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Última atualização:02/06/2024

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🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Beirut – Elephant Gun🎵


Misturava a farinha com a manteiga enquanto pensava na Quiche Lorraine. Ao contrário do que muitos pensavam, a famosa receita francesa tinha origem alemã, fora criada em um pedaço da Alemanha chamada antes de Alsácia Lorena. A Alsácia era uma província alemã que fora lugar de muitos conflitos entre alemães e franceses até o fim da Segunda Guerra, quando enfim a França retomou o controle definitivo do lugar. Foi quando a receita recebeu o nome pelo qual é conhecida mundialmente até os tempos atuais. Quiche vem do alemão, Küchen (torta), e a província alemã se chamava Lothringen, com a anexação, o nome da receita ganhou traços franceses e se tornou Lorraine. Assim, Quiche Lorraine.
Sempre gostei da pronuncia de Lorraine. Em minha opinião infantil, das épocas de comer em casa, quando papai fazia a quiche aos sábados, para o jantar, a palavra Lorraine era confortável na língua. Não fazia muito sentido e ainda não faz, mas continuo achando o nome bom de pronunciar.
Era engraçado como algo já feito centenas de milhares de vezes por mim, podia simplesmente mudar seu sentido. Quiche Lorraine era o prato favorito da mãe de , ela sempre pedia para que eu fizesse quando ia nos visitar no passado. Conseguia me lembrar bem de como ela sempre tentava ajudar e sempre acabava atrapalhando mais do que qualquer coisa. Provavelmente nós nunca mais cozinharíamos quiche Lorraine juntas.
Mas para além disso, encontrava muitas semelhanças da receita alemã colonizada com minha vida atual. Imaginava as enormes e difíceis batalhas para decidir se aquele pequeno pedaço de chão seria alemão ou francês. Era como eu. Longos dias e noites para descobrir se eu escolheria ou . Assim como eu, a Alsácia pertencia a França e fora tomada pelo Terceiro Reich alemão em 1940, sendo recuperada pela França no fim da Guerra. Certo que antes da tomada durante a Segunda Guerra, a região já havia passado por outros conflitos semelhantes, com tomadas e retomadas, mas não vem ao caso.
Em uma comparação para fim de exemplo e ilustração, eu podia ser a Alsácia, era a Alemanha Nazista e , logicamente, seria a França. A Alsácia pertencera por um tempo aos alemães, mas alguns anos depois já estava de volta ao domínio francês. Invejava a Alsácia nisso. Foram apenas cinco anos separada da França, enquanto eu, fora dezesseis e contando. Afinal, apesar de estar livre agora, ainda não me sentia totalmente pronta para viver com o que ele me pedia ou o que eu achava que ele merecia – que no fim, era a mesma coisa.
Mas de certo modo, após muito tempo, sentia que as coisas enfim pareciam se mover. Como uma água parada por muito tempo, já com mau cheiro e moscas voando baixo, que de repente retoma seu movimento quando alguém desentope o cano. Era lento, mas agora eu não era mais uma mulher torturada por culpas, arrependimentos e frustrações, vivendo uma vida dupla, plástica e falsa, magoando todos a quem amava. Era apenas a mulher torturada por culpas, arrependimentos e frustrações, divorciada e que estava magoando a – achava. Havia uma singela redução e mudança e eu me apegava a isso.
Claro que, com as conversas com a psicóloga, entendia que me priorizar naquele momento não era ruim, parecia finalmente ter parado de fugir das minhas responsabilidades naquele fuzuê. Se saísse do casamento e me jogasse em , estaria fazendo o que achava que era à vontade dele, mas não a minha. , antes que qualquer um, queria que eu fizesse a minha vontade, mesmo que isso o frustrasse. também, afinal, havia me libertado – libertado a nós dois. Assim como todos os outros, meus irmãos, Gina, Matt e meus pais.
No início julguei que seria difícil contar a eles, aos meus pais, mas não foi. Apesar do choque, o fato de estar ao meu lado e segurando uma lata de cerveja talvez tenha amenizado as coisas. Não éramos casados na igreja e isso pareceu ajudar mamãe a lidar com a separação. Ao menos agora não estaríamos em pecado, ela disse assim que teve chance. Dias depois, quando voltei a casa deles sozinha para visitá-los, Vanni havia passado por lá e semeado boas palavras, convencido os dois de que era uma saída saudável e que todos estavam felizes com a decisão. Na vida, antes do meu retorno a Paradise, não poderia imaginar que me divorciaria, que teria meu ex-marido como vizinho e que meu irmão mais velho seria não apenas meu confidente, como também o advogado do diabo com meus pais.
A vida dá voltas.
Uma coisa que não se fala sobre momentos ruins, ou que se falam, mas que ignoramos quase sempre é como eles nos mudam. É como se quase literalmente morrêssemos e era uma sensação tão estranha, tão...só. Sentia ter morrido. Estava grata pelo momento atual, o restaurante, a amizade com , poder beijar sem medo e culpa quando sentíssemos vontade. Mas era tão estranho me olhar no espelho, olhar fotos ou ouvir coisas antigas sobre mim. Era como se tivesse morrido e aquela versão, a versão atual de mim ainda estivesse descobrindo como se conectar a todas as coisas. Com isso vinha certas culpas também, sobre se desconectar de coisas que sempre foram tão importantes antes, apenas para abrir espaço para novas.
Agora eu não era a popular , não era a estrela em ascensão, convidada para concursos de culinária e programas de TV, casada e mãe de um pré-adolescente. A com uma vida perfeita em Nova York tinha morrido há mais de um ano. Depois veio a que por fora parecia tudo o que a antiga era, só que mais arrogante, mais amarga, dura, fria, triste, cheia de culpa e remorso, perdida. E então, a de agora. , divorciada, dona de um restaurante beira-mar, mãe de um filho adolescente, com os mesmos amigos de quando era adolescente, flertando com a paixão adolescente. Era estranho e para muitos, poderia ser loucura trocar a vida de prestígio que tinha antes por essa, porque ela parecia um tipo de regressão. Mas aquela vida, ou ao menos o que ela estava sendo até então, aquela possibilidade de vida pelo menos me deixava dormir à noite.
O efeito borboleta, cascata ou do que quer que chamemos. Temos – por culpa talvez da nossa ansiedade desenfreada – a terrível cultura de querer prever o futuro – mesmo sendo extremamente céticos. Queremos saber exatamente o que vai acontecer, como vai acontecer, queremos saber quais são os próximos passos da escada e como podemos chegar lá mais rápido. Subir, subir, subir, alcançar, alcançar, alcançar, mas nunca aproveitar, nunca parar. E qual é o problema em parar? Qual é o problema? Qual a dificuldade em olhar ao seu redor e pensar que se já tem uma vida boa o suficiente e parar? Sem mais degraus, sem mais coisas para conquistar. Sem mais títulos, mais nomes, mais fama, mais dinheiro.
Aceitar a paz e viver nela.
Me lembrava de constantemente pensar, pouco antes da decisão de de aceitar o trabalho em Paradise, sobre essa escada e seus degraus finitos. Era conhecida, era grande, tinha dinheiro, um marido e um filho, um restaurante. Era como se tivesse chegado ao final da escada e, olhando para cima, não conseguisse ver mais nenhum degrau a subir. Como se não importasse quantos anos mais vivesse, só teria aquilo, só seria aquilo, sem novidades. Seria bom, talvez alguém esperto diria a si mesmo que enfim era hora de descansar, assim com Deus fez quando terminou de criar o mundo, viu que havia feito um bom trabalho e descansou. Mas já naquela época – ainda não sabia, mas – não era uma pessoa esperta. Sentia-me extremamente ansiosa por não ter mais degraus, como um rato treinado em laboratório. Tinha medo do choque que viria por não subir, acreditava que precisava seguir subindo para ganhar uma recompensa, para ser feliz.
Fato era, nem mesmo eu sabia que recompensa eu estava buscando.
Fora preciso ceder, descer minhas escadas para subir as de – ou como eu pensava na época, ajudá-lo a chegar no mesmo degrau que eu, para que ele pudesse me ajudar e subir mais dos meus, porque eu estava obcecada nisso. Não era por , era por mim e talvez por querer mostrar para todos da minha antiga vida a pessoa que eu havia me tornado. Para a psicóloga, talvez eu quisesse vir como uma tentativa última de ter , ou para também mostrar a ele, para que visse o que perdeu em não me escolher – no passado, obviamente. Mas assim funcionava a cabeça da antiga , a que chegara em Paradise no ano passado.
Eu comecei a subir os degraus com e acrescentei mais alguns a minha escada, o restaurante francês. Quando subi, alcancei o topo, caí de lá. A queda ainda doía, mas agora a escada parecia diferente. Era como se os degraus tivessem mais espaço e fossem mais atrativos a permanecer, a subida já não era a única coisa a chamar atenção no caminho. Na verdade, nem importava.
Devia fazer um funeral a minhas versões falecidas.

🍁


Estávamos deitados juntos no leito de , não era exatamente confortável, mas depois de repetidos pedidos e muita insistência, resolvi me juntar a ele e me deitar também. Era meio da tarde e eu estava de folga do Eau de Mer, aproveitando para descansar e fazer qualquer coisa que tivesse vontade. Já faziam alguns dias desde a decisão do divórcio, desde que todos ficaram sabendo. acertava os últimos detalhes de sua mudança para a casa ao lado, ainda comíamos na mesa juntos, ele, Dom e eu, conversando sobre o dia. Na verdade, tudo era quase que exatamente igual, exceto que não me sentia culpada e que no final do dia, se retirava para o nosso (meu) quarto de hóspedes, enquanto eu ficava no nosso (meu) quarto.
Era fácil mergulhar em um turbilhão de pensamentos nesses momentos, sobre se a decisão da separação era realmente certa. Meu maior inimigo era – como sempre – meus pensamentos, eles me torturavam – ou melhor, eu me torturava. Pensar demais, analisar demais, destrinchar cada sílaba de pensamento, frase dita ou emoção sentida, era um inferno. Em Harry Potter, livro que lia com Dom com certa frequência, em um dos livros há menção a um objeto mágico chamado penseira, parecida com uma bacia de pedra, onde Harry e Dumbledore colocavam suas memórias para revisá-las. Gostaria que tivesse algo semelhante em nosso mundo, mas não queria revisar minhas memórias, – exceto as antigas, com – ao contrário, gostaria de apenas retirá-las e colocar nesse lugar, guardado, longe do meu conhecimento.
Por isso, nos últimos dias, estava satisfeita em fazer coisas que me tiravam de minha própria cabeça, do buraco que eu entrava quando ouvia meus pensamentos. Estar com era uma dessas coisas. Era como uma pintura, ou uma dessas imagens doces de sonho que quando se acorda, se deseja desesperadamente voltar. A luz do sol morno da tarde entrava pelas cortinas quase brancas do quarto, haviam algumas flores brancas que eu havia trago, que estavam dentro de uma garrafa improvisada como um vaso, sobre um móvel, perto da janela. A luz do sol refletia nas pétalas brancas e era bonito, simples e bonito, como se o sol quisesse, tivesse escolhido tocar aquelas florezinhas simples, das quais nem eu mesma sabia o nome.
A porta do quarto estava fechada, deitado com um dos braços apoiados atrás da nuca e a outra mão repousava sobre a barriga, enquanto ele ria. A risada dele enchia o quarto e era como se estivéssemos dividindo um pedacinho de céu. Riamos sobre a adolescência e suas vergonhas, sobre coisas bobas sem importância, mas era como se aquele momento pudesse ser o momento mais importante e marcante de toda minha vida. Enquanto observava de perfil, olhando para o teto e contando sobre como eram as coisas quando ele dava aulas voluntárias de surf na praia, só conseguia me sentir em paz. Era como se nada pudesse ser maior que aquilo, não temia qualquer tipo de tempestade, não me sentia fora do lugar ou perdida, com dúvidas, era ELE.
Me perguntava se todos se sentiam assim o tempo todo, se Giovanni e Sue se sentiam assim, se Gina e seu esposo, se meus pais... era algo tão mágico, calmo e apaziguador. Me perguntava se então era isso o amar e ser amado. O estar tão irremediavelmente apaixonado por alguém que se consegue passar por qualquer coisa no mundo. Era tão simples. Como podia uma resposta tão complexa, a resolução de questões tão difíceis ser apenas a presença de outra pessoa?

. – me chamou, olhando para mim e só então percebi que estava tão presa ao que sentia que havia esquecido que estávamos conversando. Eu apenas sorri. – Você estava onde?

Quando sorri, ele pareceu ler meu sorriso, virou-se de lado e passou a me observar mais atentamente.

– Bahamas. – Menti e ele riu, mexendo os ombros.
– Eu estou nas Bahamas com você? Nesse seu sonho acordada? – aproximou-se de mim, apertando seus lábios contra os meus rapidamente, enquanto afagava minha bochecha com o polegar.
– Claro que não. – Menti de novo, sorrindo contra os lábios dele.
– Você não ousaria. – Ele fingiu estar incrédulo. – Negar a possibilidade de ter um jogador de futebol famoso do seu lado, nas Bahamas.
– É justamente por isso que eu não quero. – Falei, tocando a ponta de seu nariz com a ponta do dedo. – Não gosto da mídia. Meus tempos de chef estrela acabaram por uma razão.
– Sério? – Ele franziu o cenho. – Achei que fosse por ter se mudado pra uma cidadezinha perdida no mapa dos Estados Unidos, fechado os restaurantes em Nova York e por passar mais tempo no hospital do que as enfermeiras. – Ele implicou fingindo falar sério e eu o cutuquei nas costelas, fazendo-o se encolher enquanto gargalhava.
– Eu devia passar mais tempo com Ted, no cemitério, e menos com você. – Resmunguei enquanto ele me olhava e sorria. – Lá pelo menos a vista é mais bonita.
– Ele falava de você, sabia? – comentou, sem dar nenhum tipo de sinal de que entraria naquele assunto.
– O que disse? – Quis me certificar de ter ouvido bem.
– Ted. – Ele repetiu, voltando a encarar o teto. – Ele falava de você.
– Mas... – Eu hesitei, olhando confusa e perdida. – Como? Por que? Você e o Ted eram amigos também?
– Quando eu era famoso, todo mundo da cidade meio que achava ser meu amigo. – sorriu de lado. – Encontrei com ele algumas vezes e ele falou de você. Na verdade, sempre que nos encontrávamos ele falava. Mais até que Giovanni.
– Vanni nunca me disse isso, que Ted falava de mim ou... – Perdi as palavras no meio do caminho.

me olhou de soslaio, mas não disse nada.

– O que ele dizia? – Perguntei depois de tomar coragem, após um breve silêncio.
– Acho que ele queria puxar assunto. – sorriu e olhou para mim, para em seguida voltar a encarar o teto. – Do tipo, veja, eu sou amigo da irmã do Giovanni.
– Eu era uma carteirada? – Ri também, apoiando a mão e o queixo no peito dele.
– Ela diz como se estivesse surpresa. – rolou os olhos como costumava fazer antigamente, revirando a brasa de todas aquelas lembranças felizes.
– Esse rolar de olhos me lembra tanto você... – Sorri encantada e ele me olhou, esperando que eu continuasse. – No início de tudo, quando cheguei aqui e não fazia ideia do que se passava nessa sua cabecinha.

riu e apoiou a mão nas minhas costas, me abraçando.

– Hoje em dia você não deve suportar mais me ouvir falar. – Ele sorriu fechando os olhos, como também fazia no início de tudo.
– Não diga bobagens. – Falei balançando a cabeça.
– No início... – começou a falar, mas pareceu se perder. Não por não saber o que dizer e precisar buscar em suas lembranças, era mais como se estivesse inseguro em desnudar algo íntimo, um recorte tão específico de seu passado pelo seu ponto de vista. – Quando você chegou, eu não queria que ficasse. – Declarou e eu ergui a cabeça, surpresa.
– Perdão?

olhou para mim e vendo – possivelmente – meu cenho franzido e olhar estreito, sorriu e balançou a cabeça.

– Não era minha ideia de final perfeito. – Ele deu de ombros. – Nem parecia muito poético. Não queria companhia, principalmente se fosse você.
– Isso me pegou de guarda baixa. – Assumi, sentando-me e mexendo os ombros. sorriu fechado e suspirou, mantendo os olhos em mim.
– Era mais fácil aceitar tudo se não tivesse ninguém aqui. – Ele disso como quem conta que ligou a TV.

Não soube o que dizer.
Inclinei minha cabeça e nos mantivemos ali, em silêncio, ouvindo o farfalhar da cortina, que batia contra parede e janela toda vez que o vento a tocava. Ouvindo os passos no corredor, algumas vozes do lado de fora, no jardim, vez ou outra um pássaro que cantava perto da janela.

– Giovanni me disse que... – Minha voz falhou e eu não tinha certeza se falar sobre aquilo com não seria uma traição a confiança do meu irmão que fora depositada em mim. – Ele me disse que veio se despedir antes. Antes de tudo. – Continuei.
– Eu sei. – me interrompeu e quando eu o olhei, ele tinha uma sobrancelha erguida e assentiu com a cabeça. – Eu sei.
– Ele acha que você não se lembra. – Disse a ele.
– Deixe que continue assim, então. – desviou o olhar.
– Por que? – Perguntei com uma confusão quase infantil.
– Por que dizer a ele que eu ouvia e via tudo, mesmo quando todo mundo achava que não? – devolveu a pergunta. – Quando eu estive sozinho, ou quando não tinha qualquer esperança porque todos estavam ocupados demais vivendo as vidas, ou culpados demais por estarem vivendo as vidas.

Era difícil acontecer, nada comum, mas naquele momento era nítido o tom amargo e ressentido de . E era justo também.

– Nunca falamos como foi pra você, passar por tudo isso. – Falei eu. – Não de verdade, pelo menos.

sorriu, mas não era um sorriso feliz ou educado.

– Eu quase não me lembro sobre como me sentia, . – Ele expirou um riso fraco. – Tinha muito remédio pra dor na minha cabeça, falando por mim.
– Você acabou de falar sobre. – Apontei e ele me olhou em silêncio. – Não sabia que você sabia sobre... sobre a gravidade na época...
– Que eu ia morrer? – Ele me interrompeu, mas eu agradeci. – No final, isso era como um tipo de alívio. – sorriu de novo, mas de modo triste. – Acho que por isso não queria que ficasse aqui no início de tudo. Demorei tanto em negação e revoltado com meu final que... acho que quando estava pronto e tinha aceitado, você aparecer, alguém aparecer tinha sido injusto.
– Aquele não era o final. – Eu tentei sorrir e afagar seu ombro.
– Eu estava sozinho, meus amigos me olhavam com tanta pena quando me visitavam, que... – se ajeitou na cama e riu com amargura. – Nem mesmo me contavam sobre as coisas boas de suas vidas, acho que pensavam que isso ia me magoar.
– E ia? – Investiguei incerta se era o melhor caminho, mas estava curiosa, aquela face de ainda era tão desconhecida a mim que era difícil me conter.
– Talvez. – Ele deu de ombros e voltou seu olhar para a janela. – Eu tinha uma vida agradável e, então estava sentenciado a passar o resto da vida em uma cama de hospital, num lugar que nem me dava direito a eutanásia. – Um arrepio tomou meu corpo ao ouvir aquelas palavras. – Eu só sentia raiva, talvez foi por isso que todo mundo se afastou. – sorriu fraco. – E depois que aceitei morrer, que não tinha outra saída além de esperar a misericórdia de uma morte rápida, você apareceu. – Ele me olhou rapidamente, mas não sorriu ou tinha um olhar sereno, parecia até mesmo um pouco sombrio. – Tudo isso, e nós dois. . Tudo ajudou a me distrair, eu acho. – Ele confessou para mim. – Mas essa sensação estranha sempre esteve lá dentro e agora... – suspirou e fechou os olhos. – Deve ser por isso que não consigo lidar bem com a ideia de sair daqui. Como eu posso recomeçar, sendo que...
... – Tentei tocá-lo, mas ele se afastou.
– Tudo bem, . – Ele sorriu fraco, sem mostrar os dentes. – Está tudo bem.
– De alguma forma, acho que entendo. – Falei depois de alguns instantes em silêncio, capturando sua atenção. – Quando quis me jogar na baía. – Disse sem o olhar, mas percebi de soslaio que se endireitou. – Depois, quando pensei em Dom e em todo o resto... acho que quando passamos por momentos assim, de quase morte, seja por ideação ou por algo alheio a nós, algo muda para sempre. Se ver deixando de participar do mundo, do convívio das pessoas, para depois voltar, pode ser um pouco estranho. De alguma forma, eu morri naquele dia. Ou uma parte minha morreu. Como se um véu fosse tirado e eu fosse capaz de enxergar além do que meus olhos antes podiam.
– Eu tenho medo de não ter um lugar. – confessou. – Eu fui uma lembrança, sou uma lembrança. A lembrança do que podia ter sido, a lembrança boa dos jogos, do amigo, mas eu não sou isso. Não sou mais há muito tempo. É como se eu tivesse voltado dos mortos após anos. – não me olhava, parecia ter seu olhar perdido em qualquer canto do quarto. – Eu não tenho uma casa, uma perspectiva, nem mesmo sei o que posso fazer... não sei fazer mais nada além de jogar futebol e...
– Você tem um lugar, . – Sorri, mas ele não me olhou. – Tem um lugar com Giovanni, Matt e eu.
– Eu não quero ser um peso para ninguém, . – Ele enfim voltou seus olhos na minha direção. – Não é o tipo de vida que eu imaginei ter.
– Talvez seja o caso de você olhar com mais leveza, então. – Sorri, aproximando-me dele e rolou os olhos. – Alguém me ensinou que não há apenas uma porta, um caminho. A vida é mutável. Quando se estanca um rio, ele descobre formas de fluir por outro caminho, quando se corta um galho com frutas de uma árvore, ela não deixa de dar frutas, ela tem mais galhos para florir. – Sorri e balancei a cabeça uma vez, lembrando-me de Rafael. – Quando nas roseiras, as podas acontecem, isso não as impede de florir. Quando era criança, minha mãe contava histórias sobre rosas que tinham sentimentos e eram vivas. – Eu sorri. – Se tratando de uma poda, elas poderiam ficar traumatizadas com o corte sem aviso, mas não, elas aguardam e depois crescem outra vez. Ano após ano.
– Tá. – riu pelo nariz e cruzou os braços sobre o peito. – Isso é você dizendo que eu não devia me deixar abater?
– Não, isso sou eu dizendo que você pode fluir pra onde quiser. – Tomei sua mão e entrelacei nossos dedos. – Nós dois tivemos uma segunda chance, não quero mais me perguntar sobre o porquê, quero apenas aproveitar.

🍁


Depois da conversa com , tinha ainda mais certeza e paz no espírito do que quando havia chegado ao hospital. Era como olhar para frente e ter certeza sobre o caminho, sobre estar indo para o lugar certo. Teria ficado mais tempo com , mas apesar de seus protestos, precisava apanhar Dom na escola. Enquanto deixava o hospital, passando pelo grande e bem cuidado jardim, encontrei a figura excêntrica do médico que há muito já não via. Ele alimentava os patos, sozinho, tirando migalhas do bolso de um avental que usava sobre o jaleco branco. Os cabelos estavam um pouco mais curtos, mas não usava mais bigode. Resolvi por me aproximar.

– Rafael. – O chamei incerta ao chegar mais perto e ele de pronto me olhou e sorriu.
. – Celebrou. – Bom ver você.
– Já faz tempo que não te vejo, que não nos encontramos. – Falei, colocando as mãos nos bolsos da calça que vestia, um pouco sem jeito.
– Você não estava precisando de mim, estava? – Ele arqueou uma sobrancelha, não respondi e ele voltou sua atenção aos patos. – Mas isso não é ruim. Não.
– Eu até senti falta dos seus enigmas, das frases que eu nunca entendi. – Sorri inclinando a cabeça.
– Você não precisa mais, agora você já entendeu. – Ele respondeu com serenidade.
– Não entendi tudo, eu... – Tentei dizer.
– Mas ninguém deve entender tudo. – Rafael sorriu, erguendo em minha direção um pedaço de pão seco. – Se você quisesse entender tudo, esse seria o problema.

Eu ri.

– É, tem razão. Estou satisfeita em entender só o suficiente e ter paz. – Falei e ele me olhou. – Descobri que saber coisas... eu só prefiro a paz da ignorância.
– E é mesmo melhor assim. – Rafael sorriu e atirou o pedaço de pão seco aos pássaros.
– O senhor sabe sobre... sobre tudo que aconteceu? – Perguntei, estava curiosa sobre o que ele teria a dizer.
– Por acaso, sim. – Respondeu o médico, abraçando um pato grande e preto e erguendo-o do chão.
– E o que vai dizer? – Expirei um sorriso. – Algo sobre bússolas e caminhos? Sobre rosas, destino, portas ou sei lá?
– Não vou dizer nada.
– Nada? – Arregalei os olhos.
– Se você já entendeu, não precisa que eu diga nada. Se você não entendeu, não posso dizer nada.
– Mas Rafael, eu... – Tentei protestar, mas ele me cortou.
– Se está um dia claro, porque ainda precisa de um farol? – Ele indagou.
– Eu não sei. – Baixei os ombros.
– Então vá descobrir. – Ele sorriu, colocando o pato no chão e jogando mais pão para os outros.
– O . – Comecei a falar, mas ele pareceu não estar muito atento. – Ele está perdido. Talvez você pudesse... como médico dele, conversar um pouco e ajudá-lo...ou pelo menos me dizer como ajudar.
– Por que você precisa ajudar? – Ele se voltou para mim e eu ergui as sobrancelhas, confusa. – Ele lhe pediu ajuda? – Neguei.
– Mas eu o amo, é natural que eu o ajude a passar por momentos difíceis, como esse. – Argumentei, seguindo o médico a medida com que ele se deslocava na margem do lago. – Tentar tornar mais fácil.
– Cada um tem sua jornada, . Diminuir a carga do viajante nem sempre vai ajudá-lo. Às vezes só o fará dar duas viagens. – Rafael voltou a falar com seus enigmas confusos, mas que de forma surpreendente, não me pareciam mais tão confusos. – percorreu grande parte da dele só, você pode deixar que ele escolha quando isso vai mudar.
– Mas o ...– Tentei falar, mas Rafael me interrompeu.
– A ama? Sim. Mas nem sempre se trata disso. – O médico sorriu. – Algumas jornadas devem ser feitas sozinhas. Você deve saber.

O médico tornou a se afastar, mas eu não o segui. O observei jogar pão para os patos, afagar a cabeça de crianças que cruzavam seu caminho e depois tornar e segurar patos grandes e gordos no colo. Eu entendia.
Olhei para cima e para o lado, buscando a janela entreaberta e vazia de . Eu entendia.

🍁


No início da noite já estávamos em casa, Dom e eu. trabalharia até tarde, mas haviam pessoas em sua casa, ajeitando a mudança, instalando coisas, deixando tudo pronto para quando ele fosse viver “só”. Dobrava roupas de Dom distraída, olhando pela janela. As nuvens formavam uma muralha perolada, pintada de lilás em vários pontos, algumas estrelas já enfeitavam o céu e era um dia quente e agradável, com brisa suave e fresca.

– Tio Vanni ligou, pediu pra você retornar. – Dom avisou ao entrar em seu quarto, apoiando-se na porta.
– Eu vou. – Sorri o olhando rapidamente, depois voltei a atenção para as últimas peças de roupa que dobrava. – Você já está com fome?

Ele assentiu com a cabeça.

– Pensei em pedir uma pizza, ou qualquer outra coisa. – Sugeri, abraçando um suéter dele. – Ou podemos dar um susto em Charles e no pessoal e aparecer de surpresa para jantar no restaurante. O que acha?
– Pode ser, tanto faz... – Ele deu de ombros e se aproximou, olhando a pilha de roupas sobre a cama.

Dom estava diferente, há alguns dias vinha notando uma sutil mudança em seu estado. Eram coisas pequenas, menos agitação, depois menos interesse por brincar com os filhos de Gina, menos interesse em sair com meus irmãos ou com . Menos perguntas, menos desobediências. Talvez ele, em sua maturidade infantil, estivesse tentando tornar tudo mais fácil para nós, ou eu estava deixando escapar algo importante na vida de Dom. Outra vez.

– Papai também vem? – Ele perguntou despretensiosamente, batendo uma das mãos sobre a cama, como se distraído. Me lembrei de , já que ele em alguns momentos tinha o mesmo costume.
– Não, vai trabalhar até tarde hoje. – Lembrei-o, inclinando a cabeça para o olhar melhor. – Achei que já tinha te falado isso.
– É, é... falou. – Dom deu de ombros.

Eu sorri, deixei o suéter que segurava sobre a cama e o abracei, beijando sua cabeça.

– O que foi? – Quis saber. – O que está se passando nessa cabeça?
– Nada. – Ele negou rápido, mas pareceu mudar de ideia. – Só que está tudo estranho.

O olhei, torcendo os lábios. Depois da conversa sobre o divórcio havíamos trocado algumas palavras sobre o assunto com Dom, respondido algumas perguntas, mas não houve qualquer outra conversa depois disso.

– E você quer falar sobre? – Indaguei, sentando-me na cama e ele jogou a cabeça para trás.
– Eu posso perguntar uma coisa? – Ele me olhou e eu assenti, sorrindo fechado.
– Meu pai traiu você? Ele te magoou? – A pergunta de Dom me pegara totalmente desprevenida. Arregalei os olhos e engoli em seco.
– Dom?
– É verdade? – Ele arqueou as sobrancelhas.
– Por que está perguntando isso? De onde isso veio? – Puxei para que ele se sentasse ao meu lado e o questionei olhando nos olhos.
– O pessoal da escola. – Ele ergueu um ombro. – Dizem que quando os pais se separaram foi porque o pai traiu a mãe e que...aqui também devia ser assim.
– Isso não é verdade. – Neguei firme. – E as pessoas na escola não deviam falar da nossa vida. Eles não nos conhecem.
– Então, se não foi por isso. Por que? – Ele devolveu com outra pergunta.
– Querido, achei que tivéssemos explicado. – Eu apertei os lábios, mas ele continua me encarando com um olhar que eu não entendia o que significava. – Às vezes um casal... são coisas complicadas demais para uma criança entender.
– Eu não sou criança, mãe! – Ele protestou. – Já tenho quase quatorze anos.
– Tem razão, você não é. – Falei eu, sorrindo fechado, afagando sua cabeça outra vez. – Mas é que isso é uma resposta complicada até para seu pai e eu. Não é fácil, preto e branco.
– O que não é fácil?
– Eu e o seu pai, nós ainda nos amamos. Mas com o tempo, com a vida e com as coisas da vida, a gente percebeu que estava mais para amigos, entende? – Tentei explicar. – Não precisa que algo ruim aconteça para que um casal se separe. Na verdade, as vezes um casal se separa justamente para que algo de ruim não aconteça. Para que um não machuque o outro. E isso não é culpa de ninguém. Nem minha ou do seu pai, ou sua. Entendeu bem?

Dom assentiu com a cabeça.

– Estão falando muito disso na escola? – Eu perguntei, estava preocupada.
– Só como eu estou. – Dom contou, dando de ombros. – Tia Gina. Vovó e vovô também. E o resto todo.
– E como você está? – Repeti a pergunta.
– Não sei. – Dom respondeu sem me olhar. – Você vai se casar de novo? Meu pai vai se casar de novo? Vão ter outra família?
– Bem, eu... – Engasguei com aquela pergunta, era difícil pensar em como responde-la. – Dom, querido, eu não tenho essa resposta. Podemos nos casar de novo com outras pessoas, ainda somos jovens e muita coisa pode acontecer. – Menti, parcialmente. – Mas se isso acontecer, a família apenas vai aumentar, não vai ser uma diferente. Você é meu filho para sempre e nada no mundo é capaz de mudar isso. Assim como é filho do seu pai e nada no mundo pode fazer ele desistir de você.

Dom torceu o lábio e eu sorri.

– Vem aqui. – O puxei para um abraço. – Quero apertar bem o meu menino. Fazer uma sopa de você.
– Mãe, por favor, eu não sou mais criança. – Dom reclamou, rindo fraco.
– E é justamente por isso. – Falei, beijando-o de novo.

🍁


Cantarolava qualquer coisa enquanto deixava as coisas prontas para o jantar. Estava no restaurante, estava feliz e animada. Me sentia como no início de tudo, quando abri o primeiro restaurante e estava inflamada com ânimo e agitação, comandando uma cozinha.
Apesar de estar ocupando e tendo atribuições de uma chefe verdadeira, em muito tempo me sentia apenas uma cozinheira e estava feliz assim. As coisas simples. No último ano havia aprendido muitas coisas, uma delas era a de que tudo passava, bastava ter paciência. Um dia de cada vez, e de repente você se percebe vivendo uma vida boa e agradável e se lembra que um dia já sentiu coisas ruins.
Claro que ainda era atormentada por pensar demais, por muitas culpas e outras coisas que constantemente me consumiam. Mas pela primeira vez em muito tempo me sentia bem, de verdade. Não precisava fingir, esconder, disfarçar, viver sob pressão. Devia acordar, cuidar do meu filho e do meu novo (velho) lar, visitar , trabalhar no restaurante, sair com amigos, ver meus pais e meus irmãos, minha afilhada. Era simples. Não tinha grandes desejos, altos e muitos degraus para subir, na verdade, não me importava mais com a escada. Me sentia bem, amada, feliz, em paz. E definitivamente, há coisas sem preço no mundo, a paz, esperança e o amor definitivamente estão entre elas.

– Parece que me candidatei para Pesadelo na cozinha, mas vim parar em Ratatouille – Charles implicou surgindo perto de mim. Estava animado e sorridente, com o cabelo preso com a bandana vermelha.
– Está procurando autoflagelação, Char? – Sorri sem o olhar. – Posso te indicar alguns lugares. – Brinquei e ele gargalhou.
– Char. – Ele repetiu o apelido que havia usado. – Essa é a novidade do ano. – Charles negou com a cabeça e sorriu. – Você parece bem.

Suspirei, girei o corpo, apoiando na pia e o olhei.

– Seria estranho se eu dissesse que, depois de muito tempo, parece que enfim estou?
– Depois de quanto tempo? – Ele cruzou os braços sobre o peito. – Por curiosidade.
– Mais de quinze anos. – Eu sorri e ele uniu as sobrancelhas, confuso. – Já sentiu como se tivesse perdido uma parte sua, e aí quando enfim encontra, parece que todo o resto faz sentido?
– Não, mas acho que posso entender. – Charles estava confuso, não que eu não estivesse também. – Isso, depois do divórcio... – Ele coçou o queixo. – É você dando a entender que encontrou alguém?

Eu ri alto.

– Não, sou eu dizendo que me encontrei. – Dei de ombros e ele sorriu.
🍁


No fim de semana Giovanni havia me intimado a tirar folga. Segundo ele, se não fizesse por bem, ele denunciaria o restaurante a fiscalização e sabotaria a cozinha com baratas. Achei melhor não provocar ou por a prova seus talentos questionáveis.
O vento no píer era forte e bagunçava os cabelos, o céu começava a escurecer, com nuvens pesadas, que salteadas combinavam com as pequeninas estrelas que timidamente iluminavam o céu. Apesar do clima pouco convidativo de tarde de outono, o píer estava lotado de famílias e pessoas sozinhas, grupos de amigos. O píer da cidade de Paradise – o píer convidativo e turístico – ficava na Praia Azul. Se estava no Eau de Mer – que ficava quase no final de uma das praias da cidade – podia seguir para a direita, passando pela parte pedregosa da praia, seguindo pela avenida, perto de alguns prédios residenciais antigos, uma extensa área de restinga e então as docas e a praia com areia grossa e clara. No final da praia, perto das falésias que marcavam a divisa da cidade, era um píer antigo que havia sido revitalizado várias vezes, era extenso, com lojas de peixes, doces, artigos de pesca. Tinha também uma roda gigante, um carrossel, barracas de pipoca e algodão doce.
Era ali o lugar escolhido por Giovanni para o reencontro, a visita ao passado, como ele gostava de chamar. E por mais que preferisse chamar de renovação de memórias, estava ansiosa para uma noite com meu irmão e amigos. Oliver estava de volta em Paradise, já havíamos conversado sobre o divórcio e ele foi a pessoa menos chocada ou surpresa. Na verdade, sua reação fora até indelicada, mudando de assunto e lidando como se tivesse recebido a notícia sobre o tempo. Ele viria também. Oliver, Vanni, Gina e Matt.
Talvez já estivessem ali, em algum lugar no píer. Já fazia tanto tempo desde minha última vez naquele lugar, que não me lembrava mais como me localizar, já era a terceira vez que percorria a extensão do píer sem encontrar meus irmãos e amigos. Estava nervosa, era como se fosse a primeira vez a sair sozinha, como uma jovenzinha ansiosa a ir para um encontro. Abraçava o corpo, fechando o casaco, tímida por já passar pelos mesmos lojistas pela terceira vez.

– Até que enfim! – Ouvi alguém falar mais alto e reconheci a voz de Giovanni.

Olhei ao meu redor, buscando sua figura e o encontrei junto aos outros, perto de uma barraca de pipocas, na frente de uma loja de doces. Sorri envergonhada e baixei a cabeça enquanto me aproximava deles.

– Achei que teríamos que invadir seu restaurante. – Giovanni falou, fingindo falar sério, abraçando-me.
– Ele não ia fazer isso, mesmo se você furasse. – Oliver rolou os olhos, tinha as mãos nos bolsos da calça e olhar entediado. – Giovanni é contra mentir para figuras de autoridade.
– Mas eu mentiria pela minha irmã. – Vanni se defendeu enquanto eu abraçava e cumprimentava os outros.
– Não, não mentiria. – Gina concordou. – E Matt está aqui, eu não posso ser presa. Tenho filhos e um marido, e um lugar no conselho escolar.
– Ninguém vai ser preso, okay? – Eu ri. – E ninguém vai sabotar meu restaurante. – Ergui o dedo para Giovanni e ele apertou os lábios erguendo as mãos em rendição. – E então, quais os planos para a fantástica noite? – Perguntei porque não sabia bem como devia me comportar naquela situação – Espero que não queira experimentar esses brinquedos. – Sorri apontando para trás, na direção a grande roda gigante. – Eles já eram consumidos pela maresia quando éramos adolescentes.

Ninguém riu ou respondeu minha tentativa falha de piada, e então eu percebi que havia um clima estranho no ar, uma troca de olhares que não entendi de pronto. Olhei para cada um, até para os que tinha o rosto desviado – como Matt. Algo estava no ar, pensei que fosse sobre , talvez estivessem sem jeito para abordar a situação do divórcio. Não tinha certeza, mas considerando que Giovanni estava por trás da organização do encontro, provavelmente ele havia contado para Matt e Gina sobre a separação.

– O que é? – Perguntei, ainda com o sorriso torto e perdido no rosto. – O que está acontecendo?

Indaguei eu, olhando para cada um, mas todos se mantiveram com aquelas expressões, as expressões de crianças quando fazem alguma arte. Ou quando uma criança sabe de algum segredo e não pode contar, como uma festa surpresa ou um presente surpresa. Giovanni sorriu ladino e deu alguns passos para trás, como se estivesse prestes a apresentar algo muito incrível. Torci para que não fosse , numa tentativa terrível de busca por normalidade da parte de meu irmão mais velho.

– Tem uma surpresa. – Giovanni sorriu e maneou a cabeça, apontando para um pequeno beco entre a loja de doces e uma loja de artigos de pesca.

Meu irmão estava sorridente demais, os outros pareciam cheios de expectativa, como se já soubessem da surpresa. Estreitei o olhar e titubeei – ainda achava que podia ser a surgir daquele beco – depois maneei a cabeça e resolvi dar um passo à frente, em direção ao pequeno beco, curiosa. Uma lufada de vento fez meus cabelos balançarem e precisei afastar as mechas do rosto para olhar melhor. Do corredor pouco iluminado ELE surgiu. A passos lentos, com as mãos nos bolsos da calça jeans, vestindo uma camiseta vermelha, cabelo cortado e sorriso torto, olhava para o chão e depois erguia os olhos para mim, para depois olhar para o chão de novo.
Congelei.
Estava de volta ao passado.

– Oi, . – Ele sorriu, perto, mas não o suficiente para eu entender se era real ou se estava sonhando.

Não consegui responder, apenas fiquei parada, encarando , tendo como música de fundo o som ambiente de risadas de crianças, o ranger dos brinquedos desgastados e a música do carrossel.

– Bom, não é exatamente como eu pensei que seria, mas ... – riu fraco, coçando a nuca e baixando o olhar. – Pode responder com um oi, só pra evitar que eu passe tanta vergonha na frente dos seus amigos.
– Desculpe. – Eu sorri também, cobrindo a boca. – Eu... eu só não...
– Não sei como fazem as coisas em Nova York, , mas por aqui, isso se chama surpresa. – Disse ele, com as mãos nos bolsos outra vez, me olhando com seus olhos azuis estreitos, em sua natureza simples e sedutora.

Maneei a cabeça e sorri fechado.

– Bem, então... você me pegou direitinho.

mexeu a cabeça e ergueu uma sobrancelha.

– Não ainda.

Fiquei sem ar outra vez.

– Vamos. – Giovanni se enfiou no nosso meio, abraçando pelo ombro. – Vamos, eu quero comer peixe frito e caramelo salgado.

ergueu as sobrancelhas para mim e sorriu, antes de ser arrastado por Giovanni, com Matt ao seu lado. Gina parecia ter retomado seu espírito de dezesseis anos e enlaçou seu braço ao meu, puxando-me para seguir , Matt e Vanni, enquanto Oliver caminhava desatento ao nosso lado.

– Ai meu Deus! – Ela riu baixo. – Você viu como ele está bonito?
– Vi. – Assenti um pouco nervosa, mas achando graça naquela situação. – Eu vi.
– Não me lembrava de como ele era bonito. – Ela continuou. – E ele foi direto pra você.
– Como assim? – Eu a olhei, estranhando suas palavras. – Isso é você entrando no personagem ou...
– Foi uma surpresa para todos nós, só Giovanni sabia. – Ela contou. – Mas seria mais emocionante se você tivesse chegado na hora. – Gina rolou os olhos e eu torci os lábios em repreensão a sua fala. – Você vai me contar o que realmente está acontecendo entre vocês ou vou ter que subornar o Giovanni com varinhas de alcaçuz? – Ela cutucou minha costela e eu sorri, erguendo os olhos para as costas de no exato momento em que ele olhava para nós, por sobre o ombro.
– Acho que... – Sorri para ele. – Acho que o Giovanni é alérgico a alcaçuz.

Gina rolou os olhos, resmungou e pareceu desistir por algum tempo, deixando sua curiosidade de lado. Ela começou a apontar coisas novas no píer, como uma casa dos horrores e um carrossel novo, com cavalinhos coloridos e uma barraca de tiro ao alvo. Tudo isso enquanto listava qualquer coisa irrelevante que houvesse acontecido nos últimos dezesseis anos. Enquanto isso, os rapazes caminhavam a nossa frente, rindo e fazendo comentários de histórias da época da escola, sendo cuidadosos e gentis com , para incluí-lo nas memórias.
Não conseguia explicar em palavras sobre como me sentia se me perguntassem, não fazia ideia. Era como ir para um mundo de sonhos, como voltar dezesseis anos no passado. Como se nunca tivesse ido embora da cidade, como se tivesse tido coragem para falar com , como se ele não tivesse adoecido. Era um mundo de sonhos.
Chegamos enfim as barracas novas, de jogos, arremessos, tiro ao alvo e coisas do tipo. , por insistência dos outros, tentou atirar em alguns patos de madeira que se moviam para frente e para trás. Ele tentou três vezes antes de conseguir, ganhando como prêmio um urso grande e amarelo. Ele sorriu sem jeito, baixando a cabeça e foi em minha direção, eu observava de longe, com corpo apoiado ao guarda-corpo do píer. A noite se fazia presente e as luzes coloridas das barracas davam aspecto alaranjado e rosado a nossa pele. ergueu o urso, colocando-o na frente do rosto e balançou suas patas com a ajuda das mãos.

– Três tentativas, ? – O provoquei, parando de rir de sua brincadeira com o urso quando se ele apoiou ao meu lado. – Vai dizer que está enferrujado?
– Eu poderia. – Ele ergueu o ombro e projetou o lábio inferior. – Mas nunca tinha atirado na vida antes de hoje, alguns minutos atrás, então...

confessou e nós dois rimos.
Em seguida, ele apoiou os cotovelos no guarda-corpo, ainda segurando seu urso grande e amarelo, voltou seu olhar para o mar e começou a falar:

– Então, . – não me olhou ao dizer, mas tinha meu olhar sobre ele. – Soube que está de volta a Paradise.
– Soube? – Entrei em seu jogo, sentia borboletas no estômago, como quando era adolescente.
– Seu irmão me disse. – endireitou o tronco e se virou em minha direção, me olhando nos olhos. – Disse que voltou para ficar.
– Ele falou a verdade. – Assenti. – Não há lugar como o lar.
– Nova York não é tão interessante quanto Paradise. – Ele provocou, arqueando apenas uma sobrancelha e me lançando um olhar que me fez apoiar no guarda-corpo com mais força.
– Não, Nova York também tem sua magia. – Impliquei e ele sorriu.
– Então, por que voltou?
– Tinha pendências em Paradise. – Falei, tentando devolver a intensidade no olhar com qual ele me fitava. – Recomeçar a vida.
– E tá funcionando?
– Eu tô querendo descobrir. – Respondi e se aproximou um pouco mais, olhou dos meus olhos para minha boca.
– Eu poderia fazer isso a noite toda. A vida toda.
– Olhar para mim? – Perguntei o olhando de volta.
– Não. – respondeu de modo infantil. – Fingir que não foram dezesseis anos. – Ele disse e eu o olhei, incrédula com sua resposta. – Mas atirar naquela barraca também foi uma experiência bem legal. Eu poderia fazer mais vezes. – Sorriu ele, depois afastou o olhar e o rosto de mim, para em seguida sorrir, cutucar minha costela e me abraçar pela cintura. – Mas olhar para você também está na lista.
– Que bom! – Fingi estar irritada.

– Vocês. – Matt chamou, interrompendo o que poderia se encaminhar para um beijo entre e eu. – Giovanni ainda quer o caramelo salgado dele.
– Vamos, . – suspirou e jogou a cabeça para trás. – Deve ter mais de vinte anos que a obsessão de Giovanni por caramelo salgado atrapalha meu jogo.

segurou minha mão, entrelaçando nossos dedos e me puxou. Estava acontecendo e era real. Estava caminhando pelo píer, cruzando com famílias, solteiros e crianças, idosos, jovens e casais, sentindo os dedos grossos da mão grande de entrelaçados aos meus. O mesmo . O por quem era perdidamente apaixonada desde sempre. Ele estava comigo. Era irreal, tinha certeza que a qualquer momento acordaria e perceberia estar sonhando.

– Você devia trazer o Dom aqui. – começou a falar, atraindo minha atenção. – Ele vai gostar.
– Acho que Giovanni já deve ter feito isso, mas é uma boa ideia. – Concordei, ainda tonta. – Pode ser bom para se distrair, depois de tanta coisa que tem passado.
– Ele vai superar, é um garoto esperto e inteligente. – Disse e eu concordei com a cabeça. – E tem uma mãe legal. Não tem chance de dar errado.

Eu ri pelo nariz e balancei a cabeça.

– Sabe, . – tornou a falar. – Já que está aqui para recomeços, devia sair comigo uma hora dessas.

As palavras de me pegaram completamente desprevenida. Arregalei os olhos e parei de andar.

– Qual é?! Não é como se fosse uma ideia tão ruim. – Ele rolou os olhos teatralmente. – Soube que você tem uma queda por jogadores de hockey, super musculosos, mas... eu posso te surpreender também. – Não conseguia parar de rir.
– Acha mesmo, que depois de sair de Nova York, vou ter um encontro com o primeiro cara de Paradise que me convida?
– Eu esperava que sim. – respondeu, unindo as sobrancelhas, um pouco surpreso e ofendido. – Principalmente considerando nosso passado.
– Que passado? – Cruzei os braços e o olhei.
– O nosso passado. – tomou minha mão e voltou a caminhar, me puxando com ele. – Não finja que a gente não tem um passado, . – Ele resmungou.
– O passado de você implicando com meu irmão sobre ter filhos bonitos comigo? – Ri e quando terminei a pergunta, me olhou com olhos arregalados.
– Não acredito que o Giovanni te contou isso. – riu chocado e suas bochechas ficaram vermelhas.
– Parece que alguém quebrou a onda de . – Eu ri alto e fora minha vez de abraçá-lo pela cintura. me abraçou pelos ombros, ainda rindo, sem jeito e procurando meu irmão com o olhar.
– Ele te contou mesmo isso? – Quis se certificar e eu balancei a cabeça. – Giovanni acabou de perder um melhor amigo.
– Não seja drástico. – Eu ainda ria. – É fofo.
– Não, não é fofo. – Negou ele. – É constrangedor.
– Pois fique sabendo que eu gostei de saber. – me olhou quando falei. – Gostei de saber que você me notava, que falava sobre mim, que me achava atraente.

levou uma das mãos ao meu rosto e afagou minha bochecha.

– Vai aceitar sair comigo agora? – Perguntou de novo, com olhar infantil e eu ri, jogando a cabeça para trás.
– Aonde vai me levar, ?
– No Leo’s, é claro. – Ele brincou sorrindo. – Onde mais as pessoas vão nos primeiros encontros em Paradise?

Eu ri e balancei a cabeça negativamente, continuando a andar, puxando desta vez.

Estávamos enfim na loja de doces que vendiam os caramelos salgados e Giovanni tinha a boca cheia. havia se aproximado dele para implicar e roubar caramelos, Gina falava no telefone com os filhos, era hora de dormir, Matt trocava telefone com uma garota que trabalhava na loja e eu contemplava a variedade de doces disponíveis.

. – Oliver se aproximou de mim, mordendo uma varinha de alcaçuz. – Tá sentido isso?
– O quê? – Perguntei curiosa, olhando ao redor, tentando reconhecer algum cheiro.
– A paz. – Oliver falou depois de suspirar, apontando para o ambiente como se houvesse algo místico ali. – Amor, alegria.
– Nunca vi alguém tão feliz em estar em uma loja de doces. – Eu sorri ao falar. – Parece que é mesmo irmão do Giovanni.
– Não, . – Oliver colocou as mãos sobre meus ombros e me virou para a direção onde estavam Giovanni e . – Isso. Eu vi você sorrir mais hoje do que vi durante todo esse tempo que voltou para Paradise. E não é só sorrir, é sorrir e estar feliz. – Enquanto meu irmão gêmeo falava, eu o olhava de soslaio. – Até eu estou em paz. É como se o mundo tivesse seu equilíbrio de novo.
– Ainda é um pouco estranho. – Confessei. – É como se estivéssemos no passado. Estamos felizes aqui, mas não é real. Saindo do parque tenho meu divórcio, tem sua adaptação ao mundo...
– Você tem um divórcio que te rendeu uma mansão, um melhor amigo que vai ser seu vizinho e paz de espírito. – Oliver rolou os olhos. – Sabe, eu tinha dito para mim mesmo que não ia ceder ao seu super drama e lamentações sobre seu divórcio. Mas é maior que eu. – Eu o encarei ofendida. – Pare de chorar, de remoer e lamentar e vá viver. Que coisa mais chata.
– Oliver. – O repreendi, séria e bastante surpresa.
– O quê? Acha que sou o único que não aguenta mais ouvir sobre suas fases difíceis, quando na verdade você é quem causa todas elas? – Oliver continuou a falar, ignorando minha expressão chocada e ressentida. – Você tem que parar de reclamar e ir viver.
– Oliver, você está me ofendendo e me atacando gratuitamente.
– Não, . – Oliver se colocou a minha frente e me olhou com doçura. – Só quero que você pare de se lamentar e vá viver. Seu divórcio já está resolvido, não tem drama. É um ponto final no casamento e uma vírgula na amizade. O precisa se adaptar ao mundo, é realmente uma questão delicada, mas ele vai superar. – Oliver apertou meus ombros. – Pela primeira vez, você não tem problemas, tem soluções, caminhos que são um pouco difíceis, mas que vai percorrer. Vá aproveitar e ligue o foda-se.

Abri a boca, mas não consegui dizer qualquer coisa. Ainda estava ofendida, mas não tinha certeza se não concordava com Oliver. Ridículo, , pensei eu, ridículo, ainda nos mesmos dramas.


Já era tarde, perto da meia noite. Já havíamos ido a todas barracas, lojas e percorrido cada pedaço daquele píer. Não me lembrava a última vez em que tinha rido tanto em uma noite. Estar com meus amigos, irmãos e parecia despertar algo em mim, uma parte leve e adormecida que há muitos anos eu não via. Como se a adolescente, sem rancor e amargura viesse de novo ao mundo para aproveitar. Uma noite de sonho. Ou um sonho de uma noite.
Estar na roda gigante com tornava tudo ainda mais mágico. Quantas vezes, na adolescência e até mesmo já adulta, quando deitava na cama a noite e olhava para o teto, imaginava viver aqueles momentos com ele. Momentos em que ele me amava, me queria e gostava de mim, pura e simples. Momentos de risos, momentos românticos. Momentos bobos em uma roda gigante, com Giovanni acima de nós, gritando para Matt olhar para baixo, sabendo que o amigo policial morria de medo de altura. E abaixo de nós – felizmente – um Oliver e uma Gina muito enjoados.
ria como um adolescente depois de um jogo de futebol. Ele gargalhava e sua risada era perfeita. Podia gravar um disco inteiro com seu riso e ouvir repetidas vezes sem me cansar. Quando ele gargalhava, os olhos ficavam mais molhados e o azul mais intenso, quase líquido. Algo que ele havia comido entre todas as besteiras doces e salgadas tinha dado cor avermelhada aos lábios já rosados. Além de qualquer coisa, superior a toda beleza e ao som divino da risada dele, era vê-lo livre. Sem fios, sem fazer parte da mobília de um quarto de hospital, sem a maca. Vivendo, construindo outra lembrança, tendo uma vida. Sujando as mãos de algodão doce ou do sal da pipoca, pingando cerveja na camiseta quando riu demais de uma piada de Matt, ou manchando a calça com a graxa de algum brinquedo antigo do píer.

🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena. Amor Ideal🎵


– Já disse que amo você?

Perguntei de repente e ele demorou alguns instantes para compreender minhas palavras. Quando o fez, congelou a expressão e depois sorriu, deixando a cabeça cair.

– Pode falar agora, se estiver com vontade. – sorriu grande, apoiando um dos braços no encosto dos acentos, e de forma ladina, abraçando meus ombros.
– Eu amo você. – Declarei e ele sorriu, em seguida beijou minha testa e meus lábios de modo delicado.
– Eu amo você, . – Ele retribuiu, de olhos fechados e com nossas testas juntas.
– Pode parar de me chamar assim, acho que já temos intimidade o suficiente para usar o meu primeiro nome. – Sorri, olhando em seus olhos.
– Deixe para uma ocasião especial. – Ele deu de ombros e piscou. – Só pretendo parar de te chamar assim, quando puder chamar de outra coisa. – Que outra coisa? – Meu estômago estava parecendo um aquário de borboletas nervosas e agitadas.
. – Respondeu ele, e eu entendi.
– Você precisa para de me deixar sem resposta. – Eu disse, sentindo meu rosto esquentar e ele sorriu e inclinou o rosto para me olhar nos olhos. – E precisa de um banho também. – Falei, notando seu cheiro de suor e fez careta, ergueu um pouco o braço e conferiu seu cheiro.
– Droga, isso não acontecia no hospital. – Ele brincou. – Péssima coisa para acontecer em um primeiro encontro.
– Isso é um primeiro encontro? – Eu ri ao levar uma das mãos ao pescoço dele e afagar sua nuca.
– Você não aceitou meu convite, então... – ergueu os ombros e torceu os lábios.

Nós dois rimos e ele apertou seu abraço, me trazendo para perto.

– O cheiro. Está muito ruim? – Ele quis saber, após alguns poucos segundos observando a vista do alto da roda gigante.
– Eu sou cozinheira, trabalho muito com cebolas... eu dou conta. – gargalhou, fechando os olhos e deixando a cabeça cair para trás outra vez. – Esse parque parece com o livro do Stephen King, Joyland. – Mudei de assunto, deixando minha mente apenas aproveitar o passeio e a companhia do homem que amava. – É um livro que talvez você não queira ler.
– Por que não? – encostou seu nariz em minha bochecha para perguntar.
– Não é um dos melhores. – Respondi com simplicidade e ele riu nasalado.
– Eu li aquele do Drácula, de Bram Stoker, li no hospital, quando pensei que o que tinha era apenas fadiga e falta de vitaminas. – contou, a ponta fria de seu nariz ainda estava no meu rosto. – As falésias naquele canto. – Ele enfim se afastou e olhou para trás, para as falésias que faziam a barreira natural da cidade. – A costa rochosa, as praias daqui em dias frios... tudo me lembrava aquela cidade, a da Lucy.
– A cidade onde o Conde desembarca e começa sua matança. – Eu sorri, lembrando-me do livro. – Não sabia que gostava de góticos.
– Você implica demais com meu gosto para leitura. – riu.
– Desculpe, são os estereótipos. – Devolvi, unindo minha mão a dele.
– Obrigado, . – Ele falou de modo repentino e o olhei confusa. – Obrigado por voltar.

Eu sorri.
talvez achasse que eu o tinha salvado de qualquer coisa, como ele mesmo já havia dito antes, quando na verdade, ele quem havia me salvado. O amor de por mim foi a redenção e salvação que precisava.
Então, apenas sorri e o beijei, por todos os anos, por todas as versões de mim que desejaram ardentemente, todas as noites, antes de dormir, fazê-lo.

🍁


– Eu não quero ir embora. – Giovanni, um pouco alterado pelo consumo de açúcar, cerveja e chá gelado de gengibre, reclamava andando rumo a saída, abraçando pelo ombro. – Eu quero continuar aqui. Para sempre.
– É, eu entendo, é duro a realidade de um adulto e pai de família. – Gina suspirou. – Queria ter dezessete anos outra vez.
– Nós sempre teremos o píer. – Oliver começou a falar, fantasiando. – É como se fosse o nosso túnel do tempo. Um caminho de volta aos dezessete anos. Os mesmos amigos, as mesmas implicâncias, suspirando pelo ...

Todo o grupo riu e eu empurrei meu irmão pelo ombro.

– Ao píer. – Giovanni parou de andar e ergueu a garrafa de cerveja que tomava, propondo um brinde, mas apenas Matt bebia cerveja também. Oliver e eu tínhamos a as mãos vazias, Gina segurava uma sacola de papel com doces para os filhos e segurava seu urso. ergueu o urso.
– Sabe, eu adoro o saudosismo do píer, do parque. – Gina disse, estávamos indo para onde os carros estavam estacionados. – Mas devíamos marcar algo junto as nossas famílias também. Tipo aqueles reencontros de amigos, depois de décadas.
– Não achei inclusivo. – Matt reclamou.
– Eu também não. – Oliver concordou e expirou um riso sarcástico e rolou os olhos.
– Talvez isso motive vocês. – Impliquei. – Talvez sair com os adultos motive vocês a arranjarem um casamento.
, vindo de você, isso não teve muito poder de convencimento. – Oliver maneou a cabeça e eu o olhei torto.
– Pelo menos eu fui casada uma vez. – Resmunguei, afastando-me dele.
– Eu também, na Bolívia. – Oliver falou, mas parou de andar e pareceu pensar um pouco. – Ou foi quase isso.

Enfim estávamos perto de nossos carros e começamos a nos despedir. Oliver, Matt e Giovanni estavam juntos com e dariam carona a ele. Gina estava sozinha em seu carro e eu no meu. A cada passo, pisando nas pedrinhas do chão do estacionamento, me perguntava se não devia me oferecer para dar carona a , ou se devia pedir algum tempo sozinha com ele. Me perguntava se havia aproveitado o suficiente aquele tempo, aquela noite. Tinha medo do que aconteceria quando entrasse no carro, temia quando o sonho acabasse.
Talvez todos ali temessem um pouco, mas cada um à sua maneira. Para Gina e Vanni, e um pouco para mim, estar ali com amigos de infância era como um respiro. Como voltar ao tempo onde os problemas eram ter grana para comer fora no fim de semana, as notas da escola e se sua paixonite (, no meu caso) te daria uma chance ou não. Para Oliver e Matt talvez significasse aquilo também, mas eles tinham vidas diferentes, solteiros e concentrados em outras coisas, e ambos pareciam pouco animados ou deslumbrados com o passeio. Para , era como se enfim ele voltasse para onde conhecia. Um espaço seguro com seus amigos, com a garota que ele gostava – embora dizer e pensar isso, sabendo que a tal garota era eu, ainda fosse muito esquisito – para se divertir. Naquele parque, naquela noite, era como se nada tivesse mudado, como se ele não tivesse passado anos em um hospital, recluso. Era mais uma noite, uma noite de diversão com os amigos. Como todas as outras. Ao menos era o que parecia.
Naquela altura ele já tinha o semblante cansado e estava falando menos, interagindo menos e implicando menos com Giovanni. Talvez tivéssemos forçado um pouco a barra, e repentinamente temi por seu estado de saúde, por talvez ele não estar pronto para uma noite daquelas. Ele pareceu perceber meu semblante anuviado quando me olhou. Logo se desvencilhou de Giovanni e se aproximou de mim.

🎵 Dê play na música e deixe tocar durante toda cena.Gavin James - Always🎵


– Não quer que a noite acabe? – Quando falou, seu tom de voz era cansado.
– Estou preocupada com você. – Fui sincera. – Me parece cansado, não sei se devíamos ter deixado você fora por tanto tempo. – Falei eu, tocando seu braço e riu e rolou os olhos.
. – Ele levou as mãos ao meu rosto, deixando o urso sobre o capô do carro mais perto. – Essa foi a melhor noite da minha vida desde... – hesitou. – Desde sempre. Eu tô bem, só tô cansado. Mas olhe ao seu redor, quem não está? Exceto o Giovanni, é claro. – Ele maneou a cabeça e rimos.
– Talvez a gente não tenha idade pra isso. – Respondi, sorrindo fechado. – Eu não tenho, definitivamente. – riu outra vez e eu o acompanhei.
– Como se sente, depois dessa noite no passado?
– Não foi uma noite no passado, foi uma noite. – Ele respondeu, me causando uma ruga de confusão entre as sobrancelhas. – Eu gostei de lembrar como é. Poder sair, comer qualquer porcaria de alguma barraca suspeita, rir e falar mal de jovens barulhentos – Eu ri quando ele disse. – Não pensar ou me preocupar com o futuro, ter a mulher que eu mais amo no mundo do meu lado. – sorriu ao dizer. – E não estar com o Matt quando ele vomitou na roda gigante. – Rimos juntos outra vez.
– Achei que tivesse gostado porque era como se os anos no hospital não tivessem acontecido. – Eu falei e o vi suspirar e endireitar as costas, depois apertar os lábios em uma linha.
– Talvez, um pouco. – Ele ergueu os ombros. – Mas eu gostei de estar aqui. Pela primeira vez em muito tempo eu não vou ouvir sobre como a noite foi legal, eu vou poder contar também. – parecia arrebatado pelo sentimento e vê-lo assim me fazia sentir uma felicidade genuína. – O que me lembra que você não respondeu meu convite.
– Que convite?
– O encontro. – sorriu, desceu as mãos que antes estavam no meu rosto para minha cintura. – Quero fazer o que demorei dezesseis anos para ter coragem.

Balancei a cabeça negativamente, devagar, expressando de modo não verbal que não entendia sobre o que ele falava.

– Se lembra quando me perguntou do bar? Na sua despedida? – Ele perguntou depois de baixar a cabeça e afastar o olhar, eu assenti. – Eu e Sarah tínhamos dado um tempo, porque sair da cidade e se mudar pra faculdade bagunçou um pouco a nossa cabeça. Eu estava meio que desimpedido e quis ir até aquele bar, porque eu queria você. Acho que sempre quis, de algum jeito.
... – Eu o interrompi, chocada.
– Eu fiquei com medo. – Ele continuou, me ignorando. – Sempre achei que não teria chances, e tinha o seu irmão, e... – Ele expirou e sorriu, baixando o olhar e depois erguendo outra vez. – Eu estou mais de dezesseis anos atrasado, , mas queria saber se não quer... – hesitou outra vez.
– Sair com você? Mas é claro que sim. – Respondi apressada, colocando minhas mãos em seu pescoço.
– Namorar comigo. – Ele completou seu raciocínio. – Queria saber se não quer namorar comigo?

Meu coração batia tão forte que era como se não batesse. O universo ao redor parou de existir, não haviam mais a música do carrossel, ou o vozerio das pessoas, ou os carros, os nossos amigos. Éramos nós dois ali, e eu. Ele me segurando a cintura e eu com as mãos em seu pescoço, nos olhando. Mais maduros, mais velhos e experientes, depois de passarmos por milhões de experiências, boas e ruins, muito diferentes de nossas antigas versões. Mas que de alguma forma, pareciam estar ali. Era como se a de dezessete anos, impaciente e desejosa estivesse finalmente nos braços do incrivelmente lindo e gentil . Uma reconexão. Como se fôssemos um tipo de rio, que fora separado e mudado seu curso por muitos anos, e que agora, depois de tanto, era ligado outra vez.
Não pensei, me lancei e o beijei, retribuiu. Era eu, mas era um reencontro, uma ligação. Quatro pessoas, quatro versões de nós se beijavam ali, e todas estavam em completo estado de êxtase.



20

De manhã, me senti como a Mariah Carey naquele clipe, onde ela rola nos lençóis brancos e caros, bonita e sofrendo por não estar com o homem que ama. A ausência de companhia na cama parecia insuportável, principalmente depois de Gina ter feito uma piadinha de cunho sexual sobre ter muito tempo de atraso para tirar.
Era estranho imaginá-lo naquela posição – ou melhor, naquelas.
“Que coisa boba, .” Disse a mim mesma, sacudindo a cabeça, rindo com o lábio entre os dentes e rolando na cama, agarrando os lençóis. Me deparei com o urso da noite passada e estiquei a mão para tocá-lo, uma versão grande demais para ser útil do Ursinho Pooh. Era fofo e amarelo, com textura gostosa. Sorri ao lembrar da noite, pensando que era inacreditável que aquilo não fosse um sonho, um devaneio. Que realmente tivesse acontecido. Pensando sobre como eu daria muita coisa para voltar ao passado e dizer para a minha versão adolescente o que a esperava dezesseis anos no futuro. Sobre o sonho adolescente vivido em uma época onde ninguém mais tinha vinte anos.
A noite no píer com meus melhores amigos e . ELE. O . E que agora era meu namorado. Sorri de novo. Não que pudesse ficar sem sorrir desde a noite passada. Era praticamente impossível porque todos os meus sonhos adolescentes eram reais. me amava, estava apaixonado por mim. Tinha me pedido em namoro depois de uma noite memorável num parque de diversões e agora eu tinha um urso amarelo gigante. Como uma adolescente. Me sentia no ensino médio outra vez, a mesma empolgação, a petulância juvenil de acreditar ter todas as respostas.
Era estranho lembrar e pensar que houve uma época em que achei que o amor, amar alguém, fosse um sentimento perto do conformismo. Algo estático e apático, onde você cumpre seus deveres de parte amada do mesmo jeito que cumpre os deveres do trabalho. Como num escritório, onde precisar estar na hora, fazer certas atividades, participar de certos momentos e tocar a vida assim. Em um mundo onde as borboletas e os fogos fossem apenas reservados aos adolescentes. Me enganei. Podia sentir a tranquilidade, a certeza de que era amada intensamente, de que queria estar ao meu lado a todo tempo se pudesse – porque ele nunca me deixava esquecer. Mas também sentia o frio na barriga, a surpresa do que é inesperado, o sentimento, a paixão, a entrega, a fome.
No final, parecia mesmo possível e era um dos momentos em que você ama estar errado sobre algo. Até para os mais descrentes, para os mais perdidos, para os sem esperança.
Depois do beijo em público e do pedido de namoro na noite passada, nossos amigos haviam feito um grande escândalo, com palmas e assovios. Pessoas que passavam por ali viravam o pescoço para nós olhar, conferir se não se tratava de alguém famoso ou de algo muito engraçado. Mas éramos só nós. e eu. E bem, de alguma forma, era alguém famoso, mas o destino parecia ter arquitetado tudo com tanto cuidado, que podíamos passar despercebidos – se não fossem os nossos amigos.
Me lembrava perfeitamente da expressão de quando nos afastamos. O rosto vermelho, o modo com que ele passou o polegar pelo lábio inferior, sorriu e inclinou a cabeça, enquanto me abraçava de lado. Ele era estonteante. Na hora de ir, me deu o urso e disse que era uma lembrança, uma das muitas coisas que ele gostaria de ter feito e não fez – ainda. Disse que queria que eu deixasse o urso perto de mim, enquanto ele mesmo não podia ficar.
Esse foi o motivo da piada infame de Gina, e das brincadeiras e zombarias de Matt, Oliver e Vanni. Daria qualquer coisa para estar naquele carro, levando de volta ao hospital, ouvindo as piadas, os comentários. E então, outra torrente de pensamentos me levava de volta a piada de Gina e a todas as imagens que meu cérebro havia criado de . Sentei-me depressa e sacudi a cabeça.
Precisava de um banho frio, urgente.

🍁


Mesmo com muita vontade de permanecer na cama pensando no meu novo namorado, ainda era uma adulta com responsabilidades. Precisava passar no restaurante para assinar algumas notas, buscar Dom na escola e talvez fazer uma visitinha despretensiosa ao novo não solteiro do hospital da cidade.
Estava nos degraus da entrada quando vi voltando de sua corrida, suado e belíssimo, como sempre.

– E aí, gostosão. – O cumprimentei sorrindo e olhou para os lados, buscando quem havia o chamado. Quando me viu, riu jogando a cabeça para trás e se aproximou de mim, perto do meu carro.
– E aí, Buddy Valastro. – Ele sorriu e eu rolei os olhos.
– Quem você quer impressionar desse jeito. – Apontei para sua roupa suada com o queixo. – Correndo por aí.
– Se vou ser o vizinho pelado, preciso ter um corpo apresentável. – Ele maneou a cabeça e apoiou o cotovelo no teto do meu carro, eu rolei os olhos e fiz careta, fingindo nojo. – Além do mais, quero chegar aos quarenta, daqui uns anos, em boa forma.
– Daqui uns anos? – Estreitei o olhar e me empurrou leve, rindo.
– Bom te ver assim, . – comentou sorrindo suave. – Não sabia que você ficava tão brilhante solteira.

Eu fiz uma careta e um barulho com a boca, tentando disfarçar. Desviei o olhar e comecei a apertar os lábios entre os dentes.

– Você quer me contar alguma coisa? – , uma das pessoas que melhor me conhecia no mundo, arqueou uma sobrancelha desconfiado e cruzou os braços sobre o peito.
– Por que pergunta isso? – Dei de ombros e desviei o olhar. – Não fiz nada.
– Estamos separados, mas eu ainda passei vários anos da minha vida com você. – Ele insistiu em sua postura inquisidora.
– Eu tô apaixonada pelo . – Declarei de uma vez e ele rolou os olhos.
– Diga uma novidade.
– Eu nunca disse isso em voz alta pra você. – Ergui um dedo em sua direção e depois coloquei as mãos na cintura e respirei fundo. – Respeite meus momentos.
– Tá, vá em frente, Gordon Ramsey. – fez outra piada e ergueu as sobrancelhas, me incentivando a continuar.
me pediu em namoro. – arregalou os olhos e saiu de sua postura despreocupada. – E eu aceitei.

Ele abriu a boca, mas não disse nada. Apenas ficou ali, estarrecido, me encarando como se tivesse mesmo sido pego de surpresa. Por causa de seu silêncio, comecei a pensar que tinha sido uma péssima ideia compartilhar aquela novidade sem cuidado.

, eu... – Falei nervosa, mas ele me interrompeu.
– Não, tudo bem. – riu nervosamente. – Eu só... eu sabia que isso ia acontecer, só não... acho que ainda é meio novo. – Ele confessou, coçando a nuca.
– Eu sinto muito se isso te magoa, ou...
– Não, . – tocou meu ombro e sorriu. – Você tá feliz, brilhando, tá apaixonada e não tem motivos pra adiar sua felicidade.
– Eu não quero magoar você, se achar que ainda é muito recente, eu falo com e... – Ele me cortou outra vez.
– Não se preocupe comigo. – mentiu, seu olhar disse isso e ele coçou a nuca de novo. – Só... só viva a sua vida e... – parou de repente. – Dom.

Mordi o lábio inferior e fiz careta.

– Ainda não contei, isso aconteceu ontem. – Passei as mãos nos cabelos. – Há alguns dias ele questionou outra vez o motivo da separação. Tem estado mais calado... – Suspirei.
– É, ele perguntou para mim também. – fez um barulho esquisito com a boca, pensativo.
– Será que não devíamos levá-lo ao psicólogo?
– Não, acho que não. – colocou as duas mãos em meus ombros. – Ele é um garoto forte e esperto, só precisa de tempo para se acostumar com a nova realidade. Ver que nada mudou quanto a nossa família. – Ele fez uma pequena pausa e baixou o olhar, para depois ergue-lo novamente. – Nada mudou, não é?
– Não! Claro que não. – Neguei rápido. – Eu amo você, isso nunca vai mudar. Dom, você e eu sempre vamos ser uma família. Sempre. E o Dom sempre virá em primeiro lugar, antes de qualquer coisa, antes de qualquer um.
– Eu sei. – sorriu fraco, mas deixou transparecer uma pontadinha de alívio. – Só para confirmar.
gosta dele e eu acho que ele gosta do também. – Pensei alto e assentiu. – Só precisamos de tempo. – Olhei em seus olhos. – Só precisava te contar. Não só porque te respeito e queria que soubesse primeiro por mim. Mas também porque você é meu melhor amigo, não quero que isso mude.

sorriu e me abraçou, beijando minha cabeça.

– Não vai mudar. – Ele garantiu com um riso abafado. – Nunca vai mudar.

🍁


Depois da noite no píer, estar no estacionamento da escola a espera de Dom era diferente. Tinha sido atingida por um saudosismo diferente, gostoso, diferente do primeiro, quando retornamos à cidade. Antes a escola era um lugar de lembranças felizes de outras pessoas, mas que constantemente me recordavam da minha incompetência em ser feliz. Da minha urgência de fugir para qualquer lugar no mundo, só para não enfrentar a cena de um casamento. Para não precisar ouvir sobre o assunto ou vê-lo ser feliz com outra pessoa.
O que pensando depois, como adulta, era de um grande egoísmo. Entendia a dor a qual estaria exposta, ver se casar com outra mulher poderia ser dilacerante. Mas, se o amava tanto, devia querer que ele fosse feliz. tinha passado por isso com as minhas idas e vindas de indecisão. Ele me assistiu deixá-lo só naquele quarto sem vida de hospital e ir embora com . Repetidas vezes. E ele sempre deixou claro o quanto aquilo o fazia sofrer, mesmo assim, resistindo e lutando pelo que nós tínhamos, antes mesmo de saber que tínhamos. Mas ao contrário de mim, tinha coragem, um espírito resiliente e de certa forma, era obrigado a conviver com aquilo porque abandonar a cidade e fugir não estava dentro de suas possibilidades. Mesmo assim, todas as vezes em que eu quis voltar, ele estava lá para me receber.
Aquela , a que passeava pelas arquibancadas do campo em todo tempo livre que tinha. A que estudava sentada no sol, só porque aquele era horário do treino do time de futebol. Aquela mal podia imaginar que o motivo de seus suspiros, o jogador de cabelos loiros com ondas suaves e rebeldes, olhos azuis como o oceano, que ele sabia quem ela era. Que a conhecia e provavelmente a tinha notado ali, sentada sozinha, no sol, com livros de história abertos no colo. Era algo para perguntar, pensei sorrindo, prendendo o lábio inferior entre os dentes para que não parecesse para os outros que eu era uma maluca que sorria sozinha – apesar de ser.
Nas idas à praia, quando ele jogava vôlei com seu grupo e eu, disfarçadamente, me sentava próxima o bastante para vê-lo, porque queria memorizar cada expressão, ruído, murmuro e o som das palavras ditas por ele. Quando cruzava com ele no corredor e ele sempre mantinha a cabeça erguida, parecendo não me ver. Quando nos aquecimentos para os jogos, quando ele corria os olhos pelas arquibancadas talvez me percebesse ali.
Tudo era diferente agora, porque saber que não era invisível para ele e que no fim das contas, naquela noite no bar, quis tentar, mudava o cenário. A tendência a se revoltar com o destino era grande, se revoltar contra as pessoas que sabiam que gostávamos um do outro, mas que nunca nos disseram. Se revoltar com o tempo perdido, com como tudo podia ter sido diferente, como podiam ter poupado tanto caos. Mas por alguma razão, não era o que acontecia.
Talvez porque se tivéssemos trilhado um caminho diferente, não existiria, Dom não existira, talvez eu não tivesse tido uma carreira e tudo seria diferente. O que podia ter acontecido era uma grande incógnita e agora, com as peças daquele quebra-cabeças que tinha, não conseguia querer outro caminho, a não ser o que me deu Dom. era um grande amigo e a vida tinha sido boa nos anos juntos. Por acaso, essa podia ser a razão para que eu encarasse a situação com saudosismo e não com amargura. Talvez porque tudo agora parecia real, cada peça em seu lugar, ocupando uma posição certeira.
Tinha que confessar que, aparentemente, me tornar namorada de havia dado mais cor ao dia. Muita cor.
Não tive mais tempo para divagar e deixar meu lado adolescente assumir o controle. Rápido, Dom surgiu no estacionamento e veio em minha direção. Tinha um vinco entre as sobrancelhas que me fazia lembrar do vinco que geralmente também estava entre minhas sobrancelhas.

– Oi, querido! – Eu o saudei quando ele entrou no carro, jogando a mochila nos pés e relaxando no banco do passageiro.
– Oi. – Ele apertou os lábios em um sorriso apressado. – O que aconteceu? Por que veio me buscar?
– Nada de especial. – Menti sorrindo, recostando-me a porta. – Preciso de um motivo especial para buscar você?

Dom deu de ombros.

– Eu pensei em dar uma volta. – Falei o observando de canto de olhos, enquanto dava partida no carro. – Queria visitar o e pensei se talvez, você não quer ir junto.
– Você não estava com ele ontem? – Dom me olhou de soslaio e deu de ombros. – Pode ser.
– Já vi postes mais animados. – Eu ironizei. – Da última vez, achei que tinha gostado de vê-lo. Sabe? Por causa dessa coisa toda de jogador de futebol.

Dom ergueu os ombros outra vez e desviou o rosto, olhando para fora. Senti o coração apertar, porque não sabia o que aquilo significava. Podia ser cansaço ou o tédio adolescente, ou Dom sem muito interesse em socializar com seu novo futuro padrasto, ou o reflexo de seu desconforto emocional com a separação.

– Você quer conversar sobre o que está te incomodando? – Perguntei, tentando me inclinar para o olhar melhor, mas Dom não respondeu. – Escute, querido. – Retomei depois de um suspiro. – Sei que as coisas podem estar confusas agora, e que é um tipo de vida diferente, com incertezas, mas... seu pai e eu estamos com você para passar por essa fase. O fato de não sermos um casal não diz que não podemos ser uma família.
– Tanto faz. – Dom deu de ombros outra vez.

Eu suspirei e apertei os lábios, frustrada. Queria tanto que Dom conseguisse e quisesse se abrir, falar comigo. Minha esperança era que ao menos ele conseguisse ter aquelas conversas com ou Giovanni, talvez Oliver. Um pouco da minha alegria do dia estava escapando por entre meus dedos.

– Se quiser, nós podemos ir para casa. – Eu falei de novo. – Não precisamos ir até o hospital.
– Tanto faz, mãe. – Dom respondeu, colocando os fones no ouvido e apoiando o queixo com uma mão.

Apertei os lábios, fechei os olhos por alguns instantes e suspirei, sentindo os ombros caírem. Que Deus me ajude, pensei.





Continua...



Nota da autora:
Oii!
Meninas, amigas, estamos aqui.

Deixo meu beijo, em breve volto. (Prometo.)

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Com todo amor e gratidão,
Carmen


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A Síndrome de Albizzi é fictícia, uma junção de sinais e sintomas de outras síndromes e doenças, e, todo tratamento também não tem compromisso com a realidade.




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Inter Duo (Hockey - Original)
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