primeira semana. Eu mesmo não sei se iria aguentar estar no lugar dela. Meu Deus, você iria me preocupar demais.
Ela olhou-o de lado. Não conseguia entender o que o rosto dele dizia. Se estava impaciente, se estava solícito. De qualquer ambiguidade que pudesse mostrar, ele sempre transitava em dois extremos — nunca entre eles.
— E eu não o preocupo?
sentiu o rosto ficar vermelho. Comprimiu os lábios e olhou-a de novo. Seus olhos brilharam por um segundo, como se tivessem sido desvelados.
— Preocupa. Mais do que deveria, inclusive.
— Você já foi um policial novato.
Ele franziu o cenho.
— Essa história fica para outro dia — bateu o cigarro na mesinha ao lado da maca de novo. — Só... Sempre me avise quando for fazer esse tipo de coisa.
— Sim, senhor.
Ele ficou de pé. Ajeitou a blusa em uma pausa para pensar.
— Me chame de .
não soube responder. Tentou não demonstrar sua surpresa.
— Ok.
— Mas falando sério. Sempre me avise. Você teve sorte e eu não quero ser pego de surpresa.
Suspirou. teve a impressão de que ele tentava demorar mais a sair.
— Me fale sobre o progresso de mais tarde. Me ligue, ok?
Entregou a ela um cartão com seu número.
— Ok.
Ele abriu a porta e voltou a cabeça para dentro do quarto.
— Estou falando sério, . Estou preocupado com você.
— Por quê?
— Porque a última pessoa que eu conheci que agia assim... Fez coisas grandes. Mas chamou atenção demais.
Ela comprimiu os lábios e assentiu. abriu a porta novamente, poucos segundos depois, como se tivesse esperado do lado de fora pela saída de . voltou para a cadeira a passos lentos e esperou que ele demorasse mais alguns segundos.
— Precisamos conversar — ele avisou, com um tom incomodado.
Ela assentiu e ajeitou a postura.
Estou preocupado com você.

— Estou preocupado com você.
ergueu os olhos para . Dependia exclusivamente da mão esquerda para comer, então demorava um pouco mais que o normal.
— Da última vez que você fez essa cara, riu durante um dos meus depoimentos.
Ela riu, voltando a prestar atenção em sua comida.
— Estou pensando em alguns detalhes do meu caso.
suspirou, receoso com o que viria a falar. Olhava para diretamente, os olhos claros brilhantes e relaxados. Parecia estar em um momento de completa calmaria e tranquilidade.
— Também estou pensando no meu. Pensei em fazer algo.
não respondeu.
— Hoje vou falar com Michael Young. Assim que terminarmos de comer.
— Vai sozinho?
— Bom, você não vai ter como me acompanhar.
— Marla e devem estar fazendo isso juntos.
comprimiu os lábios.
— É. Talvez.
Ela engoliu em seco. Ainda tinha um pouco de comida em sua bandeja, mas a demora para comer acabou fazendo-a perder a fome.
— Eu vou voltar assim que terminar.
O rosto de ficou avermelhado e ele desviou o olhar.
— Se não quiser, podemos pensar em outra coisa. Não preciso ir hoje falar com os Young.
Sentiu o machucado pulsar, mas sabia que era puramente psicológico.
— Não quero atrapalhar seu caso, . Você já gastou muito tempo ontem com o meu.
também pareceu ter desistido do almoço. temeu ter soado rude ao parar de comer. Ele coçou a nuca enquanto se levantava para deixar uma pequena embalagem plástica de sanduíche em cima da mesinha.
— Você não está atrapalhando, . Pelo contrário. O que aconteceu com você é culpa minha.
, não...
— Se eu tivesse ficado no primeiro andar com você — ele prosseguiu, ignorando-a, sem olhar para ela —, você não...
, eu estou bem. A culpa não foi sua.
Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando para . Seus olhos estavam fixos nela, mas sua concentração era maior em não coçar sua própria cicatriz.
— Vá tirar seu depoimento — ela disse, finalmente, a voz tentando soar um pouco mais energética. — Eu... Bem, eu espero você aqui.
Imaginou que ele fosse rir, mas ele seguiu em silêncio e ponderou por um tempo. Seus braços estavam levemente delineados pela roupa, mas tentou disfarçar.
— Tudo bem. Amanhã posso te buscar depois da sua alta. Se quiser, podemos ir para a sua casa. Ou para a minha. Fazemos a pesquisa de lá.
Boom.
Alerta.
— Tudo bem — ela retrucou.
Merda.
deu a ela um pequeno pedaço de papel com um endereço. tinha achado estranho que o endereço ficava no bairro de elite da cidade, mas depois se lembrou que os Young eram empresários.
— Procurei algumas informações sobre eles. A empresa deles é uma construtora, que foi fundada em Seattle, mas eles nasceram e moram em Longview. A empresa tem a sede aqui, por ser em terreno mais barato, mas eles quase nunca estão na cidade.
— Mas você ligou para saber se não ia dar de cara com a parede, certo?
— Você me menospreza muito, sabia? — ele retrucou, rindo. — Eles vão viajar semana que vem para Seattle.
— Hoje é sábado. Eles vão te receber?
hesitou por um instante.
— Sim. Falei com a secretária deles. Eles vão ter um tempo para me receber.
Pareceu prestes a acrescentar algo, mas desistiu. Olhou para e tocou o antebraço dela, repousado no colo, para dizer:
— Não pretendo demorar. Volto o quanto antes para te deixar ciente de todo.
— Você não vai para a guerra, — ela retrucou, com um sorriso. — Relaxe.
Ele suspirou, ainda olhando-a. não entendia bem por que, mas ele parecia ter alguma coisa perturbando-o. Algo insistia em incomodá-lo e esperou que não fosse ela mesma.
saiu sem acrescentar qualquer coisa. não tinha reparado, mas ele estava sem sua identificação da delegacia, sem sua arma, e levava uma mochila que nunca usou antes.

— Seja bem-vindo — cumprimentou uma mulher baixinha e rosa, na porta da casa dos Young. foi recebido com um copo de chá e uma vasilha de biscoitos caseiros, uma hospitalidade que ele não esperava.
Pediu licença e seguiu para onde acreditava ser a sala de estar da casa. Identificou o lugar por ser um cômodo amplo, com uma das paredes sendo apenas uma porta de vidro que dava para um enorme quintal. evitou prestar atenção na casa, para não ficar excessivamente deslumbrado, já que se conhecia o suficiente e “impressionável” era uma de suas principais características. A única coisa que o marcou foi a cor das paredes: todas eram acinzentadas e nenhuma tinha um retrato de alguém; apenas réplicas de pinturas famosas. fez uma rápida nota mental de que os quadros não eram nem dos mesmos artistas ou dos mesmos movimentos. Sequer eram dos mesmos países.
Duvidou que os Young soubessem algo de arte, mas isso não era de fato importante. Só o incomodou.
— Sr. ? — perguntou um homem na sala de estar, pouco antes de alcançá-la. Vestia uma blusa polo e calças cáqui. Um jovem que o fazia companhia tinha as mesmas roupas, mas de cores e marcas diferentes. O homem tinha o rosto bem enrugado, mas não parecia velho. chutou cinquenta e cinco, sessenta anos no máximo. Mas seus olhos azuis eram firmes e atenciosos, até um pouco incisivos. Sem dúvidas, era um senhor a quem a idade pouco afetou intelectual ou psicologicamente: compensou tudo na aparência.
O jovem, por outro lado, era o oposto. Tinha uma pele tão bem cuidada que poderia duvidar que eles tinham idades próximas. Não era muito alto, tinha o braço levemente musculoso e os olhos vagos. Enquanto Michael Young Senior o observava com atenção e não desviava seus olhos dos dele, Junior parecia estar pensando em qualquer outra coisa.
deu um pequeno sorriso e estendeu a mão. Vestia uma blusa social de mangas curtas, por cima da camiseta branca, e seus melhores jeans.
— Sr. Young — retrucou, apertando a mão de Michael Senior.
— Meu filho, Junior. — Apontou o homem. Sua voz era baixa e grossa.
— Como vai? — perguntou , enquanto apertava a mão de Junior.
— Bem, e você?
— Por favor, vamos nos sentar.
Michael Senior apontou para um dos sofás da sala. Só então reparou que a mulher que o atendeu ainda estava ali, com a bandeja nas mãos. Deixou-a na mesa de centro, entre o sofá de e o dos Young, e se retirou com um sorriso e murmurando “senhores”.
Me sinto no pré-Guerra.
Furtou um dos biscoitos.
— Sirva-se, Sr. . Ela é uma ótima cozinheira, possivelmente a melhor que já tive. A que nos deve a honra?
Michael Senior tinha a mão repousada no apoio do sofá, como um mafioso. Seu filho apoiava os cotovelos nos joelhos, com o corpo inclinado para frente.
— Estou precisando completar o trabalho de um colega. Benson estava fazendo uma coluna sobre a empresa — falou, enquanto pegava na mochila um caderno e uma caneta — e precisava de uma rápida entrevista, só para compor a coluna. Mas teve um problema.
— De onde o senhor disse que era, Sr. ? — perguntou Michael Junior. Sua voz soava um pouco trêmula, e talvez tivesse feito a pergunta em uma velocidade muito alta.
Michael Senior não o repreendeu. Apenas olhou para o filho de soslaio, como uma criança que faz uma pergunta mal-educada em uma festa dos pais.
— Sou do Daily Longview.
— E sobre o que é a coluna de seu colega? — perguntou Michael Senior, com longas pausas entre as palavras. Olhava para de cima.
Não era necessário apelar para esse nível de intimidação: seu semblante já estava deixando nervoso o suficiente.
O método de . Alto risco...
— Ele estava escrevendo sobre o acordo que vocês pretendem fechar de colocar a empresa na Califórnia.
— Ah sim, claro — começou Michael Senior, como se estivesse prestes a narrar toda sua biografia. — Esse projeto é antigo. Estamos em negociações há meses.
— Sim. Precisaram firmar muitas parcerias, confirma?
Michael Senior tocou o joelho do filho, como um aviso para que ele se mantivesse em silêncio.
— Precisamente. Foi muito delicado. Muitas pessoas envolvidas. Eu estive presente em todas as reuniões, o que não é comum.
— Sim. Meu colega disse que o senhor já está preocupado em passar a maioria do trabalho para seu filho.
Junior pareceu sorrir em orgulho, mas Senior continuou com o semblante fixo. Não estava sério e também não sorria.
— Já tem alguns meses. Junior vai ficar com a empresa em não muito tempo, prefiro que ele já comece a comandar algumas reuniões. O senhor tem filhos, Sr. ?
— Não, senhor.
— Quando tiver, vai entender. Vai querer monitorar tudo que eles fizerem quando adultos, talvez mais do que quando eram crianças. As merdas quando adultos podem ser maiores.
Michael Senior gargalhou, sendo acompanhado pelo filho. riu de nervosismo.
— Sim, senhor, compreendo. Seu filho assumirá a empresa sozinho?
Senior olhou para o rapaz, mas não falou nada. Michael Junior pigarreou antes de começar:
— Sim, sim. Os sócios ainda vão ter a mesma participação, mas vou ficar com a mesma quantidade de trabalho que meu pai. Gostamos de manter tudo em família.
— Compreendo. — Fingiu tomar notas por alguns segundos. — Falando em família, o senhor é casado?
Michael Junior engoliu em seco.
— Não. Atualmente, estou solteiro.
olhou para Michael Senior. Tentou não vacilar.
— O senhor?
O homem sorriu. teve uma súbita lembrança dos filmes do Drácula que sua mãe gostava de assistir.
— Passando por um processo complicado. Somos só nós dois. Vivemos por esta empresa. Vamos falar de trabalho.
Alerta vermelho.
começou a sentir as mãos tremerem. Pegou outro biscoito.
— Sim, senhor, mas ainda tenho algumas perguntas em relação à família que têm relevância para a coluna, justamente por vocês preferirem manter a empresa no círculo familiar.
Michael Senior assentiu vagarosamente. olhou para Junior. Manter o interrogatório (ou entrevista) focada nele era menos intimidador e mais produtivo.
— Peço perdão, mas tivemos informações recentes...
Michael Junior ficou branco.
— Não estou envolvido com ninguém, Sr. . Seu colega deve ter dito isso.
— Entendo. Peço perdão se a pergunta o ofendeu.
Pense rápido.
Mais rápido.

— Bem, acredito que falte pouco que ela não conseguiu terminar.
Michael Junior parecia incomodado.
Métodos desesperados. O que você está fazendo?
A faca. A ferida.
— Você disse que sua colega tinha ficado doente...
— Ah, sinto muito — disse, fingindo pouco interesse. — Me confundi. Foi uma free-lancer contratada. Ela... Não apareceu esta semana. Mas acredito que vocês saibam como é o trabalho... O editor não ia deixar a coluna dela morrer.
A última palavra pareceu ter feito Michael Junior gelar.
Se ao menos sinais físicos valessem como provas de crimes...
— Acredito apenas que ela tenha se esquecido de anotar a data da inauguração do escritório — mencionou, enquanto folheava o caderno.
— Sexta-feira próxima — Michael Junior respondeu, com rispidez, como se a palavra estivesse desesperada para escapar. — Ela ligou para cá há algumas semanas e tenho certeza que mencionei isso.
fez uma anotação. Teria menos de uma semana para conseguir alguma prova.
Ela.
— Alguma entrevista foi feita aqui?
Impressões digitais? DNA?
Michael Senior sorriu largo. sentiu um arrepio na espinha.
— Não, naturalmente. Para não haver risco de contágio.
franziu o cenho.
— O que o senhor quer dizer?
Senior riu baixo, mas notou que Junior começou a coçar a nuca.
— Você sabe. — Michael Senior gesticulou abertamente, de forma genérica. — Por segurança.
fez uma anotação.
— Se eu precisar de mais algum dado, posso ligar para o senhor? Algo que ela não anotou...
Michael Junior interrompeu-o:
— Acho que já acabamos.
Seu pai olhou-o. Em um segundo, pareceram se comunicar.
— Fale com meus assessores. Ela já tinha todas as informações.
Diante da rispidez, recuou um pouco, mas precisou segurar a risada.
Segurança.
Segurança.
— Sim, senhor. Obrigado.
— Por nada. Sempre é um prazer.
Michael Senior voltou, rapidamente, para seu carisma padrão. Ele jamais se daria o luxo de ser grosseiro com um jornalista, mais ainda com um que se propunha a escrever uma coluna exclusivamente sobre ele. Mas suas convicções ainda estavam claras.
tinha feito bem seu dever de casa.
Assim que chegou ao nome dos Young, pediu a Robert que visitasse o apartamento de Michael Young Jr. para convocá-lo para um interrogatório formal. Apenas Robert poderia fazer o requerimento, por já ter o distintivo. Mas, naquele sábado, Robert dissera que não poderia convocar Michael por falta de provas. Seria arriscado demais, poderiam ser processados pelos Young.
Então, entregou à perícia a blusa que Faye tinha dado e teve uma ideia.
Michael Jr. e seu pai jamais iriam para a delegacia, para o interrogatório. Mas não negariam uma entrevista a um jornalista.
— É um prazer, senhor — falou, estendendo a mão.
Michael Senior apertou e fez um sinal preguiçoso para que seu filho acompanhasse até a porta. Ambos andaram de volta pelo corredor em completo silêncio.
— Sr. ? — perguntou Michael, a voz bem baixa, assim que tocou na maçaneta da sala.
ergueu o olhar, tentando se manter inexpressivo.
Morda a isca. Morda logo.
— Ela está desaparecida?
— Não tenho informações. Você e seu pai pareciam estar confusos.
Abriu a porta. A voz de Michael Junior lutava para se manter calma.
— Se precisar de mais dados, pode falar com nossa assessoria. Bom fim de semana, Sr. .
A porta se fechou de forma sepulcral.
E já tinha a prova que precisavam para mandar Michael Jr. para o interrogatório.

We know where you live…


Capítulo 8 — Reptilia

Please don’t slow me down if I’m going too fast…

fazia, toda manhã, uma rotina que envolvia ler um capítulo do livro que estivesse lendo e, aos fins de semana, correr até a casa de Julie Stoner com um livro para ela. A corrida demorava cerca de quarenta minutos, mas envolvia subidas de algumas ladeiras. Então, sempre que chegava à casa de Julie, costumava tomar um breve café. E então, voltava para casa do mesmo jeito.
Interrompeu essa rotina por algumas semanas, mas logo se obrigou a retornar.
Há alguns meses, foi assim que seu dia começou. O começo do fim.
Saiu de casa e começou a correr em direção à rua de Julie. Morava em uma área nobre da cidade, não exatamente a mais nobre, mas afastada do centro. Para chegar à casa de Julie, precisava passar por um bosque em ruas que subiam por pequenos morros e escondiam casas caras e o que um arquiteto consideraria “modernas”, mas, no vocabulário de , se limitavam a serem “impráticas”. Correu por entre as árvores e pensou como era ridícula a presença de um bosque.
Fez o caminho errado, então precisou voltar por entre as árvores e correr com mais atenção.
A casa de Julie era cara, e isso era claro já por sua fachada. Era uma construção alta demais para ter apenas dois quartos e um escritório, além de uma cozinha e uma sala. Talvez o maior diferencial da casa de Julie fosse sua varanda: dois retângulos unidos que formava um “L” em relação ao resto da casa. Julie estava bebendo um café e lendo um jornal, quando viu , vestindo um moletom azul-escuro, se aproximando.
Ele parou logo embaixo da varanda e pôs as mãos na cintura.
— Você não avisou que viria — ela disse.
— Eu devia ter a chave daqui. Parece que deixam mais íngreme a cada mês.
Julie riu.
— Você quem está com os músculos moles.
seguiu para a porta enquanto Julie saía da varanda. O segundo andar tinha janelas totais em toda a fachada.
Vantagens de ser casada com um arquiteto.
— Não trouxe o café?
Ele olhou-a com o cenho franzido e um sorriso torto.
— Você se acostumou mal.
Julie deu de ombros enquanto ia até o armário em cima da pia.
— O Matthew só tem o café meio queimado dele. Você é a salvação das minhas manhãs.
Julie pegou o que sobrou do café de e colocou-o em uma cafeteira.
— Imagino o que todos da delegacia devem falar de você. Frequenta a casa da delegada, compra café para ela, fica na sala dela conversando sobre qualquer coisa...
Ele deu de ombros.
— Devem achar que eu quero uma promoção.
— E você quer?
— Não seria de todo ruim.
— Então prenda um criminoso famoso que pensamos no seu caso. Saia na capa do jornal.
riu, enquanto olhava para a rua vazia pelo vidro da sala.
Só viu aquelas janelas fechadas uma única vez.
— Matt não volta até semana que vem — Julie disse, enquanto servia o café.
— Onde ele está?
— Algum lugar na costa leste.
tirou o casaco enquanto ia em direção ao jardim nos fundos da casa.
Julie começou a servir o café. Percebeu que ela tinha uma pasta fina embaixo do braço.
— Coisas que você faz para largar o cigarro — ela comentou e entregou para a caneca. Ele sorriu em resposta e sentou-se na cadeira do jardim. Julie sentou do outro lado da pequena mesa redonda, na frente dele. A grama baixa acariciava seus pés descalços.
— Coisas que você lê em um sábado de manhã — retrucou, apontando para a pasta.
Julie ergueu a sobrancelha e olhou para baixo enquanto bebericava o café. pegou o livro no bolso do moletom e jogou em cima da mesa.
— Oficialmente, esse caso é da Angie. Mas é interessante o suficiente para você dar uma olhada.
Ela colocou a pasta em cima da mesa. pegou-a com uma careta desconfiada e abriu.
— Angie costuma preferir os entediantes — comentou.
A foto na primeira página era assustadora o suficiente.
— Não achamos o anelar.
Fechou a pasta. Sentiu um refluxo passar pela garganta, mas segurou-o.
Poucas foram as vezes que tivera asco de alguma cena do crime. Costumava encará-los melhor quando estava em seu nome. Este, por ser de Angie, ele agradeceu.
— Qual deles?
— Dos dois.
Um homem e uma mulher. Ela parecia jovem. O vestido parecia bem cuidado. A roupa íntima parecia cara. Ele parecia sujo.
— Foi no Vale Heulen. Ela estava no meio da clareira. Ele estava pendurado em uma árvore, balançando. — Ficou um segundo em silêncio, enquanto bebericava o café. — Foi um dia de tempestades, ventos fortes. Choveu em algumas partes da cidade.
— Pareceu relevante?
— O suficiente. Mas não faço ideia do que pode significar. O que é isso? — ela perguntou, segurando o livro que lhe dera.
— Uma história romântica. Acho que estamos precisando de algo leve.
Ela engoliu o café com uma careta.
— Mês que vem. Ele parece querer adiar.
— Eu sinto muito.
— Não sinta. O divórcio é o melhor momento da vida de um casal. Nenhum casal feliz se divorciou.
riu, mas viu que Julie ainda tinha uma careta triste.
— Quais os nomes?
— Harriet Murray e Dylan Chapman. Ela era estudante de nutrição.
— E ele?
— Diretor de filmes pornôs.
pensou se isso era o que estava escrito em sua carteira de trabalho. Não fez mais perguntas.
“Bem, todos nós nascemos para morrer”.
Continuaram bebendo o café em silêncio. esperou que Angie negasse o caso.

acordou com a porta batendo. Abriu os olhos devagar e levantou a cabeça com um pequeno susto assim que entrou.
— Conseguiu algo?
Ele não respondeu. Sentou-se ao lado dela, na poltrona, e tirou alguns segundos para respirar.
— Michael Young Jr. era próximo de Tiana. Pelo menos o suficiente para chamarmos ele para um interrogatório.
Ela franziu o cenho enquanto esfregava o olho.
— E você tem alguma prova material? Ao menos circunstancial?
comprimiu os lábios e abriu a bolsa devagar.
— Não exatamente.
Tirou da bolsa um pequeno gravador e colocou-o na coxa dela. analisou o objeto sem tocá-lo e sentiu um arrepio.
— Não sei se podemos usar esse tipo de prova.
— Não precisa constar como prova — ele respondeu, os dedos brancos agarrando o apoio da cadeira. — Ele tinha proximidade o suficiente para chamarmos para um interrogatório.
ficou em silêncio, esperando-o completar algo. Notou que estava sorrindo. Parecia satisfeito consigo mesmo.
Ela segurou o gravador. Era novo, recém-comprado. Gelado.
No segundo em que ia pressionar o botão de reprodução, uma enfermeira abriu a porta.
Os dois ajeitaram a postura e recuaram. O gravador caiu no colo de e parecia que iria explodir. A enfermeira aproximou-se da maca a passos curtos, hesitantes. Deixou a bandeja com uma salada de frutas em cima da bancada e saiu pedindo licença.
Ficaram sozinhos de novo. hesitou em reproduzir. A enfermeira tinha dado uma chance de ela desistir.
Estava indo longe demais.
Apertou o botão e a primeira coisa que ouviu foi a voz de Michael Senior. aguardou em silêncio, com a mão na frente do rosto e o cotovelo apoiado no joelho trêmulo.
Precisava saber o que ela achava. Precisava da opinião dela.
Ela não queria ouvir. Ela achou isso demais.
Era demais? Tinha passado dos limites? Se tinha passado agora, também tinha passado antes, há uma semana?
Não. Achava que não. Ela achou que não?
Ela precisava achar que não.
Ela precisava achar que não.
— Não entendi o que você quer que eu ouça — ela confessou, depois da gravação acabar. Devolveu o gravador a , que ainda sorria. Sentia-se um pouco incomodada. Não parecia uma situação apropriada para sorrir.
— Quando ele fala sobre contágio. Sobre segurança.
— O que tem?
. — Ele fez uma pausa, armando a conversa para uma revelação. — Tiana Benson tinha vitiligo. E só em áreas íntimas, pelo relatório da autópsia.
Ela franziu o cenho.
— E daí?
— Daí que, para eles saberem, com certeza o filho dele teve contato íntimo com ela. Não tem por que ela mencionar isso, e não tem outra razão de ele ter falado de contágio. Ela não tinha nenhuma doença.
— Mas vitiligo não é contagioso.
deu de ombros.
— Eu sei. Ser rico não faz de você inteligente. Pelo visto, o Sr. Young não sabe.
— Você acha que pode ter algum viés racial também?
— É possível, mas não sei dizer se é provável. A forma com que ele tratou uma cozinheira... — Fez uma pausa. — É, pode ser que tenha tido viés racial.
— Mas você acha que o pai dele matou a Tiana?
— Eu acho que o pai dele sabe que Tiana tinha vitiligo, e não tem outra forma de Michael Senior ou Junior saberem disso se não for por conhecer Tiana intimamente. E isso me dá motivo para um depoimento.
ficou alguns segundos em silêncio.
— Soa bom — ela hesitou. — Soa muito bom.
Ficaram em silêncio por alguns instantes.
Sinto que estou perdendo toda a humanidade.
sorriu. Ficou de pé e foi até a bancada com os braços estendidos até a bandeja de lanche.
— Não precisa disso. Não está doendo tanto.
— Nem tente.
Colocou a bandeja em cima da pequena mesa da maca, em frente a ela.
— Obrigada — ela murmurou, envergonhada.
Ele sorriu com gentileza. não encontrou uma forma apropriada de pedir para ele sair.

Pouco após o lanche, o médico que Pat havia mencionado chegou ao quarto e conduziu uma rápida avaliação para verificar se conseguiria andar sozinha.
Naturalmente, ela não conseguia. E, naturalmente, ela arrastou os pés pelo chão, cruzando o quarto enquanto se apoiava no soro, e chegou ao outro lado.
Você tem alguém morando com você? Sim, claro.
Tem alguém que possa cuidar de você? Sim, claro.
Tem algum parceiro?
Sim. Claro.
Andou a passos lentos até o elevador para ir até o carro de , apoiada em seu braço. Ele a ajudou a entrar e se instalar no banco do carona.
— Me ligue se precisar de qualquer coisa. Você precisa descansar. falou alguma coisa?
— Não. Até agora não, pelo menos.
— Tudo bem. Me ligue se precisar de qualquer coisa.
Ela assentiu. Sentia seu rosto ficar quente.
O trajeto foi feito em silêncio, um silêncio macio como almofadas, e com pequenos sorrisos que, por vezes, se transformavam em risadas baixas. não conseguiria nunca imaginar um cenário melhor.
Com uma companheira, com um caso avançado.
Irvine, nunca mais.
a ajudou a sair do carro e a chegar até a porta da casa na Singer Street. pegou a chave e abriu a porta devagar, vagarosa. voltou para o carro enquanto observou entrar na casa e deu a partida assim que ela fechou a porta.
ficou em silêncio.
— Patricia? — ela chamou. — Pat!
Sorria e odiava isso, mas também não se esforçava para parar.
Andou devagar até a cozinha, com a casa em completo silêncio. Entendeu o motivo assim que viu Patricia e sua mãe sentadas à mesa.
— Querida — Tracy chamou, os cotovelos repousados na mesa e os cabelos oleosos, a voz suave —, junte-se a nós.
Sentiu a cicatriz arder. Quis tocá-la.
Patricia a encarava com pesar. Podia ver, nos olhos dela, que tentara impedi-la de entrar. Pat se levantou e se afastou da mesa, mas fincou pé perto da porta da cozinha.
conferiu o relógio. Quatro da tarde.
Seria quatro da tarde por muito tempo.

A coisa mais confortável em sua vida era entrar em casa e encontrá-la em completo silêncio. No máximo, ouvia Roman bater suas unhas no chão do pequeno apartamento para saudá-la na entrada, com algo entre o ânimo e a rotina. Abaixava-se, acariciava Roman e fechava a porta atrás de si. A luz da rua conseguia iluminar o apartamento inteiro.
Era um apartamento minúsculo, mas nunca se queixou disso. Tinha apenas um pequeno corredor que levava a uma sala e uma cozinha, sem qualquer repartição entre os cômodos. Tinha uma pequena cama de viúva no canto da sala, onde Roman subia e esperava sua dona preparar o jantar de ambos.
Jogou a pasta em cima da mesa para folheá-la enquanto comia. Roman mordia sua ração sem fazer muito barulho. Era um cão educado.
Marla odiava comer comida congelada. Mas não tinha opção.
Olhou para o fogão. Nem sabia por que tinha comprado um.
Abriu a pasta. Logo na primeira folha, um documento assinado por uma legista que confirmava toda e qualquer informação contida ali.
Marla respirou fundo e abriu a primeira página. Havia alguma vantagem em não sentir o gosto da comida, afinal.
Passou os olhos pelas anotações. Quem ficou responsável por isso foi uma mulher chamada Annaliese Nash, que devia ser extremamente nova para o cargo. Tinha posto clipes unindo pequenos quadrados de papel a algumas fotos, com anotações específicas. Marla não fingiu estar interessada nos detalhes de Annaliese. Pulou diretamente para a última folha, com todas as conclusões.
Helen Süskind. Não tinha sinais de violação sexual, mas não poderia afirmar se era virgem. As unhas estavam em perfeito estado. Os pulmões não tinham sinais severos de queimadura. Não tinha marcas de bala ou enforcamento.
Helen foi sedada antes de atearem fogo ao seu corpo. E ela não resistiu. Não sentiu dor.
Fechou a pasta com pressa. A palavra no canto da folha era uma anotação à mão, de caneta vermelha, presa por um clipe de papel:
“Sinais de culto”.

— Achei que não tinha meu endereço.
Me dediquei para que não tivesse.
Tracy deu de ombros. Não estava fumando, mas as mãos estavam inquietas.
foi para a pia fazer um café. Andava devagar, sem querer olhar para Tracy.
— Consegui com seu irmão. Ele pegou com o advogado. Algo assim.
Bateu a cafeteira com força na hora de colocá-la no lugar certo.
A pele de Tracy estava bem clara, quase cintilante. Segurava a caneca de café entre as mãos em cima da mesa, e tinha um sorriso engessado, duro, como se fosse plástico. Falso.
O sorriso que ela sempre dava na frente de todos. O sorriso público.
agarrou o bolso, mas não encontrou o isqueiro. Devem ter colocado na sua mochila no hospital.
Um comprimido. Só um.
Tracy não falou mais nada. Olhava para e aguardava uma iniciativa dela.
— Eu... Vou deixar vocês sozinhas — Pat murmurou, ficando de pé. Tracy agarrou seu pulso bruscamente e impediu-a de continuar. Cravou seus olhos azuis em Patricia sem dar mais chances de ela seguir falando.
— Não se incomode, querida. É a sua casa também.
engoliu em seco, ainda de costas. Coçou a nuca.
, sente-se.
Obedeceu. Só queria que aquilo tudo acabasse o mais rápido possível.
Só um comprimido. Um. Não ia fazer mal a ninguém.
— Você estava no hospital — Tracy decretou. olhou para Pat rápido, mas não o suficiente. Tracy notou, mas não falou nada.
Ou era isso que imaginou.
Coçou a nuca de novo.
— Eu estava preocupada com você — Pat murmurou.
— O que aconteceu?
comprimiu os lábios. Não achava que precisaria contar uma mentira assim, ou uma versão mais “leve”. Não contava que sua mãe fosse aparecer. Que merda Pat tinha na cabeça para deixá-la entrar assim?
— Pat, pode pegar minha bolsa na sala?
Patricia murmurou um “claro” e levantou rápido. Deixou-as à mesa da cozinha sozinhas.
— Você vai me dizer o que houve? Por que sua mãe deve ser a última a saber que você estava hospitalizada?
Não falava com raiva, com a voz grave ou magoada. nunca conseguia identificar o tom verdadeiro por trás do cinismo. Se estava chateada, mas com raiva. Se era o contrário. Se era só pelo protocolo. Se ela só devesse saber.
não queria contar. Não porque tinha vergonha, ou medo. Só não queria. E por isso sentia as mãos tremendo: deveria contar, não porque sua mãe iria ajudá-la, cuidar dela, ir atrás do homem que lhe deu um tiro.
Só deveria. Só era o que devia ser feito. Ela devia saber. E só saber.
Não chore agora.
Não agora.
Independente do que ela diga, não chore agora.
— Aconteceu um imprevisto na patrulha.
Tracy ergueu as sobrancelhas, mas não alterou nada em sua fisionomia. Não parecia impressionada.
— Patrulha — ela repetiu.
Patricia reapareceu na cozinha com a bolsa de . No instante em que deixou a bolsa na mesa, e Tracy olharam para a mesma direção.
Acalme-se. Não agora. Não tão rápido.
Coçou a nuca de novo. A barriga começou a arder inteira, como se o buraco do tiro, já costurado, fosse um foco de tensão.
— Eu fiz patrulha para o meu caso ontem e tive um problema.
— Seu caso?
Tracy franziu o cenho e apertou os lábios. Resposta errada.
— É. Meu caso.
— É normal novos policiais levarem tiros na primeira semana de trabalho?
— Pode acontecer. É polícia.
— Com quem eu posso falar sobre isso?
franziu o cenho.
— Como assim?
A resposta foi uma bufada irritada. Pat saiu novamente da cozinha, e foi para o andar de cima.
Esse é o efeito de Tracy.
— Você pode tomar um tiro em qualquer dia? É isso?
— Bom, é. É um trabalho de policial.
— Não é possível. Eu vou falar com o seu superior.
— Não, você não vai.
Tracy afastou o corpo da mesa. Demorou alguns segundos para responder.
— Bom, eu deveria ao menos conhecer o lugar que você trabalha. Seus colegas.
bufou e puxou a bolsa da ponta da mesa até sua frente. Abriu-a rápido, com a mão pesada, e pegou o frasco de remédios.
— Você não estava preocupada com o meu acidente? Agora é com quem eu trabalho?
Jogou um comprimido garganta abaixo.
— Você não quis falar do seu acidente.
— Eu falei. Eu fiz uma patrulha no lugar em que aconteceu meu caso, fomos surpreendidos e esse foi o resultado.
— “Fomos”?
abriu o frasco novamente.
— Isso é para quê?
Jogou mais um comprimido garganta abaixo.
— Dor.
— Sua amiga falou que não foi grave.
— Não foi. Não atravessou nada.
— Teve hemorragia?
Não se lembrava.
— Sim. Interna. Já está tudo certo.
— Bom — Tracy começou a frase com um suspiro —, é bom saber que você terá o cuidado médico de uma pessoa especializada.
ficou de pé e andou a passos curtos até a pia. Começou a lavar um prato que Pat deixara ali pouco antes.
— Patricia não vai mais morar aqui.
— Ah, não? — Tracy perguntou, sem surpresas.
— Ela se muda hoje.
— E você não achou importante eu saber disso?
deixou o prato sujo dentro da pia e apertou a ponte entre os olhos. Sentia o tronco latejar. Queria coçar o espaço da bala, irritá-lo.
— Eu tinha coisa mais importante acontecendo.
— Ah, claro. Seu trabalho com mortos. Eu ainda sou sua mãe, sabia? — Subiu o tom de voz, não o suficiente para Pat ouvi-la, mas para falar quase entredentes. — Eu deveria saber as coisas sobre você.
— Bom, você agora está tão atualizada quanto eu.
— rosnou. — Não fale assim com a sua mãe.
comprimiu os lábios.
Só mais um.
— Eu preciso descansar.
— Fale para sua amiga ir para a casa dela. Vou passar o fim de semana aqui com você.
Voo baixo.
Tire isso de você. Tire isso daí. Deixe escorrer.
— Eu preciso trabalhar.
— Eu não estou te pedindo. Eu vou passar o fim de semana aqui para que você se recupere. E eu quero saber essa história inteira de acidente.
— Eu estou bem.
O telefone da sala tocou alto, como um alarme de que a conversa deveria parar ali. andou a passos largos em direção à sala. Olhou para o relógio, que marcava 4:15.
— Pois não? — perguntou, com a voz firme.
? ?
Relaxou o corpo em um suspiro. Nunca imaginou que isso aconteceria, mas só de ouvir a voz de , sentiu o coração bater mais devagar.
— Sim.
— Você está... — Ele hesitou. — Melhor?
— Bom, tiraram a bala. O sangue que ficou aqui dentro já era meu.
— Pelo amor de Deus, garota.
riu e ouviu rir baixo também.
— Não deixe Julie saber que eu ri disso — hesitou por alguns segundos e engrossou a voz de repente para falar o motivo da ligação. — Procurei o registro de Dahlia e conferi se tem algum aluguel ou compra de imóvel feito no nome dela. Como Juliet era filha única, liguei para parentes do lado de George e ninguém está com ela. Juliet transferiu a matrícula escolar dela, mas Dahlia nunca foi à aula desde que se mudou.
mordeu o lábio.
— Dahlia oficialmente está dada como desaparecida, então.
— Sim. E eu preciso do seu endereço.
Alerta.
— Por quê?
— Temos coisas para repassar o quanto antes. Se Dahlia e Patrick ainda estiverem vivos, temos pouco tempo para encontrá-los.
olhou de lado para Tracy ainda sentada à mesa. Olhava para ela com o canto do olho, por cima do ombro. Sustentaram contato visual por alguns segundos.
— É uma casa na Singer Street.
— Chego em vinte minutos.
Demorou alguns segundos antes de desligar. imaginou que ele queria perguntar se eles estariam sozinhos, mas desistiu.
Só vinte minutos. Só mais vinte minutos.
Só mais um comprimido.

Led era uma pessoa curiosa. Tinha os cabelos loiros descoloridos até o ombro, picotados cuidadosamente para parecer que ele próprio fizera o corte. O nariz era projetado para frente e ele tinha as unhas pintadas com esmalte preto descamando. Não tinha olheiras, apesar de ter a pele pálida. Ao contrário do que esperava, tinha músculos que marcavam a camiseta branca.
Estava frio no parque em que Led pediu para se encontrarem. Por ser sábado, muitas famílias estavam reunidas naquela tarde. imaginou que esse seria o motivo principal de Led ter pedido para dar o relato no parque, em um lugar tão público.
— Você vem aqui com frequência? — Led perguntou. Estava encolhido em uma jaqueta, sentado em um dos bancos de madeira.
deu de ombros e pegou o maço de cigarro no bolso. Odiava usar blazer no fim de semana, mas não poderia deixar Led esquecer que estavam em depoimento policial.
— Quando eu era mais novo.
— Não corre por aqui? — Led gesticulou como se corresse e riu.
— Não, eu corro em casa.
pôs um cigarro na boca e apertava os olhos contra a luz do sol. Procurou o isqueiro em um dos bolsos.
— Ah, claro. Esqueci que vocês são ricos. Se importa? — Apontou para o cigarro que pendia entre os lábios de . — Eu realmente gostaria de um agora.
pegou o maço novamente e deu um cigarro para Led. O próprio rapaz pegou um isqueiro no bolso da calça, acendeu o cigarro na boca e apontou para , que prontamente inclinou o corpo para frente e aceitou que Led acendesse o cigarro que pendia em sua boca. Tragou uma vez e lançou a fumaça para o lado.
— Policiais não são ricos — retrucou, finalmente.
— Bom, você é.
— Por que você acha isso?
— Por esse relógio de rico.
olhou para o Mont Blanc em seu pulso.
— Essa é a hora em que você diz que, se eu estudar e trabalhar bastante, também consigo comprar um.
— Na verdade, não. Esse aqui foi um presente de família. Mas você pode tentar um estágio na delegacia, se presta tanta atenção em tudo.
Tragaram ao mesmo tempo.
— Ganha bastante dinheiro revendendo drogas para adolescentes?
Led endireitou a postura.
— Eu nunca disse que vendia drogas para ninguém.
— Ah, sim. Você só era um convidado padrão das festas do bairro.
O rapaz deu de ombros.
— É, você pode colocar as coisas dessa forma.
— E você conhecia Jimmy Sundance bem?
— Todos conhecíamos. Jimmy era bem popular. Ele não foi assaltado?
— Por que você acha?
— Foi o que a Becca disse.
tragou de novo. Uma das vantagens do cigarro era que ele o dava tempo para pensar.
— É o que pareceu, mas achamos que ele pode ter sido assassinado.
Led engasgou com a fumaça enquanto tragava. riu e falou, baixo:
— Bem, agora você parece culpado.
— Olha — o rapaz murmurou, ainda tossindo. — Se ele está sendo investigado como assassinato, eu não quero que a culpa acabe vindo para mim.
— Você o matou?
— Não! Claro que não. Eu nem o conhecia.
— Talvez você quisesse o relógio dele. Não era um Mont Blanc, mas também não era de se jogar fora.
Led olhou-o sério. sorriu e lhe deu uma cotovelada leve no ombro.
— Era brincadeira.
O garoto não pareceu ter visto graça.
— Você não é muito bom com piadas.
— Bom, eu achei bastante engraçada. Mas se você não o matou, não precisa ficar com medo.
— A Becca te deu meu número falando que eu era traficante. Eu estou com medo.
— Quanto a isso, não precisa se preocupar — desconversou. — Não vou te prender por isso. Eu quero saber apenas quando foi a última vez que você viu o Jimmy e o que aconteceu.
Led deixou o cigarro na boca por alguns segundos. conseguia ver as mãos dele tremendo. Nunca pareceu tão fácil.
— Lembra-se de quando foi?
— Foi há duas semanas. Em uma festa de um amigo da Kay.
— E como Jimmy estava?
Essa pergunta pareceu ter deixado Led completamente perturbado. não se importava. Aquele cigarro estava um pouco mais prazeroso que o comum.
— Olha, policial, eu realmente… — Ele passou a mão nos cabelos e olhava para o chão. — Eu não quero atrapalhar sua investigação. Eu tinha uma relação boa com o Sundance, sempre tive. Mas eu… — Hesitou por alguns segundos. — Uma vez nos encontramos em uma festa e a Kay não pôde ir. Era na época que eles namoravam. Está me acompanhando?
— Estou, pode deixar.
— Você não precisa…? — Gesticulou como se fizesse uma anotação.
não respondeu. Seu rosto sério deixava claro o suficiente que ele deveria prosseguir.
— Tudo bem. Olha, nós não éramos amigos. Mas nos dávamos bem. Nesse dia, estávamos conversando e bebendo. E o Jimmy bebia bastante. Nesse dia, ele perdeu a linha.
Fez uma pausa para tragar. Algo dizia a que talvez eles pensassem da mesma forma quanto ao cigarro dar tempo para pensar melhor.
— Ele sumiu em algum momento. Foi já perto do final da festa, estava todo mundo muito… louco, para colocar em um termo que não vai me comprometer. Eu estava atrás do Jimmy porque ele estava me devendo o dinheiro das cervejas do dia. Não achava ele em lugar nenhum.
Tragou de novo. sabia que vinha algo bom.
— Como eu disse, já estava no final. Poucas pessoas por lá, e quem ainda estava ali, estava bem louco. Eu achei o Jimmy dentro do banheiro. Ele estava… bem, estava beijando alguém.
ergueu as sobrancelhas.
— Ele estava traindo Kay? Com a Becca?
— Era com um cara.
Dessa vez, balbuciou, mas não conseguiu falar nada.
— Nem precisa ir atrás desse coitado. Ele era primo de um cara da festa, voltou pra Ohio e não veio mais para cá.
— Ninguém mais viu o Jimmy beijar esse rapaz?
— Não, senhor.
— A Kay soube?
— Sim. O Jimmy contou para ela depois, mas disse que foi com uma garota. Não sei se foi por isso que eles terminaram.
— Como sabe que ele falou que foi com uma garota?
— Esse boato correu bastante entre quem foi para a festa. Fiquei sabendo por um... Conhecido.
tragou de novo. Recalculou de rota.
— Você foi a primeira pessoa que falou sobre ele ser bissexual. Nem a namorada dele, ou ex, ou o melhor amigo...
— Olha, policial — Led interrompeu, com o cigarro entre o indicador e o dedo do meio, e com as mãos erguidas em desistência. — Eu não quero ser um suspeito por algo que eu não fiz. No dia que ele morreu, eu estava em uma festa de família. Tem até foto para comprovar.
não disse nada. Led não precisava ser atiçado, ele se jogava no fogo sozinho.
— Ele não queria que ninguém soubesse e me pediu para não falar.
— E eu imagino que você tenha pedido algo em troca.
Led tocou o ombro de , que recuou.
— É o que eu quero dizer. Eu pedi umas coisas em troca, mas não tive nada a ver com a morte dele.
— Você o chantageou?
Led tragou de novo. Sua mão tremia.
— Você quer falar desse jeito? Pode falar. Pode colocar isso nos seus relatórios, documentos, não sei. Eu só cobrei um valor simbólico para guardar uma coisa tão valiosa.
— Qual foi seu valor simbólico?
O garoto suspirou.
— Era pouco. Jimmy podia pagar. Ganhava uma boa mesada dos pais e tinha trabalhado no verão passado — falava rápido, como se quisesse tirar aquilo de si, mas não dar tempo suficiente para assimilar tudo. — Eu só queria que você soubesse disso. Talvez seja uma informação importante para você.
— Sobre ele estar sendo chantageado por você?
— Não! Não isso — falou alto, antes de baixar novamente o volume. — Sobre ele ter esse segredo, sobre ele gostar de homens. Talvez outra pessoa tivesse descoberto. Talvez ele tivesse tido um problema com a Becca...
riu e jogou o cigarro no chão.
— Você ajudou bastante, garoto. Fique tranquilo. — Ficou de pé e passou a mão no blazer para desamassá-lo. — Você tem meu número, certo?
— Sim senhor. — Ele assentiu. — O senhor não vai... Falar de mim na delegacia, certo?
franziu o cenho, com as mãos nos bolsos.
— Falar o quê?
— Sobre as festas. Sobre o que a Becca e a Kay falaram de mim.
Ergueu a mão e fez um movimento no ar para desconversar.
— Fique tranquilo. Eu cuido de homicídios. Isso não é problema meu.
Led abriu um pequeno sorriso.
— Obrigado. Boa sorte para o senhor.
agradeceu e foi andando até onde tinha estacionado o carro, perto do parque. Checou o relógio. Eram quatro da tarde. Teria tempo de fazer a última coisa que precisava no dia.
Ligou para a delegacia e pediu para fazer uma denúncia para a divisão de narcóticos.

Marla checou de novo o endereço. O orfanato ficava em um ponto afastado da cidade, perto de Blanche, o bairro do caso de . O prédio parecia um galpão e, aparentemente, fora restaurado há pouco tempo.
Respirou fundo antes de entrar. Por dentro da camisa social, tinha se permitido usar sua cruz dourada em um cordão. Apertou bem o pingente antes de bater na porta.
A mulher que a atendeu tinha cabelos pretos e fios grossos presos em um coque. Vestia uma camisa preta e calças pretas. Os olhos escuros estavam cansados, fundos.
— Boa tarde? — ela cumprimentou em um suspiro. Aguardou Marla responder.
— Eu sou a agente Marla Bronx. — Ergueu o crachá rápido o suficiente para a moça não conseguir ler que ela estava em treinamento. — Marquei com Donna de fazer uma visita.
Hesitou por alguns segundos. Completou, com a voz trêmula:
— Boa tarde.
A moça abriu um sorriso forçado, por cima de seu cansaço, e passou a mão pelos cabelos. Falou baixo, com a voz sem energia:
— Ah, a policial. Eu sou a Donna. Eu quem marquei com você.
Marla soltou o ar e forçou um sorriso também. Estendeu a mão para Donna apertar.
— Você veio por causa da Helen, não foi?
Ela assentiu. Não teve coragem de falar mais nada em voz alta.
— Pode entrar. Você deu sorte, agora é a hora do lanche e eu posso falar com você por um tempo. A diretora teve uma reunião na prefeitura, e como você insistiu em vir hoje...
Donna fechou a porta atrás das duas. As paredes do orfanato eram amarelo-claro, com quadros de ilustrações infantis pendurados. A sala onde estavam pareciam ser uma antessala para possíveis candidatos a pais, mas, de onde estava, via um pequeno pátio na área interna. Seguiram na direção de um corredor estreito com algumas portas em cada lado.
Passaram pelo corredor em silêncio. Conforme andavam, Marla começava a ouvir o som de crianças cantarolando, gritando, uma discutindo com a outra e então gargalhando. De repente, um feijão voou porta afora de algum cômodo. Donna e Marla pararam no corredor, e depois de um segundo de silêncio, ouviram o que parecia ser uma torcida de futebol comemorando um gol.
— Esse foi o Milo — Donna disse, com um sorriso pequeno.
— Como você sabe?
— Todo dia convivendo com eles. Depois de um tempo, você sabe quem faz o quê, e quando. Isso é a cara do Milo.
— Quantos anos o Milo tem?
— Dez.
Marla sentiu um aperto no coração. Se lembrava bem dessa época. Várias crianças de oito anos, de sete, de dois. Várias que nunca mais viu, que foram embora sorridentes segurando as mãos de seus novos pais. Várias que ficaram para trás.
Várias que voltaram.
Passaram pela porta do refeitório e Marla olhou para dentro pelo canto de olho. Havia várias crianças de idades diferentes sentadas à mesa, mas as mais novas já tinham sido liberadas para o cochilo da tarde.
Donna abriu uma porta de uma sala de descanso de funcionários. Do lado de dentro, Marla via que era a única sala que parecia malcuidada, com paredes com tinta lascada e móveis antigos, de segunda mão. Donna foi até uma cafeteira em cima da bancada e pegou uma das canecas limpas. Começou a falar enquanto servia a caneca de Marla:
— Você disse que queria falar sobre a Helen. Pelo que houve com ela.
— É, sim — Marla disse, se sentando no sofá e passando a mão pelos cabelos ruivos. — Eu soube que ela vinha aqui com frequência, e que uma coisa aconteceu.
— A Amma que disse, não foi? — Donna serviu a caneca de Marla e começou a colocar o café em sua própria. — Ela é uma ótima menina. Amma.
— Ela e Helen andavam juntas?
— Parecia que eram grudadas. — Riu. — Amma é esperta, até meio grossa, mas é na dela. Quieta, sabe? Quando ela vinha, as crianças adoravam. Amma coloca as crianças na linha, elas sempre guardam os brinquedos e reúnem os materiais depois de brincarem com a Amma. Um dia uma menina deu uma bronca em mim porque eu esqueci de guardar alguns lápis de cor.
Marla deu uma risada. Bebericou o café e esperou Donna servir-se do seu e se sentar à sua frente. Esperou Donna continuar. O café era ralo, mas delicioso.
— Helen era bem diferente. É até esquisito pensar que elas andavam juntas.
Marla engoliu em seco. Colocou a mão no bolso do casaco, tirou um pequeno gravador ainda desligado e deixou em cima da mesa, em frente às duas. Perguntou, enquanto pegava na bolsa um bloco de notas e uma caneta:
— Se importa?
Donna congelou.
— Olha, detetive...
— Não é necessário — ela se adiantou, com a mão estendida para acalmá-la. — Posso só fazer anotações. Podem ser registros anônimos.
— Olha, detetive. Tem... Tem coisa que não se fala.
Marla engoliu em seco.
— Eu sei o que a Helen viu. Tem coisas que precisamos falar.
Donna suspirou e olhou para baixo. Bebeu mais goles do café. Marla apertou o botão para iniciar a gravação e fez questão de fazer barulho.
— Sonya é uma menina especial. Ela está com a gente há muitos anos. Um doce. Ela tem uma marca de nascença que parece uma estrela. Por isso chamamos ela de Estrelinha.
Marla tentou sorrir de forma reconfortante, mas só conseguiu um sorriso choroso. Segurou forte a cruz no pingente.
— A Helen falou comigo sobre. Ela não sabia bem o que tinha acontecido. Acho que não queria que fosse verdade.
— Ela fez uma denúncia?
Donna negou com a cabeça. Ainda evitava olhar para Marla. Olhar tornaria isso mais real.
— Não. Ela ficou irritada demais para isso. Ela quis confrontar o pastor primeiro, porque a próxima vinda do pastor ia ser cinco dias depois. Ela teria tempo de ir falar com ele.
— Você acha que ela preferiu falar com ele primeiro porque estava irritada? — Marla perguntou, com o cenho franzido.
Donna deu de ombros.
— Talvez porque ela também não sabia o que pensar. Queria saber a verdade, saber o que ele diria.
— Esse caso foi o primeiro?
Os olhos de Donna começaram a marejar. Ela ergueu a cabeça, em tentativa de fazer as lágrimas não se acumularem.
— Eu ganho mal. Mal consigo pagar as contas.
— Donna, isso não é o caso de...
— O pastor é um homem complicado. Fala pouco com a gente, mas sempre nos dá algum bônus no fim de ano, feriados, nosso aniversário...
— Donna.
Pela primeira vez, olhou para Marla. Os olhos já escorriam lágrimas sem piscar.
— Só eu soube do que houve. Helen falou comigo porque eu sou responsável pelas crianças da idade da Sonya. Ela disse que a Sonya teve uma reação padrão de crianças abusadas. — Fez uma pausa para puxar ar apesar o nariz entupido pelo choro. — Não foi a primeira vez que eu notei algo parecido.
Marla comprimiu os lábios. Não poderia chorar. Não ali.
— Eu não paro de pensar nisso. Que eu podia ter evitado isso quando notei o primeiro sinal com a primeira criança. Que Helen poderia estar viva.
— Você acha que pode ter sido o pastor?
A mulher agitou a mão no ar. Marla não soube se ela estava pedindo algum tempo para respirar, ou se ela queria mudar o assunto. Preferiu esperar Donna voltar a falar por si.
— Não sei. Não quero fazer uma acusação sem ter certeza. Foi isso que Helen fez.
— Eu posso conversar com a Sonya?
— Não.
O tom de Donna foi um pouco mais firme do que Marla esperava.
— Ela é só uma criança. Você não é de homicídios? Não foi o que você disse? Não precisa falar com Sonya.
Marla franziu o cenho. Não sabia dizer o que Donna esperava com isso.
— Só...
— Deixe-a fora disso — Donna cortou. — Ela é só uma criança.
— Donna — Marla disse, com a voz firme, tocando a mão da mulher, que recuou. — Você pode fazer uma denúncia anônima. É o certo.
— Anônima? Como eu posso saber se é realmente anônima?
— Eu posso garantir anonimato.
Donna apontou para o gravador em cima da mesa.
— Com isso?
Marla comprimiu os lábios de novo.
— Apesar disso. Eu sou de homicídios. Isso não tem a ver comigo.
A mulher pareceu cogitar. Marla anotou o número de seu telefone em uma das folhas do bloco e a arrancou.
— Esse é meu telefone, se quiser falar mais alguma coisa.
— Para a denúncia também é este número?
Marla conseguiu dar o sorriso reconfortante dessa vez.
— Não. Vou te passar o número da delegacia.
Anotou o telefone em um papel e deu o outro papel a Donna.
— Você está fazendo a coisa certa.
Ela agradeceu e foi em direção à porta, para abri-la e deixar Marla passar.
— Obrigada por ter vindo, detetive. Espero que eu tenha ajudado em algo.
— Espero que eu tenha te ajudado também.
Marla seguiu pelo corredor sozinha, deixando Donna na sala dos funcionários. Não quis olhar para o refeitório. Já esteve naquele lugar vezes demais.
Conferiu o relógio. Quatro da tarde. Ainda tinha coisas demais para fazer.

segurava o telefone com nervosismo. Não sabia bem por quê. Ouvia sua esposa na cozinha preparando algo para comer no fim da tarde, e, mesmo assim, soava errado. Era a sensação de trapacear.
Andou pelo quarto em círculos. Teria pouco tempo para fazer aquilo, se fosse fazer. Ouvia Claire cantarolar algo no andar debaixo, uma música que ecoava pelo aparelho de som. Não gostava da música que ela escolhia. Sempre parecia algo um pouco fora de tom.
Pensou em . Em .
— Alô? — Ouviu a voz do outro lado da linha.
— Marla?
Podia imaginá-la com uma careta confusa.
— Você demorou mais do que eu esperava para ligar.
— Eu estava fazendo uni-duni-tê entre vocês.
— Bom, acho que não temos opções.
suspirou. Perguntou:
— Você falou com a ? Ou com ?
, o que você quer?
Ele demorou. Não imaginava que ela faria essa pergunta tão diretamente.
— Como está o seu caso?
, não me enrola. Me diz logo o que você quer.
suspirou.
— Eu não quero pensar que estamos ficando para trás.
— Você está?
— Eu perguntei primeiro.
Marla demorou alguns segundos para responder, mas ele sabia que ela estava sorrindo. Falavam de igual para igual.
— Eu verifiquei uma denúncia hoje. Por enquanto, o que parece é que envolve vingança por uma denúncia.
— Que tipo de denúncia?
— Pedofilia.
Ele não perguntou mais. Não parecia apropriado. Deixou Marla prosseguir:
— É um caso difícil. O corpo tem sinais de ritual, quase como um tipo de sacrifício. Mas tudo aponta para o pastor.
— Ele pode ter feito isso para culpar alguém.
— Culpar uma outra religião, talvez. — Ela pensou por alguns segundos. — É, pode ser.
— Você falou com sobre isso?
— Não.
— Você vai falar?
— Você vai?
Ele hesitou por alguns segundos.
— Ela está com o disse, finalmente. — Parece que está bem assistida.
— E você parece estar incomodado com isso.
comprimiu os lábios. Sentiu o rosto ficar vermelho, mas não tinha certeza se era por raiva.
— Eu não confio nele.
— Acho que é natural não confiarmos uns nos outros. Faria sentido um querer atrapalhar o outro.
— Também faz sentido nos ajudarmos. E não acho que ele queira atrapalhar. — fez uma pausa. — Ele parece querer nos colocar uns contra os outros.
— Eu não sinto isso.
— Você o imagina falando isso com ? Sugerindo falar com a gente? Juntar forças?
Ela não respondeu. sabia que estava segurando a atenção dela em suas mãos.
— Não estamos em contato porque escolhemos. É porque eles formaram uma dupla, e foi isso que sobrou para nós.
— Olha, — ela cortou-o rápido demais. — Eu não sei aonde você quer chegar.
— Acho que podemos tentar falar com depois. Hoje, domingo, não sei. Só porque ele a cooptou, não quer dizer que não possamos trabalhar juntos.
— Você está sugerindo uma equipe?
Ele hesitou por alguns segundos antes de responder:
— É. Acho que dá para chamar assim.
Ela riu.
— Me sinto na escola de novo.
— Acho que é o mais produtivo para todos nós.
— Acha? Ou você só quer saber o que o parece estar escondendo?
comprimiu os lábios. Ouviu Claire parar de cantarolar no andar debaixo.
— Eu não o acho confiável. Só isso.
— Bom, a gente pode fazer uma pesquisa pelo nome dele depois. Descobrir o que ele pode estar escondendo. Mas primeiro eu quero saber o que você também está escondendo, .
Alerta.
— Ou você achou que eu ia te dar informações do meu caso sem nada em troca?
hesitou. Sabia que Marla sorria do outro lado, só não sabia ler esse sorriso.
Talvez ela tivesse pego ele no flagra, no meio de suas suposições e conspirações que, a bem da verdade, imaginava que também estivesse fazendo.
Talvez ela só estivesse brincando.
Talvez o teórico conspirador fosse ele.
— Você vai falar com ?
— Posso ligar para ela hoje, dependendo do quanto você me interessar.
Essa é a magia da paranoia. Quando nasce um paranoico, sempre se espalha.
— Eu corri atrás de algumas informações sobre aquele policial que estava na reunião na terça-feira. Benjamin Kerauc. Acho que pode ter algo a ver com o motivo do nosso concurso ter sido tão diferente.
— Sou toda ouvidos.
— Talvez seja melhor você se sentar primeiro.
Não tem um jeito agradável de dizer que um dos policiais trabalhando próximo a você é especialista em serial killers.

— Quem está vindo é seu parceiro?
— É. — hesitou, mas deu de ombros. — Podemos dizer que sim.
Tracy ergueu as sobrancelhas.
— Ele é bonito?
riu. Nunca tinha pensado nisso. era dez anos mais velho do que ela. Viúvo, rabugento. Ele talvez fosse bonito, mas ela não conseguiria dizer. Provavelmente, sim.
— Tem quem goste.
A campainha tocou segundos depois. deixou a caneca de chá em cima da mesa e andou a passos lentos até a porta. Sentia o tronco latejar, por debaixo do curativo. Não precisava olhar para trás para ver Tracy inclinada para trás para observar a porta. Lentamente, a abriu e viu o rosto de iluminado pelos postes de luz. Seu cabelo estava bagunçado e ele vestia calças jeans e uma camiseta branca. Tinha uma mochila nas costas, algo que não se lembrava de ter visto ele usar antes.
— Você tem café? — Foi a primeira coisa que ele falou.
comprimiu os lábios e deu passagem para entrar. A única luz acesa era a da cozinha, então era inevitável que a primeira coisa que ele visse fosse Tracy, com o topo de sua cabeça iluminada e sua pele reluzente.
? — perguntou Pat, do andar de cima. — Quem está aí?
Ela apareceu no topo da escada. Assim que a viu, apenas assentiu com a cabeça.
Está tudo bem.
— Ah — ela disse, com a voz de alívio. — Tudo bem.
— Boa noite — ele cumprimentou-a.
Patricia começou a descer as escadas e alcançou ao mesmo tempo que alcançou a cozinha. Pôde ouvir ele cumprimentando Tracy e ela respondendo-o com os olhos fixos nele.
— Posso ir? Você está bem?
olhou para Pat. Demorou alguns segundos.
. Tracy.
— Sim. Pode ir.
— Volto amanhã para ver seus curativos. Antes do almoço.
assentiu e Patricia abriu a porta. Uma última lufada de vento entrou na casa antes que ela saísse. viu sua própria sombra projetada contra a porta por um instante, antes de ouvir chamando-a:
.
tocou a bandagem embaixo da camisa. Estava quente e dolorida. Provavelmente, estava sangrando.
Virou o corpo de volta para a cozinha e andou até lá com passos curtos. Quis demorar o máximo de tempo possível. Estar ao lado de Tracy era como estar sempre com uma bomba-relógio em que não podia ver o visor para saber quando ela iria explodir. Poderia ser em uma hora, duas, um dia, um minuto. Talvez ela nem explodisse, e você desprende toda sua energia para nada por uma interação que não dura cinco minutos. É se preparar para uma guerra que não é anunciada. Ou ser enviado para uma guerra achando que está indo para um parque de diversões.
Chegou à cozinha mais rápido que esperava. Gastou tempo demais pensando em outras coisas. Quando conseguiu ver a mesa, já estava de pé com uma pasta na mão.
— Você tem os seus arquivos aí? — ele perguntou.
— Estão na mesa da sala.
Ele balançou a mão no ar, sem olhar para ela.
— Deixe. Os seus ainda estão desatualizados.
olhou de lado para Tracy. Comprimiu os lábios ao vê-la em silêncio, com as sobrancelhas levemente erguidas. Esperava o momento de entrar.
— ela disse demorada, alongando o quanto podia o nome a ponto de fazê-lo ecoar. — Não vai nos apresentar?
Ela hesitou. ergueu a cabeça como se acordasse de uma divagação. Olhou para e Tracy perdido.
, essa é Tracy. Minha mãe.
Sentou-se na cadeira entre os dois. Tracy estendeu a mão para beijá-la. Ele estendeu e a apertou.
, senhora. Departamento de polícia de Longview.
Tracy comprimiu os lábios e ergueu as sobrancelhas, mas rapidamente repousou-as. Não pareceu impressionada. Era quase previsível.
— ela repetiu, rápido.
Ele puxou a cadeira em frente e, sem olhar para Tracy, anunciou:
— Infelizmente terei que pedir para a senhora se retirar.
comprimiu os lábios e recuou. Esse é o momento em que você não fala nada.
— Acho que não entendi.
— Esses arquivos são confidenciais. Não podemos tratar deles com civis.
Civis.
sorriu. Não era uma pessoa qualquer. Não era como Tracy.
Tracy franziu o cenho, mas ficou de pé.
— Bom, eu vou subir então. — Olhou para . — Me chame se precisar de alguma coisa. Se o machucado...
Não completou. Comprimiu os lábios e saiu da cozinha.
sorriu. Nunca tinha feito isso antes, pedir para Tracy sair. Funcionava assim. Funcionou.
— Preciso que você preste atenção — disse, abrindo a pasta em cima da mesa. Colocou alguns papéis com anotações em volta. Eram anotações que ela não tinha, mas reconheceu as anotações sobre a ligação com George Ramsay.
— Estou prestando — ela retrucou. Sentou-se na cadeira em frente a todos os papeis. Sentiu-se, por um segundo, como um acusado encarando as provas. Sentia o tronco quente.
— O pai não tem contato com ela. Ninguém sabe onde ela está. O último registro dela tem semanas.
— Mas Juliet fez a transferência de matrícula.
— Não sabemos a circunstância — ele falou baixo, quase para si mesmo, e se sentou ao lado dela. — Talvez algo tenha acontecido antes dela ter conseguido se mudar.
— Para onde ela iria?
Ele não respondeu. Negou com a cabeça e beliscou de leve o lábio com os dedos.
olhou para todos os papeis em cima da mesa. Havia documentos de Juliet, contas, recibos de banco. Nada que indicasse uma fuga de casa. Nada que indicasse que Dahlia estivesse morando escondida com um namorado.
, acho que ela está morta.
Preste atenção. Você não está acordada o suficiente.
— Se ela estiver...
— Isso não é problema nosso. Não ainda. E se ela estiver, não temos o que fazer a respeito. Não mais.
Ela comprimiu os lábios e segurou o rosto com uma das mãos.
— E se ela também foi sequestrada?
— Não pediram resgate ainda.
Pegou a caixa de remédios e a balançou como um chocalho. Pegou um e o jogou pela garganta.
— O machucado — ele murmurou, olhando para baixo — Está...
— Por que ela tem uma casa?
franziu o cenho. não olhava para ele. Olhava fixamente para o documento das posses de Juliet Ramsay.
Duas casas. Uma na vila. Outra na cidade vizinha.
— Não entendi.
— Por que ela tem uma casa no nome dela na cidade ao lado?
— É a casa dos pais dela. Eles passaram a casa para o nome dela há alguns anos.
— Eles não estão mortos?
procurou um dos documentos.
— Não. Eles...
— Por que ela tem duas casas no nome dela?
, não vejo...
Ele se interrompeu.
— Você conseguiu falar com eles por telefone? — ela perguntou. Olhava para ele de cabeça baixa, de lado, com receio. Os olhos de eram opacos demais, seu rosto era sério demais. Tudo era demais. Não queria olhar por muito tempo.
— Não.
Ele comprimiu os lábios.
— Eu vou lá amanhã — ela declarou.
— Não acho que seja prudente.
— Eu vou dar um jeito.
relaxou o corpo para trás e bufou.
, olha...
Ouviram o telefone soar. Um deles ficava na parede atrás da cozinha, e antes que ela pudesse levantar, ficou de pé e tirou ele do gancho, estendendo para ela. Ela agradeceu em voz baixa e colocou o telefone na orelha.
— Quem fala?
— Detetive?
Era uma voz feminina e jovem.
— Sim. Detetive .
cruzou os braços ao lado dela. mantinha a cabeça baixa.
— Aqui é Mel. Mel Cortez. De Blanche.
— Mel? — Ela olhou para com um pouco mais de energia. — Pode falar. Aconteceu alguma coisa?
A menina hesitou.
— Eu preciso falar uma coisa para você.
— Pois não. Pode falar, Mel.
— Não — ela cortou. — Precisa ser ao vivo. Posso ir até a delegacia amanhã. Tem como você me buscar?
franziu o cenho.
— O que houve, Mel?
bufou, apreensivo.
— É sobre o namorado de Dahlia. É importante. Posso vê-la amanhã?

You’re not longer laughing, I’m not drowning fast enough…

Capítulo 9 – Through the valley

But I can't walk on the path of the right because I'm wrong…

Domingos eram os piores dias. A casa parecia grande demais.
Fase 4. Depressão.
Naquela manhã, achou melhor ir para uma cafeteria.
Foi o primeiro a chegar. Ficava no centro de Longview, longe o suficiente da delegacia, perto o suficiente do movimento. Quando entrou, ouviu o sino soar em cima da porta, para uma jovem simpática erguer a cabeça atrás do balcão. Ela tinha bochechas rosadas e cabelos pretos com cachos largos, presos em um coque, mas com mechas fugindo ao lado do rosto. acenou com a cabeça com um sorriso pequeno e escolheu uma das Diferenciar maiúsculas e minúsculas Usar expressões regulares (por exemplo, \n para nova linha ou \t para guia) Ajuda Ignorar sinais diacríticos (por exemplo, ä = a, E = É, אַ = א) SubstituirSubstituir tudoAnteriorPróximo mesas ao lado da vitrine.
As paredes eram rosa-claras. No balcão, havia bolinhos, fatias de torta e de bolo, doces... Mas nada lhe abria o apetite.
— Pois não? Bom dia — ouviu de repente. Não tinha percebido que a moça tinha se aproximado. Viu no uniforme que imitava o estilo dos anos 50 que ela se chamava Tanya. E, quando se aproximou dele, viu que ela tinha as bochechas ainda mais rosadas.
— Bom dia, Tanya — ele disse, limpando a garganta em seguida. Se deu conta tarde demais que vestia moletom, uma camiseta branca e estava com os cabelos despenteados e a barba crescendo.
— Já sabe o que vai pedir? — ele murmurou, com a caneta e o bloquinho na mão.
— Só um café, por favor.
Ela sorriu e virou as costas.
Ela era bonita. Talvez muito jovem, mas bonita.
Apertou os olhos com força com uma dor de cabeça súbita. Não devia estar pensando algo assim. Não, era sono. Só sono. Deveria dormir mais.
Apertou a aliança no pescoço. Na mão, a marca do anel ainda era visível como se ainda o usasse. Ariana.
Quanto tempo faz? Parecia que todo dia era o mesmo dia.
Pegou o jornal que tinha acabado de comprar e abriu em uma página qualquer. Queria só fingir ler, fugir da inevitável conversa de Tanya àquela hora da manhã. Ela o olhava de lado enquanto preparava um café.
— Essa foi uma semana tranquila, né — ela disse, com a voz alta, enquanto preparava o café.
só ergueu a sobrancelha e riu baixo. Na delegacia, essa sempre era a frase amaldiçoada.
— Sim. Foi impressionante.
Depois da ligação de Mel Cortez no dia anterior, conseguiram combinar com ela de fazer uma declaração na delegacia depois do almoço. Teria que buscá-la sem usar o carro da polícia, o que ele não gostava. Gostava de mostrar que era policial. Trabalhou tanto para isso, que gostava de sustentar o distintivo por todo lugar.
Ariana pensava assim. Ela dizia para todos termos orgulho do que somos. Ela nunca tirava o distintivo.
— Está bem cedo — ela continuou, terminando de preparar o café — Você trabalha por aqui?
passou a mão pelos cabelos. Já estava na hora de cortar. A última vez foi antes de...
— Um pouco longe.
Imaginou que Tanya hesitava. Gostava de deixar as pessoas assim. Era divertido, até certo ponto. Ultimamente, gostava de fazer isso com .
A novata. Muito promissora, via detalhes. Mas também era ingênua. Precisavam de pessoas assim, mas talvez, com mais malícia.
Não tinha problema. Poderia ensinar isso a ela. Tempo ao tempo.
A essa hora, devia estar se preparando para ir para a outra casa de Juliet Ramsay. Ela tinha insistido, mesmo isso sendo a pior ideia para alguém em recuperação.
Mas é assim que começa. Ele também era assim. Sacrifícios.
E olha onde isso foi parar. Passou os olhos pelo jornal.
— Ah. Na escola municipal? — ela perguntou, começando a vir em seu caminho.
— Na delegacia — corrigiu. Uma das manchetes chamou sua atenção.
Tanya segurou a caneca com um pouco mais de força, surpresa.
— Ah, é policial?
apertou os olhos na manchete, mas desviou rapidamente o olhar de novo.
— Sim... Detetive.
Ela ergueu as sobrancelhas. Deixou a caneca na frente dele, e sorriu.
— Nossa.
— Não é tão interessante quanto parece — ele murmurou, pegando a caneca e levando aos lábios.
— Você está em algum caso agora? — ela perguntou, com os olhos brilhando. Apertou os lábios, espalhando seu brilho labial.
riu.
— Em alguns.
A jovem olhou para o jornal em suas mãos e corou.
— Não vou te atrapalhar...
— Não... Não se preocupe — ele murmurou, com a voz arranhada e sem ânimo.
Tanya hesitou, passando as mãos pelo uniforme, nervosa.
— Sempre gostei de livros policiais. Agatha Christie. É parecido?
Ela falava algo, sabia. Via os lábios dela se mexendo. Mas não entendia nada. Olhava para uma das colunas do jornal, com um título pequeno, mas chamativo.
— É — ele disse, por fim — É. É parecido.
Só diga que sim. Assentir é a melhor opção. Deixe ela falar. Elas falam sozinhas, você só precisa dizer o que elas querem ouvir.
No cabeçalho, “assassinato e sequestro em Blanche”. Na foto, Juliet Ramsay, sorrindo, e uma foto escolar de Patrick.
Embaixo de cada foto, estava escrito “MORTA” E “DESAPARECIDO”.
Sentiu a cabeça latejar. Olhou para Tanya, aguardando-o responder alguma coisa que ele não tinha ouvido. Pediu para ela repetir.
Mantenha ela falando.
Só aceite. Diga que sim.

A limpeza em pontos pós-cirurgia deve ser feita três vezes por dia, com uma gaze embebida em álcool 70% e em sentido único. A sensação de passar álcool em pontos é sentir seus ossos gelando, ardendo. Você não pode coçar.
não reclamava. Pat limpava cada ponto com cuidado.
Não deixaria Tracy se aproximar de nenhum.
— Você vai realmente ter que sair hoje?
fingiu não ouvir. Mas não poderia fugir de Patricia.
— A mulher que você está... Tratando — ela prosseguiu — Ela apareceu no jornal de hoje de manhã. Ela é de Blanche, não é?
— Sim.
— Você precisa sair hoje? Deveria ficar de repouso. Esses pontos podem arrebentar se você se esforçar muito.
— Eu não vou me esforçar.
— Você ir é se esforçar.
— Eu não tenho outra opção.
Pat ergueu o olhar dos pontos.
— Bee.
Não olhe. Não agora. Sinta eles arderem.
— Você tem outra opção. Você não precisa ir. Hoje é domingo e você está em pós-operatório.
— Eu disse que iria.
— Que merda, — Pat rosnou, jogando a gaze embebida de álcool no chão — Não adianta falar com você. Você diz que nunca tem jeito, que nunca tem para onde ir. Que não tem opção — fez uma pausa, passando a mão nos cabelos e parando com as pontas dos indicadores pressionando as têmporas, olhando para seus próprios joelhos — Mas você não quer olhar outras opções. Você escolhe isso. Você escolhe as espirais. Você diz que só tem uma opção porque você não enxerga nada além do que você quer.
franziu o cenho.
— Eu não quero isso.
Patrícia ficou de pé. Pegou a caixinha de gases e frasquinhos de álcool e andou rapidamente em direção à porta do quarto.
— Essa mulher. Essa sua mulher.
— Juliet. O nome dela é Juliet.
— Ela parece bastante a sua mãe.
Fechou a porta sem fazer barulho.

O carro vermelho parou na frente da casa na Singer Street. olhava pela janela da sala, quase escondida, monitorando quando ela chegaria. Olhou mais de uma vez nos últimos minutos. Ela era pontual. Exatamente às dez da manhã.
— Sua amiga chegou? — Tracy perguntou, sentando no sofá da sala com uma caneca de chá na mão, girando uma colher pequena com uma lentidão estranha. Tudo nela parecia posado. Sentou na poltrona devagar.
— Acho que sim — ela confirmou. Assim que terminou de falar, ouviram alguém bater na porta.
Tracy ergueu o olhar e ficou de pé antes de ter tempo de reagir. Sentiu a barriga doer assim que se mexeu. Tracy andou a passos largos até a porta. A cada passo, sentia o chão tremer, em marcha, e os pontos arrebentarem.
Mais forte.
Mais forte.
Mais forte.
— Pois não?
não conseguia ver quem estava na porta.
Claro que os pontos não estavam arrebentados. Sentia a barriga quente, empapada de alguma coisa úmida, mas não estavam arrebentados. Tinha a sensação de sangue, mas não estavam arrebentados.
Marla surgiu na porta como um fantasma, como se não tivesse precisado entrar. Só se materializasse. Olhava para Tracy fixamente, por poucos segundos. A luz da janela refletia nos cabelos de Marla. Tracy parecia opaca.
— Quem é você? — ela perguntou. a ouvia em sua nuca, como se a pergunta tivesse saído de sua própria cabeça.
Ou não tivesse sequer saído.
Preciso diminuir a quantidade de remédios.
— Marla — exclamou, tentando ficar de pé.
— Não faça esforço, minha filha.
A barriga não doía mais.
Ficou de pé e apontou para uma bolsa com pastas dentro, no móvel perto da porta. Só precisava sair dali o quanto antes.
Marla pegou a bolsa sem falar mais nada. Acenou com a cabeça em cumprimento para Tracy, pediu licença e deu três passos para trás, para sair daquela casa tão escura, tão limpa. A porta fechou-se sozinha.

— Não sabia que você morava com a sua mãe.
O carro de Marla era espaçoso, mas pequeno. notou que era de segunda mão, e pensou um pouco mais no que sabia de Marla.
Nada.
Marla era uma mulher de vinte e muitos anos, talvez nem fosse ruiva de verdade, tinha um carro de segunda mão.
Mas ela gostava de ouvir fitas de música italiana. Baixo, em som ambiente. Talvez ela falasse italiano. Talvez ela gostasse de filmes de caubói.
Olhava para Marla de lado. Ela tinha olhos intensamente azuis. Grandes, redondos, e pele muito branca. Não parecia ter um pelo no corpo além dos cabelos, cílios e sobrancelhas. Seus lábios eram levemente arqueados para cima, o suficiente para parecerem um pequeno sorriso.
Em qualquer ângulo que você olhe para Marla, parece olha-la de baixo. Ela sempre parece estar te vendo de cima.
?
Merda.

— Eu não moro. Ela foi me acompanhar no pós-operatório. Marla olhou de lado para a barriga de . Estava rígida, reta, enrolada em bandagens por debaixo da camiseta branca.
— Como você está?
rangeu os dentes. Teve a impressão de que ela estava perguntando por educação.
Pare com isso. O mundo não está te perseguindo.
— Podia estar melhor.
O mundo não é seu inimigo. Você não é tão importante assim.
— Não precisamos falar disso, se você não quiser — Marla retrucou, com a voz hesitante.
— Não, está tudo bem — tocou as bandagens por decima da roupa e bateu o dedo em cima da ferida três vezes — Está tudo bem. Não foi nada grave.
— Você levou um tiro — Marla disse, com uma risada estranha — Em qualquer lugar que se leve um tiro, é grave.
— Eu imaginei que aconteceria. Acho que é o trabalho mais provável que algo assim poderia acontecer.
Ficaram em silêncio por alguns segundos. Marla foi a primeira a rir.
— Que merda, eu não queria ter rido disso.
— Eu não quero, dói na minha barriga se eu rir.
Não conseguiam mais ouvir a mulher italiana. Marla tinha uma risada boa, agradável. Não esperava isso dela. Uma risada tão confortável, calorosa.
— Bom, pelo menos você está levando isso bem. Não sei de onde você e aquele cara tiraram essa ideia.
ergueu as sobrancelhas, terminando de rir. Comprimiu os lábios.
— Não foi ideia do .
Marla não respondeu. A mulher italiana parecia cantar mais alto.
— O que aconteceu lá? — perguntou, alguns segundos depois.
— Foi uma má ideia. Algo deu errado.
— Foi bem perigoso — fez uma pausa — Acho que nunca tem algo que precisemos fazer que não possamos fazer em casa, ou no escritório. Nada vale a nossa segurança.
— Nós não somos da Inteligência. Somos de rua. Temos que ficar na rua.
Marla deu de ombros. tinha percebido que o carro não acelerava ou reduzia a velocidade. Praticamente desde que começaram a viagem, não havia alterações. Marla não permitiria alterações.
— Não sei se é uma boa ideia nos arriscarmos por causa de um caso.
podia ouvir as palavras saindo de sua boca.
“Por causa de alguém que já morreu”.
— Você não parece com a sua mãe — Marla disse de repente — Deve ter puxado mais ao seu pai.
— É. Em todos os sentidos. Meu nome é por causa do meu pai.
— Onde estamos indo mesmo?
Marla parecia nervosa. não entendia bem por quê.
— Para a casa dos pais de Juliet Ramsay.
— Saiu uma reportagem sobre ela no jornal hoje de manhã. A população começou a pressionar mais.
— Falaram algo de mim? Sobre o...
— Não — Marla cortou — Nada sobre o seu tiro.
falou isso. Que não devem prestar queixas.
— Como está tudo? Com ele. Seu mentor.
Podia ouvir a voz de repetindo seu discurso de sempre. Era quase um mantra, uma prece. Não diga nada. Não fale com ninguém.
— Está tudo bem. me acompanha.
— Vocês se falam sempre?
— Diariamente. Você não fala com o seu?
Marla riu.
— Acho que a última vez que nos falamos foi no primeiro dia — fez uma pausa — Mas eu gosto disso. Eu gosto de trabalhar sozinha.
— Achei que você estivesse trabalhando com o...
. Compartilhamos informações, mas não estamos trabalhando juntos.
Ela está mentindo. Não caia nessa.

— Você e o estão trabalhando juntos?
Não caia nessa. É isso que ela quer. Ela quer que você fale. Informações.

— Estamos nos apoiando. Ele me ajudou com algumas coisas, eu o ajudei com outras.
— Entendi — Marla murmurou — Ele não quis vir hoje?
hesitou.
— Não entendi sua pergunta.
— Não me entenda mal — ela agitou a mão no ar, sinalizando para não se preocupar — Só me surpreendeu você ter me ligado e pedido a carona. Ainda mais depois de você ter levado um tiro.
— Todos já estão sabendo, não é?
— Você era o assunto mais falado na segunda-feira pelo atraso, hoje você é o assunto mais falado pelo tiro.
— Do jeito que as coisas caminham... Não sei o que me espera na semana que vem.
Marla riu. Essa era a técnica. Piada, assunto pesado. Piada, assunto pesado.
— Ele está bem? — ela perguntou.
— Sim. Nada aconteceu com ele.
— E vocês estão trabalhando bem?
— Sim — hesitou — Por quê?
— Ele é... Não sei dizer. Não me dá uma boa impressão. Ele parece meio... Preocupado. Nervoso. Não sei dizer.
— Ele está levando isso a sério. Só isso.
— Senti que ele não gostaria de saber que você me ligou para te dar carona.
olhou-a de lado. Marla se mantinha impassível.
— É por uma boa causa.
— Ele parece não querer que você fale comigo sobre seu caso.
Você também não me falou do seu.
Ficaram em silêncio. Talvez tivesse dito aquilo alto. Talvez devesse tomar menos remédios.
— Não sei se ele é boa companhia. Ele não me parece uma boa pessoa.
Bee não respondeu.
Nenhum de nós parece.
olhou para frente de novo. Uma placa começou a aparecer na estrada, com uma seta apontando para a curva da direita, que levava para a cidade da família de Juliet.
— Estamos chegando. É em uma vizinhança, uma casinha amarela. Número 45.
Marla fez a seta e girou o volante para a direita.

A casa tinha as paredes limpas, com aparência de recém-reformadas, com grama baixa. Parecia uma casa de bonecas, de verdade. Não com cinzas, com telhado caído, móveis queimados e um corpo carbonizado no meio da sala. Uma casa de verdade, bonita, arrumada, bem-cuidada. Como Juliet provavelmente queria que a dela fosse.
— Você chegou a ligar para eles? — Marla perguntou, abrindo a porta do carona. Estacionou do outro lado da rua, mas havia tão poucos carros que não teriam como disfarçar mais.
— Sim, mas a ligação não completou.
— Não atenderam ou não completou?
Estava mais frio do que imaginaria. saiu do carro devagar, segurando na mão de Marla para conseguir se apoiar sem fazer muita força com o tronco.
— Acho que seria melhor você ficar no carro — Marla murmurou.
apoiou-se nas pernas para impulsionar-se para fora. Conseguiu ficar de pé, ainda que tivesse que se esforçar para não expressar a dor. Não retrucou.
— Precisa de ajuda para andar?
Ficou incomodada com a insistência de Marla.
— Não. Só vou andar devagar.
As luzes estavam desligadas, e não ouviam som de televisão ou rádio ligados. Marla atravessou a rua e subiu as escadas da frente em pequenos saltos. ainda andava até a calçada quando Marla bateu na porta.
— Acho que não tem ninguém em casa — ela murmurou, quando chegou ao pé da escada.
Não ouviam nada do lado de dentro.
— Será que estão fora de casa? — perguntou, colocando a orelha na porta.
Marla andou até a janela dianteira e olhou para dentro, por através das finas cortinas brancas.
— Devem ter morrido — ela murmurou.
— Estão procurando pelo Carl e a Harriet?
As duas recolheram-se em susto. A pergunta veio de alguém do outro lado da rua, atrás delas. Era uma voz rouca, cortante.
— Quem são vocês? — perguntou novamente, com as vogais longas. Era um idoso que caminhava com seu cachorro. Quando elas viraram para trás, o cachorro começou a latir.
— Polícia de Longview. Homicídios — Marla respondeu, falando alto, erguendo o crachá que tinham recebido da polícia. Não tinha o mesmo efeito de um distintivo, mas era o que precisavam para trabalhar. O que tinha.
— Bom, meninas — ele retrucou, amistoso — Acho que não precisamos de vocês por aqui, por enquanto.
— Desculpe — cortou — Quem é você?
— Só vizinho deles — apontou para uma casa alguns metros adiante — Moro ali na frente. Minha esposa era amiga da Harriet. Faziam um curso de culinária juntas.
— Eles saíram? — Marla perguntou. Ninguém se interessou em se aproximar; só seguiam falando alto.
— Só se for para nunca mais voltar — ele retrucou, com a voz mole, como se estivesse reclamando sobre o tempo nublado — Não vemos eles por aí há meses.
— Quantos meses? — perguntou . O homem deu de ombros.
— Uns seis.
— E ninguém reportou nada para a polícia?
Ele demorou a responder dessa vez.
— A filha deles vem toda semana.
— Juliet? — perguntou sem dar tempo para o homem falar qualquer outra coisa. Andou alguns passos adiante, até o homem, descendo os dois degraus e ignorando a pressão em seu tronco.
O homem recuou. O cachorro, que não tinha parado de latir, passou a rosnar.
— É. A filha deles. Ela sempre vem fazer comida. Já tem um tempo que não a vemos por aqui.
— Ela morreu há alguns dias.
O homem não respondeu. Pareceu ter se arrependido de ter iniciado a conversa.
— Você se lembra da última vez que a viu? — perguntou Marla.
— Isso é oficial? — ele perguntou, com a voz um pouco mais alta, mais agressiva — Eu sou veterano. Vocês sabem disso?
suspirou.
— Não é oficial, senhor. Mas se puder dar um depoimento na dele…
— Não vou dar depoimento nenhum. Eu sou veterano! Vocês sabem o que isso quer dizer? — resmungou mais algumas coisas baixo e seguiu seu caminho com o cachorro — A geração de vocês não reconhece nada. E acho bom vocês saberem onde a Harriet e o Carl estão. Pagamos impostos demais para vocês ficarem sem trabalhar!
e Marla se entreolharam.
— Obrigada pelo seu serviço — disse, mas o homem agitou os braços. De nada adiantava um reconhecimento tardio.
— Não podemos entrar na casa — Marla falou, girando o corpo de volta para a fachada — Não temos mandato.
não precisou responder. Sacou uma máquina fotográfica de dentro da bolsa e apontou-a para dentro da casa, pela janela. Mirou o ponto exato e apertou o botão. O flash da câmera brilhou no interior da casa como um raio. poderia jurar que o flash moveu alguns bibelôs em cima da mesa, agitou os móveis, fez as cortinas dançarem um pouco. Ela estendeu a câmera para a Marla, que a pegou rapidamente.
— Vou ver se tem outras janelas com cortinas abertas. Me espere aqui, não faça esforço — Marla anunciou, indo para um dos lados da propriedade. Sumiu do campo de visão de , que só conseguia ouvir seus passos na grama enquanto ela dava a volta na propriedade. olhou para o lado oposto. Dava para o jardim, circundado por uma cerca baixa de madeira. Andou devagar até a cerca perfeitamente pintada. O jardim era bem cuidado, mas simples. Poucas plantas, muitos arbustos. Plantas replantadas, muita terra irregular. Algumas flores morrendo, murchas. Podia imaginar Harriet tentando plantar flores, hortaliças, e não conseguindo fazê-las crescer, reclamando “não nasci para isso”, enquanto Carl a dizia para não desistir, que elas cresceram.
Um dia.
Um dia cresceriam.
Um dia foi tudo que precisaram para que aquilo acabasse.
— Tem só a janela da cozinha. Tirei duas fotos — Marla avisou quando se aproximou. Talvez tenha passado muito tempo olhando para as flores.
— Que jardim feio.
Marla concordou com a cabeça.
— Quer tirar algumas fotos dele? De recordação.
Estendeu a câmera de volta para . Bee segurou-a com firmeza, mais do que necessária. Queria compensar alguma coisa. Ergueu a câmera e tirou algumas fotos do jardim, de ângulos diferentes. Era a única parte da propriedade que teriam liberdade de fotografar.
E, por alguma razão, queria poder guardar registros daquelas flores feias.

Sala de Interrogatório 1.
— Jimmy não era bicha.
Comprimiu os lábios. A voz de Becca saía arranhada pelo gravador.
— Preciso te lembrar que essa conversa está sendo gravada.
O advogado de Becca era velho. Parecia demais com o pai dela. Talvez fosse primo.
— Becca, não é... — tentou começar, mas ela o interrompeu.
— Não, é sobre isso sim. Jimmy não era bicha.
Não foi fácil convencer Becca, Kay e Victor de testemunharem em um domingo. Ele pausou o áudio do gravador e coçou a nuca.
Becca Stevenson. Saldo: pouco produtivo. Não sabia da bissexualidade de Jimmy e não gostou de ser confrontada com a informação.
Kay Adams. Saldo: pouco produtivo. Disse ter ouvido falar da história, mas não levou a sério.
E se Led tivesse mentido?
Angie. Que filha da puta. nunca deveria estar tomando depoimentos sozinho.
Nem ele, nem ninguém.
Por onde andavam todos eles?
A porta da sala foi aberta de supetão. A mãe de Victor Bell marchou para dentro da sala, agarrando-o pela manga da blusa e forçando-o a sentar-se na cadeira em frente a . Parecia que ela mesma era o bad cop.
— Achei que já tínhamos acabado com isso — ela bufou. Seu cabelo parecia sujo.
ergueu o indicador, avisando-a e interrompendo-a. Colocou uma fita virgem no gravador e apertou o botão com círculo vermelho.
— Esse depoimento será gravado — ele disse, neutro.
— Isso é permitido? Ele é menor de idade.
— Não apenas é permitido, como é obrigatório — ele blefou, sem hesitar — Preciso saber se você — disse, olhando para Victor nos olhos — sabia que Jimmy era bissexual.
Victor deixou a coluna reta.
— Isso é relevante? — a mãe dela perguntou, com a voz alta.
— Mãe, por favor.
Victor tremia. Olhava para o gravador com olhos trêmulos.
— Eu conseguia imaginar.
— Pode explicar melhor?
A mãe de Victor olhava para ele de cima, em pé. Incriminadora, inquisidora.
— Tinha um boato. Diziam isso dele porque ele era simpático com todo mundo.
— Você nunca viu isso acontecendo?
— “Isso”?
engoliu em seco.
— Você já o viu com algum outro rapaz?
Victor ficou em silêncio.
— Isso é importante?
— Descobrimos que ele estava sendo chantageado por causa desse segredo.
— Não. Nunca o vi com nenhum cara.
— Mas já ouviu boatos.
— Tem boatos de todo tipo, sobre todo mundo.
— Você parece estar encobrindo alguém.
— Já chega! — a mãe dele protestou.
— E para a senhora — prosseguiu, apontando o dedo para ela — Preciso saber se houve algum distúrbio com a arma de vocês.
— Não temos nenhuma arma — ela retrucou, categórica.
— Têm sim — puxou uma das pastas em cima do canto da mesa, sem tirar os olhos da mãe de Victor, abriu e tirou a terceira folha, de um documento — Vocês têm o registro de duas armas no nome do seu marido há pelo menos quatro anos.
Ela engoliu em seco.
— Meu marido não usou essas armas. São para...
— Defesa pessoal — completou com a voz neutra — Sempre são.
— O que o senhor está tentando insinuar?
— Nada — ele franziu o cenho e sorriu — Eu só faço as perguntas.
— O senhor não fez uma pergunta.
— Sim. Fiz um comentário — abaixou os olhos para os documentos de posses de armas — Agora eu vou fazer a pergunta: vocês notaram o sumiço, mudança de lugar, alguma anomalia sobre alguma das armas?
— Não, senhor. Agora podemos ir embora?
ergueu o olhar.
— Sim. Podem ir.
A Sra. Bell sussurrou um “vamos, querido” para o filho e puxou-o pelo braço para fora da sala. olhou para o gravador e encerrou a gravação.
Apenas a família Bell e a família Williams tinham armas em casa. Nenhum dos dois relatou qualquer distúrbio.
Algum deles estava mentindo.

Sala de Interrogatório 2.
pediu licença para entrar. Mel Cortez estava retraída, os cabelos estavam soltos, cobrindo parte de seu rosto. Usava uma blusa vermelha, bem passada. Cheirava bem.
É fácil distinguir os que querem ajudar.
— Desculpe o atraso, Srta. Cortez — pediu, entregando um copo plástico com café para ela e mantendo um para si — Tive um imprevisto.
Mel esticou o braço, aceitando o copo, e deu um pequeno sorriso.
— Não tem problema. E a Srta. ?
sentou-se, ajeitando o cabelo.
— Ela está em recuperação de um acidente.
— Ela está bem?
Claro que Mel sabe do que você está falando.
— Sim. Está bem. Está de repouso.
Ou deveria estar.

— Ela não vem hoje?
tomou um gole do café. O da manhã era terrível.
— Não, temo que não.
Mel deixou o copo em cima da mesa, sem beber. Retraiu-se ainda mais.
— Prefere que eu chame uma mulher?
Ela negou com a cabeça.
— Não. Não quero dar trabalho. E vou ser rápida.
apertou o botão vermelho do gravador.
— Diga seu nome completo, por favor.
— Melissa García Cortez. Tenho dezessete anos.
— O que você queria nos contar?
Ela engoliu em seco.
— Teve... Uma vez que eu ouvi uma conversa entre a Sra. Ramsay e Dahlia. Tem alguns meses. Foi um pouco antes da Dahlia ir morar com os parentes dela.
— Consegue nos dar uma data?
Mel negou com a cabeça.
— Não. Desculpe.
— Em que horário isso aconteceu?
— Foi de noite. Umas onze horas, onze e meia. Uma sexta-feira.
— Sobre o que elas estavam falando?
Mel comprimiu os lábios.
— Não quero que Dahlia fique incomodada comigo.
inclinou o corpo para frente.
Mel acha que Dahlia está viva.
— Todo testemunho tem sua segurança protegida, Srta. Cortez. E Dahlia não vai se importar com você falar, se isso for ajudá-la a ser encontrada.
Mel hesitou.
— Tem certeza que a policial não pode vir?
engoliu em seco.
— Temo que não, Mel.
Ela abaixou o olhar. comprimiu os lábios. Ariana saberia lidar com isso.
— Mel tinha um namorado secreto.
Talvez por isso aquilo aconteceu com Ariana. Talvez ela fosse sensível demais com essas pessoas.
— Desculpe? — ele perguntou, franzindo o cenho.
— Mel tinha um namorado que a Sra. Ramsay descobriu alguns dias antes. Elas estavam discutindo sobre isso.
— Você ouviu a conversa inteira? — perguntou, empurrando o gravador mais perto dela. Mel aproximou-se do microfone e passou a falar um pouco mais alto.
— Inteira, não. Não sei como a Sra. Ramsay soube. Dahlia escondeu por alguns meses. Ouvi a Sra. Ramsay dizendo que aquilo precisava acabar, que Dahlia deveria se casar com um homem de futuro. Proibiu ela de ver o namorado de novo.
— Você sabia sobre esse namorado dela?
Mel hesitou, mas aproximou-se do microfone novamente e disse firme:
— Sim.
— Você o conhecia?
— Não muito bem, mas já tinha visto ele pela vila. É um rapaz que entregava comida. Edmund? Edward? Algo assim.
— Dahlia te contou sobre ele?
— Sim. Ela pediu para eu não contar para ninguém. Mas desde que o Patrick sumiu... — não a interrompeu, em vez disso parou de escrever para olhá-la com paciência — Achei melhor falar com vocês. Sei que Dahlia não veria problema...
Se interrompeu por um segundo, com a voz ficando carregada. Ergueu o rosto com os olhos fechados.
— Eu não consigo dormir há dias. Fico pensando em todas as vezes que nos vimos e nos falamos. Os últimos dias que vi Patrick e Juliet. Procurando alguma dica, alguma pista, alguma coisa. Isso foi a melhor coisa que eu consegui.
— Juliet conhecia o namorado de Dahlia?
— De vista, que nem todos nós. Ele trabalhava na loja de conveniência perto e às vezes fazia entregas para a gente. Deve ter sido assim que se conheceram. Acho que Juliet descobriu porque Dahlia faltou a algumas aulas para encontrar com ele. Ela ganhava uma mesada do pai e usava o dinheiro para ligar para ele através dos telefones públicos.
— Juliet não parecia receber bem esse tipo de coisa.
— Não. Ela nunca recebeu bem. Dahlia me contou que foi um dos motivos de elas terem se mudado uma vez. Dahlia começou a se aproximar de um menino, ela tinha uns onze anos. Quando Juliet soube, foi até a casa do garoto, que inclusive era a casa de uma amiga dela, e tirou Dahlia de lá pelos cabelos. Se mudaram na semana seguinte.
afastou o corpo. Não se impressionava com essa história, mas Juliet não parecia ser desse tipo.
— Tinham dito que elas se mudaram por violência doméstica. Pelo pai da Dahlia.
Mel fez uma careta com descrença.
— Juliet nunca nem morou com o pai de Dahlia depois que ela tinha, sei lá, seis anos. Ela contava essa história para ninguém saber que ela batia nos filhos.
— É o que Dahlia te contou?
Mel fechou a cara.
— É o que eu ouvi no dia da briga. Surra mesmo, de cinto. E Dahlia não reclamava, não gritava, não chorava. Ela não dava isso para a Juliet, então Juliet batia mais. Só ficava quieta, esperando acabar.
— Mais alguém sabe disso?
— Minha mãe. Uma vez Dahlia foi pedir para ela cuidar dos machucados. Um deles estava em carne viva.
não sabia mais o que anotar. Ariana saberia lidar melhor com isso.
— Você acha que o namorado pode ter algo a ver?
— Não sei — ela deu de ombros — Só sei que foi a última vez que vi Dahlia na vila. Ela se mudou no dia seguinte. Achei que tinha fugido de casa, mas quando a Sra. Ramsay falou que ela tinha se mudado, fiquei aliviada. Seria melhor para ela.
Não diga nada. Não fale.
— Você sabe se ela está morando com parentes?
Mel ficou parada, como se tivesse dado curto-circuito internamente.
— Ele trabalha na Miller’s Deli. O nome dele é Edmund ou Edward. Por favor, encontrem Partick logo.
Ela ficou de pé e saiu da sala andando devagar. não a impediu. Tinha feito tudo errado.

Sala de Interrogatório 3.
— O senhor sabe o que está fazendo aqui.
O pastor Jonas Himmerman com certeza tinha mais de cinquenta anos, mas não parecia. Não tinha barba, mas sua pele era bem cuidada, hidratada, e seus cabelos ainda eram pouco grisalhos, e estavam úmidos e penteados para trás. Ele tinha os olhos baixos, calmos. Sua voz era tão baixa que dava raiva.
— Sim. Uma de nossas fiéis morreu. Helen.
Marla clicava a caneta repetidamente. Himmerman olhava-a com paciência. Lembrava seu pai.
— Sim. Soubemos que Helen viria para a delegacia quando desapareceu.
Ele franziu o cenho.
Enfie essa caneta no olho dele. Nesse olho cínico.
— Há registros?
Marla abriu a pasta do caso de Helen e pegou as fotos de câmeras de um restaurante perto da igreja. As fotos mostravam claramente Helen, com seus cabelos compridos e castanhos e sua mochila laranja com desenhos feitos à caneta, descendo de um ônibus e andando na direção da igreja com o rosto fechado.
Himmerman inclina o corpo para frente, mas não move mais nada.
Uma garota foi assassinada. Não foi uma briga de trânsito, um mal-entendido. Uma garota foi assassinada.
Seu filho da puta.

Marla fechou os olhos. Cerrou e relaxou os punhos.
— Não há provas de que ela estava indo para a delegacia.
— Ela estava. Temos confirmação.
— De uma adolescente?
— De uma adolescente. O senhor sabe por que está aqui.
Marla lançou a foto de anuário de Helen na direção de Himmerman.
— Quando foi a última vez que você viu...
Ele ergueu o indicador. Instintivamente, Marla interrompeu-se. Era uma mocinha obediente. Sabia a hora de parar de falar.
— “Você” não.
— Quando foi a última vez que o senhor viu Helen Suskind?
— Helen foi falar comigo sobre um mal-entendido.
Não diga nada.
— Que mal-entendido?
Ele franziu o cenho, mas sorriu.
— Pelo mesmo mal-entendido que me fez estar aqui.
— Você não está aqui por mal-entendido! — Marla bateu na mesa.
Ouviu o apito do interfone dentro da sala de interrogatório. Strike 1.
Marla pegou o copo de café e bebericou. Já estava frio. Não conseguia ver Felicia por detrás do espelho falso, mas sabia que ela estava lá.
Aya.
“Ele aceitou dar depoimento para colaborar. Ele não é problema nosso.”, Felicia disse.
Ele não é problema nosso.
— Helen foi falar comigo nesta noite — ele apontou para uma das fotos — Ela estava irritada. Infelizmente, uma história se espalhou. Tínhamos acabado de finalizar uma cerimônia. Ainda havia fiéis no templo. Foi uma cena.
— Que horas Helen chegou?
— Por volta das sete e meia. Talvez um pouco depois.
— E ela procurou o senhor?
— Ela chegou fazendo escândalo. Sempre foi esse o jeito dela. Helen sempre gostou de chamar a atenção.
Marla olhou para o espelho, para si, para Felícia por trás dele. Prendeu a respiração.
Ele não é problema nosso.
— E o que ela disse?
— Ela disse que eu tinha feito algo com uma menina do abrigo. Que eu havia machucado ela. Deve ter ouvido isso de alguém.
— Sonya. O nome da menina é Sonya.
— Não sei quem é Sonya.
Marla apertou o copo de café e jogou-o na lixeira no canto da sala. O pastor não reagiu. O apito do interfone tocou novamente, ressoando pela sala toda, entregando o ponto ao pastor.
Strike 2.
— Acalmei a menina, disse que devem ter me confundido com alguém. Mas ela não mudou de ideia. Queria vir falar com vocês.
— Helen nunca fez uma denuncia aqui. Não ligou para cá. Não chegou aqui.
— Eu tentei acalmá-la, mas como ela não queria mudar de ideia, também não insisti do contrário. Assim como não insisti quando seus colegas me trouxeram para cá. Deus está comigo, pois eu sei a verdade. João 8:32, “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”.
Seu filho da puta. Torcendo a palavra de Deus a seu favor.
Seu filho da puta.

— Por isso você não resistiu.
— Não tenho por quê. Vocês saberão que são denúncias infundadas. E eu os perdoarei. Deus os perdoará.
Marla comprimiu os lábios com força. Cerrou os punhos e sentiu as unhas marcarem a palma de suas mãos.
— E Helen? — ela perguntou.
— Ela disse que faria a denúncia. Que faria a coisa certa. Estava chovendo, um dos fiéis se ofereceu para dar uma carona a ela.
O coração de Marla acelerou. Sentiu que iria infartar.
— Alguém saiu com Helen?
— Ele ofereceu uma carona.
— Ele sabia que ela vinha fazer uma denúncia na delegacia?
— Não. Ela chegou fazendo cena, gritando coisas incoerentes sobre eu ter machucado uma menina. Quando falei com ela, foi em particular, na antessala no altar. Não tinha ninguém por perto.
— Ele se ofereceu sem saber para onde a levaria?
— Sim, acredito que sim.
— O senhor sabe o nome dele?
O pastor Himmerman demorou-se. Achou que ele estava gostando daquilo. Precisavam dele. Dependiam dele.
— Jacob Pierce, pelo que me lembro. Ele disse que era motorista de táxi.
— Pode nos dar uma descrição dele?
Himmerman começou a pensar, olhando para cima. Marla tentava controlar o impulso de pedir para ele falar logo. Clicava a caneta repetidamente.
— Cabelos escuros e compridos, na altura do queixo. Não usa barba, tem olhos azuis. Entre trinta e cinco e quarenta anos, talvez?
— Jacob?
— Sim. Jacob Pierce.
Marla anotou o nome no papel. Olhou para o vidro novamente e ficou de pé. Alguns segundos depois, Felicia abriu a porta e agradeceu o pastor Himmerman. Ele ficou de pé, acenou com a cabeça e saiu.
Ficaria um dia preso, enquanto a unidade de vítimas especiais investigaria a acusação anônima. Marla não saberia o que viria depois.
Não era problema deles.
— Você vai atrás desse Jacob Pierce? — perguntou Felicia, com as mãos na cintura enquanto outro policial encaminhava Himmerman para a cela especial.
— Acho que ele pode ter feito algo com Helen para encobrir o pastor.
Felicia deu de ombros.
— Talvez. Dê seguimento a essa investigação. Me dê atualizações amanhã. Agora, preciso ir para casa ver se meu filho estudou para a prova de ciências.
Marla pediu licença e passou pela porta.
— Não leve isso tudo para o coração. Você não pode salvar o mundo inteiro. Foque no que você consegue fazer.
Fecharam a porta da sala e apagaram as luzes.

Ao fim do dia, massageava sua cicatriz com cremes enquanto espalhava os relatórios do caso de Juliet Ramsay em cima de sua cama. passara em sua casa para entregar uma cópia do interrogatório de Mel Cortez, e agora, as coisas pareciam se encaixar um pouco melhor.
Dahlia tinha um namorado, e Juliet foi contra esse namoro.
A televisão estava bem alta no andar debaixo. Isso significava que Tracy já tinha dormido. E não podia descer e desligar, não apenas porque isso a acordaria, mas também porque teria que descer as escadas sozinha. Patrícia tinha indicado repouso, e tinha que obedecer.
Dahlia desapareceu pouco depois da briga com Juliet.
Tracy estava dormindo no quarto que era de Pat, mas dormia no sofá com frequência. Verificou o relógio de cabeceira. Dez e quinze da noite.
A casa dos pais de Juliet estava abandonada.
se levantou da cama devagar e foi até a mesa no canto do quarto, que usava para estudar antes do concurso. Nem teve tempo de usá-la para trabalhar. Pegou o discman e o CD que pediu para Patrícia comprar antes de passar na casa dela. Abriu o plástico do CD e observou a capa. Tirou o CD da embalagem e colocou-o dentro do discman, e apertou o “play” enquanto colocava o fone no ouvido. Quando chegou novamente à cama, a música já começava a tocar.
Releu o relatório de Mel. A voz de Marvin Gaye a ajudava a se concentrar.

— Vou pedir comida japonesa. Você quer?
Claire entrou no escritório sem bater. olhou-a por cima do ombro, sem virar o corpo.
— Sim, o mesmo que você.
— Está trabalhando? — ela perguntou.
— Terminando de revisar algumas coisas.
— Tudo bem. Só não coloque a música muito alta. Preciso verificar alguns prontuários.
Ele assentiu, mas não respondeu mais nada. Claire saiu batendo a porta com cuidado. colocou a transcrição do depoimento dos três jovens em cima da mesa, passando a mão pelos papéis devagar enquanto relia trechos de cada depoimento.
Não conseguia unir as informações. Algo estava faltando. Parecia ter vários amontoados de peças de quebra-cabeças unidos, formando partes da grande imagem, mas não conseguia conectá-los para formar a foto maior.
A arma foi encontrada em uma lixeira a dois quarteirões de distância de onde Jimmy foi encontrado. O exame balístico confirmava que aquela era a arma do crime.
Só duas pessoas tinham os registros de armas iguais aos da arma encontrada.
ficou de pé e ligou o aparelho de som. Passou os olhos pelos CDs ao lado, recentemente tocados. Nenhum chamou sua atenção. Não queria ouvir tudo que tinha ouvido tantas vezes.
Diminuiu o volume depois de ter selecionado um deles. Claire estava no andar debaixo estudando seus prontuários médicos, e não ouviria nada. Mas, por alguma razão, não queria que ela ouvisse nada. Tinha comprado o disco no dia anterior, furtivamente, escondendo-o por entre compras de supermercado e guardando-o em seu escritório antes de Claire questionar.
Tinha tido muitas opções, mas escolheu o com a capa mais atrativa. A voz rouca de Bowie não era exatamente relaxante, mas algo o acalmava. Esperava que, em algum lugar da cidade, estivesse ouvindo Marvin Gaye e pensando nele, na mesma medida em que ele ansiava pelo dia seguinte para contar a ela o que achou do disco.

levantou da cama e foi para a varanda da casa. Pegou um cigarro e acendeu-o enquanto olhava para a lua. Sentia-se observado por ela, via-a inquisidora e julgadora.
Não tinha se arrependido. Não era essa a palavra mais adequada. Só se sentiu aliviado por ter deixado aquilo acontecer de uma vez e ter se livrado da vontade. Queria que a garota fosse embora de uma vez. Qual era mesmo o nome dela? Tonya? Tanya?
Ela dormia no sofá. Fez o que tinha que fazer lá mesmo, na sala. Não subiria no quarto com uma pessoa qualquer. Na cama que Ariana dormia todos os dias.
Não olhou para ela. Colocou-a de costas o tempo inteiro, e quando ela tentava virar para ele, a mantinha sem olhá-lo.
Olhar para ela tornaria aquilo uma traição. Seria como admitir para si mesmo que deveria seguir em frente. Mas isso significaria coisas demais. Não poderia deixar Ariana para trás.
Foi por causa dele que aquilo tudo começou.
Lembrava-se disso todos os dias. De quando pegou os documentos com Julie. Quando levou para casa, pegou reportagens nos jornais e deixou tudo em cima da mesa de centro da sala, aquela mesma mesa que, algumas horas antes, deitou a jovem para se saciar. Lembrava-se de comentar com Ariana como era estranha a morte de Francesca
Santori no Vale Heulen, com o corpo deixado no meio da clareira, seus cabelos pretos voando como redemoinhos. Gregory Carlisle, junto a ela, pendurado em uma árvore.
Ariana olhava para a foto de Francesca. Uma jovem linda.
Foi assim que tudo começou.
A jovem ajeitou-se no sofá. tragou mais uma vez, em direção à lua. Queria acabar aquilo o quanto antes.

But I know when I die my soul is damned…




Continua...



Nota da autora: Oi, gente! Vocês não têm ideia de como eu estou feliz em ter voltado a escrever essa história. Já já vai fazer 8 anos que terminei American Idiot e eu já estava com saudades. Voltar para Longview depois de tantos anos é um desafio, mas eu sempre soube que essa história ainda não tinha acabado. Espero que estejam gostando de American Psycho e fiquem à vontade para comentar. Respondo todos em todas as redes e estou doida pra ver as teorias sobre os casos. (:



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