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Última atualização: 28/03/2024


No verão de 1886 começaram as tempestades de neve. As colheitas fracassaram, as pessoas morreram de fome. Milhões fugiram para o sul. Eles encontraram apenas caos, fome e morte. Nos confins do norte, rico em recursos, o Império Britânico iniciou a construção de geradores de calor, onde alguns escolhidos poderiam sobreviver a salvo do caos da civilização em ruínas. Eles ficaram sem tempo. Uma tempestade de gelo apocalíptica veio do sul, devorando tudo em seu caminho. As pessoas fugiram em pânico. Alguns conseguiram cruzar os mares e chegar ao local de um gerador apenas para encontrá-lo congelado. O gerador foi projetado para alimentar uma cidade capaz de resistir ao fim do mundo... Cabe a nós construí-lo. — Demo Frostpunk (tradução livre).

Parte 1 — Os que vêm

Capítulo 1

Papai passa pela porta semiaberta com o corpo encolhido e fecha com os pés. Suas mãos estão na frente do rosto, fechadas uma na outra, e ele as assopra disfarçadamente, fingindo tossir. Ele tosse cada vez mais a cada dia. Eu posso ouvir o vento uivar do lado de fora, mas hoje parecia mais baixo. Deixo o pedaço de madeira em cima da bancada, que cai em um som surdo.
— Como está lá fora? — Luke pergunta. Amarra as botas ao meu lado, mas de costas para mim. A voz está baixa, em tom de conformismo. Ele pergunta pelo hábito.
— Frio.
Ao dizer isso, ele sorri. Eu sorrio de volta, mas sei que Luke não. Nesse horário, o vale já faz sombra por cima da nossa casa, mas a luz da lâmpada central projeta a sombra pela janela — que, ironicamente, não tem como ser aberta. É só pela estética, ou por uma lembrança melancólica do que temos em Essex.
— O turno da serraria foi calmo? — pergunto, enquanto tiro o avental.
Papai dá de ombros. Senta-se ao lado da porta e suspira, cansado, mas sei que ele sorri, porque ele sempre sorri.
— Hoje foi. Fui o último a sair do meu turno.
Ele coloca a mão no bolso do casaco e coloca algo em cima da bancada.
— Trouxe um presente para você.
Quando ele abre a mão, deixa um bloco de madeira já polida. Papai abre um sorriso pequeno, esperando minha reação.
— Já tinham polido?
— Eu mesmo serrei. Iam jogar essa parte na carvoaria, porque ficou pequena demais — ele faz uma pausa com o som da bota caindo no chão —, mas eu sabia que era do tamanho perfeito para você.
Sorrio em gratidão.
— Ninguém viu você pegar?
Ele dá de ombros.
— Vão fazer escândalo por causa de um bloco de madeira do tamanho da minha mão? Já foi época. Não se preocupe. Doutor Robert já viu os recentes?
Ele aponta para pedaços de madeira que andei trabalhando e deixei no canto da bancada. O rosto de papai está avermelhado pela proximidade com o fogo. Os cabelos castanhos estavam compridos como já estiveram antes, mas poucas vezes. Os olhos estão baixos e cansados, mas ainda arqueia um pouco os lábios.
— Ainda não fiz um protótipo bom o suficiente — respondo com desânimo.
Luke bufa atrás de mim. E bate o pé no chão para ajustar a bota.
— Está indo para o Hospital?
— Preciso pegar minha lâmpada. Já te acompanho.
Luke fica de pé, bem mais alto do que eu. Ele bate algumas vezes na roupa já suja, o que faz um pouco de poeira desprender.
— E seu avô? — papai pergunta para Luke.
Meu irmão aponta para o fundo da casa com o polegar, sem olhar para meu pai.
— Dormindo. Só acordou para o almoço.
— E você foi com ele para a Cozinha Central?
Luke só assente. Ele age como se falar gastasse muita energia, como se responder fosse trabalhoso. Eu e papai sempre entendemos que Luke não responder significa que "sim".
— Ele não está mais com febre — eu digo. — Desde o almoço, ele só melhorou. Está dormindo agora.
Papai olha para o fundo da casa sem paredes. Meu avô está encolhido no canto da casa, usando o cobertor do meu irmão e meu por cima dele. O sorriso de papai diminui um pouco.
— Deixe seu avô na casa de repouso depois do seu turno — ele diz para Luke, e depois olha para baixo, para tirar sua lâmpada e apagá-la com um sopro. — Mande a Robert meus cumprimentos.
Coloco minha própria lâmpada em volta do corpo e a acendo com um palito da lareira. Luke finge uma tosse para me apressar, já com sua lâmpada acesa.
— Mandarei. Até mais tarde, papai.
!
— Só tire o Luke daqui — meu pai diz, rindo.
Ando até a porta com pressa, mais pela necessidade de fechá-la de novo. Luke fecha a porta atrás de nós e arruma a lâmpada na frente do corpo, com uma chama pequena acesa dentro dela. A tira de couro que a segura está em volta do pescoço e ombro de Luke, com a lâmpada na frente do quadril. Houve uma época que a lâmpada dele precisou ser ajustada para não se arrastar no chão. Hoje, precisamos aumentar o tamanho da tira de couro, para que a lâmpada não virasse uma bolsa de ombro. Luke herdou o corpo que meu pai tinha na juventude: ombros largos, braços grandes e um rosto naturalmente apontado para cima — o que, com o tempo, meu pai se acostumou a abaixar. Mas Luke tem vinte e um anos, e viveu a maior parte da vida durante o Grande Frio, então sei que isso vai demorar a acontecer com ele. Com meu pai, aconteceu logo depois de minha mãe morrer.
— Como está o combinado com o Doutor Robert? — ele me pergunta, um pouco depois de termos começado a andar na direção do Gerador.
Olho para Luke, que já está rindo de mim com deboche. Dou um soco em seu braço que nem o faz perder o equilíbrio.
— Combinado?
— Bom, não deixa de ser um combinado.
Dou de ombros. Conforme nos aproximamos da praça central, fica mais confortável, a ponto de sentirmos as roupas pesarem. Esse é o período mais quente do ano e, ainda assim, o mais quente que chegamos é -20°.
— Acho que o governo está esperando a realocação de casas. Aí podem se preocupar com outras coisas.
O rosto de Luke se fecha de novo.
— Estão realocando hoje?
— Acho que terminam amanhã. Por isso deixaram vovô ficar lá conosco essa semana. Não é como se nossa casa fosse uma das mais desejadas.
Luke olha para trás, para a longa rua que precisamos andar para conseguir chegar ao Gerador, na praça central. A casa em que moramos há dois anos é uma das últimas — logo, uma das mais distantes do Gerador, e mais fria. Instalaram um Ponto de Vapor próximo de nós há alguns meses, mas só deixam ligado durante o turno de trabalho. Não é uma das casas mais desejadas, então, desde que fomos alocados para lá — a pedido de papai, para poder ficar mais perto da serraria —, moramos só a nossa família.
Mas meu avô tem que voltar para a Casa de Repouso. E, se somos só eu, meu pai e Luke na casa, isso quer dizer que podemos receber mais gente. Porque a casa não é nossa.
— Ainda vamos ser só nós três. Ouvi dizer que a maioria é de qualificados. Esses sempre ficam mais perto do Gerador.
Luke dá de ombros e sei que ele não acredita nisso. Quando nos aproximamos do Gerador, está quente o suficiente para termos vontade de apagar nossas lâmpadas e tirar uma camada de roupas. Assim como nós, todos que passam pelo Gerador diminuem a velocidade de seus passos, se dando mais alguns segundos de conforto no calor. Hoje diminuíram a potência dele um pouco, já que a temperatura está um pouco mais agradável do que o de costume, então não há por que desperdiçar carvão com isso.
— Vamos para a Cozinha juntos hoje? — pergunto, já com meus olhos focados no Hospital. Desde o último surto de doentes, o prefeito Hathorne demandou a construção de mais duas Clínicas. Como já estávamos com oito, todas próximas uma da outra, assim que o surto passou, foi ordenado que todas elas fossem transformadas em uma única, com fachada de madeira e fundos de tendas. Agora, carinhosamente apelidamos a aberração de Hospital.
— Acho que devo tentar encontrar . Faz tempo que não comemos juntas.
— Vocês têm lugar especial na Cozinha — Luke murmura, com certo rancor.
— Ela tem. Eu não.
— Robert tem.
— Robert tem. Mas ele é só meu instrutor.
Luke ri de novo com o mesmo deboche, mas, dessa vez, o acompanho. "Só" meu instrutor.
Me despeço de Luke com um aceno e nossos caminhos se separam quando nos aproximamos do Hospital e ele deve seguir adiante para as minas de carvão. No fim da rua do quadrante do hospital, há um bombeador de carvão e uma mina, onde Luke trabalha com extração de carvão há anos. Ele, infelizmente, não teve a mesma sorte que eu.
O Hospital é o primeiro prédio na frente do Gerador deste quadrante. É, por uma necessidade essencial, um dos prédios que mais recebe calor e carvão para aquecimento interno. A porta de madeira é grande, mas leve, e foi o primeiro prédio que aplicamos isolamento térmico. Assim que cruzo a porta, cumprimento meus colegas e ando a passos largos até a tenda, onde sei que já sou esperada. É um dos meus ocasionais atrasos, mas este foi notificado pelo tratamento de meu avô.
Assim que entro na tenda, vou até a bancada de materiais para pegar meu avental e minhas luvas, e ouço alguém passar por mim e murmurar:
, paciente 21.
— Estou indo.
Apago minha lâmpada e a penduro no gancho de aventais. Visto o avental e as luvas, e amarro meu cabelo com uma fita enquanto ando a passos largos em direção à maca do paciente 21.
Reconheço de imediato quem está na frente do paciente. Diferente de mim, ele veste um tipo de jaleco marrom, e seu cabelo curto e preto está batido, recém-cortado. As pontas se ondulam de um jeito que não lembro de ter visto antes. Assim que alcanço a maca, ele me dá o espaço para olhar para o homem deitado.
— o médico me cumprimenta, ao que só respondo com um aceno. — É uma amputação.
Olho para o homem deitado, que geme baixo. Ele tem as mãos perto do corpo, os braços pesados, o rosto com olhos semicerrados. Parece estar delirando — algo que, infelizmente, não é incomum.
— Qual região?
— Pé, e parte do tornozelo.
O médico começa a dar passos para trás, abrindo espaço para que eu possa verificar. O pé do homem está completamente azul, e o tornozelo parece prestes a ficar irrecuperável. No pé da maca já há uma serra e a seringa de anestesia.
O pé azul do homem parece pulsar, mesmo que eu saiba que é impossível. Minhas mãos não conseguem responder. Ele sequer olha para mim — não consegue, só murmura de dor. Sinto minha respiração ficar mais rápida e a única coisa que penso é nele.
Doutor Robert.
Dou alguns passos para trás, o que sei que é condenável. Deixar o paciente sozinho prestes a ser amputado é uma das primeiras coisas que somos instruídos a não fazer. O nível de pânico aumenta tanto que, uma vez, logo que começamos a implementar amputações como política de saúde, um homem implorou para não ser amputado, um médico acatou e o paciente morreu com uma grave infecção dias depois. A infecção chegou a atingir os outros moradores da mesma casa que ele, mas conseguimos curar os outros doentes. Desde então, a política passou a ser realizar a amputação e encaminhar o paciente para a Casa de Repouso.
Foi um plano implementado por Robert Murphy, ainda no início de sua carreira, e é por isso que Robert é um dos médicos mais respeitados desse centro de saúde.
— Não sei se consigo fazer isso — murmuro.
Robert ergue o rosto e olha para mim. Seus olhos são azuis como se imagina que a cor azul deve ser, os mais límpidos que podem ser.
— A amputação dele é emergencial, — ele me diz com a voz baixa. Soa calmo e parece tentar fazer o mesmo comigo.
— Nunca fiz uma amputação sozinha.
— Você fez mais de 10 amputações com assistência. Na última, você me mostrou o ponto de corte. — Ele sorri e faz menção de tocar minha mão, mas não chega a me alcançar. Seu sorriso é reconfortante, e sei que ele está ciente disso. É o sorriso "de pacientes" que, de todos os médicos do Hospital, Robert é quem melhor sabe fazer: o sorriso para acalmar. Ele não sabe disso. Mas eu sei.
— Não sei se consigo fazer isso sozinha.
— Vá para a tenda de amputação. — Ele me aponta a tenda com a cabeça, cuja entrada fica imediatamente atrás da maca 21. — Vou estar aqui se precisar de mim. Vou agir como se precisassem de mim imediatamente ao lado da tenda.
Tento sorrir como Robert sorri, mas ainda preciso de muita experiência — muitas amputações — para conseguir fazer algo assim. Viro-me para a tenda de amputações. Sei que é inevitável aprender a fazer isso sozinha de uma vez: não se sabe quando teremos uma emergência, superlotação ou uma nova tempestade.
Na última, quando estávamos vivendo sob -70°, fizemos cinco amputações por dia durante uma semana inteira.

— Ele não é tão feio — sussurra .
Dou um tapa fraco no ombro dela. Ela olha para trás por cima do ombro, para onde Robert está, recebendo informações de alguma assistente. Puxo ela de volta para mim, para andarmos mais rápido até a Cozinha.
— O quê? Estou falando sério. Podia ser pior.
Viro os olhos.
— Sei que ele é bonito. Essa não é a questão.
— Bem, ele salvou sua vida.
— Então eu devo me casar com ele?
dá de ombros com as sobrancelhas erguidas.
— Não. Mas ele salvou sua vida. Você devia falar isso com o seu pai.
Desconverso. Sei que não tem o que — nem por que — falar nada com meu pai. Ele teve seus motivos para fazer isso.
— Sério, insiste. — Se você não quer fazer isso, você deveria falar com o seu pai.
— Não acho que estamos em condição de fazer grandes escolhas. — Aponto para o Gerador com a cabeça, que está bem próximo de nós.
— Você quer estar casada com um homem tão mais velho quando voltarmos para Essex?
Não quero falar para que não acho que vamos voltar para Essex. Não existe mais Essex como conhecíamos, e não acho que vá existir.
— Você vai votar hoje? — ela pergunta, depois de perceber que fiquei calada tempo suficiente para mudar de assunto.
— Tem votação hoje?
vira os olhos e ri. Abrimos juntas a porta da Cozinha, que nesse horário está cheia, perto da hora de fechar. Dizemos nosso número de identificação na entrada e a funcionária faz alguma anotação com carvão para assinalar que já fizemos as duas refeições do dia.
— Chegaram refugiados hoje de manhã. Um grupo pequeno, de Winterhome.
Faço uma careta de preguiça.
— Precisamos votar por causa de um grupo pequeno? Não podem usar o resultado da eleição passada?
— Bom — diz, pegando uma das tigelas de ração. — Você pode simplesmente não votar.
Ergo as sobrancelhas. É verdade. Posso simplesmente não votar.
Nem todo mundo vota. Na verdade, a maioria não vota. Eu mesma votei poucas vezes — meu irmão, acho, nunca chegou a votar. Meu pai, por outro lado, votou em todas as eleições. E, claro, sempre votou pela entrada dos refugiados. Nem sempre ele era voto da maioria, mas seu voto nunca mudou.
Eu e comemos rápido. A comida está terrível, como sempre, mas conseguimos recuperar alguns vegetais na estufa, o que deixa o prato um pouco menos intragável. A carne caçada está dura. Não reclamamos porque ter carne na nossa tigela já é uma benção.
— Vai voltar para a Oficina? — pergunto, assim que abrimos a porta para sair. Há poucos ainda no restaurante. Ainda tenho algumas horas a cumprir no Hospital, e imagino que Luke já esteja indo para casa.
— Hoje já acabou nosso turno. Meu, pelo menos. — Ela dá de ombros.
— Essa sua regalia acaba mês que vem.
— A sua regalia de fugir do Robert ia acabar mês passado.
Olho para ela com o cenho franzido.
— Eu não queria que tivéssemos tido aquela crise no Hospital.
— Realmente. Não dá para casar pessoas que estão trabalhando tanto.
Ouvir dizer "casar" e em uma frase tão sarcástica me dá um frio na espinha. Mas não temos tempo para desenvolver a piadinha dela. Quando passamos pela praça central, perto do Gerador, há vários Guardiões em volta de um pequeno grupo de pessoas. Não consigo contar quantas são, mas deve ser um número menor e próximo a 10. Todas estão ajoelhadas, encolhidas, não pelo frio, mas por o que quer que os Guardiões estejam gritando para eles. Eles ouvem de cabeça baixa, todos, exceto um. Este está olhando diretamente para mim.
Ele olha para mim como se me cobrasse algo. Como se me julgasse, como se desaprovasse algo em mim. Sinto angústia. Seus cabelos estão úmidos, antes com neve, agora possivelmente pelo suor. Seu rosto está apontado para baixo, mas seus olhos olham para mim e me seguem enquanto ando. também está observando os refugiados. Um Guardião segura os cabelos do rapaz e o faz olhar para o chão, mas ele resiste. Me obrigo a parar.
Seus olhos têm raiva. Não de mim, mas dos Guardiões ao seu redor. Uma raiva de resistência. Uma raiva que não conheço.
Ele olha para o chão, por fim. Consigo vê-lo sorrir com um sorriso pequeno. Parece satisfeito com eu ter visto ele me olhar. Como se tivesse passado sua mensagem.
— Talvez não valha a pena votar mesmo — diz, por fim, quando nos aproximamos do Hospital. Ela ainda não olha para mim.
— É. Talvez não valha — digo. Acho que percebeu que não falo mais com tanta firmeza.

— Como foi?
Ouço Robert aparecer atrás de mim na área de higienização do Hospital. Minhas luvas estão encharcadas de sangue e preciso deixá-las limpas porque, logicamente, é difícil conseguir secá-las em tempo suficiente.
Giro o corpo para poder vê-lo. Ele tem um sorriso pequeno, quase envergonhado.
— Tudo certo. A anestesia o fez dormir.
— Isso é bom.
Ele fica alguns segundos em silêncio, o suficiente para me deixar desconfortável.
— Eu sabia que você conseguiria fazer sozinha — completa.
Viro o rosto novamente para a bacia com água onde limpo as luvas. Não há ninguém aqui além de nós dois, o que aumenta mais ainda meu desconforto.
— Preciso deixar tudo limpo. Logo a Cozinha vai fechar.
— Não se preocupe. — Ouço ele mais próximo, perto das minhas costas, com sua voz cada vez menos firme. — Posso... Posso deixar material separado para você. Tome seu tempo.
— Está tudo bem. Preciso sair.
Ouço ele parar atrás de mim. Sua mão começa a ser esticada para tocar meu braço e quando sinto seu toque, estremeço. Robert raramente me toca, e a cada vez que ele faz isso, não me parece menos estranho.
— Pode ficar mais um pouco.
Não soa como uma concessão. Sei que Robert quer conversar. Sei que fujo disso há meses. Mas... Não consigo evitar.
Giro o corpo e Robert está muito perto de mim. Ele não é tão mais alto que eu, então seu rosto e o meu estão quase na mesma altura. Ele parece estar tão hesitante quanto eu. Não diz nada, não sorri. Tem apenas seu rosto um pouco tenso, mas esse é o mais próximo que ele já esteve de mim enquanto estávamos a sós.
— Eu...
— Podemos ir para o bar depois do seu jantar.
Não é um convite. Há pressão em sua voz.
— Doutor...
Nesse momento, ele ri. Dá um passo para trás, e solto a respiração.
— Por Deus, . Você sempre vai me chamar assim?
Rio, forçando naturalidade, mas não sei dizer se ele nota como estou nervosa. Não quero estar aqui, falar sobre isso, estar nesse momento com ele.
— É o hábito.
Ele está incomodado com isso. Sei que está. Mas não sei se ele tem a mesma impressão que eu, que isso não parece certo. Não sei se seu incômodo é por eu chamá-lo de “doutor” ou por, claramente, não sermos próximos. Não sei se está incomodado ou irritado.
A cortina da área de higiene dança e é aberta por uma criança. Assim que a vejo por decima do ombro de Robert, meu corpo desarma em alívio. Espero que ele não tenha reparado, mas ver Henry ali me faz pensar que ele ouviu meu desespero.
!
Robert dá dois passos para trás e abaixa o rosto. Começa a coçar a sobrancelha, afastando-se de mim aos poucos. A última vez que ele tentou fazer isso não tinha ido tão longe quanto essa.
— Henry?
— ele diz, ofegante, enquanto se aproxima de mim. — Seu pai está procurando você.
— Aprendizes não são permitidos aqui.
A voz de Robert é firme. Ele olha para Henry com um olhar duro e espera que eu o endosse na repreensão. Mas não vou fazer isso. Não só porque quero sair dessa situação, mas também por meu pai saber o quanto eu valorizo meu trabalho. Se ele está aqui para falar comigo, é importante.
— Com licença, doutor — murmuro, deixando as luvas do lado da pia para secar. Henry faz uma careta para Robert. Cogito repreendê-lo enquanto andamos para a entrada do Hospital, mas talvez seja melhor deixar Robert ciente.
Meu pai é um homem calmo. Já enfrentamos nevascas, já vivemos falta de recursos, e ele nunca pareceu ter ficado sequer nervoso. Não à toa, ele é um membro do conselho, representante das Serrarias — único conselheiro a já ter sido de outra área, no caso dele, de Exploradores.
Isso é o que me choca quando o vejo totalmente inquieto na frente do hospital.
Meu pai passa as mãos pelos cabelos castanho-escuros, e vejo a nuvem de vapor sair de sua boca repetidas vezes. A última vez que o vi hiperventilar foi quando minha mãe foi internada nesse mesmo hospital. Alguns Guardiões estão em volta dele, impedindo-o de entrar no hospital, principalmente nesse estado. Ele parece falar coisas para os guardas, para tentar entrar. Algo como “é importante”.
— Pai! — digo, quando me aproximo da porta.
Papai olha para mim com exasperação em seus olhos e as bochechas rosadas pelo frio. Nesse horário, ele deveria estar na Serraria.
— ele retruca, passando por entre os Guardiões. Eles parecem fazer um movimento para impedi-lo, mas desistem no meio.
Quando chega à minha frente, ele hesita. Algo em mim suspeita que seja pela presença de outros aprendizes, talvez de Henry, ou dos guardiões. Mesmo que ninguém esteja prestando atenção especial em nós dois, ele parece desistir.
— Hoje vou chegar um pouco tarde em casa. Da reunião do conselho.
Franzo a testa.
— Tudo bem — retruco, um pouco incerta do que meu pai espera que eu responda.
— Depois de votar, não se esqueça de verificar seu avô, ok?
Espera.
Pisco duas vezes.
— Depois de votar? — repito.
— É. Veja se seu avô está bem.
Olho para o fundo dos olhos castanhos de meu pai. A neve está acumulada em seus cílios, e seus cabelos estão úmidos. Se tem algo neles, acho que seria um tipo de urgência.
— Ok? — ele repete.
— Ok.
Ele murmura “ótimo” e parece relaxar. Olha para mim e depois para Henry. Esfrega a mão nos cabelos bagunçados da criança e toma seu caminho de volta, por entre os Guardiões, que abriram espaço para ele ir para a casa do prefeito Hathorne, onde é a reunião quinzenal do Conselho.
— Era só isso? — Henry pergunta. — Aquele escândalo todo só por isso?
— Bom, é o meu avô — digo para ele, virando de volta para o Hospital. — Não é qualquer um.
Ele dá de ombros, inconformado.
— Achei que eu poderia ficar mais um tempo fora — diz, virando os olhos.
Olho para ele com o rosto sério.
— Bem lembrado. Você não devia estar no Abrigo?
— Não! — ele protesta, batendo um pé no chão. — Já acabou o meu tempo lá. Já estou cansado.
— Vou falar para a que o aprendiz dela está cansado.
— Por favor, não! — Seu rosto muda imediatamente para completo desespero. — Não, só foi um dia cansativo.
Bagunço os cabelos dele novamente, como meu pai, deixando Henry irritado de novo.
— Vá logo para casa, antes que eu tenha uma crise de bom senso.
Henry ri com um buraco nos dentes e sai correndo em direção ao quadrante das casas. Ando de volta para o hospital vagarosamente.
— Está tudo bem? — Robert me pergunta, quando volto para a área comum dos médicos. Ele parece genuinamente preocupado. Só assinto com a cabeça.
— Já deu o meu horário?
Ele hesita.
— Sim. Mas você não parece estar em condição para voltar para casa.
— Estou bem. Só tinha me assustado.
— Seu pai está bem?
— Sim. Só quero ir para casa.
Meu tom é um pouco mais irritado, e Robert percebe.
— Tudo bem. Devo ir logo também. Se precisar de algo, podem ir até a minha casa.
Abro um pequeno sorriso gentil para ele.
— Muito obrigada. Até amanhã.
Robert acena com a cabeça, mas não faz menção de me tocar. Agradeço mentalmente por isso, e imediatamente ele se torna uma pessoa agradável de novo.

Quando chego perto de casa, vejo os Guardiões se aproximando para a coleta de votos. Na frente de cada casa há uma pequena caixa que cada morador pega um pedaço de papel e anota seu número de identificação, e caso queira votar a favor da entrada dos refugiados, basta assinalar com uma bolinha preta de carvão — também deixado na caixinha para que votemos. Se não for a favor da entrada, é só deixar o papel sem nada além de seu próprio número. É comum que muitas pessoas não votem justamente por um voto negativo não ser “nada”; é como se não votar já fosse uma negativa, em vez de uma abstinência.
— Esperem! — grito, apressando o passo. Os Guardiões pausam por um segundo. Suas roupas surradas e pretas, com seus capuzes e grandes símbolos da Fé pendurados em seus pescoços são o principal motivo de qualquer um de nós, cidadãos comuns, congelarem.
— Ainda preciso votar.
— Já vamos iniciar a contagem.
— Eu posso votar até a hora da contagem — retruco, firme. Eles não parecem gostar disso, mas sabem que estou certa, então abrem passagem. Abro a caixa em frente à minha casa e pego um dos papeis em branco e o carvão. Escrevo meu número e penso um pouco.
Papai foi categórico. O que quer que ele quisesse, é necessário que eu vote. Eu não posso deixar esse voto passar, por algum motivo que eu não entendo, mas ele, sim. Qualquer instrução que meu pai tenha dado para mim e Luke até hoje foi correta, então a indicação dele também deve ser.
Então por que estou hesitando?
Os Guardiões começam a me olhar impacientes. Se não votar é a negativa, eu preciso fazer a bolinha preta. Por alguma razão, um pequeno grupo de refugiados deve entrar em New Sussex. Um motivo que eu não sei ainda, e talvez nem exista propriamente.
Mas deve existir. Se meu pai fez tenta questão de ir falar comigo, tem algum motivo.
Marco a bolinha preta e jogo de volta meu voto e o carvão na caixa.
— Pronto.
Os Guardiões pegam a nossa caixa com as caras fechadas, e dou as costas para eles sem olhá-los.

Depois de ir para a Casa de Repouso e ver como meu avô está — claro, ele está bem, o tão bem que lhe é permitido com uma perna amputada —, vou para a praça central. Se eu votei dessa vez, pelo menos é certo que eu assista à contagem.
Luke pareceu ter tido a mesma ideia. Assim que me aproximo da praça, ele é uma das únicas pessoas que reconheço, além de meu próprio pai, de pé perto do prefeito. não está aqui, Robert não está aqui, nem Henry — surpreendentemente — está aqui. E sei que também não está, porque ele não tem nenhum interesse em saber quantas pessoas entram ou deixam de entrar em New Sussex. Eu mesma normalmente não acompanho. Só hoje, penso, vai ser a exceção.
— Papai também falou com você? — pergunto baixo para Luke, quando me posto ao seu lado.
Ele assente com a cabeça, sem olhar para mim.
— Não entendi por quê. Mas ele foi insistente.
— Comigo também.
Prefeito Hathorne, vestindo sua conhecida roupa azul-clara e com os cabelos grisalhos no ombro, está perto de terminar a contagem. Há um Guardião de cada lado dele, um anotando em um papel com bastões desenhados de carvão o número de negativos e outro anotando o de positivos. Hathorne anuncia se o voto é positivo ou não sem dizer o número do votante, e um dos Guardiões anota o resultado.
Meu pai está de pé ao lado do prefeito, junto aos outros Conselheiros com as mãos atrás. É uma formalidade que herdamos de Sussex, de antes do Grande Frio.
O grupo de refugiados está atrás deles. São oito, todos aguardando a contagem bem próximos uns dos outros, sem se mexer muito. O rapaz que me olhou está entre eles, mas agora ele tem a cabeça baixa.
Bem, na hora que ele deveria ter a cabeça baixa, ele não tinha. Agora ele quer ficar assim?
Me distraio dessa pergunta quando Hathorne ergue a cabeça depois de anunciar o último voto que falta. Somos poucos cidadãos esperando o resultado — se chegamos a vinte, somos muitos —, mas estamos ansiosos.
— Votos contra? — Hathorne pergunta, com sua voz serena, mas firme. Ele olha para o Guardião à sua direita.
O Guardião toma alguns segundos e anota o número. Vira o papel para nós como forma de comprovar.
— Duzentos e treze.
Hathorne assente com a cabeça, confirmando a pontuação. Ele olha para o Guardião à sua esquerda e pergunta com o mesmo tom de voz de sempre:
— Votos a favor?
O Guardião também finaliza sua contagem, mas toma algum tempo. Estamos tensos, mas não mais do que os oito refugiados. Eles parecem estremecer pela ansiedade, e não pelo frio. Hathorne olha para o Guardião com seus olhos azuis fixados, cobrando a resposta. O homem termina, ergue os olhos e vira o papel para nós.
— Após recontagem, duzentos e vinte e cinco.
Nenhum de nós, cidadãos, reage. Porém, sinto que houve certo incômodo.
— Espero que papai tenha certeza ao que essas escolhas políticas dele estão levando — Luke murmura.
— Por maioria de doze votos — Hathorne anuncia, com ênfase no número de votos, como que para nós alertar de algo —, os refugiados são aceitos em New Sussex e serão designados às casas com menos de 10 habitantes.
Meu pai olha para mim de repente.
— Também espero — retruco para Luke, sustentando o olhar de meu pai.
Eu e Luke voltamos para casa em silêncio. Não sinto ânimo de trabalhar no meu projeto hoje. Só penso em ir dormir, enquanto a nossa casa é de fato só nossa.


Capítulo 2

O dia seguinte parece começar tarde. Quando acordo, não tem ninguém na casa além de mim. As camas do Luke e do meu pai estão feitas. Não consigo me lembrar da última vez que eles saíram sem que eu tivesse ouvido.
Alguém bate na porta. O fogo da lareira já se extinguiu há algumas horas, mas ainda está quente do lado de dentro. Olho pela janela com uma fresta aberta, mas não consigo reconhecer quem está do lado de fora.
? Você está aí?
Esfrego meus olhos. Levanto e abro o ferrolho da porta.
É Michel do lado de fora. Um dos antigos colegas do meu pai na época em que ele era Explorador. Agora, Michel fora um dos poucos convocados para ser um Guardião.
— Estava na patrulha? — pergunto, com a voz arrastada.
Michel está com o uniforme de Guardião, com o capuz pendendo sobre a cabeça cheia de cachos pretos. Agora estão começando a ficar grisalhos.
— Me mandaram confirmar quantas pessoas vivem aqui.
Engulo em seco.
— Só eu, Luke e meu pai.
Ele verifica um pedaço de papel e confirma com a cabeça.
— Vão indicar algum refugiado para morar aqui? — pergunto, fechando a porta atrás de mim. O ponto de vapor perto da nossa casa deixa o lado de fora agradável o suficiente para isso — ou seja, provavelmente a sensação térmica de onde estou é -15º.
— É possível. Chegaram poucos, dessa vez. E seu pai conhece um deles.
Franzo o cenho. Meu pai? Conhece um refugiado? De Winterhome?
— Não entendi.
Michel dá de ombros. Se ele sabe de algo, não é autorizado a falar. Ou só não quer. Michel nunca age do mesmo jeito quando está no turno de Guardião. Sempre fala pouco, tem a postura dura e a voz firme.
estava procurando por você.
— Estou no mesmo lugar. Ele foi para onde?
— Chegou a pouco tempo da caçada noturna. Deve estar indo para a Cozinha Central.
— Que horas são?
— Onze.
Abro mais ainda os olhos.
— É sério?
— Melhor se apressar, senão vai perder o horário do almoço.
Michel põe a mão no meu ombro.
— Não se preocupe, .
— Não estou preocupada.
— Estão falando que a carga dessa noite foi boa.
— A de ontem e de anteontem foi fraca, não foi?
— Fraquíssima. Disseram no Farol que teve uma tempestade na floresta, e muitos animais tinham saído. Mas, graças aos céus, tudo parece ter normalizado.
— Bom — corto o assunto, exatamente quando noto que Michel parece querer começar a falar d'A Fé de novo. — Vou encontrar . Hoje vou mais cedo para o Hospital.
— Mande meus melhores cumprimentos ao Dr. Robert por mim, — ele diz, virando de costas.
Não respondo, mas ele sabe que vou mandar. Não é como se eu tivesse muita opção.

é uma figura distinta na Cozinha. Se destaca pela sua altura, pelas roupas de Caçador que ele tanto gosta de vestir e pelos cabelos úmidos, depois de ter passado a madrugada na neve. Ele está do lado de fora, olhando em volta. Quando me vê, vejo seu sorriso abrir.
— Achei que tinha esquecido de mim — ele fala.
Viro os olhos e dou um empurrão em seu ombro.
— Já comeu?
— Estava te esperando.
— Pode esperar mais dez minutos?
comprime os lábios. Tem bastante gente à nossa volta, e de onde estamos, conseguimos ver o Hospital. Ele olha ao redor e, sem hesitar, segura minha mão e me leva para os fundos da Cozinha, onde os Caçadores fazem o descarregamento de carne crua dos animais. É uma área restrita e, a essa hora, já pouco frequentada. É nosso lugar ideal.
Assim que nos afastamos o suficiente da entrada, me puxa pela mão e me traz diretamente para perto de seu corpo. Seu peito está quente e sua respiração bate no meu rosto. Olho para seus olhos e para seu pequeno sorriso. Ele me beija com o hálito quente. O gosto de seus lábios é algo que nunca senti antes. É como sentir o gosto do mundo de verdade, que eu conheço. O mundo antes disso.
— Como foi hoje? — pergunto, assim que ele se afasta, sem deixar de abraçar seu tronco.
— Difícil. Conseguimos pegar mais bichos nas armadilhas, mais do que ontem. Mas nem metade do que pegamos normalmente.
— Não foi o que seu pai me disse.
O sorriso de murcha. Ele faz uma careta e dá de ombros.
— Eu não falo a verdade para o meu pai. Acho que ninguém fala. Não quero deixá-lo preocupado.
— Preocupado com o quê?
— Com a escassez de comida. Já está durando uma semana.
— Temos boas reservas, pelo que o prefeito disse.
não me responde. Ele não acredita em mim, nem no prefeito. Principalmente não no prefeito.
— Você também não fala a verdade para o seu pai — ele muda de assunto.
Agora eu quem viro os olhos.
— Não minto para ele. Ele sabe que tudo isso com Robert é fachada.
— Fachada para quê?
— Para cumprir a promessa para a minha mãe.
Ele suspira.
— Ele sabe de você — eu digo.
— Eu sei que sabe. Isso que é o pior.
— Por quê?
— Porque isso não faz diferença para ele. Ele ainda quer que você case com o médico.
— Ele quer me garantir uma boa vida. Para mim, para ele e para Luke.
ri de repente e fecho a cara. Não falei nada engraçado. Ele se afasta de mim, encosta as costas na parede e cruza os braços. Me sinto confrontada.
, "garantir"? Garantir o quê? Uma cabana mais quente?
Não respondo, sem deixar de olhar para os olhos de .
— Não tem o que garantir nesse fim de mundo, .
— Se voltarmos para Essex.
Se. O mundo já acabou. Estamos esperando o dia de morrer.
Não quero responder.
— E, ainda assim, nada te convence de falar para o seu pai que não vai se casar com o médico.
— É, . Nada me convence.
— Eu não entendo isso.
— Você não disse que o mundo já acabou? Uma coisa de cada vez. Lido com isso quando chegar perto do dia do casamento. Não tem por que falar sobre isso agora.

— Vamos entrar. Já estou com fome.

A sirene de chegada dos Exploradores soa depois de termos acabado de comer.
Nosso Farol repousa suspenso no ar, com o balão amarelo e vermelho sinalizando e observando a imensidão gelada ao redor. O balão só desce para a troca de turno — fora isso, permanece lá no alto, quase imóvel, em um sinal de que estamos aqui. É quase uma mensagem de resistência: estamos aqui. Começamos aqui. Ou talvez só eu entenda isso dessa forma.
Normalmente, a chegada de Exploradores não causa grande comoção. Mas, nas últimas semanas, alguns de nós se reúnem quase de forma inconsciente perto da entrada da cidade para recebê-los e ouvir sobre como foi a última campanha de busca e coleta de recursos. Há dias melhores do que outros. Estamos vivendo os dias piores.
Eles andam pela rua até o Gerador em passos curtos, aproveitando o silêncio e uma certa adoração nossa, enquanto estamos parados de cada lado da rua. O líder deles é Greg, e Greg é um homem que viveu muito. Não é velho. É um homem que você olha para ele e sabe que ele viveu muito, conheceu muitas coisas e lugares. Talvez mais do que um homem na idade dele costumaria viver e conhecer.
Meu pai é assim. Você consegue ver o cansaço em seus olhos. Mas nos olhos do meu pai ainda há um brilho da vontade de levantar todo dia de manhã. Os olhos de Greg não são assim. E são só os olhos dele que conseguimos ver pelo tecido, que cobre todo seu rosto e seu cabelo com fios grisalhos. São seus olhos cansados.
Greg sobe em um pequeno palanque em frente ao Gerador, o palanque de Hathorne para pronunciamentos oficiais.
— Encerramos a campanha de dez dias — Greg diz. — Preparamos 500 armadilhas.
500 armadilhas. 500 animais. Mil rações.
Somos oitocentos e cinquenta. Dá e sobra.
Eu e comprimimos os lábios ao mesmo tempo.
Duzentas rações para as próximas noites.
— Conseguimos 357 animais.
Eu nunca fui boa com contas. Nunca precisei disso. No Hospital, isso nunca foi necessário. Mas meu pai me treinou para fazer essas contas rápido.
Serão 714 rações. Mais de cem pessoas não poderão comer.
Greg termina de falar sem cerimônias. Desce do palanque com a cabeça baixa. Não parece envergonhado, porque sabemos que ele fez o que pôde. Todos os outros caçadores, por outro lado, olhavam para o chão.
Hathorne sobe no palanque com morosidade. Mais pessoas se aproximam e precisamos prestar atenção. Ele começa a falar mais baixo do que o normal:
— Vamos deixar a ordem de prioridade na Cozinha, pendurada na entrada. Vocês conhecem as regras.
Ele suspira. Esperamos algo a mais.
— “O inverno chegará ao fim” — ele entoa, alto.
— “O inverno chegará ao fim” — repetimos, alguns mais alto, outros menos. fala alto. Eu murmuro.
— Que Deus nos proteja — ele sussurra e desce do palanque.

No começo da noite, a única iluminação da cidade é do Gerador, além dos Pontos de vapor que estão sendo acesos conforme voltamos para as casas. Ando devagar. Não quero chegar.
Luke está nas Minas de Carvão. Papai está na Serraria. Meu avô está na Casa de repouso. Não quero ficar sozinha em casa.
Passo pelas casas ao lado. A maioria já tem ao menos uma pessoa dentro, as mais perto do Ponto de vapor. As ruas estão cheias, todos voltam para casa. A maioria das casas já está misturada.
Viro em uma rua, mais distante do Ponto de Vapor. As ruas começam a ficar mais vazias conforme me aproximo de casa.
Assim que chego, abro a porta sem fazer barulho. Ouço uma lufada de ar do lado de dentro. Meu pai deixou um pedaço de madeira na bancada ao lado da porta, mas esse tem lascas que precisarei lixar. Minha lixa está ao lado, grande, de aço. Sorrio quando penso que ele deixou tudo pronto para mim.
A lareira está apagada. Estranho.
Coloco minha lâmpada no gancho perto da janela e pego um pavio para usar o fogo na lareira. Vai demorar até algum Guardião passar e perguntar se precisamos de um pouco. É melhor já deixar a casa aquecida para quando meu pai e Luke...
Ouço um barulho. Não me mexo.
Não posso mover a cabeça. Estou sozinha. Se alguém entrou, não vou conseguir me defender. Não assim.
A lixa. Olho para ela de lado, à minha esquerda, perto da porta. Paro para pensar por um segundo.
Estico o braço esquerdo e pego a lixa. A janela deixa uma fresta de luz entrar, mas só consigo enxergar a bancada. Tudo atrás de mim é escuridão, desconhecido. Pego a lixa com firmeza e a seguro ao lado do corpo.
Me aproximo de novo da lareira, pego um pouco do combustível de fogo e o jogo no carvão para jogar o pavio em cima. O fogo começa em brasas localizadas, mas começam a se espalhar. Espero. Talvez Luke chegue. A qualquer momento.
Ouço um estalo à minha direita, nos fundos da casa. Instintivamente, aponto a lixa para o som, como uma faca.
Pela luz fraca da lareira, consigo ver alguém nos fundos, contra a parede. Ele está de pé, com os joelhos um pouco dobrados e o cabelo bagunçado, com aspecto sujo. Ao lado, havia uma trouxa de roupas, muitas roupas velhas amontoadas. Ele põe um dedo na boca e estende a outra mão para frente, com a palma aberta na minha direção.
Ele está assustado. Consigo ver isso. Está com tanto medo quanto eu. Seus olhos estão arregalados e ele tem um pouco de barba aparecendo no rosto.
— Por favor — ele suplica. — Não nos machuque.
Seguro a lixa com mais força, mas não é mais uma ameaça. Consigo ver agora que a trouxa ao lado dele é outro homem, bem mais velho, que treme de medo com as mãos em volta da cabeça, encolhido no chão.
— Quem são vocês? — pergunto, tentando não deixar a voz tremer.
— Meu nome é . Esse é meu pai, Samuel.
Meu cenho se franze ainda mais. Sinto meus dedos doerem, brancos de tanto apertar a lixa. Começo a suar. Faz dias que não suo.
— Somos de Winterhome. Nos colocaram nessa casa.
Não me mexo.
— Por favor, não nos machuque. — Ouço a voz fraca de Samuel por debaixo dos panos.
— O que estão fazendo aqui? Por que estão aqui?
Eles não respondem nada. ainda tem a mão estendida, ao mesmo tempo parecendo querer me acalmar e preparado caso eu resolva atacar. Sigo firme até ouvir a voz trêmula de Samuel de novo, que me faz perder a força nas pernas e quase deixar a lixa cair:
— Onde está Cristian?


Continua...



Nota da autora: Sem nota.




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