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Última atualização: 17/04/2025

Prólogo

6 de abril de 2022.
Finalmente havia chegado o dia que aguardei ansiosamente.
O dia em que, após sete semanas longe um do outro por incontáveis barreiras geográficas, eu finalmente veria null outra vez.
Além disso, era o nosso aniversário de três anos juntos.
null null tinha trinta e um anos e era simplesmente o dono da voz mais linda que eu já ouvi, embora minha amiga Kate discordasse um pouco disso, visto que o marido dela também era cantor. Mas null e Hero eram de nichos diferentes. Um era um astro do rock; o outro, um príncipe do R&B.
E eu amo R&B mais do que amo rock.
Desculpa, Kate, mas talvez o amor seja mesmo cego e a gente tá só discutindo à toa.
De qualquer modo, eu estava feliz. null estava voltando de uma turnê musical pela Ásia, e há uma semana eu finalmente tive uma folga após acompanhar Katherine Reed em uma mini turnê literária. Eu era sua agente há cinco anos e o quarto livro da minha série favorita de romance com ação e investigação tinha acabado de ser lançado.
Eu não tinha lá muito tempo livre durante épocas de lançamento, então já era de se esperar que null e eu tivéssemos alguns problemas de comunicação durante esses períodos em que ficávamos separados.
E é claro, a diferença de fuso-horário também não ajudava muito. Na verdade, complicava ainda mais. Ligações? Eu nem sabia mais o que era isso. A conexão era tão ruim sempre que tentávamos nos falar que acabamos desistindo e nos contentando em enviar mensagens de texto um para o outro pelo menos duas vezes por dia. null não era muito falante, então eu não esperava mais do que isso. Eu era tagarela o suficiente por nós dois, e mesmo assim não estava falando muito também.
Na verdade, pouco antes da turnê de Kate acabar, nós tivemos uma pequena discussão. Na ocasião, null ainda não tinha certeza de quando voltaria para casa, pois estava recebendo várias propostas para participar de programas de variedades por onde passava e seu gerente estava considerando aceitar algumas. Em um contexto diferente, eu teria achado isso muito legal. Era uma ótima oportunidade de fazer mais pessoas conhecerem o trabalho dele e isso era sempre bem-vindo. No entanto, fazia semanas que não nos víamos e eu odiava incertezas.
Eu sou uma mulher que ama rotinas e se me comprometo com algo, então tento cumprir o que esperam de mim.
E na maioria das vezes, meu namorado também.
null tinha prometido voltar antes. Era para termos passado a última semana juntos, mas ele adiou por conta do trabalho. Eu reclamei e fiquei chateada, mas sabia que não tinha muito o que fazer.
Era o trabalho dele e, mesmo chateada, eu respeitava isso.
O que não quer dizer que não fiquei quase que irracionalmente emburrada quando soube. O que resultou em três dias sem falar com ele, e sem responder nenhuma de suas mensagens. E sim, eu sei que foi meio infantil, mas não dá para ser madura toda hora.
Então deixei null num vácuo total por exatas setenta e duas horas.
Até que ele veio com uma proposta.
Como um gatinho curioso, isso despertou minha atenção e um sorriso surgiu em meu rosto assim que li sua sugestão de um encontro no nosso aniversário de três anos. Especialmente quando descobri algo que não me deixou muito feliz enquanto estava brava com ele, ainda mais sabendo que precisaríamos ter uma conversa séria a respeito disso.
Mas isso meio que mudou depois da proposta do encontro. null sugeriu irmos ao nosso restaurante coreano favorito e enchermos a cara de soju.
Eu ainda não tinha contado a ele que estava há um tempo evitando beber, coisa que meu estômago agradecia e meu corpo também. E eu teria que abrir mão da dieta no nosso encontro, mas já que era uma ocasião especial, tecnicamente não contava, né?
O plano era simples: jantar e depois voltar para casa.
Talvez comer uma fatia gigante de torta floresta negra da nossa confeitaria favorita também. null odiava cerejas, e sempre escolhia prestígio ou torta de morango.
Eu era uma garota que não curtia muitas mudanças. Até mesmo a minha prateleira de livros favoritos continuava igual a quando a organizei dois anos atrás, quando me mudei para morar com ele. Havia um escritório chique no apartamento de null, mas apenas eu o usava. Normalmente, quando estávamos em casa, eu passava algumas horas trancada lá enquanto trabalhava nos livros de Kate, e ele criava obras de arte musicais em seu estúdio cheio de proteção de som.
Eu odiava às vezes, sendo bem sincera. null nunca me deixava ver nada, nem um spoilerzinho. E ele usava a justificativa mais idiota do universo para isso: eu era fã dele e só me deixaria ver algo quando tivesse certeza de que tinha ficado como ele queria e que seria lançado em um futuro próximo.
Ele não estava errado. Eu realmente era fã dele e acompanhei sua carreira desde o início, por cerca de três anos, antes de sequer nos conhecermos.
Eu meio que tentei não surtar quando o vi pessoalmente pela primeira vez, mas enquanto eu aparentava estar tranquila por fora, por dentro meu coração parecia prestes a explodir.
E ele sabia disso.
Porque, como uma idiota, eu contei tudinho. null achava divertido, mas mesmo sendo sua namorada há anos, ele ainda me mantinha no escuro quanto às músicas.
Às vezes, eu achava que não tinha nenhuma moral com ele nesse aspecto, mas então lembrava a mim mesma que eu era null null, uma agente literária de sucesso aos vinte e oito anos, que sabia muito bem identificar um texto bom de um ruim, incluindo músicas.
Considerando isso, talvez tivesse a ver com o fato de que eu também era exigente e null, um perfeccionista que tinha total conhecimento disso. Não que fizesse muita diferença quando se tratava dele.
Geralmente, eu gostava de tudo o que ele lançava, tipo noventa e nove por cento das vezes. Havia sempre algumas colaborações com artistas indie aqui e ali que eu fingia que não existiam. Não que fossem ruins, mas nunca curti muito o estilo musical e àquela altura, null já me conhecia bem o suficiente para saber que não era nada pessoal.
Ele também não era um grande leitor, então isso meio que dava um equilíbrio no nosso relacionamento. Tínhamos muitas coisas em comum, mas também éramos opostos em vários aspectos. Mesmo assim, costumávamos funcionar muito bem juntos. Até melhor do que eu esperava, inclusive, ou do que sonhei em meus dias mais delulus como fã.
null era o melhor parceiro que o universo poderia me presentear, e eu até tive alguns bons namorados antes, incluindo Andrew, um dos donos da editora de Kate.
No entanto, comecei a reconsiderar minhas escolhas de vida como a boa dramática que sou quando, durante a tarde, enquanto eu modelava meu longo cabelo vermelho cuidadosamente para ficar linda à noite, null me enviou uma mensagem falando que não chegaria a tempo.
Aparentemente, houve um erro com o voo dele, e ele iria aterrissar em Chicago em vez de Nova York. O que acabava com quaisquer planos de comemoração no dia seis. Com sorte, talvez ele chegasse de manhã cedo no dia sete, caso conseguisse um novo voo logo.
Na pior das hipóteses, ele chegaria depois do meio-dia.
Encarei meu próprio reflexo no espelho, metade do cabelo arrumado e metade presa no topo da minha cabeça no que mais parecia um ninho de passarinhos.
Eu não sabia nem o que responder. Àquela altura, null já deveria estar a caminho de casa.
E eu deveria ter notado que havia algo estranho quando não recebi nenhuma mensagem dele dizendo que tinha chegado ao aeroporto, mas achei que talvez ele estivesse tão ansioso quanto eu.
Uma ova.
Encarei a tela do celular novamente e reli a última mensagem.

null♥: Sinto muito, amor. Nós podemos comemorar amanhã se você quiser. Prometo te compensar por isso.

Apertei o celular com força, irritada e tentando me controlar para não falar nada ruim quando eu sabia que nem era culpa dele.
Mas se ele tivesse viajado mais cedo, estaria aqui na data do nosso aniversário. Ele sabia que datas comemorativas eram importantes para mim. E eu sabia que mesmo que ele quisesse sair no dia seguinte e me compensar, não ia ter graça nenhuma.
null provavelmente estaria mais cansado que o normal, considerando as horas a mais de voo de Chicago para Nova York, e eu não ia andar por aí com um zumbi. Se algum paparazzi ou fãs nos vissem na rua, provavelmente pensariam que ele estava em um relacionamento tóxico ou algo assim, e que eu estava consumindo toda a sua energia vital como um maldito dementador.
De jeito nenhum. Eu podia lidar com fãs sendo idiotas há três anos, mas não daria nenhum material para que rumores infundados surgissem.
Assim, depois de respirar fundo umas três ou sete vezes, eu digitei uma resposta genérica.

null: Tudo bem, me avise quando estiver chegando, e preparo algo pra você comer. Vou cancelar a reserva no restaurante, a gente sai outro dia.

Eu não precisava dizer mais do que isso. Morávamos juntos há dois anos, na maior parte do tempo, e estávamos juntos há três. null saberia que o meu "tudo bem" não significava que eu não estava chateada e sim que não havia nada a ser feito.
Era só mais um maldito imprevisto do destino. Como se o universo estivesse conspirando contra a gente.
Resmunguei sozinha e coloquei o celular de lado enquanto observei meu reflexo mais uma vez no espelho. Seria uma pena não sair quando meu cabelo estava ficando tão bonito, porque era óbvio que eu não o deixaria pela metade.
Então, enquanto terminava de arrumar ele, repassei mentalmente todas as mensagens com null nos últimos dias. Eu ainda precisava conversar com ele, mas adiaria um pouco. Pelo menos até que eu soubesse que ele estaria descansado o suficiente e com o fuso horário de Nova York em dia.
Talvez para me certificar de que ele não fosse surtar muito quando ouvisse a boa ou má notícia.
Tipo o que eu fiz alguns dias antes. Kate quase me deu um tapa na cara para fazer eu me recompor, e nem é piada. Consegui evitar no último instante. Embora seja ex-enfermeira, Kate não era lá muito delicada quando não estava lidando com algum paciente, então era sempre bom ter um cuidado a mais.
Ela sempre escrevia rascunhos de roteiro à mão, e a marca do lápis sempre ficava do outro lado da folha. Eu tinha que ficar falando constantemente que ela não precisava agredir o papel assim. Não era como se ele fosse fugir se ela colocasse menos força ao escrever.
Reflexões à parte, eu decidi sair sozinha mesmo assim. Tomei um banho rápido com cuidado para não molhar o cabelo e vesti uma roupa confortável. Nada a ver com o vestido tubinho de veludo vermelho profundo da mesma cor que meu cabelo e que abraçava meu corpo com maestria.
Eu tinha ganhado cerca de dez quilos desde que null e eu começamos a namorar, mas a maior parte eram músculos. Não que eu fosse uma rata de academia; pelo contrário, eu odiava me exercitar. Mas nos meus dias de autoestima normal, eu tinha que admitir que aqueles quilinhos a mais tinham me feito bem.
E null concordava plenamente. Eu tinha ganhado alguns centímetros a mais no quadril e ele não estava reclamando.
De todo modo, escolhi um jeans largo, uma camiseta branca curta e um par de tênis da mesma cor para sair. Quando terminei de me arrumar, peguei uma bolsinha grande o suficiente para guardar o celular e minha carteira, e saí de casa.
A primeira parada foi em um Subway. Geralmente, eu evitava comer fast food, mas estava desejando me empanturrar de comida naquela noite. Caprichei na escolha de um sanduíche, peguei dois cookies de sobremesa e uma garrafa de água com gás antes de me sentar sozinha em uma mesa vazia, de frente para a rua.
Foi quando eu estava terminando de comer, que uma ideia me veio à mente. Havia um shopping por perto e pensei que não faria mal assistir a um filme no cinema.
Mesmo que esse filme fosse um que null estava doido para ver.
Seria uma pena assistir ao filme primeiro e sozinha, mas parecia a vingança perfeita pelos dias que ele me fez esperar enquanto preenchia sua agenda de trabalho com mais compromissos.
Eu merecia esse pequeno triunfo de saber sobre o filme inteiro enquanto ele estava evitando spoilers a todo custo. Nós poderíamos assistir juntos depois. E dependendo do quão vingativa eu estivesse me sentindo no dia, talvez eu fizesse alguns comentários inapropriados do tipo: que pena que vai acontecer tal coisa.
Eu nem tinha ideia do que seria, mas descobriria em breve.
Horas mais tarde, saí fungando do cinema. Por algum motivo, tive um acesso de espirros depois que saí da sala de cinema e meus olhos até lacrimejaram. Minha maquiagem devia estar borrada, mas não me importei, pois, de todo modo, estava indo para casa.
Já era quase meia-noite quando comecei a atravessar o estacionamento do shopping até o meu carro. Eu ainda esfregava os olhos, que não paravam de coçar, enquanto andava e repensava minha escolha mesquinha de assistir ao filme sozinha. Nem foi tão legal assim. Teria sido melhor com null; ele criaria teorias comigo, tentando adivinhar o que ia acontecer.
No meio disso, ouvi a buzina alta de um carro quando estava a poucos metros do meu e quando virei o rosto, me deparei com a luz forte do farol.
Eu não consegui pensar. Tudo aconteceu tão rápido que eu nem sequer vi, apenas senti. De repente, meu corpo foi jogado para frente com força e eu caí, rolando pelo cimento do estacionamento várias vezes antes de parar.
A percepção de uma forte dor na barriga me fez encolher em posição fetal, em agonia. O carro tinha me atingido de frente, antes mesmo que eu pudesse pensar em desviar, antes mesmo que eu pudesse notar que ele estava mais próximo do que parecia.
Tentei levantar a cabeça quando ouvi gritos ao redor e vi silhuetas de pessoas aleatórias, mas gemi de dor quando ela também doeu. Minha visão continuava embaçada, mas dessa vez eu não tinha certeza se era devido às lágrimas. Senti um líquido quente ao meu redor e pisquei, tentando enxergar.
A dor beirava o insuportável, e consegui discernir as imagens apenas o suficiente para perceber que estava em uma poça do meu próprio sangue.
Coloquei a mão na barriga, que ainda doía, e choraminguei enquanto ouvia pessoas falando ao redor sobre chamar uma ambulância. Tudo parecia distante, como se as vozes estivessem abafadas, o som parecendo ficar cada vez mais baixo. E em um pequeno momento de desespero, uma percepção me ocorreu.
É assim que eu vou morrer? Numa data especial e sozinha?
Eu nem ao menos conseguiria dizer a null o que passei dias planejando. E de qualquer forma, naquele momento, era tarde demais. No fundo, eu sabia que era. Que eu nem ao menos conseguiria me despedir.
Lágrimas quentes escorreram pela ponte do meu nariz, e senti meus olhos começarem a pesar. Ouvi o som distante de uma sirene, mas não houve tempo para captar mais coisas.
De repente, tudo ficou escuro.

Capítulo 1

Um som irritante chegou aos meus ouvidos e eu resmunguei sonolenta, tateando a cama em busca do meu maldito celular.
Que despertador horrível. Eu não me lembrava de colocar nenhum som de passarinhos cantando.
Inferno, eu nem sabia que tinha um.
Encontrei o aparelho e deslizei o dedo pela tela, notando que eram seis da manhã. Em seguida, me espreguicei, passei a mão no cabelo e... Espera, onde estava meu cabelo?
Me sentei rapidamente e procurei em vão pelos longos fios que eu passei anos deixando crescer e encontrei... Nada.
Bem, não literalmente, é claro.
Eu não estava careca, mas meu cabelo estava muito curto e um pensamento meio mirabolante veio em minha mente. Será que fiquei bêbada com null na noite passada e acabei fazendo uma besteira? Eu e minha irmã nunca fazíamos as melhores escolhas quando nossa mente estava nublada pelo álcool. E por falar em null...
Espera... Aquele não era o apartamento que eu dividia com minha irmã mais velha, notei, um segundo depois.
Olhei em volta e graças à luz que entrava pelas cortinas na janela do outro lado do quarto, consegui enxergar alguma coisa. Alguns pôsteres na parede, desenhos e rascunhos deles. Uma mesa cheia de livros e post-its colados acima dela e muito material de arte. Eu era um completo fracasso no ramo artístico, então tinha certeza de que não era meu.
Será que eu estava sonhando? E se eu estivesse... Que lugar era aquele?
Meu celular vibrou e eu o desbloqueei com minha digital, me deparando com várias notificações de mensagens de pessoas que eu não conhecia.
No entanto, uma delas me chamou atenção. Era em um chat em grupo, aparentemente.
Uma pessoa chamada Karina havia enviado.
Karina: Eu não aguento mais estudaaaaar! Ayla, que tal a gente largar a faculdade e viver na SUA arte, hein? Eu posso ser sua empresária!
Franzi o cenho, confusa, mas então uma nova mensagem chegou.
Ti: Quanto drama, amiga. Falta pouco pra vocês se formarem, relaxa. Vamos almoçar juntas hoje?
Tiana.
Karina e Tiana tinham enviado mensagens para mim. E uma delas me chamou de Ayla! Eu só podia estar sonhando mesmo e que sonho maluco! Agora eu estava começando a entender… Eu tinha parado no corpo da protagonista do meu livro favorito da série de livros da Kate!
A percepção disso imediatamente me fez levantar da cama e procurar um espelho. Encontrei um no banheiro e, em seguida, pisquei algumas vezes para o meu próprio reflexo. Aquele cabelo, um tom de ruivo aberto e alaranjado, bem diferente do meu, até que me deixava mais jovem e... Espera... Eu também estava mais magra, bem mais magra. Levei um segundo para entender que não era o cabelo que estava me deixando jovem e sim o fato de que eu estava mais jovem.
No corpo de uma garota de vinte e um ou vinte e dois anos de idade.
Ayla null, protagonista de Tenaz, primeiro livro da série que Kate ainda estava lançando. E cujo sobrenome era o mesmo que o meu, porque era um livro que eu sempre estive entusiasmada para ler. E até mesmo tinha trilha sonora, feita pelo marido dela. Os dois tinham trabalhado juntos nisso enquanto ela ainda desenvolvia o rascunho do romance, quando ainda eram namorados.
Fazia alguns anos que Tenaz havia sido lançado e já estávamos no quarto livro da série. E pensar que Kate estava cogitando engavetar essa obra-prima. Por um curto período no desenvolvimento, devido a alguns problemas pessoais, essa ideia absurda passou pela mente dela, mas felizmente não durou muito tempo.
Na época, até mesmo me propus a ajudá-la a desenvolver o enredo, da forma que fosse possível e acho que meu entusiasmo a contagiou um pouquinho. Além disso, fiquei bem feliz com os agradecimentos no final do livro, depois de enchê-la de ideias mirabolantes para incentivá-la a escrever. Kate estava na dúvida quanto ao protagonista, mas então eu, como a boa fanfiqueira que sou, a apresentei a null null, meu cantor favorito de R&B.
Até então ela só tinha escrito sobre astros do rock, então considerou a mudança de gênero bem-vinda. E eu fui uma agente que trabalhou com gosto, feliz da vida. Na verdade, até sentia que estava fazendo pouca coisa. Afinal, eu estava sendo paga para ajudá-la a desenvolver uma fanfic.
Tudo bem, não era uma fanfic de verdade.
Na real, estava longe de ser uma. Mas eu consegui convencê-la a transformar null no protagonista e ela até usou meu sobrenome para a mocinha porque achou que null combinava com Ayla.
No entanto, poucas pessoas sabiam disso. Eu me perguntava até se null já tinha ouvido falar sobre esse livro. Não havia nada além da aparência dele presente no enredo e o fato de Dean, o protagonista, também ser um músico, compositor e cantor incrível.
Tá, a Kate tinha descrito a voz dele exatamente como eu tinha descrito a de null para ela, mas diferente de Dean, null não era o filho bastardo de um vilão odioso.
Pelo menos até onde eu sabia.
Eu nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente e até mesmo ingressos de shows eram difíceis de conseguir, especialmente quando ele passava mais tenho fora do país do que nele, mesmo que tecnicamente morasse em Los Angeles. Fazia sete anos que eu era fã dele e nunca havia nem mesmo ido a um show. Uma tristeza, eu sei. Até pensei em talvez usar meu cérebro trambiqueiro a meu favor.
Eu poderia sugerir a Kate que sugerisse a Hero que convidasse null a fazer uma colaboração. Afinal, Hero não era apenas seu marido, mas um astro do rock e vocalista da Cave Panthers, uma das bandas mais legais que já vi. Dificilmente alguém não saberia quem os quatro integrantes eram. Especialmente agora, que eles estavam de volta com tudo após um período de hiatus.
De todo modo, se Hero convencesse null a fazerem uma música juntos... Então eu convenceria Kate a me ajudar a me infiltrar em todo o processo para conhecer ele. Eu compraria uma caixa dos chocolates favoritos dela uma vez por mês, por um ano inteiro, em forma de agradecimento.
Era o plano perfeito. E então eu, depois de anos como uma fã fiel, finalmente me tornaria uma fã de sucesso. Nem sei o que diabos aconteceria se eu encontrasse null um dia. Provavelmente eu ia travar no lugar ou, quem sabe, surtar com uma maluca. Eu tinha certeza de que seria oito ou oitenta.
Mas por falar em surtar... Espera, eu estava dentro de Tenaz, sabendo que o protagonista tinha a aparência do meu cantor favorito. Mas onde ele estava?
Eu acordei sozinha no apartamento e não encontrei nenhum sinal de que algum homem frequentava aquele lugar. Que parte da história era aquela? Eu definitivamente não lembro de nenhum diálogo entre as amigas como o de alguns minutos atrás.
Eu ia lembrar se tivesse. Li Tenaz pelo menos quatro vezes nos últimos anos e uma delas tinha sido há cerca de seis meses. Eu conhecia aquela história de trás para frente, embora meu cérebro sempre apagasse eventuais detalhes dela.
Mas se aquilo era um sonho em que eu tinha ido parar no meu livro favorito, então só me restava seguir o fluxo até que eu acordasse novamente para mais um dia de trabalho.

***


Com a ajuda do GPS, consegui chegar ao restaurante que Tiana sugeriu que nos encontrássemos. A cidade ao redor me lembrava um pouco da vibe de Nova York, mas eu sabia que era apenas minha imaginação, assim como a aparência das pessoas. Kate não usou locais reais ou descrições muito detalhadas de personagens porque queria que leitores de todo o mundo pudessem imaginar como bem entendessem.
Eu, como habitante de Nova York, imaginei a minha cidade. Quanto às descrições das pessoas, eu sabia que Karina tinha o cabelo loiro com pontas azuis, embora não lembrasse se isso realmente havia sido descrito no livro ou se Kate comentou em algum momento comigo; também sabia que Tiana lembrava um pouco Dianna Dane, minha chefe, que também era amiga e sócia de Kate na editora.
Cores de pele ou etnia não eram citadas e por conta da mistura de sobrenomes, muita gente imaginava que Dean era um cara asiático, mas eu sabia que ele era null null. E eu estava prestes a encontrá-lo em algum lugar, quando a história finalmente começasse.
Eu só não entendia por que estava vivenciando situações que nem ao menos estavam descritas no livro. Aquele sonho podia pular logo para as partes boas. Tipo o primeiro beijo de Ayla e Dean. E quando esse momento chegasse, eu esperava que parecesse tão real quanto estava sendo até agora. Eu até havia me beliscado algumas vezes para ver se estava sonhando, mas fazia horas que eu estava ali.
Dei uma olhada ao redor procurando por uma mulher de pele clara e outra de pele escura, e levou apenas um segundo para eu avistar duas pessoas idênticas a Dianna e Karol, melhor amiga de Kate.
Karol acenou para mim na skin de Karina e eu sorri enquanto caminhava até elas.
As cumprimentei rapidamente como se não fosse uma estranha no corpo da melhor amiga delas e peguei o cardápio para escolher o que eu ia comer. Estávamos em um restaurante de culinária coreana e eu estava animada por saber que as meninas gostavam tanto quanto eu.
Mais cedo, descobri que Ayla tinha um cartão de crédito que funcionava por aproximação, o que era um alívio, já que eu não fazia ideia de quais eram as senhas dela. Eu só sabia de coisas descritas no livro e não havia nenhuma cena que precisasse daquela informação.
Uma olhada rápida no cardápio me fez uma mulher feliz ao ver a variedade de pratos disponíveis e minha boca salivou quando vi que tinha Jjamppong. Nem pensei duas vezes antes de pedir aquele prato.
Jjamppong? Tá doida? — Karina me encarou como se eu tivesse batido a cabeça em algum lugar.
— Por quê? — Franzi o cenho, confusa.
— Amiga, você esqueceu que é alérgica a frutos-do-mar? — Tiana perguntou.
Meu Deus! É claro! Ayla era alérgica, eu tinha me esquecido. E aquele prato tinha mesmo um monte de frutos-do-mar.
— Ah, é mesmo. — Eu ri, sem graça, dando adeus ao meu delicioso ensopado. — Então vou querer um kimbap de porco apimentado e uma tigela de japchae.
Bem, pelo menos eu sabia que aquilo não causaria alergia em ninguém. Um sushi de carne e legumes e macarrão temperado com mais carne, legumes e zero frutos-do-mar.
— Vamos no mesmo, então — Tiana sugeriu. — Mas o meu kimbap, eu quero de gado.
Fizemos os pedidos e Karina deu uma risadinha.
— Parece que você anda com a cabeça nas nuvens, hein? — ela comentou, olhando para mim.
— Eu? Por quê? — Será que elas tinham notado que eu não era a Ayla? Mas não tinha como, certo? Afinal, era um sonho.
— Sei lá, talvez por conta de uma visitinha do seu ex-namorado no seu apartamento semana passada. — Ela sorriu com malícia.
Espera, o quê?! Seojun tinha me visitado e... A recaída! Antes das aulas começarem. Ou já tinham começado? Eu não tinha certeza, mas se Karina tinha reclamado dos estudos naquela manhã, então eu achava que sim.
Droga, eu poderia ter parado naquele sonho na noite da visita dele. Pelo menos, seria um pouco mais divertido.
— Ah... Não. Não é como se tivéssemos voltado ou algo do tipo — comentei, sabendo que aquilo realmente não aconteceria.
Aquele sonho não acabava? Por que tava demorando tanto? Eu adorava Karina e Tiana e, definitivamente, amava comida coreana, mas eu não estava nem aí em dividir uma refeição aleatória com elas em um sonho.
Eu queria emoção. Borboletas no estômago. Onde estava Dean?
Voltei a conversar com elas e enquanto comíamos, discretamente as conduzi a dizer algumas informações importantes sobre a faculdade. As aulas tinham começado, de fato. Mas nas primeiras semanas era comum que muitos alunos faltassem.
Felizmente, Ayla havia feito o mesmo curso que eu, então eu não era uma total sem noção a respeito de literatura.
Eu trabalhava com literatura, na verdade. Em uma editora. Sendo agente literária de uma autora, embora minha capacidade de escrita se resumisse mais a melhorar textos e saber se estavam bons ou ruins, do que eu mesma criá-los do zero. Eu tinha uma imaginação fértil, mas colocar no papel era outra história. De todo modo, eu não tinha interesse em escrever.
Mas já que Ayla fazia o mesmo curso que fiz, então tinha que ser moleza! Isso só podia ser algo ao meu favor, embora eu não achasse que fosse precisar de qualquer habilidade. Afinal, era uma história, certo? Kate já tinha escrito tudo, eu só tinha que esperar acontecer.
Infelizmente, no dia seguinte descobri que estava errada. Acordei atrasada e tive que correr para a aula. Passei por um dos prédios administrativos para cortar caminho, mas acabei esbarrando em um cara.
— Desculpa — ele disse e eu arregalei os olhos ao reconhecer aquela voz. Imediatamente, ele se abaixou para recolher meus papéis e eu fiz o mesmo, o encarando enquanto ele estava distraído.
Seu cabelo era preto e ele usava uma máscara da mesma cor, cobrindo metade da face. No entanto, meus olhos se dirigiram imediatamente para o pescoço descoberto. Um pedaço da tatuagem de flores de ameixa aparecia, pegando o lado esquerdo do seu pescoço, e minha boca secou quando lembrei de uma cena do livro em que Ayla a mordia.
Eu reconheceria aquela tatuagem de longe porque era a mesma que null tinha. Enorme, e descia até parte do seu peito esquerdo.
Inferno, mesmo que não estivesse à mostra, eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Rouca, profunda e completamente deliciosa de ouvir.
Levei apenas alguns segundos para pensar nisso, enquanto recolhíamos os papéis, e disse a mim mesma para não surtar, afinal aquele não era null null e sim Dean Kwon, o protagonista do livro.
Assim que peguei tudo, me virei e fui embora como uma maluca.
Aquilo não fazia parte do livro, eu tinha certeza. Kate não tinha descrito nenhuma cena assim. Na verdade, Ayla deveria esbarrar em Zico, o melhor amigo de Dean, do lado de fora de uma sala de aula. Ela deveria conhecer Zico primeiro.
Então por que Dean estava ali?
Levei dois segundos para lembrar que tinha pegado um atalho por um prédio administrativo e cheguei à conclusão de que talvez ele estivesse resolvendo pendências da matrícula.
Mas se mesmo não sendo descrito, aquilo tinha acontecido mesmo com Ayla, como ela poderia ser tão lerda a ponto de não notar aquele deus grego na frente dela? Bem, talvez sua skin estivesse ansiosa demais para isso, eu imaginei por um momento, tentando defender a falta de atenção da minha protagonista favorita.
Algumas horas mais tarde, minha skin de Ayla se tornou extremamente estressada. Comecei a ter pensamentos envolvendo o homicídio de toda a papelada que me aguardava e lembrei que eu mesma odiava o curso de literatura por ter que estudar sobre coisas tão chatas!
"Você gosta de escrever? O curso de literatura é perfeito para você!", disseram. "Você lê muito? Com certeza vai adorar o curso de literatura", disseram. Mas tudo o que eu queria naquele momento era atirar tudo ao ar livre e quem sabe, fazer uma fogueira ali mesmo, em frente à biblioteca cheia de livros chatos e entediantes.
Um momento depois, como se uma luz iluminasse minha mente, eu percebi que a história finalmente havia começado. Aquele era literalmente o início, Ayla estressada, querendo se livrar de tudo.
Eu nunca a julguei por isso, porque ela tinha razão. Sempre sonhei em trabalhar com livros porque amava ler, mas o processo de entendê-los era um trabalho extremamente complexo e chato.
No fim do dia, voltei para casa e algumas horas depois eu estava na cama, pronta para dormir. Se a história já tinha começado, então eu imaginava que Ayla tivesse algumas reações automáticas. Fazia sentido, certo? Eu era uma mera espectadora que, por acaso, estava sonhando que tinha ido parar no corpo dela.
Eu só tinha que esperar as coisas acontecerem e torcer para que acontecessem logo. Já fazia dois dias e a impressão que eu tinha era de que estava vivendo como Ayla, de fato. Não parecia um sonho. Sonhos tinham detalhes que não faziam nenhum sentido e era assim que você tinha consciência de que, mesmo dormindo, nada daquilo era real.
Mas parecia bem real para mim.
Me acomodei na cama, encontrando uma posição confortável para dormir e fechei os olhos, esperando o sono chegar.
No entanto, algo estranho aconteceu.
Um flash rápido surgiu, como se eu estivesse em outro lugar. Abri os olhos, mas continuei vendo aquilo.
Olhei para o teto escuro do quarto e de repente, ele estava claro, tão branco que quase doía nos olhos, havia um barulho de bip ao redor e sem me mexer, percorri o olhar tentando encontrar algo. Tudo piscou novamente e era como eu estivesse no quarto de Ayla e nesse outro lugar ao mesmo tempo.
O barulho de bip se tornou mais alto e me sentindo sonolenta, olhei para baixo, encontrando um acesso venoso na minha mão esquerda.
O que diabos era aquilo? Eu estava em um hospital?
Tudo piscou novamente ao meu redor e, de repente, o quarto de Ayla se tornou completamente nítido outra vez.
Franzi o cenho, confusa, e me sentei rapidamente, olhando ao redor e notando que tudo parecia o mesmo. Mas então outro pensamento me veio em mente.
Eu sofri um acidente?
Era por isso que aquele universo de Tenaz parecia tão real?
Será que, de alguma forma, meu espírito tinha ido parar dentro da história? Eu já tinha lido livros e webtoons assim, mas, normalmente, a mocinha acabava no corpo da vilã. Eu, no entanto, fui direto para a protagonista.
Será que eu viveria tudo o que ela viveu na história?
Se eu estivesse mesmo em um hospital, inconsciente, então tudo fazia sentido, todo o aspecto realista daquele suposto sonho. Porque não era apenas um sonho e sim uma realidade alternativa.
O que não fazia sentido era que estivesse mesmo acontecendo. Eu achava que era uma coisa de histórias fictícias.
Só que eu era uma pessoa real.
Me deitei novamente na cama, tentando imaginar o que tinha acontecido comigo, mas por mais que eu forçasse meu cérebro a pensar, tudo o que eu me lembrava era de ir para casa após ter uma reunião com Kate para discutir um pouco sobre o roteiro do próximo livro, Oblíquo. O último da série. Eu estava em 2022 e tínhamos acabado de voltar de uma mini turnê literária para a promoção de Sutil, o quarto livro, e teríamos folga na semana seguinte inteira.
Mas por que eu tinha a impressão de que estava esquecendo de algo importante?
Enquanto tentava continuar pensando no que diabos tinha acontecido comigo, meus olhos se fecharam naturalmente, e eu bocejei, sonolenta.
Não me lembro de ter caído no sono, mas, quando abri os olhos outra vez, o despertador estava tocando com um barulho irritante diferente, e a luz do dia mais uma vez passava pela brecha entre as cortinas.

Capítulo 2

Uma vez que a narrativa do livro começou, o tempo começou a passar mais rápido. Em certos momentos, eu me sentava em uma sala de aula no início da tarde e, cerca de um minuto depois, via o pôr do sol pela janela.
Me senti um personagem de The Sims.
Um dia acordei e cheguei à sala de aula de Escrita Criativa e antes de entrar, esbarrei em Zico.
Em Tenaz, Ayla o conhecia primeiro e, por volta de duas semanas depois, Dean aparecia. Eu mal podia esperar para que as partes boas chegassem.
Zico se desculpou rapidamente e felizmente eu não estava segurando nenhuma papelada naquele momento. Ele falava ao telefone, então apenas acenei com a cabeça, ouvindo parte da conversa dele que eu sabia que era com Dean. Examinei a sala de aula cheia e me dirigi para uma mesa vazia, sabendo que em poucos instantes, Zico sentaria ao meu lado.
Dito e feito.
Dei uma risadinha mental quando o ouvi falar comigo outra vez. Conversamos um pouco e notei que eu estava dizendo exatamente as falas de Ayla do diálogo dos dois. Me perguntei se isso era alguma lembrança minha após ler o livro quatro vezes, ou se eu apenas estava vomitando palavras no automático.
Depois de alguns minutos, o professor chegou e começou a dar aula. Ele era meio egocêntrico como um bom leonino, e um tanto engraçado, o que me fazia simpatizar com ele, então a aula não foi um tédio. Enquanto isso, Zico ficou ao meu lado em silêncio, como se não prestasse atenção, mas sempre que o professor falava algo engraçado, ele olhava para mim como se perguntasse se eu tinha ouvido o mesmo. Eu lembrava dessa cena claramente. Fazia parte do primeiro capítulo do livro. Quando a aula acabou, fomos almoçar juntos e depois, quando nos despedimos, voltei para o apartamento de Ayla.
Não havia nada a ser feito durante a tarde, então resolvi tirar uma soneca para passar o tempo.
Acordei com o despertador tocando e quando peguei o celular para desligar, já era de manhã. Inicialmente, imaginei que tinha capotado e só acordado no dia seguinte, mas logo notei que a data era diferente. Duas semanas haviam se passado enquanto eu dormia. Se aquilo não era um sonho de The Sims, então eu não sabia o que era.
Encontrei uma mensagem não lida de Zico e descobri que Dean viria para a universidade naquele dia. Instantaneamente, meu coração acelerou um pouco e senti um frio na barriga, sabendo que nada tinha a ver com os sentimentos de Ayla, mas com os meus.
Eu, null null, tinha notado Dean antes dela. E já sabia o que aconteceria logo mais. Eu o conheceria naquele dia, formaríamos um trio para fazer o trabalho de escrita e, talvez no dia seguinte, eu acabasse em uma mesa sozinha com Dean, enquanto comíamos em silêncio. Depois ele e Zico me levariam ao estúdio dos dois, e cantariam para mim.
Eu mal podia esperar.
Cerca de duas horas mais tarde, eu tinha acabado de encontrar Zico quando ele falou que precisava ir ao banheiro. Eu não lembrava de nada das últimas duas semanas, no entanto, eu e Zico agíamos como se fôssemos melhores amigos. Sentei em um banco vazio do campus e esperei, tentando conter um sorriso, enquanto fingia mexer no celular.
Um instante depois, senti alguém se aproximar e se sentar ao meu lado. Olhei rapidamente para Dean, vestido de preto dos pés à cabeça e voltei minha atenção para a tela do celular.
A aula estava perto de começar, então Ayla deveria enviar uma mensagem de áudio para Zico naquele momento, perguntando algo sobre ele ter ficado preso na privada. Esperei pacientemente, mas nada aconteceu.
Minha skin de Ayla não agiu por instinto como em outras ocasiões. Franzi o cenho e um segundo depois, Zico voltou.
— Quando você chegou? — ele perguntou, olhando para Dean.
Após um breve diálogo, dessa vez automático, nós fomos para a sala de aula.
De repente, minha mente pensava uma coisa, mas meu corpo fazia outra. Palavras saíam da minha boca sem que eu pensasse, e algumas expressões também. Imediatamente, me lembrei de um drama que assisti em 2019 sobre uma protagonista que descobria que nem existia e que, na verdade, era apenas personagem de um livro. Havia algumas ocasiões de palco, em que ela não tinha absolutamente nenhum controle sobre suas ações e emoções, e momentos de bastidores, quando podia agir por conta própria.
Então pensei que algo semelhante estava acontecendo comigo. No entanto, era aleatório. Às vezes, tudo acontecia no automático. Outras, nada acontecia a não ser que eu tomasse uma atitude, como o caso do áudio não enviado para Zico.
Depois de um tempo refletindo enquanto a aula corria, cheguei à conclusão de que as principais cenas provavelmente seguiriam o roteiro do livro, enquanto outras, que não eram importantes, poderiam ser controladas por mim.
Me despedi de Zico e Dean naquele dia depois de dizer que eu iria querer ajuda com o enredo do trabalho, mas que podia escrever sozinha. Eu lembrava que no dia seguinte, Ayla aparecia com um mini roteiro sobre a história de Kate e Hero — sim, Kate colocou isso como uma brincadeira, já que Ayla também era escritora.
No entanto, nada aconteceu quando esperei minha skin de Ayla se mover automaticamente para escrever. Tampouco apareceram anotações mágicas no meu bloco de notas quando acordei no dia seguinte. Com uma careta, percebi que eu teria que bolar algo rápido, mas para que escrever se eu conhecia aquela história toda?
Depois de cinco (ou eram seis?) anos trabalhando com Kate, eu sabia muito bem como ela e Hero acabaram juntos. Ayla só tinha que explanar um pedacinho daquilo.
Quando isso aconteceu, senti vontade de bater palmas para mim mesma por ser uma fanfiqueira nata. Eu não somente anotei o plot da história que supostamente deveríamos escrever, como alguns detalhes a mais. Mais tarde, Zico e Dean ouviram atentamente e, no mesmo dia, me levaram para o estúdio deles.
Quase dei pulinhos de alegria, mas me contive. Eu sabia que era fictício e que Dean não era null null de verdade, mas era como se eu estivesse prestes a ver null cantando na minha frente pela primeira vez. E quando isso aconteceu, eu nem tinha certeza se minhas reações eram mesmo minhas ou de Ayla, mas nós duas certamente estávamos surtando.
Depois que Zico e Dean terminaram de cantar a primeira música, na qual Zico fazia um rap, palavras de elogio jorraram da minha boca automaticamente e pedi para Dean cantar outra vez.
Eu estava me derretendo por ele e nem ao menos fazendo questão de disfarçar. Qual era o ponto, afinal? Ele era o protagonista!
Antes que ele pudesse cantar, um entregador de pizza chegou e me ofereci para ir buscar, sabendo que aquele era o momento em que Zico aproveitaria a oportunidade para encher o saco de Dean sobre como ele parecia caidinho por Ayla.
Ai, como é doce a vida da fanfiqueira.
Peguei a pizza rapidamente e, quando voltei, parei do lado de fora do estúdio, ouvindo a conversa até o momento que sabia que Ayla entrava. Houve um momento daqueles que o tempo passava rapidamente enquanto comíamos e, quando me dei conta, Dean já estava com o microfone na mão outra vez.
Eu sabia exatamente qual vídeo Kate usou para descrever aquela cena. Afinal, eu o mostrei para ela.
E ver "null" fazer aquela mini performance enviou borboletas direto ao meu estômago. Assisti hipnotizada. Aquilo era uma obra de arte. Ele era uma obra de arte ambulante.
Bonito, com uma voz incrivelmente sensual e dono de olhos afiados que pareciam enxergar a minha alma.
Foi então que ouvi um bip. Depois outro. E outro. Me perguntei se era algum efeito da música, mas então o cenário ao meu redor começou a piscar, como uma falha de imagem. Pisquei algumas vezes e esfreguei os olhos, mas um flash no mesmo quarto branco de hospital surgiu.
Nessa vez pareceu mais nítido. Ouvi null chamar meu nome de longe, mas não me movi. Então meus olhos pesaram outra vez e quando os abri de novo, o despertador irritante de Ayla tocava mais uma vez.
Eu não estava mais no estúdio com os meninos, mas no quarto dela, e não tinha ideia de quantos dias tinham passado. Não me lembrava nem a data do dia em que eles me levaram ao estúdio.
Uma sensação ruim tomou conta de mim, fazendo meu peito se apertar de angústia, mas não entendi porquê. Se eu ainda não havia acordado para a realidade, então devia haver um motivo.
De qualquer forma, pelo menos eu tinha certeza de que estava viva.

***


Poucas horas depois, descobri que algumas cenas do livro se passaram sem que eu as presenciasse no corpo de Ayla.
Zico e Dean tinham conhecido a mãe dela, a detetive Cora null, e no momento, eu estava na biblioteca com Karina e Tiana, esperando os meninos chegarem para que eu/Ayla pudesse apresentá-los a elas.
Eu estava sentada de frente para a porta, assistindo enquanto eles se aproximavam. Ambos vestiam roupas casuais, como sempre. Zico estava com um boné branco virado para trás e Dean, diferente do habitual preto, usava uma camisa azul clara.
Um diálogo pronto saiu da minha boca, e um sorriso divertido surgiu em meu rosto.
— Eu tenho certeza de que Dean tem pelo menos umas quatro personalidades dentro dele. Ele nem tá usando preto hoje; só pode ser a personalidade número dois, que eu gosto de chamar de síndrome do bom moço — comentei, fazendo as meninas rirem. — Com exceção da tatuagem no pescoço, que é o que o entrega.
Não ironicamente, aquilo era algo que eu sempre comentava com Kate enquanto ajudava a desenvolver Dean.
O próprio null null sempre me passou essa impressão.
No início de sua carreira, ele era bem ativo, como um cara normal em seus vinte e poucos anos. Gostava de interagir bastante com os fãs e, de vez em quando, abria lives para responder perguntas ou simplesmente ficar cantarolando à toa. Ele não mostrava o rosto na maioria das vezes, mas tinha algo meio intimista naquilo, que aproximava os fãs.
Era como se estivéssemos em uma sala, conversando com ele.
Até que então tudo isso parou e null se fechou para o mundo. De repente, todas as interações com os fãs pareciam um surto coletivo. Houve uma época que eu até transformei a DM dele em um diário.
Passei um ano inteiro escrevendo para o meu null-Diary (sim, uma mistura de null e diário). Isso aconteceu em 2018 e 2019. Eu não fazia ideia se ele lia ou se sequer via aquilo, mas uma parte de mim gostava de imaginar que sim.
Havia começado como uma brincadeira, mas então se tornou terapêutico e, quando percebi, estava desabafando com ele sobre minha vida. Obviamente, nunca obtive resposta. E às vezes, quando eu estava fazendo algo aleatório, como escovar os dentes, eu me lembrava de todas as coisas que tinha falado para ele e ria como uma maluca, uma súbita onda de vergonha me atingindo ao pensar na possibilidade dele ter mesmo lido.
Ao mesmo tempo, eu esperava que aquilo o divertisse.
Durante essa época, ele aparecia esporadicamente no Instagram só para dizer que estava bem e trabalhando em músicas novas. Mas era a mesma ladainha de sempre. Ele dizia que em breve lançaria um álbum novo, e nada desse bendito sair. Até que 2022 chegou e null finalmente reapareceu de vez. Até onde eu me lembrava — considerando que eu não tinha ideia de como tinha ido parar no hospital ou há quanto tempo — estávamos em abril e ele estava concluindo uma turnê na Ásia.
De todo modo, voltando para Tenaz, apresentei Zico e Dean para Karina e Tiana e poucos minutos depois, me vi sozinha com eles, comentando algo sobre marcar um encontro com Dean para ele me ajudar a terminar o trabalho de escrita. Deixei os dois na biblioteca e saí andando pelo campus.
De repente, uma tontura me atingiu e eu cambaleei, sentindo um enjoo terrível. Comecei a suar frio e notei o cenário piscando outra vez entre o céu aberto no campus e o teto branco no quarto de hospital. Até que a percepção de que minha pressão estava caindo me levou ao chão, e eu não enxerguei mais nada.
Fechei os olhos por um instante e...
Quando os abri novamente, eu estava na sala do apartamento de Ayla, sentada no chão sobre uma almofada em frente ao sofá e olhando para uma página em branco do Word, aberta no notebook em cima da mesinha de centro.
Franzi o cenho, tentando me lembrar que parte do livro era aquela, até que a campainha tocou e um segundo antes de abrir a porta, eu soube que Dean me aguardava ali.
Ele me encarou de cima a baixo discretamente, e só então me dei conta que usava uma camisa enorme, que parecia mais um vestido. Eu estava com um short por baixo e automaticamente a puxei para cima, no intuito de ficar mais apresentável, mas Dean segurou meus braços.
Eu lembrava daquela cena. Ele estava se perguntando de quem seria aquela camisa. Talvez de um irmão.
Só que Ayla era filha única. Aquela camisa e várias outras que ela tinha pertenciam a Seojun, o ex-namorado dela e protagonista do segundo livro da série.
Lembrar de Seojun me fez sorrir por dentro. Afinal, ele também era meu queridinho. Assim como Yeong, o prota do livro quatro e Sean, irmão dele e prota do livro cinco, que ainda estava em desenvolvimento. Havia Victor também, que fazia par com Louise, no livro três, mas por algum motivo eu não conseguia me apegar a ele.
Minha skin de Ayla trocou um diálogo automático com Dean e, um instante depois, nos sentamos lado a lado em frente ao computador. Esperei minha skin de Ayla discutir sobre a cena que ela dizia estar travada, e ela e Dean tiveram um papo de gente criativa sobre o livro.
Eu estava grata por não precisar pensar em nada e só assistir em primeira pessoa — praticamente uma realidade virtual — enquanto os diálogos se desenvolviam automaticamente. Até que chegou a hora em que Ayla tinha que escrever a cena.
Esperei um minuto, depois dois, com o som de uma música de Bon Jovi tocando nos meus fones de ouvido, supostamente para inspirar Ayla a escrever, enquanto Dean esperava, trabalhando em uma música.
O problema é que Ayla não moveu um dedo para escrever naquele momento.
Xinguei mentalmente, percebendo que teria controle total sobre a cena, sendo que eu nem sabia escrever, e tentei lembrar do que aconteceria depois daquilo.
Ayla deveria escrever e mostrar a Dean; ele leria a cena enquanto ouvia a mesma música que ela para entrar na vibe dos personagens, então diria que estava perfeitamente descrita e que era ótima. Se os últimos diálogos tinham sido automáticos até ali e eu sabia que aquela era uma cena importante, já que antecedia o primeiro beijo deles, então imaginei que qualquer coisa que eu colocasse no papel serviria para dar impulso às próximas ações.
Escrevi uma cena aleatória de Kate e Hero se encarando e um beijo entre os dois. Deve ter levado uns cinco minutos. Então, cutuquei Dean para que ele lesse.
Aguardei ansiosamente pelo elogio, no entanto, ao invés de ouvir que o texto estava muito bom, tudo o que ganhei foi:
— Hmm, gostei da ideia, mas acho que pode melhorar. Que tal se você descrever mais os sentimentos da Ayla?
Minha cara travou em um sorriso amarelo. Se eu estivesse lendo aquela cena, provavelmente teria rido alto. Mas, ao invés disso, assenti e voltei a trabalhar enquanto ele também se ocupava novamente. Aquilo estava errado. Eu deveria estar vivendo uma fanfic, não trabalhando de verdade, escrevendo um livro que nem era meu. Àquela altura, eu e Dean devíamos estar trocando nosso primeiro beijo, repleto de tensão sexual.
Que palhaçada era aquela?
Respirei fundo, sabendo que ficar parada não ia me fazer ganhar um beijo, então me concentrei de verdade no texto. Eu era boa em corrigir, e ele disse que gostou da ideia da cena, então era só fingir que Kate tinha escrito.
Estalei os dedos e comecei a digitar, notando minhas próprias inconsistências. Dez minutos mais tarde, cutuquei Dean outra vez e saí para beber água, enquanto ele lia.
Então, finalmente ouvi o que queria.
— Tá muito bom, Ayla — ele disse. — De verdade. Você descreveu muito bem.
Talvez eu estivesse no timing errado e o diálogo só deveria acontecer naquele momento. Pensando bem, acho que Ayla realmente havia se levantado para beber água enquanto ele ficava lá, todo concentrado, lendo.
Outro diálogo automático veio, mas de repente fiquei em silêncio, como se tivesse esquecido o que falar.
Dean e eu nos encaramos e ele colocou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha enquanto eu sentia o coração acelerar.
É agora, é agora!
Eu beijaria null null na skin de Dean e então poderia morrer feliz.
Levei a mão ao rosto dele e acariciei sua bochecha com o polegar, notando todas as sardinhas de sua pele, tão claras que só dava para ver com clareza de perto. Não soube dizer quanto tempo aquela troca de olhares durou, mas havia centenas de borboletas no meu estômago. Ou talvez milhares. Eu estava surtando internamente enquanto minha skin de Ayla cumpria o roteiro.
Nos aproximamos um pouco mais e nossas respirações se misturaram. Então fechei os olhos e... Acordei.
Me sentei de uma vez, sentindo a cabeça doer com o movimento e um instante depois, me deparei com o quarto branco dos flashes, definitivamente muito mais vívido e real dessa vez.
— Amor? — Ouvi uma voz conhecida dizer e encontrei Dean ali, em pé, me encarando alarmado.
Será que tinha pulado para a cena em que Ayla ia parar no hospital depois de ser atacada na rua? Mas por que aquele quarto? Eu não lembrava dela ter ficado internada.
— Dean? — Franzi o cenho, tentando lembrar de alguma coisa.
Mas então ele me encarou, confuso.
— Dean? Quem é Dean?
— O quê? — perguntei baixinho.
— Amor, sou eu, null. — Ele se aproximou, segurando meu rosto entre as mãos com carinho. — Você não lembra de mim?
null? — Arregalei meus olhos e comecei a olhar ao redor. — O que é isso? O que tá acontecendo? Por que você tá aqui? É óbvio que eu lembro de você; eu sou sua fã há sete anos! Meu Deus, você é real? — Coloquei minhas duas mãos no rosto dele e belisquei suas bochechas com força.
Ai. null, o que você tá fazendo? — Ele se soltou do meu aperto e esfregou as bochechas.
Parecia real, muito real. Será que minha mente tinha criado um outro universo alternativo?
Me belisquei com força, mas não, não era um sonho. Pisquei várias vezes também, para ver se o cenário mudava, mas continuou a mesma coisa.
Nada aconteceu.
E null null ainda me encarava em confusão.
null? — eu o chamei e depois tive um mini surto de fã. — Caramba, eu não sei o que você tá fazendo aqui, mas eu só queria dizer que amo o seu trabalho e, nossa, você é bem mais bonito pessoalmente. De qualquer forma... eu sou, muito, muito mesmo, sua fã.
Sorri, nervosa e ofegante, com o coração prestes a sair pela boca.
null franziu o cenho e se aproximou, segurando minhas duas mãos e as beijando carinhosamente.
Quase desmaiei.
— Eu sei que você é minha fã, amor. Mas você não lembra?
— Lembrar... de quê?
null... — Ele riu, levemente nervoso, talvez preocupado. — Você é minha namorada.
— Na-namorada? — encarei ele com espanto, sem ter ideia do que estava acontecendo.
— É, minha namorada — null confirmou novamente. — Há três anos.
TRÊS ANOS...!
Meu Deus, aquilo só podia ser outro sonho bizarro. Abaixei a cabeça por um instante e senti tontura outra vez. Minha cabeça doeu e eu senti o ar escapar de meus pulmões.
Eu tinha tantas perguntas.
Levantei o olhar para encará-lo novamente, mas então, antes que qualquer palavra saísse, fui tomada pela escuridão mais uma vez.

Capítulo 3

Uma dor latejante na cabeça me fez gemer, incomodada.
Devagar, abri os olhos, me acostumando aos poucos com a luz forte do teto e, com a mão na cabeça, me sentei devagar.
Ai...
null? — Ouvi a voz de null novamente e, mais uma vez, o encontrei sentado em uma poltrona ao lado da cama.
— O que aconteceu? — perguntei, me dando conta de que ainda estava no mesmo quarto de hospital que eu me lembrava.
Passei a mão pelo cabelo e encontrei fios longos e vermelhos. Aquele era meu corpo, supus. Virei o braço esquerdo e encontrei minha tatuagem de libélula, idêntica à que null tinha no mesmo local.
Sim, definitivamente era o meu corpo.
Respirei fundo e olhei ao redor, notando que não havia nenhuma falha no cenário.
null. — null se levantou e segurou meu rosto novamente, me fazendo encará-lo. — Como tá se sentindo, amor? Você desmaiou há alguns minutos, o médico disse que pode ter sido do susto e...
null! — Ouvi a voz de null e desviei o olhar, no mesmo instante em que ela passou pela porta, levemente afobada. — Finalmente você acordou. Tá sentindo alguma coisa?
— Não faço ideia do que tá acontecendo — foi minha resposta. — Por que null null tá no meu quarto e me chamando de amor? Isso é um sonho?
null exalou o ar de uma vez, se sentando na cama. null deu um passo para trás e voltou a se sentar na poltrona, nos dando um pouco de espaço.
— Não, irmã. Não é um sonho — null disse. — Você não lembra mesmo do que aconteceu? Não lembra de null?
— Não, não lembro de nada. Que dia é hoje? Eu só lembro de voltar da turnê com a Kate e... Não sei. Só lembro de acordar no corpo da Ayla.
— O quê? Ayla? Tipo, a personagem de Kate?
— A própria. Eu praticamente vivi uma fanfic. — Sorri ao lembrar, mas logo meu sorriso se transformou em uma careta. — Acordei quando tava prestes a dar meu primeiro beijo em Dean. E ele era igualzinho ao-
Parei de falar, lançando um olhar discreto para null, que ainda me encarava com atenção. Por um momento, o encarei de volta, mas logo a voz de null chamou minha atenção novamente.
null... Você foi atropelada há quatro dias. Ficou inconsciente desde então, retornando apenas por alguns segundos, mas só acordou mesmo hoje. O médico disse que você poderia acordar a qualquer momento, mas... Nós ficamos muito preocupados. Você não lembra de mais nada além do trabalho?
— Não, null. — Franzi o cenho, irritada. — Não lembro de nada. Eu sofri uma pancada na cabeça? Sinto ela doer.
— Você bateu a cabeça quando caiu, mas tudo o que ganhou foi um galo, nada de mais. E alguns arranhões e hematomas pelo corpo.
— Só isso? Tem certeza? — perguntei, desconfiada. Então vi null trocar um olhar com null por um mísero segundo e fiquei mais desconfiada ainda. — O quê? Que olhar é esse? Tão me escondendo alguma coisa?
null, você tá bem, prometo — null confirmou. — Precisamos apenas chamar o médico pra te examinar de novo, agora que você acordou. Eu já volto. — E saiu, me deixando sozinha com null mais uma vez.
O encarei com timidez e coloquei o cabelo atrás da orelha, subitamente tentando me tornar mais apresentável. Sorri fraco, sem saber o que fazer, e comecei a brincar com meus próprios dedos. Até que encontrei uma aliança no anelar direito e levantei a mão, franzindo o cenho. Automaticamente, desviei o olhar para a mão direita dele e encontrei uma aliança semelhante.
Percebendo o que eu estava fazendo, null até levantou a mão para que eu pudesse ver melhor.
— Sim, é nossa aliança de compromisso. Começamos a usar quando fizemos seis meses de namoro — ele contou, me encarando meio sem jeito. — null... Você não se lembra mesmo de nada? De verdade?
— Sim, não lembro. Não faço ideia de por que você tá aqui. Na minha cabeça, eu nunca te conheci.
null suspirou, parecendo frustrado. Ele abriu a boca para falar, mas então null voltou com o médico e uma enfermeira.
— Boa tarde, Srta. null. Eu sou o seu médico, Keith James — ele se apresentou. — Sou o neurologista que está cuidando do seu caso.
— Neurologista? — indaguei, enquanto o cumprimentava com um aperto de mão.
— Sim. Fomos informados que você acordou sem lembrar de algumas coisas. Me diga, você sabe em que mês e ano estamos?
— Sim, abril de 2022.
— Você se lembra onde mora?
— Com minha irmã, null, no Brooklyn — respondi calmamente, mas foi a vez de null franzir o cenho. — O que foi?
— Você não mora mais comigo, null.
— Como assim? — Eu ri, confusa. — Se eu não moro com você, então... — Encarei null rapidamente, antes de voltar o olhar para minha irmã. — Não, né?
— Sim — ela confirmou minha pergunta silenciosa. — Faz dois anos que você e null moram juntos.
Eu ri e dei um tapa na minha própria perna, achando engraçado. No entanto, eu era a única rindo.
— Isso é uma pegadinha? Você não é mesmo meu namorado, né? — Encarei null. — Isso é, tipo, impossível.
— É claro que sou. Por que seria impossível?
— Ah, pelo amor de Deus! Você é null null! Por que ia namorar alguém como eu?
— Como assim “alguém como você”, null? — ele perguntou, um tanto indignado. — Se eu tô dizendo que sou seu namorado, então é porque é verdade. Eu não brincaria com uma coisa dessa.
— Tá, então se você é mesmo, me fala alguma coisa que só você pode saber — o desafiei. — Tipo alguma coisa que eu não contei pra ninguém.
— Tá. — null deu de ombros. — Você tem uma pinta minúscula no seio direito. E outra no interior da coxa, perto da virilha.
Abri a boca em choque, colocando as duas mãos sobre os seios automaticamente.
— Como você sabe disso? — perguntei, sem pensar.
null sorriu de canto.
— Como você acha que eu sei?
— Meu Deus... — Senti o rosto esquentar instantaneamente e desviei o olhar. O médico pigarreou e eu o encarei outra vez. — Desculpe, doutor. Onde estávamos?
Dr. James e Andressa, a enfermeira, me examinaram um instante depois e fizeram mais uma série de perguntas sobre minha vida. Contei também sobre o suposto sonho que tive, indo parar dentro do meu livro favorito, enquanto ele assentia e anotava rapidamente em sua prancheta. Reclamei da dor de cabeça e ele me recomendou um analgésico padrão para a dor. Então se despediu de mim e pediu para que null e null o acompanhassem.
Fiquei sozinha no quarto e olhei em volta novamente. Havia uma grande mochila preta em cima da poltrona e um cobertor lilás felpudo. O quarto em que eu estava não era grande, mas era particular e tinha um banheiro próprio. Pensei em me levantar para ir ao banheiro, mas então notei algo pendurado na grade da cama. Que porra é essa? Segui o tubo que ligava ao saco plástico com líquido amarelo e fiz uma careta.
— Por favor, não seja uma sonda, por favor... — Levantei a coberta e vi que o tubo se perdia no meio das minhas pernas.
Choraminguei, completamente mortificada. Aquilo era o cúmulo da humilhação. null null tinha visto aquele troço em mim! Por que aquilo tava acontecendo? E quando iam tirar aquele troço? Por que eu tive que ficar desacordada por tanto tempo?
Enfiei as mãos no cabelo, sem me importar de bagunçá-lo, e gemi baixinho. Senti uma protuberância do lado esquerdo e lembrei do galo que null tinha mencionado.
Um momento depois, minha irmã e meu suposto namorado voltaram para o quarto acompanhados da enfermeira, que trazia uma bandeja de metal com luvas e uma seringa.
— Srta. null, agora que acordou, vou retirar sua sonda vesical. O Dr. James planeja te dar alta em algumas horas e então poderá ir pra casa.
Eu a encarei, assustada, enquanto meu cérebro ecoava as palavras retirar e sonda, e então me virei para null.
— Sai daqui! — O expulsei, apontando para a porta. — Você não vai ver ela tirar esse troço de mim nem a pau, já basta eu ter perdido minha dignidade no meu período de inconsciência.
Felizmente, null não discutiu; apenas assentiu e deixou o quarto em silêncio. null se sentou na poltrona em que ele estava e eu sabia que dali a minha irmã também não estaria tendo um vislumbre das minhas partes íntimas.
A enfermeira então colocou luvas e pediu licença para levantar a minha bata hospitalar. Em seguida, pegou uma seringa grande e vazia e aspirou um líquido do tubo. Até ali, tudo bem. Mas então ela começou a puxar o tudo de dentro de mim e estremeci ao sentir arder. Que porra era aquela? Parecia que estava me queimando!
Tudo bem, talvez queimar seja um pouco dramático demais, mas mesmo assim!
Quando ela terminou com a sonda, saiu por um instante e depois voltou para retirar o acesso venoso do meu braço esquerdo. Pelo menos isso não foi doloroso.
— Eu posso tomar banho? — perguntei, assim que ela terminou.
— Claro, há algumas peças de roupa no armário e absorventes. — Ela apontou para o que parecia mais uma mesinha de cabeceira, ao lado da cama. Eu nem tinha notado que havia duas gavetas. — Você sangrou por alguns dias e acredito que parou, mas para o caso de ainda acontecer.
— Certo. Obrigada — eu disse, imaginando se teria menstruado mais cedo, ou se era algum tipo de sangramento de escape.
Me levantei assim que eu e null ficamos sozinhas e procurei rapidamente por roupas, toalhas de banho e produtos de higiene. Eu tinha consciência de que no hospital provavelmente estavam me limpando, mas mesmo assim eu me sentia suja. Eu sabia como os banhos no leito funcionavam, Kate já tinha me falado sobre isso; mas nada se comparava a tomar um bom banho de chuveiro, que foi o que fiz, logo em seguida.
Notei um pouco de sangue, de fato, e imaginei que devia ser mesmo algum sangramento de escape devido ao meu anticoncepcional, então resolvi usar um dos absorventes. Felizmente, eu não sentia nenhuma dor na região do ventre.
Dez minutos depois, saí do banheiro devidamente vestida, com um vestidinho leve e sem alças, um pouquinho acima do joelho. Ah, e calcinha. Era bom saber que eu estava usando calcinha. Até espirrei um pouco do meu perfume pós-banho favorito. Me senti uma nova pessoa. Quem diria que eu poderia recuperar, tipo, noventa por cento da minha dignidade só com um pouquinho de higiene básica?
Obviamente, eu ainda estava envergonhada pelo lance da sonda, mas enquanto me trocava, decidi que fingir demência era o melhor remédio.
Era o que Ayla faria, provavelmente. Então decidi me inspirar nela depois de passar os últimos dias vivendo em seu corpo. E pensar que tinham se passado só quatro dias no mundo real... Uma pena que eu tivesse acordado na hora do beijo.
Que tristeza.
null voltou para o quarto alguns minutos depois e me encarou com uma expressão séria. Notei olheiras escuras embaixo de seus olhos e, meio sem jeito, tentei puxar papo.
— Você não tá dormindo direito? Parece cansado. — Apontei para o meu próprio rosto. — Suas olheiras...
— É claro que não dormi bem, eu nem sabia quando você ia acordar, null.
Franzi o cenho, e encarei null, pedindo ajuda silenciosamente.
null tá aqui desde que voltou da turnê. Ele não saiu do seu lado desde então — ela explicou. — O médico disse que é bom você voltar pra sua própria casa, ele acha que pode ser um bom estímulo pra você lembrar do que esqueceu e... Disse que nós devíamos contar as coisas a você aos poucos, o que você esqueceu.
— E você? Tá morando sozinha?
— Sim, mas posso passar uns dias com você se isso te deixar mais confortável. — Ela ofereceu.
Assenti prontamente e null se levantou, me deixando a sós com null, que ainda me encarava com aquela expressão séria no rosto.
— Eu posso te abraçar agora ou você vai me expulsar de novo do quarto? — ele quis saber.
— Tudo bem agora, eu acho... — respondi baixinho e mal tinha terminado quando me vi envolvida em seus braços.
A primeira coisa que notei foi o cheiro que invadiu minhas narinas. Eu não tinha muita noção de notas aromáticas, mas tinha certeza de que aquilo era algum perfume amadeirado e... Verde. Bem refrescante. Como o que eu estava usando no momento; mas o dele era masculino e... Dei uma fungada discreta em seu pescoço... Delicioso. O corpo dele era quente e aconchegante, ainda melhor do que imaginava. Já os braços... Mais fortes do que eu esperava. Foi a segunda coisa que notei.
De repente, meu cérebro entrou em alerta e eu comecei a raciocinar rápido.
Será que fazia mal eu apertar os bíceps dele? Só um pouquinho... Um tiquinho de nada. Só pra sentir...
Arrastei a mão pelo braço dele sorrateiramente, mas antes que eu pudesse tocá-lo, ouvi null soluçar baixinho.
Franzi o cenho e me afastei, alarmada.
— Espera, você tá... Chorando? — Encarei o rosto lindo dele, molhado por lágrimas, e senti o coração apertar. — Não chora — murmurei baixinho e segurei seu rosto, tentando afastar as lágrimas com o polegar.
null suspirou, tentando controlar a própria respiração.
— Eu devia ter voltado pra casa antes. Fiquei mais alguns dias fora e era pra termos saído juntos no dia do acidente, foi nosso aniversário de três anos.
— Nosso... Aniversário?
Por que eu não lembrava daquilo?
null assentiu e continuou a falar.
— Só que eu tive um problema com o voo e te disse que não ia conseguir chegar a tempo, então você saiu sozinha. Foi tudo minha culpa. Se eu tivesse com você, isso não teria acontecido e nós não teríamos... — A voz dele falhou. — Sinto muito, amor. Sinto muito. — Ele segurou minhas mãos, as beijando.
— Tá tudo bem... Não tinha como ninguém imaginar isso — tentei confortá-lo. — Poderia acontecer com qualquer um.
— Prometo que vou te recompensar, null. Vamos fazer o que você quiser. Eu sei que você não lembra da gente ainda, então vamos seguir o que o médico falou e ir devagar.
— Tá, tudo bem...
— Eu te amo tanto, amor. Você não sabe o alívio que foi quando te vi acordada de novo. — Ele colocou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
Subitamente, lembrei da última cena que vivi no corpo de Ayla.
Então, como se meu corpo tivesse vida própria, levei uma mão até o rosto ainda úmido dele e me aproximei, selando nossos lábios suavemente.
null retribuiu o beijo sem hesitar, mas não nos demoramos.
Tecnicamente, eu já tinha beijado ele centenas de vezes, mas meu estômago estava cheio de borboletas outra vez. No entanto, por algum motivo, por fora eu estava calma. Me afastei de null e nos encaramos em silêncio por alguns instantes, até que null voltou para o quarto.
Algumas horas mais tarde, eu tive alta.

Capítulo 4

Já era noite quando chegamos ao apartamento em que aparentemente eu morava com null.
null tinha ido para casa buscar algumas roupas para passar uns dias comigo e depois nos encontrou novamente no hospital para irmos juntos.
Mal falei com null depois de beijá-lo. Me senti uma adolescente inexperiente depois que nos separamos, e os minutos que passamos a sós enquanto null estava fora não ajudaram. Peguei meu celular em uma tentativa de ocupar as mãos e me distrair do monumento que se intitulava meu namorado e null meio que desistiu de tentar conversar comigo depois de um tempo — ou talvez ele estivesse apenas me dando espaço — e saiu para falar ao telefone com Jace, seu gerente.
Enquanto fiquei sozinha, revirei meu celular e encontrei mensagens com Kate e null, das quais eu lembrava, entre outras. Obviamente, minha maior surpresa foi a janela de conversa com null, que parecia provar cada vez mais real o nosso suposto relacionamento.
As últimas mensagens dele eram avisando sobre o voo que deu errado e a mais recente, dizia que tinha acabado de entrar no avião que viria de Chicago para Nova York.
Era meio surreal. E pensar que apenas algumas horas atrás, eu estava dentro do meu livro favorito, vivendo uma fanfic.
Então acordei e descobri que minha vida real era uma fanfic.
Eu não parava de lembrar da sensação dos lábios de null sobre os meus. E de como ele tinha sido carinhoso e cuidadoso. Mas também não sei o motivo real do impulso que tive de beijá-lo. Eu o via como meu ídolo, a quem eu amava, mas não lembrava de estar realmente apaixonada por ele. Ao mesmo tempo, seu toque não me era estranho. Meu estômago podia estar lotado de borboletas, mas eu também estava, de alguma forma, tranquila.
Como se meu corpo reconhecesse o dele, mesmo que minha mente não.
Era uma sensação agridoce.
Eu sabia de tudo sobre null, e até mais do que eu me lembrava, considerando que estávamos juntos há três anos. No entanto, a possibilidade de ficar sozinha com ele ainda me deixava inquieta.
Não era medo, isso eu tinha certeza, mas para mim tudo parecia muito novo.
Encarei a tela do celular, intrigada. Todos os dias nós trocávamos mensagens, mesmo que poucas vezes. Não demorei muito para perceber que eu falava mais, e um sorriso levantou meus lábios ao ler algumas das nossas conversas.
Normalmente, null mandava fotos de pratos de comida e era algo tão besta, mas eu achei fofo. Ele também sempre me dava bom dia primeiro e eu, boa noite. Imaginei que minhas noites fossem mais curtas que as dele, considerando que ele estava em turnê.
No período dos concertos da Ásia, nossas mensagens foram mais escassas, com respostas horas depois, provavelmente por conta do fuso-horário. Havia uma troca de mensagens sobre isso especificamente em que concordamos que era horrível ficar horas de distância um do outro.
Mas se estávamos juntos há três anos, eu sabia que não era a primeira vez que aquilo acontecia.
Eu lembrava da carreira dele.
Continuei passando as mensagens, maravilhada por nossa interação e fiquei sorrindo como uma completa idiota ao notar que ele sempre dizia que me amava. E perguntava se eu estava bem e como foi o meu dia. Também me chamava de "meu amor" na maioria das vezes, ou simplesmente "amor". Ele usava "null" de forma mais casual e "null" em situações mais sérias, como tinha feito mais cedo.
Parei de ler quando null chegou. Eu podia dizer que estava meio chateada por ele não estar presente no nosso aniversário de três anos, mas ao mesmo tempo, eu não me entendia muito bem. Era o trabalho dele, certo? Datas comemorativas eram importantes, mas havia mesmo motivo para ficar chateada? Tipo, de verdade?
Será que foi por que eu esperava que ele chegasse uma semana mais cedo?
E o que era aquilo? A coisa que eu disse que precisava conversar com ele. Não parecia algo ruim. Mas se eu não lembrava, então null também não saberia de nada já que aquela conversa nunca chegou a acontecer.
E agora eu estava ali.
Levou cerca de quarenta minutos para chegarmos ao apartamento. null digitou uma senha na porta e gentilmente me informou que era a data do nosso aniversário: 6 de abril de 2019.
Assenti em silêncio e ele abriu a porta. Entrei primeiro, enquanto ele ajudava null com a bagagem, mas parei na entrada quando me deparei com o tamanho daquele lugar.
Era simplesmente enorme.
Eu ganhava muito bem como agente literária de Katherine Reed, mas naquele momento, me senti pobre. Era até engraçado pensar assim, porque não era nenhuma surpresa que null fosse muito rico.
Uma pequena tour começou assim que ele entraram. Fomos primeiro ao quarto guardar a bagagem de null, e null informou que ali era o quarto de hóspedes. Depois ele nos levou ao nosso quarto. Grande, com uma parede inteira de vidro e cortinas blackout automáticas. Chique. Havia um closet que compartilhávamos também e eu me surpreendi com o tanto de coisas que eu tinha. Não me lembrava daquilo também. O apartamento que eu dividia com null no Brooklyn não era nem de perto tão grande como aquele, embora fosse de um tamanho razoável. E, definitivamente, o closet que eu tinha lá não chegava aos pés desse. Me senti a própria Carrie Bradshaw.
O banheiro também não deixava a desejar. Tinha uma banheira suficientemente grande para caber duas pessoas e minha imaginação um tanto fértil ficou um pouquinho solta quando vi. O quarto inteiro era decorado em tons de cinza bem escuro, o que eu gostava, e quando comentei isso, null disse que eu escolhi a decoração.
Agora tudo fazia sentido.
— Você pode dormir aqui com null, se quiser. Ou ir para o quarto de hóspedes, caso não queira dormir comigo ainda.
Ainda.
O jeito que ele falou era como se tivesse certeza de que eu ia querer dividir o quarto com ele em algum momento.
Errado não estava. Que fã não gostaria de dividir um quarto com null null? Eu não era de ferro.
No entanto, ainda não estava acostumada com a presença dele, mesmo tendo lido todas as mensagens trocadas dos últimos seis meses para ter um pouquinho de noção de como era o nosso relacionamento.
Mesmo tendo gostado do que li.
Me senti um pouquinho mais apaixonada por null depois daquilo, mas não tinha certeza se eram os sentimentos da null, namorada dele ou null, a fã.
Eu tinha consciência de que null era uma pessoa normal como qualquer outra, mas... alguém podia me culpar? Eu não sabia como era a nossa dinâmica e teria que reaprender. Até mesmo por recomendações médicas.
null disse que a situação com o livro e o fato de eu não lembrar do meu próprio namorado poderia ser um reflexo do trauma do acidente, mas eu não entendia. Não era como se eu tivesse me machucado muito. Não quebrei nada, e me sentia completamente bem, salvo algumas partes arroxeadas e doloridas do meu corpo.
null continuou a tour pelo apartamento e eu descobri que tínhamos um escritório com uma biblioteca e um estúdio de música.
— Normalmente, você trabalha no escritório ou passa o tempo lendo lá quando estou no estúdio.
— Eu não fico no estúdio com você também? — perguntei, curiosa.
— Como você mesma disse, null, você é minha fã — null abriu um sorriso travesso. — Eu não te dou spoilers.
— O quê?! Como assim? — O encarei, indignada. — Eu sou sua namorada há três anos e você me deixa no escuro?
— Isso mesmo, amor. — Ele deu uma risadinha. — Entrada restrita.
— Que crime, null!
Ele sorriu mais, parecendo achar engraçada a minha reação.
Cerca de uma hora mais tarde, eu já tinha colocado um pijama quando null se ofereceu para fazer o jantar.
— Desde quando você cozinha? — perguntei, me sentando em um banquinho em frente à bancada para observá-lo. Assim como o resto do lugar, a cozinha também era espaçosa.
— Desde que você me ensinou — ele respondeu, com um sorriso.
Eu te ensinei? — Apontei para mim mesma, incrédula. — Quando?
— Desde que começamos a namorar. Quando temos tempo, até procuramos receitas novas pra testar.
— Sério? — O encarei, surpresa. Aquilo era muito legal. — Nunca imaginei isso.
— Amor, você me tem comendo na palma da sua mão e nem sabe — ele confessou. — Ou melhor, nem lembra. Não tô nada feliz em saber que você esqueceu tudo o que vivemos, que esqueceu de mim como seu namorado, mas vou fazer o possível pra te fazer lembrar. Não posso te contar tudo pra não te sobrecarregar, mas espero que isso passe logo.
— Sinto muito. — Encolhi os ombros, sentindo o rosto queimar. — Não sei por que tô assim. Deve ser estranho pra você… Tô parecendo uma fã maluca.
null suspirou, com o rosto subitamente sério, e então se aproximou de mim. Mais uma vez, colocou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e, estranhamente — ou não —, me senti à vontade com o seu toque.
Eu não sabia o que aquilo significava. Fazia apenas algumas horas que eu tinha descoberto que ele era meu namorado, mas de algum jeito, depois que comecei a digerir aquela informação, consegui enxergá-lo de uma forma mais tranquila.
Eu não estava cem por cento à vontade perto dele, isso era óbvio, e acho que até ele percebia; mas também já não estava mais tão travada. Depois do choque inicial, as coisas pareciam estar fluindo mais naturalmente.
— Você sempre vai ser uma fã meio maluca, amor. A minha favorita — ele confidenciou, como se fosse um segredo. — Pode não lembrar de nada ainda, mas nos conhecemos melhor que ninguém. Você sempre diz que somos como almas gêmeas que se encontraram por acaso, e eu não poderia concordar mais.
Então ele se inclinou e beijou minha testa. Fechei os olhos, apreciando o contato pelo curto instante antes dele se afastar e voltar a se concentrar no jantar.
null preparou uma carne suína desfiada e alguns acompanhamentos para montarmos sanduíches. Ele contou que havia uma padaria perto de onde morávamos, onde comprávamos os nossos pães favoritos, e que tinha encomendado alguns depois que soube que eu teria alta.
Pensando bem, ele estava com uma sacola que pegou na portaria quando chegamos, então imaginei que fosse isso. null apareceu no momento em que começamos as montagens.
Montei meu sanduíche com abacaxi caramelizado, carne, cebola roxa crua e um pouquinho de pasta de pimenta coreana. null contou que tínhamos alguns ingredientes orientais em casa para testar receitas, já que ambos éramos fãs de culinária asiática.
Mordi meu sanduíche e, de repente, me senti o próprio Remy de Ratatouille, com uma explosão de sabores na boca.
— Isso aqui tá uma delícia. Minha nossa... — comentei, dando outra mordida e gemendo de satisfação. A comida em si não tinha nada de mais, mas a junção de tudo foi tipo... Boom! Uma delícia, de fato.
null deu uma risadinha ao ver minha reação e null o acompanhou.
— Tem alguma coisa que eu esqueci sobre você? — perguntei a ela, de repente.
— Não. Até onde notei, você sabe de tudo.
— Você não casou nem nada assim, né?
— Definitivamente não. — Ela estreitou os olhos, como se eu tivesse acusado ela de um crime.
— Ei, é só casamento. Você não tá com aquele cara, o Garrett? Loiro, alto, que curte hóquei? — comentei, e ela assentiu. — Ele é um gato. Se eu fosse você, eu investiria nele.
null engasgou com a comida e tossiu, de repente. Dei tapinhas nas costas dele.
— Investiria, é? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Por que, ele faz seu tipo?
Pisquei, levemente confusa.
O que era aquilo? null null estava com ciúmes? De mim?
Segurei um sorriso e bebi um gole da minha coca zero — aparentemente, refrigerantes com açúcar não entravam no nosso lar.
— Eita... Por que a pergunta, de repente? Você deve saber muito bem que eu curto caras de cabelos escuros, altos e tatuados. De preferência, com uma voz rouca e sexy.
null estreitou os olhos para mim, sério, mas eu sabia que ele também estava segurando um sorriso.
— Se você diz...
Troquei um olhar com null e ela balançou a cabeça, rolando os olhos, então entendi que aquilo devia ser algo recorrente entre nós.
— Você vai trabalhar amanhã? — perguntei a null, antes de dar outra mordida no meu sanduíche divino.
— Só no estúdio. Terminei a turnê e não tenho nenhum plano de deixar esse apartamento até você se recuperar. Ah, e conversei com Kate. Ela me explicou que vocês tão tirando uma folga de duas semanas.
— Você conhece a Kate? — Arqueei uma sobrancelha.
— É claro que sim. Vocês trabalham juntas. Eu conheço todos os seus amigos, null.
Todos? Tentei imaginar uma situação em que null e Andrew interagiam, mas não consegui pensar em nada. Eles eram bem diferentes um do outro.
null tinha cara de bad boy, o tipo que te seduziria facilmente só com um olhar. Andrew era... um intelectual engraçadinho. Muito divertido, e nós éramos superamigos, mas será que ele e null se davam bem?
— Até o Andrew? — perguntei, sem pensar.
— Sim, até ele — respondeu ele, fazendo uma careta.
Foi o suficiente para entender que, ou eles não se davam muito bem, ou null era ciumento por eu ser amiga do meu ex, que, por acaso, também era um dos meus chefes.
Por algum motivo, achei aquilo engraçado, mas não comentei nada. Depois do jantar, eu e null cuidamos da louça — ou melhor, a lava-louças cuidou — e depois nos recolhemos para o quarto.
— Tá tudo bem? — ela me perguntou, alguns minutos depois de nos deitarmos em silêncio.
— Sim, só tô um pouco confusa. Parece maluquice, null. Até algumas horas atrás, eu tava dentro de Tenaz. Juro, foi muito, mas muito real.
— O médico disse que pode ser um mecanismo de defesa, null. Se tudo correr bem, logo você vai recuperar as memórias sobre o null.
Assenti, um pouco insegura. Minha mente ainda girava com perguntas que eu queria fazer, mas tentei deixar isso de lado e decidi que, assim como tinha feito com Ayla, esperaria a minha história com null acontecer. A diferença era que, daquele roteiro, eu não sabia de nada.
Conversei com minha irmã por mais alguns minutos, me certificando de que null realmente era a única parte da minha vida pessoal que eu havia esquecido, e caímos em silêncio novamente.
Não demorou muito até a respiração de null ficar pesada, e imaginei se null já tinha adormecido também. Ele parecia bem cansado, então torci para que sim. No entanto, eu não estava, não depois de ficar inconsciente por dias. Então, depois de alguns minutos tentando encontrar uma posição para dormir, desisti de esperar pelo sono e peguei meu celular.
Abri o aplicativo de leitura e comecei um novo livro.

Capítulo 5

A primeira noite que passei em casa após voltar do hospital foi bem mais ou menos.
Minha cabeça estava cheia e fiquei pelo menos duas horas lendo antes de deixar o celular de lado e tentar dormir. Demorei mesmo assim. Fiquei tentada a navegar na internet, mas sabia que não era uma boa ideia. Não quando meu namorado de três anos era um astro do R&B e nosso relacionamento era público. Eu não precisava ver para saber que as pessoas provavelmente estavam fofocando sobre nós. Então decidi me contentar só com aplicativos de leitura e até excluí os de todas as redes sociais que eu tinha.
Acordei no dia seguinte por volta das sete e meia da manhã e me levantei para ir ao banheiro. Fiz minha higiene matinal, notando que o último absorvente que coloquei antes de dormir ainda estava limpo e imaginei que o sangramento já havia passado por completo. Joguei fora e então escovei os dentes e lavei o rosto, antes de deixar o quarto.
Andei pelo corredor até a cozinha enquanto amarrava meu cabelo com um nó em um coque alto e passei pela porta do quarto de null (ou melhor, nosso), notando que ainda estava fechada; o completo silêncio ao redor me fez pensar que ele ainda estava dormindo.
Era quinta-feira e eu havia passado metade da semana inconsciente em uma cama de hospital, então talvez fosse por isso que minha necessidade de sono tinha diminuído. Já null devia estar o contrário, coitado. Uma parte de mim se sentia um pouquinho mal por ser o motivo das noites mal dormidas dele. Mas a outra estava tipo: ah, isso é o quanto ele se importa com você.
Eu sempre acreditei que atitudes falavam mais do que palavras e não precisei de muitas horas para entender que os sentimentos que null tinha por mim eram reais, eu só não sabia ao certo a extensão deles.
Como fã completamente delulu das ideias, sempre me perguntei como seria estar do lado dele. null era meu favorito há sete anos, mas por mais delulu que eu fosse — e era divertido —, eu sabia que não passava disso. Ou pelo menos era o que eu acreditava até descobrir que somos um casal há três anos.
Dava vontade de rir de nervoso toda vez que eu lembrava disso. Eu não sabia por que minha mente havia bloqueado essa informação depois do acidente. null e eu nem estávamos brigados nem nada e nós nem discutíamos com frequência. Além disso, se eu pudesse escolher, obviamente optaria por nunca esquecer tudo o que vivemos.
Mas tudo estava confuso pra cacete e eu nem tinha o que fazer. Muito legal.
Suspirei, resignada, e comecei a cutucar os armários da cozinha e a geladeira em busca de comida para o café da manhã. Tecnicamente, aquela era minha casa, então resolvi ficar à vontade. Não era como se null fosse ligar, já que queria que eu ficasse confortável de novo.
Encontrei iogurte e frutas na geladeira e resolvi fazer uma salada. Havia pão também, de um massa bem macia, e não pensei duas vezes em tirar algumas fatias para fazer torradas na manteiga.
Eu estava no meio do processo quando senti braços fortes ao meu redor. Larguei a faca e enrijeci levemente, surpresa por não ter notado null se aproximar, e minha pele arrepiou quando ele encostou o queixo no meu ombro, as pontinhas molhadas do cabelo dele fazendo cócegas no meu rosto.
Minha mão coçou com um impulso de enfiar os dedos no mar de fios negros dele, mas me contive. null suspirou e começou a falar.
— Eu sei que você ainda não tá acostumada comigo, mas vamos ficar assim só um pouquinho — ele pediu suavemente.
— Tudo bem… — Relaxei em seu abraço.
Ele respirou fundo e eu fiz o mesmo, sentindo um cheiro diferente. Seu corpo estava levemente frio e, por um instante, achei que estivesse sentindo o cheiro de seu sabonete, mas levou apenas um segundo para saber que era sua loção pós-barba. Eu não fazia ideia de como eu sabia que era, mas tive certeza.
Um sorriso se insinuou em meu rosto e coloquei uma mão em cima das dele, ao redor de minha cintura. Me encostei em seu peito, aproveitando o contato e null continuou a falar.
— Eu senti tanta saudade. Passei quase dois meses sem te ver pessoalmente e então descobri que você tinha sofrido um acidente antes mesmo de sair de Chicago. A viagem pareceu tão longa que achei que não fosse chegar. Eu fiquei apavorado, null — ele confessou baixinho, mas senti o peso de cada palavra. — Tive medo de perder você, e quando o médico disse... Quando fiquei sabendo de tudo, me recusei a sair do seu lado. Mas a cada dia que passava, fiquei mais preocupado ainda, porque você não acordava. Foi assustador.
Franzi o cenho, me sentindo triste por ele. Eu nunca tinha passado por algo assim com alguém, mas não duvidava que fosse mesmo assustador. De repente, me lembrei de uma cena de Tenaz em que Ayla vai parar no hospital e Dean fica maluco. Eu não voltei mais para o livro (ou sonhar com ele) ao adormecer, então imaginei que fosse temporário.
De todo jeito, quando ouvi null falar, me vi confessando baixinho também.
— Foi tão real, null. Eu sei que parece maluquice, mas juro que vivenciei mesmo a história de Tenaz por algumas semanas enquanto fiquei desacordada. — Me virei para encará-lo. — Acordei no corpo da Ayla, mas ela tinha meu rosto. Acho que por conta do jeito como Kate narrou, sem dar muitos detalhes para as aparências. Foi como se eu tivesse ido parar naquele universo antes da história começar, sabe? Foi estranho e divertido.
null sorriu de leve e eu coloquei uma mão no rosto dele, voltando a falar, enquanto ele me ouvia em silêncio, prestando atenção em cada palavra.
— Você também tava lá. Você era o Dean, meu par romântico. — Sorri ao lembrar. — Por isso te chamei de Dean quando acordei.
— Parece ter sido divertido mesmo, amor. — Ele beijou a palma da minha mão e eu a deixei escorregar pela tatuagem do lado esquerdo de seu pescoço.
Era tão bonita e combinava exatamente com ele. Sorri, admirando o desenho, e passei o polegar por cima de uma das flores de ameixa.
De repente, um flash de memória apareceu. Eu e null estávamos sozinhos em um bar amplo e eu o toquei bem ali, borrando um pouco da tinta com o polegar.
Franzi o cenho, confusa.
— Você já retocou essa tatuagem alguma vez? — perguntei sem pensar.
null me encarou, surpreso.
— Sim, há três anos.
— Há três anos? Por acaso eu esbarrei nela alguma vez? Me veio uma lembrança, mas não sei se foi real ou algum sonho que tive com você. Nós estávamos em um bar...
— Um bar grande e vazio? — Eu fiz que sim, vendo esperança brilhar em seu olhar. — null, foi a noite em que nos conhecemos. Você lembrou, amor?
— Eu... Não sei. Acho que-Ai! — Senti uma dor repentina na cabeça e cambaleei para frente. Teria caído se não fosse null me segurando.
null? O que foi, amor? Tá com dor na cabeça? — Assenti, em silêncio. — Vem, senta aqui. — Ele me guiou para um dos banquinhos da bancada. — Vou pegar o seu remédio.
E se virou em direção a um dos armários da cozinha. Um instante depois, null me entregou um comprimido e um copo de água, e agradeci baixinho.
— Foi momentâneo. Eu tô bem agora — tentei explicar, quando me levantei para terminar de fazer o café da manhã, mas ele não deixou.
— Não, não — null retrucou. — Fique aí e deixe que eu cuido do café.
null... São só torradas e salada de frutas. Eu não tô inválida, sabe...
— E daí? Por que você não me deixa te mimar um pouquinho? — ele perguntou. — Eu quero te compensar por todas as semanas que estive longe, null. Vou te mimar até você enjoar de mim — prometeu ele, me fazendo rir.
null sorriu também, mas ainda havia uma tristeza em seu olhar. Ele ainda estava preocupado. Cerca de dez minutos depois, nós dois estávamos sentados, comendo em silêncio, quando null apareceu feito um furacão e roubou uma das torradas de null antes dele colocá-la na boca.
— O que houve? — A encarei, sem entender. — Tá correndo por quê?
— Tô atrasada. Hoje é minha folga, mas falei pra uma colega que ia substituir ela hoje e esqueci. Minha aula começa às dez, mas é longe daqui.
— Tá, boa sorte! — falei, no instante em que ela atravessou a porta.
null dava aulas de inglês em uma escola do Brooklyn há alguns anos. Fiz uma careta, me sentindo mal por fazê-la percorrer uma longa distância só porque estava aqui. Ela só passou uma noite comigo e já estava com a rotina toda bagunçada. Será que eu precisava mesmo fazer minha irmã passar por isso apenas porque não estava acostumada com null?
Encarei meu namorado (ainda era estranho pensar assim) e ponderei por alguns segundos, antes de voltar a me concentrar na comida. Por que eu precisava ter companhia quando era só o null?
Só o null era um eufemismo, é claro, mas fazia quase vinte e quatro horas que tudo o que ele fazia era me dar espaço ou tentar me deixar confortável e à vontade perto dele e na nossa casa. Eu poderia fingir que ele era um colega de quarto. Tá, um colega de quarto que eu conhecia muito mais intimamente do que eu imaginava e vice-versa.
De repente, lembrei da resposta dele sobre como sabia das pintinhas do meu corpo e senti o rosto esquentar.
"Como você acha que sei?"
Meu estômago se apertou com ansiedade só de imaginar e eu o encarei mais uma vez.
null era tão bonito. E era o maldito pacote completo. Boa personalidade, rosto bonito e corpo bonito — embora eu não me lembrasse muito.
Eu sabia que ele dificilmente usava camisas de mangas curtas nas apresentações, mas em casa era diferente e estava usando uma naquele momento. Preta, sem estampas, e que marcava deliciosamente seus ombros e deixava os bíceps à mostra. Estreitei os olhos um pouquinho, admirando a visão. Eu tinha um sorrisinho nos lábios e sabia lá no fundo que eu provavelmente estava dissociando enquanto o encarava, mas não me importei.
Fiquei completamente imóvel por alguns segundos, sem nem sequer piscar e quando o fiz, notei um sorrisinho malicioso no canto dos lábios dele, enquanto mexia na própria salada de frutas.
Ah, que safado. Ele sabia muito bem que eu estava secando ele e não disse nada.
Terminei de comer rapidamente e me levantei para colocar a louça na pia. Felizmente, null não surtou quando comecei lavar o prato, tigela e talheres que usei.
— Eu tava pensando... Acho que é melhor null ficar em casa. Posso lidar com você sozinha — comentei.
— Pode, é? — ele perguntou, enquanto eu ainda estava de costas e dei uma leve surtada ao perceber como aquela frase soou.
— Você entendeu! — respondi rapidamente e ele deu uma risadinha nada inocente. Escutei null descer do banquinho e um instante depois, ele estava atrás de mim, colocando a louça suja na pia.
Não seria nada de mais, se ele não estivesse invadindo completamente meu espaço pessoal ao fazer isso. Senti o calor do corpo dele em minhas costas, e nós mal estávamos nos tocando. Um frio se instalou no meu estômago e minha mente fanfiqueira imaginou coisas que não deveria naquele momento.
A imagem de null me colocando em cima da bancada após eu me virar para beijá-lo foi uma cena especificamente tentadora que me veio em mente naqueles breves segundos, e minhas mãos clamaram por tocá-lo e ser tocada mais uma vez.
Era impressão minha ou ele estava demorando de propósito?
Não sei o que deu em mim também.
Porque no instante seguinte, eu desliguei a torneira e me virei para ele, passando os braços ao redor de sua cintura. Meu rosto estava na altura do ombro dele e eu respirei fundo, inalando seu cheiro.
— Não sei porque fiz isso — confessei, no mesmo instante. — Mas por algum motivo, eu quero ficar próxima de você e sinto uma vontade constante de te tocar. Eu ainda não lembro da gente, null. Mas eu li meses de nossas conversas e acho que me apaixonei um pouquinho por você. Foi como ler um romance da minha própria vida.
null suspirou e me abraçou de volta, de forma acolhedora. Seu abraço era aconchegante.
— Você pode me tocar sempre que quiser, amor. Eu sou seu — ele me garantiu. — Você pode não lembrar de nada ainda, mas eu sim. Pra mim, ser tocado por você é a coisa mais natural do mundo.
— Mesmo eu sendo meio fã maluca?
null riu, divertido.
— Sim, mesmo assim. Fã maluca ou não, você é minha mulher — esclareceu. Senti meu ego inflar quando ele se referiu a mim daquela forma.
Mas gente...
— Por que você fica falando essas coisas? — perguntei, sentindo o rosto esquentar.
— Porque é verdade. Eu sempre falo assim. E você gosta.
Não neguei. Eu gostava mesmo.
De repente, minha vida real era um fanfic e aparentemente das boas.
Escutei um barulho de vibração e percebi que era o celular no bolso do short dele.
— Acho que alguém tá ligando. — Me afastei.
null beijou minha besta e sorriu.
— Eu voltou já, deve ser Jace querendo notícias. — E saiu.
Terminei de lavar a louça e peguei meu próprio celular em cima da bancada em que comemos, notando algumas mensagens não lidas.
A primeira era de Kate.
Kate: Andrew e eu vamos te visitar hoje à tarde. Nos aguarde depois das 15h.
null: Sim, senhora.
Havia uma mensagem de Andrew também, basicamente falando a mesma coisa. Respondi rapidamente e depois fiquei sem ter o que fazer.
Enchi um copo de água no filtro automático que havia em cima da pia e bebi, fazendo um pacto comigo mesma de me manter hidratada. Por mais que estivessem fazendo isso no hospital, eu ainda tinha acordado com muita sede. Acordei duas vezes durante a madrugada apenas para beber água. Também fiz umas visitas frequentes ao banheiro depois de tanto líquido.
Fiquei alguns minutos cutucando meu celular mais um pouco, mas honestamente, fiquei entediada.
null ainda estava ao telefone e null tinha ido trabalhar, então por enquanto eu tinha minha própria companhia para me entreter.
Então resolvi optar pelo que eu fazia de melhor quando estava sozinha. Andei até o grande e fofo sofá da sala de estar e me joguei nele, abrindo o aplicativo de leitura um segundo depois, no arquivo do livro que eu tinha começado a ler noite passada.
E fiquei ali, mergulhada no universo de mais uma obra.

Capítulo 6

Não sei onde eu estava com a cabeça quando decidi começar uma série de fantasia de seis livros com bullying, harém reverso e alguns personagens odiosos, mas depois de meia madrugada e cerca de uma hora depois que me joguei no sofá para voltar a ler, eu estava quase terminando o primeiro livro.
null ainda não tinha voltado depois de sair para atender a tal ligação de Jace, e eu fiquei entretida demais com o enredo da história. Eu nem tinha certeza se estava gostando, mas me manteve curiosa.
Deitada de bruços no sofá largo e o celular próximo do rosto, eu estava prestes a terminar o último capítulo quando um peso caiu em cima de mim e tremi de susto, um segundo antes de notar que era null.
— Hm, que sofá confortável, acho que vou tirar uma soneca aqui — ele murmurou, fingindo que eu não estava ali.
null, cara... Não me leva a mal, mas você é muito pesado...
Ele riu no meu ouvido, me fazendo arrepiar, e deu um beijinho atrás da minha orelha antes de rolar para o lado.
O sofá era tão largo que cabia nós dois ali com folga. Pensei em me virar para ele, mas quis terminar o livro antes, então voltei a prestar atenção na tela do celular. Ele apoiou a cabeça em meu ombro.
— O que você tá lendo? — ele quis saber.
— Uma coisa.
— Que coisa?
Shh… Eu tô quase acabando. — Corri os olhos rapidamente pela tela, faltavam apenas uns dois parágrafos.
Ouvi null suspirar, mas não dei atenção. Um parágrafo, apenas alguns segundos e...
— Que porra. Terminou em cliffhanger. Vou ter que ler o segundo livro agora... — comentei comigo mesma, já procurando a sequência para baixar, quando meu celular foi tomado de mim. — Ei, me devolve!
null habilmente escondeu o celular entre as almofadas do sofá, rindo das minhas falhas tentativas de recuperar o aparelho. Suspirei, resignada e levemente ofegante, e me deixei cair em cima dele. Eu estava apoiada em seu peito e só então o encarei.
— Por que seu nariz e olhos estão vermelhos? Você saiu pra fumar?
— Eu parei de fumar, null.
— Parou? E eu por que eu não lembro disso, se me lembro de você como fã?
— Porque eu nunca contei publicamente. Além disso, parei por sua causa. Você passou uns seis meses me falando como era ruim pra saúde e como o cheiro de cigarro era desagradável. Me proibiu até de te tocar depois de fumar.
Eeeu? — O encarei, surpresa. — Por quê?
— Porque você sempre odiou cigarro, e também porque descobrimos que você é alérgica.
— O quê? Desde quando? — Franzi o cenho.
— Você não lembra disso? — null perguntou, mas depois pareceu entender. — Acho que deve ser porque eu tava com você. Eu te acompanhei na consulta com um alergologista.
— E como aconteceu? Tipo... Como eu nunca descobri isso antes?
— Acho que foi porque você nunca conviveu com nenhum fumante antes de mim. Mas tá tudo bem agora. No início, foi chato, mas usei alguns adesivos de nicotina por um tempo e, hoje em dia, sempre tenho chicletes no bolso pra ajudar quando dá vontade.
— Caramba... — Eu tinha provocado aquilo? Mas era bom, né? Bem mais saudável para nós dois. — E por que seus olhos estão vermelhos? Aconteceu alguma coisa?
null sorriu levemente e passou um braço ao redor da minha cintura. Não enrijeci em surpresa dessa vez, o toque deve era confortável.
— Nada, acho que vou ficar resfriado. Deve ser a mudança de clima depois de viajar — ele explicou. — E agora eu quero atenção.
Sorri, achando engraçado.
— Por quê? Você tá carente, é?
— Você pode me culpar? Nunca ficamos tanto tempo longe desde que começamos a morar juntos.
— Nossa... Quem diria? Eu achava que você era bem mais introspectivo, mas gosta de um grude. E é mais gentil do que imaginei. Atencioso também. Você sempre me deu bom dia primeiro nas mensagens de texto. Achei fofo.
null riu baixinho e acho que ele estava se divertindo um pouquinho comigo reconhecendo ele outra vez, por mais que nossa situação fosse deprimente.
— Você disse isso antes, quando a gente começou a namorar. E que achava que eu era meio bad boy.
— Você tem cara de bad boy mesmo — reforcei. — Mas é como um gatinho camarada. Você vai amassar pãozinho na minha barriga também?
— Só se você quiser. Mas acho que te encher de beijinhos é mais agradável. — Ele levantou a cabeça, me roubando um selinho.
Segurei um sorriso e apoiei o queixo nas minhas mãos, ambas espalmadas no peito dele.
— Kate disse que vem me ver hoje, e Andrew vem junto.
— Andrew, é? — null perguntou, tentando não fazer uma careta, mas seus olhos denunciavam seu desagrado.
— Você não gosta do Andy, null?
Andy? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Tá chamando ele por apelido agora?
— Nunca parei de chamar. — Dei de ombros.
— Mas nunca chamou na minha frente. E não é que eu não goste dele, mas ele é seu ex, null.
— E daí? Você parece ter ciúmes dele.
— Eu tenho ciúmes de qualquer ex seu.
— Eu só tenho dois e nem faço ideia de onde anda o outro.
— É suficiente. Além disso, Andy foi seu primeiro relacionamento sério. Eu sei de tudo. — Ele estreitou os olhos, meio emburrado.
Achei fofo. Embora estivesse claro para mim que null estava falando muito sério.
— Olha pelo lado bom, nós somos amigos. Você nunca terminou em bons termos com uma namorada? — perguntei sem pensar e me arrependi no mesmo instante. — Na verdade, não responda. Eu não quero saber.
— Eu também não queria saber, mas o Andy é seu chefe — ele retrucou, sarcasticamente enfatizando o apelido de Andrew pela segunda vez. — Não posso fazer nada a não ser aceitar. E você passa mais tempo com a Kate, de qualquer forma.
— Mesmo que não passasse, não é como se eu fosse voltar pro Andrew ou algo assim.
Seria burrice. Logicamente falando, quem deixaria null null por qualquer outro cara normal?
Andrew era bonito também e engraçadinho, mas null tinha o molho, um charme a mais. Além disso, quaisquer sentimentos românticos que eu tinha pelo meu ex tinham parado de existir muito antes de eu conhecer ele.
— Não vai funcionar, null. Eu ainda vou ficar com um pé atrás.
— Você não confia em mim?
— Claro que confio, só não confio nele. Ou qualquer outro homem que chegue perto de você.
— Que ciumento — brinquei. — Mas idem. Embora eu não tenha muita escolha também. Na verdade, acho bom que você abrace muitas fãs e façam elas felizes.
— Ah, é? Que empática — ele disse, no mesmo tom de voz que eu.
— Eu já tenho você há três anos, então é mais do que justo te dividir um pouquinho, desde que em local público e com testemunhas ao redor.
null riu, divertido.
— Quem é que tá com ciúmes agora?
— Eu não lembro, mas tenho certeza de que você deve ser pior que eu nesse aspecto.
Touché. Sou mesmo — ele admitiu. — Você é só minha. — E me apertou contra ele, me fazendo rir. — E como casamento tava fora de cogitação pra nós dois, arrumei outro jeito de te amarrar a mim, e assim acabamos morando juntos.
— Que papo é esse? — perguntei, rindo, sem saber se ele estava falando sério ou não.
Eu já tinha visto null em programas de TV agindo completamente sério enquanto falava a coisa mais irônica ou mentirosa de todas, só para fazer graça.
Ele riu comigo e depois caímos em um silêncio confortável. Ficamos assim por alguns minutos, até eu perceber que ele tinha adormecido. Rolei para o lado, saindo de cima dele e pensei em levantar dali, mas ele me abraçou em seu sono.
Ri pelo nariz e desisti de escapulir. Meu celular ainda continuava perdido nas almofadas, então decidi aproveitar a oportunidade de me aconchegar com ele e tentar tirar uma soneca também.
Adormeci pouco tempo depois.

***


Acordei com um barulho de chuva batendo na parede de vidro da sala — havia uma ali também — e abri os olhos devagar, apenas para encontrar os de null, me encarando com uma ternura desconcertante.
Aquele era o olhar que eu imaginava que todos os protagonistas dos romance que eu lia deviam ter quando estavam apaixonados. Eu não lembrava de ver nem mesmo Andrew com um, e nós tivemos um bom relacionamento. Mas talvez tenha sido esse o motivo dele acabar. Sentíamos atração um pelo outro, mas ainda éramos mais amigos que qualquer outra coisa.
Com null era diferente.
Ele era um protagonista bobão e cadelinha que faria tudo por mim. Nem sei de onde tirei essa percepção, mas tinha certeza de que era assim. Ninguém nunca tinha olhado para mim com tanto cuidado e amor. Nem mesmo minha mãe.
Mas ela não era alguém que costumava fazer isso com qualquer pessoa, de toda forma. null e eu saímos de casa desde a faculdade e fomos morar juntas desde então. Minha irmã era cinco anos mais velha que eu e teve que dividir apartamentos ruins com pessoas odiosas em Nova York. Felizmente, eu a tive como colega de quarto quando foi a minha vez. Nossa mãe era divorciada de nosso pai desde que eu tinha dez anos e agora ambos tinham suas novas famílias. null e eu éramos as ovelhas negras, um lembrete do erro que foi o casamento dos dois.
Então não fiquei surpresa que minha irmã nem sequer mencionou nosso pais depois do acidente, eles provavelmente nem sabiam que eu tinha sido atropelada. Ou sabiam, já que eu sabia que tinha vazado na internet. De todo modo, não tínhamos contato. null era a única que ainda tinha o número de contato dos dois e vice-versa, mas nunca fez diferença já que não havia interesse de nenhuma das partes, incluindo nós mesmas.
Estávamos nos apoiando uma na outra há uma década e o que menos queríamos era ter que lidar com parentes que mal nos conheciam, apesar de terem nos criado, cada uma, por dezoito anos.
Então sim, ver null me encarando daquela forma me fez sentir tão querida que meus olhos arderam com vontade de chorar.
— Oi de novo, bela adormecida. — Ele brincou. Imaginei que ele certamente devia ter acordado alguns minutos antes de mim.
Estiquei o braço para tocá-lo no rosto e saí deslizando suavemente o dedo indicador por seus traços. null fechou os olhos com o pequeno carinho e havia o menor dos sorrisos em seus lábios.
Meu coração se apertou mais uma vez, desesperado por lembrar de nós, mas disse a mim mesma para parar de pensar naquilo. Não fazia nem vinte e quatro horas desde a minha alta do hospital. Mas ao mesmo tempo, os momentos que eu passava com ele faziam o tempo parecer lento. Era como se cada minuto fosse precioso. Era como se a cada segundo, eu conhecesse ou ficasse familiarizada com null um pouco mais.
Naquele momento, mesmo sem lembrar de nada, eu fiquei incrivelmente confortável, o que era meio estranho. Ele podia ser null null, meu artista favorito, mas ainda assim era um homem com quem eu não lembrava de conviver.
Meu curto período de desconforto se resumiu a algumas horas e durou até eu descobrir um pouquinho sobre nós, mesmo por conta própria. As mensagens tinham sido o principal fator nisso, mas meu celular também estava cheio de fotos nossas. Nossa química era quase palpável.
— Há quanto tempo você tá acordado? — perguntei baixinho, desenhando rabiscos na bochecha dele com o polegar.
null abriu os olhos para me encarar outra vez.
— Uns dez minutos. A gente dormiu por mais de uma hora. Você tá com fome? Pensei em pedir almoço.
Abri a boca para dizer que ainda não tinha fome, mas meu estômago roncou naquele momento e null riu.
Fiz uma careta.
— Pelo visto, tô com fome mesmo — admiti e me levantei, dando espaço para ele.
null se sentou e tirou meu celular de algum lugar entre as almofadas e o entregou a mim.
— Só porque você foi uma boa menina e me deu atenção.
Rolei os olhos instintivamente, com um sorriso brincando nos meus lábios.
— Tô lendo um harém reverso — comentei. — A protagonista tem cinco parceiros, um mais poderoso que o outro. É fantasia, mas no mundo moderno.
— Caramba, cinco parceiros... — null assobiou. — Como ela faz pra administrar esse tanto de gente?
— Eis a questão. Eu ainda tô na parte em que eles tão tratando ela feito lixo. E fazendo bullying.
— O quê? Por quê? Você não disse que eles são parceiros? — Assenti. — Por que eles a tratam mal, então?
— Porque ela provocou isso. Ela fez com que a odiassem e fugiu deles por anos, recusando o laço de parceria. Mas eles conseguiram pegar ela, e um deles até implantou um chip nela que ele ameaçou explodir se ela tentar fugir de novo.
— Quê?! — null riu, incrédulo. — Por que você tá lendo essas coisas, null?
— Porque me mantém entretida. — Dei de ombros. — Além disso, é fantasia. É normal acontecer essas coisas nos livros. Não sei se vou ler tudo, mas fiquei curiosa. E são cinco caras, um mais bonito e poderoso que o outro. Quero só ver quando eles começarem a ficar todos protetores pra cima dela — acrescentei com uma risadinha.
null balançou a cabeça.
— Você tem uns gostos bem peculiares, amor.
Sorri para ele, piscando os olhos repetidamente e ele riu, antes de pegar o próprio celular e abrir um aplicativo para pedir comida.
Me inclinei para espiar e minutos depois, o pedido estava feito. null ligou a TV da sala quando acabamos e abriu a Netflix. Escolhemos ver Pretendente Surpresa, e ali estava outra coisa que eu não lembrava: eu tinha arrastado null para o mundo dos doramas e ele não se importava nem um pouquinho em ver comédias românticas bobas comigo.
Aparentemente, além de fã maluca e com gostos peculiares, eu também era uma mulher muito sortuda.
Parecia um sonho muito bom, mas felizmente, agora eu sabia que não era um.

Capítulo 7

Pouco depois das três da tarde, como prometido, Kate e Andrew apareceram.
Eu tinha tomado banho e ficado apresentável depois de passar o dia de pijama e null fez o mesmo. Tínhamos maratonado alguns episódios de Pretendente Surpresa até que percebemos que estava quase na hora da visita.
Ele estava ao meu lado quando abri a porta, sendo envolvida em um abraço de Kate no instante em que ela me viu.
— Meu Deus, que bom que você tá bem — ela murmurou. — Ainda tá sentindo dor?
— Só um pouco dolorida, mas com quase nenhum machucado — contei, enquanto ela cumprimentava null rapidamente com um abraço.
Então foi a vez de Andy me envolver em um, me tirando do chão por um instante em seu abraço de urso. Eu ri, retribuindo, mas dois segundos depois, senti um puxão no meu short.
Era null com o dedo enfiado no passador de cinto, não muito discretamente me puxando para ele, enquanto cumprimentava Andrew com um sorriso.
Que ciumento.
— E aí, Andrew? Venham, vou pegar algumas bebidas pra gente — null se ofereceu, enquanto eu os levava para o sofá.
— Como você tá, null? — Andrew perguntou, se jogando no sofá ao lado de Kate.
— Confusa. Não sei se ficaram sabendo, mas eu meio que dei uma viajada.
— Como assim? — Kate franziu o cenho.
— Eu tive um sonho enquanto tava inconsciente. Sonhei que fui parar no corpo da Ayla e tava vivendo o enredo de Tenaz. O médico acha que foi um mecanismo de defesa.
— Sério? E como foi? — Minha amiga perguntou. Eu sabia que ela ia achar interessante, afinal, era sobre o livro dela.
— Ela tinha meu rosto e o Dean era o null, e... Era como se fosse antes de começar a história. Eu lembro de almoçar com Karina e Tiana e esbarrar no Dean num prédio administrativo. Fiquei até pensando em como a Ayla não reparou nele, por que tipo, ele era a cara do null.
Andrew começou a rir e Kate o acompanhou.
— Nossa, que viagem mesmo, null — ele comentou.
null apareceu com uma jarra de limonada que tinha feito mais cedo e nos serviu, antes de se sentar ao meu lado.
— A gente morrendo de preocupação e você vivendo uma fanfic com seu próprio namorado — Kate disse. — Pelo menos, deve ter sido divertido.
— Mais ou menos. Acordei segundos antes do primeiro beijo.
— Olha pelo lado bom, você pode beijar seu próprio Dean a qualquer momento — ela brincou.
Senti o rosto esquentar e null colocou uma mão em cima da minha. Olhei para ele rapidamente, antes de me voltar para os meus amigos.
— Então... Sobre isso... Eu meio que esqueci do null.
— Esqueceu o quê? — Andy perguntou, confuso.
— Esqueci do nosso relacionamento. Eu só lembro dele como fã. Pra mim, é como se ontem fosse a primeira vez que nos encontramos.
null... Isso é... — Kate começou, surpresa, mas sua voz morreu.
— Uma merda — Andy completou. — Vocês moram juntos, como isso é possível?
— Sei lá. — Dei de ombros. — Mas o médico acha que é temporário.
— Você esqueceu de mais alguém ou alguma coisa? — ele quis saber. — Sua irmã, ou o trabalho?
— Não, nada. Só de null. — Fiz uma careta. — Mas tenho certeza de que vou lembrar em breve.
— Espero que sim. Eu comecei a escrever Oblíquo — Kate anunciou. — Eu sei que estamos de folga ainda, mas posso te enviar algo semana que vem pra você ir opinando.
— Seria ótimo. Eu meio que tô sem o que fazer.
Conversamos por quase uma hora, até que eles foram embora. Pouco tempo depois, null chegou. E pela cara dela, eu já podia imaginar seu cansaço. Mais uma vez me senti culpada por fazer minha irmã atravessar a cidade quando trabalhava tão perto do local onde morava. No trânsito caótico de Nova York, sair de Manhattan até o Brooklyn levava mais de uma hora.
null passou direto para o quarto e eu a segui. Ouvi o chuveiro ser ligado e me joguei na cama para esperar até que ela saísse. Levantei a cabeça alguns minutos depois, quando ouvi a porta do banheiro abrir e me sentei na cama.
— Como foi hoje? — perguntamos ao mesmo tempo e rimos juntas.
— Cansativo — ela respondeu, secando o cabelo com uma toalha. — Fazia tempo que eu não percorria uma distância tão longa dentro dessa cidade porque até o hospital era mais perto. E o seu dia?
— Foi bom. Um pouco estranho, mas confortável. null e eu ficamos juntos a maior parte do tempo.
— Como você tá se sentindo em relação a ele?
— Ontem foi muito estranho, mas hoje... Me senti bem à vontade. Inclusive, era sobre isso que eu queria falar com você. Acho que não faz muito sentido você ficar percorrendo essa distância toda por minha causa.
— Ei, tá doida? Você é minha irmã. É óbvio que faz sentido. Você nem lembra do seu namorado, deve ser estranho ficar com ele.
— Na verdade... — comecei a falar.
— O quê? — null me encarou, atenta. — Aconteceu alguma coisa? Você lembrou se algo?
— Tive um flash de memória pouco antes de você sair feito um furacão. Eu perguntei a null, sabe, pra ter certeza de que não era parte de um sonho ou algo assim, mas ele disse que foi a noite que nos conhecemos.
— No bar do Brandon aqui em Manhattan. Eu tava também, fomos nos encontrar com seus amigos, mas fui embora mais cedo. Você ficou conversando com Karol e Brandon e aconteceu alguma coisa que eu não lembro e eles te pediram pra ficar lá por uns trinta minutos porque um cliente importante tinha alugado o bar depois da meia-noite. Era o null.
— Sério? Qual a probabilidade disso acontecer? Eu não lembro de dizer a Brandon e Karol que eu era fã do null.
— Pois é, não disse. Foi coincidência. Acho que você deve lembrar logo. Nós não podemos te encher de informações, senão...
— Eu sei, posso ficar sobrecarregada. Aconteceu isso hoje. — Suspirei, me jogando na cama outra vez e encarei o teto branco.
— Aconteceu?
— Sim, depois desse flash, visão ou sei lá o que era, eu senti uma dor de cabeça momentânea. null surtou e pegou um remédio, depois ficou praticamente o dia todo grudado em mim. Tirando uma ligação que ele teve que atender e quando fomos tomar banho.
null riu, divertida.
— Mais cadelinha, impossível. Esse cara ama você, irmã. E não deixa nem espaço pra dúvidas. Todo mundo sabe disso. Ele te adora.
Sorri como uma boboca ao ouvir.
— Por algum motivo me sinto bem perto dele, mesmo que pareça que eu conheça ele pessoalmente só há um dia. Tipo... Parece que faz mais tempo mesmo.
— Porque faz. — null rolou os olhos, se sentando na cama também. — Vocês dois sempre tiveram uma química assim. Sempre se deram bem. Mal brigam. O null faz tudo por você. Vocês são tão doces às vezes que eu sinto minha glicemia subir só de ver. Daqui a pouco vão começar a se pegar de novo.
Eu ri, divertida.
— Por mais que minha mente fanfiqueira fosse adorar isso, provavelmente seria melhor irmos devagar. De todo jeito, acho que posso ficar sozinha com ele.
— Se você diz... Não era como se eu fosse me opor. — Ela deu de ombros. — Se o null fosse um idiota, talvez sim, mas ele cuida de você melhor do que eu poderia. Vou voltar pra casa amanhã. Não venha chorar se você tiver pesadelos ao dormir sozinha aqui. Acorde seu namorado ou se esgueire pra cama dele, tenho certeza de que ele não vai se incomodar.
— Eu ainda tenho Terror Noturno com frequência? — perguntei, me dando conta que daquela parte da minha vida eu também não lembrava.
— Só quando você fica estressada e sozinha. Quando null tá em casa, você costuma ficar bem.
— Entendi. Se ele me ajuda de alguma forma com isso, mesmo que seja só fazendo companhia, então acho que faz sentido eu não lembrar.
Talvez a presença dele me acalmasse, de fato. Eu tinha episódios de terror noturno desde o divórcio de nossos pais e embora a frequência deles tenha diminuído à medida que fui crescendo, nunca desapareceu. Eu não tinha ideia como era ter esses episódios sozinha, pois até onde me lembrava, null sempre estava a uma ligação ou uma porta de distância.
Quanto a null... Eu não conseguia me ver ligando para ele do outro lado do mundo só para obter apoio emocional por causa de um pesadelo idiota provocado por estresse.
— Além disso, tenho certeza de que null tem outros métodos eficazes pra te fazer aliviar o estresse — null acrescentou com um sorrisinho, me tirando de meus pensamentos.
null! — Eu ri, batendo com um travesseiro nela.
— O quê? Não é como se fosse mentira — ela brincou e se levantou, indo em direção à porta. — Vamos continuar essa conversa na cozinha, eu tô morrendo de fome.

***


Uma semana depois, eu ainda estava na estaca zero. Já fazia quase duas semanas desde o meu acidente e eu ainda não tinha lembrado de nada.
Meus últimos dias se resumiram a ler, comer e ver doramas com null.
Embora me desse algum tempo sozinha quando se trancava no estúdio, null fazia questão de passarmos um tempo de qualidade juntos.
Eu não estava reclamando, é claro.
Depois que null voltou para seu próprio lar, eu passei a dormir sozinha no quarto de hóspedes e felizmente não tive nenhum episódio de terror noturno. No entanto — e infelizmente —, eu também não consegui dormir direito à noite, o que acabou me fazendo tirar breves cochilos durante o dia.
Agora eu estava de um lado do sofá com meu tablet em mãos, lendo os primeiros capítulos do próximo livro de Kate, enquanto null estava no outro, com fones de ouvido com cancelamento de ruído, encarando a tela de seu laptop.
Eu era extremamente curiosa sobre seu processo criativo e tentei dar umas espiadas ocasionalmente, mas não é como se eu fosse entender algo sem escutar nada. Ele também não me deixava ler as letras enquanto estava escrevendo músicas, o que era um porre. Então em certo momento, eu meio que desisti de tentar. Sabendo que não ia conseguir nada, sugeri que ele voltasse para o estúdio, já que provavelmente era mais confortável trabalhar lá. Eu havia visto o tanto de equipamentos que ele tinha e ficar ali no sofá só para me fazer companhia parecia não fazer muito sentido.
Não é como se eu fosse passar mal nem nada. Aconteceu só o primeiro dia, quando tive aquele flash de memória de quando nos conhecemos, mas depois nada, zero, nadica de nada. Eu achei que iria conseguir lembrar de nós logo, e isso não ter acontecido ainda me deixava ansiosa. No entanto, tentei ao máximo transparecer tranquilidade. Eu não queria que null se preocupasse mais ainda comigo.
Desviei o olhar da tela do tablet e o encarei discretamente enquanto ele trabalhava. Aquele arranjo entre nós, cada um trabalhando de um lado, vinha se repetindo há cerca de três dias e eu não podia evitar lembrar de Ayla e Dean.
Não retornei para o livro em nenhum momento durante meu sono, mas eu meio que sentia falta. Porque se o sonho era tão realista, então sim, eu queria viver um pouquinho na pele da protagonista. Menos nas cenas perigosas, é claro. Eu não estava interessada em ter meu celular roubado e ser agredida na rua. De jeito nenhum.
Mas seria bom viver um pouquinho de romance.
Até porque nada aconteceu entre mim e null na última semana. Nós tínhamos uma necessidade mútua de tocar um ao outro, mas não tinha passado de nada além de abraços ou beijinhos na testa ou rosto. Nada de mais. O máximo que fizemos foi deitar juntos no sofá para assistir TV juntos.
Então comíamos juntos e à noite, cada um seguia para seu próprio quarto.
Durante aquele tempo, eu li mais de nossas mensagens trocadas e àquela altura eu já tinha lido as do ano anterior inteiro. Eu até sentia que conhecia null mais um pouquinho, mas era como conhecer um protagonista. Nossas mensagens eram parte da nossa história e felizmente, eu não tinha deletado nenhuma.
Eu estava feliz por passar tempo com meu então namorado e até nos divertimos juntos, mas honestamente... Eu não era uma grande fã de slow burn.
Eu tinha plena consciência de que tinha planejado levar as coisas devagar enquanto eu não lembrava do nosso relacionamento, mas já estava começando a ficar impaciente. Eu tinha que me policiar para controlar os movimentos de minhas próprias mãos ou àquela altura, elas já teriam criado vida própria e se livrado de todas as roupas de null.
Mas ninguém podia me culpar, certo?
Até onde eu sabia, casais que moram juntos eram praticamente casados. Então era normal me sentir atraída pelo meu namorido.
Eu só não sabia até quando o meu autocontrole iria durar. Ou o de null. Porque não passou despercebido por mim que ele também tentava se controlar e às vezes forçava certa distância entre nós por causa disso.
Resumindo, éramos dois idiotas querendo se pegar, mas nenhum tomava atitude com medo do outro achar estranho ou ficar desconfortável. E eu meio que tinha certeza de que ele não faria isso de jeito nenhum. Mas eu o queria. Queria reconhecer ele por inteiro. E só o pensamento disso enviava mais borboletas para meu estômago.
Daqui a pouco eu iria vomitar borboletas porque elas não iam mais caber.
E ele parecia tão atraente enquanto trabalhava... Era impossível não admirar a visão. Trabalho braçal? Isso era ultrapassado. Eu sempre gostei mais de cérebros.
E o de null era bem sexy. Tínhamos passado horas conversando sobre coisas aleatórias e eu achava fascinante o jeito como ele via as coisas e como era parecido como eu mesma via. Nós éramos opostos em muitas coisas e ele era definitivamente mais sensível do que eu. Às vezes, null viajava um pouquinho às vezes com coisas que para mim não faziam o menor sentido e eu tinha que me segurar para não revirar os olhos. Eu amava arte e música desde sempre, mas havia um limite de tolerância entre o que eu achava legal e exagerado. Sempre fui mais prática e tinha coisas que eu simplesmente nem me esforçava para gostar. Por exemplo, música indie. Nada contra, mas não era meu estilo. E null adorava várias. Por outro lado, eu curtia punk rock e ele não.
Mas também tínhamos muito em comum. Aparentemente, eu tinha feito igual a Ayla e obriguei ele a aprender todas as músicas dos meus musicais favoritos. Isso era quase como ganhar na loteria porque era de conhecimento geral como null null era chatinho e seletivo. Foi uma alegria descobrir que eu o tinha convencido a fazer muita coisa. Além disso, ambos amávamos músicas mais antigas, entre os anos setenta e noventa. Algumas vezes coloquei música para tocar enquanto cozinhava algo e logo null aparecia cantarolando comigo.
Eu me sentia uma protagonista em meu próprio livro vivendo todos as minhas fantasias de fanfiqueira.
Bem, quase todas.
Eu ainda não havia arrancado as roupas de null. E de novo, eu não tinha ideia de quanto tempo eu ia aguentar antes de meter o louco e fazer isso.
Como se sentisse o rumo que meus pensamentos estavam tomando, null resolveu me encarar naquele momento, e tirou o fone de ouvido antes de falar.
— O que foi? Tá sentindo alguma coisa?
Eu com meu bom cérebro maluco, respondi sem pensar:
— Tô sim. Vontade de morder você todo.
Eu quis bater na minha própria boca. Meu cérebro devia estar com defeito de filtragem também. Mas então null inclinou a cabeça para o lado levemente, um sorrisinho malicioso aparecendo em seus lábios.
— Você sabe que não precisa pedir. Eu sou todo seu. É só vir, amor.
Ah, eu estava a um passo de largar o tablet e pular em cima dele. Mas algum ser celestial deve ter tocado na minha cabeça e me feito rir, como se achasse que ele estava brincando.
Eu não achava. Depois de toda a sabedoria adquirida como fã de null e uma semana passando a maior parte do tempo com ele, eu sabia que ele estava falando sério. Aposto que conseguiria me levar pra cama só com um olhar. Eu iria de bom grado, a qualquer momento.
E de verdade, eu merecia um prêmio por controlar meus próprios impulsos.
Me levantei com uma desculpa de preparar um lanche da tarde e aquele curto momento de tensão foi deixado de lado, assim como todos os outros que vieram antes dele.
Naquela noite de quinta, mais uma vez nos separamos para dormir e eu rolei algumas vezes na cama, tentando pegar no sono. Li por duas horas o terceiro livro da série de fantasia que eu tinha começado na semana anterior, e nem assim fiquei com sono.
Não faço ideia de que horas eram quando finalmente consegui adormecer.
Mas no dia seguinte, acordei com um barulho de despertador irritantemente familiar.
Abri os olhos e encarei o teto branco, de repente sabendo exatamente onde eu estava. Só para ter certeza, passei a mão pelo cabelo, percebendo que ele estava curto. Um sorrisinho levantou os cantos da minha boca e me sentei na cama, animada.
Eu tinha voltado para o corpo de Ayla null.

Capítulo 8

Depois que me levantei para um novo dia na skin de Ayla, tudo que encontrei foi um caos.
Eu não tinha ideia de qual parte da história eu tinha ido parar, até descobrir que era o último dia de obrigações acadêmicas de Ayla. Isso meio que explicava por que eu estava me sentindo como uma zumbi o dia todo. Além de não dormir direito, ela estava à beira de ter um colapso nervoso, o que meio que aconteceu depois que ela se livrou de tudo.
Minha skin de Ayla encontrou com Zico e Dean e caiu no choro nos braços de Zico, coitado. Ele nem sabia o que fazer, e eu duvidava muito que Dean soubesse. No entanto, os dois murmuram palavras de consolo para ela. Ver Dean novamente era animador, mas minha skin de Ayla estava extremamente cansada e deprimida depois daquela última semana de provas e seminários. Se eu bem me lembrava, ela até havia esquecido o que ia falar no meio de uma apresentação.
Que terror para um estudante precisando de nota.
Mas eu sabia que ia ficar tudo bem, afinal, eu li o livro. He he.
O dia passou rápido e logo me vi olhando para o teto e dando um sorrisinho, feliz por não ter que fazer nada. Obviamente aquela felicidade que eu estava sentindo vinha toda de Ayla. Mas ela também havia falado com Seojun, seu ex-namorado e melhor amigo, então supus que estava feliz por isso também.
Seojun era um ator consideravelmente famoso e havia sido o primeiro e único namorado de Ayla, antes dela se envolver com Dean. Ele era sete anos mais velho, e um amor de pessoa. Também era o protagonista do segundo livro da série, e até hoje eu não havia encontrado nenhuma leitora da Kate que não gostasse desse homem. Era praticamente impossível não gostar dele quando o cara era extremamente gentil, cuidadoso e amoroso.
Tipo o null.
Franzi o cenho, percebendo a similaridade com a personalidade dos dois. Embora Dean fosse inspirado em null, havia muita coisa que meu namorado tinha em comum com Seojun, e eu só notei isso depois de conviver um pouquinho com ele.
Era como se null fosse uma mistura dos dois. E não ironicamente, Dean e Seojun eram meus favoritos na série toda.
Embora eu gostasse do Yeong e do Sean também, os irmãos Lee, protagonistas dos livros quatro e cinco — os últimos da série — respectivamente. Eu não havia conhecido muito do Sean ainda, mas desde que ele apareceu em Perspicaz, o livro três, o idiota já me ganhou. Eu realmente tinha um probleminha com personagens em zona cinza porque Sean não era bem um mocinho habitual e tinha várias atitudes questionáveis, por mais que fossem divertidas também.
De todo modo, meu tipo ideal de cara se resumia a Dean e Seojun, então perceber que meu namorado era uma mistura dos dois fazia meu coração dar pulinhos de felicidade.
Ouvi a campainha tocar e me levantei para abrir a porta, dando de cara com Zico.
— Meu Deus. Se eu não soubesse que era você, eu morreria de susto, sinceramente — ele disse, fazendo uma careta assim que me viu.
Minha skin de Ayla ainda estava meio sem energia, então só perguntou o que ele queria.
Eu sabia muito bem o que Zico estava fazendo ali. Ele tinha ido me buscar para me levar ao clube em que ele, Dean e alguns amigos se apresentariam, e essa era a única coisa capaz de tirar Ayla de casa.
Depois dele me convencer, saí para me arrumar. Esperei minha skin continuar a agir no automático para se arrumar sozinha e depois de alguns segundos percebi que isso não ia acontecer. Suspirei e tirei a roupa que eu vestia, procurando algo confortável para a noite e... Espera aí.
Arregalei os olhos, encarando meu próprio reflexo no espelho. Aquela era a primeira noite que Ayla e Dean também passariam juntos e... Que lingerie feia ela estava usando.
Eu tinha a lembrança de algum protagonista de Kate zoando alguma calcinha estampada de uma mocinha, mas não fazia ideia de quem era. Nem se era daquela série. De todo modo, me recusei a usar uma calcinha branca de bolinhas vermelhas e um sutiã bege. Eu podia fazer bem melhor. Era a primeira noite deles, pelo amor de Deus.
Obviamente, Ayla não sabia daquilo, mas eu sim. E se o Dean era a cara do meu namorado, eu só tinha que aproveitar a situação. Ri sozinha, enquanto escolhia um conjunto de renda preto. Meu inconsciente só podia estar cheio de tensão sexual mesmo para me mandar de volta para o livro justo no dia em que Ayla e Dean dormiriam juntos pela primeira vez.
Ah, que sorte. Eu mal podia esperar por esse momento. Eu podia ter perdido o primeiro beijo, mas isso era bem melhor. Me senti como o próprio emoji roxo com chifrinhos sorrindo.
Terminei de me arrumar em alguns minutos e fiz apenas uma maquiagem leve para disfarçar minha cara de zumbi. Descobri que deu certo assim que encontrei Zico outra vez.
— Minha nossa — Zico colocou a mão na boca, fingindo espanto. — A maquiagem realmente faz milagres em você, Ayla. Sua cara de zumbi já era.
Minutos mais tarde, chegamos ao clube e Zico me apresentou a alguns outros amigos que também se apresentariam naquela noite.
Dean se ofereceu para buscar um refrigerante para mim e eu o observei de longe. Uma garota de vestido preto o parou quando ele estava voltando e eu os encarei, sabendo que ele a rejeitaria em breve. Como se sentisse meu olhar, ele levantou a cabeça, me encontrando no mesmo instante. Ayla teria desviado o olhar, fingindo que observava o local, mas quando ela não fez isso, percebi que eu estava no comando outra vez.
Geralmente era o que acontecia quando não havia diálogos ou descrições detalhadas.
Continuei encarando Dean e, como esperado, ele rejeitou as investidas da garota educadamente, antes de me encontrar outra vez. Ele se sentou ao meu lado em silêncio e deu um gole em seu copo de whisky, antes de se recostar no sofá que estávamos e levantar o quadril levemente para tirar algo do bolso.
Uma carteira de cigarros. Eu já sabia o que ia acontecer e não fiz nem questão de esperar Ayla dizer.
— Você não pode fumar comigo aqui.
— O quê? — Dean me encarou.
— Eu tenho alergia a tabaco, Dean. E estamos em ambiente fechado, por mais que seja um clube. Você não quer me ver tendo uma crise de tosse e falta de ar, né? E eu odeio o cheiro disso.
Não era bem isso que Ayla dizia para ele, mas eu resolvi improvisar.
Dean piscou duas vezes e então assentiu, voltando a guardar a carteira de cigarros.
Imediatamente agradeci mentalmente a null por ter parado com aquela merda. Eu realmente odiava cigarros. E se meu namorado não pretendia largar o tabaco pela própria saúde, fiquei feliz em saber que ele tinha feito isso pela minha.
Depois de alguns minutos, os meninos foram para o palco se apresentar e eu me diverti assistindo. Até que chegou o momento crucial em que Dean cantou uma música sozinho.
"Eu vou te foder se você deixar..."
Um sorrisinho apareceu no meu rosto, sabendo que eu deixaria sim e de bom grado. Na verdade, eu estava contando os minutos para ir embora. Já que eu não estava aproveitando null na vida real, então eu o faria ali, em sua skin de Dean.
Eu tinha uma queda pela voz de null. Foi o que me chamou atenção primeiro, antes mesmo de conhecer seu rosto. E no corpo de Ayla, eu sentia como ela também gostava da voz de Dean. Nós ainda éramos null e null em um universo diferente, e eu não tinha do que reclamar.
Quando Dean voltou para onde eu estava, nós assistimos uma batalha underground de rap que rolava no palco e tivemos um diálogo automático. Fui uma mera expectadora naquele momento, mas me senti animada por dentro mesmo assim.
Dean perguntou por que Ayla não estava animada durante a apresentação dele e ela deu uma desculpa esfarrapada de que era porque o conhecia. Ele retrucou dizendo que ela havia gritado quando Zico se apresentou e Ayla rebateu falando que Zico não estava cantando "eu vou te foder se você deixar”, mas que teria sido diferente se ela não o conhecesse ou soubesse que não o veria mais. Eu sabia que ela agiria como uma maluca se não fosse por isso.
E acho que Dean também, porque ele apoiou a mão do outro lado da grade da varanda onde estavam, encurralando Ayla. Minha skin se encolheu involuntariamente e eu sorri por dentro. Quem nos visse, pensaria que estávamos abraçados, mas Dean apenas se inclinou para falar em meu ouvido:
— Nesse caso, eu gostaria que você não me conhecesse — ele murmurou, a voz rouca me fazendo arrepiar. Ai, null null... Por que você tinha que ser tão bonito e provocante?
Senti um frio na barriga e meu coração acelerou.
— O quê? Por quê? — perguntei, rindo sem graça, olhando para o palco. Dean riu baixinho, antes de se inclinar novamente.
— Porque eu adoraria te ouvir gritando meu nome.
Minha nossa. Que Deus tivesse piedade de Ayla e de mim, porque certamente aquele homem não tinha.
Depois de mais alguns minutos divididos entre diálogos inocentes e mais provocações de Dean, eu (Ayla) anunciei que queria ir para casa e praticamente decretei que ele me levasse embora.
Eu sabia que Ayla dirigia para casa mesmo sabendo que Dean não estava bêbado, mas não me importei. Eu não estava com vontade de dirigir e fiquei feliz quando aquele diálogo não ocorreu. Eu iria tranquilamente no banco de carona e se Dean fosse parado e multado por beber uma dose de whisky, então azar o dele.
Como eu ainda precisava de uma desculpa que o fizesse subir até meu apartamento, falei que daria um pouco de água para ele quando chegássemos com a justificativa de que não o vi tomando nada.
Funcionou. Era melhor do que obrigá-lo a tomar café à noite. Desculpa, Kate.
No entanto, mais um diálogo automático veio e, de repente, Ayla e Dean estavam discutindo e indiretamente mencionando o beijo que ambos passaram um mês fingindo que não havia acontecido. Eu sabia que eles iam começar a se pegar a qualquer momento, então apenas esperei pacientemente enquanto me divertia com a mini discussão cheia de tensão sexual dos dois.
E quando Dean se aproximou no meio da discussão e colocou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha, eu já sabia o que ia acontecer.
— Dean... O que você tá fazendo? — perguntei, sentindo o coração bater na garganta.
Dean me olhou nos olhos e sorriu, roçando o nariz no meu.
— Beijando você — respondeu, antes de me puxar para si, juntando nossos lábios.
Gemi contra sua boca, lembrando da primeira e única vez que beijei null, ainda no hospital, e como tinha sido completamente inocente comparado àquele beijo. No próximo instante, estávamos no sofá e eu suspirei baixinho quando Dean levou os lábios até meu pescoço.
— Dean... — o chamei quando ele pressionou nossos corpos, me fazendo gemer com a fricção.
— Eu adoro quando você diz meu nome, Ayla...
Filho da puta. Me seduzindo e sabendo que estava obtendo sucesso. Eu que não iria reclamar.
Eu vou te foder se você deixar, amor... — ele cantarolou baixinho no meu ouvido, alguns instantes depois.
Quando chegou o momento em que nos movemos até o quarto e Dean me jogou na cama, eu achei que finalmente ia ter um momento de sucesso naquele livro. A hora havia chegado e eu estava mais do que feliz por aquele sonho ser tão real. Começamos a nos livrar das primeiras peças de roupas e então, do completo e absoluto nada...
Eu acordei.
No quarto de hóspedes do apartamento que dividia com null. Ri como uma maníaca, irritada para um caralho. Me sentei na cama e soquei o travesseiro, odiando ter acordado naquele momento. Eu estava excitada e agora sexualmente frustrada por causa de um maldito sonho.
Que ódio.
Respirei fundo por alguns segundos, e então decidi me recompor e parar de dar uma de doida. Peguei meu celular e vi que eram oito da manhã. Normalmente eu vinha acordando depois de oito e meia, mas de jeito nenhum eu conseguiria voltar a dormir depois daquela pataquada de sonho.
Decidi agir como uma mulher madura de vinte e oito anos e me dirigi ao banheiro para tomar banho e escovar os dentes. Banho quente, porque de jeito nenhum eu tomaria um frio. Eu podia estar sexualmente frustrada, mas ainda odiava água fria.
Depois de uns dez minutos, vesti um vestidinho azul solto e fui até a cozinha para preparar o café da manhã, enquanto tentava me forçar a esquecer meu momento interrompido com Dean.
Infelizmente, não tive muito sucesso.
Porque quando cheguei na cozinha, a primeira coisa que notei foi null, cozinhando sem camisa. E como se notasse minha presença, ele se virou naquele momento, revelando um tronco musculoso e bem construído, com ombros fortes, e músculos na medida, do jeitinho que eu gostava.
Eu ainda não o tinha visto sem camisa nenhuma vez; null estava sempre vestido. E certamente eu não lembrava ainda de não vê-lo com roupas.
Assim, meu queixo quase caiu e eu teria sorrido se ainda não estivesse com tanto tesão por ele. O universo definitivamente não estava cooperando ao colocar meu então namorado real semi nu na minha frente. Só podia ser algum tipo de teste de resistência.
— Bom dia. Você acordou mais cedo hoje... — null comentou, meio sem jeito, provavelmente se dando conta de que havia sido pego em flagrante sem roupas apropriadas.
Como se eu fosse reclamar disso.
— Bom dia... — respondi, meio distraída, observando ele colocar a comida em um prato.
— Fiz café da manhã pra gente, você quer torradas com ovos mexidos ou geleia? — perguntou, mas honestamente, eu mal ouvi. — null? O que quer comer? — ele reforçou, quando não respondi.
Respirei fundo uma vez, ainda o encarando em silêncio, até que meu cérebro com defeito de filtragem mais uma vez falou por mim:
— Você.
null piscou levemente confuso, mas antes que pudesse perguntar algo, eu andei até ele em passos determinados e pulei em seus braços. Instintivamente, ele me segurou e agradeci mentalmente por suas mãos estarem desocupadas ou teríamos feito uma bagunça.
null? O que-
— Você. Quero comer você, null.
E então o beijei.
Se o universo não estava cooperando comigo e minha decisão de me manter comportada, então eu ia aceitar o que ele estava me oferecendo de bom grado.

Capítulo 9


null correspondeu meu beijo sem hesitar.
No instante em que nossos lábios se tocaram, ele me acolheu em seus braços como se eu não tivesse parecido uma maluca me jogando contra ele. Ou pior, como se fosse natural eu fazer isso. Será que eu fazia?
null me apoiou na bancada ao lado da pia e envolveu meu rosto com uma mão, aprofundando nosso beijo; a outra, foi direto para a minha bunda, por baixo do vestido e ele apertou com força, pressionando o corpo contra o meu. Gemi contra o beijo e arranhei suas costas levemente, usando as pernas para puxar ele para mais perto, se é que era possível. A questão era que eu queria me fundir a ele e sentia uma necessidade quase dolorosa de tê-lo dentro de mim. Cheguei à conclusão de que meu corpo só podia amar o corpo dele, o que me fazia agir por puro instinto.
Ele partiu nosso beijo para levar a boca ao meu pescoço e usou uma das mãos para abaixar uma das alças do meu vestido, expondo meu ombro. Arfei, ofegante e sentindo a pele arrepiar, mas eu também queria muito tocá-lo. Então empurrei sua cabeça de leve e levei meus lábios até seu pescoço, raspando os dentes de leve pela tatuagem enorme ali. A pele dele se arrepiou e eu sorri quando ele exalou o ar de uma vez.
null...
Continuei a beijá-lo e puxei o lóbulo de sua orelha, fazendo-o se contrair com cócegas. Eu ri baixinho e ele juntou nossos lábios mais uma vez, as duas mãos sob o meu vestido. Senti ele enganchar os dedos de cada lado da minha calcinha e em um puxão forte e repentino, o tecido se partiu. Quebrei o beijo, surpresa, e sorri quando ele se inclinou mais para frente, baixando a outra alça do meu vestido e então puxando o tecido para baixo, expondo meus seios. Estremeci quando sua boca os tocou e suspirei baixinho, ofegante, me sentindo extremamente sensível em todos os lugares. null me beijou e beijou, e eu comecei a perder a noção do tempo.
Então ele se afastou e me encarou por um instante, roçando a boca na minha, sem realmente me beijar. Me perdi na escuridão de seus olhos até que null se distanciou outra vez, se inclinando para baixo e abriu minhas pernas, me expondo completamente para ele.
Àquela altura, o tecido do meu vestido estava embolado na minha cintura, meus seios ainda expostos. Eu estava uma bagunça, mas tudo o que eu conseguia pensar era no toque dele.
E como se soubesse exatamente disso, null me deu o menor dos sorrisos e então caiu de boca em mim, me devorando como um homem faminto. Gemi, surpresa, e automaticamente levei uma mão ao cabelo dele, desesperada para me segurar em algo. Era como se a qualquer momento eu fosse cair de um precipício e era ele quem estava me empurrando aos poucos. null usou sua boca em mim como se soubesse exatamente como me tocar e, em um milissegundo, me dei conta de que ele devia mesmo saber.
Me contorci contra sua boca, sem sentir um pingo de vergonha, e então senti ele deslizar dois dedos dentro de mim, aumentando o estímulo. Me apertei ao redor deles, sentindo a tensão em meu corpo crescer. O precipício estava bem ali e quando cheguei à beira dele, null me empurrou sem aviso. Estremeci violentamente contra sua boca e, por um momento, minha visão escureceu e tive um flash de memória de nós dois naquele mesmo lugar, em outra ocasião.
null se afastou um momento depois e eu o encarei com os olhos pesados, enquanto ele limpava o canto da boca com o polegar, sem tirar os olhos de mim. Eu estava completamente mole e com o corpo quente, e ele tinha um sorriso satisfeito no rosto, beirando à prepotência.
O idiota sabia o que tinha feito comigo. Ele sabia que tinha me desmantelado toda e, por alguns segundos, só consegui encará-lo enquanto recuperava o fôlego. Quando isso aconteceu, me inclinei para frente e juntei nossos lábios mais uma vez, percorrendo seu abdômen com as mãos até o cós de seu short.
Enfiei minha mão ali e senti sua excitação pela cueca boxer que ele usava. Pressionei um pouquinho e null gemeu contra minha boca. Fui envolvida por uma repentina satisfação ao perceber como eu o afetava também e tudo o que eu conseguia pensar era: minha vez.
Brinquei um pouquinho com o elástico de sua roupa íntima e então, quando eu estava prestes a enfiar uma mão ali, a campainha tocou.
null se separou de mim no mesmo instante e me encarou por alguns segundos. A campainha tocou novamente e ele virou a cabeça.
— Merda... A encomenda.
— O que foi? — eu quis saber.
— Eu volto já. Fica aqui.
Assenti e o observei se afastar para atender a porta. Desci da bancada e ajeitei meu vestido rapidamente, com receio de algum visitante inesperado surgir. Avistei minha calcinha no chão e senti o rosto esquentar, um sorriso levantando meus lábios.
Isso de partir calcinhas... Eu achava que só existia nos livros. Não esperava vivenciar esse tipo de fantasia feminina, mas era quente demais. Peguei o agora pedaço de tecido e aproveitei que null estava ocupado para ir ao banheiro me limpar e me recompor propriamente, para ficar apresentável mais uma vez.
Encarei meu reflexo ainda corado no espelho e sorri para mim mesma.
De repente, me perguntei quantas calcinhas minhas null já tinha rasgado. Ainda bem que eu não tinha nenhum apego emocional a roupas íntimas, porque aquela era bonita.
Descanse em paz, calcinha, pensei ao jogar ela no cesto de lixo do banheiro.
Voltei para a cozinha a tempo de ouvir null falando com alguém, enquanto voltava para dentro de casa.
— Obrigado, Sr. null. Tenha um bom dia — uma voz masculina disse.
— Você também, Levi. Até mais.
null reapareceu carregando uma caixa grande que colocou em cima da bancada e então se moveu ao redor para esquentar novamente o café da manhã. De repente, percebi que nosso momento havia passado. null perguntou novamente se eu queria ovos mexidos e assenti, enquanto ele começava a se mover ao redor da cozinha para preparar, como se há menos de dez minutos não estivesse com a boca em mim.
— O que é isso? — Apontei para a caixa. Por que aquele entregador tinha que aparecer justo naquela hora?
— Compras de supermercado. Eu comprei online e pedi pra entregarem aqui.
— Aqui e não na portaria? Eu não sabia que podia.
— Eu pago a mais por isso. — Ele deu de ombros. — E sempre dou uma boa gorjeta ao entregador. Não gosto de ficar indo e vindo, o condomínio é grande.
Nossa, ser rico devia ser muito bom mesmo.
Eu também tinha uma quantia razoável de dinheiro na minha conta, mas nunca pensei naquilo.
— Eu faço isso também? Compras online de supermercado?
— Sim, mas você gosta de ir pessoalmente também. Às vezes, eu vou com você, mas não é muito frequente porque tento não ser reconhecido por aí.
— Entendi.
null colocou a comida na bancada e nos sentamos juntos.
Comemos por alguns minutos em silêncio, até que ele começou a falar.
— Sabe... Fiquei surpreso por você me beijar de repente.
— Sério mesmo que não esperava que eu fosse pular em cima de você que nem uma maluca? Você não parecia surpreso.
— Na hora eu não pensei, só agi — ele respondeu, contendo um sorriso. — Além disso, não foi nada fora do normal. Tirando o fato de que você não se lembra de mim como seu parceiro.
— Então é normal eu dar uma de doida?
— Amor, eu adoro quando você dá uma de doida. — Ele sorriu como um idiota, e eu pisquei algumas vezes.
— Por que você se apaixonou por mim mesmo? Eu não sou tão interessante. Na verdade, minha vida é até chata comparada a sua. Eu sou chata. E frequentemente tenho pensamentos politicamente incorretos que me cancelariam.
— Eu também. Mas a gente se ama mesmo assim. Além de parceira, você é minha melhor amiga, null. Só não lembra ainda — ele comentou, se levantando para deixar a louça na pia.
Em seguida, foi até a caixa que recebeu e começou a retirar as compras de dentro. Levantei também e fui ajudar a organizar tudo para guardar.
— Tenho a impressão de que você viu todos os meus lados nos últimos anos. E me sinto à vontade ao seu redor como nunca estive com ninguém — confessei, de repente.
null me encarou com um sorriso de canto e continuou a trabalhar nas compras.
— Você tá certa. Eu conheço a null fã de null null, a null que é leitora voraz, que ri como uma menininha ao ler uma cena romântica e fofa, mas que também lê vários livros questionáveis... Até a null estressada, quando algo dá errado ou simplesmente te irrita, porque você não é tão paciente assim... E a null que faz de tudo pra ajudar a todos como puder. Você se esforça pra ser compreensiva, mesmo quando algo te chateia, até mesmo comigo. Eu conheço todas as suas alergias, manias e gostos e te acho fascinante, amor, por mais que você pense que não é.
Seria possível me apaixonar mais ainda? As lembranças com null estavam nubladas por uma névoa espessa em minha mente, mas os sentimentos não. Eu sabia que eles eram reais. E descobrir um pouquinho mais sobre a gente me fazia até ficar assustada por imaginar o tanto que eu o amava. Além disso, null fazia eu me sentir amada também. A cada ato gentil, cuidadoso e amoroso dele. Por mais que parecesse novidade para mim, todos os meus amigos pareciam estar habituados a ele agindo assim em torno de mim.
Era como se nós orbitássemos um ao redor do outro.
— Às vezes eu acho que isso tudo é um sonho e vou me decepcionar quando acordar — admiti, sentindo os olhos arderem subitamente.
— Não é um sonho, null. É assim que nós somos — null disse, parando o que estava fazendo para se virar para mim. Ele segurou minhas mãos e as levou aos lábios, beijando meus dedos carinhosamente. Nossas alianças de compromisso brilharam contra a luz. — Acho que o universo quis assim. Você sempre disse que parece que somos predestinados, e eu concordo. Acho que estávamos fadados a acontecer. E eu amo cada pedacinho seu.
Meus olhos embaçaram com lágrimas enquanto o encarava.
— Eu também... — confessei. — Mesmo não lembrando de nada ainda e mesmo com medo de não lembrar algum dia, null... Eu simplesmente sei que te amo. Você é único pra mim tal qual o Pequeno Príncipe era único para a rosa.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto e ele secou carinhosamente.
— E você era uma em um milhão, mas agora é minha e é isso que te torna diferente de todas as outras. — Ele sorriu, encostando a testa na minha. — Você é a minha rosa, amor.
Eu ri baixinho, e lágrimas grossas escorreram pelo meu rosto.
— Eu não quero mais abafar esses sentimentos com medo de ficar estranho entre a gente — declarei. — Não quero que você fique pisando em ovos comigo, achando que vou me assustar ou algo assim, pelo fato de eu não lembrar. Eu quero tocar você e quero que me toque. Se você é meu, então eu sou sua também, null. — Acariciei seu rosto. Ele me encarou com os olhos brilhantes também e um par de lágrimas escapou deles.
As enxuguei com os polegares, assim como ele fez comigo, e null se inclinou, selando nossos lábios por um breve momento antes de me envolver em um abraço forte e acolhedor. Ficamos assim por alguns minutos até que o celular dele tocou e ele se afastou para atender.
— É o nosso personal trainer. Eu meio que me atrasei. — Ele me encarou e eu ri, sentindo o rosto esquentar, sabendo exatamente o motivo de seu atraso.
null falou com o cara por alguns instantes e de repente um nome me veio em mente.
Quando ele desligou, eu perguntei:
— Por acaso, nosso personal trainer se chama John Kim?
— Sim... Sim, é ele. Você lembrou disso, null?
— Não sei... De repente, esse nome me veio em mente. — Dei de ombros. — E teve outra coisa, quando nós estávamos... — Olhei para a bancada ao lado da pia e voltei a encará-lo. — Nós fizemos aquilo outras vezes, naquele lugar? Me veio um flash de memória na hora, mas foi muito rápido.
— Amor... — null sorriu, malicioso. — Nós fizemos várias coisas em todos os cômodos desse apartamento. Então é bem provável que tenha sido real.
— Ah... Isso é bom então, né? Meio que é um progresso. Bem pequeno, mas...
— Isso é ótimo, amor. Me diga sempre que lembrar de qualquer coisa, vou tentar te ajudar como puder.
— Tudo bem. — Assenti. — Você tá atrasado. Vai logo e deixa que eu guardo as compras.
— Vou dizer a John que você vai voltar pra academia segunda-feira. O médico disse que era importante você fazer exercícios.
— Que animador... Logo eu, que odeio.
null riu, divertido.
— Mas é bom pra saúde, e é por isso que você faz. Vou pedir a John pra pegar leve com você.
Então ele selou nossos lábios uma última vez e partiu para buscar uma camisa que vestiu antes mesmo de chegar à porta. Um instante depois, ele se foi e eu voltei minha atenção para as compras, me perdendo em pensamentos mais uma vez.

Capítulo 10

Depois de uma hora e meia depois de null sair para a academia, eu já tinha guardado as compras, tomado banho, lavado a louça e agora estava acomodada no meu sofá enorme e fofinho, rodeada de almofadas e bebericando um copo grande de chá-preto gelado com limão, enquanto lia mais alguns capítulos de Oblíquo, que eu havia recebido naquela manhã.
Eu não cuidava somente da agenda de Kate, mas também atuava como sua primeira leitora beta e estar dentro do processo criativo dela era algo que eu fazia desde sempre e amava.
Aquele era o último livro da série que ela vinha publicando desde 2019 e estava previsto para ser lançado no próximo ano. Saber que estava acabando me dava uma sensação agridoce e às vezes me fazia economizar capítulos por não querer me despedir da série.
Kate costumava usar um pseudônimo em seus livros e isso não tinha mudado, mas antes ninguém sabia seu verdadeiro nome. Até mesmo os autógrafos de livros eram feitos na editora ou na casa dela durante a pré-venda, e os leitores passaram alguns anos sem ter noção de quem ela era, até Kate decidir largar seu emprego de enfermeira, que àquela altura era mais um hobby, e revelar sua verdadeira identidade.
Ela também era a única pessoa que eu conhecia que teria como hobby algo que envolvia pessoas em risco de morte. Eu nunca entendi isso, mas ainda era a profissão de formação dela. Só que falando por mim, se eu fosse Kate, eu nunca pisaria em um hospital se ganhasse dinheiro trabalhando em casa. E não era pouco dinheiro. Kate era uma autora bestseller.
E eu tive muita sorte de trabalhar com ela. Comecei como uma mera estagiária na editora, depois de passar meses fazendo freelancer enquanto eu procurava um emprego estável. Felizmente, o meu portfólio de freelancer interessou Andrew e ele resolveu me dar uma chance sem ao menos me conhecer pessoalmente.
Isso foi em 2016.
Fui treinada pessoalmente por ele e fiz diversas coisas como estagiária na editora. Eu sabia um pouquinho de tudo, mas às vezes era cansativo. No entanto, o esforço valeu a pena e quando Kate decidiu revelar sua identidade e solicitou uma agente, Andrew me ofereceu a vaga.
Eu meio que surtei por um momento, mas aceitei sem pestanejar. Era de Fleur de Colibri de quem estávamos falando. Uma autora grande, com milhares de leitores. De jeito nenhum eu ia deixar passar aquela chance, mesmo com medo de fracassar.
E foi a melhor coisa que fiz.
Kate era bem temperamental às vezes, e não era nem um pouquinho delicada quando estava fora de sua skin de enfermeira, mas nos dávamos incrivelmente bem. Andrew provavelmente percebeu que seríamos compatíveis antes mesmo de nós duas, e por isso me escolheu. Na época, minha relação com ele não era nada além de profissional e amigável como um bom chefe teria com seus funcionários. Ele e Dianna dividiam o posto de CEO e ambos eram incríveis.
Nunca conheci ninguém da editora que odiasse trabalhar lá e as poucas pessoas que vi se demitirem eram por motivos pessoais que envolviam família ou casamento. A maior parte dos funcionários era composta por mulheres e às vezes acontecia de largarem o emprego para se casar e serem sustentadas pelos seus maridos. Eu achava um tanto curioso e se o relacionamento era saudável, então devia ser legal, mas nunca me imaginei fazendo nada do tipo. Eu amava meu trabalho e era muito bem paga, obrigada.
null e eu passamos alguns períodos apertados fazendo bicos e tentando juntar um pé de meia para emergências. Não tínhamos plano de saúde e ainda havia os empréstimos estudantis da faculdade.
Nunca passamos nenhuma necessidade durante esse tempo, mas também não podíamos nos dar ao luxo de fazer muitas coisas. Felizmente, isso melhorou um pouco depois que null arrumou um emprego como professora e eu consegui o estágio na editora. Nessa época, ela ainda era a provedora principal da nossa casa, mas eu tentava ajudar o máximo que podia.
Quando me tornei agente de Kate, nossa vida melhorou consideravelmente. Meu salário aumentou e frequentemente eu recebia alguns bônus. Não demorou muito para que eu conseguisse quitar meus empréstimos estudantis e ajudar null com o restante que faltava para ela. Nos mudamos para um apartamento melhor e os luxos que não podíamos ter passaram a fazer parte de nossa rotina.
O melhor de tudo era poder pedir comida ou ir a um restaurante sem se preocupar com o valor e, é claro, ter plano de saúde.
No entanto, a nossa evolução financeira não nos fez ficar irresponsáveis. Sabíamos muito bem o valor que o dinheiro tinha e como era não ter muito. Esse era um dos motivos pelo qual eu nunca pararia de trabalhar. Nem mesmo se null null me pedisse.
Quando comecei na editora, minha conta bancária tinha apenas cento e quarenta dólares que eu estava tentando fazer render enquanto não conseguia nenhum outro trabalho como freelancer. Esse número se transformou em alguns milhares de dólares depois de alguns meses como estagiária, e algumas centenas de milhares quando comecei a trabalhar com Kate.
Eu sempre seria grata a Andy por ter me escolhido. E era bom saber que ele acreditou na minha capacidade quando nem eu tinha certeza dela.
Acabamos nos aproximando um pouco mais desde então. Kate era muito próxima dele e de Dianna, e os três se encontravam com frequência. Como sua agente, eu precisava estar a par de tudo, então eu a seguia a cada compromisso de trabalho.
Andy me ajudou com dúvidas e a resolver coisas que eu ainda não tinha muita experiência. De chefe e funcionária, nos tornamos amigos. Meses depois, ele me convidou para sair, e uma coisa levou à outra. Namoramos por um ano e meio, até que tudo ficou morno.
Fui eu que terminei nosso relacionamento, porque eu sabia que Andrew não teria coragem. Ele não queria me magoar, mas eu era rápida em pegar os sinais. Passamos cerca de dois meses empurrando o nosso relacionamento com a barriga, até que eu percebi que um de nós precisava agir, e tinha que ser eu.
Não foi um término triste e não nos magoou. Tínhamos passado dezoito meses juntos, mas nossa amizade era mesmo mais forte que isso. Nunca nos tratamos com indiferença, e a única coisa que mudou foi a linha de limite imaginária que estabelecemos automaticamente entre nós.
Como não ir a encontros sozinhos e não nos beijarmos mais. Já abraços eram permitidos. Afinal, ainda tínhamos um carinho enorme um pelo outro. Ele tinha sido o cara com quem perdi minha virgindade e era um cavalheiro. De todo modo, Andy e eu éramos pessoas que também funcionavam muito bem sozinhas, sem a necessidade de estar sempre em um relacionamento. Ele estava solteiro desde então e eu... Bem, aparentemente conheci null seis meses após nosso término.
E fui amarrada por ele desde a tal noite do meu flashback, noite essa que eu mal podia esperar para lembrar e saber como tinha sido conhecer o amor da minha vida. Porque era isso que null era, como eu o intitulava desde que era apenas uma fã — o que para mim foi até poucos dias atrás.
No entanto, como fã, eu não ousava sonhar com algo real. Claro que eu tinha meus momentos delulu porque era divertido e aparentemente saudável, e toda fã tem. Mas na realidade mesmo, eu era bem pé no chão. No máximo, queria encontrá-lo pessoalmente para tirar uma foto e pegar um autógrafo. Mas meu peito se enchia de felicidade por saber que tínhamos ido bem mais longe que isso.
Terminei de beber meu chá com um barulho no canudo de metal no exato instante em que null abriu a porta, já se livrando da camisa. Ele estava completamente suado e por mais que eu odiasse suor, aquela era uma visão e tanto.
— O que você tá bebendo? — Ele perguntou, enchendo um copo de água antes de colocar uma dose de whey protein e sacudir.
Eca.
— Chá-preto com limão. Quer que eu prepare pra você? — ofereci, mesmo vendo ele beber aquela nojeira.
null negou com a cabeça.
— Talvez mais tarde. Você quer? — ele me ofereceu o shake. Coloquei um dedo na boca e fiz barulho de vômito. null riu e rolou os olhos. — Não é tão ruim assim depois que você se acostuma.
— Tirando o fato de que nunca me acostumei. Me arranje um whey que não tenha gosto de nada e aí a gente conversa.
Ele riu de novo e então terminou de tomar A Nojeira de uma vez.
— Vou tomar banho — disse, já se afastando. — John mandou oi e falou pra você se preparar psicologicamente.
— Ei! Você disse que ia pedir pra ele pegar leve.
— E pedi. Mas eu não disse que ele ia concordar com isso. — Ele sorriu com malícia.
Fiz uma careta e mostrei o dedo do meio para ele.
— Vá se foder, null.
— Só se você vier também, amor — ele retrucou, com a resposta na ponta da língua.
Rolei os olhos, o ignorando, e voltei a ler. Vinte minutos mais tarde, eu estava fatiando vegetais e a panela de arroz já funcionava a todo vapor, enquanto eu me ocupava com os preparativos de bibimbap. Senti uma súbita vontade de comer aquilo e não avisei null. Eu nem sabia se ele gostava, mas se a culinária asiática era comum entre nós, então havia uma grande chance dele já ter comido.
Além disso, era muito prático. Eu só tinha que refogar vegetais, preparar um pouco de carne, e depois montar tudo em duas tigelas grandes. A versão clássica levava um ovo frito em cima também e molho agridoce feito com pimenta, ketchup e mel como base. Era possível acrescentar alguns temperos, mas a versão básica já era muito boa.
null apareceu alguns minutos depois, quando eu estava refogando a cebola.
— Hm, que cheiro bom. O que é? Bibimbap? — Ele espiou a tigela de legumes ao meu lado.
— Sim, eu não sabia se você gostava, mas senti vontade de comer. De todo jeito, tô fazendo o suficiente pra nós dois.
— Eu amo bibimbap, amor — null respondeu, dando um beijinho na minha têmpora. Sorri de lado, satisfeita. — Quer que eu ajude em algo?
— Você pode preparar o molho? Vou usar a mesma panela pra refogar tudo. Basta colocar no micro-ondas uma mistura de...
— Eu sei como é, null. Relaxa, a gente já fez isso um zilhão de vezes.
— Ah, é? — O encarei, interessada.
— Pois é. Mas geralmente você me faz fatiar os legumes.
— Vou lembrar disso da próxima vez. — Sorri, voltando a atenção para a panela.
Uma vez que as tigelas ficaram prontas, nós as colocamos na bancada e null tirou uma foto para postar nos stories do Instagram. Ele não me marcou, sabendo que eu ainda estava evitando redes sociais, mas posicionou um emoji de coração entre as tigelas.
Achei fofo.
Durante a tarde, passamos algum tempo deitados no sofá assistindo a um drama aleatório da Netflix, mas em algum momento acabei pegando no sono.
Estava chovendo e tinha esfriado um pouco. null era quentinho e macio como um bom travesseiro, e eu estava deitada com a cabeça em seu peito, entre ele e o encosto do sofá.
Meus olhos pesaram depois da metade do segundo episódio e adormeci. Quando acordei, null ainda estava lá e também dormia, mas a TV havia sido desligada. A chuva ainda caía lá fora e eu o observei por alguns minutos até decidir voltar a dormir.
À noite, depois do jantar, ele se trancou no estúdio e só saiu quase uma da manhã. Eu já estava deitada e tentando dormir há algum tempo, e ouvi ele andar pelo corredor abrindo e fechando portas. Me virei na cama outra vez, encarando o teto, até que decidi sair dali.
Peguei um travesseiro e um cobertor e fiz um montinho com eles em meus braços, antes de deixar o quarto de hóspedes e seguir até o quarto de null. null havia até mesmo dito que eu dormia melhor com ele, então por que não?
Bati na porta e esperei até que ele abrisse, mas tive que levantar o olhar rapidamente quando notei que ele usava apenas uma cueca. Não me importei, é claro. Por que eu me importaria com uma visão daquelas?
O universo estava me agraciando.
null? — Ele chamou, encarando a pilha em meus braços.
— Vim dormir aqui — anunciei, entrando no quarto sem pedir permissão. Aquele lugar era meu também. — Tô com dificuldade pra dormir sozinha e aparentemente você é como uma pílula gigante de melatonina.
Me arrastei para a grande cama em nosso quarto e me acomodei no lado não mexido da cama. Afofei os travesseiros e me deitei, só então olhando para null, que ainda estava parado na porta.
Bati do lado dele da cama, o chamando silenciosamente, e então ele se moveu.
— Acho que você não devia passar tanto tempo no estúdio. Você fica meio lerdo quando tá muito cansado — comentei, quando ele se sentou na cama.
— Tem certeza de que tá tudo bem? — null perguntou.
Ele era tão certinho que era de dar dó. E eu achando que ele era temperamental que nem eu.
— Depois daquela declaração toda hoje de manhã, você ainda tá com dúvida? — brinquei. Um sorrisinho apareceu no canto de seus lábios. — Vem logo, null. Eu quero dormir e você também precisa.
Os olhos dele estavam até meio inchados de cansaço, provavelmente por encarar a tela do computador por muito tempo. Eu conhecia aquela sensação e sabia que dormir era o melhor remédio.
null desligou as luzes com um controle remoto, se acomodou ao meu lado e ficamos deitados de lado, olhando um para o outro. Uma mecha de cabelo dele estava sobre a testa e eu a afastei cuidadosamente.
— Boa noite, amor — ele murmurou, já de olhos fechados.
— Boa noite — respondi, recolhendo a mão.
Fechei os olhos e não precisei mais me revirar na cama até me sentir confortável para dormir. Estar com ele era suficiente. null tinha razão.
Alguns minutos depois, caí no sono.

Capítulo 11

Senti um movimento de respiração embaixo do rosto e inspirei profundamente. null tinha a respiração pesada e eu estava deitada em seu peito nu, com uma das pernas em cima dele.
Estiquei o braço me aconchegando mais e o abracei pela cintura, mas... Por que ele parecia tão largo? Encolhi o braço novamente e tateei por seu peito e... Que peito grande ele tinha. Eu não me lembrava de sentir aquilo tudo nas vezes em que nos deitamos juntos no sofá.
Abri os olhos, mas o quarto estava escuro. Tirei a perna de cima dele e null se mexeu, virando de lado e me empurrando um pouquinho com o movimento, apenas para me trazer para mais perto outra vez, passando um braço pela minha cintura e uma perna enorme por cima de mim.
Eu estava sonolenta ainda e me acomodei mais com o nariz em seu peito. Fechei os olhos e adormeci mais uma vez, apenas para acordar quando uma pequena claridade passou pela brecha das cortinas.
Na verdade, o quarto estava claro demais para ser uma simples brecha, considerando que tínhamos cortinas blackout. Pisquei algumas vezes, minha visão clareando mais, e a primeira coisa que notei foi que aquele não era o mesmo quarto em que dormi com null, muito menos o quarto de hóspedes. Tampouco era o quarto de Ayla. Franzi o cenho, ainda imóvel, e percorri os olhos pelo cômodo até me deparar com null dormindo um pouco distante da cama. Não, não era distante. Ele estava em uma cama de solteiro que havia sido junta com outra cama. Mas se null estava ali, então quem estava comigo? Imediatamente, meu cérebro deu um click e resolveu voltar a funcionar.
A primeira coisa que notei foi o peito nu com a pele mais escura, alguns tons acima da de null. O peito era maior, de fato, ele todo era bem maior. E se havia camas juntas em um quarto que eu desconhecia, então aquele só podia ser Seojun, ex-namorado de Ayla.
Eu tinha voltado para Tenaz enquanto dormia e acordado em um capítulo em que ela viajou com os amigos, alguns capítulos depois da primeira noite dela com Dean. Uma pena ter perdido aquilo. E perdido a viagem até ali, quando Dean surtava internamente de ciúmes ao testemunhar a química entre Ayla e Seojun.
Levantei a cabeça para observar o rosto dele e coloquei uma mão na boca, quase tendo um troço.
Seojun era igualzinho a um ator coreano de quem eu era fã.
Um grande e belo gostoso.
Minha nossa, que sortuda eu era. Quem diria que eu ia dormir e acordar em cima de Park Yong Gyu?
Se eu fosse me divertir assim sempre que dormisse ao invés de ter ocasionais episódios de insônia e terror noturno, então era uma maravilha.
Minha skin de Ayla resolveu se mover automaticamente naquele momento e cutucou Seojun na barriga, tentando acordá-lo. Ele não se mexeu, então o cutuquei de novo e, dessa vez, ele resmungou.
— Seojun, me solta, eu quero levantar — Minha skin de Ayla disse.
— Não — Seojun resmungou, me puxando para mais perto.
— Seojun... Aqui não. Você não pode me abraçar assim na cama quando tem outra pessoa do lado...
— E daí? Vocês nem são um casal mesmo — ele resmungou de olhos fechados, ainda sonolento.
Ah, meu Deus! Que gostinho era vivenciar essa cena! HAHAHAHAHA!
Enquanto eu surtava internamente, minha skin continuou a falar com ele.
— Seojun...
Shhh! — Seojun colocou a mão no meu rosto, depois na minha cabeça, fazendo um carinho desajeitado que só bagunçou meu cabelo.
— Seojun, meu cabelo. Você tá bagunçando tudo — reclamei automaticamente.
— E daí? — ele repetiu. — Você fica linda descabelada.
Fechei os olhos e respirei fundo. Eu sabia que Ayla estava tentando manter a paciência, mas eu estava aproveitando cada segundo.
— Você tá fazendo isso de propósito, não tá? — perguntei.
— Hm? Não faço ideia do que você tá falando.
— Sabe muito bem sim. Não esquece que eu te conheço.
— Tá falando do seu amiguinho colorido? — ele resmungou, com uma pitada de escárnio na voz.
— Você tá provocando ele de propósito, não é?
Seojun negou, dando um beijo em minha testa, e alegou estar agindo como sempre. Isso era verdade, mas a parte sobre não provocar era mentira. Eu sabia, ele sabia e Ayla sabia também. Até mesmo Dean saberia se não estivesse ainda dormindo profundamente.
— Independente disso, nós não estamos sozinhos no quarto — insisti.
Ayla estraga prazeres.
— Quer dizer que quando estivermos sozinhos eu posso fazer o que eu quiser? — Ele brincou e eu segurei um sorriso.
Ai ai, Seojun... Você não era meu crush à toa. E eu adorava saber que ele era mesmo uma ameaça para Dean. Ao menos naquele momento da história. Eventualmente, Ayla teria uma recaída com ele quando terminasse com Dean alguns capítulos depois, e só nessa época seria tarde demais. Dean pediria Ayla em namoro naquela viagem, mas se não tivesse feito isso, eu duvidava que ela tivesse permanecido com ele por muito mais tempo. Ayla era prática e não gostava de enrolação, e Dean era o primeiro cara com quem se envolvia depois de seu término com Seojun, no ano anterior.
Tipo eu com null. Andrew não tinha nada a ver com Seojun, mas bem que Tenaz poderia ser uma fanfic de nós dois. Em partes, pelo menos. Nunca reparei nisso antes, mas agora que eu estava vivenciando tudo, havia algumas semelhanças. Eu sabia que Kate curtia uma fanfic, mas a menos que ela fosse uma vidente, aquilo era apenas coincidência porque Tenaz foi escrito antes de eu conhecer null. E mesmo tendo sido lançado quando já estávamos juntos, o texto original não tinha passado por muitas mudanças.
Minha skin de Ayla continuou a discutir com Seojun e depois de uns instantes, ele finalmente a deixou se levantar.
Levantei de uma vez, sentindo uma tontura e caí sentada na cama.
— Ai... — resmunguei, colocando a mão na cabeça.
— Ayla? Você tá-
A voz de Seojun morreu quando abri os olhos, não me encontrando mais em Tenaz e sim na minha realidade, deitada sobre o ombro de null. A primeira coisa que reconheci foi o quarto. Ali, havia mesmo uma brecha entre as cortinas iluminando o cômodo o suficiente para que eu soubesse que lugar era aquele.
Eu estava com uma perna por cima de null e minha camisola azul-marinho havia escorregado, a expondo inteira; já ele, estava com uma mão casualmente espalmada em minha coxa, logo abaixo da bunda.
Tsc tsc, possessivo até dormindo.
Taí outra coisa que null e Dean tinham em comum, além da música e do aniversário (Kate precisava de uma data e eu sugeri uma a ela, hehe).
Me mexi na cama e rolei para o lado, me livrando de sua mão possessiva, e tirei meu celular debaixo do travesseiro.
Já passava das nove e meia da manhã, e notei que eu havia conseguido dormir umas três horas a mais do que costumava, ao menos desde o acidente. Me espreguicei, sentindo o alívio de ter meu corpo e mente completamente descansados pela primeira vez em... Sei lá quando. Certamente não desde o hospital, por mais que eu tenha passado quatro dias inconsciente.
null se moveu ao lado e abriu os olhos.
— Bom dia.
— Bom dia — respondi com um sorriso. — Dormiu bem?
— Eu sempre durmo melhor com você.
— Aparentemente eu também. — Ri baixinho. — Eu sabia que você era minha melatonina pessoal.
Um sorriso brincou em seus lábios e ele se espreguiçou, antes de se sentar na cama e se levantar, indo até o banheiro. Aproveitei para fazer o mesmo e usei o banheiro do quarto de hóspedes para tomar um banho quente e escovar os dentes. Encontrei ele novamente no corredor, indo até a cozinha. Estava usando apenas um short na altura dos joelhos, mas continuava sem camisa, o que era uma alegria para meus olhos.
— Vou fazer café pra mim, você quer? — Ele apontou para um recipiente cheio de cápsulas da máquina de café.
Me aproximei e cutuquei as cápsulas até encontrar uma de chocolate branco e entreguei a ele.
— Você quer pão? Vou fazer torradas pra mim, quer? — ofereci e ele assentiu.
Nos movemos em um silêncio confortável enquanto preparávamos o café da manhã e percebi que aquela era a primeira vez que fazíamos aquilo juntos, o café da manhã. Antes disso, um de nós acordava antes que o outro e deixava a comida pronta. Fazer juntos deixava tudo um pouco melhor. Era bom ter null ao redor enquanto nós dois fazíamos coisas simples como aquela. Ele já tinha me dito que era um costume nosso cozinhar e testar receitas juntos, mas eu só estava vivenciando aquilo novamente há pouco tempo.
Um sorriso apareceu em meus lábios e eu resolvi contar a ele sobre meu sonho com Tenaz.
— Sonhei que ia parar em Tenaz de novo e acordei em cima do Seojun. Você... Ou melhor, o Dean, tava numa cama do lado dormindo. E o Seojun abraçado a mim. Ele tava a cara do Park Yong Gyu, sabe? Aquele ator que eu gosto. Foi muito real.
null se virou e me encarou com um olhar atravessado.
— Você tá dizendo na minha cara que sonhou com outro homem enquanto dormia comigo, null?
— Ei, não é como se fosse grande coisa. Faz parte do enredo do livro. Eu ainda tava solteira nessa parte, ou melhor, a Ayla. Ela não tinha nada sério com o Dean ainda — retruquei. — E de fato, o Seojun era uma ameaça nesse ponto da história — acrescentei, terminando de colocar as torradas em um prato.
Haha, ainda bem que eu te fisguei logo, né, amor? — Ele fingiu o riso e cerrou os olhos. — Vai que seu ex também fosse uma ameaça.
Eu ri, divertida, e ele me deu as costas.
— Você é tão gostoso com ciúmes, null — murmurei sem pensar e bati a mão na boca, no mesmo instante.
null se virou para mim lentamente.
— Eu o quê? — Ele arqueou uma sobrancelha.
— Nada, eu falei sem pensar. Você pode fazer minha bebida gelada? — pedi, tentando mudar de assunto, mas null me ignorou.
Ele andou até mim e encostou o corpo ao meu, levando uma das mãos ao meu pescoço, envolvendo-o de leve, mas ainda assim firme.
— Não me provoque, null — murmurou contra meus lábios.
— Ou o quê? — rebati, corajosamente, sentindo meu estômago se apertar enquanto minha mente corria solta ao redor de diversas possibilidades.
— Ou eu vou fazer você se arrepender.
Dei um risinho, malicioso.
— Quero ver você tentar — provoquei. A mão dele se apertou ao redor do meu pescoço e eu mordi o lábio inferior, ainda sorrindo.
— Você tá precisando de uma lição, garota — ele comentou, a voz pingando de malícia. Seus olhos astutos estavam semicerrados e havia uma determinação neles.
De repente, null me puxou para um beijo, pressionando o corpo contra o meu e eu gemi baixinho, surpresa com a intensidade que emanava dele.
Pelo visto, eu tinha cutucado a cobra com vara curta.
Mas algo me dizia que eu não me arrependeria nem um pouquinho.

Capítulo 12

Se eu soubesse que tudo o que precisaria para fazer null perder o controle era provocar ciúmes nele com as coisas mais bestas possíveis, eu teria feito bem antes.
Bem, teoricamente eu ainda tinha pulado em cima dele na manhã anterior, então não era como se fizesse muito tempo. Claro que antes disso, ele esbarrou em mim por acidente algumas vezes, invadindo meu espaço pessoal como quem não queria nada, na inocência.
Eu sabia que ele estava tentando ser um cavalheiro comigo até que eu me sentisse mais confortável ao redor dele, mas aquele beijo e aquela mão em volta do meu pescoço me fez perceber que eu, de fato, não era a única me segurando.
null moveu a boca para meu pescoço e eu ri, sentindo cócegas.
— O café vai esfriar... — murmurei, como se isso realmente importasse.
Eu não estava nem aí para o nosso café da manhã.
null se afastou e me encarou.
— A gente não precisa dele quente — justificou. — Mas acho que mudei a opção no meu cardápio — acrescentou, roubando mais um beijo, antes de se afastar e me segurar nos braços no estilo noiva.
Gritei, surpresa quando ele me levantou de repente e ri alto quando ele nos levou direto para o quarto. Metade das cortinas ainda estavam fechadas, deixando a parte da cama longe da claridade alta que entrava pela parede de vidro e tudo parecia aconchegante. null me jogou na cama e eu ri quando ele subiu em cima de mim. Havia um sorriso brincando em seus lábios também.
— Se você for dar pra trás de novo, é melhor fazer isso agora — brinquei.
Em resposta, ele me beijou outra vez, um pouco mais carinhoso e com menos urgência.
— Se o celular tocar hoje eu nem vou ver, deixei na cozinha — me disse.
— E não tem mais nenhuma encomenda pra receber?
— Não que eu me lembre. — Ele roçou o nariz no meu e resolvi provocá-lo um pouquinho mais. Na minha cabeça, aquela seria a primeira vez que eu me lembraria de transar com ele, mas por algum motivo eu queria o null intenso. Não o null gentil e carinhoso que me tratava como uma rainha. Eu amava esse null também, mas acho que o tesão acumulado me deixou com espírito de cadela. null podia agir como cadelinha fora da cama, mas por enquanto eu queria o macho alfa que me agarrou pelo pescoço.
Eu nem sabia se eu gostava daquele tipo de coisa, mas aparentemente sim.
— O que aconteceu com o null malvadão? — perguntei quando ele beijou meu pescoço outra vez.
null riu pelo nariz e se afastou para me encarar.
— Você quer esse? Eu tava tentando ser gentil já que você não se lembra de mim.
— Alguma coisa me diz que o null malvadão vai me fazer lembrar dele por dias.
— Ah, é? E o que você quer que eu faça?
— Primeiro, quero que tire a roupa — falei, sem pestanejar. — Vou fazer isso também, não quero nada entre a gente. Não tô com paciência hoje.
— Ah, null... Ser paciente seria um milagre pra você, amor — ele brincou. — Mas eu discordo sobre você tirar sua roupa.
— Por quê?
— Porque quem tem que fazer isso sou eu. — Ele sorriu e se afastou, me puxando para que eu me sentasse.
Sem hesitar, null colocou as mãos na barra da minha blusa e eu levantei os braços de bom grado enquanto ele a puxava para cima. Eu estava sem sutiã, já que não gostava de usar em casa, e provavelmente deveria me sentir um pouco tímida perto dele, mas ele já tinha visto tudo.
Na verdade, via tudo há três anos. Eu vinha pensando nessa informação desde o momento em que ele falou sobre minhas pintinhas e não fazia sentido sentir vergonha do meu corpo. Eu gostava do meu corpo, mesmo que estivesse longe de ser perfeito.
E pelo visto, null também.
Ele se inclinou para me beijar e eu ri, o empurrando.
— Sua vez.
Ele revirou os olhos e se levantou, tirando tudo em poucos segundos. Não tirei os olhos dele e o observei por inteiro. null parecia uma estátua grega, com exceção de uma parte, que tornava tudo melhor.
— Satisfeita? — ele perguntou, seu olhar dizendo claramente que sabia que eu estava gostando da visão.
Fiquei de joelhos na cama e desabotoei o short jeans. Tão rápido quanto ele, me livrei do restante das minhas roupas. Meu corpo doía por ele, mas eu queria provocá-lo um pouco mais.
Sorri e o chamei com um dedo, fazendo-o rir. No instante em que ele subiu na cama e se aproximou, o empurrei novamente, fazendo-o cair de costas sobre o colchão. Era bom ter uma cama grande e não se preocupar com espaço.
— Achei que você me queria no comando — ele comentou, quando subi em cima dele e comecei a distribuir beijos pelo seu tórax.
— Quero aproveitar você um pouquinho. Você fez isso comigo ontem, mas eu não tive oportunidade — expliquei, me inclinando para morder sua tatuagem.
null gemeu baixinho e me segurou com firmeza, sua ereção firme como uma rocha entre nós.
null...
null — respondi, rindo baixinho, antes de me afastar e segurá-lo com uma mão.
null me observou com um semblante sério e franziu o cenho quando comecei a trabalhar com minha mão nele. Quando o tomei com a boca, vi ele jogar a cabeça para trás e me senti satisfeita. Mas não tanto quanto no momento em que ouvi ele gemer meu nome baixinho, uma mão indo direto para o meu cabelo. Não me pressionou, mas apoiou a mão ali e segurou firme nos fios vermelhos.
null estava me deixando fazer o que quisesse com ele e eu estava adorando cada segundo, cada reação sua e respiração ofegante. Ele tinha me deixado uma bagunça no dia anterior, então eu faria o mesmo com ele.
Mas como nem tudo eram flores, o macho alfa resolveu reaparecer e me afastou repentinamente, invertendo nossas posições.
— Estraga prazeres — resmunguei, com um sorriso.
— Se eu te deixasse continuar, a brincadeira ia acabar antes de começar, amor. Não esquece que fiquei longe de você por dois meses.
— Ah, é. Você devia estar com saudade. — Enrosquei minhas pernas em sua cintura, o trazendo para perto.
— Morrendo — ele respondeu, pressionando sua ereção contra minha entrada.
Eu seria hipócrita se dissesse que não estava louca por aquilo também. Meu corpo estava encharcado por ele. null juntou nossos lábios novamente e usei minhas pernas para trazer seu quadril para ainda mais perto.
Com facilidade, ele deslizou para dentro de mim, me preenchendo por completo. Meu corpo sensível doeu de uma forma deliciosa e se esticou ao redor dele para acomodá-lo. null levou as mãos até meios seios e os apertou com desejo enquanto deslizava para fora e dentro de mim uma e outra vez. Gemi com a fricção de nossos corpos e a firmeza de seu toque. Eu não queria nada delicado, só queria que ele acabasse comigo. E não me importava nem um pouquinho de ficar com algumas marcas depois.
null se enterrou vezes e mais vezes em mim enquanto suas mãos percorriam meu corpo. Então resolveu trocar de posição e se afastou, me colocando de barriga para baixo. Puxou meu quadril e deu um tapa estalado, me pegando de surpresa, antes de se enterrar em mim outra vez.
Eu teria rido, se não estivesse tão excitada. Ao invés disso, tudo o que fiz foi gemer. Aquela posição trazia mais pressão entre nossos corpos e ele bateu uma e outra vez contra mim, segurando meus quadris com afinco. Senti meu corpo começar a se apertar ao seu redor e de repente, null enrolou meu cabelo em uma mão, puxando-o com firmeza, antes de colocar uma mão em meu tórax, me puxando para trás. Usando a mão livre, ele percorreu meus seios sem parar de se movimentar e mordeu meu ombro.
null... — murmurei ofegante, sentindo a tensão em meu corpo crescer.
Eu queria ver o rosto dele quando caíssemos de prazer, mas não consegui dizer isso. No entanto, como se estivesse pensando na mesma coisa, null se afastou e me jogou na cama outra vez. No próximo momento em que entrou em mim, aumentou a velocidade de seus movimentos, levando nós dois para a borda.
Um instante depois, eu tremi violentamente contra ele, cravando as unhas em seus ombros. null continuou por mais alguns segundos e então enterrou o rosto no meu pescoço no segundo em que o senti se derramar em mim.
Nossos peitos subiam e desciam enquanto tentávamos recuperar o fôlego, nossos corpos ainda conectados. E foi somente quando nos acalmamos que null saiu de dentro de mim. Em seguida, selou nossos lábios em um beijo suave e se afastou para me pegar nos braços com cuidado.
Ele nos levou ao banheiro e foi direto para a banheira, me colocando sentada em um canto enquanto a ligava. O null fofinho tinha voltado e eu sorri.
Esfreguei minhas coxas uma contra a outra, sabendo que ficaria dolorida em breve. Enquanto null preparava um banho para nós, um flash de memória me atingiu.
Era a mesma noite em que nos conhecemos.

6 de abril de 2019, 00:26 - Manhattan, Nova York, NY

Suspirei, entediada enquanto encarava todo o salão do bar vazio. Aquele lugar costumava ser um restaurante até um ano atrás, quando Brandon, o namorado de Karol, resolveu comprá-lo e transformar o lugar em um bar chique. Fazia parte do prédio de um grande hotel, então costumava ser bem movimentado, mas naquela noite só havia nós três e alguns amigos que foram embora antes da meia-noite.
Tagarela como eu ficava depois que o álcool começava a circular em meu sangue, fiquei conversando com o casal de amigos por mais tempo, mesmo depois de até mesmo null já ter ido embora. Eu sempre podia pegar um táxi para casa, de qualquer forma, e não estava nem um pouquinho cansada. Tínhamos comemorado um novo contrato da Double K, a marca de roupas que Kate e Karol eram donas, e talvez eu tivesse ficado um pouquinho hiperativa demais naquela noite, por resolver fazer companhia para meus amigos quando soube que eles esperariam um cliente que havia alugado o local todo por duas horas, a partir da meia-noite.
Eu falei para mim mesma que ficaria até uma da manhã e depois iria para casa, mas à meia-noite e vinte, Brandon recebeu uma ligação informando sobre alguma briga em outro bar dele, no Queens. Ele tinha um em cada bairro de Nova York, mas aquele ficava a cerca de vinte minutos de distância. Por conta disso, acabei sozinha em um bar vazio, após eles me pedirem para ficar ali e atender o tal cliente especial. Na minha época de bicos, eu trabalhei em um bar de Brandon no Brooklyn e foi assim que o conheci. Mais tarde, depois que comecei a trabalhar na editora, eu soube que ele era o namorado da melhor amiga de Kate.
Fiquei mexendo no celular e futricando o Instagram enquanto o tal cliente não aparecia. Brandon explicou que ele costumava beber whisky com gelo e, às vezes, pedia alguns petiscos prontos.
Eu nem notei quando ele chegou. Ouvi sua voz a um metro de distância e me sobressaltei com o susto. Depois quase caí para trás quando vi null null me encarando. Imediatamente pensei que talvez eu estivesse alucinando, mas então a miragem de null falou novamente.
— Onde está Brandon? — ele quis saber.
— Ah, ele... Teve um probleminha em outro bar e me pediu pra te atender.
— Você trabalha aqui? — Ele perguntou, com indiferença.
— Não... — Consegui responder. — Sou amiga de Brandon, eu costumava trabalhar pra ele em um bar do Brooklyn, mas agora trabalho em uma editora — tagarelei. Só podia ser efeito do álcool ainda correndo em minhas veias, porque de jeito nenhum eu conseguiria formular uma palavra coerente na frente de null null, ainda mais encontrando ele de surpresa.
Por que Brandon não me disse que ele era o cliente especial?
Será que minha maquiagem estava borrada? A última coisa que eu queria nessa vida era encontrar meu cantor favorito pessoalmente pela primeira vez, sozinha, e estar com cara de chapada.
Discretamente, me virei e encarei meu próprio reflexo no espelho atrás de mim, que ficava junto à prateleira de bebidas. Felizmente, parecia estar tudo em ordem.
— Um dose de whisky com gelo, por favor — null pediu, sem fazer mais perguntas.
Preparei a dose e ele pegou o copo, antes de se afastar para o outro lado do bar. Ficamos em silêncio pelos próximos vinte minutos e mandei uma mensagem para Brandon.
null: null null? Sério, Brandon? Você não pensou nem por um instante me avisar que seu cliente especial é o meu cantor favorito?"
Obtive uma resposta depois de cinco minutos.
Brandon: Surpresa! Considere um presente de aniversário atrasado. Foram dois meses de atraso, mas o que vale é a intenção, né?"
Filho da puta traiçoeiro e... Legal pra caralho! Com um sorrisinho nos lábios, digitei outra mensagem.
null: Nem pense em voltar tão cedo aqui! Deixa que EU cuido dele.
Tinha começado a chover há alguns minutos e gotas grossas de água escorriam pela parede de vidro. null estava em pé e de costas, observando a vista, e eu estava observando ele, é claro. Até que de repente, ele se virou e fui pega.
Desviei o olhar rapidamente e fingi que estava organizando alguns itens no balcão. null veio buscar outra dose e eu a preparei em silêncio.
— Faz tempo que você tá aqui?
— Brandon me pediu pra ficar. Eu não sabia que... Era você o cliente.
— E isso faz alguma diferença?
— Não, de forma alguma. — Sorri e me virei para pegar um pouco de água para mim e... Bem, eu não sabia o que fazer, então precisava ocupar minhas mãos com alguma coisa.
— Tá chovendo bastante hoje...
Franzi o cenho. Por que ele tava falando de chuva, de repente?
Espera... Ele tava tentando puxar papo comigo?
— Pois é... — Ri baixinho e dei uma espiada nele pelo espelho. null me encarava e desviou o olhar rapidamente quando percebeu que eu percebi. Levou alguns segundos, mas eu já sabia que ele era meio lerdo.
Meio que fazia parte do charme dele e eu, como fã, achava esse um fato curioso. O TDAH do gato estava em dia.
Me voltei para ele outra vez e coloquei meu copo de água em cima do balcão.
— Sabe... Eu menti — confessei. — O fato de você ser o cliente de Brandon faz diferença, sim.
— Por quê?
— Por que eu sou sua fã há quatro anos e Brandon sabe disso e não me disse nada.
Um sorriso apareceu no canto dos lábios de null.
— Sério? E por que ele não disse nada?
— Ele disse que era meu presente de aniversário atrasado. Sinto muito. Mas eu não sou maluca nem nada. Quer dizer... só um pouquinho, mas não vou te incomodar — falei rapidamente.
null riu, divertido.
— Você quer se sentar comigo ali? — Ele apontou para um sofá em frente a uma das mesas.
— Hã, claro.
Eu que não iria negar um convite desses. Imagina só... Hahaha. Quando eu saísse daqui já poderia dizer que era uma fã de sucesso. Talvez eu até conseguisse um autógrafo dele depois. Eu preferiria uma foto, mas não queria incomodar ele com isso.
— Você mora perto daqui? — ele perguntou.
— Hm, na verdade, não. Moro com minha irmã no Brooklyn. Ela estava aqui mais cedo, mas foi embora.
— E você vai pra casa sozinha? A essa hora?
— É só pegar um táxi. Não seria a primeira vez. — Sorri, dando de ombros. — E você? Tá hospedado aqui?
— Não. Mas moro perto. Comprei um apartamento recentemente e... Acho que você deve saber disso.
— Ah, sim... Eu meio que sei de tudo mesmo. Amo suas músicas.
— Fico feliz. — Ele sorriu. — Qual a sua favorita?
“Limbo”.
“Limbo”? Que surpresa. Essa música teve menos destaque que as outras. Eu nem promovi.
— Mas é muito boa. E eu sei que deu trabalho pra você, eu assisti a live de lançamento. Mas ter sido difícil acho que é o que torna ela mais especial.
— Ah... Obrigado.
— Eu tenho até uma tatuagem de referência, olha... — Me virei, mostrando meu tríceps direito. Havia um pequeno rabisco de um doodle que eu mesma desenhei em referência ao videoclipe. A música inteira representava sonhos e a letra era um amor. Diferente das letras sensuais que null costumava escrever.
— Bonita. Fica bem em você.
— Obrigada. — Sorri.
Ele falou que fica bem em miiiiim, AAAAA, surtei internamente, mas segui plena por fora. O álcool às vezes era de grande ajuda mesmo, até esqueci da água em cima da mesa.
— Eu também adoro a sua. — Apontei para o pescoço dele. — Deve ter doído muito.
— Você pode tocar se quiser — ele ofereceu, claramente se divertindo com meu papo de fã. null era conhecido por ser bem gentil mesmo.
— Posso? Nossa... Ela é bem mais bonita de perto. — Toquei a pele dele levemente e arrastei o polegar por uma das florzinhas de ameixa. Um rastro de tinta se formou e imediatamente removi a mão. — Meu Deus, você retocou? Eu te machuquei?
— Não, relaxa. — Ele sorriu. — Retoquei há algumas horas. Amanhã eu viajo e queria fazer isso antes.
— Caramba... Você nem devia estar bebendo. Todo tatuador indica um controle na dieta pra não prejudicar a... — Parei de falar quando notei null sorrindo abertamente. — Ei, isso não é engraçado. A autora que eu agencio também é enfermeira e ela me disse umas coisas que até hoje eu penso. Você tem que levar isso a sério!
null assentiu, fingindo aceitar a culpa, e colocou o copo quase vazio em cima da mesa.
— Prometo não beber mais.
Aff, você não devia ter me deixado te tocar. — Estendi a mão para o pescoço dele num impulso de limpar a mancha preta na parte da pele íntegra, mas não o fiz. Vai que eu contaminava, o troço infeccionava e depois eu acabasse sendo processada por prejudicar a integridade física dele e...
Tudo bem, acho que não era para tanto.
No entanto, quando fui puxar o braço de volta, null segurou minha mão e em seguida, a colocou no próprio rosto.
— Acho que aqui você pode tocar sem culpa — brincou.
— Você tá bêbado? Alguém pode dizer que eu tô me aproveitando de você.
— Não tem ninguém aqui. Somos só nós dois.
Meu estômago se apertou de ansiedade quando ouvi isso. Quase me belisquei para saber se não estava sonhando.
— Felizmente. Assim eu não preciso dividir sua atenção com outra pessoa — brinquei, me sentindo ousada de repente.
— E nem eu a sua — null respondeu na lata. Pelo visto, eu não era a única me sentindo ousada naquela noite. — Qual o seu nome?
Ah, é mesmo. Eu havia me esquecido de me apresentar. Que coisa.
null. null null.
— E quantos anos você tem, null? — Ele quis saber e me deliciei com o som do meu nome em sua voz.
— Vinte e cinco.
Eu era três anos e três meses mais nova que ele, para ser exata. null faria vinte e nove em novembro.
Ele pareceu absorver a informação por alguns segundos, e então falou.
— Sabe... Eu pensei em te oferecer uma carona pra casa. Te acompanhar no táxi e então voltar, pra você não ter que ir sozinha, mas...
— O quê?
— O prédio onde eu moro fica a dois quarteirões daqui — ele comentou.
— Ah, é? — perguntei, e eu tinha certeza de que meus olhos só podiam estar brilhando com malícia porque não tinha nenhuma parte pura em mim naquele momento.
— Você pode ficar no quarto de hóspedes, se quiser, e ir pra casa depois do café da manhã ou...
— Ou? — Arqueei uma sobrancelha, curiosa.
— Minha cama é grande o suficiente pra nós dois.
Meu. Deus. Ele tava abertamente dando em cima de mim! Que descarado!
— Sério? Você nem me beijou ainda e já tá me oferecendo esse convite? E eu achando que você era tímido.
Tímido era o meu pau inexistente. Que safado.
Amei.
— Eu queria ter certeza antes. — Ele deu de ombros e roubou um gole do meu copo de água.
Ponderei por alguns segundos.
Era provável que eu nunca mais fosse vê-lo depois daquela noite. Além disso, quando eu teria a chance de viver uma one night stand com o meu cantor favorito de novo? Eu tinha era que aproveitar mesmo. Não era todo dia que um cara lindo e gentil aparecia na minha frente, ainda mais um de quem coincidentemente eu era fã. Tecnicamente, tinha sido proposital, mas eu não sabia. Eu iria lembrar de agradecer à fada madrinha Brandon no dia seguinte.
Eu nunca havia tido nenhuma noite casual com ninguém, considerando que havia terminado um relacionamento de um ano e meio com meu chefe e ele havia sido o único homem que tinha me tocado até então. Contudo, aquela era uma oportunidade única na vida. Eu estaria sendo burra de deixar passar.
null provavelmente me xingaria por uma semana se eu deixasse passar, porque ela sabia o tanto que eu gostava de null null.
E era uma quantidade assim... Razoável.
Tomei uma decisão e assim que ele colocou o copo de volta na mesa, eu virei seu rosto para mim e o beijei. Foi só um selinho, e ele pareceu surpreso no início, mas, um segundo depois, levou a mão para meu rosto e aprofundou o nosso beijo.
Meu coração disparou e eu perdi a noção do tempo, mas quando nos afastamos, sorrimos um para o outro.
Eu estava totalmente agindo que nem uma groupie, mas não estava nem aí. Se o sujeito de várias das minhas fantasias queria passar a noite comigo, então quem seria eu para negar?
Cinco minutos depois, Brandon apareceu sozinho e eu corri para pegar minha bolsa e celular que havia deixado no balcão enquanto ele e null se cumprimentavam.
Quando me coloquei ao lado de null novamente, ele entrelaçou nossas mãos e nos despedimos de Brandon. Antes de passarmos pela porta, acenei para meu amigo com um sorriso no rosto.
null me levou até o apartamento dele e aquela foi nossa primeira noite juntos. Pela manhã, acordei e vesti a camisa dele na noite anterior e tomamos café da manhã juntos também pela primeira vez.

Dias atuais, 10:44 - Apartamento de null e null, Nova York, NY

Naquele mesmo apartamento. Três anos atrás. Nosso relacionamento tinha sido fruto de uma noite casual de sexo quente? Meu Deus, eu fui uma cadela total, quem diria? Me lembrei de cada momento daquela noite e...
— Eu não acredito que dormi com você na mesma noite em que nos conhecemos — comentei com null e ele se virou para mim no mesmo instante.
— O quê? Você lembrou daquela noite?
Assenti e null riu, me beijando em seguida.
— Me conte tudo, amor — ele pediu.
Nós entramos na banheira e ele pegou uma esponja para esfregar em minhas costas. Então eu contei a ele tudo o que me lembrava, inclusive nossa primeira vez juntos. null murmurou vários "hm" e "uhum" enquanto ouvia atentamente e, no final de tudo, as lembranças ativaram o meu lado cadela outra vez e o beijei novamente. null correspondeu na mesma intensidade e, alguns momentos depois, tivemos nosso segundo round do dia na banheira.
O café da manhã continuou esquecido na cozinha por mais alguns minutos.

Capítulo 13

— Eu ainda não acredito nisso, null. Você foi muito cachorrão — falei de repente, no meio do nosso café da manhã, antes do meu primeiro dia (de volta) na academia.
O que também era três dias depois de quando lembrei da noite em que nos conhecemos. E saber que dormimos juntos poucas horas depois ainda não tinha saído da minha cabeça.
null... — Ele me encarou, tentando conter um sorriso. O idiota achava divertido porque fazia um tempão que tinha acontecido, mas pra mim era novidade. Tipo, eu não surtei na época? — Eu já te expliquei que só aconteceu.
— Ah, é? Era assim que você conquistava meninas por aí? Isso é tão energia de fuckboy que eu não sei porque não me ofendi. Aliás, eu sei sim. Porque eu também fui uma cadela e agarrei a oportunidade que nem uma groupie ardendo de tesão.
null riu dessa vez.
— Ainda bem que você fez isso. Seria vergonhoso ser rejeitado.
— Sua identidade foi a única razão pra eu não te rejeitar. Você foi o meu segundo cara...
— Eu sei. Mas por que você ainda tá pensando nisso? Aconteceu, null. E eu já te disse que não, eu não conquisto meninas assim e foi só com você. Antes disso, fiquei com uma antiga staff e quando acabou, ela voltou com o ex, se casou três meses depois, e pediu demissão. Foi o relacionamento mais casual que já tive.
— E antes dela?
— Antes dela teve a minha ex, a que inspirou algumas músicas.
Assenti, semicerrando os olhos.
— Nunca pensei que você ficar grata por você ter sido traído, null. Mas ainda bem que aconteceu. Rendeu muitas músicas boas. E quanto à tal staff, que bom que ela voltou com o ex e você ficou solteiro de novo. Mas quando foi isso?
— Uns três meses antes de te conhecer — ele informou.
— E eu achando que você escolhia mulheres que nem escolhia roupas...
— Óbvio que não — ele bufou. — Não sou um idiota pra sair pulando de cama em cama.
— Mas por que eu, então? — Eu quis saber. — Tipo, é meio óbvio que um monte de mulher dá em cima de você e...
— Mas você não. — Ele tomou um gole de café. Seus olhos brilharam de diversão. — Fui eu que dei em cima de você, lembra?
— O que é ainda mais estranho — confessei. — Eu nem sabia que eu fazia o seu tipo. Achei que gostasse só de modelos ou algo assim.
— Que bobagem. Eu nunca tive um tipo antes de você aparecer. Eu nem sei como tive coragem de te convidar pro meu apartamento, amor. Só aconteceu. Eu te achei linda e divertida, e você me passou uma boa energia. Eu tive vontade de te beijar desde a primeira vez que você sorriu pra mim. Acho que foi amor à primeira vista, e eu nem acreditava nisso.
— O que aconteceu depois? — Eu quis saber e null pressionou os lábios, incerto sobre o que falar. — Ei, acho que não vou ter um treco em saber disso, relaxa. Talvez me ajude a lembrar mais.
— O médico disse...
— Eu sei o que o médico disse, null — o cortei. — Mas eu quero que você me conte também.
null respirou fundo, resignado, e me encarou.
— Tudo bem — ele respondeu. Sorri, satisfeita. — Nós tomamos café da manhã naquele dia e depois eu chamei um táxi pra você. Pedi seu número antes e entrei em contato no mesmo dia. Nós ficamos nos falando todos os dias enquanto eu tava fora a trabalho e quando voltei, te chamei pra sair. Pra um encontro de verdade.
— Um encontro? — Arqueei uma sobrancelha. — Em público?
— Sim. Eu meio que me apaixonei um pouquinho mais depois das nossas conversas e queria deixar claro que eu tava te levando a sério. Te pedi pra ser minha namorada naquela noite. — Ele sorriu, como estivesse lembrando. Então me encarou, alarmado. — E se a gente fizesse isso?
— Isso o quê? — perguntei, terminando de tomar meu suco.
— Reproduzir nossos encontros. Talvez isso te ajude a lembrar. Fora que a gente nem comemorou nosso aniversário ainda, null. Podíamos aproveitar a chance.
— Tá, por mim, tudo bem. — Dei de ombros. — Mas e os paparazzi?
— Podemos passar a perna neles. Reservar restaurantes com outro nome.
— Tá, reserva com o nome de Dean Kwon, então — o desafiei.
null revirou os olhos, mas assentiu. Eu ri baixinho. Ele quase sempre fazia o que eu queria, era fofo. Depois de dormirmos juntos, nossa conexão pareceu se intensificar mais também. Não estávamos mais nos segurando de tocar o outro e voltamos a dividir o quarto desde então.
Eu tinha dormido muito bem, obrigada.
Era bom não ter um sono agitado ou insônia atrapalhando minha noite. Claro que, no fim, minha irmã estava certa em um ponto. null também tinha suas técnicas para me ajudar a relaxar e eu absolutamente as adorava.
Insira aqui o emoji de demônio roxo sorrindo.
Eu havia acordado de bom humor naquela segunda-feira e por mais que eu odiasse segundas, era o dia que eu também voltaria a trabalhar oficialmente. No mais, eu estaria entrando em contato com Kate o dia todo, sempre que uma de nós precisasse, e me comunicando por e-mail com outras editoras e interessados em fazer parcerias com ela.
Por enquanto, eu resolveria tudo online até segunda ordem. Por mais que eu me lembrasse de absolutamente tudo em relação ao meu trabalho, Andy, Dianna e Kate insistiram para que eu não saísse por aí sozinha. Como meu relacionamento com null era público, as pessoas poderiam me abordar na rua, especialmente paparazzi, o que seria meio tosco já que eu não tinha ideia de como lidar com eles. Então, caso fosse necessário algum encontro presencial, Andy ou Kate se organizariam para me acompanhar.
Eu não tinha do que reclamar. Ainda estava completamente alheia sobre as redes sociais e não recebi nenhum e-mail estranho, então achei que estava tudo bem. Às vezes, eu via null rolando a tela do Instagram e ficava curiosa, mas ele me deixava ver apenas coisas bem específicas. Tipo o que postava nos stories. Ele era meio low-profile, então nunca tinha muita coisa.
Na noite anterior, cheguei a pensar que voltar para o Instagram pudesse me ajudar a lembrar de algo, mas null foi contra a ideia quando comentei com ele. Era quase como se ele soubesse de algo que não queria que eu soubesse. Frequentemente, eu achava que, se ele pudesse me guardar num potinho, ele o faria. Como se eu fosse a rosa da Fera, que precisava ser protegida a todo custo para não se despedaçar muito rápido.
Eu não tinha ideia se havia algo que fosse me fazer despedaçar, especialmente na internet, mas entendia null querer me proteger. Eu poderia baixar minhas redes sociais quando bem entendesse, mas escolhi deixar de lado por mais um tempo.
Depois do café da manhã, nós descemos para a academia onde John já nos aguardava e meia hora de exercícios depois, meu bom humor evaporou como vapor de água. Eu estava suada, nojenta, com o cabelo grudando na testa e queria muito dar um soco em John e xingar até a quinta geração da família dele.
O idiota me fez pedalar cinco quilômetros em velocidade rápida como aquecimento e depois me colocou para puxar ferro feito um burro de carga.
Por um lado, eu estava impressionada com o meu condicionamento físico em aguentar tudo sem desmaiar e por outro, eu não via a hora de ir embora.
John não foi bonzinho com null também. Meu namorado ralou um pouco na musculação e nosso personal ainda o fez cantar enquanto corria para ajudá-lo a controlar melhor o fôlego quando se apresentasse.
Acho que null fazia muito aquilo, considerando a estabilidade que ele conseguia manter em sua voz enquanto corria na esteira. Como fã, achei incrível. Como namorada, era bom saber que ele tinha bastante resistência física. He he.
Quando o treino acabou, nós voltamos para o apartamento e me recusei a encostar em null enquanto estivéssemos suados. Passei direto para o banheiro enquanto ele foi preparar a gororoba de whey para tomar, e me despi rapidamente antes de entrar no chuveiro.
A água fria naquele momento foi bem-vinda e fiquei parada de olhos fechados por um momento, sentindo ela cair sobre mim enquanto recuperava o fôlego.
Foi quando um flash de memória me atingiu.
null e eu estávamos naquele mesmo banheiro, discutindo.
— Sua agência tem que fazer alguma coisa, null. Isso não é normal. Eles não podem te negligenciar assim! — exclamei, irritada.
— Eu sei, estamos trabalhando nisso, null...
— Estamos uma ova, null! Você não tem que fazer porra nenhuma — reclamei. — É obrigação deles proteger sua integridade física e moral. A única coisa que você tem que fazer é dizer sim pra qualquer proposta de processar quem seja o idiota que anda te perseguindo e qualquer outro da mesma laia.
É claro. O stalker! Aquilo foi em fevereiro desse mesmo ano, dois meses atrás, antes de null viajar para a turnê na Ásia. Eu descobri que ele tinha um stalker de estimação e não me disse nada até o idiota começar a me mandar mensagens também.
Inclusive fotos de pau e vídeos se masturbando. Um ultraje. null disse que com ele isso nunca aconteceu, e por mais que ele bloqueasse as contas do fulano, ele sempre aparecia com uma nova, em um aparelho de celular diferente e com uma localização diferente também. Provavelmente devia estar usando algum aplicativo para mascarar tudo.
Fazia quase um ano e meio que null recebia declarações e mais declarações do cara, mas nunca respondeu ou sequer aceitou nenhuma solicitação de mensagem. E não acontecia apenas no Instagram, mas também no Twitter, além de eventuais ligações que ele recebia de números desconhecidos.
E ele só pensou em me contar há dois meses, o idiota. Só por que o cara começou a me assediar também. Fazia só dois dias, e eu não hesitei em contar para ele assim que tive oportunidade e lembrei. Eu estava ocupada com o lançamento do livro de Kate e achei que fosse só um Zé Ruela aleatório, até ele começar a mandar mensagens esquisitas sobre me querer longe de null. E que poderia fazer o sacrifício de ficar comigo ao invés disso, para que eu deixasse null em paz. Depois vieram as mídias de pau. Nojento pra caralho. Quase xinguei o pau dele com as piores coisas que podia pensar, mas resolvi fingir que nem vi para não dar trela. Eu também não havia aceitado a solicitação de mensagem e assim que pude, contei a null.
Discutimos feio naquela noite. Ou melhor, eu discuti, enquanto ele ouvia e tentava me convencer de que estava tomando providências. Depois de um ano e meio! A verdade é que o pressionei e ele confessou que só ignorava a pessoa, mas que não ia deixar mais passar depois dele mexer comigo.
Idiota protetor e bonzinho, pensei enquanto lembrava de tudo. Nessas horas, eu achava que o mundo era um lugar sombrio demais para null. Ele tinha isso de não querer prejudicar ninguém, mesmo que isso o afetasse negativamente. Só que isso me deixava puta! Porque eu era do time tome-aqui-um-processo-já-que-você-é-o-bonzão para cada ser, homem ou mulher que tentava prejudicar Kate. E o agente de null sabia do que estava acontecendo e não fazia nada. Um palhaço. Eu não fazia ideia se algo foi resolvido, porque só lembrei daquela discussão.
E também lembrei que tenho ranço de Jace Keller, olha só.
Até ontem eu achava que ele era um cara legal e me perguntei porque ele não tinha aparecido nenhuma vez no nosso apartamento, já que era o funcionário mais próximo de null. Aí estava a minha resposta. Eu o odiava e não escondia minha antipatia por ele, assim null evitava nos colocar no mesmo lugar.
Ah, que coisa. Era irritante pra caralho lembrar de trechos da minha própria vida e eu não via a hora de recuperar todas as minhas memórias.
Lavei o cabelo com agilidade enquanto tentava esfriar a cabeça que agora estava quente de irritação, e tentei relaxar um pouco. Mas aí null apareceu no banheiro um momento depois, já sem camisa.
— Eu lembrei de uma coisa — anunciei. — Como vai Jace, o Filho da Puta? Espero que ele tenha encontrado aquele stalker maldito.
null arregalou os olhos levemente, surpreso.
— De tudo o que você podia lembrar, foi logo que odeia Jace?
— Deve ter sido minha irritação com os exercícios que puxou mais memórias irritantes do meu cérebro — deduzi, dando de ombros. — E então? Pegaram o idiota?
— Ainda não. Mas ele não te mandou mais mensagens depois que você me contou e eu comuniquei à agência sobre o que tava acontecendo. Bem, ao menos não que eu saiba. Você não me disse nada enquanto eu tava na Ásia.
— Hm... Tomara que peguem logo, então. Se esse idiota aparecer na minha frente, eu faço questão de enfiar meu sapato na bunda dele, aquele pervertido! — ameacei, irritada e deve ter sido engraçado já que null começou a rir, o que só fez eu me irritar mais ainda. — Do que você tá rindo?
— De você, toda ensaboada ameaçando alguém que deve ter o dobro do seu tamanho.
— Você não sabe disso, ele pode ser menor que eu. E se for maior, não vai me impedir de chutar as bolas dele.
null riu novamente e tirou o resto das roupas antes de se juntar a mim.
— Isso tudo pra me defender? — ele perguntou, quando dei espaço para ele no chuveiro, enquanto passava creme no cabelo.
— Sim, já que você é mole demais pra isso. Com esse seu jeito, se você fosse feio, teria sofrido muito bullying na escola. Você só sabe defender os outros, null. Eu sei que você odeia conflitos, mas às vezes eles são necessários.
— A agência tá cuidando disso, null. É só uma questão de tempo até pegarem esse idiota.
O encarei com certa desconfiança, mas resolvi deixar o assunto de lado.
— Ainda bem que você é hétero e não bi. Imagina ter que competir com homens também...
— O quê? Do nada? — null riu da minha brusca mudança de assunto.
— Só tô dizendo porque você é muito bonito. Eu mal consigo tirar meus olhos de você, imagine um stalker — comentei, enquanto corria os olhos por seu corpo nu, sem um pingo de vergonha.
Eu estava ficando muito mal acostumada com aquele tipo de visão todos os dias. Mas olha, era muito bom.
null sorriu, já terminando de lavar o cabelo, enquanto eu ainda estava presa com meu cabelão todo embaraçado. O dele era curto e fácil de cuidar. Até onde eu sabia, null podia lavar o cabelo com detergente, e ele continuaria macio como o de um bebê.
Eu tinha que fazer vários tratamentos para manter o meu no mínimo aceitável. Terminei de lavá-lo enquanto null se enxugava com uma toalha e, alguns minutos mais tarde, estávamos decentes de novo, agora sem um pingo de suor no corpo.
Meu celular tocou em cima da cama com o alarme de início do meu expediente e eu me tranquei no escritório com meu café da manhã, e null seguiu para o estúdio no fim do corredor.
De volta ao trabalho.

Capítulo 14

Na tarde de terça-feira, null fez o favor de lembrar de me dizer que havia reservado o restaurante do nosso primeiro encontro para sete da noite.
Na minha cabeça, eu achava que ele tinha esquecido ou não conseguido a reserva já que não me contou nada. Até que então, em cima da hora, pouco antes de eu finalizar meu expediente no trabalho, ele resolveu me aparecer com a notícia.
— Sério, null? Eu nem escovei meu cabelo! — reclamei, assim que ouvi. — Você devia ter avisado antes, eu teria pintado as unhas ontem à noite e escovado o cabelo e não ficar feito uma louca correndo contra o tempo! Não dá pra ficar bonita em pouco tempo.
— Bobagem, null. Seu cabelo tá ótimo e a sua roupa eu já escolhi — anunciou. — Coloquei em cima da cama, é a mesma que você usou no nosso primeiro encontro.
— Você ainda lembra?
— Não preciso lembrar, tem uma foto desse dia no seu Instagram que fui eu que tirei.
Ah, estava explicado, então. Eu não podia esperar que null tivesse uma memória de milhões quando até a minha era claramente uma merda.
Assim que desocupei do trabalho, corri para tomar um banho rápido e, ainda de toalha, me sentei no chão do closet com minha escova secadora em mãos e comecei a me aprontar. Normalmente, quando eu ia sair para algum lugar eu passava a tarde toda planejando o que fazer. Felizmente, roupa não era um problema. null já tinha feito isso por mim e descobri que usei um vestidinho bege e florido acima dos joelhos que fazia meu cabelo destacar. Eu o tinha comprado em uma promoção e tinha sido muito bom, já que ele ainda estava ali. Eu só não sabia se ainda caberia em mim.
Tentei escovar o cabelo o mais rápido que pude para deixá-lo aceitável e menos um ninho de passarinho e meia hora depois — porque eu tinha muito cabelo — terminei, finalizando apenas com um óleo. Minha franja estava crescida, então a mantive dividida.
null escolheu aquele momento para começar a se arrumar. Eu tinha cerca de uma hora para me trocar e fazer a maquiagem.
Felizmente, na foto que null me mostrou eu estava com algo simples e não havia nenhum penteado no meu cabelo. Nos pés, um scarpin branco de salto que encontrei em uma prateleira junto a outros sapatos.
Enquanto null tomava banho, levei o vestido para o closet e comecei a me vestir. Escolhi uma lingerie lilás bonitinha e então fui para o grande teste. Com dez quilos a mais, eu tinha ganhado músculos na parte superior do corpo e não era mais a magricela que costumava ser. Meu quadril também estava mais largo, mas a saia do vestido não seria um problema. Talvez ficasse apenas um pouco mais curta. Enfiei os braços pelo vestido e o deslizei pelo corpo com um tiquinho de dificuldade, mas, felizmente, ele coube. Viva os elásticos nos vestidos de tamanho único.
Examinei meu reflexo no espelho e fiquei satisfeita com o que vi. A saia havia ficado um pouco mais curta e estava no meio das minhas coxas, mas o que antes era fofo, acabou se transformando em sexy. Eu definitivamente preferia essa versão do que a antiga magricela toda complexada com o próprio corpo.
Eu nunca fui de ganhar muito peso e houve uma época logo após a faculdade que eu meu peso caiu tanto a ponto de me fazer ter vergonha de mim mesma e usar apenas roupas largas para me esconder. Eu tinha provavelmente uns cinco quilos a menos de quando null me conheceu. Felizmente, quando isso aconteceu, eu já não estava mais tão desconfortável.
Comecei a fazer a maquiagem e estava no meio dela quando null surgiu apenas de cueca, pronto para se trocar também. Vi no exato momento em que ele parou e olhou para mim.
— O que foi? Meu cabelo tá feio? — Porque certamente o vestido não estava.
— Não, é que... Você tá mais bonita do que da primeira vez.
Eu ri pelo nariz.
— Achei que isso fosse meio óbvio. Eu era muito magra.
— Você tá parecia uma fada naquele dia.
— E agora? Com que eu pareço? — Encarei o reflexo dele no espelho. null andou até mim e colocou as duas mãos na minha cintura.
— Tá parecendo uma deusa que vai me colocar de joelhos a qualquer momento — ele respondeu, depositando um beijinho no meu pescoço, me fazendo rir.
— Você também tá bem melhor agora. — Me virei para ele, colocando uma mão em sua barriga. — Musculoso na medida certa.
— Do jeitinho que você gosta. — Ele sorriu e me dei conta de que provavelmente já tinha falado aquilo outras vezes.
null se inclinou para me beijar, mas eu me esquivei dele.
— Nada disso. Preciso terminar a maquiagem e você tem que se vestir. Eu olhei o Google Maps e aquele restaurante fica a uns vinte minutos daqui. Não quero me atrasar.
— Tá, continua então. — null fez uma careta e eu ri de como ele parecia um menininho que não tinha conseguido o que queria.
Quase voltei atrás. Quase.
Mas não seria seguro quando ele estava seminu ali. Provavelmente acabaríamos nos atracando contra a parede. De novo.
Espera... O quê?
Franzi o cenho encarando o espaço ao lado do espelho e meu corpo se arrepiou quando uma imagem de null e eu naquele mesmo local me veio à mente.
Eu não sabia se era real ou não. Era bem provável que sim, mas eu ainda tinha uma mente fanfiqueira e era leitora de romances escritos por mulheres. Possibilidades não faltavam para a minha imaginação fértil.
Mesmo assim, perguntei a null.
— Você lembrou? Foi nossa última vez antes do seu acidente, pouco antes de eu ir para o aeroporto — ele contou.
Meu estômago se apertou de ansiedade e imediatamente eu quis não somente reproduzir nosso primeiro encontro, mas também nossa última transa naquela parede.
Mas... Eu tinha que ser forte.
Assim, apenas assenti e respondi vagamente que foi só um lapso de memória, antes de continuar a maquiagem.
Terminei alguns minutos depois e encontrei null me esperando sentado na cama, enquanto digitava algo no celular.
Quando notou minha presença, ele levantou a cabeça e sorriu.
— Oi, minha deusa mais linda desse universo. Tá pronta?
Bufei e revirei os olhos ao ouvir a bajulação exagerada.
— Sim, vamos.

***


O restaurante que null havia escolhido era aconchegante e convidativo. Não me veio nenhum lapso de memória quando chegamos, mas então uma moça nos levou até uma salinha privativa e, de algum modo, eu lembrei de onde havia sentado antes que null se colocasse ao meu lado, puxando a cadeira para mim.
O encarei com uma leve surpresa, sem esperar aquele cavalheirismo todo.
Eu não me importava muito com essas coisas, mas era bom ser mimada com atos de serviço simples. Fazia eu me sentir querida. E pelo visto, null não agia assim apenas em casa. Mas nem sei porque me surpreendi. Ele era conhecido por tratar muito bem as mulheres de sua equipe. Cabeleireiras, maquiadoras e estilistas... Todas eram um bando de sortudas.
Mas eu era a mais sortuda de todas.
Depois que nos acomodamos, null pegou o cardápio e tentou pedir os mesmos pratos que comemos da primeira vez. Eu o admirei com a mão apoiada no queixo, como uma boba apaixonada.
Então ele começou a me dar mais detalhes sobre o nosso primeiro encontro.
— Você falou que ficou surpresa por eu te chamar pra sair, mesmo depois de passarmos semanas conversando.
— Hm, eu provavelmente achei que você tava tentando não me magoar e me dar um pouco de atenção antes de sumir devido ao trabalho.
null riu, divertido.
— Sim, na verdade, você falou exatamente isso. E que nem esperava que eu fosse entrar em contato. Você achou que era só um caso de uma noite.
— E então?
— Eu disse que não era. E falei que queria provar isso a você. Não menti pra você quando falei que não tinha encontros casuais. Eu sempre fui ocupado e lidar com pessoas é cansativo, especialmente quando deixo elas ultrapassarem um limite — ele disse. — Mas eu queria que não houvesse limites entre nós.
— Então você me pediu em namoro? — Sorri, achando nossa história bonitinha de um jeito bem torto.
Se fosse um enredo da Kate, eu provavelmente teria sugerido a ela levar as coisas com mais calma e em uma ordem. No entanto, por alguma razão, null e eu parecíamos não seguir absolutamente nenhum roteiro.
Nós éramos personagens independentes, com vontade própria.
— Eu me apaixonei primeiro, feito um patinho — ele brincou.
— Que nada — retruquei. — Eu era apaixonada por você há anos.
— Você era minha fã. Isso não conta.
— Claro que conta.
— Não conta, não — ele insistiu. — Você sempre me tratou com gentileza e nos demos muito bem. Nossas conversas eram tão naturais que eu não me sentia uma celebridade perto de você, apenas uma pessoa comum. Acho que você quis me deixar confortável, mas fui eu quem se apaixonou primeiro.
— Tá, se você insiste. — Dei de ombros.
Eu não podia discutir com base em achismos, mesmo imaginando que assim como null, eu provavelmente me apaixonei por ele depois de dias conversando.
De todo modo, ele tinha um ponto. Eu sabia muita coisa sobre ele por já conhecê-lo como fã, mas para ele eu ainda era uma total estranha. Tinha sido corajoso da parte dele perseguir seus próprios sentimentos em relação a mim. Até onde sei, ele poderia cair em uma cilada se tivesse se envolvido com uma mulher aproveitadora.
Era um tiro no escuro.
— Eu sei que nós seguimos a ordem errada das coisas, mas eu estava totalmente sério com você, null.
— É claro que estava. Você não estaria comigo há três anos, comprometido publicamente e morando comigo se não estivesse. Eu nunca duvidei disso, null.
— Você duvidou no início. — Ele sorriu, triste. — Você sempre brincava sobre como um dia eu iria enjoar de você e terminar tudo. Eu odiava quando você falava essas coisas. Discutimos algumas vezes por isso. Mas o que mais me apavorava era ter que passar dias longe de você por causa do trabalho e ao voltar, descobrir que você tinha conhecido alguém melhor. E ainda tinha o Andrew...
— O que tem o Andrew?
— Além do óbvio? Ele te via mais que eu, é seu ex, e vocês ainda são amigos.
— E você tem tantas green flags que é praticamente uma floresta — brinquei. — Eu nunca terminaria com você, null.
— E nem eu com você, null. Por motivo nenhum — ele garantiu, me encarando nos olhos com uma intensidade que fez meu coração se apertar. — Eu quero que você saiba que vou estar com você em todos os momentos bons e ruins que possamos passar. Eu sei que não temos um relacionamento fácil, por mais que a gente se dê muito bem. Sei que você odeia ficar longe de mim por muito tempo e acontece o mesmo comigo. Mas meu amor por você é maior do que qualquer empecilho ou dificuldade que possa aparecer pra gente.
Soltei o ar devagar, sentindo os olhos arderem ao ouvir aquilo. Era como se null soubesse exatamente o que falar para reafirmar nosso relacionamento, e eu podia sentir uma sinceridade crua a cada palavra que ele dizia. Eu sentia um amor tão grande por ele que parecia não caber no peito e não fazia ideia do que eu tinha feito para merecer aquilo.
Ele era tudo o que eu queria e mais um pouco.
Segurei uma mão de null e a trouxe aos lábios, beijando-a assim como ele fazia comigo. Ele sorriu e seus olhos refletiram a emoção dos meus.
Éramos nós contra o mundo e todas as dificuldades que pudessem aparecer.
Se na vida real existisse algo como os laços de parceria dos livros de fantasia, null e eu com certeza teríamos um.
Quando a comida chegou, alguns minutos depois, eu me deliciei com as massas que null escolheu e seus molhos divinos. Não tinha nada cotidiano que me deixava tão alegre quanto comer uma comida deliciosa.
Não era à toa que quando tivemos condições financeiras, eu e null sempre procurávamos novos restaurantes e cafeterias para conhecer. O restaurante que null me levou era caro, mas era uma boa sensação saber que eu poderia pagar aquele jantar sozinha sem nenhum prejuízo na minha conta bancária, mesmo sabendo que não iria. A única coisa que null me deixava gastar em casa era com compras no supermercado e delivery, e nem era sempre. Às vezes, eu comprava e avisava depois.
Quando o jantar acabou, null sugeriu tirarmos as mesmas fotos que a primeira vez, também as nossas primeiras fotos como casal. Ele havia me mostrado três selfies e assim as reproduzimos.
Para a primeira, nós sorrimos para a câmera e para a segunda e terceira, demos um beijinho na bochecha um do outro. Do lado de fora do restaurante, null colocou toda a sua habilidade de namorado fotógrafo amador fazendo posições esquisitas para pegar os melhores ângulos e tirar outra foto minha de corpo inteiro, como a que ele disse que postei no meu perfil do Instagram.
Eu ri com as tentativas e ele continuou batendo fotos mesmo assim, até que finalmente conseguimos uma muito próxima da original.
— Ficou linda, amor — ele comentou, enquanto passava as fotos na tela do celular. Em seguida, se virou e me abraçou pela cintura. — Feliz aniversário de três anos, null. Espero que nossa data se repita por tanto tempo quanto for possível.
Eu sorri e ele encostou a testa na minha.
— Eu te amo, null null. E nada no mundo vai mudar isso.
Então nos beijamos e null me apertou contra si. Me senti amada e torci para que ele também estivesse se sentindo assim também. A última coisa que ouvi depois disso foram cliques, acompanhado de flashes não muito longe.
No entanto, não nos importamos com a plateia.

Capítulo 15

Mais um dia de trabalho e eu estava digitando algumas anotações na minha agenda digital enquanto checava o que havia escrito no tablet.
Kate já tinha escrito cerca de um terço de Oblíquo e estávamos na parte em que os protagonistas voltavam juntos para seu país de origem após descobrirem que o melhor amigo dele era tio dela. Havia alguns pontos a serem resolvidos naquele livro, como o último da série, e isso incluía o desenrolar do plot em torno do vilão, que havia aparecido no livro anterior, cujo protagonista era irmão do protagonista atual. Ambos os livros eram menores e interligados, diferente dos outros, que podiam ser lidos separadamente.
Eu tinha conhecido leitoras de Kate que começaram pelo livro três, outras pelo livro dois, e outras que acompanharam os lançamentos desde o início, como eu. Cada forma lida trazia uma experiência diferente. Mas para quem me perguntasse, eu recomendaria a ordem linear dos acontecimentos.
Era muito fácil se apegar aos personagens da série e eu me sentia amiga deles. Como se eu fosse encontrá-los na vida real a qualquer dia. Muito delulu da minha parte, eu sabia, tanto que eu ainda estava transitando entre a realidade e o enredo de Tenaz quando dormia. Não estava acontecendo sempre, mas eu havia meio que notado um padrão.
Eu ia parar em Tenaz após lembrar alguma coisa da minha vida pessoal ou quando estava prestes a lembrar. Era meio aleatório, mas era a única explicação que eu conseguia pensar que justificasse aqueles sonhos hiper-realistas.
Na noite do meu encontro com null, me encontrei no corpo de Ayla novamente depois de adormecer. Infelizmente, era uma cena em que Ayla dava aulas de desenho para crianças encapetadas, o que foi meio ruim, já que as únicas coisas que eu sabia desenhar eram um pato a partir do número dois e uma coruja entediada (eu sempre esquecia os chifrinhos/orelhas dela — e sim, eu sei que são só penas arrebitadas e que corujas não têm chifres nem orelhas, mas eu só conseguia pensar nisso com a aparência).
Felizmente, não me demorei muito na cena. Ayla já havia dado uma imagem para eles tentarem reproduzir, então eu só tive que fingir que entendia algo de técnicas de desenho antes da aula acabar, dez minutos depois.
Acordei no meio da noite ao lado de null com vontade de fazer xixi e depois disso não voltei mais para a história. Tampouco sonhei com algo que fizesse sentido.
Já fazia três dias desde então.
Era sexta-feira e eu tinha ido ver o neurologista naquela manhã. null me acompanhou e ouviu atentamente cada segundo de explicação do médico sobre como minha mente tinha criado um mecanismo de defesa devido ao trauma do acidente, me fazendo transitar entre fantasia e realidade. Eu ouvi tudo isso meio cética. Parecia real demais, como se eu realmente estivesse em outro universo, mas eu sabia que discutir não adiantaria de nada.
Gente doida nunca acha que tá doida.
Segundo o médico, era provável que eu recuperasse o restante das minhas memórias em breve e, dessa vez, ele sugeriu a null aumentar os estímulos ao meu redor, já que eu não tinha passado mal outra vez. Fiquei feliz com essa parte, mas intrigada quando o médico recomendou esperar eu lembrar dos detalhes do acidente.
Eu não entendia porque tanto mistério se não tinha acontecido nada de mais comigo. Também não entendia por que eu tinha um mecanismo de defesa se não sofri nenhum ferimento sério. De todo modo, tirando essa parte, eu meio que estava livre para perguntar o que bem entendesse a null.
Devido a essa consulta, eu quis fazer horário extra na noite anterior e terminei o expediente da sexta um pouquinho mais cedo. null estava fora, em uma reunião com Jace e o pessoal de sua agência para decidirem algo sobre o conceito de seu novo álbum. A produção levava meses, então era provável que ele só o lançasse no próximo ano. Como uma boa amante de spoilers, eu só podia torcer para que null fosse bonzinho e me contasse algo. Ou pensar em uma forma de convencê-lo.
Desliguei o computador e peguei o celular para enviar uma mensagem para ele perguntando o que queria para o jantar, quando meu celular vibrou com uma nova mensagem de Kate.
Kate: Você viu isso? Tem muita gente falando sobre.
Havia um link de um artigo que tinha saído no dia seguinte ao nosso encontro. null me mostrou, então eu já sabia do que se tratava, embora não tivesse lido os comentários.
O título era enorme, todo em Caps Lock.
"NA SAÚDE E NA DOENÇA: null null E NAMORADA, FIRMES E FORTES APÓS ACIDENTE"
Corri os olhos pelo texto, lendo alguns trechos rapidamente.
"Será que podemos esperar um casamento em breve? O casal foi visto aos beijos do lado de fora de um renomado restaurante italiano de NY após semanas reclusos depois do acidente de null null, namorada de null.
A srta. null foi atropelada no dia 6 de abril no estacionamento de um shopping enquanto se dirigia para o próprio carro. Testemunhas ficaram alarmadas e imediatamente chamaram uma ambulância, e soubemos por algumas fontes seguras que ela permaneceu inconsciente por quatro dias. Felizmente, não foi nada grave e até onde sabemos, null passou as últimas semanas se recuperando em casa com null, que não deixou seu lado nem por um momento.
Como dizem, na saúde e na doença. O casal está junto há três anos e dividindo o mesmo apartamento em Manhattan há dois. Não há nenhum rumor sobre um possível casamento, mas todo mundo sabe que hoje em dia rótulos não são mais necessários.
Os pombinhos parecem apaixonados como sempre e cuidando um do outro. É bom saber que a srta. null se recuperou bem e desejamos tudo de bom aos dois."

Sorri ao reler o texto e desci para os comentários. A maioria me desejava melhoras e felicidades a mim e null, no entanto, alguns comentários recentes chamaram minha atenção.
"Ouvi dizer que havia muito sangue ao redor dela. Mas é bom saber que ela está bem".
"Boatos de que os dois estavam distantes e não só fisicamente, mas essas fotos meio que desmentem tudo isso".
"Será que esse casal é real mesmo ou null está apenas esperando ela ficar bem pra cair fora? Não é como se faltasse opções pra ele."

Fiz uma careta para o comentário dessa pessoa mal-amada. Ela não tinha ideia de nada.
Deixei isso de lado e voltei para a janela de conversa com Kate.
null: null me mostrou. Mas ninguém me disse que eu sangrei no acidente.
Kate: Onde você viu isso?
null: Nos comentários. Tem gente fofocando e até teorizando que null vai me dar um pé na bunda quando eu tiver completamente recuperada.
Kate: Que besteira. Isso é só inveja, null. Não ligue pra essas coisas. Todo dia surge um rumor que eu e Adrian vamos nos divorciar.
null: Você poderia até tentar, mas ele nunca te deixaria ir.
Todo mundo sabia que Kate era a tal Garota K, musa das músicas da Cave Panthers. Ele passou anos se lembrando dela e então, após uma década, se reencontraram.
Kate: null também não te deixaria ir. Eu juro que vejo até lasers saindo dos olhos dele quando Andrew toca em você. Ele é tão Dean".
Eu ri, divertida.
null: E tão talentoso quanto.
Conversamos por mais alguns minutos, e depois fui tomar banho e me deitar um pouco enquanto esperava null chegar para pedirmos delivery. Eu estava quase cochilando quando ouvi a porta da frente abrir, mas nem me movi do lugar.
A posição estava confortável demais para isso e o clima, fresquinho. Eu estava deitada com um braço embaixo do travesseiro e só abri os olhos quando ouvi null entrar.
O encontrei andando em minha direção com um sorriso no rosto e, em seguida, ele se inclinou para me dar um beijo no pescoço, uma mão indo direto para o meu quadril, sorrateiramente se enfiando embaixo da minha camisola azul-marinho.
— Essa cor fica muito bem em você — ele murmurou no meu ouvido e ri baixinho, antes de rolar na cama e abrir os braços, convidando-o para um abraço.
null se aconchegou contra mim e enterrou o rosto no meu pescoço, ficando assim por um momento antes de se afastar e tirar a jaqueta.
— O que acha de pizza hoje? — sugeri.
— Acho ótimo. Pede pizza de calabresa e quatro queijos. Vou tomar banho e já volto.

***


Cerca de uma hora mais tarde, estávamos os dois sentados na cozinha, devorando uma pizza grande com copos também grandes e cheios de Coca-Cola zero. Que John não sonhasse com essa nossa refeição. Eu ainda não tinha me recuperado dos cinco quilômetros que ele havia me obrigado a pedalar, muito menos da musculação da semana. Todo o meu corpo doía e todos os dias eu me controlava ao máximo para não dormir em cima do computador durante as tardes de trabalho.
Naquela sexta à noite, eu estava especialmente enfadada e era bom saber que eu não precisava acordar cedo no dia seguinte para me exercitar antes do trabalho. null e eu poderíamos ficar na cama até tarde, e eu mal podia esperar para me aconchegar com ele após o jantar.
Assistimos um pouco de TV e só depois das dez da noite, voltamos para o quarto. Depois de uma rápida passada no banheiro para escovarmos os dentes, null e eu finalmente fomos para a cama. Eu o abracei pela cintura, me deliciando com o cheiro de seu perfume pós-banho, e fechei os olhos.
Naquele momento, eu só queria dormir e podia dizer que null também desejava o mesmo, considerando que ele havia passado o dia inteiro fora. Demos boa noite um para o outro e então o silêncio caiu sobre nós. Esperei até que o sono me levasse para a inconsciência novamente, e não demorou muito até eu começar a cochilar.
Essa foi a última coisa de que me lembrei antes de abrir os olhos e me ver sozinha em um beco na rua, com fones de ouvido ao som de “TKO” do Justin Timberlake. Franzi o cenho e meu primeiro impulso foi passar a mão no cabelo, percebendo-o curto.
Ayla.
Eu estava de volta à Tenaz e em uma cena completamente diferente das outras. Se ela estava em um beco, então eu tinha um palpite sobre que momento da história era aquele.
Comecei a andar em busca de um local mais movimentado e, discretamente, olhei para trás. Meu coração deu um pulo quando vi um homem de capuz a alguns metros de mim. Apertei o passo e tentei pensar rápido. O que Louise — e não Ayla — faria? Ayla não sabia lutar, mas Louise sim, e eu tinha lido quatro livros em que Yeong treinava as meninas. Além disso, Kate e eu fizemos algumas aulas de autodefesa quando ela estava escrevendo Perspicaz. Nunca precisei colocar nada em prática para testar a eficiência dos golpes, mas não fazia mal tentar.
Ayla cortaria o braço no meio do ataque de dois homens e eu não estava nem um pouco a fim de apanhar e me machucar. Se minhas contas estavam corretas, àquela altura Ayla já devia estar correndo e então um segundo homem a puxaria de repente para um beco onde estava escondido.
Enfiei os fones na bolsa e diminuí um pouco o passo, fingindo atender o celular.
— Oi, Minsik. Você já tá perto? Tô naquele beco, perto do restaurante. O pessoal tá com você? Certo, vem me encontrar então.
Coloquei o celular na bolsa e apertei o passo novamente. Avistei o próximo beco e um pedaço de madeira em um canto e não pensei duas vezes antes de pegá-lo. Levantei como um bastão e corri. No mesmo instante, o segundo homem apareceu e eu o acertei em cheio na cabeça.
Surpreso, o primeiro homem parou de andar atrás de mim, observando o companheiro arquejar de dor.
— Socorro, socorro, alguém! — Comecei a gritar como uma louca. — Socorro!
Comecei a correr e o cara continuou atrás de mim. Quando me aproximei um pouco mais do restaurante mais à frente, me virei, sacudindo o pedaço de madeira. No entanto, prevendo o meu movimento, o homem conseguiu agarrá-lo e o jogou longe. Prendi a respiração, com medo, e dei alguns passos para trás.
— Socorro, socorro! — Gritei novamente, tentando correr, mas ele me agarrou pelo cabelo e tapou minha boca, enquanto tentava me arrastar.
Vamos, null, pense rápido.
Com um impulso, inclinei meu corpo para frente e dei uma cotovelada o mais forte que consegui em suas costelas. O homem gemeu de dor e consegui me soltar, na esperança de conseguir fugir daquela vez. No entanto, o segundo homem que ataquei anteriormente surgiu do nada e me deu um tapa tão forte no rosto que me jogou no chão.
Senti uma dor no braço, mas era só um arranhão e não um corte. O cara se aproximou, tentando pegar minha bolsa e eu levantei uma perna e o acertando com um chute nas bolas.
— Socorro, alguém! — gritei o mais alto que pude e avistei um grupo de rapazes, que pareciam estudantes.
— Ei cara, o que você tá fazendo? Deixa ela em paz! — um deles gritou, correndo até mim, junto com outro colega.
O homem que me perseguia soltou um xingamento e hesitou por um instante, encarando a bolsa que eu agarrava firmemente, até que pareceu desistir e correu com o outro. Me senti tonta, meu rosto e braço doendo e ardendo. O cara que gritou com os ladrões se abaixou perto de mim e minha skin de Ayla imediatamente começou a tremer. Ele usava um moletom e outras peças casuais.
— Eu consegui fugir, mas um deles veio atrás de mim... — falei automaticamente.
— Calma, você tá segura agora — o outro garoto falou.
— Vai ficar tudo bem. — Eu vou te levar pro hospital, tá bom? — o garoto do moletom disse e eu imaginei que ele fosse Minsik, um dos personagens da série que em breve ajudaria Dean, assim como Yeong e Zico.
Assenti e começamos a andar em direção ao carro dele. No meio disso, eu acordei. Rolei na cama, sentindo meu corpo dolorido e enfiei a mão embaixo do travesseiro para pegar o celular e ver que horas eram.
Nove e meia da manhã.
Olhei para o lado e null dormia de barriga para baixo, com o rosto virado na direção oposta à minha.
Bocejei, esfregando os olhos e fiz uma careta ao sentir o lado esquerdo do meu rosto doer e o pescoço também. Era só o que faltava, eu ter dormido de mau jeito. Com os antebraços, dei um impulso para me sentar, mas fiz uma careta ao sentir uma dor no braço direito. Franzi o cenho e levantei o braço, passando a mão levemente. Queimou um pouco, então a tirei no mesmo instante.
Mesmo com o quarto meio escuro, consegui ver o que tinha ali. Meus olhos arregalaram e palavras saíram dos meus lábios antes que eu pudesse raciocinar direito.
— Que porra é essa?! — falei alto, esquecendo de null por um instante, até vê-lo acordar assustado.
— O quê? O que foi? — ele perguntou, alarmado.
Por um instante, não respondi.
Estava ocupada, com os olhos vidrados no machucado que havia no meu braço direito.
Idêntico ao de Ayla.

Capítulo 16

— De onde veio isso? — null segurou meu braço, examinando o machucado. — Você caiu de madrugada e eu não ouvi? Isso não tava aí ontem, null.
— Não. Eu sonhei com isso e apareceu, null. — O encarei, assustada, então comecei a explicar rapidamente. — Eu tava em Tenaz de novo e Ayla estava sendo atacada. Eu tentei evitar me machucar... Que ela se machucasse, porque eu tava no corpo dela, só que um cara me bateu, então eu caí e... — Fiz uma careta, sentindo minha bochecha doer.
— O que foi? — null perguntou, alarmado, e acendeu a luz do quarto com o controle. No entanto, quando seu olhar caiu em mim de novo, null arregalou os olhos. — null, o que houve com o seu rosto? — Ele o envolveu com cuidado.
Me afastei dele e levantei, correndo para o closet. Lá, encarei meu reflexo no espelho. Havia uma marca vermelha, levemente inchada no lado esquerdo do meu rosto. Atrás de mim, null me observou, preocupado.
null, o que tá acontecendo? Quem fez isso? Como...? — Era óbvio que ele não estava entendendo nada, nem eu entendia.
A única explicação que eu tinha era o sonho, mas como isso era possível? E se era possível, o que desencadeou? Foi por que eu tentei me proteger? Mas o que isso influenciava se, na maior parte do tempo, a história seguia um roteiro? Ayla ainda tinha encontrado Minsik, ido ao hospital e sido atacada.
Mas por que eu, na minha própria realidade, tinha acordado com os machucados dela? Isso era assustador, e não ter uma explicação científica fazia tudo parecer pior. Isto é, eu não sabia se tinha uma. Estava longe de ser algo pertencente a minha coleção de conhecimentos aleatórios e, na maioria das vezes, inúteis.
null, eu não saí do seu lado, eu juro. Isso aconteceu no sonho e por alguma razão apareceu em mim. Não faço ideia do porquê — falei novamente e ele franziu o cenho, visivelmente sem saber o que dizer ou fazer. — Você não acredita em mim.
Não era uma pergunta, era uma constatação. Porque nada do que eu dizia fazia sentido. Senti os olhos arderem, sem saber o que fazer também.
null... Talvez você esteja sonambulando, amor. Deve ter alguma coisa a ver com o acidente — deduziu ele.
— Mas eu tava indo bem... — choraminguei. — O médico disse que era só questão de tempo até eu melhorar. Você tava lá e ouviu.
— Sim, meu amor. — null me acolheu em um abraço. — Vai dar tudo certo. Você vai ficar bem.
Assenti em silêncio, mesmo incerta sobre aquilo. Eu estava com medo e sabia que null também estava assustado, então eu não queria surtar mais na frente dele. Não ia mudar nada e só iria deixá-lo mais inquieto também.
Depois de alguns instantes, me acalmei e nos separamos para começarmos nosso dia. Duas horas depois, falei que iria almoçar com Kate. Eu tinha enviado uma mensagem para ela enquanto null estava no banho após voltar da academia, e rapidamente combinamos de nos ver.
null se ofereceu para me levar até o restaurante, mas insisti em ir sozinha. Ainda me sentia insegura para dirigir, com medo de passar mal caso lembrasse de alguma coisa, então resolvi pedir um táxi. Encontrei Kate em um restaurante tailandês que costumávamos frequentar juntas.
Enquanto esperávamos a comida chegar, aproveitei para falar com ela.
— Então... — comecei.
— Então... O que você queria falar comigo? — ela perguntou, já que eu havia mencionado na mensagem.
— Eu sei que você vai me achar louca, mas eu ainda tô indo parar em Tenaz quando durmo.
— E? O médico falou que era um mecanismo de defesa, né?
— Sim, mas ele não disse que isso podia me machucar.
— Como assim? — Kate franziu o cenho.
Levantei meu braço, expondo o arranhão na parte externa do antebraço, então comecei a vomitar palavras.
— Eu dormi, sonhei com Tenaz na parte que Ayla é atacada e eu tentei evitar o ataque. Consegui evitar o corte no braço, mas não esse arranhão. Ayla sofreu esse arranhão e eu acordei com ele no meu corpo, Kate. Lembra que ela levava o corte e tinha até que levar pontos? Quando eu sonho com Tenaz, eu sinto o que ela sente e não queria sentir dor. Então tentei mudar essa parte, mas me machuquei mesmo assim no corpo dela e no meu.
null... Do que você tá falando? Tem certeza de que não caiu enquanto dormia? E que papo é esse de mudar a história? Ayla sofre um arranhão no braço. Ela tenta se defender com um pedaço de madeira e tenta fugir, mas é pega e acaba levando um...
— Um tapa no rosto que a faz cair — completei.
— Sim. É o que acontece na cena.
— Não é, não — retruquei. — Ela leva pontos, Kate. Você deve estar confundindo. Eu li Tenaz umas quatro vezes, mais na frente os pontos dela abrem quando ela tá bêbada e falando com o Dean.
— Não, null. Foi só um arranhão — ela retrucou. — Eu escrevi, então tenho certeza.
— Mas e o celular dela? O celular dela foi roubado e o pai do Dean entrega a ele...!
— O celular de Ayla não foi roubado. Ela segurou a bolsa.
— Não... Fui eu que segurei a bolsa, Kate. Do que você tá falando? O que tá acontecendo?
— Acho que você se confundiu depois do acidente, null — ela supôs, segurando minha mão por cima da mesa. — Sua mente deve ter criado coisas durante o sonho.
— E como você explica isso? — Apontei para o arranhão em meu braço. — null acha que sonambulei, mas ele tem o sono pesado e eu tenho quase certeza de que não saí daquela cama nem pra ir ao banheiro. Eu também tinha uma marca vermelha no rosto. Do tapa.
Kate franziu o cenho, intrigada.
— Não sei, null. Normalmente, quem é sonâmbulo não lembra de nada. É possível que seja isso. Na verdade, é o mais provável, cientificamente falando. Também há estudos sobre manchas roxas aparecendo nos corpos de pessoas por estresse. Você passou por muita coisa.
— Muita coisa? Eu só fiquei inconsciente por quatro dias, só dormindo, e nem sei porquê. Mal tive machucados, Kate. Por que todo mundo tá me tratando como se fosse algo sério?
null... — Kate me encarou, preocupada. — É verdade que você tá bem. Mas se contarmos todas as suas lembranças como uma história, isso pode te sobrecarregar e prejudicar sua recuperação.
— Eu me sinto estúpida, Kate — desabafei, frustrada. — Não lembro de partes da minha própria vida e, por alguma razão, tô indo parar dentro do seu livro. Tive algumas lembranças e ontem mesmo, o médico falou que tô indo bem. Então por que isso tá acontecendo? O sonho é real demais pra ser só um sonho. Eu tenho controle sobre Ayla em algumas partes, mas agora você disse que o que mudei faz parte do enredo.
null, sonambulismo é a única coisa que eu consigo pensar. Não é como se você estivesse delirando ou algo assim. Nós só podemos esperar e ver. — Ela encolheu os ombros, claramente de mãos atadas também. — Odeio te ver assim e deve ser assustador não lembrar de tudo o que você viveu com o null, mas é a nossa única opção. Você pode tentar conversar com um psicólogo também, talvez assim consiga se acalmar mais, não sei...
Coloquei as duas mãos no rosto e respirei fundo, tentando não chorar.
— Por que eu tenho que me lembrar sozinha? Isso é irritante.
— Sua mente pode criar coisas que não aconteceram se você souber por nós. É difícil dizer como cada pessoa reagiria em uma situação assim. No início, você sentia tontura e dor de cabeça. Por isso, o null toma cuidado em só contar quando você lembra. Mesmo não tendo acontecido mais vezes, não há garantia de nada.
Eu a ouvi em silêncio, tentando pensar no que fazer, no que tinha acontecido. Era real demais, mas se ninguém acreditava em mim, não havia o que fazer. Talvez eu estivesse mesmo ficando louca, acreditando em coisas fantasiosas. Eu estava tendo um turbilhão de sentimentos, e não fazia ideia do que era real. Mas Kate tinha razão, só restava a nós esperar e ver o que aconteceria.
Mais tarde, após nosso almoço, Kate se ofereceu para me deixar em casa e no caminho, abri rapidamente o aplicativo de leitura e procurei pelo trecho do ataque de Ayla em Tenaz, apenas para descobrir que Kate estava certa o tempo todo. Deu até vontade de rir de nervoso, mas talvez fosse algum efeito Mandela. Quando você acredita fielmente que tem algo onde não tem ou em algo que nunca aconteceu. Tipo pensar que o Pikachu tem uma listra no rabo (ele não tem) ou que a pintura da Monalisa está sorrindo.
Eu estava mais tranquila, tentando aceitar essa ideia e a do sonambulismo, mas também estava decidida a me expor a quantos estímulos fossem possíveis para me fazer lembrar das coisas importantes.
null era o principal deles, e eu iria procurar anotações, objetos ou qualquer coisa que pudesse me fazer lembrar de algo; mesmo que isso me fizesse desmaiar e ficar inconsciente por mais quatro dias. Eu tinha que lembrar de tudo, principalmente do acidente que havia me deixado daquele jeito.

***


A primeira coisa que senti quando abri a porta foi cheiro de biscoitos. Em seguida, encontrei null colocando uma fornada quentinha em cima do balcão. Foi o suficiente para me fazer esquecer momentaneamente minhas preocupações.
— Oi, como foi o almoço?
— Bom — respondi, sem olhar para ele, focada nos biscoitos. — Você fez tudo isso sozinho?
Havia mais três fornadas em cima do balcão, com biscoitos enormes e de sabores diferentes. Chocolate com gotas de chocolate branco, baunilha com gotas de chocolate preto, alguns com castanha e confeitos coloridos também.
— Acabei de terminar — null informou. — Pedi comida e aprontei eles enquanto esperava. Almocei enquanto estavam no forno.
Eu amava biscoitos. Era minha sobremesa de conforto. Eu sempre fazia para comer quando estava chateada ou estressada com alguma coisa, às vezes com sorvete de creme. E era bem legal descobrir que null sabia cozinhar aquilo também.
— Que delícia... — Espiei as fornadas, sentindo o cheirinho de cada uma delas, encantada com a variedade que ele fez.
— Tem sorvete de creme no congelador — null anunciou e imediatamente eu o encarei como se ele fosse algum tipo de salvador. Se meus olhos não estavam brilhando antes, eles com certeza o fizeram quando ouvi aquilo.
Ele sabia que era minha comida de conforto e tinha feito exatamente com este intuito: me confortar.
Senti meus olhos encherem d'água e joguei os braços ao redor dele.
null? Amor, o que foi? Você não gostou? São os seus favoritos... — A voz dele vacilou um pouco, insegura.
— Eu amei — respondi, sentindo ele relaxar, aliviado. — Acho que deve ser a TPM me deixando sensível.
null riu baixinho e me abraçou forte.
— Vai passar, amor.
— Eu quero muito me lembrar de tudo, null — confessei baixinho. — Eu nem fazia ideia que você sabia fazer esses biscoitos, ou que são meus favoritos.
— Eu já te disse que sei tudo sobre você, null. — Ele se afastou para me encarar. — Saber sua comida de conforto é o mínimo que eu tenho obrigação de saber, amor.
— Você parece um personagem fictício escrito por uma mulher — murmurei, ainda o abraçando pela cintura.
null sorriu, exibindo uma covinha, e seus olhos brilharam com diversão.
— Você sempre disse pra minha mãe que ela me criou muito bem, então talvez seja quase isso.
— Acho que sou a fã número um dela, então, porque você é uma obra de arte.
Ele riu e eu o acompanhei, antes de ficar na ponta dos pés para beijá-lo.
— O machucado ainda tá doendo? — null perguntou quando nos afastamos e segurou meu braço com cuidado, examinando o arranhão.
— Não. Só é dolorido quando eu toco.
— Eu comprei um remédio pra ferimentos, vamos passar nele depois.
Assenti, sorrindo de lábios fechados.
— Depois — enfatizei. — Hora da sobremesa. Vou me empanturrar de biscoitos.
— Vou pegar o sorvete então. — Ele sorriu, antes de se dirigir até a geladeira.
Secretamente, desejei que todos aqueles biscoitos afastassem as minhas preocupações e medos de mim.
Só não tinha certeza se funcionaria.

Capítulo 17

Eu sei que eu decidi ser uma pessoa mais determinada e me expor a quaisquer tipos de estímulos que pudessem me fazer lembrar da minha vida e relacionamento com null, mas... Eu era uma preguiçosa. E depois de uma semana dividida entre trabalho e — para o meu terror — academia, tudo o que eu conseguia pensar naquele fim de semana era em não fazer absolutamente nada.
De repente, um senso de autopreservação tomou conta de mim e eu decidi levar as coisas com mais calma, como já vinha fazendo. Ou talvez isso fosse apenas uma desculpa para mim mesma. Eu estava assustada e com o estômago cheio de biscoitos que fizeram o papel crucial de me manter sã e sem pensar em nada, enquanto eu me enchia deles com grandes colheradas de sorvete de creme. Às vezes usando até os biscoitos como colher.
null null era, definitivamente, o amor da minha vida. Eu estava seriamente cogitando que éramos mesmo predestinados. Eu não precisava ser um gênio para perceber que não tínhamos uma conexão comum.
Era mais que isso.
Me fazia pensar em livros de fantasia e eu amava a ideia de null ser a minha pessoa. Sempre fui fascinada em lendas como a do Fio Vermelho do Destino, vulgo Akai Ito, chamas gêmeas, e coisas do tipo. Na faculdade, eu tinha uma colega que fazia leituras de tarô. Na época, ela estava aprendendo, então fazia de graça, já nos deixando sob aviso caso errasse alguma coisa.
Mas eu sabia que tarô não se tratava bem de acertar e sim do que fazia o ouvinte se identificar. Achei muitas vezes que iria encontrar o amor da minha vida nos corredores da universidade, mas isso obviamente não aconteceu. E quando me envolvi com Andy, eu meio que desconfiei que não era ele. Foi em um dia aleatório enquanto eu trabalhava, que me veio em mente uma leitura sobre eu permitir a entrada de um homem em meu coração, mas ele não era O cara, por mais que a relação pudesse ser boa.
Lembrei disso novamente quando Andy e eu terminamos, mas parei de pensar nisso depois. Não sei se era a isso que null se referia quando mencionou que eu brincava que éramos predestinados, mas a lembrança daquela leitura de tarô me veio à mente novamente, sei lá quantos anos depois.
Podia parecer ingênuo da minha parte acreditar nessas coisas, mas minha vida seria chata demais se eu não enxergasse um pouco de magia no universo. Sempre achei que ser uma pessoa cética quanto a absolutamente tudo devia ser cansativo, então eu me permitia fanficar com o meu próprio destino, imaginando como seria conhecer a minha pessoa um dia.
Nada do que eu esperava, certamente. Nem nas minhas fanfics imaginárias mais indecentes eu tinha pensado que tudo se desenrolaria a partir de um caso de uma noite.
Mas ter o meu caminho cruzado com o de null foi a melhor coisa que podia me acontecer, junto com ser a agente literária de Katherine Reed. Haha.
Agora estávamos ambos deitados na cama, eu olhando para o teto, enquanto null passava vídeos aleatórios no TikTok, rindo ocasionalmente. Era tão mundano que me peguei pensando se as outras fãs o imaginavam assim.
Alguns minutos depois, os sons de vídeos aleatórios pararam e virei a cabeça, notando que null digitava algo no celular.
— O que você tá fazendo? — perguntei, curiosa, me aninhando a ele.
Eu normalmente não era uma pessoa que curtia muito contato físico, mas null era uma exceção. Ele era um ímã que me atraía e seu toque me trazia paz. Era bem esquisito, na verdade. Isso nunca tinha acontecido antes, mas eu estava feliz por saber que não era imune a esse tipo de coisa.
null me encarou por um breve instante, antes de voltar o olhar para a tela do celular.
— Planejando nosso próximo encontro — respondeu.
— Mas já? — Estiquei o pescoço para dar uma espiada, mas ele bloqueou a tela. — Ei!
— É surpresa.
— Eu posso fingir surpresa se você me contar.
— Não quero que você finja nada, null. Quero a experiência real.
— Falando assim, até parece que você tá falando sobre fingir outra coisa. — Sorri, divertida. null rolou os olhos.
— Que besteira. Eu sei que você nunca fingiu comigo — o idiota disse, em um tom arrogante.
— Muito prepotente você achar isso quando nem eu lembro...
— Mas eu lembro por você, null. E sabe por que eu sei? — Ele se virou, me envolvendo com um braço, e murmurou no meu ouvido. — Por que você sempre fica arrepiada e sensível... Sua respiração fica entrecortada e você sempre franze o cenho quando está perto de um orgasmo. Então você se aperta ao redor de mim e me puxa para mais perto como se não quisesse me soltar nunca mais.
Senti a pele arrepiar com a respiração dele batendo no meu pescoço e meu corpo esquentou quando ouvi aquilo. Eu não sabia se ele estava brincando ou não, mas tendo como base nossas últimas vezes, imaginei que fosse verdade.
Senti o centro do meu corpo doer por ele e me sentei, passando as pernas ao redor de sua cintura. null riu, como se soubesse exatamente o que tinha feito. Eu quis tirar aquele sorrisinho da cara dele, mas então percebi que ele também havia ficado excitado. Sorri e me inclinei sobre seu tronco. Ele estava sem camisa, seus músculos expostos fazendo leves ondulações em sua pele levemente bronzeada.
Encarei a tatuagem enorme que ia do pescoço ao peito esquerdo e deixei um pensamento intrusivo vencer.
Passei a língua no final da tatuagem até a base do pescoço e mordisquei ali, fazendo ele se arrepiar.
null levou as mãos até minha cintura e pressionou seu corpo contra o meu.
null...
— Agora você não tá mais rindo, né? — provoquei.
— Tira logo a porra dessa roupa, null. Eu quero te foder.
Ri baixinho, satisfeita por deixá-lo impaciente com tão pouco. Ninguém mandou ele começar. Eu o teria provocado um pouco mais se fosse em outro momento, mas meu corpo clamava por contato com o dele e tudo o que eu conseguia pensar era em nos fundir em um só. Naquele momento, eu não precisava de mais que isso. Sem preliminares, só uma coisa rápida e crua para satisfazer nossos corpos. Depois, podíamos ir com mais calma. Quem sabe testar cada cômodo da casa... Esse pensamento me fazia rir por dentro. null conseguia despertar a vagabunda que habitava dentro de mim, e eu não estava nem um pouco incomodada com isso.
Sem pestanejar, puxei minha camisola pela cabeça e um sorrisinho apareceu nos lábios dele. null enroscou os dedos no cós da minha calcinha, mas no momento em que pensei em me afastar para tirá-la, ele a arrebentou de uma vez.
Descanse em paz, mais uma calcinha.
— Você tem que parar de destruir minhas calcinhas — reclamei, me fingindo de ofendida.
— Eu te compro mais depois. De preferência, um monte para eu ter passe livre pra rasgar quantas eu quiser — O idiota arrogante respondeu.
Eu rasgaria a cueca dele também, se eu tivesse forças para isso e o tecido não fosse tão largo. Mas a única opção que eu tinha era abaixá-la e liberar seu pau inchado.
Talvez eu pudesse me vingar de outra forma.
— Eu quero você assim, quietinho — anunciei, para que ele não pensasse em inverter nossas posições; embora eu adorasse tê-lo no controle, aquela era a minha vez.
Quando terminei de me livrar da cueca de null, eu a rodei em um dedo e puxei o tecido como um estilingue, a atirando no chão do quarto logo depois. null deu uma risadinha que imediatamente cessou quando o envolvi com uma mão.
null...
— Quase lá, null — respondi, ainda movimentando a mão em seu membro. null estava firme e pesado, e eu mal podia esperar para tê-lo dentro de mim.
Me posicionei em cima dele e fui abaixando o quadril devagar, o tomando aos poucos enquanto meu corpo se esticava para recebê-lo. Ele me fazia sentir deliciosamente cheia, no entanto, para a minha sorte, não era doloroso. Quando o envolvi por completo, null apertou as mãos em meus quadris, mas continuou parado.
— Que cachorrinho obediente — brinquei, me inclinando em seu peito para mordiscar seu pescoço.
null gemeu com a fricção que isso causou.
— Vai logo, null. Ou eu vou te mostrar o cachorrinho desobediente.
Tentador, mas quem sabe outra hora.
Ainda inclinada sobre ele, levantei e abaixei os quadris, observando atentamente cada segundo de suas reações. Se null me conhecia tão bem a ponto de saber o que eu sentia, então eu faria o mesmo. Enquanto não lembrasse, eu aprenderia.
Ele arfou quando desci os quadris e eu mordi o lábio inferior em meio a um sorriso. Levantei os quadris novamente e o abaixei de uma vez. Então repeti uma terceira e uma quarta vez, garantindo que havia lubrificação suficiente para nós dois. Segui para adquirir um ritmo constante e me afastei para apoiar as mãos em seu peito enquanto continuava a me movimentar.
Uma onda de eletricidade percorreu meu corpo e eu sabia que não demoraria muito para eu chegar lá. Tendo o controle total, eu deslizei em null em busca do meu próprio prazer. Ele continuou com os quadris parados, me deixando comandar tudo, mas suas mãos percorreram todo o meu corpo, se demorando em meus seios até o momento em que ele me puxou contra si para envolvê-los com a boca. Suspirei pesadamente e senti outra onda de eletricidade passar por mim, me fazendo sentir um pouco fraca. Eu explodiria a qualquer momento, então decidi deixar null assumir naquele instante. Ele riu baixinho contra meu pescoço quando anunciei, e então segurou meus quadris com firmeza para que eu ficasse parada enquanto ele acabava comigo.
Felizmente, meus joelhos tinham apoio, ou eu teria me desfeito em cima dele feito manteiga derretida em poucos segundos.
null me encarou nos olhos com determinação e eu franzi o cenho, sentindo o primeiro tremor em meu corpo. Então veio de uma vez, me atingindo com tudo e fazendo o ar escapar de meus pulmões. No entanto, null não parou. Sem hesitar, ele continuou a bater dentro de mim, e eu me segurei com força em seus ombros enquanto nossos corpos ainda se chocavam. Senti outro orgasmo começar a crescer e, de repente, null sorriu.
— Que tal o cachorrinho desobediente agora? — ele perguntou e eu só consegui assentir freneticamente, um instante antes dele sair de dentro de mim e me virar na cama, seu peito em contato com minhas costas. Antes que eu pudesse reclamar, null me preencheu outra vez.
Eu estava deliciosamente preenchida e meu corpo estava tenso mais uma vez. Então, alguns movimentos a mais foram o suficiente para me fazer tremer em seus braços, e eu propositalmente contraí meus músculos internos ao redor de seu membro, fazendo-o perder o controle também. null se derramou em mim um momento depois, gemendo baixo no meu ouvido, e até me passou pela cabeça sugerir para que ele colocasse aquele som em uma música. Eu tinha certeza de que seria sucesso.
Quando nos separamos, eu era apenas um peso morto em cima da cama, ainda ofegante e olhando para o teto com uma expressão satisfeita no rosto.
— Acho que gosto das duas versões do null cachorrinho — comentei, fazendo-o rir.
— Eu sei.
Idiota. Espere só até eu me lembrar de todos os seus pontos fracos também, null null, anunciei mentalmente.
Em seguida, bocejei e virei para o lado, em uma posição confortável. null me puxou para perto e se aconchegou comigo. Eu tinha tomado banho há pouco tempo e já precisava de outro, mas dessa vez iria esperar.
Fui tomada pelo sono pouco tempo depois.
A próxima coisa de que me lembro foi de estar em um estacionamento vazio com uma garota ruiva parada a minha frente. A reconheci de imediato. Era a minha skin de Ayla null.
Seus olhos pareciam diferentes, no entanto. Tinham um tom brilhante de prateado que não condizia com os olhos escuros da protagonista de Tenaz.
Não era algo humano e depois de meus anos como uma fã fiel de Sobrenatural, comecei instintivamente a tentar identificar que coisa era aquela com que eu estava sonhando.
Estranhamente, não senti medo.
— Ayla? — chamei, mesmo ciente de que não era ela.
A coisa com a imagem de Ayla sorriu e deu um passo à frente.
— Você pode me chamar assim.
— Quem é você? — perguntei, dando dois passos para trás.
— Não tenha medo, não vim te machucar. Sou uma mensageira. Meu trabalho é te alertar.
— Me alertar? Sobre o quê? — A encarei, confusa.
De repente, os olhos dela brilharam ainda mais, como duas pequenas estrelas.
— As coisas não estão como deveriam estar. — Sua voz soou quase automática, como se repetisse um discurso pronto. — Você não deve tentar interferir e ir além do permitido.
— O quê? Que coisas? Tá falando de Tenaz?
— O destino não pode ser mudado. Coisas boas e ruins sempre hão de acontecer, não importa a vida ou o universo em que você esteja presente — ela continuou, ignorando minhas perguntas. — Aquele ao seu lado nunca vai te soltar se você não soltá-lo antes. O universo quis assim e assim será. Tente ir contra as decisões e enfrente as consequências. O que você passou era necessário para fazer a conexão perdurar. Não interfira. Leia os sinais. Aceite. E assim tudo voltará ao seu devido lugar.
— Do que você tá falando?! Que papo estranho é esse? Eu não sou boa com enigmas, tá? Foi porque eu interferi em Tenaz?
Os olhos dela se apagaram um pouco, voltando a como estavam antes.
— Em breve, você descobrirá. Não tente alterar aquilo que já foi premeditado. Receba uma segunda chance, mas se atente, pois não haverá uma terceira.
Foi a última coisa que ela disse, antes de começar a brilhar forte. Tive que proteger meus olhos da claridade, mas um segundo depois, tudo ficou escuro.
Ouvi um barulho alto, semelhante a uma página virando e, num piscar de olhos, eu estava em um beco, com fones de ouvido tocando “TKO” do Justin Timberlake.
Era a cena que eu havia mudado. Que eu inocentemente havia mudado, achando que não teria nenhuma consequência real. Se aquilo era apenas um sonho, então era um novo tipo. Mas de todo modo, encarei como um sinal. A coisa que me alertou mencionou uma segunda chance. Só podia ser aquilo. Eu não deveria interferir.
Fiz uma careta, pensando na certeza de apanhar durante aquela cena, e deixei que meus pés se movessem em modo automático. Senti a presença de um dos ladrões atrás de mim e minha skin de Ayla começou a andar mais rápido. Meu coração acelerou e meu corpo — o corpo de Ayla — foi tomado por ansiedade.
Então cheguei ao beco onde o outro ladrão estava escondido e a cena da qual eu me lembrava aconteceu automaticamente. Tive que me controlar para não tomar as rédeas da situação no primeiro ataque. Quando caí no chão e meu braço esbarrou em um pedaço de ferro, gritei de dor ao sentir o metal cortando minha pele.
Os caras pegaram o celular de Ayla, mas nem por isso ela deixou de apanhar. Eu sabia que o celular era apenas uma desculpa e que aquilo tinha sido planejado por James Nam, o pai de Dean.
Houve alguns momentos em que Ayla tentou se defender em vão e senti cada segundo de sua dor, até que ouvi um grito. Agradeci silenciosamente quando vi Minsik e o outro colega correndo até mim. Um momento depois, os meus atacantes foram embora e eu fui levada para o hospital, apavorada.
Eu ainda estava no carro com Minsik quando acordei, de repente.
Encarei o quarto que eu dividia com null e me sentei na cama, procurando por alguma dor nova. Eu ainda estava sem roupas, assim como null, e ele dormia profundamente ao meu lado.
Levantei o braço e encontrei apenas o arranhão que havia aparecido naquela manhã, mas nada de cortes que necessitariam de pontos. Respirei aliviada, deixando meu corpo cair na cama mais uma vez. Felizmente, aquela cena era a única que eu lembrava em que Ayla se machucava fisicamente.
Então lembrei das palavras que ouvi do ser de olhos prateados que tinha a mesma aparência dela.
O destino não pode ser mudado. O universo quis assim e assim será.
As palavras ecoaram na minha mente, ainda frescas na memória, e torci para não ter deixado a tal segunda chance que ela mencionou passar.
Mesmo não fazendo ideia do que era.

Capítulo 18

Não contei nada para null sobre o meu último sonho esquisitão, tampouco da cena repetida de Tenaz em que fui enfiada novamente.
Não adiantaria nada jogar isso nele sabendo que não acreditaria em mim e não saberia o que fazer. Por mais que eu quisesse ter um pouquinho de apoio emocional, eu sabia que null só iria se culpar ainda mais em relação ao acidente, achando que tudo isso era uma consequência do meu atropelamento. Meio que era mesmo, mas fui eu quem escolhi sair sozinha naquela noite ao invés de ficar em casa. Então, para não fazer meu namorado surtar mais do eu aparentemente estava, decidi ficar calada.
No domingo à tarde, logo após o almoço, null anunciou nosso próximo encontro. Passei a tarde me planejando para aquela saída, enquanto ele ficou trancado no estúdio atendendo uma ligação de Jace.
Maldito Jace, infernizando meu namorado com trabalho em pleno domingo, na folga dele.
Ele tinha sorte por não termos nos encontrado ainda porque eu não tinha certeza se conseguiria segurar minha língua de dar algumas alfinetadas nele. Na última semana, null foi para a cama tarde por causa do trabalho, quando eu já estava dormindo e, mesmo assim, acordou cedo para irmos para a academia juntos.
Eu sabia que ele andava cansado, então encomendei algumas caixas de suplementos vitamínicos para forçar ele a tomar o mais breve possível e estava apenas esperando chegar. null podia até ter uma ótima resistência física, mas naquele ritmo, seu corpo reclamaria eventualmente, e eu não queria que ele adoecesse. Eu não fazia ideia se eu sabia cuidar de alguém doente, já que era uma raridade null e eu adoecermos (nosso bolso agradecia), mas sabia como tentar evitar adoecer.
Felizmente, tínhamos dinheiro suficiente para alguns suplementos e, dessa vez, até comprei para mim também, como forma de convencer null. Àquela altura, eu já tinha notado que ele odiava remédios e tomava apenas em último caso, como quando tinha enxaqueca por trabalhar demais na frente do computador. Isso também acontecia comigo, mas era mais frequente quando eu estava próxima do meu período menstrual, o que aconteceria em breve, a qualquer momento na próxima semana.
Assim que null voltou, eu já estava de cabelo pronto e já tinha tomado banho, coisa que ele fez rapidamente antes de me encontrar de novo no closet.
Assim como da última vez, ele se enfiou no closet e fuçou minhas roupas em busca das mesmas peças de três anos atrás, e logo me vi frente a uma saia jeans com mullet e uma blusinha rosa choque fechada com um zíper na parte de trás.
Podia até parecer um grande esforço de null, considerando que eu tinha muita roupa guardada, mas meu closet era dividido em nichos. Então tudo o que ele teve que fazer foi encontrar o nicho de shorts e saias jeans, e depois o de blusinhas coloridas. Não deve ter levado mais que cinco minutos, mas eu apreciava o fato dele revisitar nossas lembranças para ver que roupa eu tinha usado.
— Não sei se isso cabe em mim — falei para ele, assim que vi as peças. Eu já até tinha feito a maquiagem, mas fui idiota e não provei a roupa com antecedência. — Você lembra a última vez que usei essa roupa?
— Não faço ideia — ele admitiu. — Por que você não prova?
Assenti e tirei a roupa que eu estava usando, ficando apenas de calcinha e sutiã, e tentei vestir primeiro a blusa. Pedi para null fechar o zíper, mas as duas partes de tecido sequer se encontraram.
— Opa... Parece que essa não vai dar.
— Você ganhou massa muscular na academia, é por isso.
Concordei com a cabeça, desistindo da blusa e, sem dizer nada, tentei vestir a saia. Ela nem passou das minhas coxas. Era inacreditável pensar que eu coube naquilo um dia.
Caí na risada e null me acompanhou. Fiz uma nota mental de fazer uma limpa no meu closet e doar o que não me servia mais.
— Parece que não vai ser dessa vez — comentei e ele encolheu os ombros. — Vou procurar alguma coisa dentro dessa paleta de cor, então.
Alguns minutos depois, encontrei uma saia jeans envelope com botões em uma lateral e uma blusa soltinha de alças brilhantes no mesmo tom de rosa da outra. Era simples, mas tudo o que eu precisava era de um salto para fazer parecer sofisticado. Escolhi um scarpin branco ao invés de usar um tênis, como da última vez. Provei tudo para ter certeza de que cabia em mim e pedi para ele opinar.
— Você ficou ainda mais linda, amor.
— Tomara que não tenha paparazzi dessa vez, mas se tiver, ao menos eu tô apresentável.
— Um funcionário vai nos receber na porta dos fundos e nos levar até a cabine reservada. Além disso, vamos no seu carro hoje, ele é mais discreto e comum. Vai se misturar melhor com os outros.
— Sim, Sr. Exibicionista Dono de um Audi. Vamos no meu humilde carrinho sem nada de especial — brinquei.
null rolou os olhos, mas não disse nada. Ele começou a trocar de roupa rapidamente enquanto eu dei uns últimos retoques na maquiagem e passei perfume.
Assim como prometido, cerca de meia hora mais tarde, encontramos um funcionário que nos levou até nossa cabine reservada no restaurante japonês que null tinha escolhido. O lugar era especializado em sushi e sashimi, e mesmo imaginando que era isso que iríamos comer, peguei o cardápio para ver a variedade de pratos. Havia alguns pratos de rua também, como okonomiyaki, que era um tipo de panqueca salgada e takoyaki no espeto, bolinhos de sabores diversos. Também tinha guioza, os famosos pasteizinhos de carne cozidos no vapor, e eu pedi uma porção deles, numa versão com casquinha crocante.
— Você pediu isso da última vez — null disse, assim que a garçonete se afastou.
— Sério? Por que você não disse?
— Eu queria ver se você ia lembrar de algo.
— Tive uma sensação de déjà vu quando entramos aqui. Talvez seja algo. Nós experimentamos saquê aqui?
— Sim, mas nem você nem eu gostamos. Mas somos adeptos do soju coreano e vinho.
— Whisky também, no seu caso — comentei. Eu sabia que null sempre bebia uma dose antes de cada show. — Nós somos clientes frequentes desse restaurante? — perguntei, em seguida.
Eu sentia como se tivesse estado ali várias vezes, mas poderia ser só coisa da minha cabeça.
— Relativamente — null respondeu. — Faz uns quatro meses que viemos aqui, mas às vezes você pede delivery. Você fez isso algumas vezes quando eu tava viajando.
De fato, havia algumas fotos de sushi e sashimi em embalagens de isopor que eu notei que havia enviado para null. Mas tinha sido umas duas vezes só. Eu devo ter entrado em dieta depois, porque a maioria dos pratos que eu enviava tinha alguma proteína grelhada ou eram apenas sanduíches simples.
— Então a comida deve ser boa mesmo. — Sorri.
Meu celular vibrou com uma mensagem de Andrew e eu respondi rapidamente. Era apenas algo bobo sobre o novo livro de Kate. A editora começaria a soltar spoilers em breve e ele tinha me pedido para ver algumas sugestões no meu e-mail no dia seguinte.
Como null estava sentado ao meu lado e o meu celular entre nós dois, era meio óbvio que ele fosse ver.
— Por que esse cara tá te mandando mensagem de trabalho na sua folga? — ele perguntou, em um tom de voz levemente irritado.
— Provavelmente pelo mesmo motivo que o seu gerente teve hoje — retruquei, incomodada pelo seu tom quando ele mesmo tinha passado a tarde toda trabalhando. — Pelo menos, Andy não foi um idiota que me fez ficar trancada a tarde toda em um estúdio — acrescentei, desviando o olhar de sua direção.
Peguei o copo de água que estava na minha frente e tomei um gole. null bufou ao meu lado e fez o mesmo.
— Mesmo assim. Você tem uma rotina fixa de trabalho, eu não — ele tentou argumentar.
— Ah, null, por favor... — Voltei a encará-lo. — Todo mundo sabe que é porque você é um perfeccionista cismado. Você tá com raiva porque foi o Andy que me mandou mensagem. Se fosse a Kate, você teria ficado quieto.
— Kate não é seu ex-namorado.
— De novo isso? — Revirei os olhos. — Não teve nada de mais na mensagem, então dá pra parar de ser idiota? Nós namoramos há três anos!
— Pra mim, são três anos — ele enfatizou. — Mas pra você mal faz um mês, null — acrescentou baixinho.
Foi nesse momento que eu tive um flash de memória. Na verdade, não foi um flash, mas uma memória inteira que veio à tona.
Ainda era 2019. null e eu discutíamos sobre Andy no apartamento onde eu morava. Estávamos sozinhos, pois null tinha saído com uma amiga.
— Não tô completamente certo de que esse cara não sente mais nada por você, null.
null, para com isso. Não tem nada a ver.
— Ele não tirou os olhos de você! Passou a noite toda te encarando e sorrindo pra você, como se eu nem estivesse lá.
— Andrew é meu amigo agora. Você não confia em mim? Por acaso, acha que eu vou te trair com meu ex? Bom saber que você tem pouca fé em mim. — O encarei, me sentindo subitamente magoada. — Eu não sou que nem a sua ex, seu idiota.
Eu era uma pessoa que abominava qualquer tipo de traição. E saber que havia uma chance mínima que fosse de alguém achar que eu seria capaz de fazer uma coisa dessas era doloroso e revoltante.
— Desculpa. Não foi isso que eu quis dizer. Mas é que esse cara-
— O Andy é inofensivo. Nós terminamos de comum acordo e nunca tivemos mais nada além de amizade desde então.
— E se ele se arrepender e quiser voltar com você?
— Então ele que lide com isso sozinho, porque meu coração agora é seu.
null respirou fundo.
— Eu só consigo pensar nisso. Você me deixando por ele. Eu vi meu pai fazer isso com minha mãe, null. A traiu com a amante, então voltou pra casa por um tempo, apenas pra largar minha mãe de novo — confessou.
— Eu não sou seu pai, nem sua ex, null. Eu entendo sua insegurança com nosso relacionamento, porque às vezes me sinto assim também. Até onde sei, a qualquer momento você pode se apaixonar por outra pessoa e esquecer de mim.
— Eu nunca faria isso.
— Ninguém tem controle sobre os próprios sentimentos. Todo mundo tá sujeito a isso. Mas quero que entenda que eu não tenho mais interesse no Andy. Ele até tá conhecendo uma garota nova e eu não tô nem aí — garanti. — Além disso, eu seria linchada na rua se partisse o coração de null null. E seria chamada de burra por largar você. Coisa que não pretendo.
Ele me encarou com uma cara meio emburrada, mas por fim, respondeu:
— Tá.
— Ei, eu tô falando sério. Prometo que de jeito nenhum vou te deixar ir.
— Eu também, null. Você só vai se livrar de mim um dia se me largar primeiro.
— Nem pensar. — Sorri, divertida, e sua expressão amenizou um pouco.
— É uma promessa então — null disse, determinado.
— É uma promessa.
Tínhamos seis meses de namoro e aquela foi a nossa primeira briga. Naquela noite, null dormiu comigo no apartamento modesto que eu dividia com null. Comparado ao dele, parecia minúsculo, mas null não se importava.
Era uma das coisas que eu mais gostava nele. Mesmo vindo de uma família classe média e não ter passado por nenhum perrengue para se sustentar como tinha acontecido com minha irmã e eu, null não era um idiota arrogante.
Na verdade, ele era bem simplista e tinha os pés no chão. Às vezes, parecia até um pouco ingênuo, diferente da imagem descolada de bad boy que ele passava no palco. Quando jantava na nossa casa, até se oferecia para lavar a louça — na época, era provavelmente a única atividade doméstica que ele conseguia fazer com sucesso. Além disso, ele se dava muito bem com minha irmã e isso era extremamente importante para mim.
null não tentava impressionar ninguém e às vezes era até engraçado pensar em como passamos uma noite casual juntos, já que em nossos primeiros encontros parecíamos adolescentes tímidos tentando se conhecer. Chegava a ser cômico como ele parecia fofo nos encontros, quando tinha me pegado de jeito na cama. Parecia que a cada dia eu conhecia uma nova faceta de sua personalidade e estava me apaixonando por cada uma.
Mas o melhor de tudo era saber que null apreciava lealdade tanto quanto eu e talvez isso tenha nos feito dar certo. De repente, um mix de lembranças aleatórias apareceu na minha mente, mas logo me vi sentada no restaurante outra vez, a voz de null falando meu nome.
null. — Ele passou a mão na frente do meu rosto, chamando minha atenção. — Você tá bem? Ficou parada olhando pro nada, de repente.
— O quê? — pisquei, confusa. — Ah, eu lembrei de uma coisa.
— Lembrou? De quê? — Ele me encarou, esperançoso.
— Várias coisas, na verdade. Acho que do ano que começamos a namorar, mas, de modo geral, foi uma briga.
— O quê? De tudo o que você podia lembrar, foi lembrar logo de uma briga?
— Ei, eu não tenho controle sobre isso. As coisas vêm do nada. Mas se quer saber, foi por causa de Andy, seu idiota ciumento.
— Por que agora você só chama ele assim? Andy isso, Andy aquilo... — ele imitou e eu coloquei uma mão na boca dele, com um sorriso.
— Cala a boca, seu besta. — Afastei a mão, em seguida. — Eu só quero você e mais ninguém.
Ele me encarou, emburrado, mas havia o menor dos sorrisos no canto de seus lábios, que ele estava tentando segurar. De repente, senti uma vontade louca de beijar aqueles lábios e tirar a expressão emburrada da cara dele. Por mais que fosse irritante e me fizesse perder a paciência às vezes, null era uma gracinha quando estava com ciúmes.
Sem hesitar, puxei seu rosto para o meu e selei nossos lábios, um segundo antes de aprofundarmos o beijo. Então deixamos nossas línguas brincarem até a porta da cabine ser aberta de novo pela garçonete trazendo nossa comida.
Bem, o jeito era terminar aquilo em casa.

Capítulo 19

Cinco dias após meu último encontro com null no restaurante japonês, completou um mês do meu acidente.
Era dia seis de maio, mas constatar esse fato sobre meu acidente foi uma mera casualidade. Seis de maio também era aniversário de Nina, a protagonista de Singular, o segundo livro da série de Kate, e aniversário de dois anos do lançamento dele.
Passei a manhã toda trocando mensagens com uma estagiária do setor de design da editora, a orientando a fazer um post que eu mesma teria feito se Andrew não tivesse insistido que eu deveria deixar os estagiários trabalharem nisso e focar no meu trabalho de verdade.
Eu tinha feito muitas artes quando era estagiária e trabalhar sozinha era uma característica minha, mas Andy tinha razão. Aquele tipo de coisa não era mais meu trabalho há muito tempo, então eu tinha que parar de dar uma de doida autossuficiente e dar a chance dos estagiários se empenharem e demonstrarem suas habilidades. Mas aquela garota em questão... Ela era novata e meio enrolada.
Tudo bem, não apenas meio, mas muito enrolada.
Eu estava seriamente tentando não perder a paciência com as perguntas óbvias que ela me fazia, mas estava ficando difícil. Mesmo assim, tentei ser gentil e explicar tudo o que ela precisava para ganhar confiança.
Acho que funcionou... Cerca de uma hora depois do que deveria ter sido resolvido em vinte minutos.
Tentei desenhar um rascunho de como eu queria o post e esperei seu retorno. Ele veio com três versões na paleta de cores de Singular e elementos que lembravam o livro. Escolhi um e me organizei para postar no Instagram oficial de Kate. A editora tinha acesso àquele, mas ela também tinha um pessoal, que cuidava sozinha.
Entrei na conta rapidamente, que já era conectada no meu computador, e fiz o post comemorativo. Deixei a página aberta durante alguns minutos, atualizando vez ou outra para ler os comentários dos leitores e, em um momento de curiosidade, resolvi cutucar o meu próprio Instagram.
Eu não havia espiado nada desde o acidente e deletei o aplicativo do celular antes de abrir a rede social, então não fazia ideia do que encontraria. Mas era sexta-feira e não havia muito o que fazer naquele dia, já que tinha acabado de enviar alguns capítulos de volta para Kate e estava esperando ela escrever mais uma leva para eu ler.
Minha conta no Instagram era aberta e eu tinha cerca de duzentos mil seguidores. Eu lembrava dessa parte, mas não de que tinha várias fotos minhas com null no meu feed. Algumas eram bem uma vibe de namorados e o rosto dele nem sequer aparecia, enquanto outras tinham sido tiradas em encontros. O último registrado havia sido dois meses antes do meu acidente e houve várias postagens depois dele, a maioria da mini turnê literária de Kate.
Cliquei no último post e li alguns comentários. A maioria me desejava melhoras após o acidente. Me lembrei de null mencionando que os fãs tinham aceitado nosso relacionamento relativamente rápido, especialmente quando descobriram que eu era fã dele (e alguns tweets antigos meus defendendo ele de haters na internet).
Subitamente, tive vontade de atualizar a conta. Eu era relativamente ativa no Instagram e mesmo que não estivesse sentindo nenhum tipo de abstinência de rede social, ainda era algo que eu gostava.
Então sem pensar muito, preparei um post de carrossel com as minhas fotos favoritas dos meus últimos dois encontros com null e publiquei com uma legenda agradecendo a todas as mensagens de melhoras enviadas.
Quase no mesmo instante, uma onda de notificações chegou e algumas eram na minha DM. Curiosa como eu era e agoniada em não responder mensagens, resolvi dar uma espiada. Havia algumas marcações de null e mais mensagens de melhoras, mas teve uma coisa que chamou minha atenção nas solicitações de mensagens.
Não havia foto no perfil e eu não reconhecia aquele usuário, mas a primeira mensagem que havia sido enviada, cerca de uma semana depois do meu acidente, dizia:
"Você devia ter morrido naquele acidente, sua puta nerd idiota".
Um sorriso irônico apareceu no meu rosto e continuei a ler a enxurrada de ofensas que me foram enviadas.
"null se tornou um idiota depois que se envolveu com você".
Ah, agora a pessoa estava xingando null? Fã ou hater? Eis a questão.
Continuei a ler. Havia uma imagem minha e de null com riscos na minha cara que diziam:
"Morra, vadia."
Eu só conseguia imaginar que era a cara de uma adolescente revoltada porque não iria casar com o ídolo, mas então fiz a besteira de clicar em uma mensagem de vídeo com tela preta.
Assim que começou a rodar, descobri ser um vídeo de um pau. O cara estava com ele na mão, se masturbando, e imediatamente procurei o botão de fechar até que vi que havia uma legenda.
"Você deve estar trepando com ele de novo não é, sua puta? Que tal trepar comigo também, quero ver o que tem de especial nessa sua boceta pra amarrar null há três anos..."
Nojo.
Nojo.
Nojo.
Nojo.
Era só isso o que eu sentia. Imediatamente entendi que não era uma adolescente irritada e sim o stalker de null. Maldito obcecado. Eu deveria responder falando que o pau dele era feio e torto ou algo assim, e chamá-lo de nojento e todas as ofensas que eu conseguisse imaginar.
Falar que a mãe dele devia ter vergonha de ter colocado um traste que nem ele no mundo.
Mas antes que eu pudesse clicar em aceitar a solicitação de mensagem para responder, null apareceu no escritório como se fosse uma intervenção divina.
— Pensei em fazer kimbap, você quer?
— Claro. — Desviei meus olhos rapidamente pela tela, fechando a DM.
Mas devo ter parecido super desconfiada já que, um segundo depois, null estava ao meu lado.
— O que você tá fazendo? — ele perguntou, quando viu meu Instagram aberto. — Postou algo?
— Sim. Também te marquei em umas fotos, agradeci as mensagens de melhoras e... Li outras na DM.
— Hm... Posso ver?
— Por quê? É só um monte de "fique bem, null" dos seus fãs e fãs da Kate.
— Ah, é? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Deixa eu ver mesmo assim.
null...
— Eu sabia. Você tá escondendo alguma coisa, né? É o stalker?
Pisquei duas vezes.
— Como você sabe?
null. Me mostre agora — ele exigiu.
Suspirei, resignada, e cliquei na janela de mensagens. null pegou o mouse e leu uma a uma, travando a mandíbula de irritação a cada atrocidade com que se deparava. Então, ele viu o vídeo. Porque o idiota não fez nem questão de colocar como visualização única.
null... — Até tentei impedi-lo, mas desviei o olhar para o teto quando não consegui. Eu não queria ver aquela merda outra vez. Felizmente, não tinha som.
— Chega pra lá. — Ele me expulsou da cadeira.
— O que você vai fazer? Eu tenho que trabalhar.
— Você não estaria futricando o Instagram se tivesse algo pra fazer, meu bem — ele retrucou, enquanto começava a printar todas as mensagens que eu tinha recebido, e usar uma extensão no navegador para baixar o vídeo.
— Eca. Por que você tá baixando essa merda no meu computador?
— Pra usar como prova. Vou mandar pro meu e-mail e então encaminhar pro meu advogado. Achei que esse filho da puta tivesse parado de te encher. Quem ele pensa que é?
— Acho que ele é apaixonado por você, null.
— Que peninha, porque só tenho olhos pra uma mulher e definitivamente não curto paus.
O jeito que ele falou me fez rir pelo nariz, e ele me encarou com o cenho franzido.
— Desculpa. É que eu acho engraçado você agindo assim.
— Não tem graça, null. Eu quero esse idiota na cadeia. Ninguém mexe com você. E ele ainda insinuou fazer sexo com você! Ele quer morrer, isso sim! E ainda teve o resto das ofensas...
— Pensei em ofender ele de volta, mas aí você chegou. Achei que era um sinal de intervenção divina, mas agora tô na dúvida.
— Eu odeio quando te destratam. Você é minha mulher e é minha obrigação te defender de qualquer idiota — ele falou com convicção e eu quase chorei um pouquinho (não disse por onde) ao ouvi-lo me chamar de sua mulher.
Quer dizer... null e eu éramos praticamente casados há dois anos. A diferença era que não tínhamos preenchido nenhuma papelada idiota e tínhamos nossa próprias finanças separadas. Eu até achava melhor assim, embora sempre tivesse dito a null que só me casaria um dia se fosse com um homem rico.
Bem, null era um homem rico. Mas eu não queria me casar. Ao menos, achava que não. Eu ainda não tinha me lembrado de tudo, mas desde nosso encontro, coisinhas pequenas sobre a personalidade dele e sobre nosso relacionamento me vieram à mente.
Eu também tinha conseguido me manter na minha própria realidade desde então. E com isso, quero dizer que não voltei para Tenaz nenhuma vez desde a fatídica correção de cena em que Ayla era atacada.
Encarei isso como uma coisa boa. Eu havia ficado assustada pra cacete com aquilo e era bom não correr nenhum risco de ser atacada em um beco.
Especialmente quando eu mal saía de casa.
null terminou de enviar os arquivos e os deletou do meu computador (e da lixeira) rapidamente enquanto ainda resmungava.
— Tá tudo bem, null. É só um idiota. Espero que consigam localizar logo esse Zé Ruela de pau feio — comentei e null virou a cara para mim. — O quê? Era pra eu falar que é bonito?
null. Isso é sério.
— Por que você fica tão sexy quanto tá com raiva? E quando me chama de null? — brinquei, apoiando as mãos nos ombros dele e sentando em seu colo.
null... Você não devia estar trabalhando? — ele indagou, as duas mãos movendo direto para a minha bunda, por baixo do vestido que eu usava.
— Como você disse... eu não estaria futricando o Instagram se tivesse algo pra fazer... — Sorri, agradecendo mentalmente pelo meu rápido período de quatro dias que já tinha acabado graças ao anticoncepcional que o regulava.
null deu uma risadinha maliciosa e então se levantou comigo no colo, me colocando sobre a mesa. Ele afastou meu computador com cuidado e me fez deitar, com as costas sobre a mesa.
Em seguida, levantou meu vestido até a cintura e se livrou da minha calcinha — felizmente, não a destruindo dessa vez —, antes de abrir minhas pernas de uma vez só.
— Pensando bem... Acho que vou fazer um lanchinho antes do almoço.
Então ele se abaixou e me fez vez estrelas.

Capítulo 20

Passei o resto do dia com o corpo relaxado e um sorriso bobo no rosto.
Meu humor estava uma maravilha e nem as perguntas idiotas da estagiária durante a tarde conseguiram me tirar a paciência.
null null sabia como me agradar. E era generoso pra cacete. Mas eu também sou. E foi por isso que nossa pequena brincadeirinha durou mais tempo do que imaginávamos. Nos perdemos um no outro naquele escritório, e eu nunca mais veria aquela mesa ou aquele sofá de tecido marrom da mesma forma.
Depois que acabamos, tomamos um banho rápido e null foi para a cozinha fazer nosso almoço enquanto eu voltava ao trabalho. Eu ainda tinha que cumprir carga horária mesmo que não tivesse nada para fazer. Fiquei navegando na internet, lendo sinopses de livros novos, procurando algum para ler. Eu tinha dado uma pausa na série de fantasia que estava lendo e, mesmo faltando apenas dois livros para acabar, eu estava atrás de ler algo leve, um romance previsível que lembrasse filmes clássicos de comédia romântica que todo mundo sabe como termina.
Depois de escolher uma possível leitura nova, peguei um bloquinho de notas ao lado do computador e fiz uma lista de coisas que eu precisava fazer. Uma delas incluía fazer uma limpa no meu closet.
Por mais que eu achasse que algumas peças tinham valor emocional, não fazia sentido guardá-las quando nem cabiam mais em mim. Então eu doaria para alguém que precisasse e com certeza faria uso melhor do eu, que estava apenas amontoando peças de roupa sem dar nenhum uso para elas. Anotei sábado ou domingo ao lado dessa tarefa, e organizei a lista por ordem de prioridade.
Nesse meio tempo, fui atingida por mais uma memória com null. De repente, sem que eu esperasse ou tentasse lembrar de alguma coisa, a informação veio de uma vez.
Estávamos os dois dando um passeio no Central Park em um fim de tarde. null usava boné e máscara, e uma jaqueta preta com um lenço cinza enorme desamarrado ao redor do pescoço, o que escondia o pouco da tatuagem que ficava à mostra.
Era início de outubro e já começava a esfriar, então eu também estava um pouco agasalhada. Paramos em um food truck de sorvete e pedimos uma casquinha para cada um. Em um impulso, escolhi um sabor que parecia bonito e bom, mas no fim, acabei trocando pela casquinha clássica de chocolate que null optou. Ele balançou a cabeça, um sorriso querendo aparecer nos lábios, mas não reclamou pela troca. Na verdade, ele nem parecia se importar.
Estávamos completando seis meses juntos, então imediatamente eu soube que a memória era anterior a nossa discussão sobre Andrew que eu havia lembrado antes.
null terminou a casquinha antes de mim e eu, já satisfeita com o doce, o fiz finalizar a minha também. Não era a primeira vez que acontecia. Na verdade, era até frequente eu ver alguma comida, cobiçá-la, não conseguir comer tanto quando eu achava que iria, e fazer meu adorável e gentil namorado terminar de comer o resto. Se ainda tivesse espaço no estômago, null comia, mas depois de um tempo optamos por pedir pratos únicos em alguns restaurantes para dividir entre nós. Assim havia menos risco de desperdiçar comida e sempre podíamos pedir uma nova porção caso quiséssemos mais. Geralmente isso acontecia em restaurantes de comida asiática, que sempre tinham porções enormes para uma única pessoa.
Quando null terminou e jogou o último guardanapo no lixo, nos afastamos da barraquinha, e ele recolocou uma máscara quando tivemos que passar por um grupo de pessoas.
null a tirou novamente quando paramos em um local mais distante e quieto, longe de olhares curiosos, e então anunciou:
— Eu tenho uma coisa pra te dar.
— Achei que a gente tinha combinado nada de presentes — retruquei, meio incomodada por não ter nada para ele.
Eu nunca consegui aceitar presentes sem retribuir, com exceção do meu aniversário. Só que null tinha uma mania boba de me mimar. Eu não me importava muito quando se tratava de comida ou lanchinhos aleatórios que ele comprava a caminho de me ver em um rápido encontro antes de ter que se ausentar para algum compromisso, mas qualquer coisa além disso me fazia ficar inquieta.
Não havia muitos presentes que eu podia dar para ele, já que null tinha tudo. Frequentemente ganhava roupas, perfumes e sapatos de marcas caras que, mesmo eu tendo condições de comprar algumas delas, me recusava veemente a gastar uma pequena fortuna com uma peça que poderia ou não ter uma boa qualidade.
Eu já tinha visto Kate e Karol reclamarem à beça sobre marcas famosas que cobravam caro por um item completamente idiota e nada inovador apenas porque tinha o nome da marca. As duas sempre diziam que havia diversos fornecedores que vendiam as mesmas peças em marketplace por um preço muito menor.
Comprei muitas das minhas roupas nesses sites, depois de pegar várias dicas. Só havia uma marca que eu era fiel, cujo preço cabia no meu bolso: Double K, pertencente a elas duas. Como ambas eram exigentes, era certeza que os clientes teriam peças de ótima qualidade e exclusivas, a maioria desenhadas por Karol.
Eu havia dado uma jaqueta da Double K de presente para null uns meses apenas para descobrir que ele tinha a mesma jaqueta, mas de outra cor.
Então, sim, encontrar presentes para ele me deixava inquieta, por mais que ele deixasse claro que eu não precisava, tal como naquele momento.
— Tecnicamente, o presente é pra nós dois — ele explicou, antes de enfiar as duas mãos nos bolsos da jaqueta e retirar as duas fechadas em punho. — Adivinha em qual tá.
— Sério? Quantos anos você tem, null? — Ri pelo nariz.
— Faço vinte e nove no mês que vem — o idiota respondeu, como se minha pergunta não tivesse sido irônica ou ele não tivesse notado isso.
Mas se tinha uma coisa que null pegava no ar era sarcasmo, por mais que pudesse ser lento quanto a outros assuntos.
— Seu besta. É de comer? — perguntei, analisando seus punhos fechados, como se pudesse ganhar na loteria caso acertasse.
— Não.
Levantei meu olhos para encontrar os dele.
— Se eu errar, vai ter alguma punição?
— Não, mas talvez eu tenha uma, mesmo se você acertar.
O que ele tá planejando? Foi o que pensei, quando toquei em seu punho esquerdo.
— Que tal esse? — perguntei, curiosa.
No mesmo instante, null abriu a mão contrária, vazia e nós sorrimos juntos. Eu tinha acertado, mesmo sem ter ideia do que seria. Então, devagarinho, ele abriu a outra mão, revelando um par de alianças de compromisso.
Eu o encarei, surpresa, meu sorriso desaparecendo do rosto.
— Eu andei pensando e... Não sei, acho que seria legal a gente usar alguma coisa juntos... — ele começou a dizer, meio nervoso. — Mas se você não quiser, eu posso devolver. — Ele fechou a mão, prestes a guardar as alianças de volta no bolso.
Ambos sabíamos que ele não iria devolver. E de qualquer modo, eu não queria que ele fizesse isso. Então puxei sua mão de volta a meio caminho do bolso.
— Quem disse que eu não quero?
— Você ficou assustada. Parou até de sorrir.
— É claro que fiquei — admiti. — Não é todo dia que um cara aparece pra mim com alianças.
— É só de compromisso, null. Não é um pedido de casamento.
Só a palavra casamento me fazia estremecer. E ele já sabia disso, já que tínhamos conversado a respeito há algumas semanas.
— Tudo bem — comentei. — Já que não é um pedido de casamento.
— Bom saber que se fosse, você ia me rejeitar — ele brincou, mas havia um tom de mágoa na sua voz.
Segurei o rosto dele entre as mãos, o forçando a me encarar nos olhos.
— Retire já o que disse. Você sabe muito bem que minha aversão a casamento não tem nada a ver com você, null. Além disso, só faz seis meses que estamos juntos. Você nem pode ter certeza de que quer passar muito tempo comigo, que dirá termos uma vida juntos.
— Mas eu quero. Nunca senti isso por ninguém, null. Não faço ideia do porquê e às vezes é assustador, mas você ocupou oitenta por cento da minha mente nos últimos seis meses, e não consigo mais me imaginar longe de você.
— Você não acha meio precipitado, pensar assim?
— Por mim, nós já estaríamos morando juntos.
Caramba.
Tentei conter uma risada, mas não tive sucesso.
— Não achei que você fosse do tipo super apaixonado, null.
— Pois é, nem eu — ele admitiu. — Você pode nem sentir o mesmo, mas eu queria deixar claro que...
— Você é vidente?
— O quê?
— Consegue ler pensamentos?
null.
— E expressões corporais? O que a minha expressão corporal diz agora, null? — Encostei meu corpo contra o dele, as duas mãos em seus ombros.
Em seguida, fiquei na ponta dos pés, aproximando nossos rostos.
— Você parece muito alguém que quer ser beijada.
— Ah, é? E por que você não me beija, então? — Sorri contra seus lábios.
— Porque não posso te beijar aonde quero em público.
Abaixei os pés, quase perdendo o equilíbrio, e null riu baixinho.
null, por que você... Fica falando essas coisas?
— Talvez porque eu saiba que elas te deixam desconcertada. Faz seu rosto esquentar e você fica sem saber como responder. É fofo e sexy ao mesmo tempo. — Ele segurou meu rosto e acariciou uma bochecha, antes de se inclinar para murmurar no meu ouvido. — E eu amo quando a gente se perde um no outro e você chama meu nome quando eu te faço gozar. Te dar prazer é o meu novo hobby favorito.
Engoli em seco, sentindo a pele do pescoço arrepiar devido ao seu hálito quente, e um calor se acumulou no meio das minhas pernas.
Por que ele tinha que ser assim? Falar as coisas certas e... Que mais me deixavam sem jeito?
null... — chamei por seu nome, e quase pareceu uma prece.
— Eu te amo, null. Não sei exatamente desde quando, mas te amo. E quero que saiba que tô falando muito sério quando digo isso.
Respirei fundo, sentindo um frio na barriga e a respiração um pouco falha.
— Eu também amo você. Agora coloca logo essa aliança em mim, antes que você me faça chorar, seu besta. — Levantei a mão direita e olhei para cima, piscando rápido para afastar as lágrimas.
null riu baixinho e colocou a aliança no meu dedo, beijando minha mão em seguida, antes de eu pegar a dele e fazer o mesmo. Nos abraçamos e ficamos um tempo assim.
Bem ali, em meio a uma brisa fria e um parque quase deserto, foi como se tivéssemos feito uma promessa silenciosa um ao outro.
A lembrança se esvaiu e me vi outra vez no escritório, com lágrimas molhando o meu rosto. Eu não fazia ideia de porque estava chorando, mas então olhei para a aliança no meu dedo e chorei mais um pouco, depois de saber como ela tinha ido parar ali e quais os sentimentos que null tinha no momento em que a colocou em mim.
Que boba. Chorando por uma coisa dessas. Mas ao menos era uma coisa especial. Especial pra caramba. E eu não precisava ser um gênio para deduzir que poucos meses depois, null conseguiu me convencer a morar com ele.
Ele era uma raposa esperta. Sabia muito bem que eu não tinha interesse em casamento, mas arranjou um jeito da gente viver como se fôssemos casados. Quanto a isso, nunca fui contra. Não quando éramos estáveis financeiramente e nenhum dependia do outro. Eu sabia que dinheiro era o motivo do fim ou infelicidade de muitos relacionamentos, e era grata por nenhum de nós ter que se preocupar com isso.
Por eu não ter que me preocupar mais, depois de anos fazendo exatamente isso. Era como se minha vida estivesse quase completa, com exceção das memórias que eu ainda não havia conseguido recuperar.
A cada vez que eu lembrava de algo era como se eu tivesse resolvendo uma etapa de um cubo mágico. Às vezes, era como se eu soubesse o que fazer, mas estava escolhendo o lado ou segurando o cubo de forma errada.
Algumas lembranças eram tão aleatórias e curtas que eu ficava confusa e me perguntava se aquilo realmente tinha acontecido, assim como na primeira vez que lembrei de algo. Eu sempre recorria a null e descobri que algumas eram mesmo invenção da minha cabeça, embora a maioria não fosse.
Mas a lembrança das alianças foi clara como água e absolutamente certa, tanto quanto a vez que decorei como resolvia a parte branca de um cubo mágico. Foi automático. E deixou o meu coração quentinho e ansioso por mais. Eu não queria descobrir apenas como montar a parte branca do cubo e sim todas elas. Eu queria o cubo por inteiro. Queria todas as minhas lembranças com null intactas.
E mal podia esperar pela hora em que finalmente conseguiria recuperá-las.
Com as costas das mãos, sequei o rosto rapidamente e me levantei, respirando fundo por um instante antes de deixar o escritório.
Encontrei null começando a montar um kimbap e envolvi meus braços por seu tronco, espiando um pouquinho atrás dele enquanto ele espalhava os ingredientes cuidadosamente em cima da esteira de sushi.
Meu estômago escolheu aquele momento para roncar e null riu.
— Parece que alguém tá com fome — ele brincou.
— Morrendo — respondi.
Em seguida, procurei outra esteira de sushi em uma das gavetas de utensílios e comecei a ajudá-lo.

Capítulo 21

No dia seguinte, acordei com uma fresta de claridade entrando no quarto, mas ainda sem abrir os olhos, me aconcheguei mais a null, passando um braço ao redor de sua cintura como se ele fosse um travesseiro gigante.
Infelizmente, ele resolveu se espreguiçar naquele momento, tentando se desvencilhar de mim. Resmunguei baixinho, insatisfeita com a perturbação.
null, não. Fica mais. — Me agarrei a ele.
— Aiden? Que porra é essa, Ayla? — o ouvi dizer e imediatamente abri os olhos, finalmente percebendo o quarto diferente e um Dean, não null, um tanto irritado ao meu lado. — Tava sonhando com o seu ex enquanto dormia comigo?
Caramba, ele entendeu Aiden e não null. Aiden era o nome artístico de Seojun, o ex de Ayla.
— Eu não sonhei com o Seojun, Dean! Eu falei null, não Aiden.
— E quem é null? — Ele quis saber.
— Um personagem que tô desenvolvendo — respondi prontamente. — Baseado em você.
— O quê? Tá me zoando, Ayla?
— Não, eu tô falando sério. null null, um cantor de R&B conhecido no mundo todo, que namora uma agente literária que é fã dele depois de conhecê-la aleatoriamente em um bar.
Um sorriso levantou um dos cantos da boca de Dean. Eu não sabia se ele tava comprando ou não essa ideia, mas foi a primeira coisa que consegui pensar.
— Ah, é? E qual o plot do livro além deles se conhecerem em um bar?
Ah, que espertinho. Tentando me testar. Azar o dele que na minha realidade nós éramos null e null.
— O plot não é eles se conhecendo em um bar e sim que os dois namoram há três anos. Mas a agenda de null anda muito apertada e a null mal consegue ver ele.
— Agora parece com a sua história com o seu ex — ele acusou.
Verdade. Ayla e Seojun terminaram exatamente por isso.
— Mas é diferente. Eles não são como Seojun e eu. E eu ainda tô planejando. Pensei em sei lá, fazer ela ir parar em um universo alternativo, talvez dentro do livro favorito dela.
— Hm, certo... Se você diz — ele resmungou, obviamente não acreditando.
— Ei, o null é mesmo inspirado em você! Ele tem até a mesma tatuagem!
— Tirando o fato de que eu odiaria a exposição que envolve ser uma celebridade. Mas tudo bem, se você diz... — ele repetiu. — Vou fazer o café da manhã, aproveita pra dormir mais um pouco — acrescentou, beijando meu rosto rapidamente.
Observei Dean andar pelo quarto só de cueca até sair em direção à cozinha e em seguida, me acomodei novamente na cama para mais um cochilo.
No instante em que abri os olhos novamente, me vi em pé no campus da universidade, com o celular na mão, e avistei Dean sentado em uma das mesinhas que ele e Ayla costumavam se encontrar às vezes.
Ah, não.
Era a cena de término. A história pulou alguns dias, inclusive a noite em que Seojun dormia no apartamento de Ayla; todo mundo tinha se revezado para não deixar ela sozinha, ao menos nos primeiros dias. Mas isso foi uma narração relativamente rápida que Kate fez no livro, provavelmente usando Seojun apenas para deixar Dean mais inseguro, pensando que Ayla estaria mais segura com o ex do que com ele, levando em conta que o ataque dela tinha sido premeditado pelo pai dele.
Aquele velho metido a besta! Ele vivia dando um jeito de se intrometer na vida de Dean e ao invés de aceitar o filho e o trabalho como compositor dele, o nojento só o atacava com palavras, o desprezando em qualquer oportunidade que tivesse, e mesmo assim queria que Dean fosse seu sucessor, por ser filho único.
Um idiota. Como se Dean fosse querer isso. E eu sabia que ele havia inventado que Ayla era namorada de Zico e não dele. Zico era filho caçula de Nicholas Woo e não era qualquer um que tinha coragem de mexer com ele. Não que ele fosse um criminoso como James, o pai de Dean, muito pelo contrário. Mas o Sr. Woo era poderoso. E completamente pacífico se não houvesse nenhuma ameaça.
De um jeito ou de outro, Dean já havia tomado uma decisão. Mesmo que fosse uma decisão muito burra.
Por conta da insegurança que sentia, as ameaças do pai mais o medo de rejeição de Ayla se descobrisse sobre seus problemas do passado — inclusive que o pai dele tinha mandado matar o pai dela —, ele achou que se afastar seria a melhor opção.
Mal sabia ele que Ayla já estava ciente de tudo, exceto das ameaças.
Andei até ele e me sentei no banquinho, ainda ciente de que eu tinha o controle sobre o corpo de Ayla.
— Sobre o que quer conversar? — perguntei, em um tom neutro.
— Então... Eu andei pensando e... Acho que a gente devia terminar.
— O quê? — Franzi o cenho, tentando fingir surpresa. — Por quê?
Caramba, eu era uma péssima atriz.
— Acho que isso já foi longe demais, Ayla.
— Como assim, Dean? — Tentei me lembrar dos diálogos daquela cena. — A gente tava bem até ontem... Você acordou e resolveu que não quer mais?
Tá, não era bem isso que a Ayla falava, mas eu tentei. Àquela altura, eu só queria que ela assumisse o controle. Felizmente, aconteceu pouco depois e imediatamente eu senti a mudança de humor me atingir. Uma tristeza e mágoa repentina, um frio na barriga de ansiedade que não era nem de longe bom.
Era como se eu tivesse tomado um banho de água fria. Meus olhos arderam e, de repente, era como se null estivesse na minha frente terminando comigo, por mais que eu soubesse que era apenas Dean seguindo o roteiro que Kate havia escrito.
— O que eu quero dizer... É que nós não deveríamos ter passado daquela noite, Ayla. Foi um erro me envolver com você — ele disse e eu o encarei, confusa.
Senti uma lágrima escorrer pelo rosto e desviei o olhar por um instante.
— Quer dizer que esses meses... Não significaram nada pra você? — Me ouvi perguntar, com a voz falha. Aquela era Ayla falando e eram os sentimentos dela que eu estava sentindo, mas era tão real que eu só conseguia me sentir duas vezes mais triste, como se estivesse acontecendo comigo.
— Não, Ayla... — Dean suspirou. — É claro que significou alguma coisa, mas... Eu não posso mais continuar com isso. Sinto muito.
— Ah, você sente muito? — perguntei, irônica. — O que vai dizer agora, Dean? Que o problema é você e não eu?
— Eu acho que nós deveríamos... Ter continuado apenas como amigos desde o início...
Coloquei uma mão na boca e respirei fundo, tentando me acalmar. Aquela era Ayla agindo, mas poderia facilmente ser eu. Sequei as lágrimas que caíram, eu/ela evitando chorar na frente dele, embora já estivesse acontecendo.
— Quer saber, Dean? — Eu ri, sem humor, e o encarei novamente. — Você é muito fodido, sabia? Se não queria um relacionamento, então que terminasse logo o que nós tínhamos. Ah, você não está pronto ainda? Que piada... Você estava perfeitamente bem dois dias atrás. Mas se quer que seja assim... — Me levantei, pronta para ir embora.
— Ayla... — Ele tentou segurar minha mão, mas eu o afastei bruscamente.
— Ayla é o caralho. Vai pro inferno, Dean.
E saí de lá.
Passei por Zico e Karina em um borrão e escutei minha amiga vir atrás de mim. No instante seguinte, eu estava com ela e Tiana em uma sala, acho que o escritório de Tiana, enquanto Karina xingava Dean com todos os palavrões que conhecia.
Eu ainda estava um caco junto com Ayla, sentindo a dor de uma rejeição que nem era minha. Não conseguia nem sequer imaginar uma possibilidade de me afastar de null, considerando tudo o que nós tínhamos vivido juntos. Ainda mais depois de lembrar de mais coisas sobre nós, ainda que minhas memórias não tivessem retornado completamente.
Ele era como meu porto seguro. O amor que eu nunca tinha ousado sonhar em ter. Minha alma gêmea. Meu parceiro em tudo, e a pessoa que mais me apoiava. Pensar em ficar sem null era como pensar em arrancar um pedaço de mim mesma, do meu próprio coração.
E eu nunca fui uma pessoa muito afetuosa. Sempre tive uma queda por coisas esotéricas, mas era mais diversão. Eu achava divertido pensar que poderia existir alguém feito para mim por aí, mas nunca pensei que fosse realmente encontrar essa pessoa. Que me aceitava com todas as minhas maluquices, impaciência constante, sem contar os surtos. Alguém que se importava mais do que meus próprios pais fizeram um dia. Alguém que faria de tudo para me proteger.
Sempre que eu pensava em null, uma pulga atrás da minha orelha se instalava e eu me perguntava o que eu tinha feito para merecer ele.
Eu não me sentia emocionalmente dependente de null e era completamente contra depender de alguém por qualquer motivo que fosse, mas certamente uma parte de mim morreria se um dia ele saísse da minha vida.
Respirei fundo, tentando me acalmar, mas infelizmente Ayla ainda estava no comando. Fechei os olhos e então senti meus ombros serem sacudidos bruscamente.
Abri os olhos, assustada. Então me deparei com null, não Dean, me encarando com um olhar cheio de preocupação.
Eu estava de volta a minha realidade, no meu próprio quarto.
E null parecia prestes a surtar.
null, graças a Deus. — Ele me envolveu em um abraço forte, angustiado. — Por um momento, achei que você não fosse acordar mais.
Espera... O quê?
Do que diabos ele estava falando?

Capítulo 22

Me sentei na cama rapidamente, alarmada com a reação dele.
null, o que aconteceu? Eu tava dormindo.
— Você não acordava, Lexi! — Ele me encarou, assustado. — Achei que estivesse cansada, então te deixei dormindo e fui pro estúdio. Fiquei algumas horas trancado lá e pensei que você já tivesse acordado, mas não. Eu comecei a ficar com medo porque te chamei e você não acordou. Aí você começou a chorar enquanto dormia.
— O quê? — Passei a mão no rosto, notando a pele ainda molhada.
— Imaginei que você tivesse tendo um pesadelo ou um episódio de terror noturno e não conseguia acordar, então comecei a te sacudir. Fiquei uns cinco minutos tentando e nada, eu juro que já tava pra ter um treco, Lexi. Você ficou inconsciente por dezesseis horas.
— Dezesseis? Mas... Como?
— Eu não sei. Mas me lembrou quando você tava inconsciente no hospital depois de acidente, e não foi nada legal. Não me assuste assim de novo!
Como se eu tivesse escolha, quase falei.
— Eu não faço ideia do que aconteceu.
— Você teve um pesadelo?
— Não. Nem lembro o que foi que me fez chorar — menti, sem olhar para ele.
Se null me olhasse nos olhos, saberia que eu estava mentindo.
— Certo, você deve estar com fome. E tá mais do que na hora de comer, já que você pulou duas refeições.
— Que horas são?
— Quatro da tarde.
— Ah. Caramba, eu dormi mesmo. — E null estava certo, eu nunca tinha passado de oito horas de sono. Normalmente eu dormia só umas seis. — Vou tomar um banho antes e escovar os dentes — anunciei, já me levantando.
No entanto, senti a visão escurecer e cambaleei, caindo sentada na cama.
— Lexi? O que foi? Tá sentindo alguma coisa?
— Foi só uma tontura, acho que levantei rápido. Também deve ser por fome também. Tô meio enjoada.
— Você deve estar com hipoglicemia. Quer que eu te ajude no banho?
— Não precisa, já tá passando.
— Tudo bem, dê um grito se precisar de ajuda, e deixe a porta aberta.
Assenti e me levantei novamente, indo até o closet para pegar algumas roupas. Ou melhor, uma calcinha e outra camisola, já que não ia sair de casa de qualquer jeito. Fui até o banheiro e resolvi usar a banheira para relaxar um pouco. Enquanto esperava ela encher, prendi o cabelo e me despi. Em seguida, observei meu próprio reflexo no espelho de corpo inteiro que tínhamos ali e notei que a marca do arranhão no meu braço estava quase desaparecendo.
Além disso, não havia nada de anormal em meu corpo. Eu me sentia levemente enjoada — provavelmente de fome — e, antes de entrar na banheira, dissolvi alguns sais de banho com fragrâncias cítricas para me ajudar com a náusea.
A água estava morna e relaxante, e eu me deixei afundar até o pescoço, encostando a cabeça na beira da banheira. Fechei os olhos por um instante, aproveitando o banho, mas devo ter adormecido outra vez, já que mais uma vez me vi parada em um estacionamento vazio, que eu não tinha ideia de onde ficava, com a coisa de olhos prateados na forma de Ayla me encarando outra vez.
— Tome cuidado — ela disse, sua voz igual à minha. — Não tente mudar o destino outra vez.
Fiz uma careta ao ouvir aquilo.
— Eu não tentei mudar o destino. Tá falando da cena que eu falei do meu namorado pro Dean? Aquela cena da gente acordando na cama nem existe no livro. Não tem como eu mudar algo que não existe.
— Você não está olhando para o lugar certo, null null. Você tem que lembrar daquilo que é importante.
— O quê? Do que você tá falando? — perguntei, sem entender.
O que eu tô esquecendo sobre Tenaz?
— Não é com Tenaz que você deve se preocupar, mas com você mesma. O tempo está acabando. Lembre daquilo que é importante.
— Olha, amiga, eu não faço ideia do que porra você tá falando. E não faço ideia do que coisa ou entidade você é. E eu odeio enigmas! Me explica logo o que quer dizer e para de agir feito doida!
Em um piscar de olhos, ela estava a minha frente, com uma mão em volta do meu pescoço, o apertando com força.
— Não me desrespeite, garota — sibilou, irritada. — Preste atenção nas coisas e use a cabeça para pensar. Eu não posso te dizer tudo. Você tem que descobrir sozinha. Não esqueça, null null, aquilo que é importante deve ser lembrado e o destino jamais ser alterado. A história vai continuar se repetindo se você não agir de forma diferente.
Travei a mandíbula, irritada também, e a empurrei para longe de mim.
— Quem você pensa que é pra me agarrar pelo pescoço, sua coisa medonha? Sai da minha cabeça e me deixa em paz! Eu tô cansada dessa merda sem sentido de terror noturno!
A coisa então riu, como se achasse realmente engraçado o que eu tinha acabado de falar. Subitamente, senti um arrepio de medo.
— Terror será o que você irá passar mais vezes se não aproveitar a chance que está sendo te dada. A história que tem sempre o mesmo final continuará a ser repetir se você não agir diferente.
— Mas que porra?! Você me disse pra não agir diferente e agora tá me dizendo pra agir? Eu segui o roteiro de Tenaz, as cenas que tinham que acontecer já aconteceram!
— Há mais de uma realidade com que você deve se preocupar. Faça aquilo que precisa ser feito. Existe mais de um roteiro, mas o final que realmente importa pode ser diferente a depender das suas escolhas. O destino não pode ser mudado, mas o seu final sim.
Então eu acordei, ainda no banheiro. Considerando que null ainda não tinha aparecido surtando, supus que dormi por uns cinco minutos. Eu não fazia ideia de por que estava com tanto sono, mas me recusava a dormir outra vez. Joguei água no rosto e terminei de me banhar.
Quando eu estava trocando de roupa, null bateu na porta, mas não entrou.
— Lexi, a comida chegou. Você tá bem?
— Sim, quase acabando.
Terminei de me vestir e me perfumei um pouco antes de sair, agora não mais enjoada ou tonta. Viva as fragrâncias cítricas. Eu havia aprendido aquele truque com Kate. Durante a faculdade, uma professora ensinou essa dica à turma dela, muito usada para ajudar gestantes com enjoos matinais. Mas a própria Kate usava para qualquer ocasião em que ficasse enjoada, e acabei fazendo o mesmo quando percebi que funcionava.
Saí do banheiro e encontrei null na cozinha, tirando embalagens de comidinhas de padaria, além de um banquete coreano que me deu água na boca assim que vi. No entanto, ainda não era hora do jantar, então me contentei em fazer um lanche, por ora.
Tentei não pensar muito no que aquela pseudo Ayla — ou o que quer que fosse aquela coisa — falou, mas não teve muito jeito. Nem mesmo os pastéis de nata que null tinha comprado me distraíram daquele enigma idiota. E eu odiava enigmas por um único motivo: eles não saíam da minha cabeça enquanto não fossem resolvidos.
Tipo quando eu aprendi a montar um cubo mágico. Não sosseguei enquanto não decorei todas as etapas e eu até tinha um em algum lugar, que montava e desmontava ocasionalmente quando precisava pensar em alguma coisa.
Talvez eu devesse retomar esse hábito para tentar pensar melhor no que a coisa tinha me dito.
Se eu fosse a protagonista de um livro, o que eu faria?
Eu tinha lido alguns livros e assistido a alguns doramas com universos paralelos e volta no tempo, mas parecia que nenhuma informação acumulada dessas obras estava me ajudando. Eu não estava presa em um universo diferente, ao menos achava que não. Isso até dormir por dezesseis horas seguidas sendo que nem houve muito acontecimento em Tenaz, o que me levava a acreditar que eu talvez tivesse sonhado com outra coisa da qual não estava lembrando.
Era como se tivesse alguma coisa faltando.
No entanto, esse sentimento não era desconhecido por mim desde o acidente. A sensação de algo esquecido me perseguia diariamente pelo fato de eu realmente não lembrar de várias coisas importantes. Mas será que a coisa em forma de Ayla se referia a isso? Pelo modo como falava, fazia parecer que eu estava tentando mudar a história e brigava comigo, mas então me falava para fazer exatamente isso? Eu não estava entendendo mais nada.
Que destino era esse que ela tanto falava? E o final?
Se era em relação a Tenaz, eu não conseguia compreender a que ela se referia, e se era em relação a mim, então, muito menos. Eu nem sabia porque aquilo andava acontecendo desde o acidente e, cientificamente falando, poderia muito bem ser algum tipo de delírio, mas tudo parecia real demais. Além disso, não era como se eu tivesse tendo comportamentos estranhos, ao menos não quando estava acordada.
Eu era só uma mulher normal, com uma vida normal, tirando o fato de namorar meu cantor favorito há três anos. null era a única coisa fora da caixinha da minha vida, e junto com o meu trabalho, a mais constante.
Mas eu era só uma mulher de vinte e oito anos com amnésia temporária e viciada em livros. Não havia nada de especial em mim, então como eu ia descobrir do que diabos aquela doida tava falando?
Suspirei, meio irritada, o que chamou a atenção de null, que ainda saboreava um pastelzinho de nata ao meu lado.
— O que houve? Tá sentindo alguma coisa?
— Nada, só irritada com uma coisa.
— O quê?
— Não lembrar do que eu preciso lembrar. Seja lá o que for isso. Sonhei com alguém falando isso pra mim.
— E quem te disse isso no sonho?
— Hmm... Ela tinha a aparência de Ayla. Mas foi só um sonho idiota. — Dei de ombros, tentando não dar muita importância. Ou fazer com que ele achasse isso, mas a expressão no rosto de null era completamente séria, então acabei cedendo após um suspiro resignado. — Ela falou algo sobre destino. Que não posso mudar ele, mas posso mudar o final. Não faço ideia do que seja.
— Tem certeza de que tá bem, Lexi?
— Perfeitamente. Você não precisa me tratar como se eu fosse de cristal, null. Eu não tô mentalmente doente só porque a pancada na cabeça me deu amnésia seletiva.
Ou pelo menos era o que eu esperava.
— Cuja única seleção fui eu — ele lembrou, magoado. — Às vezes me pergunto se seria bom ou ruim você não se lembrar do resto, Lexi. Mas acho que isso não parece importar muito pra você desde que não afete sua vida. Que se dane o resto, né? — Ele se levantou, com o prato vazio em mãos.
Franzi o cenho, confusa com aquela súbita fala.
— Ei, o que é isso? É claro que eu quero me lembrar de você, null. Já lembrei bastante, mas quero lembrar de tudo. Eu te amo e quero qualquer pedacinho seu que haja escondido na minha memória. Por que você falou isso de repente? É óbvio que você importa.
— Talvez eu não importe tanto assim quando você lembrar de tudo.
— Como assim? — Me levantei também e parei atrás dele. — null, olha pra mim.
Ele não saiu do lugar. Seus ombros estavam rígidos, o corpo completamente tenso.
— Lexi, não.
— Não, o quê? Do que você não quer que eu lembre? — O puxei pelo ombro, o forçando a se virar. Havia dor e culpa em seus olhos. — Você fez alguma coisa?
— Lexi...
Dei um passo para trás, me sentindo angustiada de repente, tal como Ayla quando Dean terminou com ela. Juntei coragem e enfim perguntei o que rondava na minha mente.
— Você... Me traiu, null?
— O quê? Não! — Ele franziu o cenho, me encarando como se tivesse ouvido o maior dos absurdos. — De onde você tirou isso, Lexi?! Eu nunca te trairia.
Uma onda de alívio me atingiu e suspirei, assentindo.
— Se não é isso, então o que é?
— Lembranças ruins.
— Lembranças ruins fazem parte. Você acha mesmo que gostei de lembrar de algumas das nossas brigas? Óbvio que não, null! Mas faz parte da nossa história e de quem nós somos. Você não precisava ficar chateado. Nós estávamos bem antes do acidente. E vamos continuar bem depois que todas as minhas memórias voltarem.
— Você promete?
— Preciso prometer?
— Lexi...
— Tá, então. Prometo. — Dei um passo à frente e segurei o rosto dele entre as mãos. — Agora pare de surtar porque de gente doida aqui já basta eu. Você é a pessoa sensata dessa casa.
null riu pelo nariz, sem querer. Me senti mais uma vez aliviada, como se um peso tivesse sido tirado dos meus ombros.
— Por que você é assim? — ele perguntou, colocando uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
— Assim como?
— Me fazendo rir no meio de uma discussão.
— Não é uma discussão, é só uma conversa. E você se esqueceu disso? — Levantei a mão direita dele e a minha própria, exibindo nossas alianças. — Não somos casados, mas você amarrou nós dois no dia em que colocou isso no meu dedo. E deu um nó bem apertado no dia que conseguiu me convencer a vir morar com você. Então pare de ser doido.
null me deu um sorriso pequeno, meio tímido, então envolveu meu rosto com as mãos.
— Eu desejo que você não mude nunca, Lexi — ele murmurou, encostando a testa na minha. — E que o que temos também não mude, a não ser que seja pra nos fortalecer ainda mais, amor.
— Seu desejo é uma ordem — brinquei, ficando na ponta dos pés para selar nossos lábios em um beijo.
null passou os braços ao redor da minha cintura e aprofundou o beijo com sabor de pastel de nata. O pensamento quase me fez rir. Então, de repente, como se uma luzinha tivesse se acendido acima da minha cabeça, eu lembrei de uma coisa.
Kate tinha uma amiga que lia tarô.
Talvez devêssemos fazer uma visitinha a ela.

Capítulo 23

Três dias depois, eu estava me preparando para sair com Kate e null para uma visitinha a uma taróloga/xamã que atendia em Korea Town, quando null perguntou:
— Aonde vocês vão mesmo?
— Ter um compromisso de meninas. Faz um tempo que saímos e hoje é a folga de null, então Kate e eu vamos arrastá-la também.
Ele não precisava saber sobre o tarô. Não era como se eu tivesse garantia de que fosse me ajudar com alguma coisa, mas não custava tentar.
— Tipo um dia de SPA? — ele tentou adivinhar. — Vocês deviam ter um pra relaxar um pouco, eu pago.
— Que gentileza, e agradeço. Mas hoje não. Vamos fazer uma visitinha em Korea Town. Kate quer dar uma olhada em umas coisas pro próximo livro — falei, enquanto guardava o celular na bolsa. — Ela vai passar aqui pra me pegar e vamos encontrar null lá, então não se preocupe.
— Tá, tudo bem. Me avisa se precisar de alguma coisa. Vou trabalhar um pouco enquanto isso.
É claro que vai. Quando não precisava sair de casa e tinha tempo livre, null o gastava se enfurnando no estúdio quando eu também estava trabalhando.
— Tá bom. Até logo. — Me despedi dele com um beijo.
Minutos depois, entrei no carro de Kate. Ela usava um óculos escuro chique de armação quadrada e seu cabelo castanho com mechas coloridas em rosa pastel estava levemente ondulado.
Como escritora, Kate mal saía de casa, a não ser que tivesse algum compromisso. Então se arrumava sempre que podia para gastar as roupas que comprava impulsivamente às vezes. E ser uma pessoa pública e esposa de um astro do rock super conhecido também era mais um motivo para se manter apresentável. Ela nunca sabia quando podia encontrar leitores ou algum paparazzi por aí, mas, no segundo caso, felizmente não acontecia muito quando ela estava sozinha.
Naquele dia, ela tinha escolhido um vestido midi floral branco de alcinha que ia até sua panturrilha e, nos pés, uma sandália simples de tiras, sem salto.
Eu havia me contentado com um short jeans azul e uma camiseta cropped branca bem básica da Double K, e um par de All Star vermelho. A única coisa que passei na cara foi um lip tint, que ainda usei de blush e sombra.
— Caramba, quanta arrumação. Vai a uma festa? — brinquei, assim que a vi.
— E você? Planeja turistar em Korea Town? Você penteou o cabelo hoje, null?
— Ainda não. — Pisquei os olhos, batendo os cílios exageradamente, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. Eu o tinha prendido em um coque com um elástico e estava mais que suficiente. — Mas ninguém vai reparar em mim quando você tá vestida assim, que nem menininha.
Kate sorriu e balançou a cabeça, finalmente dando a partida no carro.
— Korea Town, aí vamos nós.

***


Encontramos null algum tempo depois, do lado de fora do estúdio da Xamã.
— Tem certeza de que não era a Ayla? — Kate perguntou. — Você não assistiu nada que fizesse o seu subconsciente criar essas imagens?
— A menos que a Ayla seja secretamente uma entidade bizarra de olhos prateados, sim. Tenho certeza, Kate. E não, não assisti nada. Mas como eu disse antes, não faço ideia do que ela tava falando, então a intenção é que essa mulher nos ajude a descobrir.
— E se ela for uma charlatã? — null perguntou. — Você vai só gastar seu dinheiro à toa.
— É isso ou quebrar a cabeça sozinha. E eu sei que vocês não acreditam cem por cento no que falei e acham que esses sonhos são só um reflexo do meu acidente, mas obrigada por me acompanharem mesmo assim.
— Você sabe que eu acredito nessas coisas também — as duas falaram ao mesmo tempo e se encararam, surpresas.
— Perfeito. — Sorri e puxei as duas para entrarmos no estúdio.
O lugar era relativamente simples, mas moderno e acolhedor. Uma atendente que não devia ter mais que vinte anos confirmou nosso agendamento e pediu para que aguardássemos na sala de espera por alguns minutos.
— Tem certeza de que ela é boa, Kate? Onde você disse que a conheceu mesmo? — null perguntou.
— Ela é uma leitora — Kate disse. — Me deu o cartão durante uma sessão de autógrafos e me ofereceu uma leitura grátis, mas eu nunca vim aqui antes.
— E eu achando que vocês já eram amiguinhas — comentei. — Tomara que ela seja boa mesmo.
Menos de cinco minutos depois, a atendente voltou e nos guiou até a salinha onde a taróloga/xamã atendia. Seu nome era Sujin e ela tinha um longo cabelo vermelho, um pouco mais claro que o meu. O estúdio parecia com um daqueles que se vê em doramas coreanos, mas ela não estava vestida com roupas tradicionais.
Na verdade, Sujin estava vestida casualmente, como nós, e não devia ter mais que trinta anos. Ela abriu um sorriso para Kate assim que a viu.
— Olá, meu nome é Sujin, sejam bem-vindas. Fleur, é bom te ver aqui. — Ela disse à Kate, chamando-a pelo pseudônimo. — Quem vai fazer a leitura primeiro?
— Na verdade, só ela. — Kate apontou para mim. — Essa é minha agente, null, e ela veio aqui para uma leitura de tarô porque anda tendo uns sonhos estranhos com algum tipo de entidade.
— Entidade, é? — Sujin me encarou, curiosa. — Me conte mais sobre isso.
Respirei fundo e detalhei o mesmo que contei para Kate e null quando decidi que queria procurar a taróloga. Sujin ouviu em silêncio, assentindo algumas vezes e, quando acabei, ela começou a embaralhar as cartas.
— Pelo que você me disse, talvez esteja enfrentando algum tipo de karma. Algo que vem se repetindo por várias vidas. O espírito está tentando te orientar a fazer o certo.
— Aquela coisa assustadora e temperamental?
— Alguns espíritos são impacientes. Mas vamos ver o que as cartas dizem. Aqui, se concentre na sua pergunta e escolha três cartas usando a mão direita. — Ela abriu o baralho em um leque em cima da mesa.
— O que eu tenho que descobrir? Quero saber se aquele espírito falou de algum karma e que karma é esse.
Retirei as cartas, sem a mínima noção se estava fazendo algo certo, mas acho que estava tudo bem, já que Sujin não disse nada. Ela virou as cartas escolhidas e as analisou por um instante.
— Parece mesmo um karma. Há uma maldição que te persegue. Meus espíritos guias me dizem que esse ciclo vem se repetindo há muito tempo.
— Uma maldição? Que tipo de maldição? — perguntei, trocando um olhar com Kate e minha irmã, que também pareciam surpresas.
Sujin puxou mais uma carta do baralho.
— Aparentemente, você foi feliz por muitas vezes, mas em todas as suas vidas, essa felicidade foi arrancada de você. Havia um homem envolvido. — Ela puxou outra carta e fechou os olhos por alguns segundos, antes de continuar. Provavelmente ouvindo os tais espíritos guias. — Um homem comprometido se apaixonou por você e você por ele. Ele era um cliente.
— Um cliente de quê? — perguntei, confusa.
— Seu. Meus espíritos sugerem que você era uma cortesã e vocês já se conheciam antes do casamento dele. Um casamento arranjado desde a infância, com uma mulher que ele nunca amou ou dividiu a cama. A maldição foi jogada por uma esposa enraivecida, cheia de despeito pelo orgulho ferido. Por sua causa, ela nunca teve o marido que queria e sonhava.
— Mas o que é essa maldição? E continua acontecendo? Como eu quebro isso? Era sobre isso que a coisa do meu sonho falava?
— Um momento — Sujin pediu, levantando a mão.
— Certo — respondi, meio inquieta.
De olhos fechados, seu braço pairou sobre as cartas e ela escolheu uma. Então abriu os olhos e, olhando para frente, ela continuou:
— Um casal apaixonado foi amaldiçoado por uma esposa magoada. Havia uma criança que não vingou, sua e dele. Ela foi morta antes de ter a chance de viver. Lembranças foram esquecidas, e a mulher que rogou a maldição disse que não importa quantas vezes você e ele se encontrassem, a morte os perseguiria de um jeito ou de outro, acabando com toda a felicidade — ela disse, me fazendo arrepiar a cada palavra. — Para que a maldição seja quebrada, escolhas devem ser feitas. Você deve enfrentar seus próprios demônios, aceitar o que aconteceu e quem você é. Lembrar do que é preciso, escolher o que é preciso. Até o seu lado obscuro pode brilhar desde que você aceite a realidade. Suas escolhas influenciam no resultado final. Há um destino selado, mas a maldição o atrapalha. Faça escolhas sábias. Uma vez que você aceite, aquilo que é pra ser, será, como o universo declarou antes da maldição ser instalada.
Sujin então piscou e seus olhos ganharam foco mais uma vez. Eu sentia os olhos ardendo enquanto ainda absorvia cada palavra. Eu estava em choque, ainda um pouco confusa, e definitivamente nem um pouco menos inquieta.
— Meu namorado atual é esse homem? — perguntei, com a voz falha, e senti Kate e null segurarem minhas mãos.
— Sim, ao que tudo indica. Você é feliz com ele, mas uma catástrofe aconteceu e outra pode acontecer se você não escolher bem.
— Eu sofri um acidente há pouco mais de um mês. Perdi minhas lembranças dele. Recuperei algumas, mas não tudo.
Era muita coisa batendo para ser uma simples coincidência. Fiquei assustada e, aparentemente, Kate e null também, a julgar pelas expressões em seus rostos enquanto ouviam as palavras da Xamã.
— Pode ser um sinal de que está acontecendo novamente — Sujin respondeu. — Essa mulher provavelmente reencarnou também para fazer mal a vocês dois. Diferente de vocês, a identidade dela é obscura. Não consigo ver se é homem ou mulher, mas ela já te provocou mal. Talvez no acidente.
— Um cara me atropelou e fugiu. Você acha que pode ser a reencarnação dessa mulher?
— Talvez. Ela pode escolher não agir com as próprias mãos também. É só isso que consigo te dizer — Sujin concluiu. — Te desejo sabedoria para enfrentar as dificuldades, null. A entidade estava falando de você também, e não apenas do livro.
Saímos de lá alguns minutos depois e, embora eu parecesse tranquila por fora, eu estava um caco por dentro. Kate e null também estavam sérias e pensativas e não conversamos muito até chegarmos ao restaurante que escolhemos para almoçar.
— Você sabe que pode contar com a gente, não é, null? — Minha irmã perguntou, colocando uma mão no meu ombro.
— Conte tudo pra gente, inclusive se você sonhar de novo com a Ayla macabra — Kate acrescentou. — Eu sei que você não quer contar essas coisas pro null pra ele não surtar, mas nós podemos te ouvir. E vamos torcer para que tudo dê certo. E que você se lembre do que precisa.
Sim, de novo aquela frase. Lembrar do que eu preciso. Mesmo sem ter ideia do quê.
Suspirei, me sentindo emocionalmente cansada. Sempre me perguntei se merecia a felicidade que tinha. O namorado dos sonhos, o emprego dos sonhos, até a conta bancária dos sonhos... Mas a possibilidade de ter essa felicidade arrancada de mim me apavorava.
Secretamente, orei por proteção, sabedoria e entendimento. Eu não tinha nenhuma religião, mas acreditava em Deus e pedi silenciosamente para que Ele me guiasse pelo caminho certo.
Que assim fosse.

Capítulo 24

Depois de um almoço entre amigas, consegui esquecer um pouquinho do meu surto interno ao ficar distraída com conversas aleatórias sobre o cara que null estava saindo — ainda o loiro bonitão chamado Garrett. Algumas papilas gustativas destruídas pela comida apimentada do restaurante também me ajudaram a tirar o foco da maldição para "eu deveria estar fazendo isso com meu próprio estômago?", enquanto cogitava se uma tigela de Jjamppong em pleno almoço de quarta-feira tinha sido uma boa ideia.
Quem almoçava sopa?
Ah, é. Pelo visto, eu.
Depois do almoço, nos separamos e voltei para casa sozinha de táxi, cogitando durante todo o caminho se eu deveria apenas voltar ao trabalho para me distrair. Quando entrei em casa, tudo estava em perfeito silêncio, então supus que null provavelmente ainda estava trancado no estúdio.
Enviei uma mensagem para ele avisando que estava em casa e me certificando se ele tinha se alimentado, e recebi uma resposta positiva pouco depois. Me livrei dos tênis no meu closet e andei descalça até o escritório.
Liguei o computador e acessei minha agenda virtual. Não tinha o que fazer naquele dia, já que eu tinha adiantado o trabalho no dia anterior para tirar folga, mas mesmo assim me vi encarando a planilha quadriculada e rolei as páginas aleatoriamente olhando o que eu tinha anotado antes do acidente.
Havia uma parte cheia de estrelinhas na data do meu aniversário de três anos com null e, antes disso, várias coisinhas que eu estava planejando em relação à data, como o que vestir, quando lembrar de fazer uma reserva no restaurante, entre outros.
Também descobri que alguns dias antes de null voltar de viagem tive uma consulta com a minha ginecologista. Franzi o cenho, sem lembrar daquilo. Imaginei que fosse alguma coisa relacionada ao anticoncepcional que eu estava tomando ou, não sei, algum efeito colateral que tivesse me assustado. Não era incomum eu aparecer no consultório da Dra. Maria, mas o fato de não lembrar me levava a crer que tinha alguma relação com meu controle de natalidade, já que acordei no hospital achando que estava solteira e descobri que tinha um relacionamento de três anos cujas lembranças se apagaram da minha memória.
Cliquei na anotação da consulta para saber se tinha detalhes e umas letrinhas pequenas e completamente assustadoras chamaram minha atenção.
"Suspender anticoncepcional e retornar após um mês, fazer exames na clínica antes disso".
Gelei no mesmo instante. Eu achava que estava tomando anticoncepcional injetável. Que tinha sido renovado antes do acidente. Eu até tive sangramentos de escape e menstruei, então… Espera, eu menstruei. Isso só podia ser um bom sinal, certo? Sorri, aliviada, mas então enrijeci de novo, lembrando do que null e eu tínhamos feito na última sexta-feira, em cima da minha mesa.
Pouco depois da menstruação acabar. Imediatamente procurei o aplicativo que usava para marcar meu período menstrual e rezei para que não tivesse no período fértil. Eu achava que as chances de engravidar após a menstruação eram baixas, mas àquela altura eu já não confiava mais na minha própria mente. E havia uma consulta marcada para o mês passado que eu perdi porque não fazia ideia disso.
Também nem liguei em checar nada de diferente na agenda sendo que eu nem estava trabalhando. Logo, sabia que não tinha nenhum compromisso. Até porque eu lembraria, se tivesse. Se eu soubesse que tinha um namorado, pelo menos. Aposto que null não fazia ideia disso e estávamos os dois transando feito coelhos sem nenhuma proteção.
Chequei no aplicativo e confirmei que minha teoria estava certa, havia uma baixa chance de gravidez. Relaxei um pouquinho, mas não o suficiente para ficar totalmente tranquila. Dizia que era uma baixa chance e não chance nenhuma. Eu tinha que voltar na ginecologista logo para resolver isso. Já não bastava o lance da tal maldição que me perseguia, agora eu tinha que me preocupar com a possibilidade de ser mãe.
Fazendo uma rápida pesquisa, descobri que testes de gravidez normalmente funcionam entre o sétimo e décimo dia da provável concepção. Fazia cinco dias desde a minha última vez com null.
Merda. Eu tinha que fazer um teste.
Só por desencargo de consciência.
De todo jeito, assim como o lance da maldição, resolvi manter aquilo para mim mesma e encomendei um teste em uma farmácia próxima. Com sorte, null ainda estaria no estúdio quando chegasse. Pedi mais um remédio para enxaqueca só para disfarçar, caso ele perguntasse o que eu tinha comprado.
Eu esconderia o teste no meu closet e o faria assim que estivesse na data correta. E então voltaria à ginecologista para pedir meu anticoncepcional de volta porque eu não me sentia nem um pouco pronta para ser mãe. null e eu nunca tínhamos mencionado filhos, ao menos não depois do acidente, e em nenhuma das lembranças que tive sobre nós. O acidente bagunçou tudo e agora eu tinha mais esse abacaxi para lidar.
Era só o que me faltava.
Ri, sem humor, e comecei a cutucar minhas gavetas em busca de uma receita ou algo do tipo sobre os tais exames mencionados na agenda que eu deveria fazer, mas tudo o que encontrei foi um cubo mágico todo bagunçado e o bloquinho de papel onde eu tinha anotado que deveria arrumar meu closet.
Bem, quando o teste chegasse, eu poderia usar isso como desculpa.
E aproveitaria para cutucar algumas bolsas para ver se a solicitação de exames estava em algum lugar. E marcar uma nova consulta. Mas, por ora, tudo o que fiz foi pegar o cubo mágico bagunçado e começar a resolvê-lo numa tentativa de esvaziar a mente.
Deu certo.
Logo que comecei a fazer os movimentos que decorei anos antes e agora eram simplesmente automáticos, me senti um pouquinho mais leve. Sempre que eu montava um cubo, eu entrava em hiperfoco. Minha mente começava a viajar, tendo pensamentos de várias das coisas mais aleatórias possíveis.
Eu deveria fazer assim pra chegar no passo dois. Tenho que fechar o amarelo, em seguida.
E se eu fizesse
banoffee nesse final de semana? Na verdade, eu poderia fazer hoje mesmo, deu vontade de comer banoffee depois que passei em frente àquele café coreano cheio de sobremesas bonitinhas.
Talvez null esteja criando o próximo
masterpiece de sua carreira nesse exato momento.
E se o último livro da Kate terminasse de um jeito totalmente inesperado? Protagonistas fujões, talvez? O cara já era fujão.
Acho que vou comer iogurte com granola de lanche da tarde. Talvez colocar no YouTube e assistir vídeos de músicas aleatórias.
A Cave Panthers não ia lançar um clipe novo esse mês?
Como será que posso desfazer a maldição que àquela taróloga falou? Que decisão preciso tomar? O que preciso lembrar?

Franzi o cenho, percebendo o rumo que meus pensamentos estavam tomando outra vez, já perto de finalizar a montagem do cubo.
Por que ela mencionou a morte nos perseguindo? Será que tem a ver com o meu acidente? Eu deveria ter morrido?
E se acontecesse algo de novo? Será que eu morreria dessa vez?

Senti o coração acelerar com a possibilidade de algo ruim acontecer, mas tentei convencer a mim mesma de que sofrer por algo que nem se concretizou não adiantaria de nada.
Eu tinha que me concentrar no agora e tentar lembrar da tal coisa importante.
Respirei fundo, sentindo os olhos arderem, mas me controlei para não chorar. Eu não estava nem mesmo de TPM, e null perceberia que havia algo me incomodando se me visse de olhos vermelhos.
Depois de alguns instantes, a campainha tocou e corri para atender. Era o entregador da farmácia. Dei uma boa gorjeta a ele por ter que fazê-lo subir até ali e tirei rapidamente a caixa de remédio para enxaqueca da sacola, antes de correr com ela direto para o meu closet.
Ouvi a porta do estúdio abrir no instante que entrei no quarto e apressei o passo.
null? — null me chamou e fiquei nervosa. Achei um nicho largo de casacos de inverno e os levantei com uma mão para enfiar a sacola ali, quando senti algo.
Uma caixa. Franzi o cenho, sem entender porque tinha uma caixa ali, e enfiei a sacola no lugar, ao mesmo tempo que puxei a caixa. Era branca, de papelão, e havia um laço vermelho na tampa. A encarei com curiosidade, querendo dar uma rápida espiada antes que null me encontrasse ali.
Talvez ele estivesse escondendo um presente surpresa. E que bom que eu era ótima em fingir surpresa, mesmo sabendo que presente ia ganhar.
Assim, não pensei duas vezes antes de puxar a tampa.
Só que em nenhuma realidade alternativa em que eu me enfiasse eu imaginaria que fosse encontrar aquilo. O sorriso se esvaiu de meu rosto no mesmo instante, quando li o bilhete escrito com a minha própria caligrafia.
"Parece que finalmente vamos ter que usar um daqueles quartos vazios do apartamento. Feliz aniversário de três anos, null. Agora somos três também".
Um par de sapatinhos de bebê jazia ali. Vermelhos, feitos de crochê, e era a coisa mais fofa. Eu os encarei por alguns segundos, perplexa, tentando assimilar o que meu cérebro estava claramente raciocinando muito rápido para me fazer perceber.
Ouvi a voz de null ao longe, um pouco abafada, me chamando mais uma vez. Então ficou alta, indicando que ele estava ali também.
null?
Levantei a cabeça para encará-lo, sentindo o rosto encharcado de lágrimas que nem notei caindo, e encontrei seu olhar preocupado e repleto de tristeza mais uma vez.
Então eu lembrei.

Capítulo 25

Um segundo depois, null estava agachado ao meu lado.
null, o que foi? Você se machucou, o que-
Então ele viu o bilhete, os sapatinhos. Assisti ao exato momento em que ele terminou de ler o bilhete, uma expressão de pura tristeza tomando conta de seu rosto. Eu vi os olhos dele marejarem e então percebi que os momentos que ele parecia triste e culpado pelo meu acidente não significavam apenas isso.
Não era só por isso.
null...
Ele me encarou com carinho e uma lágrima solitária escorreu por seu rosto.
— Eu sinto muito, null.
Um soluço então irrompeu de mim. Chorei, desconsolada, sentindo um súbito peso no peito.
— Eu... Você sabia? — consegui perguntar.
— O médico disse que você perdeu o bebê no acidente. A batida foi forte e ele não sobreviveu ao trauma.
— E foi assim que você descobriu — afirmei. Não era uma pergunta, mas null assentiu mesmo assim, em silêncio. — Foi por minha causa... Por minha causa, o nosso bebê morreu.
Desviei o olhar dele, pura vergonha tomando conta de mim.
— Não, amor. A culpa é da pessoa que te atropelou. E minha, que não estive com você.
Balancei a cabeça, soluçando outra vez, as lágrimas jorrando de mim como um rio, enquanto pensamentos que nunca cogitei me atingiam. Eu lembrei de tudo, tudo. E não sei dizer se aquilo foi pior ou melhor. Uma parte de mim preferia nunca ter descoberto; a outra, se sentia culpada por causar aquele sofrimento a null.
Agora tudo parecia tão óbvio. O dia em que ele apareceu de olhos vermelhos e eu inocentemente perguntei se ele estava gripando, ou se tinha fumado. Não. Ele se escondeu para chorar. Ele estava passando pelo luto do nosso bebê sozinho e eu não fazia ideia, porque ninguém me contou.
Me senti mal até por chorar por aquilo. Eu não tinha direito de lamentar. A culpa era minha. Se eu tivesse ficado em casa, isso não teria acontecido. Eu teria visto null no dia seguinte e estaríamos bem. Mas fui egoísta e fiquei chateada por algo que ele nem tinha controle. O meu orgulho ocasionou o meu acidente e a morte do nosso bebê.
Eu estava apavorada em ser mãe. Achei que null ia ficar apavorado também, mas ele ficaria feliz. No fundo, eu sabia que sim. Mas como eu seria capaz de encará-lo de agora em diante?
— Você pode sair? Eu quero ficar sozinha — pedi, baixinho.
— Não, null — null disse, firme. — Não vou te deixar sozinha. Nós podemos passar por isso juntos, amor. Nós temos que passar por isso juntos.
— Eu lembrei de tudo, null — confessei, com a voz falha. — Eu saí porque fiquei chateada com você, por não aparecer no dia em que combinamos. Eu vi um filme que você queria ver sozinha, só pra te irritar com spoilers quando a gente fosse assistir juntos. Eu tinha preparado uma surpresa, mas teria que adiar. — Encarei a caixa com os sapatinhos. — Eu nem consigo olhar pra você agora. Não consigo. — Solucei. — Eu não me sinto merecedora nem de chorar pela perda do nosso bebê. Foi minha culpa, minha culpa...
Abracei meus próprios ombros, cravando as unhas em minha pele. Eu merecia sentir dor depois de tudo aquilo. Solucei, correndo as unhas violentamente pelos meus braços, sentindo vergões se formando.
null, não! — null me agarrou, passando os braços ao redor de mim, de modo que eu não conseguia mexer os braços. Tentei me afastar, mas foi em vão. Ele continuou me segurando firmemente, como se seus braços fossem feitos de ferro. — Você não pode se machucar, tá ouvindo? Não pode fazer isso consigo mesma! Eu não vou deixar, null.
— Foi minha culpa, minha culpa... — Solucei outra vez. De repente, era tudo o que eu conseguia fazer: chorar e lamentar. Uma parte de mim tinha consciência de que eu estava parecendo descontrolada, que não deveria agir assim, mas eu não me importava. Eu merecia sentir dor, merecia a culpa de ser a responsável por aquilo. Por fazer null passar um mês inteiro aguentando sozinho, fingindo que estava bem.
— Amor, por favor. Não faz isso, null — null murmurou. — Nós vamos superar juntos, eu prometo. Não foi sua culpa, não foi sua culpa.
A gentileza em sua voz me matava. Eu me sentia um ser humano mesquinho e desprezível e, mesmo assim, aquele homem estava ao meu lado.
Ele esteve ao meu lado durante toda a minha recuperação, fazendo de tudo para que eu me lembrasse dele, de nós. null me amava como ninguém. Era o tipo de amor que nunca esperei receber um dia, que eu não sabia nem se existia mesmo. O tipo de amor de histórias épicas, que existia apenas em livros. E eu o amava de volta com todo o meu ser; cada pedacinho de mim vibrava por ele, por tê-lo ao meu lado.
Os últimos três anos haviam sido os mais felizes da minha vida, mas eu não merecia essa felicidade.
Eu não merecia o amor de null.
Talvez não merecesse ser mãe também, visto como aquilo tudo tinha acabado. A minha ginecologista tinha suspendido o anticoncepcional por conta da gravidez, agora eu sabia. A consulta de retorno era para iniciar o pré-natal, porque ela também era obstetra. De todo modo, eu ainda precisava fazer o teste de gravidez que tinha escondido de null. Não sabia nem se eu devia contar aquilo para ele.
Não queria que fosse um lembrete do bebê que tínhamos perdido, tampouco provocar algum tipo de esperança.
Mesmo querendo ficar sozinha, null não me largou até eu me acalmar.
Eu solucei e solucei em seu ombro até ficar com dor de cabeça, e senti lágrimas quentes pingando em meu próprio ombro. Ele também estava chorando, em silêncio, enquanto esfregava minhas costas, tentando me consolar.
Mas ninguém estava consolando ele.
Quando meus soluços silenciaram, eu tentei me afastar e, dessa vez, null me deixou ir. Por um breve instante, consegui encará-lo, apenas para ver seus olhos vermelhos e inchados também. Ele segurou meu rosto entre as mãos e encostou a testa na minha.
Mordi o lábio inferior para não começar a soluçar outra vez. Eu não conseguia lidar com a bondade dele. null deveria estar me culpando, ele devia ter se afastado de mim, não ficado ao meu lado. Eu deveria estar sendo tratada como um párea por fazer aquele homem sofrer quando havia prometido justo o contrário. As nossas promessas... Agora pareciam ter um peso ainda maior depois que me lembrei delas.
De repente, as palavras da Xamã começaram a fazer sentido.
A criança que não vingou.
Eu achava que ela estava se referindo à época em que a maldição foi lançada, não que estava se repetindo em todas as minhas vidas. Minha mente começou a trabalhar com o pouco resquício de consciência que me restava. As minhas escolhas vão influenciar no resultado final. Talvez fosse um sinal. No fim, eu deveria abrir mão de algo importante para que a maldição fosse quebrada.
Respirei fundo, ainda sentindo as lágrimas correrem pelo meu rosto silenciosamente. Eu estava com pensamentos acelerados, raciocinando rápido sobre diversas possibilidades apenas para voltar para a única que eu achava que seria a certa.
A única escolha que eu acho que devia fazer. Por mim, por null e pela criança que se foi. Por mais difícil que fosse para nós dois.
Por mais que fosse doer em nós dois, eu tinha que dar um fim naquilo.
Então, respirando fundo mais uma vez, me afastei para encará-lo novamente.
null... Eu quero terminar.

Capítulo 26

null

Encarei a parede cinza do meu estúdio no exato pontinho em que a tinta cinza tinha descascado, perto do rodapé. Eu estava sentado no sofá que havia ali, abraçando os joelhos, completamente imóvel enquanto absorvia tudo o que tinha acontecido nas últimas seis horas.
Senti meus olhos inchados e úmidos, e lágrimas silenciosas ainda jorravam deles como se vazassem de mim, como se eu fosse um recipiente cheio até a borda.
Talvez eu fosse um mesmo.
Pelas últimas horas, tudo o que fiz foi repassar cada palavra e ação de null na minha mente. E cada uma delas eram como facas perfurando meu coração.
Ela tinha ido embora.
Por mais que eu tenha tentado impedir, ela tinha tomado a decisão, mesmo de cabeça cheia. Eu sabia que ela estava sofrendo e que queria me afastar, mas null e eu também fizemos uma promessa de deixar o outro ir caso uma das partes não quisesse mais. Eu havia dito a ela que a única possibilidade disso acontecer era se partisse dela, já que nunca seria capaz de deixá-la por livre e espontânea vontade.
Eu amava aquela mulher como nunca tinha amado ninguém na minha vida.
E me sentia inútil por não poder fazer nada. Eu estava impotente e tinha prometido respeitar a decisão dela. E ela me fez prometer aquilo de novo antes de partir com uma mochila nas costas, uma hora depois de terminar comigo.
As cenas passavam repetidamente na minha cabeça.
null... Eu quero terminar.
— O quê? Do que você tá falando?
— Não aguento mais olhar pra você, não depois de tudo.
null, não foi culpa sua. Nós podemos...
— Não, null. Eu não quero mais. —
A voz dela falhou. — Eu não aguento.
Franzi o cenho, sentindo o coração na garganta.
— É isso, então? Essa é sua resposta? Você vai simplesmente desistir da gente? Acha que terminar vai resolver nossos problemas?
— Acho que a gente devia ter acabado depois do meu acidente. Foi um erro voltar pra cá, sem lembrar de nada. Eu devia ter voltado a morar com minha irmã.
— Não, null. Seu lugar é aqui. Comigo. Nós prometemos nunca soltar a mão do outro —
retruquei, ouvindo a minha própria voz embargada. — Não faz isso com a gente, null. Por favor.
— Toda vez que você olhar pra mim e eu olhar pra você… Vai ser um lembrete constante do que aconteceu. Eu não quero isso. Não quero que nenhum de nós lembre disso. Não aguento nem ficar aqui.
— Amor, por favor. Eu sei que é difícil, ainda mais depois de lembrar de tudo assim, mas eu tô com você. Podemos passar por isso juntos —
tentei convencê-la. — Eu te amo, null.
— Sinto muito, null.
— Ela chorou em silêncio. — Mas eu não posso. Sinto muito por quebrar nossa promessa.
null.
— Eu quero ficar sozinha —
ela disse, sem me encarar. — Vou pegar umas coisas e ir pra casa de null, depois peço pra ela vir pegar o resto.
Foi como se meu coração tivesse sido espetado com mil alfinetes. Como se eu tivesse levado um banho de água fria. Como se cada palavra fosse uma facada. Eu não sabia o que fazer além de implorar. Senti minhas próprias lágrimas escorrendo pelo rosto e olhei para o teto. Eu não queria chorar na frente dela, e consegui evitar isso todas as vezes desde que ela voltou para casa, dizendo para mim mesmo que eu precisava ser forte por nós dois; mas naquele momento não me importei.
A ideia de jogar fora tudo o que nós construímos juntos me matava. Ficar sem null era pior do que lidar com o lembrete constante da perda do nosso bebê. Se ela queria culpar alguém quanto a isso, então que fosse eu. Ao mesmo tempo, eu a compreendia. Eu tive um mês para me acostumar com a notícia do aborto, ela não. Tentei falar que daria um tempo a ela e depois conversaríamos, mas ela estava irredutível.
— Não quero conversar, null. Eu quero ficar sozinha. Vá embora, por favor. Não vou conseguir fazer nada se você tiver aqui.
— Então não vá! —
retruquei, frustrado.null, nós não podemos terminar assim.
— Você prometeu que me deixaria ir se essa fosse minha vontade.
— Acontece que essa não é sua vontade. Eu te conheço. Você tá em choque e magoada, mas-
— Não, null. É minha decisão e você prometeu cumprir.
— Por que eu tenho que cumprir minha promessa se você não tá cumprindo a sua? —
perguntei, magoado e irritado.
— Eu preciso que você respeite minha decisão e que não venha atrás de mim.
— Eu me recuso! Você pode ir embora agora, se é assim que quer —
falei, andando de um lado para o outro no closet, o rosto ainda molhado com lágrimas. — Mas eu me recuso a desistir de você, null. Vai precisar de muito mais que isso pra me afastar de você.
null suspirou, parecendo esgotada.
null.
— Você não aguenta olhar pra mim? —
Continuei a falar. — Então vamos trabalhar nisso até você aguentar. Eu não quero te perder, não quero perder o que a gente tem. Eu te amo, droga! Você sabe disso. Eu te falei um milhão de vezes. Não sei mais o que posso fazer pra você entender isso.
— Você pode seguir em frente —
ela sugeriu. — Ser feliz com outra pessoa. Eventualmente, é o que vai acontecer. Me esquece, null.
— Por quê? Por que devo esquecer você? Você não pode me obrigar a isso.
— Porque eu não te mereço. —
Sua voz falhou novamente. — Você sempre foi bom demais pra mim e eu decepcionei nós dois por puro egoísmo.
null, olha pra mim.
Ela balançou a cabeça, negando. Dei um passo em sua direção e envolvi o rosto dela entre as mãos, a forçando a me encarar.
— Você me odeia? É isso? Não me ama mais?
null, por favor... —
Ela tentou se afastar, mas não deixei.
— Olha agora nos meus olhos e diga que não me ama, null —
exigi, mas ela manteve os olhos firmemente fechados e ficou em silêncio. — Você não consegue, não é? Por que acha que vou ser feliz com outra pessoa? Por que acha que eu ia querer isso? Eu quero você, null. Só você.
— Eu te amo, null. Amo tanto... —
ela confessou, chorando baixinho. — Mas eu não quero mais ficar com você. Sinto muito, mas não posso. Vá embora, por favor — acrescentou, em seguida. — Por favor, me deixa sozinha.
Deixei minhas mãos caírem ao lado do corpo. Senti o ar escapar pelos pulmões de uma vez, a ficha finalmente caindo.
Ela me amava, mas não queria isso. Não queria ficar comigo, mesmo que a distância causasse mais sofrimento a nós dois.
Eu me sentia a pior pessoa do mundo. Como se estivesse tentando forçá-la a ficar. Mas eu não podia fazer isso, independentemente de uma promessa ou não. Se ela não queria minha presença, eu não podia insistir mais do que já tinha feito.
Então passei a mão no rosto, tentando me livrar das lágrimas que insistiam em cair e assenti em silêncio, antes de me virar e sair dali, exatamente como ela havia pedido.
Fiquei um tempo do lado de fora, andando pelo corredor com a mente maquinando em busca de alguma alternativa, mas não conseguia pensar em nada além de "eu te amo... Mas não quero mais ficar você."
Quando null finalmente apareceu com uma mochila, me ofereci para levá-la até a casa de null, mas ela negou, dizendo que havia um táxi esperando na portaria.
Um minuto depois, ela foi embora sem olhar para trás.
Me tranquei no estúdio, o único lugar daquele apartamento que não tinha resquícios de sua presença, e foi onde permaneci pelas últimas horas. Sentindo raiva de mim mesmo por não ter sido capaz de ser suficiente para ela. Pensando no que poderia ter feito para evitar aquilo. Talvez eu devesse ter contado sobre o aborto quando ela acordou no hospital. Talvez eu devesse ter contado tudo, assim ela teria mais tempo de se acostumar com a notícia e, àquela altura, quando se lembrasse, tivesse agido de forma diferente.
Adiar o inevitável só tornou tudo pior e a culpa era minha. O médico disse que eu poderia contar sobre o aborto se quisesse, mas se ela não lembrava nem de mim, como poderia entender aquilo tudo? null ia achar que continuava sonhando. Ou pior, que eu tinha batido a cabeça em algum lugar e estava sonhando.
Além disso, filhos não era algo sobre o que costumávamos falar. Eu sabia que ela não queria ser mãe e estava bem em não ser pai se essa fosse a vontade dela. O corpo era dela, logo a decisão de termos filhos um dia também. E se ela quisesse, eu também estava bem com isso.
Eu apoiaria a decisão dela sobre isso porque era o que importava para mim. Se tinha algo a que eu era completamente neutro era em relação a ter filhos. Se tivéssemos um, eu o amaria incondicionalmente. Mas se null quisesse adotar cinco gatos, então eu seria pai de pet com ela.
Só que agora nada daquilo parecia possível.
Nosso relacionamento parecia ter uma névoa espessa em torno dele, ocultando todo o caminho que podíamos tomar. Não havia direita ou esquerda, estávamos apenas estagnados no lugar, sem saber para onde ir, tomando decisões com base em mágoa, culpa e desespero.
Eu nem cheguei a saber da existência do nosso bebê antes que o perdêssemos, mas o amei mesmo assim. Chorei por ele, por sua chance perdida de viver, culpa de um bandido aleatório que atropelou o amor da minha vida e fugiu em seguida. A polícia nem sequer tinha localizado o cara ainda para fazê-lo pagar pelo crime.
E agora ele tinha causado o fim do nosso relacionamento também. Por que aquilo tinha que acontecer conosco? Por que tudo estava dando errado? Se eu não tivesse me atrasado no nosso aniversário, null nunca teria ido àquele shopping. Estaríamos juntos em um restaurante, provavelmente comemorando a vida do nosso bebê, e não lamentando a morte dele.
Estaríamos felizes e bem, nós três.
Mesmo depois do acidente, criei esperanças de que ficaríamos bem quando ela lembrasse de tudo. Pensei que deixar ela lembrar disso sozinha também fosse ser mais saudável. Achei que conversaríamos, choraríamos juntos, e depois seguiríamos em frente. Porque null era assim. Enquanto eu era a pessoa mais emotiva do nosso relacionamento, ela era prática e direta. Aceitava as coisas como eram. null superava as adversidades. Ela era determinada assim.
Mas então nada tinha saído como eu havia imaginado. Tomei uma decisão errada e agora estava ali, encarando a parede, com o rosto molhado de lágrimas e mergulhado em um poço de tristeza e impotência.
Nossa felicidade havia sido arrancada de nós, e eu não tinha ideia do que fazer para recuperá-la.

Capítulo 27

null

Na madrugada do dia seguinte, acordei no sofá do meu estúdio com o pescoço e o estômago doendo. Eu não saí dali nenhuma vez e a única coisa que tinha ingerido até então havia sido uma garrafa de água do meu frigobar.
Eu não fazia ideia de quando consegui cair no sono, mas a julgar pelo horário — cinco e meia da manhã —, provavelmente apaguei por menos de três horas. Não havia nem tomado banho, e nem senti vontade de comer, mesmo que meu corpo implorasse por isso. Além da noite mal dormida, agora eu tinha um torcicolo e um estômago vazio clamando por comida desde o instante em que abri os olhos.
Era um desastre.
null me arrastaria dali se me visse negligenciando a mim mesmo. E eu não me importaria nem um pouco, desde que ela estivesse comigo.
Mas não estava.
A realidade do nosso término me deixava deprimido e angustiado. Meus olhos ardiam só de pensar nisso, e eu nem sabia que alguém podia chorar por tanto tempo até acontecer comigo. E quando meu corpo cansou e a enxaqueca veio, eu me tornei uma casca apática, olhando para o nada, mergulhado em um poço de autopiedade ridículo. Nunca sofri assim por nenhum término, mas também nunca havia namorado alguém por tanto tempo, ou sequer dividido uma casa.
null era como uma esposa, ainda que não fôssemos casados. Eu a via assim e a tratava assim. Ela era minha prioridade. Mas era teimosa demais para ficar.
Teimosa. Má. Mesquinha.
null não tinha o direito de me deixar sozinho assim. Eu não dei meu coração a ela para que ela o devolvesse. Não passei três anos com ela para que, de repente, ela ignorasse tudo o que vivemos. Ela tinha tomado uma decisão de cabeça quente, movida pelo estresse e a culpa que sentiu por causa do nosso bebê. Estava colocando pressão sobre si mesma. Nos fazendo sofrer acreditando que era a melhor opção.
Eu estava puto com ela.
E com dor e fome por causa dela.
O rei da coitadolândia.
Você é completamente patético, null.
Suspirei, cansado, e abri uma gaveta no meu mini armário de lanches em cima do frigobar, tirando uma barra de proteína para comer. Mordi violentamente, mal sentindo o gosto. Parecia que eu estava comendo papel.
— Que palhaçada — murmurei de boca cheia, sentindo os olhos arderem outra vez.
Eu ainda tinha lágrimas para chorar? Pelo visto, sim, já que elas começaram a cair novamente. Me forcei a sair do estúdio para tomar banho, mas parei por um momento na porta do quarto, sem querer entrar ali. Que idiotice. Minha roupas estavam no closet que dividíamos.
Era só a merda de um cômodo, então por que eu estava hesitando?
A resposta veio assim que entrei para pegar as roupas e vi a caixa com os sapatinhos de bebê ainda no chão, esquecida junto com o bilhete. Um nó se formou na minha garganta e eu a recolhi com cuidado, olhando em volta em busca de um lugar para guardar.
No meio disso, vi que uma manga de um casaco de inverno de null tinha escapado do nicho e automaticamente a coloquei de volta no lugar. Ela provavelmente tinha escondido os sapatinhos ali. Talvez eu pudesse até ter encontrado antes ao mexer nas roupas dela para encontrar as peças que ela tinha usado em nossos encontros. Se eu soubesse que os sapatinhos estavam ali teria os colocado em outro lugar, mas agora era tarde demais. Talvez devesse deixar os sapatinhos ali mesmo.
Suspirei, levantando o casaco, mas me deparei com uma sacola de plástico enrolada ali. Puxei, notando que havia algo dentro e guardei os sapatinhos antes de ver o que era.
Encontrei a caixa de um teste de gravidez e meu primeiro pensamento foi que null tinha guardado para me mostrar o resultado. Mas levou um segundo para perceber que a caixa estava lacrada. Olhei na sacola novamente e encontrei um recibo dobrado.
Senti o coração acelerar ao ver que a compra tinha sido feita no dia anterior, junto de uma medicação para enxaqueca. Levou apenas um instante para eu deduzir o que tinha acontecido.
null tentou esconder o teste ali e encontrou a caixa com os sapatinhos, o gatilho para o retorno de suas memórias.
Bati a mão no bolso em busca do celular, mas percebi que tinha deixado no estúdio. Um instante depois, me dei conta de que ela provavelmente não estaria disposta a falar comigo. Mas caramba, ela tinha comprado um teste. Será que estava tendo sintomas de gravidez? Se bem que... Ela teve o seu período recentemente, mas...
Caramba. Merda.
O anticoncepcional.
Fizemos sexo desprotegido por semanas, incluindo uma vez depois do período dela. null provavelmente encontrou em algum lugar que não estava tomando anticoncepcional por conta da gravidez, e eu fui burro o suficiente para não me lembrar disso. Também não passou pela minha cabeça que fôssemos voltar a fazer sexo, não quando ela nem se lembrava de mim direito.
— Droga... — Bati na minha própria testa. — null, seu burro. Ela é sua fã também.
Não que ser fã fosse motivo suficiente, mas null e eu tínhamos dormido juntos na noite em que nos conhecemos. Muito precipitado, mas por algum motivo não me passou na cabeça que fosse acontecer de novo. Pensei que ela ia me estranhar por mais tempo, mas... Talvez fosse o subconsciente dela?
Obviamente, nada disso justificava a minha falta de atenção.
Quanta irresponsabilidade, null, seu idiota.
E se ela estivesse grávida agora? Eu duvidava que null fosse me contar qualquer coisa, mesmo antes de encontrar os sapatinhos. Mas agora eu tinha uma desculpa para falar com ela, mesmo que fosse morrer de ansiedade até isso acontecer.
Eu esperaria mais um dia e tentaria uma conversa, para ter certeza de que ela estava mais calma. Duvidava que null fosse querer tocar no assunto agora, então não tinha nada a fazer a não ser esperar.
Peguei minhas roupas e levei para o banheiro. O banho foi rápido, no chuveiro. Eu ainda não queria ficar ali, então voltei para o estúdio logo depois. Achei que um banho pudesse aliviar um pouco o meu humor de merda, mas não adiantou muito. Bem, ao menos eu estava limpo e alimentado — mesmo que fosse só com uma barrinha de proteína.
Peguei meu celular, notando algumas mensagens e ligações perdidas. Uma delas era da minha cunhada, enviada na noite anterior.
null: O que aconteceu? null apareceu falando que vocês terminaram, mas não falou comigo e se trancou no quarto.
Eu nem sequer toquei no celular. null tinha uma notificação personalizada para ligações e mensagens, então qualquer outra que ouvi foi ignorada.
Havia outra mensagem de null, de cinco minutos antes.
null: null, tá tudo bem? Quer me encontrar pra gente conversar sobre isso? Tenho um tempo livre pro almoço.
Comecei a digitar freneticamente, esclarecendo algumas coisas.
null: NÓS não terminamos. ELA terminou comigo. null encontrou sapatinhos de bebê que ela mesma escondeu no closet e lembrou de tudo.
Um minuto depois, meu celular tocou.
— Oi, null — respondi em meio a um suspiro.
— Me diz logo como foi isso, null. Preciso saber.
Então eu contei tudo o que tinha acontecido e até mesmo o que eu tinha encontrado no closet.
— Um teste de gravidez? Acho que tá cedo pra isso, ela deve ter comprado pra fazer depois — deduziu. — E você parece péssimo.
— Não posso dizer que tô às mil maravilhas — ironizei, mas null ignorou isso.
— Quer almoçar comigo? Vou ter que passar o dia fora mesmo. A gente pode discutir algo.
— Não, não se preocupa. Vou ficar em casa. Não deixa a null sozinha quando chegar, tá? Faz ela comer também. Arromba a porta se for preciso.
— Se for preciso, eu chamo você pra arrombar — null brincou, mas não havia nenhum humor na voz dela.
Ela provavelmente estava falando sério.
— Tudo bem.
— Sinto muito, null. As coisas vão melhorar. Aguenta só mais um pouco.
— Tá.
Encerrei a ligação, mas o celular começou a tocar novamente. Dessa vez, era Jace ligando. Suspirei, sem um pingo de vontade de atender, mas aceitei a ligação mesmo assim.
— Oi, Jace.
— Ei, onde você tava? Tô tentando falar com você desde ontem. Preciso confirmar a reunião hoje e-
— Cancela a reunião — o interrompi. — Na verdade, cancele toda a minha agenda pelo resto da semana.
— Como assim, null? É sobre o seu álbum. A gente tem que resolver essas pendências e…
Ele continuou a falar, mas eu não estava mais nem prestando atenção.
— Eu nem sei se quero lançar esse álbum, Jace — interrompi seu monólogo outra vez. — Cancela tudo e depois a gente conversa. Eu não tô com cabeça pra isso agora.
— Aconteceu alguma coisa? — Ele quis saber. — É a null?
Respirei fundo, sentindo os olhos arderem outra vez.
null e eu terminamos. Preciso de um tempo, então não me incomode. Deixa que eu entro em contato com você depois.
— Ah, nossa. Sinto muito, null. Eu entendo, mas... Olha, vai ver foi melhor que isso acontecesse…
— Como é? — Franzi o cenho, irritado. — Tá me zoando, Jace? Você acha que foi pra melhor? A minha mulher acabou de descobrir que sofreu um aborto e tá se culpando por isso. Um filho da puta atropelou ela, mas ela tá se culpando! E agora que sabe disso, acha que o melhor a fazer é se separar de mim!
null — ele tentou falar, mas o ignorei.
— Não me venha com essa merda de que é pra melhor. Nunca vai ser pra melhor, tá ouvindo? Eu amo a null e vou lutar por ela. Então não fale do que você não sabe, porra. Fica na sua.
Eu estava ofegante e irritado pra caralho. Ouvi Jace xingar baixinho e tive vontade de dar um soco na cara dele.
— Uma semana, null. Lide com isso e depois volte. Você não vai morrer por causa de um término idiota, e você já passou por isso antes. — O idiota teve a audácia de falar e juro que comecei a ver vermelho.
— Vai se foder, seu filho da puta! — xinguei, desligando na cara dele em seguida.
Num impulso, atirei o celular na parede, mas me arrependi no mesmo instante. null me daria uma bronca se eu quebrasse o celular por raiva. Ela diria que era um desperdício de dinheiro. Além disso, a capinha que eu usava nele tinha sido presente dela. Me levantei para avaliar o estrago, já sentindo o peso da culpa por ter feito aquilo, mas aparentemente estava tudo bem com meu telefone.
Eu só não podia dizer o mesmo do buraco na minha parede. Não era grande, mas agora dava pra ver o concreto. null também me xingaria por isso.
O pior de tudo é que eu sentia falta até da null briguenta. A incerteza e a espera eram uma tortura para mim. Eu só torcia para que no dia seguinte ela estivesse melhor para falar comigo. A gente não podia ficar assim, eu me recusava.
"Eu te amo, null... Mas não quero mais ficar com você".
As palavras dela ainda me atormentavam feito uma maldição.
Sacudi a cabeça, como se de alguma forma aquilo pudesse afastar aquela lembrança. Em seguida, respirei fundo novamente, encarando o teto.
Então esperei o tempo passar.

Capítulo 28

null


— Vamos, Zico. Eu pinto o seu primeiro e depois você pinta o meu — disse a minha skin de Ayla. — É só jogar no cabelo que nem um creme de hidratação e pronto. Eu já até preparei a tinta.
— Tá, e cadê as luvas? — ele perguntou e eu ri por dentro, já sabendo o que Ayla diria.
— Eu esqueci de comprar. Mas tá tudo bem, a tinta não mancha. Vem, senta aqui na cadeira. Pode segurar o espelho, se quiser ir vendo.
Zico fez o que ela/eu disse e comecei a tingir seu cabelo. Cerca de dez minutos depois, troquei de lugar com ele, depois de tirar o excesso de tinta das mãos.
— Tem certeza de que lavou a mão direito?
— Eu tirei só o excesso, vou pintar minha sobrancelha enquanto você pinta meu cabelo — expliquei.
Era uma cena automática em que eu era uma mera expectadora, mas estava me divertindo muito. Zico era uma graça. Falava "não" para Ayla umas mil vezes, mas no fim sempre fazia as vontades dela.
Naquela ocasião, Ayla o convenceu a pintar o cabelo da mesma cor que o dela, um ruivo laranjinha. Quando acabou, Zico relutantemente a deixou fazer uma maquiagem de idol de K-Pop nele, com direito a delineador e tudo. Tiramos algumas fotos e só então Ayla finalmente o deixou ir embora.
Senti a mudança quando fiquei sozinha. O controle de seu corpo era meu de novo. Fazia alguns dias que eu estava ali, mas tinha consciência que só devia ter se passado uns dois dias desde que cheguei na casa de null. No entanto, passei a maior parte do tempo dormindo e me recusei a conversar com ela. Eu não queria tocar no assunto ainda, e ela não insistiu.
Quando chegou em casa à noite, perguntou se eu havia comido e como eu estava, e sem nem abrir a porta respondi que estava bem.
Nós duas sabíamos que era mentira, mas eu desconfiava que null tivesse conversado com ela. Se tinha uma coisa que ele era incapaz de fazer era manter a boca fechada — acho que ele usava toda a sua força de vontade em me manter livre de spoilers de suas novas músicas. Tirando esse pequeno ponto, ele nunca conseguia esconder nada de mim. E se eu sabia, consequentemente minha irmã também saberia, então eu meio que já esperava que ele tivesse dado alguns detalhes da nossa discussão para ela.
Não que eu me importasse, é claro, era um trabalho adiantado. Tudo o que eu sentia vontade de fazer era dormir e vir parar em Tenaz, onde eu me distraía dos meus próprios problemas. Minha mente estava cheia e, acordada, eu só conseguia pensar nas palavras que eu deliberadamente falei para magoar null e ele me deixar ir — além da maldição que nos perseguia.
Eu também sabia que não podia ficar assim para sempre. Fazia quase quarenta e oito horas e logo eu teria que voltar ao trabalho. Quando saí do apartamento, peguei algumas roupas, o notebook e meu tablet, além dos meus documentos. A maior parte obviamente ainda estava lá, mas eu ainda não tinha energia para lidar com isso. Você se colocou nessa posição por conta própria, agora lide com isso, pensei comigo mesma.
Deitei no sofá de Ayla e fechei os olhos por alguns minutos, até ouvir uma batida forte na porta do quarto que me fez levantar em um pulo. Automaticamente me dirigi em direção à porta e mal tive tempo de raciocinar que eu não estava mais em Tenaz, mas sim de volta à realidade, no quarto de hóspedes de null.
As batidas continuaram e destranquei a porta, confusa. null já tinha chegado e perdeu a paciência comigo?
Ainda eram quatro e meia da tarde.
Abri a porta, mas logo me arrependi ao ver null parado ali, com bolsas de cansaço abaixo dos olhos e uma expressão nada feliz no rosto.
Na verdade, ele parecia bem irritado.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei baixinho, surpresa em vê-lo ali.
— Sua irmã me passou a senha da porta. Vim garantir que você tá pelo menos se alimentando, porque ela disse que você não saiu do quarto.
Senti o coração acelerar e meus olhos arderam um pouco. Ele também não parecia nada bem. Isso é culpa sua, null. Você escolheu isso.
— Isso não é da sua conta, null — declarei, tentando ignorar a voz da minha consciência que não parava de me criticar. — Você nem devia estar aqui. Eu não quero te ver.
Mentirosa.
Por um breve instante, null abriu um sorriso sarcástico ao ouvir aquilo.
— Então feche os olhos. Não vou embora. — E se virou, indo em direção à cozinha.
Andei atrás dele.
— Como assim, não vai? Você nem devia ter vindo, null! A gente terminou!
— Você esqueceu uma coisa, null. — Ele se virou para me encarar, então tirou algo do bolso e colocou em cima do balcão.
Arregalei os olhos quando vi o teste de gravidez que eu havia comprado. Me esqueci totalmente disso quando recuperei minhas memórias. Depois fiquei ocupada demais com nossa discussão, e então em sair de casa.
null, eu… — Eu nem sabia que desculpa inventar, na verdade. Nem tive tempo, já que null voltou a falar, logo em seguida.
— Quando pretendia me contar? Ah, não, espera. Você não pretendia — ele me acusou.
— É só uma suspeita! — tentei justificar, me sentindo subitamente pressionada. — Eu tenho quase certeza de que não tô grávida. Não tô sentindo nada também. Comprei só pra não ter que ficar pensando nisso.
null, não importa se é suspeita ou não, eu tinha o direito de saber. E se você tiver grávida?
— Se eu tiver, então vou ter o bebê.
— É? Vai ter o bebê sozinha?
— Nós nem estamos mais juntos.
— Mas eu sou o pai! — null gesticulou, apontando para si mesmo. — E não estamos juntos porque você não quer.
— Você fala como se o bebê já existisse.
— E se existir? — Ele deu a volta no balcão, parando na minha frente.
Dei um passo para trás.
null.
null. — Ele me puxou de uma vez, me fazendo esbarrar em seu corpo. — Por que você não para de ser teimosa e volta logo pra mim?
Meu coração errou uma batida. Ou talvez algumas.
Por que null tinha que ser tão obstinado?
Ele estava próximo demais para que eu pensasse com clareza. Eu tinha que me afastar, mas o problema é que quando tentei pela segunda vez, tudo o que consegui foi ser prensada contra a parede ao nosso lado. Minha respiração falhou e fiquei levemente ofegante. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não estivesse tocando o meu.
null, para com isso. Você sabe que é melhor você ir embora...
— Não, null — ele insistiu. — Já disse que não vou.
— Você disse que ia me deixar ir... Eu falei que não quero mais ficar com você.
— Bem, acho que eu não tava pensando com clareza, mas você acha mesmo que faz sentido me amar e não querer ficar comigo? Estamos juntos há três anos, null. Podemos passar por isso.
— Eu não mereço você — falei, sentindo a voz falhar.
— Isso não é você quem decide — ele retrucou baixinho, encarando meus lábios. — Eu sei que você é tão obcecada por mim quanto eu sou por você, amor.
Ele estava tão próximo que se eu me inclinasse um pouquinho para a frente, nos lábios se tocariam. Meu coração batia tão rápido que eu tinha quase certeza de que ele podia sentir.
— Por que você faz isso comigo? — perguntei quase em sussurro, virando o rosto para o lado, tentando colocar o máximo de distância que eu podia naquele momento. Senti os olhos arderem novamente e meu corpo clamar por ele. A proximidade era agonizante.
null virou meu rosto delicadamente para que eu o encarasse outra vez.
— Porque eu te amo. — Ele roçou os lábios nos meus, sem realmente me beijar. Ele fez isso uma, duas vezes; na terceira, pressionei minha boca contra a dele e null correspondeu de imediato.
Foi quase desajeitado. Um selinho que não devia acontecer. Assim como o beijo que se seguiu a ele, quando null encaixou nossas bocas perfeitamente e nossas línguas brincaram juntas. Eu o queria, queria tanto. Tentei falar para mim mesma que aquele era um momento roubado, uma última vez. Que seria só aquela vez e depois eu o deixaria ir... Mas então as palavras sobre a maldição me atingiram novamente.
Eu tinha que fazer a escolha certa para quebrá-la ou a morte nos perseguiria. Já tínhamos perdido um bebê, e eu não podia arriscar que algo mais acontecesse. Eu tinha que ficar longe de null para dar fim àquilo e, talvez... Na nossa próxima vida, finalmente seríamos livres. E pensar que ele era realmente a minha pessoa destinada...
A convicção de não poder ficar com null me matava um pouquinho a cada segundo, mas eu estava fazendo isso para proteger nós dois.
A outra pessoa ainda estava por aí, procurando jeitos de nos separar. Talvez ela ficasse em paz, quando soubesse que tinha conseguido. E eu não tinha dúvidas de que era o maldito stalker. De todos os ditos fãs de null, ele tinha sido a única pessoa a me perturbar de verdade. Talvez fosse até a pessoa que me atropelou. Se fosse um acidente, mesmo que ele quisesse roubar o carro, teria fugido. Havia espaço suficiente naquele estacionamento. Ele poderia se livrar do carro antes que a polícia fosse atrás dele.
Eu poderia até ter acreditado que poderia ser alguém roubando por necessidade — se eu não soubesse da maldição — e que se assustou após causar um acidente, mas era coincidência demais.
Se eu continuasse com null, esse cara continuaria a nos infernizar de um jeito ou de outro, porque era parte do ciclo que vinha se repetindo. E eu tinha assistido dramas suficientes para imaginar que aquilo iria perdurar até que um de nós três fosse destruído.
Uma parte de mim queria contar para ele, explicar porque eu estava fazendo aquilo. Era algo que ia além da culpa que eu sentia por perder o bebê. Eu não me sentia digna e crianças estavam e continuariam a ser perdidas em todas as nossas vidas se eu não acabasse com aquilo.
Por mais que me doesse, por mais que eu odiasse com todas as minhas forças ficar longe de null, eu só conseguia pensar que tínhamos que ter um fim.
Ofeguei em seus braços, tentando encontrar forças para afastá-lo. Eu sentia meus lábios levemente inchados, e um calor se espalhando lentamente pelo meu corpo. Eu queria envolvê-lo com as pernas, e queria que ele me fodesse contra aquela parede até me deixar mole feito gelatina.
Mas era só um momento roubado.
null não merecia ouvir que era um erro quando tudo acabasse. Ele tinha sido a escolha mais certa da minha vida e ter que deixá-lo me fazia corroer de dentro para fora.
Então juntei toda a minha quase inexistente força de vontade e pedi para que ele parasse.
— Por quê? — ele quis saber. — Você também me quer, Alexa.
— Não posso. Por favor, null, para.
Senti o corpo dele enrijecer e imediatamente ele me soltou, dando um passo para trás.
— Por que você tá fazendo isso comigo? — ele perguntou, olhando nos meus olhos, com uma mágoa quase palpável.
Os meus se encheram rapidamente e as lágrimas que eu tinha conseguido segurar até então molharam meu rosto.
— Nós não podemos. Por que você insiste em ficar? Por que, depois de tudo o que eu te disse? Por que você não esquece que eu existo e segue em frente? Você vai encontrar alguém melhor, null. Uma separação não vai nos matar.
— Então por que eu sinto que vou morrer se ficar sem você?! — Ele me encarou, frustrado, e um par de lágrimas escorreu pelo seu rosto. — null, por favor... A gente tava bem antes disso tudo acontecer.
Eu também sinto como se fosse morrer sem você, eu quis dizer. Mas não podia.
— Eu sinto muito, null. — Você poderia morrer se ficasse comigo. — Vá embora, por favor.
— Alexa.
— Não. — Coloquei as mãos no rosto. — Por favor, vá embora. Eu tô implorando. Vá, null.
Um momento de silêncio. Uma respiração profunda. E então...
— Tá. Se é assim que você quer, eu não vou mais insistir. Não posso lutar pela gente sozinho, null. Eu trouxe comida pra você. Fiz bibimbap antes de vir. Por favor, se alimente. E me envia o resultado do teste quando fizer.
— Eu tenho quase certeza de que não tô grávida.
— Mesmo assim. Faça e me mande o resultado. Quero ter certeza também.
Assenti, de cabeça baixa, olhando para o chão. Então o vi dar um passo para trás.
— Eu vou voltar pra casa agora — disse ele. — Meu advogado tá tentando rastrear o stalker idiota que tava te perturbando, vou te manter atualizada sobre isso também até pegarmos ele.
— Tá.
Um momento depois, outro passo para trás. Então ele se virou e foi embora. Escorreguei pela parede assim que ouvi a porta bater e chorei mais ainda.
Eu estava com o coração despedaçado, e não sabia ideia de como fazer ele parar de doer.


Continua...



Nota da autora: E seguimos só de ladeira abaixo. O que vocês acham que vem por aí? E lembrete amigo: NO FINAL DÁ TUDO CERTO! CONFIEM NO PROCESSO! xD E atenção, leitoras da Cave Panthers! Mason já está disponível! o/ Até a próxima att! XxAlly
PS. Se você chegou aqui, provavelmente leu HERO, RIVER ou caiu de paraquedas. De toda forma, seja bem-vinda <3 Essa história já está finalizada e está sendo postado um capítulo por semana. Os pps são personagens mencionados no universo da CAVE PANTHERS, mas a história deles se passa anos depois~ Dou as boas-vindas a você que chegou até aqui e espero que você se divirta. Essa fic é o meu xodózinho ♥
Para mais informações sobre mim ou meus outros livros em e-book já publicados, visite meu Instagram (@aquelally) ou meu grupo de leitores no WhatsApp pelos links nos ícones abaixo. Podem interagir comigo, tá? xD PPS. Como TENAZ anda sendo mencionado, vou deixar a playlist desse livro nos links abaixo pra vocês também se sentirem um pouquinho na pele da Ayla haha ♥





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