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Última atualização: 21/04/2024

Prólogo - Fantasmas do Passado

O sangue não jorrou quando a lâmina afiada atravessou por detrás do corpo do homem, mas a poça vermelha que crescia lentamente aos seus pés começaria a atrair olhares curiosos dentro de instantes.

Essa, porém, não era uma das preocupações da mulher.

Se fosse, ela não teria investido contra um dos soldados do mais alto escalão do reino em praça pública, em pleno sol do meio dia. Se fosse, teria escolhido um canto afastado ou um beco qualquer, numa das ruas escuras e esquecidas aos arredores do palácio. No cair da noite, provavelmente. Longe dos pescadores, das famílias e dos comerciantes. Aos olhos de taberneiros, bêbados e bardos, apenas, espalhados aqui e ali, servindo mesas, bebendo e dando palinhas de suas canções nos alaúdes bem afinados.

Não. Um bom espetáculo precisava contar com o público. Precisava de caos. E a pirata demorou tempo demais planejando cada segundo daquele momento para não ter a atenção de todos focada em si.

No momento certo, no entanto.

Por isso, foi um golpe rápido e limpo, entre as costelas e a coluna. Preciso o suficiente para matar, mas não sem antes proporcionar vários instantes de agonia intensa e silenciosa. Ele não conseguiria emitir qualquer som, lamentação ou pedido de socorro para alertar o povo à volta de forma imediata. E isso proporcionava tempo suficiente para observar e aproveitar cada centímetro do rosto expressivo dele. Da falta de reação momentânea ao ser atacado pelas costas até a compreensão do que aquilo se tratava, ao vê-la se exibir à sua frente, em toda sua glória. Então o choque, raiva, desespero e finalmente a dor. Explícita nos tremores involuntários do rosto e do corpo, nos olhos que perdiam o brilho de vida gradativamente e nos lábios finos, que se retorciam em palavras não ditas, impedidas de soarem pelo fluido que subia à garganta.

Mas ela queria ouví-las. Queria que ele implorasse pela sua vida, mesmo sabendo que não o faria.

— William — as sílabas dançaram em sua língua, lentas e prazerosas. — Tem noção do quanto esperei por isso?

O homem fez menção de tentar falar algo, mas a pirata rapidamente levou o dedo indicador aos seus lábios, silenciando-o. Um leve balançar de cabeça em gesto negativo foi seguido de uma risada baixa.

— Não gaste suas últimas palavras antes da hora, se é que tem alguma para isso — a chama dos olhos verdes da mulher estava cravada no azul opaco dos dele. Seu corpo sustentava o peso do outro, para que se mantivesse de pé enquanto ela falava. — Como é estar no lugar dele? Chegou a passar pela sua cabeça que um dia suas ações voltariam para te assombrar? Para te causar exatamente o que você causou no passado?

O monólogo foi brevemente interrompido pela tosse engasgada de William. Agora, sangue escorria de sua boca, trilhando um caminho pescoço abaixo até pingar no chão. Ele tinha poucos segundos de vida e ela, apenas alguns instantes para meter o pé dali.

— Você não conseguiu me matar naquele dia, soldado, por sua própria incompetência. Essa foi a sua ruína. Eu sou a sua ruína — uma pausa rápida se deu num suspiro. — Mas você conseguiu tirar tudo que eu tinha e amava. Tudo que importava para mim — pronunciada entredentes e de forma lenta, a frase era quase um rosnado. — Agora, eu vou retribuir o favor — diminuindo sua voz para um sussurro, ela se aproximou do ouvido dele: — Uma pena não estar mais aqui para testemunhar. Que meu rosto fique gravado como a última coisa que você viu em vida, .

Então, sem nenhum pesar ou hesitação, a pirata se colocou às costas do homem outra vez, como no início. Retirou num gesto bruto a lâmina cravada em seu corpo, fazendo com que o sangue esguichasse e pintasse todo o redor, incluindo suas vestes e rosto. E, sendo empurrado com um chute dela, William finalmente caiu de joelhos, se entregando ao destino que o esperava sem relutar. Ele ainda se agarrava a um último fio de vida, porém. Desperto o suficiente para ouvir as palavras finais de sua assassina.

Mas a atenção dele não era a única; o baque surdo de seu corpo caindo fez uma multidão apavorada e um alvoroço finalmente se formarem ao redor. Aquela era a atenção que queria, que esperava. Do povo.
Consequentemente, também, dos outros soldados que já corriam em sua direção para capturá-la.

Sessenta segundos.

— Isso foi um acerto de contas — a mulher gritou com calma para todos que tiveram coragem o suficiente de parar para ouví-la; o sorriso largo tingido com a cor do sangue do inimigo sendo exibido em vitória. — Mas foi só o início de algo bem maior. Não vou parar por aqui, tenham certeza.

Quarenta e cinco.

— Esse homem me deu um propósito, e eu não descansarei até cumprí-lo. Então, por ele, deixem que meu nome ecoe por Willhye.

Vinte segundos, se quisesse de fato escapar dali.

— Deixem que Syrena saiba que voltará. E que quando o fizer, será por ela.

Não havia mais tempo.

Eu sinto muito — antes de se lançar à multidão, pôde finalmente escutar as palavras daquele que caíra aos seus pés. E, se não soubesse que a sua própria vida estava em jogo e dependendo daquela fuga, teria congelado no lugar.

Teria parado para encarar os olhos dele, uma última vez. Ou para prestar atenção em quem estava berrando em cima do corpo sem vida, chorando como se uma parte de si tivesse morrido junto. Talvez até mesmo para rir dos gritos de “Peguem-na” “Não deixem-na escapar” “Fechem o porto e revistem os navios!”. Mas tudo parecia ecoar no vazio enquanto corria para longe.

Ao longo do tempo, tinha ouvido diversas últimas palavras de inimigos. Súplicas, barganhas, ofertas. Nenhuma delas tinha sido um pedido de desculpas. Nenhuma delas carregava sinceridade. Isso sequer passaria pela sua cabeça.

Tinha se preparado para muitas coisas que poderiam acontecer em seu momento triunfal, mas não para aquilo.

Não foi um impedimento de seguir com o plano até o fim, porém. Muito menos algo que fizesse com que ela se arrependesse de, finalmente, ter sua vingança.
Mas até estar longe o suficiente e diferente o suficiente para olhar para trás sem preocupação, o coração bateu forte no peito. William , o homem mau que havia sido palco de seus pesadelos por tantos anos, tinha lhe dito que “sentia muito” como último ato em vida.

Um delírio, talvez. Dele. Dela.

Podia ter imaginado, não é? Ou poderia ter de fato acontecido. Uma frase desesperada, fruto dos famosos trinta segundos de toda a vida que passam diante dos olhos, talvez. Um falso arrependimento, movido pelo medo de arcar com seus pecados lá embaixo, quem sabe.

Não importava, de fato. Era tarde demais para sentir muito.

Mas após agradecer com um sorriso simpático a liberação de um dos soldados para a partida de seu navio, depois uma longa revista e interrogatórios respondidos com: “Não vi para onde ela foi”, “Não passou por aqui”, “Vi uma mulher correndo para lá!” optou pelo silêncio, deixando de lado a comemoração de sua vitória junto à tripulação para manter seus pensamentos, dúvidas e raiva para si mesma e para a imensidão do oceano, que aguardava a próxima aventura.



Capítulo 1 - Mau Presságio

A taverna era pequena e simples; um cubículo marrom e mofado, com alguns lampiões de velas acesas nas vigas altas – falhando em sua única função de trazer claridade ao ambiente –, e mesinhas mancas aqui e ali, espalhadas pelo chão que rangia ao andar. Havia também uma estante isolada caindo aos pedaços ao fundo, onde poucas garrafas de bebidas diversas já pela metade se faziam presentes em suas prateleiras de madeira empenada e quebradiça.

Obviamente, a luta pela sua tomada foi patética. Se é que fosse possível chamar aquilo de luta.

Durou apenas alguns minutos e não sobrou muito além de alguns bêbados correndo para longe enquanto tropeçavam nos próprios pés, intimidados pela presença de e sua tripulação. Aquela definitivamente não seria das melhores histórias para se contar no futuro, mas, ao menos, a pouca adrenalina da invasão e batalha – por pior que essa tenha sido – nunca era demais.

— Três ilhas — a capitã suspirou, arrastando a ponta da espada no chão enquanto ia até a estante para pegar uma garrafa de rum. — Três ilhas e não teve um único homem ou mulher suficientemente capaz de me entreter em uma batalha. O nível das pessoas decaiu tanto... — com um balançar negativo de cabeça, a voz dela soou exageradamente dramática. — Estão rindo de que, idiotas?

A feição séria que imediatamente tomou conta de sua expressão por ouvir risadas dos marujos trouxe consigo uma lâmina afiada apontada em ameaça para o grupo, mas a marra logo se desmanchou em um sorriso suave que se rendeu à animação da tripulação. Eles não haviam parado de rir mesmo com a repreensão, é claro, mas ela não se importou.

— Certo, seus cães sarnentos, vocês estão perdendo todo o respeito e estão precisando de uma lição bem dada. Mas hoje eu vou deixar passar, afinal, estou de bom humor. Depois eu penso em punições adequadas — as botas já gastas pelo tempo deixaram de tocar o chão quando a mulher tomou um impulso para se sentar no balcão de madeira, que protestou com um estalo. Em seguida, guardando sua espada na bainha, deu um longo gole no álcool da garrafa. — Não ousem se acostumar com isso.

Continuando a beber do rum, se permitiu relaxar a postura e deixar sua atenção vagar para outras coisas além da comemoração dos piratas. Foi assim que, de rabo de olho, a capitã pôde notar uma de suas encarregadas adentrando o lugar pela porta dos fundos. Parecia meio hesitante, querendo passar despercebida, mas se aproximou por fim. E num contraste quase que palpável, na pouca iluminação dos tocos de velas da taverna, a garota definitivamente não detinha metade da animação dos demais. Seus olhos baixos e cenho franzido não combinavam com o rosto bonito e jovem, e, mais do que isso, indicavam apreensão. Medo, até. Foi suficiente para a expressão tranquila de ser substituída por desconfiança, à espera de más notícias.

Elas sempre vinham.

— O que foi, Gem? — O olhar atento para a mais nova procurava por algo ali escondido. — Não deveria estar bebendo e festejando com o resto da tripulação?

— Faz tempo que estamos longe de casa — não foi difícil perceber que aquela frase continha muito mais significado do que aparentava, principalmente por trazer consigo um suspiro contido.

— Bom, qual é o problema? Não é como se um dos comerciantes da nossa ilha fosse aguardar nossa volta com armas à postos. Se for, também, a gente dá conta — dando de ombros, a capitã forçou um tom bem-humorado para amenizar o clima pesado que o comentário trouxe, mas ela sabia que deveria ouvir o alerta.

Gemma nunca se enganava em suas intuições. Pelo contrário; elas já haviam salvado a tripulação mais vezes do que a mulher poderia contar.

— Eu só... estou com um mau pressentimento. E forte — os olhos cinzentos e firmes da garota sustentaram os de com determinação o suficiente para fazê-la ceder e escolher dar ouvidos ao seu alerta, mesmo que a contragosto.

— Certo. Partiremos de volta essa noite, então. Deixe os demais cientes — com a decisão tomada, foi nítido o peso que saiu dos ombros de Gemma, permitindo que ela enfim relaxasse um pouco. — Obrigada por me avisar.

Dando um pequeno sorriso satisfeito, a mais nova curvou levemente a cabeça em resposta à sua superior e então se afastou, juntando-se finalmente aos outros, que entornavam garrafas e mais garrafas de rum – e do que mais achavam pela frente –, enquanto cantavam, animadamente:

Yo, ho! Yo, ho, a vida pirata é assim;
ouro, mulheres, rum à vontade;
velas ao vento, tesouros e saques;
Yo, ho! Yo, ho, não há nada melhor para mim;
em alto mar, quem desafiar, na prancha vai andar!
E seu fim vai encontrar…
Yo, ho! Yo, ho...


Mas era impossível dizer que a breve conversa não acarretou em uma mudança significativa de humor. Primeiramente, da capitã, que foi quem recebeu as notícias. Depois, um a um, ela observou as caretas se formando nos piratas ali reunidos enquanto Gemma avisava-os sobre a partida. Então vieram os protestos, e, sem muito saco para aguentar reclamações ou debater sua decisão, decidiu se retirar, colocando-se em pé com precisão o suficiente para não fazer barulho enquanto saía de fininho da taverna.

Foi uma caminhada rápida. Não havia muito a se cruzar entre o estabelecimento e a orla, e, uma vez lá fora, um suspiro aliviado se fez.

O cheiro da praia lhe recebeu de maneira agradável e o vislumbre dos últimos raios de sol que brilhavam no horizonte foi suficiente para suavizar sua expressão. O mar cristalino contrastava iluminado numa tonalidade bonita de fim de tarde e espelhava as nuvens do céu como suas próprias ondas alaranjadas, trazendo também a brisa da maresia, que batia nos grandes cabelos trançados, – escuros como uma noite sem lua e envoltos por uma bandana carmesim –, e no rosto de pele negra da mulher, que se permitiu sorrir ao ver aquela paisagem paradisíaca.

Apesar de pequena, era uma boa ilha.

Boa, mas nem sequer parecida com aquela que chamava de lar.

A Ilha Roccia era sua verdadeira casa, ela sabia disso. Foi lá que encontrou sua família, seu lugar, e principalmente a si mesma depois de tanto tempo perdida. Não se recordava de outro local que um dia tinha sido capaz de fazer com que se sentisse assim. Tão bem. Tão... viva.

Exceto, talvez, o grande reino de Willhye, antes de tudo acontecer.

Quando ainda era sinônimo de segurança, de amor, de pertencimento. Quando ainda havia alguma coisa por lá para se agarrar. Num passado distante, obscuro e dolorido demais. Enterrado em memórias e aterrorizado por fantasmas que perseguem vez ou outra, sem nada de bom para trazer além de uma nostalgia incômoda e um nó na garganta.

Foi imersa nesses pensamentos que deixou seus olhos verdes vagarem e percorrerem cansados toda a extensão do lugar em que estava, desde a espuma branca que a água deixava na areia quente até a popa de seu navio ancorado mais ao longe, onde as letras douradas entalhadas na madeira e refletidas pelo sol quase posto exibiam o nome "Rogers’ Vengeance"; à dedo escolhido e muito significativo para a mulher. Era sempre difícil se deixar levar pelas lembranças que ele lhe fazia recordar, porque, mais do que qualquer coisa, significava uma promessa de retorno ao início.

Um início que, de tempos em tempos, parecia esquecido. Distante demais. Preso em um local amaldiçoado que sentenciou seu passado.

E por mais que fosse quase mais forte do que ela, não queria pensar naquilo agora.

Ainda havia muito para se desbravar naquelas águas selvagens e seu espírito aventureiro pedia por isso. Ilhas, conquistas, tesouros, batalhas. Ela não deixaria nada ficar em seu caminho; quando se cansasse da vida boêmia e decidisse voltar e cumprir com seu destino, o faria. Mas, por hora, não podia deixar de admitir que uma parte dela estava com saudades de casa.

Estavam no mar já há um tempo e o aviso de Gemma veio a calhar, bem ou mal.

Faria bem voltar. Seria uma pequena parada na Ilha Roccia, somente para checar como estavam as coisas desde que saíram... e então poderiam seguir viagem para o próximo destino tão esperado da extensa lista: La Maldita Isla Sangrienta, lugar onde nenhum pirata ousou pôr os pés até hoje, por medo da terrível maldição que a cerca.

Ao menos, nenhum pirata que detivesse um nome como Rogers .

E sua fama não era à toa. Foi ao menor sinal de passos sorrateiros atrás de si que a espada já estava desembainhada, empunhada e pressionada contra o pescoço do homem que havia ousado se aproximar.

— Lute comigo — a voz exibia um tom divertido e desafiador, o que fez com que os olhos de esmeralda da mulher se estreitassem ao analisar o sorriso despretensioso no rosto de seu imediato e adversário no momento.

— Não está planejando um motim, imagino — o tom de desdém se fez presente propositalmente ao responder seu pedido. — Acha que está à minha altura?

— Não — o sorriso se alargou ligeiramente. — E não, também. Mas ao menos posso te garantir mais diversão do que a que teve momentos antes, na taverna.

Agora, a capitã também exibia um pequeno sorriso.

— Pois bem — assim que as palavras foram pronunciadas pela mulher, Benny não perdeu tempo em sumir de sua frente e reaparecer às suas costas, a adaga que detinha em mãos agora pressionada contra as costelas de . — Se pretende usar magia para tornar a luta mais interessante, vou chegar à conclusão que quer me bajular. O que você está querendo?

Sem esperar resposta, entretanto, os pés da capitã, quase como em uma dança, se moveram estrategicamente em um giro para afastar o homem e sua adaga de perto de seu corpo, voltando a ficar frente a frente com ele em posição defensiva e à espera de outro ataque.

— Você nos prometeu La Maldita Isla Sangrienta, agora quer voltar para casa. Não pode esperar que os tripulantes fiquem felizes com a decisão.

Com a resposta, o feiticeiro investiu novamente contra a mulher, que se defendeu sem esforços, iniciando o confronto de lâminas que tilintavam a cada choque.

— Gemma disse que está com um mau pressentimento quanto à nossa ilha. Você sabe que as palavras dela são como profecias, Benny. Ela não erra, nunca errou.

Foi a vez da capitã de investir contra o homem, que se esquivou rapidamente do golpe de sua espada e pulou para trás no último segundo, a tempo de evitar a queda que certamente sofreria se tivesse acertado a rasteira que sucedeu seu ataque.

— Se for esse o caso, não me incomodo de virar, sei lá, uma gaivota, um corvo, uma arara azul ou qualquer outra coisa com penas e sobrevoar a nossa ilha para verificar se ela está, de alguma forma, sendo ameaçada. Evitamos dias de viagem de volta e assim podemos avançar para nosso próximo destino, o que me diz?

O tom manipulador quase fez com que a capitã soltasse uma risada, mas ela se conteve e manteve a atenção focada na luta.

— Ganhe de mim e eu acato seu pedido. Perca e sua punição por me desafiar será não velejar com a tripulação até a Isla Sangrienta — as palavras da pirata, apesar de suaves, eram sérias, soando como uma sentença final.

— Você não me deixaria para trás — o tom dele, por outro lado, era de dúvida, não de certeza.

— Não? — Foi a resposta final antes de se calar e se concentrar no que estava fazendo.

Se a capitã bem sabia, Benny não hesitaria em usar de seus atributos mágicos para ganhar aquela luta, ainda mais depois de sua ameaça. Era com isso, porém, que ela estava contando. havia passado anos lutando contra cada um de seus tripulantes, bem como observando-os lutar uns contra os outros também.

Dizer que sabia cada ponto fraco, forte e trunfo escondido de todos eles não era exagero. E foi exatamente por isso que, ao vê-lo tomar uma mínima distância e se aproximar logo em seguida, com velocidade suficiente para um ataque direto, ela se virou de costas.

Um movimento arriscado e que contava apenas com a sorte de ser um palpite correto.

Mas, como esperado, Benny havia sumido e reaparecido bem em sua frente outra vez, e assim, não foi difícil usar a espada para contra-atacar sua investida de adaga e tomar a dianteira da luta. Uma vez que a capitã cruzou as lâminas e aproveitou da proximidade para, dessa vez, dar uma rasteira bem sucedida, o corpo do feiticeiro caiu na areia e ficou suscetível a um último golpe, o qual ela interrompeu segundos antes de atingí-lo pra valer, deixando que o aço gelado da lâmina apenas encostasse gentilmente em seu pescoço.

— Achei que tivesse dito que seria mais divertido do que foi na taverna — a ironia presente na voz dela fez com que o homem endurecesse a expressão.

Usando o ombro para secar as poucas gotas de suor que escorriam de sua têmpora até o queixo, ela riu. E iria estender a mão para que ele usasse de apoio ao se levantar, mas preferiu se sentar na areia, ao seu lado, por uns instantes.

— Comigo é sempre mais divertido — apesar do tom de flerte, a resposta não soou muito mais alta do que um resmungo contrariado, o que fez com que soltasse uma risada.

— Depois de uma derrota ridícula dessas, o mínimo é baixar a bola — cruzando as pernas, relaxou a postura, encarando-o de esgueio. — Aliás, você precisa, e muito, aprender a se virar melhor com a espada. Pode ser o feiticeiro que for e ter a magia que for, mas também é um pirata. Piratas sabem lutar com espadas. Você não sabe. Ainda vai acabar morrendo por isso.

— Tenho certeza que te teria chorando por mim — ele sorriu, mas tinha levado o conselho a sério.

— Tenho certeza que sonha com isso todas as noites — ela rebateu, revirando os olhos de forma teatral.

Então os dois se mantiveram em silêncio, apenas apreciando a companhia um do outro e a imensidão do mar à frente, — que já começava a se misturar com a cor do céu, — por vários instantes.

Até soltar um suspiro.

— O que está passando pela sua cabeça? — Benny perguntou sem nenhuma cerimônia. — E não adianta falar que não é nada. Vou encher o saco até me dizer.

— Nada — ela respondeu prontamente, mais para contrariar do que qualquer outra coisa.

— foi só o que ele precisou dizer antes que ela se rendesse.

— Eu já deveria ter voltado — falou por fim, com quatro palavras que tinham muito mais significado do que aparentavam.

Ele sabia que sim.

— Um propósito não deixa de ser um propósito só porque o tempo passou, se é o que te preocupa — o homem ofereceu um sorriso. — Willhye vai continuar lá quando decidir voltar e cumprir o que prometeu. Nada te impede de viver antes e ter outros objetivos além do principal.

— Eu devo isso à ele — rebateu de pronte.

— Eu nunca disse o contrário — Benny levantou as mãos em sinal de paz, rindo de leve para amenizar o clima. — Mas é a sua vida. E ele iria querer que vivesse. Que fosse muito mais do que só uma busca incansável por vingança.

— E você é o que, agora? — Perguntou, o cenho franzido em claro sinal de desconforto. — Alguém que fala pelos mortos?

— Não aprendi necromancia ainda, mas eu tenho quase duzentos anos — Benny conhecia bem a mulher à frente e sabia quando era a hora de encerrar o assunto. — A gente acumula mais do que só burrice e experiência ruim ao longo do tempo. Está escurecendo.

— Trace o curso para a Ilha Roccia. Vou reunir o resto da tripulação.

Enquanto a pirata caminhou de volta à taverna, – onde apesar de qualquer revolta em voltar para casa, a comemoração e bebedeira ainda era ouvida muitos passos antes de chegar de fato ao local –, o feiticeiro se levantou e bateu as mãos em suas roupas para tirar o excesso de areia grudada depois da queda, seguindo até o navio. Como ordenado, começou os preparativos para partirem, mas não havia muito a ser feito além de selos de proteção e organização básica. Por esse motivo, Benny apenas aguardou a chegada dos outros, recostando seu corpo na proa e observando as águas escuras do mar iluminadas pela luz da lua e estrelas com a chegada da noite.

E não demorou até que o resto da tripulação abordasse e estivesse pronta para partir. No convés, todos olharam para a capitã, esperando que ela desse as ordens.

— Eu realmente preciso dizer o que cada um tem que fazer depois de todos esses anos?! Vocês são patéticos. Péssimos. Horríveis. Uma decepção — ela os encarou desacreditada. — Vamos logo! Levantar âncora, içar velas, a todo pano para a ilha Roccia, blá blá blá — um gesto de mãos dispensou os marujos, que foram logo à postos.

E uma vez estando todos em suas devidas posições, se destinou à sua própria e tomou o timão, começando a navegar para casa. A ilha Roccia tinha sido escolhida para ser sua morada, dentre muitos fatores, pelo difícil acesso; o mar era agitado e perigoso, e a viagem, longa. Por isso, tinham muitas e muitas horas pela frente, mas se o vento estivesse a seu favor, de onde estavam, conseguiriam atracar em menos de dois dias. E, não diferente do habitual, visto que todas as viagens a bordo do Rogers’ Vengeance eram barulhentas e animadas, – essa um pouco mais devido ao nível alcoólico em que todos se encontravam – as primeiras horas se passaram sem que percebessem, entre conversas e brincadeiras.



Assim se seguiu.

Mais para o meio da madrugada, os piratas se organizaram em turnos para vigília. não saiu do timão e Benny seguia ao seu lado, atento a qualquer coisa que fugisse do controle durante a volta para casa. Connor tinha um alaúde pequeno em mãos, com o qual embalava a tripulação em uma melodia, e Nasher estava firme no alto da plataforma do Ninho do Corvo, os olhos focados no horizonte. Anne Marie se recostava em um dos mastros, intercalando sua atenção na bússola, – preocupada em mantê-los na direção certa –, e na música. Damien caminhava para lá e pra cá com barris e baús, armazenando os saques e mantimentos no porão.

Os demais cumpriam suas funções enquanto alguns se deslocavam para o alojamento, para finalmente descansar um pouco. Entre eles, estava Gemma.

A mais nova se deitou em uma das redes à contragosto; sua mente estava barulhenta demais para se entregar logo ao sono. Todas as vezes em que a sensação de que algo ruim estava por vir chegava, ela não conseguia relaxar até que finalmente se visse imersa na situação. Até enfim ter respostas.

E o que mais incomodava a garota dessa vez era que, mais do que todas as outras vezes, nada estava claro. Era somente uma pontada no estômago, um nó na garganta, uma angústia crescente que avisava e insistia que algo estava errado. Que algo grande viria a acontecer, e que talvez não estivessem preparados para isso. Mas ela não tinha visto nada. Não tinha ouvido, como antes. Sussurros no vento, palavras soltas em cartas pintadas à mão, melodias cantadas ou conversas aqui e ali que a levavam até uma resposta.



Nada. Era apenas uma maldita sensação incômoda e incansável, que, em determinado momento, acabou sendo vencida pelo cansaço do dia.

Então, se transformou em imagens, num sonho turbulento.

O cenário era embaçado, como se houvesse fumaça por toda parte. Talvez de canhões, afinal, havia marrom por ali. Eram muitas cores para processar, de qualquer forma. Tinha o azul do mar e a mistura dele com o tom mais claro de uniformes que, em certas partes, brilhavam em dourado. Aliás, o dourado também estava presente nos grandes pilares enfeitados com gárgulas cinzas e rachadas, no topo. Algo como seda em tom vinho se misturava com o bege envelhecido de mapas. Roxo, prateado e laranja apareciam em flashes muito rápidos. E havia também o vermelho, que manchava o solo que ela pisava. Esse, ora de areia, ora verde. Mas não era somente abaixo de seus pés que essa cor estava.

O vermelho também criava contraste ao se misturar com um tom escuro de pele.

Foi o suficiente para os olhos se abrirem muito mais rápido do que se fecharam, horas atrás. E para os passos barulhentos percorrerem em segundos o caminho do alojamento à cabine principal, a qual Gemma não se deu ao trabalho de bater antes de entrar.

— Syrena irá mandar tropas para invadirem e tomarem a ilha — recebeu a mensagem entre uma piscada pesada e outra, o olhar se tornando atento e a postura se endireitando à medida em que as palavras eram ditas pela mais nova.

Elas soavam distantes aos ouvidos de ambas. Quase irreais.

— Que bom que estamos voltando, então — foi a resposta, que ecoou depois de um longo período de silêncio. — Chegaremos muito antes deles e teremos tempo para nos preparar — a capitã prosseguiu, sem apresentar em sua expressão qualquer preocupação, apesar de a notícia tê-la pego de surpresa. — Mas você sabe disso. Então, por que seu corpo está tremendo por inteiro?

Gemma sempre fora centrada e calma; era preciso um baque enorme para desestabilizá-la daquele jeito. A notícia de que uma possível invasão e batalha estava para acontecer não era grande coisa. Não para deixá-la ofegante, suando, e com o rosto brilhando em lágrimas as quais a pirata fazia esforço para não derramar. Não para não conseguir encarar a mulher à frente ao forçar a voz a soar mais alta do que um sussurro.

— Você acaba morta, .



Capítulo 2 - As Ordens da Rainha

O sol do meio dia estava alto no céu. Seus raios fortes, quentes e brilhantes irradiavam de forma imponente toda Willhye, fazendo de seu antro, o grande palácio, – com suas altas torres e paredes esculpidas em desenhos que já marcavam gerações – uma visão de tirar o fôlego. O ouro dos adornos e das esculturas nos pilares era tão resplandecente quanto aquele que brilhava acima, mas, embaixo de tudo aquilo, a terra era fina.

E alguns esqueletos soterrados há tempos estavam para ser desenterrados.

Dentro da morada da realeza, os passos apressados e barulhentos que preenchiam o que na visão de era um inacabável corredor, somados à feição séria e ao maxilar tensionado que exibia em seu rosto, denunciavam seu nervosismo ao se aproximar da maior e mais importante sala do deslumbrante palácio. Era a primeira vez, desde que havia conseguido um cargo alto na corte, em que sua presença era solicitada repentinamente por Sua Majestade. E ele não sabia o que esperar com isso.

Teria cometido algum erro? Esquecido alguma tarefa? Ela pediria sua cabeça como punição?

Ninguém era chamado em presença da mulher há muito tempo. As ordens delegadas aos soldados eram passadas por superiores na grande hierarquia presente no reino, tornando desnecessária a participação direta da soberana. Então por que ele, sendo tão invisível em meio à tantos outros mais importantes naquele lugar, estaria sendo convocado?

As dúvidas que rondavam sua mente não o deixavam em paz. E elas só aumentaram ao finalmente estar em frente à grande porta de madeira maciça, onde deixou duas batidas para anunciar sua presença antes de adentrar o aposento.

— Com licença — a voz grossa e firme, apesar de tudo, não falhou em se fazer presente no ambiente. — Mandou me chamar, Majestade?

— por estar de costas, a reverência em respeito foi vista pelo reflexo dos vidros límpidos de uma das janelas. A mulher não se preocupou em encará-lo diretamente, apesar disso; seus olhos se mantiveram perdidos no mar agitado. — Sim, mandei. Tenho uma tarefa importante a solicitar, e depois de muito ponderar, creio que talvez você seja a pessoa certa para cumprí-la.

Os segundos que se passaram em silêncio após aquelas simples palavras, para ele, pareceram horas.

Claro, podia soltar um suspiro aliviado por não ser algo ruim como previa, mas toda a tensão anterior foi transformada num choque nada sutil. Nem em seus sonhos mais profundos esperava receber uma proposta importante tão cedo; afinal, mesmo seu irmão, sendo um dos homens mais requisitados para missões da corte em sua época, havia levado anos para conquistar confiança e servir diretamente a uma ordem superior. Estar recebendo uma proposta dessas tão cedo quase parecia errado. Nem sequer fazia um ano de sua promoção.

Mas não se recusa uma oportunidade, e por isso, as sobrancelhas grossas erguidas em surpresa voltaram para seu natural tão logo quanto se puseram acima uma vez que o homem se propôs a responder àquilo. Positivamente, é claro, apesar de toda estranheza.

Ele não conseguiu, no entanto. Antes de qualquer palavra poder ser pronunciada, a rainha se virou para encará-lo, e isso travou seus lábios e postura.

O rosto de traços finos e bem desenhados de Syrena era emoldurado por cabelos loiros que caíam em cascata pelos ombros. Sua expressão, apesar de séria, tinha em destaque olhos gentis de um azul tão vibrante que quase pareciam uma parte capturada do oceano lá fora. As vestes, como sempre muito bem feitas e bonitas, – moldadas e costuradas sob medida para ela pelas modistas da corte –, estavam no momento compostas por um vestido seda vinho adornado por detalhes rendados em tom cru na cintura. não deixou de notar também que rubis tão vívidos e brilhantes quanto a cor do tecido finalizavam o caimento do mesmo, contrastando e realçando a pele bem clara da mulher.

Ela era bonita; um tipo de beleza dificilmente igualada além de incomum, que conseguia fazer até mesmo olhos atentos se perderem para poder encontrá-la. E, de certo, essa poderia ser sua maior característica, não fosse pelo fato de uma única coisa ser capaz de atrair ainda mais atenção para si: sua idade. A rainha Syrena parecia uma moça em muitos aspectos, o que por si só era uma arma e um lembrete. Nenhuma vez, em toda a história de Willhye, a coroa havia descansado sob uma cabeça tão jovem.

Muito menos permanecido nela por tanto tempo.

A jóia ancestral, porém, estava há tantos anos adornando seus cabelos claros e impondo-se acima de todos que parecia apenas algo certo, feito para ela, como se fosse uma parte de seu corpo. Era uma sorte que a mulher houvesse se adaptado tão bem ao trono, especialmente depois da morte do rei, seu marido, antes mesmo que completassem um ano de união.

A doença que surgiu de forma súbita levou-o à morte às pressas, fazendo com que o fato ficasse marcado como uma terrível tragédia por todo o reino.

— Ficarei honrado em serví-la, Majestade — encontrou sua voz novamente depois de vários instantes, mas as palavras soaram mais convictas do que quando ele adentrou o local. Fruto, talvez, da expectativa já criada antes mesmo de saber qual seria sua tarefa.

— Acredito que esteja muito bem familiarizado com o nome — Sem cerimônias, Syrena se pôs a andar de um lado para o outro. Aquele simples nome, ela sabia, seria capaz de desconcertar o homem à sua frente.

E assim como imaginou, não tardou a ver a reação. A mão direita do soldado se fechou em punho e sua feição séria se tornou enraivecida, com linhas de expressão se franzindo em claro desprezo. Ele deveria estar surpreso por ouvir aquele nome ser pronunciado tantos anos depois do ocorrido. Deveria até mesmo estar feliz ante a perspectiva do que estava por vir com aquela introdução às ordens que se seguiriam.

Mas o único sentimento a surgir dentro de si foi o ódio.

E, mais do que ele, a vingança.

Vingança a qual o homem alimentava desde que viu seu irmão ser assassinado pela mulher.

— Não poderia esquecer esse nome nem se tentasse, Majestade — apesar do que sentia por dentro, ele desfez a expressão enraivecida brevemente exibida e se pôs sério e impassível outra vez, esperando o desenrolar da conversa.

— Essa mulher é uma criminosa procurada pelo reino desde que desapareceu seis anos atrás, como imagino que bem se lembre — Syrena não pôde deixar de colocar um tom de pesar em sua frase em respeito à , mesmo que não se importasse de fato com o ocorrido.

Claro, havia perdido um de seus melhores homens, mas não gastaria seu tempo lamentando por isso uma vez que o relógio estava correndo e a oportunidade de fazer a culpada pagar por aquilo finalmente surgia à sua frente. Então, ela prosseguiu:

— O assassinato de seu irmão foi uma perda muito grande para Willhye. Foi, também, o primeiro dos crimes de . Desde então, ela é uma desertora. Pirata — a última palavra foi pronunciada com nojo perceptível na voz da rainha.

— Estou ciente — ainda sem demonstrar emoção, por mais que o ódio que sentisse o corroesse, esperou que a mulher finalizasse seu monólogo e fosse direto ao ponto antes de dizer qualquer outra coisa.

— Para sua felicidade… ou assim suponho, sua localização finalmente foi reconhecida. E este é o motivo de ter lhe chamado — um longo suspiro escapou de seus lábios rosados. — Tenho conversado muito com meus conselheiros a respeito disso e voluntários para essa missão não faltaram. Mas acredito que, por ter uma rixa pessoal e sentimento de vingança dentro de si, talvez você seja a pessoa ideal para liderar essa missão.

A mulher andou novamente pela sala, os passos, dessa vez, em direção à , diminuindo a distância estabelecida entre os dois no início da pequena reunião. A diferença de altura entre eles era perceptível, uma vez que o homem, com seu porte militar, – resultado de longos anos de treinamento intenso, – era muito mais alto e corpulento do que ela. Essas características, porém, se tornavam quase insignificantes se comparadas à imponente presença e poder que Syrena exalava.

Com o silêncio do soldado perante suas palavras, ela continuou:

— Não posso deixar de ter a preocupação, porém, de que o sentimento que te motive a cumprir essa tarefa com afinco seja o mesmo a lhe tirar o sucesso, se deixar suas emoções superarem o profissionalismo. Veja, estou lhe oferecendo essa oportunidade porque preciso de alguém para assumir o lugar que Willian deixou, e também porque sei o quanto almeja encontrar aquela que o tirou a vida — apenas assentiu minimamente com a cabeça ao ouvir isso. — Mas quero que tenha em mente que a punição adequada será decidida e executada por mim, e assim sendo, suas ordens são apenas para contê-la e trazê-la de volta para o reino como prisioneira. Os que a seguem não me importam, fica a seu critério o que fazer.

O silêncio que se seguiu por vários instantes depois disso seria absoluto se não fosse pela respiração pesada do homem, que não falhava em denunciar seu descontentamento com as condições da missão proferidas pela rainha. Ele sabia que aquela era uma oportunidade única e não iria recusá-la, mas esperava poder ter a sua vingança uma vez que a encontrasse. Esperava poder fazer, com suas próprias mãos, a culpada por ter destruído sua família pagar pelos seus atos com a vida.

Em vez disso, teria que encarar a assassina de Willian frente a frente, quase que de mãos atadas, apenas seguindo ordens de capturá-la.

— Mas — os olhos do soldado, uma vez opacos ante à decepção, voltaram a encarar Syrena com certo brilho de expectativa. — Minha única exigência é que faça dela sua prisioneira. O que precisa fazer para conseguir isso e até mesmo o estado em que ela se encontrará ao chegar aqui é… irrelevante — o tom divertido e ao mesmo tempo cruel que permeava suas palavras abria uma grande brecha para interpretações variadas, e foi nisso que se agarrou, os lábios se curvando de maneira quase imperceptível em um sorriso. — Não falharei, Majestade. Não deixarei que meus sentimentos atrapalhem meu sucesso — foi com imponência que, depois de muito tempo sem falar, o homem fez sua convicção ser demonstrada naquelas palavras.

— É o mínimo esperado — Syrena voltou a se afastar, caminhando outra vez em direção à janela que observava antes de a conversa começar. Ela deixou seu olhar se perder ali por uns segundos, como se buscasse por algo. — está na Ilha Roccia. Um dos comerciantes do lugar aproveitou seu período de ausência para fugir e comunicar isso à corte — um pequeno sorriso curvou o canto dos lábios da rainha por uns instantes. Ele logo sumiu, no entanto, e ficou se perguntando se teria imaginado. — Ao que parece, ela vem querendo aumentar o que julga serem suas ”posses”; pequenas ilhas pouco habitadas e derivados, possíveis rotas de fuga e esconderijos. Mas sua localização fixa é lá, desde o começo. Um lugar quase fora dos mapas. É fácil de entender o motivo de conseguir passar despercebida por todos esses anos.

Havia raiva na última frase, e a inquietação da mulher perante toda a situação ficou clara quando, mais uma vez, o barulho de seus saltos foi ouvido ecoando pelo ambiente enquanto ela caminhava. Dessa vez, seu destino foi a mesa central de sua sala, onde um mapa aberto continha uma tachinha amarela indicando a localização do destino almejado.

— Além de longe, a rota até lá é extremamente difícil. O mar é traiçoeiro e as rochas enormes e pontudas que circundam o local são famosas por afundar navios. Você levará ao menos seis dias para chegar até lá, sendo otimista. Para cumprir suas ordens, acredito que precise de menos do que isso, o que te dá um total de quinze dias ao todo, entre ida e volta — seu dedo indicador deslizou pela parte azul do papel, demonstrando a rota marítima a ser seguida. Segundos depois, as unhas começaram a tamborilar pela madeira. — Dezesseis, se for necessário contar imprevistos na rota ou na execução da tarefa, o que acredito não ser. É um homem cético, ?

— Cético? — As sobrancelhas se franziram por uns instantes ao ser pego de surpresa por aquela questão: — Não estou certo ao que se refere nessa pergunta, Majestade.

— Sereias — os olhos azuis da mulher voltaram a encarar os dele; o tom quase de mesma cor, mas não de mesma profundidade, se cruzando. Havia um brilho diferente ali, que quase tão logo quanto apareceu, se foi. — Há uma baía tomada por elas no meio do caminho. Sereias são criaturas difíceis de se lidar, já que fazem questão de afogar marinheiros que cruzam seu caminho, hipnotizando-os com seu canto e beleza surreal.

— Eu não... — o soldado não sabia bem o que responder perante àquela pergunta e as informações que a seguiram, por isso, a mulher fingiu não perceber suas palavras, retomando sua fala quase a ponto de interrompê-lo em suas dúvidas.

— Ao mesmo tempo em que são um perigo mortal para você, podem servir como trunfo, se souber como usá-las a seu favor — o canto esquerdo dos lábios de Syrena se curvou outra vez em um pequeno sorriso enquanto sua mão direita se dirigiu até uma das gavetas acopladas à mesa, tirando dali um colar de pérolas negras. — Sereias, muito além de sua beleza, têm poderes incríveis. Pode imaginar como isso atrai as mais variadas pessoas, principalmente aqueles… ratos do mar. Esse colar pertenceu a uma delas. Ela foi capturada por piratas, e meus homens entraram em um embate com os mesmos para soltá-la e devolvê-la ao mar. Infelizmente, a criatura não sobreviveu, mas em retribuição e agradecimento, nos seus últimos minutos, nos deixou isso.

Finalizando a história, a rainha entregou a jóia para , que segurou-a e analisou cada uma das pérolas ali presentes. Por mais que fosse uma narrativa fascinante, a resposta para a pergunta anterior da mulher era "sim"; ele era cético. Criaturas marinhas místicas estavam muito além do que um dia ele ousou acreditar, uma vez que, tendo velejado algumas vezes, nenhuma delas cruzou seu caminho.

No entanto, não iria recusar algo que talvez, apenas talvez... pudesse ajudá-lo em sua viagem.

— O nome dela era Ella. Lembre-se disso. Use isso — era nítido que a conversa agora já se encaminhava para o final. — Quero que parta amanhã cedo, portanto tem o resto do dia de hoje para se preparar. Reuni uma tripulação altamente treinada e preparada para lhe acompanhar nessa missão, porém não tenho como disponibilizar a quantidade necessária de homens para compor o todo. Irei deixar que complete as lacunas com pessoas que sejam de sua confiança, então escolha sabiamente. Está dispensado.

Ainda sem acreditar em tudo que havia ouvido nos breves instantes de conversa com Syrena, com uma reverência em respeito e agradecimento, o homem deixou os aposentos.

O fato de ter liberdade para escolher algumas pessoas de fora para compor sua tripulação, não se limitando apenas aos soldados da corte, – o que o homem sabia ser nada além do que um teste de sua capacidade de liderança e lealdade à coroa – deu a alguns trunfos. Ele tinha muitos contatos em vários lugares e sabia de pessoas que adorariam a oportunidade de sair para uma boa caça aos piratas.

Entre eles, um alguém em particular, muito peculiar, que lhe devia um favor. Mas este seria o último a ser chamado. Primeiro, ele começaria por um amigo de anos, o qual sabia que bastaria pronunciar a palavra chave para fazê-lo topar a aventura.

Filho de falecidos marinheiros, – estes, assim como seu irmão, assassinados por piratas – Frank, de certo, conhecia muitas histórias de pescador. Por esse motivo, não duvidava que ele acreditasse em sereias e demais criaturas, o que ajudaria na possível parte da missão em que, eventualmente, cruzariam com elas. Além do mais, o homem poderia facilmente ser definido como um "pau para toda obra", já que também tinha habilidades em luta corporal e perícia em algumas armas.

Seria bom, de várias formas, tê-lo ao seu lado nessa tarefa.

E com o tempo correndo, foi pensando nisso que seus passos o levaram para fora do grande palácio. Sabia exatamente onde procurá-lo e, enquanto o fazia, caminhando pelas ruas calmas de Willhye, o soldado deixou seus pensamentos vagarem até aquele dia em que sua vida havia mudado drasticamente.

Willian sempre havia sido, para , um exemplo a ser seguido. O mais velho parecia invencível aos seus olhos; voltava vitorioso de todas as missões que recebia e cumpria seus deveres com excelência. Tinha também a total confiança da rainha, e isso, de fato, era o mais notável, uma vez que o mérito era quase impossível de ser alcançado. Ele havia construído sua imagem e feito com que o nome de sua família fosse conhecido e respeitado por todos no reino, se tornando, assim, alguém quase intocável.

Um soldado perfeito.

Talvez, por isso, ninguém imaginasse que sua vida seria tirada tão facilmente e de forma tão abrupta, em praça pública e em plena luz do dia. havia visto acontecer. E ele se lembrava de cada detalhe.

Da vívida imagem da espada afiada atravessando seu peito enquanto o mais velho caía de joelhos numa poça de seu próprio sangue, a vida se esvaindo dos olhos arregalados em surpresa;

De como a assassina se vangloriou do ato e riu em cima do corpo, dizendo algumas palavras sobre a rainha que não fez questão de prestar atenção, estando mais preocupado em gravar seu nome, seu rosto e correr em sua direção junto aos soldados que a cercavam;

Da tristeza e do ódio que sentiu, entre gritos desesperados e um choro incessante, implorando para que seu irmão continuasse vivo, para que voltasse para ele;

Sobretudo, do jeito que a mulher desapareceu como se nunca, de fato, tivesse estado por ali. Ela era como um fantasma, um anjo da morte, que tão logo quanto veio e cumpriu seu objetivo, se foi sem deixar rastros.

— Você tá um caco — a voz tão bem conhecida fez tudo aquilo desaparecer, trazendo o homem antes perdido em pensamentos de volta ao mundo real. — Perdeu o rumo de casa? Acho que nunca te vi tão avoado.

— Frank — franziu o cenho, olhando rapidamente ao redor e se dando conta de que já há um tempo havia deixado as ruas nobres para trás, estando agora na parte mais esquecida e pouco frequentada da cidade. — Ah, eu estava procurando por você.

— Por mim? A que devo a honra desse nobre soldado visitar a ralé? — A ironia em sua voz era carregada, bem como o sorriso que apareceu, indicando a brincadeira. — Pensei que havia se esquecido daqueles menos afortunados.

— Isso tudo é saudade? — O soldado devolveu, balançando a cabeça. — Andou se metendo em confusão de novo, hm? — O motivo da alfinetada era claro, visto que haviam alguns hematomas aqui e ali no rosto do amigo, bem como vários rasgos em suas roupas simples, as quais fez questão de apontar, olhando-o de cima a baixo.

A diferença entre eles se dava apenas nesses quesitos, porém. Os dois tinham a mesma estatura, Frank perdendo apenas por alguns centímetros. O porte físico também não ficava muito atrás, visto que da mesma forma que treinava como soldado, nas estalagens do reino, seu amigo o fazia por conta própria, em brigas de rua e coisas do tipo.

— Como se esse não fosse meu jeito de ganhar a vida, meu amigo. Sabe, nem todos têm privilégios de ser da alta classe, andar por aí com roupas de luxo e encher o bucho num palácio como você — a expressão forçada de tristeza que Frank colocou em seu rosto fez rir.

— Ah, para com isso, você não tem essa vida porque não quer. Já lhe foi oferecido um cargo na corte como soldado. Você recusou — com essas palavras, Frank acabou dando de ombros e rindo também.

— Claro, imagina só ser um engomadinho como você. Tô fora — o desdém fez revirar os olhos e começar a andar, indicando ao outro para que lhe acompanhasse. — Por que veio aqui? — Vou te explicar. Tem alguma taverna por aqui para bebermos enquanto isso? O assunto é longo.

Com um aceno breve de cabeça, Frank começou a guiar o caminho, cumprimentando algumas pessoas pelas ruas em que passavam. , por sua vez, não deixou de notar que aquela região era realmente diferente dos arredores do palácio com os quais estava acostumado; enquanto por lá passavam mulheres bonitas, bem vestidas e educadas, acompanhadas por homens nobres e quase sempre algumas crianças, ali, a grande maioria se resumia a miseráveis e causadores de confusão puxando uma briga a cada esquina.

— Ah, não pareça tão surpreso. Faz muito tempo que você não vem pra esses lados, mas as coisas continuam como da última vez. Chegamos — a voz de Frank se fez presente para tirar de seus devaneios outra vez. Agora, os dois estavam em frente a uma pequena taverna, onde não hesitaram em entrar e buscar uma mesa mais afastada. — Então? Qual é o assunto tão importante? — Eu vim te recrutar para uma missão — a expressão curiosa do homem se transformou em desconfiança ao ouvir aquelas palavras, mas o soldado continuou antes de poder ser interrompido: — A rainha Syrena encontrou o paradeiro da assassina de Willian e me deu a incumbência de ir até ela.

Frank ficou alguns instantes em silêncio até conseguir processar a informação e recuperar a fala. Ele conhecia a história, assim como todos no reino. Havia cartazes de procurado com o rosto da mulher por todo o canto e o mistério de seu sumiço era comentado até os dias atuais, quase sendo uma lenda passada de pai para filho.

— Estou ouvindo — com um gesto para que ele prosseguisse, o homem se pôs atento a cada palavra.

O fato de a taverna estar cheia de pessoas cantando, brigando e rindo alto facilitou a conversa dos dois a passar despercebida. A última coisa de que precisavam era mais atenção atraída para eles, não fossem as roupas da corte que usava mais do que suficientes para isto. O soldado então contou todos os detalhes da missão e explicou o porquê de querer Frank nela, não deixando de notar a animação surgir nos olhos dele em partes específicas da narrativa.

Quando finalmente terminou, esperou por uma resposta.
A mesma veio quase que de imediato, sem hesitações:

— Piratas e sereias. Que tipo de homem eu seria se recusasse uma aventura dessas? Você sabe que eu topo — os dois sorriram ao mesmo tempo com isso. — Você disse que a rainha te deixou escolher sua própria tripulação, por isso veio até mim. Sou exclusivo ou tem mais alguém em mente? — Além de você, vou chamar Blanche, a caçadora de recompensas, e um... amigo, digamos assim. Por que? — achou sua resposta antes que ela fosse pronunciada, acompanhando o olhar de Frank até uma das serventes da taverna.

— Bom, se estiver disposto a aceitar sugestões... aquela é a Mia. Ela e sua irmã, Amália, costumam ganhar todas as brigas em que entram. Além disso, enquanto uma é especialista em explosivos e boa navegadora, a outra é uma arqueira incrível. Ambas têm suas desavenças com piratas. Talvez sejam de grande ajuda.

— Interessante. Faça a oferta e veja o que elas têm a dizer. Meu tempo está acabando e eu preciso falar com os outros. Estejam no porto ao amanhecer — o soldado finalizou, se levantando e deixando alguns trocados em cima da mesa pelo que havia consumido.

Sem esperar alguma resposta de Frank, com um aceno, ele saiu do local às pressas e recomeçou a caminhar pelas ruas, agora mais escuras com a chegada do crepúsculo.

sabia que seria uma tarefa um pouco mais difícil chegar até Blanche, então, tomou seu caminho até uma pequena casa, ainda mais afastada e esquecida aos olhos do reino, onde sabia que encontraria aquele que pretendia chamar desde o começo.

Com três batidas, ele esperou até que a porta se abrisse, e quando ela o fez, o soldado sorriu para o homem que ali apareceu.

— Veio cobrar seu favor, imagino — a voz soou sem muita emoção, mas era possível distinguir uma pontinha de curiosidade em meio ao desinteresse.

— Você pode recusar se quiser, mas imagino que não irá, uma vez que ouvir a proposta — diferente de Pogue, homem o qual analisava cada expressão do soldado que bateu à sua porta, demonstrava sua animação nas palavras.

— Não preciso, as notícias correm rápido por aqui. Eu sei do que se trata. E sei que a rainha não ficará feliz se souber que me chamou — o homem não evitou uma risada amarga. — Então, estarei no navio antes do amanhecer para lhe evitar problemas. Espero que esteja certo de que é isto que quer em retribuição ao que fez por mim.

Deixando de lado a surpresa com o fato de não precisar pronunciar uma sequer palavra para que o feiticeiro à sua frente soubesse do que o assunto se tratava, o soldado balançou a cabeça em afirmativo.

— Estou certo — respondeu firme enquanto o encarava. Não havia sequer uma ponta de dúvida ou hesitação em sua voz.

— Que assim seja, então — a porta estava para se fechar outra vez, mas Pogue pronunciou uma última frase antes disso: — Imagino que tenha muito o que fazer, então não perca seu tempo em uma busca pela caçadora de recompensas. Ela estará lá também. Vou me encarregar disso.

Com a porta se fechando em sua frente, , com o cenho franzido em algumas questões não pronunciadas, assentiu em agradecimento e deu as costas, começando a caminhar de volta ao palácio. As horas restantes até o nascer do sol seriam de grande ansiedade para o início da missão mais importante de sua vida.



Capítulo 3 - Guerra Declarada

Sentir a areia macia e a espuma das águas geladas do mar tocando seus pés descalços sempre havia sido algo relaxante para a , mas naquele momento, nem mesmo a melhor das sensações conseguiria calar os pensamentos que insistiam em rondar sua mente ou acalmar seu coração, que batia no mesmo ritmo das ondas que quebravam firmes nos rochedos.

Desde que havia sido acordada no meio da noite anterior para receber o aviso de Gemma, o sono e o cansaço deram lugar à inquietação e êxtase, e por esse motivo, assim que atracaram, a mulher deixou ordens para uma revista completa na ilha – mesmo sabendo que sua tripulação nada encontraria –, e rumou ainda na madrugada para se sentar na orla da praia, observando o horizonte escuro enquanto processava as informações repentinas. A chuva fina que caía não a incomodava; estava imersa demais em seu próprio mundo para notar qualquer coisa além de suas lembranças.

Se anteriormente havia qualquer dúvida sobre retornar ao início, agora não mais.

A menção de Gemma à rainha, da qual há muito não ouviam falar, fez tudo voltar à tona: tudo o que perdeu, tudo o que havia passado. Todas as memórias de sua infância roubada e arruinada pela soberana; sua casa, sua felicidade, sua família.

não havia se esquecido de sua promessa, ela não poderia.

Havia jurado para si mesma desde os treze anos de idade que faria aquela mulher cair, que faria com que ela pagasse por tudo. Havia baseado sua vida nisso, lutando e se fortalecendo dia após dia para cumprir com sua palavra. Todas as coisas que tinha aprendido sozinha em seu longo e difícil caminho serviram de motivação e agora seriam postas à prova. Ela estava prestes a entrar em uma batalha para defender sua ilha, sua tripulação, e sua vida.

Mas era exatamente esse o motivo do sorriso que estampava seus lábios naquele momento.

Não planejava que as coisas acontecessem dessa maneira, mas um presente a estava sendo entregue de bandeja: tropas reais estavam indo à seu encontro. Ela não precisaria voltar ao palácio para poder dar continuidade ao que havia começado seis anos atrás. Pelo menos, não por agora. Aquele seria seu segundo aviso à Syrena, e sabia que a mulher o receberia e entenderia: se a quisesse morta, teria que pegá-la pessoalmente, e não mandar encarregados fazerem o seu trabalho sujo.

Essa guerra estava declarada há muito tempo, e a pirata estava um passo à frente.

Sempre esteve.

Ela devia isso ao seu pai. E cumpriria com sua palavra, independente de qual fosse o custo.

Com uma chama de determinação surgindo – mesmo que ainda imersa nessa maré de memórias –, só se deu conta de que o sol já se fazia presente quando os olhos de esmeralda puderam vasculhar claramente cada canto do horizonte, em busca de um navio ao qual sabia precisamente quanto tempo demoraria a chegar. Se chegasse. Tinham tempo suficiente para se preparar. E o canto dos pássaros da ilha dando lugar ao som do tilintar de espadas se cruzando foi sua deixa para se levantar, tirar a areia das roupas, calçar suas botas e caminhar de volta ao navio para reunir sua tripulação. Tinha um aviso a dar e nenhum segundo a perder.

— Capitã, agora que já passamos uma noite inteira sem sinal de problemas por aqui e seu bom humor voltou, a julgar pelo sorriso no rosto, devo presumir que podemos traçar o curso para La Maldita Isla Sangrienta, certo? Obviamente, devo também presumir que poderei acompanhá-la, já que, mesmo eu tendo perdido aquela luta, você é uma capitã extremamente benevolente, não é? — A voz sugestiva de Benny se fez presente tão logo a mulher se juntou ao local onde seus marujos lutavam.

— Muito pelo contrário — o homem quase engasgou ao ouvir essas palavras, mas antes que pudesse protestar, continuou: — Meu bom humor se dá pelo fato de que a rainha Syrena pretende invadir nossa ilha.

E a pirata teve que se segurar para não rir dos olhares confusos direcionados à ela depois daquela afirmação. Todos a encaravam sem entender o significado de suas palavras, uma vez que a mulher tinha dito aquilo com a tranquilidade de alguém que comentava sobre o clima.

— Ela ficou louca? — A pergunta veio de Celeste, que treinava com Nasher num pequeno confronto de espadas. O mesmo deu de ombros, mas o cenho franzido indicava uma resposta positiva.

— Talvez eu tenha bebido demais noite passada e acabei ouvindo errado. Ou não devo ter acordado direito ainda — Connor levou sua mão direita até a altura da cabeça, usando o dedo indicador para cutucar o ouvido.

— É uma ótima brincadeira, capitã. Sério, eu estaria rindo se você também estivesse, mas agora estou começando a me preocupar com a sua saúde — o feiticeiro voltou a falar em tom divertido, mas mudou sua expressão ao perceber que depois desses comentários, não mantinha mais a leveza em seu rosto.

— Agora escutem aqui todos vocês — a voz séria ecoou, fazendo os cochichos se calarem e toda a atenção se voltar para suas palavras: — Na madrugada de ontem, enquanto roncavam como porcos e curavam a ressaca com uma bela noite de sono, Gemma veio até mim e alertou que tropas reais estão sendo enviadas para cá. Eu não sei como aquela mulher descobriu nossa localização, mas de qualquer forma, temos seis dias até que os soldados cheguem. Essa é a distância de Willhye até aqui.

A informação foi como um balde de água fria.

O clima descontraído de segundos atrás havia mudado completamente ao perceberem que aquilo realmente não se tratava de uma brincadeira. E não demorou, também, para que os cochichos recomeçassem. Dessa vez, porém, a surpresa e preocupação eram explícitas nos mesmos.

Ignorando-os, retomou a fala e fez com que a tripulação se calasse outra vez:

— Eu não vou mentir, nós teremos uma batalha dura pela frente. Aquela mulher não brinca em serviço e também não poupa esforços para atingir seus objetivos. Estejam avisados que "piedade" e "misericórdia" são palavras que não existem em seu vocabulário — a postura firme da capitã fazia dela uma verdadeira líder. Ela mantinha o foco de visão se alternando entre cada um dos presentes enquanto falava: — Eu sou o alvo dela, não vocês. Mas de qualquer forma, eu não duvido que os soldados tenham ordens para abrir fogo contra qualquer um que entrar em seu caminho até conseguirem chegar a mim.

— Não espera que fiquemos fora de cena enquanto você luta sozinha, espera? Porque não vai acontecer — a forma que Celeste se impôs antes mesmo de terminar de ouvir suas ordens fez dar um meio sorriso.

— Não, nós vamos lutar como uma tripulação, como a família que somos. Eu sei que nada do que eu diga vai impedir vocês, e não era isso que eu pretendia, para começo de conversa — uma sobrancelha se ergueu ao encarar a menina, que acabou relaxando os ombros ao ouvir aquilo. — Mas não vou aceitar que contestem a ordem de que, se eu for abatida e capturada, não devem tentar me salvar. Devem abandonar a batalha e fugir, porque a vida de vocês vale mais do que a minha — fazendo uma pausa dramática, ela encarou os marujos. — Assim podem dar continuidade ao meu legado — completou de maneira convencida e com uma piscadinha, tentando amenizar o clima.

Mas é claro que não deu certo, já que uma série de protestos indignados se iniciou automaticamente, vindo de quase todos ali presentes. já esperava. Benny e Gemma, inclusive, eram os que mais gritavam; os dois se alteraram rapidamente ao ouvir aquela recomendação.

— Calem a boca! — O grito da capitã se sobrepôs à todas as vozes, fazendo-as silenciarem de imediato. — Eu disse que não aceitaria contestações. Essas são as suas ordens e quero que as cumpram, estejam satisfeitos ou não com elas. Uma vez que eu estiver fora de cena, presumo que eles não irão mais atrás de vocês, então não testem a sua sorte tentando bancar os heróis e fujam — depois de passear seus olhos sobre todas as caretas ali exibidas, ela prosseguiu: — Eu não pretendo me render e muito menos ser abatida facilmente. Pelo contrário, tenho certeza que podemos ganhar essa batalha, porque nós temos a vantagem. Eles estarão em território desconhecido, mas nós conhecemos essa ilha como a palma de nossas mãos, o que faz com que nossa posição e plano de ataque sejam extremamente superiores. Temos também o elemento surpresa, afinal, eles não sabem que nós sabemos de sua vinda.

A expressão fechada que detinha em seu rosto foi se abrindo em um novo sorriso à medida em que ela viu seus marujos, mesmo contrariados, aceitarem suas recomendações sem mais protestos. Com isso, a mulher começou a caminhar e diminuir a distância entre ela e sua tripulação.

Estando cara a cara com o feiticeiro, – que ainda mantinha em seus traços bonitos uma feição emburrada –, ela recomeçou a falar:

— Além disso, a magia está do nosso lado — Benny acabou por retribuir o sorriso de sua superior ao ouvir isso, fazendo uma pequena reverência. — Cada um de vocês é especialista em alguma coisa, e eu digo isso com propriedade, porque em nossos treinos, vencer não foi tarefa fácil. Gemma, assim como suas previsões, eu nunca vi você errar um alvo com suas flechas — a pirata abaixou a cabeça, um pouco envergonhada com o elogio. — Celeste, posso dizer de maneira agradecida que aprimorei meu combate corpo a corpo graças a você. Connor, você... bom, você consegue fazer muitas coisas explodirem. E também é ótimo com armadilhas — o clima começou a se amenizar entre a tripulação, que agora ria e se encorajava com os comentários de . — Nash, você luta muito bem com espadas, mas sua especialidade em ervas e pomadas para curar ferimentos é incrível. Isso vai ajudar a todos. Você é uma parte importantíssima nessa batalha, todos vocês são. Tenham isso em mente — um a um, todos foram sendo citados, e isso fez com que a determinação estampasse seus rostos. — Nós vamos ganhar. Agora, seus inúteis, parem de perder tempo e comecem a se preparar! Não estou vendo seus corpos suados de esforço e muito menos sentindo o cheiro desagradável que isso traz. Ao trabalho!

Uma vez que os marujos – agora animados e ansiosos pelo confronto –, se dispersaram entre treinamentos e preparativos, a capitã deu as costas e adentrou à cabine de seu navio, caminhando até um dos cantos e sentando-se no chão de madeira. Sozinha, ela desembainhou sua espada e a apoiou em seu colo, correndo rapidamente o olhar por toda a extensão da lâmina de aço até por fim se demorar no cabo. Ali, incrustradas na madeira, se encontravam três pérolas; duas delas da cor natural – as quais o poder já havia sido utilizado anteriormente –, e uma completamente negra e brilhante, símbolo da magia que ainda continha. Era engraçado como, os olhos de qualquer um, elas pareciam apenas uma decoração desnecessária para uma arma. Para , porém, o significado ia muito além.

Com um sorriso melancólico, a mulher deixou seus pensamentos à levarem para anos atrás, quando ainda era uma garotinha. Mesmo crescendo na corte, ser uma das nobres donzelas que exibiam seus vestidos bem feitos e bons modos pelos corredores do palácio em busca de cortejos dos soldados nunca foi seu forte: ela sempre se interessou muito mais por armas e batalhas do que pelos bailes e banquetes que Syrena promovia, motivo pelo qual insistia todos os dias para seu pai ensiná-la a lutar.

E era difícil para ele resistir ao sorriso pidão e divertido da pequena, motivo pelo qual ela ganhou sua primeira espada. Os dois trabalharam juntos na mesma, pois, além de um grande soldado, Rogers era um excelente ferreiro.

"Você não vai conseguir levantar essa espada tão cedo, . Já olhou para o tamanho dos seus bracinhos? Vai precisar treinar muito duro se quiser fazer isso." As palavras tão distantes pareciam ter sido ditas ontem.

quase podia escutar as batidas do martelo em cima do aço quente da lâmina enquanto se lembrava dessa conversa.

"Por favor, papai, me ensina! Você vai ver, um dia eu ainda vou conseguir te derrotar!" Era motivo de felicidade, para o homem, notar a determinação que transbordava dos olhos verdes de sua filha.

"Por que você quer tanto aprender a usar uma espada? Brincar com as crianças da sua idade não é mais divertido?" Rogers perguntava levando uma mão ao ombro de , mesmo já sabendo a resposta.

"Claro que não, eu quero ser como você, papai. Eu quero ser poderosa e fazer você se orgulhar."

"Você já é o meu orgulho."

Soltando um suspiro enquanto encarava o vazio, a capitã sentiu uma lágrima quente escorrer pela sua bochecha.

— Ah, pai, se pudesse me ver agora — a mão direita subiu ao rosto para secá-lo. — O que será que pensaria?

Foram os passos que soaram pela escada de madeira, se aproximando cada vez mais da cabine, que fizeram a mulher se recompor e levantar rapidamente, guardando a arma na bainha presa à cintura outra vez.

— Atrapalho? — A pergunta suave veio de Gemma, que detinha uma expressão tão leve quanto sua voz.

— Não. Eu só estava pensando em algumas coisas — respondeu se aproximando. — Algum problema?

— Nenhum. Tem um minuto para conversarmos? — Com o aceno positivo da capitã, a menina sorriu e indicou a saída do navio. — Quero te mostrar uma coisa.

As duas então começaram a caminhar pela ilha. O tempo já havia melhorado; a chuva rala que antes caía deu lugar ao sol, que agora se fazia presente em todo seu brilho e calor.

— Então? O que quer conversar? E o que quer que eu veja? — perguntou depois de uns instantes em silêncio, olhando de relance para a pirata ao seu lado.

— Você está nervosa com a batalha? — Sem parar de andar para encarar sua superior, Gemma iniciou o assunto. — Sabe que não precisa, e nem consegue, mentir pra mim.

— Nervosa não é a palavra — a resposta veio rápida, sem precisar ser elaborada. — Eu estou ansiosa. Mas de qualquer forma, não é Syrena que vem para lutar comigo, são seus soldadinhos. Isso estraga um pouco a expectativa — as duas riram juntas com o comentário.

— Não importa, quando nenhum deles retornar, ela vai entender o recado. E então, quem sabe, ela não resolva vir pessoalmente — Gemma sorriu, agora encarando diretamente a mais velha. A paisagem à frente das duas começou a se fechar entre árvores e arbustos mais robustos, o que fez a capitã franzir um pouco o cenho. — Você disse que conhecíamos a ilha como as palmas de nossas mãos, sim? Descobri esse lugar recentemente. E, bom, aqui há um pequeno truque que podemos usar a nosso favor.

Se embrenhando no meio de toda aquela vegetação, elas acabaram, depois de uma certa dificuldade, chegando até um pequeno lago bem escondido. Não havia muita iluminação ali, afinal, as copas das árvores eram grandes a ponto de não deixar os raios de sol penetrarem no lugar. A capitã nunca havia estado ali antes e tampouco entendia a razão de estar agora, o que resultou em um olhar confuso lançado para a mais nova. Isso fez com que ela soltasse uma risada e tirasse de um dos bolsos um par de luvas de couro, as quais vestiu logo em seguida.

— Quer me explicar o que está fazendo? — perguntou impaciente ao ver Gemma pegar uma das várias flechas guardadas na aljava que sempre carregava nas costas. Sem responder, a garota caminhou até a beira do lago e tirou de lá um sapo, deslizando a ponta e todo o resto da extensão de madeira da flecha pelas costas do anfíbio.

— Eu descobri esse lugar com o Nash — as bochechas ficaram rosadas por uns segundos. — E, bom, acontece que ele não entende só de plantas. Esses sapos têm um veneno paralisante. Ele não mata, mas a pessoa atingida não consegue se mover por uns bons minutos, talvez até mesmo por uma hora completa — percebendo que a capitã não havia falado nada depois da explicação, a menina se virou e deu de cara com uma expressão surpresa, e talvez até mesmo orgulhosa, de sua superior. — O que foi?

— É difícil de acreditar que aquela garotinha que veio me pedir abrigo quando nem eu mesma tinha para onde ir cresceu tanto assim — o comentário veio com uma risada.

— Ah, corta essa, . Eu cresci graças à você, que mesmo “não tendo para onde ir", me levou junto — era possível sentir a sinceridade nas palavras de Gemma, mesmo a garota estando envergonhada quanto ao comentário.

— Não poderia deixar você passar pelas mesmas coisas que eu passei — deu de ombros. — Sabe, viver como pirata, roubar e fugir de homens e inimigos é.. bem melhor do que servir e vender seu corpo para eles em troca de umas moedas para conseguir sobreviver.

— Você é uma sobrevivente, . Uma guerreira. Além do mais, é a mulher mais incrível que eu já conheci — Gemma voltou a se aproximar da mais velha depois de guardar as flechas embebidas em veneno novamente em sua aljava. — Mesmo chegando depois de muita coisa, eu trilhei boa parte do seu caminho junto com você, então posso dizer isso com propriedade. Não foi à toa que depois de treinar completamente sozinha e se destacar em vários navios você conquistou o seu próprio, bem como sua tripulação e seu título de capitã. Todos que te seguem fazem isso porque gostam de você, porque são leais a você. Não porque tem uma dívida ou foram obrigados, com suas cabeças ameaçadas, caso não o fizessem.

— Ah, cala a boca — apesar da repreensão, um sorriso se abriu no rosto de . — Estamos prestes a entrar em uma batalha épica e você me vem com sentimentalismo? Preciso de uma garrafa de rum — as duas então começaram a trilhar o caminho de volta para o navio, rindo do comentário. — Gemma... você se lembra da história das pérolas? — a mais velha voltou a perguntar depois de uns instantes em silêncio.

— Claro que sim. O que tem? — o olhar curioso encarava a expressão pensativa que estampava o semblante de .

— Acha que conseguiríamos o apoio das sereias? Sabe, elas podem ser de grande ajuda nessa batalha — a capitã parou de andar, encarando-a em expectativa.

Gemma demorou uns instantes para considerar a pergunta, como se estivesse analisando a situação como um todo antes de respondê-la.

— É algo difícil de responder. São criaturas muito complexas e ao meu ver, não há motivos para entrarem em uma batalha para nos ajudar. Não sabemos quantas delas existem, se há algum lugar específico do oceano em que se concentram e muito menos se existe uma hierarquia, um reino, ou algo assim entre elas. Mas... se tiver a sorte de achar uma, o que por si só já é uma tarefa muito difícil, e conseguir contar a sua história, fazendo com que ela acredite em você, talvez haja uma possibilidade de ficarem do nosso lado. Afinal, é uma escolha óbvia — a garota olhou para a espada da mulher. — Você tem algo para provar que o que diz é verdade.

assentiu em um gesto simples e então voltou a focar seu olhar na trilha à frente, movendo seus pés outra vez. O resto do caminho foi silencioso; as duas estavam muito absortas em suas próprias questões para conversarem entre si. E não muito tempo depois, já de volta à frente do navio, Gemma acenou em despedida e partiu para o meio da ilha, visando os próximos preparativos para a batalha. , por sua vez, ao ver todo o resto da tripulação concentrada em seus próprios afazeres, se afastou, dirigindo-se até a orla da praia – onde esteve mais cedo – e escalou uma das grandes pedras que cercavam a extensão do lugar. Por sua localização precisa e alta, de cima da mesma, a mulher tinha um grande campo de visão do vasto oceano à frente.

— Ótimo. Agora, como é que eu vou contatar uma sereia?! — A pergunta baixa para si mesma foi acompanhada de um suspiro; não havia uma resposta para aquela dúvida, então, sua única opção foi sentar e esperar.

nunca havia tido contato direto com uma das criaturas, o que dificultava ainda mais o seu plano que, àquela altura, já começava a parecer impossível, para além de maluco. A única coisa que a capitã sabia sobre elas é que eram donas de grande beleza e de grande poder. Seu pouco conhecimento vinha das histórias de seu pai. E ele sempre as contava com entusiasmo, afinal, não era só pelo mar que tinha um grande fascínio, era também por todos os seres que nele viviam, principalmente os mágicos.

Saber que sua maior paixão tinha sido o motivo de sua ruína fazia o sangue da mulher ferver.

Soltando mais um suspiro, não pôde evitar de deixar os pensamentos vagarem, outra vez naquele dia, para sua infância. Gemma tinha razão, ela tinha algo para provar que sua história era verdadeira.

"Eu tenho uma surpresa para você" A menina, um tanto mais velha, parou de treinar com sua espada e correu para os braços de seu pai com um grande sorriso.

O homem, porém, apesar de feliz por ver a filha depois de quatro dias fora em uma missão real, mantinha uma expressão um tanto avoada no rosto.

"Papai, que bom que você voltou! Um presente? O que é?" tentou pular para alcançar a mão fechada que pairava bem acima de sua cabeça, cruzando os braços com uma careta emburrada ao não conseguir.

"É algo muito especial" O canto dos lábios de Rogers se curvou em um sorriso um tanto triste. "E importante".

Os joelhos do pai então foram ao chão, onde ele se sentou logo em seguida, de pernas cruzadas, esperando que fizesse o mesmo. Quando ela o fez, a mão antes fechada em punho se abriu em sua frente, revelando ali três pérolas completamente negras e brilhantes.

"Pérolas?! São bonitas... diferentes. Onde conseguiu?" O dedo indicador da garota rolou-as na palma do homem, os olhos de esmeralda analisando-as em curiosidade.

"Foi um presente de uma sereia. Elas são mágicas." A curiosidade então se transformou em surpresa e entusiasmo. "Escute, , as coisas na missão não correram muito bem, e por isso eu quero que fique com essas pérolas. Estamos correndo perigo agora, e estou certo de que elas vão te proteger quando chegar o momento."

O tom empregado nessas palavras fez outra careta aparecer no rosto da garota. Essa, porém, demonstrava sua preocupação no cenho franzido e olhos semicerrados.

"O que aconteceu, papai? Por que estamos em perigo?"

"A rainha Syrena não aceita falhas, , você sabe. E eu... acabei falhando de propósito nessa missão. Não poderia cumprir uma ordem que fosse contra meus propósitos. Mas isso vai trazer consequências, é uma questão de tempo até que..."

— Atrapalho? — A pergunta, dessa vez vinda de Benny, fez os devaneios sumirem, trazendo a mulher de volta à realidade em um sobressalto. — Oh, eu não queria te assustar. Está tudo bem?

— Não — a resposta simples veio acompanhada de um pigarreio. — Quer dizer, não, não atrapalha e sim, está tudo bem.

— Não estava planejando se jogar, espero. Eu já estava achando que você não estava em plena consciência ao estar feliz pela invasão na ilha... o olhar de peixe morto em cima de um penhasco, agora, me preocupa ainda mais — o tom descontraído fez a capitã rir de leve e negar com a cabeça.

— E eu estava reconsiderando te levar para La Maldita Isla Sangrienta quando tudo isso acabasse, mas vejo que vou ter mesmo que te deixar por aqui — uma sobrancelha foi ao alto com a provocação. Então se levantou, tirando a areia das vestes e encarando o feiticeiro. — A não ser... não saberia, por acaso, como chamar uma sereia, não é?

— Por acaso, eu saberia sim — o tom de desdém ao encarar a superior com um sorriso malandro se fez presente na frase. — Há pouquíssimas coisas que um feiticeiro de quase duzentos anos não saiba fazer.

— Então eu ficarei honrada de ter sua ilustre companhia em nossa próxima aventura — a capitã lançou uma piscadinha para o homem à sua frente, seguida de uma reverência e uma risada. — Certo, então, como eu faço isso?

— Ah, você não faz — o sorriso da mulher se transformou em uma careta, mas Benny logo tratou de continuar a frase: — Só há duas maneiras de chamar uma criatura dessas, e as duas envolvem magia. Uma delas é por meio de uma canção, que deve ser entoada por uma bruxa. A outra é por meio do sangue de outro ser mágico, que, para sua sorte, está bem aqui em sua frente.

E com toda pose e alguns passos para ficar à beira da grande pedra, o feiticeiro tirou de sua bota uma adaga, fazendo um corte na palma da mão e deixando que as gotas de sangue escorressem e pingassem abaixo, se misturando às águas escuras e agitadas que se chocavam contra os rochedos.

— Só isso? Não precisa dizer nada do tipo "Ó, ilustres e lindas criaturas, eu as invoco com esse sacrifício de sangue"? — O olhar que Benny lançou para a fez rir outra vez, dessa, com mais vontade. — Poxa, estou decepcionada, achei que teria todo um ritual...

— Vou deixar você sozinha, capitã "rituais de invocação". Elas logo vão aparecer. Boa sorte — o sorriso ladino que apareceu uma última vez no rosto do homem foi retribuído por sua superior, que se adiantou até o extremo da pedra, ansiosa para o que veria em seguida.

E, assim como o feiticeiro havia dito, não muito tempo depois do chamado um brilho prateado ladeou as ondas, uma, duas, três vezes, até sumir. Por uns instantes, as águas ficaram calmas, como se aquilo não tivesse passado de um reflexo da lua que agora estava alta no céu.

O que veio a seguir, porém, foi de surpreender: da superfície, algo começou a emergir.

Os cabelos pretos, cheios e volumosos, esculpiam e emolduravam o – agora totalmente visível em meio ao véu escuro das águas –, rosto de pele muito branca da criatura. Seus olhos, de um violeta nunca antes visto pela capitã, – e ela duvidava que por qualquer outra pessoa no mundo –, contrastavam com todo o resto, deixando óbvio e explícito o fato de que não pertenciam a alguém comum. não pôde ver muito mais do que isso, uma vez que o resto do seu corpo estava submerso no mar. Mas o reflexo prateado que aparecera anteriormente se dava pela majestosa cauda que balançava de um lado para o outro. Ela exibia um brilho ao qual era possível distinguir mesmo em meio à total escuridão.

Era, de fato, uma beleza surreal.

— Você é humana. Mortal. Como conseguiu me chamar? — A voz melodiosa da criatura soava como um cântico, que chamava, atraía. Era quase impossível de resistir à vontade de chegar mais perto. — O que quer comigo?

— Eu... — balançou a cabeça algumas vezes para voltar à realidade, focando sua atenção em seu propósito e ignorando as primeiras perguntas da sereia para ir direto ao ponto, respondendo apenas a última: — Quero conversar sobre uma sereia chamada Ella.



Capítulo 4 - Águas Rasas

Reunir a tripulação, juntar pertences necessários para a partida e finalizar os preparativos para a tarefa foi a parte fácil. Tudo havia saído como brevemente planejado, e agora, a única coisa que restava era a madrugada escura dar lugar aos primeiros raios de sol da manhã para que a missão mais importante de sua vida tivesse início.

Essa foi a parte difícil.

estava impaciente demais para conseguir dormir. Dados os recentes acontecimentos, a mente trabalhava com inquietação para repassar todos os detalhes e imaginar incontáveis cenários do que logo menos viria a acontecer, razão pela qual as horas pareciam se arrastar no relógio de parede enquanto o homem rolava de um lado para o outro na cama. Mais cedo, havia dito para a rainha Syrena, com convicção, que não falharia em cumprir suas ordens. Agora, porém, estando sozinho com seus pensamentos, ele não estava tão certo de que conseguiria manter a sua palavra.

Não seria fácil se controlar.

Uma vez estando em frente à mulher que havia tirado a vida de seu irmão, como poderia não deixar o ódio tomar conta e lhe cegar? Como poderia encará-la, sabendo o que ela o havia feito, estando ciente da dor e da ruína que tinha causado à toda sua família, e não lhe devolver na mesma moeda?

Como poderia não fazer justiça com suas próprias mãos?

Willian merecia ser vingado por alguém de seu próprio sangue. Era o certo a se fazer, pela sua memória e legado. Era o mínimo, afinal, a cena ainda se fazia vívida aos seus olhos, toda vez que os fechava. Mesmo tanto tempo depois.

A espada, o sangue, o choro.

Suas últimas palavras ecoando no vazio, perdidas, desperdiçadas. Ditas para aquela covarde que corria para longe e desaparecia depois do feito, deixando, sem arrependimentos, o corpo sem vida do mais velho e os sonhos e esperanças do mais novo para trás.

Oh, sim, sabia que o que queria fazer seria traição à sua Rainha.

A pergunta que restava e jazia sem resposta era se conseguiria lidar com as consequências que o ato traria, caso decidisse trilhar por esse caminho. E quanto mais pensava nisso, mais o dilema o consumia, guiando-o às mais sombrias possibilidades de sucesso e falha.

Foi em meio à exaustão de tanto remoer essas dúvidas, aliás, que o sono acabou vencendo e permitindo que cochilasse brevemente. Mas nessas poucas horas da madrugada restante, é claro que não teve paz. Como se o inconsciente decidisse lhe pregar uma peça, o soldado embarcou em um sonho turbulento, onde Syrena o alertava sobre a maldição que colocaria sobre ele e toda a tripulação caso sua missão não fosse bem-sucedida. E, não bastando essa hipótese ser ruim sozinha, foi conduzido à um cenário ainda pior, onde, além da punição pelas ordens mal cumpridas, seu destino foi se tornar um pirata.

O resto é história.

Acordando abruptamente com algumas gotas de suor escorrendo pela têmpora, o homem desistiu de fechar os olhos. Ao menor sinal do alvorecer – e agradecendo por esse fato –, se colocou de pé, não demorando a juntar as poucas coisas separadas anteriormente para embarcar e atentando-se em deixar sua aparência apresentável e respeitável, digna de um capitão. Esse era seu posto agora, afinal.

E ao se dar por satisfeito, os olhos se demoraram no espelho.

O reflexo que o encarava de volta, apesar de cansado pela noite quase completamente em claro, parecia orgulhoso nas vestes. O uniforme azul refletido não só representava um grande peso em sua carreira, mas também em seu coração. Antes, ele havia pertencido a Will. Para , era uma maneira de se lembrar que, onde quer que estivesse, seu irmão estaria consigo, acompanhando-o e o protegendo. Se se esforçasse, aliás, conseguiria ouvi-lo dizer essas palavras uma última vez, como tantas anteriormente. Foi por isso que, com um suspiro e um pequeno sorriso, o soldado começou a caminhar para fora de seus aposentos.

Não tinha mais tempo a perder. O sol já clareava completamente o céu e sua tripulação provavelmente o aguardava no porto.

No caminho até lá, entretanto, uma pausa rápida foi necessária. Por mais que já há alguns anos sua relação não estivesse boa, não poderia partir sem a bênção de seu pai. Thomas sempre fora um homem muito amoroso com sua família, cuidando de todos os cinco filhos junto à sua esposa, Margaret. Eles levavam uma vida simples; Thomas era pescador e tinha um comércio local. O trabalho mal sustentava a todos e exigia muito mais do que sua avançada idade permitia, inclusive. Mas independente disso, o patriarca da família nunca chegava em casa ao fim do dia sem um sorriso no rosto e muito amor no peito, agradecido por ter alguém para quem voltar, noite após noite. E apesar de ter muitas histórias para contar, nenhuma chegava aos pés daquela que foi o ponto alto de sua vida; quando o filho mais velho ingressou à guarda real. Seu coração se encheu de orgulho.

Não poderia ter ficado mais feliz pela conquista e por tudo que ela representou, não só para ele, mas para toda a linhagem. Puderam viver bem, depois disso.

Desde o acidente, porém, as coisas haviam mudado.

Thomas havia se fechado em sua própria dor e vazio, tornando-se apático, frio e distante. Era difícil chegar até ele, e esse talvez tenha sido um dos motivos de sua família ter se desmanchado; cada um seguindo seu próprio caminho sem a união e harmonia de muitos anos atrás. Ainda assim, nunca havia deixado de tentar reconquistar o que seu lar um dia fora. O soldado imaginava que se juntar à guarda real, assim como Willian antes dele, pudesse trazer um pouco de alegria para seu pai. O efeito, entretanto, não poderia ter sido mais contrário. Isso os havia afastado de vez.

Thomas não quis mais nenhum contato depois disso.

Reprimindo esses pensamentos, o soldado deu duas batidas na porta de sua antiga casa, esperando que o mais velho atendesse.
Nada. Mais duas. E então mais algumas.
Demorou um tempo, mas a porta se abriu, revelando a imagem de alguém no fundo do poço. As roupas estavam bem sujas; provavelmente não eram trocadas já há alguns dias, e o cheiro também denunciava isso. A barba grisalha por fazer cobria bastante de seu rosto, pôde observar, estendendo-se ao pescoço e até mesmo se emendando com os cabelos emaranhados acima. Seu físico – uma vez atlético por conta de exercícios diários e trabalho árduo – parecia anêmico. O homem estava fraco, os ossos bem aparentes por sob a pele.

Mas tudo isso não se comparava ao olhar quebrado que ele exibia. Era quase possível sentir fisicamente toda a sua dor, por meio daqueles olhos castanhos quase invisíveis no meio das grandes olheiras.

— Pai — a voz soou preocupada, seu coração se apertando ao vê-lo daquele jeito.
. Já faz um tempo — Thomas parecia responder apenas por obrigação, de forma mecânica, sem estar ali realmente presente.
O soldado ponderou as próximas palavras. Não sabia como o homem reagiria perante a notícia de sua partida; talvez se alegrasse ao saber que ele estava indo vingar seu filho mais velho, talvez se afundasse ainda mais em depressão ao relembrar-se de Willian.

— Recebi minha primeira missão oficial — os lábios se repuxaram em um sorriso triste. Ele havia decidido não mencionar nada que pudesse abrir uma ferida. — Vim pedir a sua benção. Não poderia partir sem ela.
— Minha benção não vai te proteger — as palavras eram secas, distantes, mas sabia que nelas, Thomas escondia preocupação. Medo. Talvez algo mais. — De que serve? É inútil.
— Não diga isso. Não é verdade — culpa. Era o que estava escondido ali também. O soldado negou a afirmação do mais velho, umedecendo os lábios e voltando atrás em sua decisão de não mencionar o irmão: — Estou indo vingá-lo, pai. Vou caçar sua assassina e puní-la. Vamos poder viver em paz depois disso.

Uma longa pausa foi feita após essas palavras. O silêncio se instalou ali, tornando o clima do ambiente ainda mais pesado do que no início da conversa. A tensão era quase palpável.

— Piratas. Essa é a sua missão? — Antes sem expressão nenhuma além de desinteresse, agora o homem demonstrava raiva. — Willian não conseguiu se livrar deles. Pelo contrário, morreu por um. Uma. O que te faz pensar que você conseguirá?

Aquilo doeu.

As palavras haviam atingido mais do que ele gostaria de admitir. Haviam pego num ponto sensível. Ele sabia que não chegava aos pés do soldado que um dia seu irmão fora. Não tinha a experiência necessária, e talvez realmente estivesse indo para uma missão suicida e fadada ao fracasso. Mas apesar disso, confiava em si mesmo quando se tratava da importância dessa tarefa, porque sabia que seu ódio lhe daria forças para cumprir seu objetivo, independente das possíveis consequências.

— Eu conseguirei — a resposta veio simples. — Preciso que acredite em mim, pai. Não vou falhar.

Mais uma grande pausa; o olhar vazio do pai esquadrinhando todo o rosto do filho enquanto sua respiração se tornava pesada. E foi num impulso, como se fosse a única coisa a qual poderia fazer, que o mais velho passou seus braços finos e fracos ao redor do corpo de , com lágrimas brotando de seus olhos.

— Não quero enterrar outro filho. Não consigo — era um pedido velado, e se fez ali por vários e vários minutos, até que a voz soasse novamente: — Sei que não posso te impedir, apesar de essa ser a minha vontade — Thomas se afastou de forma meio abrupta após isso, olhando o mais novo outra vez, como se fosse a última. — Você tem minha benção. Apenas... prometa que vai voltar vivo.
— Voltarei vivo — sabia que o pai não acreditaria nisso até que se concretizasse de fato, mas verbalizou, mesmo assim. — E farei a culpada pagar por toda a dor que nos causou. É uma promessa.

Sem dizer mais nada, o mais velho meneou a cabeça em aceitação e se encaminhou de volta para dentro de sua casa. Com isso, o soldado levou uns instantes para absorver o que tinha acontecido ali, mas logo se pôs a correr para o porto. Agora, definitivamente, estava bem atrasado. Não demorou mais que alguns minutos em uma rápida corrida, porém, para chegar ao lugar. E observando o seu redor, constatou que o dia estava bonito, o mar agitado, e quase não havia nuvens no céu por conta do vento consideravelmente forte.

Talvez chegassem à ilha antes mesmo do prazo estipulado.

Esse pensamento junto ao fato de Frank, Amália e Mia estarem aguardando-o no cais e vestindo os mesmos uniformes que o resto da guarda real – que completava a tripulação – usava, fez o humor de melhorar consideravelmente.

Os outros dois convocados não se faziam presentes ali, mas aquilo não preocupou o soldado; ele sabia que Pogue manteria sua palavra.

— Senhores — a voz chamou atenção para si, e todos prestaram continência ao olharem para o capitão. — Nossa missão começa agora. Ao navio! Não temos mais um segundo a perder.

Dadas as ordens, todos começaram a embarcar. O navio que Syrena havia recomendado para a tarefa não continha nenhuma bandeira, brasão do reino, ou elemento que pudesse chamar a atenção para o real intuito de toda a operação. Pelo contrário, era consideravelmente menor do que todos esperavam e se assemelhava a um navio comercial comum, exceto pelo enorme Siren’s Fury marcado em prateado na proa. Era uma boa estratégia; Roccia, sendo uma ilha mercante, deveria receber vários daqueles em diferentes períodos de tempo, o que faria com que eles passassem despercebidos pelos piratas, permitindo uma aproximação segura até terra firme.

Era um ótimo trunfo. Um elemento surpresa.

E uma vez estando reunidos no convés, – mesmo com a âncora ainda cravada no fundo do oceano, impedindo o início do trajeto, – se pôs a falar, se apresentando formalmente, explicando a todos o porquê de terem sido convocados, e o que fariam dali em diante.

— Meu nome é . Serei seu capitão e comandarei essa missão. Acredito que todos aqui estejam cientes de que, atualmente, a maior ameaça do reino são os piratas, um grupo deles em específico. Nossa tarefa é eliminá-los — o olhar focava em cada um dos que ali estavam enquanto as palavras eram pronunciadas. — Muitos de vocês já sofreram nas mãos desses malditos, então, considerem-se privilegiados por fazerem parte dessa tripulação, afinal, estando aqui, poderão se vingar — um sorriso discreto acompanhou o dito. — Não é necessário poupar esforços para acabar com cada um deles, seja como for. Então, minhas ordens são simples: usem a criatividade. Qualquer meio é permitido. Matem todos que entrarem em seu caminho — alguns burburinhos satisfeitos começaram, mas com um pigarrear, tomou a atenção para si novamente, calando-os. — A capitã da tripulação, por outro lado, é minha. Tenho ordens diretas da rainha para levá-la viva de volta ao palácio, o que a torna minha obrigação. Eu me encarregarei de sua captura — o soldado soltou uma risada amargurada. — Não quero que se aproximem dela, não quero que a prendam, não quero ajuda. Vocês terão muitos outros com quem se preocupar — o tom de voz deixou claro que quem não seguisse esses comandos estaria com problemas. — Estarei em minha cabine projetando estratégias de batalha. No mais tardar, os reunirei para novas ordens. Aos seus postos! Levantar âncora, içar velas, toda força à frente rumo à Ilha Roccia!

Ao dispensar a tripulação, que prontamente se colocou a trabalhar, adentrou à cabine, fechando a porta atrás de si. Pensando estar sozinho, acabou se assustando ao notar a presença silenciosa e discreta de Pogue e Blanche no local. Nenhum dos dois vestia o uniforme que os demais usavam, ele pôde reparar, e pareciam imersos demais em seus próprios pensamentos para terem ouvido qualquer coisa dita minutos atrás, no convés. A loira jazia jogada em cima de alguns barris, encarando com desinteresse uma faca a qual brincava, passando-a por entre os dedos, e o feiticeiro, por sua vez, se encontrava encostado em um dos cantos, com braços cruzados e um olhar perdido na paisagem mostrada pela pequena janela que ali havia.

— Então eu estava certo de não me preocupar ao não vê-los aguardando junto aos outros, no porto — a frase saiu quase como um suspiro aliviado, atraindo a atenção de ambos para si. — Suponho que não tenham ouvido as ordens dadas à tripulação?
— Eu disse que estaríamos no navio antes do nascer do sol — a voz calma e desprovida de qualquer emoção de Pogue soou ao mesmo tempo em que os olhos correram preguiçosos para o capitão.
— Quer me explicar o que eu estou fazendo aqui? — Num completo oposto do homem, o tom irritadiço de Blanche se fez, marcante e ameaçador. — Em um momento, eu estava ocupada demais negociando uma boa recompensa por um foragido, e no outro, eu simplesmente apareci nesse navio. O bonitinho aqui se limitou a me dizer "Creio que não preciso gastar meu tempo com explicações. Uma vez que embarcar, tenho certeza que ficará mais do que feliz em ditar as ordens." — deixando muito claro o fato de não estar contente com a situação ao fazer aspas com os dedos durante a imitação, ela se aproximou, guardando a faca no cano da bota.
— Eu quase me esqueci de seu temperamento — parecendo não ligar para o tom imperativo que a mulher usava, sorriu. — Imaginei que ir atrás dos piratas mais procurados de Willhye lhe interessaria mais do que buscar um foragido qualquer. Erro meu.

Uma sobrancelha loira se arqueou rapidamente em curiosidade.

e Blanche se conheciam já há bastante tempo. Os dois tiveram um caso de alguns meses no passado, mas acabaram se separando por conta de suas ambições e trabalhos distintos. Enquanto o homem treinava para se juntar à guarda real, a mulher dedicou seus talentos para trabalhar anonimamente e sem vínculo à rainha, caçando criminosos valiosos por conta própria.

Não se viam há anos desde então.

— Estou ouvindo — o desinteresse forçado em sua voz fez o capitão soltar uma risada antes de repetir o que havia dito aos demais tripulantes. Blanche esperou que terminasse, antes de completar: — Uma caça aos piratas. A tripulação de . Ela vale uma ótima recompensa — as palavras saíram quase cantadas ao verbalizar o pensamento.
— Infelizmente, uma que não está ao seu alcance — a expressão de se endureceu. — Como eu disse, as ordens são para levá-la de volta ao palácio, viva. E eu me encarregarei disso. Não quero que faça nada quanto a ela. Os outros, por outro lado, são todos seus. Pode tentar ganhar algumas moedas por suas cabeças ou colocá-las em sua estante de prêmios. Fica a seu critério.

Os olhos castanhos da caçadora de recompensas analisaram minuciosamente o rosto de , procurando uma brecha em suas ordens. Blanche agia sozinha e pelas suas próprias regras, e a pirata mais procurada do reino estava em questão. Ela não hesitaria em passar por cima de seu capitão para conseguir os montes de ouro que a mulher valia. Mas, de forma óbvia, essa não era uma coisa verbalizaria ou sequer deixaria que o homem soubesse.

— Como quiser — fazendo seu desapontamento soar claro na afirmação, a loira se afastou, dirigindo-se à porta de madeira que levava para a saída da cabine. — Se isso é tudo, espero ficar em paz o resto da viagem. Você me conhece o suficiente para saber que odeio contatos e diálogos desnecessários, então, se puder avisar ao resto de seus encarregados que não me incomodem, ficarei grata. A menos que suas cabeças possam estampar minha estante, também — com uma piscadinha, Blanche se foi.
— Irei me manter fora de vista também, . Trarei problemas a você se alguém da guarda real resolver contar para a rainha sobre minha participação na missão — Pogue se pronunciou depois de todo o tempo em silêncio. — Esse navio tem um porão. Não preciso me esconder porque consigo camuflar a minha presença, mas isso é um saco de manter por muito tempo. Então, se precisar de mim, sabe onde me encontrar.

Sem mais nada a dizer, o feiticeiro saiu da cabine, deixando a sós. A loira havia feito o mesmo há apenas alguns instantes, e assim, foi fácil para o homem alcançá-la e segurá-la pelo pulso, impedindo-a de continuar seu caminho. Somando isso ao fato de estarem há alguns passos de distância do convés principal e o resto da tripulação estar ocupada demais trabalhando em seus próprios postos, a presença e conversa dos dois passaria despercebida.

— Suponho que não seja surdo, então ouviu o que eu disse segundos antes. Quero. Ficar. Sozinha — as três palavras foram verbalizadas de forma pausada, como se as dissesse para uma criança malcriada. — A menos que não tenha amor à vida.
— Perdoe-me por não levar a sério a história das cabeças, mas tenho coisas mais importantes para me preocupar além de suas ameaças vazias — foi breve ao responder, e em sua expressão não havia nada além da serenidade de quem passava um recado. — Consigo sentir sua sede de sangue à quilômetros de distância, assim como sua ambição de capturar a pirata a qual está encarregado. Suas intenções não poderiam estar mais claras em sua expressão, mesmo tentando disfarçar isso ao forçar o desapontamento em suas palavras, quando acatou suas ordens. Ele pode ter acreditado, eu não — o homem cruzou os braços, recostando seu corpo em uma das bordas de madeira do navio.

Uma risada desacreditada arranhou a garganta de Blanche perante a afronta.

— Para começo de conversa, foi você quem me trouxe aqui. Eu nunca disse que queria fazer parte disso — o sorriso que pintava seus lábios finos era quase colérico. — Mas agora que ouvi o propósito de tudo, as coisas se tornaram interessantes. Se espera que eu fique fora de cena depois de ganhar uma oportunidade dessas, está alucinando — ela se aproximou, diminuindo a distância entre os dois numa clara tentativa de intimidá-lo.
— Essa missão ocorrerá exatamente do jeito que ela precisa ocorrer, e por isso, irei impedir que pessoas como você estraguem as coisas. Há um propósito maior sobre tudo, então ande na linha e se comporte — a postura relaxada de Pogue não mudou apesar da aproximação, e suas palavras soaram como um veredito, mesmo sem nenhuma alteração na voz.
— Ou o que? Não recebo ordens de você — a arrogância no tom da loira tornava sua pergunta um desafio, o que fez um dos cantos dos lábios de Pogue se repuxar em um meio sorriso.
— Mas recebe de . Então atente-se a fazer o que ele mandar, e apenas isso. Se fizer algo além, vou garantir que as coisas não acabem bem pra você — o feiticeiro se desencostou para sair dali, indicando que a conversa havia acabado.
Não ouse me ameaçar — numa fração de segundo, a mulher puxou a faca que estava em sua bota e investiu na direção do pescoço do homem, mas a arma não encontrou suporte para se apoiar.

Pogue havia sumido. Sua figura se desmaterializou como fumaça, num piscar de olhos. Blanche estava completamente sozinha.

— O aviso foi dado — a voz vinda do nada causou um arrepio na nuca dela, que engoliu em seco e voltou a trilhar seu caminho, deixando que seus passos soassem com clara irritação no processo.

Frank, debruçado na proa do navio para observar o vasto oceano à frente, teve sua atenção atraída para o som, conseguindo ver de relance a figura feminina – que pisava firme e batia portas com força atrás de si –, sumindo em direção ao porão. Franzindo o cenho ao notar o fato de suas roupas se diferenciarem do uniforme dos demais e de não se lembrar da mulher se fazer presente no cais ou na reunião do convés, ele se voltou para Amália e Mia, que estavam próximas.

— Quando foi que outra pessoa entrou no navio? Pensei que todos que estavam aqui, além de nós, fossem da guarda real — recebendo olhares confusos em resposta, ele continuou: — Acabei de ver uma mulher indo lá pra baixo. Ela não parecia ser da tripulação.
— Quando foi que esse tipo de coisa virou da sua conta? — Mia devolveu a pergunta sem olhar para ele, a atenção voltada para o mapa e a bússola que tinha em mãos.
— Credo. Por que o mau humor, hein? Pensei que estaria animada com a ideia de matar piratas — Frank sorriu, sem levar a pergunta dela como ofensa.
— Não liga pra ela. Esse é o jeitinho da minha querida irmã demonstrar entusiasmo. Se estivesse de mau humor, sua cara estaria bem pior — Amália se aproximou dos dois, sentando-se no chão de madeira. — Quanto à mulher, deve ser só uma servente qualquer ou coisa assim.
— Uau, você não consegue ser mais óbvia? — Mia alfinetou a mais nova, que revirou os olhos. — Eu estou animada, isso não é mau humor. Só respondi sua pergunta de maneira direta. Da próxima vez, dou um sorriso para amenizar — seu olhar se desviou do mapa apenas para dar uma piscadinha para Frank, voltando à posição anterior logo em seguida.
Dando de ombros, o homem continuou a conversar apenas com a mais nova, que parecia mais receptiva e empolgada do que sua irmã quanto à missão. E, pouco a pouco, mais tripulantes começaram a se juntar à conversa, aproveitando que seu capitão ainda não havia aparecido com novas ordens para contarem histórias interessantes e engraçadas, que animavam o ambiente. Imersos no papo, inclusive, nenhum deles percebeu as horas passando. E antes de se darem conta, o sol já havia se escondido no horizonte, dando lugar a uma noite clara e limpa.

Com a chegada da madrugada, porém, o clima mudou.

O vento forte que os levava rapidamente ao destino cessou de forma súbita, desacelerando a viagem. As águas abaixo ficaram mortalmente calmas com isso, fazendo com que o navio pairasse sobre elas sem mais avançar. E essa poderia ser só uma mudança repentina e estranha, mas o nevoeiro denso e extenso que apareceu, envolvendo toda a extensão da embarcação, indicava o contrário. Vários comentários se iniciaram, aliás, quando a luz da lua, que antes iluminava toda a superfície do oceano, começou a bruxulear, se enfraquecendo em meio à neblina e deixando toda a tripulação imersa em uma escuridão desagradável.

Foi em meio a isso que uma brisa gelada tomou o ar, trazendo arrepios aos tripulantes. Talvez de frio, talvez de medo. E, bom, poderia ter escalonado para algo pior em seguida, se todos esses fatores não tivessem preocupado Frank, que correu até a beira do convés e se debruçou sobre ela, forçando a visão para tentar distinguir algo em meio ao véu escuro que era o mar. E conseguiu. Uma movimentação sutil envolta em brilho cintilante chamou sua atenção, e sem esperar um segundo a mais, o homem se dirigiu à cabine de , adentrando a mesma sem esperar resposta depois de algumas batidas rápidas.

— Peço desculpas por interromper, mas acredito que o que tenho a dizer seja algo muito importante — fechando a porta atrás de si, ele se aproximou, respirando fundo e umedecendo os lábios antes de falar: — Quando conversamos na taverna, você mencionou certas... criaturas. Creio que acabamos de entrar em seu território — e explicou o motivo de acreditar nisso ao descrever as mudanças no navio e ambiente. — Isso tudo e... eu vi. Vi uma sereia.

o encarou por uns segundos como se houvesse nascido uma segunda cabeça em seu pescoço. O homem à sua frente parecia maravilhado e entusiasmado demais para estar mentindo, o que resultou em vários segundos necessários para processar a informação. E apesar de todo o seu lado racional gritar que aquilo não poderia ser verdade, ele tinha que acreditar. Pogue era um feiticeiro, não era? Magia era real. Sereias também deveriam ser.

— A rainha Syrena me disse que haveria uma baía repleta de sereias no meio do caminho, mas eu não esperava que chegássemos tão cedo a esse ponto da viagem. Eu não esperava, na verdade, que sequer chegássemos a esse ponto da viagem — um suspiro escapou dos lábios do capitão, que ainda tentava se acostumar àquela ideia.
"Há uma baía repleta de sereias no meio do caminho." Essas foram as palavras? Algo um tanto específico demais para alguém que nunca sai do palácio ter conhecimento sobre, não acha? — e Frank deram um pulo com o susto causado pela voz e presença repentina, afinal, até um minuto atrás, eles estavam sozinhos na cabine. Não fosse por isso, se estivessem atentos, veriam um brilho de divertimento passar pelo olhar de Pogue. Mas este, tão logo veio, se foi. — Sereias não têm um domínio específico, o mar é seu reino. Todo ele. Assim que um navio sai do porto, elas podem sentí-lo. Navegamos à sorte delas, não à nossa.
— Quem é você? — a pergunta de Frank veio de maneira defensiva, e a confusão em seus olhos era clara.
— Não vem ao caso — a resposta veio rápida demais, num corte. — , o que pretende fazer? — O feiticeiro parecia particularmente interessado na resposta.
— Precisamos tentar uma aliança. Eu tenho uma coisa que pode fazer com que fiquem do nosso lado — o soldado disse um pouco avoado, dirigindo-se até a pequena bolsa que levou consigo para o navio e retirando de lá o colar de pérolas negras.

Pogue demorou seu olhar na jóia, analisando-a. Sua expressão era indecifrável, mas havia uma ferocidade ali.

— De acordo com todos os contos e relatos que eu ouvi até hoje, essas criaturas encantam, afogam e devoram marinheiros, pescadores... homens em geral. Como exatamente pretende conversar com elas? — Frank perguntou ao capitão, ignorando sua própria confusão sobre o sujeito que havia aparecido do nada.
— Vou descer ao mar, no barco. Sem armas. Mostrarei que estou em missão de paz. De alguma forma, eu sei que esse colar irá impedir que elas me façam mal — disse com convicção, mesmo sem saber de onde aquilo veio. Um segundo atrás, não acreditava na existência das criaturas; agora, tinha certeza de que não morreria se entrasse em contato com elas. — De qualquer forma..., Pogue, pode me proteger se algo der errado, não pode? — A pergunta soou mais como um pedido suplicante.
— Desde quando eu passei de feiticeiro à anjo da guarda? — O homem franziu o cenho com descrença ao ouvir a pergunta, quase parecendo ofendido. E iria responder, mas seu olhar se dirigiu discretamente a uma das pérolas que perdia seu brilho negro, símbolo de sua magia, e retornava à cor branca natural. — Não vou precisar. Mas se precisa de uma garantia pra se sentir melhor... — deu de ombros por fim, concordando com o pedido.

— Vou com você — o tom de Frank deixava claro que, apesar de todo o respeito que tinha por , não aceitaria um “não” como resposta. — Não posso morrer sem ver uma criatura dessas pessoalmente. Topei essa aventura por isso. Além do mais, todas as histórias que ouvi me fizeram aprender algumas coisas. Posso ser útil.

O capitão apenas meneou a cabeça e saiu de sua cabine, sendo seguido pelos dois. E enquanto Pogue se debruçou na proa do navio para observar, Frank e entraram no pequeno barco, começando a descer até às águas escuras e calmas, onde uma melodia suave e hipnotizante soava.



Capítulo 5 - Histórias e Desavenças

Muitas horas haviam se passado.

Na madrugada, o vento sutil, porém gelado, não parecia fazer efeito no oceano calmo e silencioso à frente. Também não era suficiente para sequer balançar a neblina espessa que permeava o ambiente, apesar de trazer alguns arrepios à pele exposta da pirata.

Não era isso que a incomodava, porém.

Sozinha ali, do alto de uma das grandes pedras que rodeavam a orla da ilha, sob o brilho mínimo das poucas estrelas que salpicavam o céu escuro e em frente à criatura que lhe encarava sem piscar, via seu plano de conseguir a ajuda das sereias ir, quase que literalmente, por água abaixo.

Não que já não estivesse se perguntando o porquê de estar fazendo aquilo, aliás. E se arrependendo, é claro. Não era de seu feitio, afinal. A capitã se garantia em tudo o que fazia; cada embate, cada luta, cada batalha. Houve dificuldades, sim. Algumas quedas, aqui e ali. Várias pedras ao longo de seu caminho, é verdade. Mas ela chutou todas para longe e deu a volta por cima, até agora. Inclusive, tudo relacionado àquela invasão que viria estava a seu favor, não estava? Seria uma luta comum, como qualquer outra. Em sua ilha. Com sua tripulação. Defendendo a sua família e o seu lar.

O único problema era que o sonho de Gemma ainda martelava em sua mente.

“Você acaba morta, ”.

Talvez, por isso, ainda estivesse se humilhando daquela forma.

— Não é mentira — estava longe de sair como uma súplica. As palavras já começavam a soar irritadiças, inclusive. — Eu não teria como inventar tudo isso.

Daryah, como a criatura se apresentou no começo, mesmo se mantendo atenta às palavras da capitã – o que por si só já era algo que excedia expectativas – não parecia inclinada a aceitar qualquer coisa vinda de uma pirata. Pelo contrário; dado o fato de ser quase possível sentir a raiva que emanava de seu ser – fosse pela situação, pelo tema da conversa, ou pela pessoa a qual conversava em si –, era plausível manter a guarda alta e esperar por um ataque a qualquer momento.

A postura defensiva exibida deixava isso bem claro, apesar de sua cantoria melodiosa e poderosa ter cessado para permitir à mulher concentração e foco nas palavras proferidas sem ser atraída para a morte.

Rogers tinha razão sobre elas, afinal.

E não que um dia tivesse duvidado, mas entendia, agora. Para muito além de encantadoras, elas eram traiçoeiras. Enigmáticas. Instáveis. Curiosas. Imprevisíveis. Desconfiadas. Irritantes, talvez.

Havia muitos adjetivos.

E, desde o início do que parecia ser mais um monólogo do que uma conversa, um nome havia sido a única coisa que conseguiu ouvir ser, de fato, pronunciado. De resto, a cauda da sereia, – um ponto de luz balançando despretensiosamente no véu negro da água –, iluminava com seu brilho translúcido um rosto de pele muito branca, envolto pelos grossos cabelos castanhos molhados, e íris de cor violeta, que queimavam com desconfiança. Havia também uma pequena torção nos lábios rosados, pôde perceber, mas essa mínima expressão demonstrada foi o mais próximo de uma emoção humana que a criatura demonstrou.

Irritante, de fato.

A capitã não tinha esperanças de que as criaturas se aliassem à causa dos piratas e fizessem parte da linha de frente da batalha, se fosse para ser sincera. Sua ideia, na verdade, era que elas pudessem auxiliá-los com distrações ou coisas do gênero, e, se isso não fosse possível, que no mínimo se mantivessem afastadas e não lutassem ao lado inimigo. Mas talvez fosse apenas demais esperar poder contar com qualquer complacência de seres tão desconhecidos e peculiares.

Até aquele momento, a propósito, eles não passavam de uma lenda para a mulher.

E não que fosse admitir, mas estar na presença de uma sereia – mesmo que ela estivesse tirando a sua pouca paciência – era, de longe, umas das experiências mais incríveis já vivenciadas pela pirata. Poderia assimilar isso depois, porém. Agora, tinha um objetivo a conquistar. E o fato de não ter nada além da verdade – talvez, com sorte, uma mínima prova dela –, não ajudava em sua situação.

— É fácil empregar um teor triste e melancólico em palavras vazias para fazê-las parecerem reais, mas mentiras e desonestidade são grandes habilidades de natureza humana. Principalmente quando os humanos em questão são piratas. Você pode, tranquilamente, estar manipulando os fatos a seu favor para me fazer ficar ao seu lado em uma batalha que nem mesmo me interessa — tendo se mantido em silêncio até o fim da narrativa, a voz melodiosa da criatura finalmente soou outra vez, envolvendo como uma onda forte. Mas o tom empregado, apesar de rude e incisivo, tinha uma ponta de curiosidade: — Por que eu deveria acreditar no que está dizendo?

Embora tenha acusado de estar mentindo, a afirmação de Daryah quanto ao interesse na batalha tampouco era verdadeira. Assim que ouviu o nome de Ella ser pronunciado pela primeira vez, lembranças de um passado mal resolvido foram desenterradas, e se houvesse qualquer envolvimento dos soldados da rainha – como a capitã afirmava, – no que dizia respeito à captura de sua irmã, catorze anos atrás, a criatura não hesitaria em tomar um partido nessa luta.

Ela só precisava ter certeza da veracidade dos fatos narrados pela mulher.

— Meu pai não costumava dividir comigo os detalhes das ordens que recebia, principalmente ao sair em missões, mas essa foi uma exceção. Ele disse que precisava recuperar para a rainha um objeto perdido no oceano, e que havia uma grande possibilidade de ver uma sereia com seus próprios olhos por conta disso. Eu me lembro de sua animação antes de partir — ignorando a alfinetada, a pirata manteve a postura ao tornar a falar. Seria sua última investida: — Quando ele retornou, parecia outra pessoa. Estava com medo. Era como se soubesse de algo que não deveria. Ele me entregou três pérolas, dizendo que as recebeu de Ella como retribuição pela sua tentativa de ajudá-la a se libertar. Me disse também para guardá-las comigo, porque elas me protegeriam do perigo que estaríamos correndo a partir daquele momento.

Com um suspiro um tanto frustrado por reviver aquelas memórias que remetiam a um momento triste de sua vida – e que na presença da criatura pareciam se intensificar, como se ela propositalmente a forçasse àquilo – desembainhou sua espada para responder, dessa vez de maneira não verbal, a pergunta de Daryah.

A sereia, apesar do gesto inesperado vindo da pirata, o qual, à primeira vista, parecia uma ameaça, não se mexeu ou se deixou intimidar. Ela queria uma prova, afinal. Palavras a mais não bastariam.

apenas esperava que o que tinha além delas fosse suficiente.

No breu da noite e com a distância entre as duas sendo algo a se considerar, porém, era quase impossível contar com as chances de que as pérolas pudessem ser distinguidas em meio à madeira do cabo da arma, mas, como se a natureza lhe fizesse um favor, ao inclinar a espada para baixo, um fraco feixe de luz da lua crescente no céu apareceu por entre as densas nuvens, iluminando a lâmina e refletindo na água o brilho negro de uma das três jóias, símbolo do poder remanescente que ali havia.

O silêncio que se instalou no momento seguinte, enquanto Daryah contemplava tanto a mulher quanto sua espada – em um misto de choque, fascínio e surpresa –, foi suficiente para fazer uma pequena ponta de esperança reaparecer no peito da capitã, que falhava em esconder um sorriso de alívio e vitória. Mas apesar de todas as emoções simultâneas exibidas no rosto da criatura, era precipitado imaginar que o efeito causado houvesse sido positivo, afinal, não havia como a pirata saber quais pensamentos rondavam sua mente no momento.

— Aparentemente, elas protegeram — o comentário feito pela sereia, segundos após se recompor, agora vinha num tom menos hostil do que o empregado em suas últimas palavras. — Mais do que uma vez, pelo que posso observar. Como sabia como usar as pérolas?
— Não sabia. Até hoje, para falar a verdade, eu não sei. Tenho apenas um palpite. Eu só… me agarrei à promessa do meu pai, de que elas me manteriam segura, e quando precisei, foi isso que aconteceu — a resposta honesta de fez a criatura balançar levemente a cabeça em um sinal positivo.

Ficando em silêncio por mais uns instantes e parecendo considerar o que tinha ouvido ali, Daryah balançou a cauda na água, sem nadar, de fato. O movimento fez pequenos redemoinhos surgirem em volta de seu torso emerso, como se o oceano, de alguma forma, respondesse aos seus sentimentos. E naquele momento de introspecção da sereia, se permitiu deixar o objetivo de lado e deslumbrar um pouco a situação, considerando como o que estava vivendo era surreal.

Havia muito mais no mundo lá fora do que o que já tinha presenciado, não é?

— Há uma hierarquia entre nós. Mesmo que eu leve essas informações à minha corte e à minha rainha, não posso garantir que teremos inclinação em te ajudar nessa luta — saindo do torpor, foi a vez da pirata de assentir positivamente com o veredito da sereia, que deixou sua voz soar um tempo depois. — Mas, se te serve de consolo, não ficando ao seu lado, que aparentemente tem a verdade a seu favor, duvido que ficaremos ao de seu inimigo, também.

Essa, porém, era outra afirmação nada verdadeira vinda da criatura. Se realmente tinha aquela verdade ao seu favor, como dizia, seu inimigo estava condenado.

Daryah só não fez questão de deixar a mulher ciente disso.

Assim, sem esperar por uma palavra final de gratidão vinda da capitã, a sereia afundou nas águas geladas do oceano, não perdendo tempo em nadar para longe da ilha enquanto pensava na conversa que acabara de ter. Por mais que odiasse admitir, a história contada por tinha reaberto uma ferida que ainda não havia cicatrizado por completo em seu peito, e o fato de a pirata ter em sua posse um elemento que servia como forte indício da verdade em suas palavras não ajudava no dilema que a criatura agora enfrentava dentro de si.

Até aquele momento, afinal, Daryah acreditava em uma versão diferente dos fatos relacionados à Ella. Mesmo que uma de suas irmãs tivesse presenciado sua captura e insistisse, desde aquele fatídico dia, que o que havia ocorrido era o mesmo que ela acabara de ouvir de .

Claro, as duas poderiam estar mentindo.

poderia ter conseguido aquelas pérolas de outro jeito; roubando, talvez. Era uma ladra por natureza, afinal. Uma saqueadora. Uma pirata. Cheryl, por sua vez, apenas gostava de pregar peças. De mentir, de enganar. Suas brincadeiras inconvenientes formavam um longo histórico que resultava no fato de ninguém mais levá-la a sério.

Mas era muita coincidência duas pessoas que não se conheciam, – dois mundos diferentes – terem a mesma versão dos fatos, com uma história completando os furos da outra.

E era exatamente por esse motivo que havia uma voz na cabeça de Daryah insistindo que ela havia cometido um erro grave em não acreditar em sua irmã, tantos anos atrás.

Talvez devesse ter deixado a cisma de lado só por aquela vez, e tê-la dado um voto de confiança, uma chance de ser ouvida. Talvez devesse ter levado em conta o apelo de sua narrativa, a tensão em sua voz que tremia ao relatar o ocorrido, ou, quem sabe, o brilho de seus olhos, que não pareciam mentir. Mas foi apenas difícil demais crer que logo ela, dentre tantas mais honestas ou, ao menos, mais fáceis de serem levadas a sério, poderia estar falando a verdade todo esse tempo.

Se estivesse, toda a vingança buscada pelas sereias contra os piratas ao longo dos anos, afundando vários navios e se alimentando da carne de seus tripulantes, havia sido em vão. Elas teriam perseguido e punido gerações de pessoas erradas, movidas pelo ódio de um ato que não haviam cometido.

E com isso, deixando os verdadeiros culpados impunes.

Pela primeira vez, Daryah duvidou de seu próprio julgamento. E isso, para ela, era um fardo pesado demais para se carregar. A justiça era um dos principais pilares que regiam sua vida, afinal. Sem ela, o que restava?

— Não é irônico o fato de, depois de tanto tempo, aparecer alguém contando uma versão dos fatos relacionados àquele dia muito parecida com a minha? — Imersa demais em sua autodepreciação, Daryah tomou um leve susto quando a voz de Cheryl, quase como se houvesse sido invocada, arrancou-a de seu torpor, verbalizando tudo aquilo que a mais nova pensava segundos atrás.

— Vejo que ainda não perdeu o costume de ouvir conversas que não te incluem — a falha em aplicar um tom rude no comentário foi rebatida por uma risada ácida de sua irmã mais velha. — Acho que já te disse o quanto é feio bisbilhotar assuntos particulares.

Cheryl não parecia preocupada em negar que havia mesmo ouvido cada palavra da conversa entre sua irmã e a pirata.

Com as cores vivas presentes em sua cauda e cabelos ruivos ondulados se destacando mais do que os corais bioluminescentes do fundo do mar, – que traziam certa luz à escuridão das profundezas, – a sereia se aproximou, exibindo um sorriso de deleite em seus lábios cheios. Muito diferente de Daryah, tanto em aparência quanto em personalidade, Cheryl lembrava uma chama ardente que se alastrava de maneira rápida, tomando conta de tudo e todos antes que qualquer um pudesse fazer algo a respeito para contê-la.

Desde sempre havia sido assim. E isso era motivo de muitas dores de cabeça para todas as outras sereias.

— É quase um insulto você dizer que esse assunto em específico é particular — passeando seus olhos cor de âmbar pelo rosto muito branco de sua irmã, a ruiva soltou uma pequena risada. — Estou curiosa. Por que a palavra da pirata vale mais do que a minha?

Daryah não segurou um suspiro cansado perante a pergunta, a qual ela sabia conter muito mais significado do que aparentava.

— Não vale — a resposta veio simples. — As duas têm o mesmo peso. As pérolas que ela possui, por outro lado, dão mais credibilidade para sua narrativa — tendo sustentado o olhar da irmã até o momento, a mais nova vacilou ao encará-la para dizer as próximas palavras. — E isso significa, uma vez que o que ela me contou foi o mesmo que você contou anos atrás, que talvez você estivesse dizendo a verdade.

Cheryl sabia que esse seria o mais perto de um pedido de desculpas que Daryah chegaria. Era mais do que o esperado, mas não era o bastante, de qualquer forma.

Estava longe de ser suficiente.

— Eu nunca escondi minha falta de apreço pela Ella e por suas regras estúpidas. Pelo contrário, sempre fiz questão de deixar isso claro até demais. Ainda assim, ela me salvou, mesmo que apenas para cumprir suas obrigações como rainha. O mínimo que eu poderia fazer para retribuir isso era contar à vocês a verdade, para que assim pudessem perseguir e punir os culpados para vingá-la. Em vez disso, vocês decidiram passar uma vida perseguindo pessoas que nada tinham a ver com aquilo apenas pela birra cultivada por mim e pelas minhas brincadeiras inocentes — transformando o tom levemente implicante em algo mais raivoso, a ruiva deixou sua voz soar outra vez. — Agora, finalmente a sua ficha de que eu não brincaria com algo tão sério deve ter caído. Imagino que esteja se sentindo péssima.

Lançando para a mais velha um olhar ressentido, Daryah balançou a cabeça.

— As provas estavam contra você, Cheryl. Tudo estava! — Não suportando mais se afogar na própria culpa, a morena já se afastava para sair dali. — De qualquer forma, não tenho tempo para isso, preciso deixar Pearl ciente de tudo, afinal, cabe à ela o julgamento do que fazer com as novas informações, não a mim ou a você.

— Não acha que isso mudará algo para ela, acha? — Impedindo sua irmã de sair dali e a deixar falando sozinha, a mais velha entrou em sua frente, encarando-a sem esconder o divertimento estampado em seu rosto com a situação. — Não há a menor possibilidade de ela levar as palavras de uma pirata a sério, afinal, ela vem cultivando raiva por eles todos esses anos. Foi bom, inclusive, você ter encontrado a capitã antes dela. Tenho certeza que se fosse diferente, a pobre mulher seria mais um esqueleto inocente no fundo do mar.

Me dá um tempo, Cheryl — perdendo a paciência com a provocação, Daryah voltou a encarar os olhos amarelos de sua irmã; os seus queimando em um misto de emoções negativas — Pearl pode não levar as palavras de uma pirata a sério, mas as minhas ela vai ao menos considerar. Diferente de você, eu não ajo com imaturidade e não dou motivo para desconfiança, o que já é um grande ponto a mais.

— Não muda o fato de que eu estava certa o tempo todo. Mas quem sabe, se você se esforçar bastante para fazer a nossa querida rainha reconsiderar a minha história, Ella não pare de se revirar no túmulo em que está agora — a risada da ruiva foi a gota d'água para Daryah, que, sem responder nada, nadou o mais rápido possível para longe dali.

Apesar da maldade daquelas palavras, que atingiram a sereia muito mais do que a mesma gostaria de admitir, ela sabia que sua irmã estava com a razão. Agora tinha certeza que realmente havia cometido um erro em não acreditar nela tanto tempo atrás. A única coisa que restava para aliviar sua consciência era fazer com que Pearl também visse isso. Havia uma chance de se redimir, afinal.

Elas poderiam considerar a oferta de aliança de e lutar ao seu lado.


Capítulo 6 - Dúvidas e Conflitos

"O encanto das sereias sob os homens é praticament'e impossível de ser quebrado", as palavras distantes de Frank martelavam em um aviso incessante, de algum lugar fundo na mente de . "A única chance de sobrevivência é se agarrar à pior memória que possui, ao fato mais cruel e doloroso já vivenciado e ao sofrimento que lhe persegue até hoje, porque isso é real. Sua dor é real. Qualquer outra coisa, além disso, é apenas uma ilusão."

Mas era apenas difícil demais se concentrar naquela memória quando Willian estava ali, logo à sua frente, com um sorriso caloroso nos lábios e os braços abertos prontos para lhe receber em um abraço acolhedor e saudoso, que há tanto não sentia.

Não é real. Willian está morto. Você estava lá quando aconteceu.

Mas nem mesmo o lado racional que insistia em se fazer presente, e que por uns segundos até mesmo era capaz de trazê-lo de volta à realidade, fazendo-o ter ciência de seu corpo quase totalmente submerso na água gelada, – embora o homem não se lembrasse como ou o porquê de estar naquela situação –, era tão forte quanto a sensação de paz e felicidade extrema que experimentava ao ver seu irmão ali, bem em frente aos seus olhos, outra vez. Vivo.

conseguia senti-lo; o toque gentil do polegar em sua bochecha, que limpava as lágrimas quentes de saudade que escorriam pelo seu rosto, era verdadeiro. Também conseguia ouvi-lo; a voz emotiva e embargada que o chamava, claramente dizendo que havia voltado para casa, que havia voltado para ele, estava ali.

Ela dizia que ele não precisava mais se preocupar ou se sentir perdido, porque não estava mais sozinho.

Como aquilo poderia ser só uma ilusão? Era real demais. Seu peito ardia em chamas pela emoção. Seu corpo formigava dos pés à cabeça ao se permitir aconchegar nos braços do irmão mais velho. Seu coração parecia queimar com tão boa sensação.

Ou seriam seus pulmões?

A falta de ar que começou a se fazer presente levou embora todo aquele mundo perfeito em segundos, trazendo a realidade dolorosa à tona a medida em que turvava a figura esguia e sorridente à sua frente, fazendo-a se transformar em algo diferente a cada instante em que as células de seu corpo imploravam por oxigênio. Num piscar de olhos, o sorriso de Willian se desfez em uma careta de dor, enquanto o sangue escorria de seu peito perfurado pela lâmina afiada de uma espada. A risada da pirata ecoou por detrás do corpo. o estava perdendo, novamente. E perdendo a si mesmo, também. Dessa vez, porém, em um sentido literal.

Todo o êxtase se transformou em desespero. Mas esse foi o momento em que o homem conseguiu ver a verdade por trás do véu da ilusão.

Nos segundos de agonia, onde a vida se esvaía de seu corpo enquanto se afogava, a imagem de seu irmão tomou a forma de uma bela mulher, com o rosto a apenas alguns centímetros de distância do seu. As mãos grandes e firmes, antes apertando seu corpo em um gesto acolhedor, agora ele via com clareza; eram delicadas e femininas, tinham membranas entre os dedos, e o puxavam suavemente para o fundo do mar, em um abraço da morte.

Não fosse isso suficiente, logo abaixo, no lugar onde pernas humanas deveriam estar, uma cauda brilhando em vermelho e prateado agitava a água escura.

Então, subitamente, se lembrou.

As palavras de aviso de seu melhor amigo haviam sido proferidas enquanto o pequeno barco descia pela lateral do navio, rumo ao oceano calmo. Antes de elas serem processadas por completo, porém, um cantarolar melodioso soou, envolvendo-os. O mundo ao redor parou de existir, e qualquer coisa senão aquela voz angelical ou a criatura que a possuía não significava nada para os dois homens. Por esse motivo, não houve medo ou sequer hesitação quando tentáculos verdes e grossos – aparecendo sutilmente por entre o véu negro da água enquanto os dois estavam ocupados demais com a majestosa sereia – se enroscaram na madeira do barco, partindo-o em vários pedaços e deixando ambos, assim, à deriva. Tampouco houve incômodo quanto à água gelada em que se afundaram ao não terem mais onde se apoiar. A distância que tomavam de seu navio, nadando para chegar mais perto da criatura, era igualmente irrelevante.

Não, nada disso importava. Ela era a única realmente digna de toda sua atenção. Em toda a sua beleza e poder.

Com os grandes cabelos negros cacheados ornados por uma coroa de algas incrustada de flores e conchas coloridas destacando a pele tão branca, juntamente aos olhos que se assemelhavam à dois grandes e brilhantes rubis vermelhos, a sereia não precisou de mais do que dois segundos para fazer com que e Frank caíssem em seu encanto. Dois homens, duas abordagens diferentes; foi fácil para ela adentrar às memórias felizes do primeiro, seduzindo-o assim com o que ele mais queria em vida: a promessa de sua família perfeita unida novamente. O desejo de ter seu estimado irmão de volta para que isso fosse possível.

E teria dado certo, se ao invés de se entregar e ceder à morte, – deixando seus pulmões que clamavam por ar serem invadidos pela água em um suspiro final – o soldado não tivesse lutado contra o aperto da criatura para alcançar uma jóia que havia chamado sua atenção, ao escapar de seu bolso e começar a afundar ao seu lado. , em seus últimos segundos de vida, se agarrou ao sentimento de que o colar o protegeria e também às palavras de Pogue; de que não seria necessária a sua intervenção. O olhar sugestivo do feiticeiro para a peça foi suficiente para que o homem tivesse a certeza de que, de alguma forma, ela seria sua salvação. E assim, quando seus dedos tocaram na única pérola branca em meio às pérolas negras, se segurando, em sentido literal, à última esperança remanescente, um clarão forte surgiu.

Com ele, a sereia foi empurrada com tudo para trás em uma pequena explosão de água, que, assim como a havia afastado, havia feito emergir.

E da superfície, com o peito subindo e descendo de maneira bruta e descompassada em desespero e necessidade de oxigênio, o soldado olhou ao seu redor, procurando por Frank. O mesmo, para seu alívio, se encontrava parado ao seu lado, com um olhar perdido e confuso na direção onde a criatura havia sido lançada.

Apesar dessa expressão, porém, nada além disso parecia ter acontecido com ele; seu rosto ainda estava seco e sua respiração normal.

— Frank? — A voz fraca e arfante chamou pelo amigo. — Você... você está bem?

— Onde ela está? O que fez com ela? — As sobrancelhas se franziram em ainda mais confusão, como se o homem lutasse contra sua própria mente para entender o que estava acontecendo.

— Esqueça a sereia, precisamos sair daqui — falou, olhando novamente ao seu redor. Dessa vez, procurava pelo navio.

Em meio à toda aquela neblina que os rodeava, entretanto, era difícil conseguir visualizar qualquer coisa além do vasto oceano em que estavam. E a consciência do frio e da água gelada que agora os atingia com tudo, fazia seus corpos tremerem. Eles não podiam mais ficar ali, era fato. Por isso, forçando a visão o máximo que conseguia, ao longe, o soldado pôde enxergar a silhueta da embarcação.

Envolta dela, porém, havia uma coisa muito maior; os mesmos tentáculos que quebraram o pequeno barco que os levou ao mar. Eles se enrolavam por toda a extensão do navio.

— Gostaram do meu bichinho? — Melodiosa, a voz da sereia voltou a soar. agarrou as pérolas do colar em sua mão com mais força, nadando para perto de Frank em um gesto de proteção. — Ele é inofensivo, até que eu peça para não ser. Apesar do meu pedido, porém, ele não conseguiu seguir minhas ordens de afundar o seu navio. Sabem me dizer o porquê?

Emergindo suavemente em meio às águas enquanto nadava para mais perto dos dois homens, a criatura sorriu. Seu torso nu, coberto apenas pelos volumosos cabelos, agora era visível sob a escuridão da noite. E recebendo apenas olhares assustados em resposta, – no caso de Frank, o desejo e paixão se sobressaindo ao medo –, a sereia riu.

— Cavalheiros, acredito que não seja gentil e honroso da parte de vocês deixar uma dama falando sozinha — os olhos vermelhos faiscavam à medida que a mulher falava, se aproximando sutilmente enquanto isso. — Vamos começar pelo começo. Meu nome é Pearl. Consigo ver que há muita magia cercando vocês, tanto no navio quanto aqui — seu olhar se direcionou às pérolas na mão do soldado, que mesmo submersas, emitiam um brilho característico. — Isso é interessante. Posso saber o que queriam vindo até mim?

— Eu quero fazer amor com você a noite intei... — as palavras de Frank foram interrompidas quando ele se deu conta do que estava dizendo.

o lançou um olhar indignado, o qual fez a sereia rir mais uma vez.

— Não o culpe, eu precisei usar outra abordagem com ele. Não há memórias muito felizes em sua mente para serem revividas, então fiz com que ele se apaixonasse por mim — a criatura deu de ombros e os rodeou enquanto nadava. — Estou perdendo a minha paciência.

— Pearl — finalmente encontrou sua voz, dirigindo-se à sereia da forma mais amigável possível. Ele sabia que qualquer palavra errada poderia ocasionar outro ataque. — Nós viemos pedir a sua ajuda.

Agora, além da expressão divertida que ela mantinha em seu rosto, as sobrancelhas se arqueavam em curiosidade e ironia.

— Não consigo imaginar um motivo que o faça pensar que isso seria provável, ou sequer possível — a criatura encarou diretamente o soldado, parando de nadar. — Por que eu ajudaria um homem que veio, de tão bom grado, se encontrar com a morte? Nunca ouviu as histórias ou é apenas ingênuo o suficiente para não levá-las a sério?

— Nem um, nem outro. Para ser sincero, eu não acreditava em nada disso momentos atrás — a frase saiu mais para ele mesmo do que para ela. — Mas o que interessa é o assunto que quero tratar com você — pigarreou, sustentando o olhar da sereia. — Sou um soldado de Willhye, e minha rainha me enviou em uma missão de captura da pirata mais procurada do reino.

— Não há piratas por aqui — Pearl cantou, com um sorriso maldoso estampando seus lábios. — Eu e minhas irmãs nos encarregamos de afundar e matar todos os que ousam navegar em nossos oceanos.

— Por causa de Ella, imagino — respondeu em mesmo tom, o que causou um chiado irritadiço na criatura.

A expressão de Pearl mudou imediatamente ao ouvir aquele nome, seu cenho se transformando em algo raivoso, monstruoso. As unhas da mão que foram rapidamente ao pescoço do soldado se tornaram grandes e afiadas, semelhantes a garras, segurando-o e apertando com força em ameaça. Frank, observando a situação, travava uma guerra interna entre interferir e ajudar seu amigo ou apenas admirar a beleza da criatura, quase implorando para estar no lugar de .

— O que e como sabe sobre Ella? — Seu tom deixava bem claro que um movimento ou palavra em falso seriam o fim para o homem.

— Sei que foi morta por piratas — a voz saiu sufocada em meio à dificuldade de respirar. — E que deu essas pérolas mágicas em retribuição ao esforço dos soldados da rainha para libertá-la — a mão que agarrava o colar subiu rente ao corpo para deixa-lo visível.

Afrouxando o aperto no pescoço do soldado, Pearl demorou seus olhos na jóia. Então, soltando-o por completo, a criatura levou a mão até ela, analisando pérola por pérola, todas reluzindo com a magia que ali havia.

— Estou ouvindo — deixando a raiva dar espaço para a curiosidade quanto ao que o homem tinha para falar sobre a falecida sereia, Pearl se afastou, mantendo sua atenção na narrativa.

— Eu não sei muito, não era um soldado oficial na época, mas meu irmão sim — se recompondo, iniciou a narrativa, dizendo para a criatura as exatas palavras que Syrena havia dito para ele: — Eles estavam em rota comercial; Willhye tem muitas ilhas com as quais mantém relações de compra e venda de produtos variados. Depois que finalizaram as negociações, no caminho de volta, o navio real cruzou com um navio pirata, e então os soldados observaram aqueles homens puxarem para a superfície, em uma grande rede, uma sereia. Além de terem ordens da rainha para abater qualquer um que representasse ameaça ao reino, eles não deixariam que mais esse crime passasse impune. Então o confronto começou.

Pearl mantinha sua expressão impassível enquanto ouvia a história de , mas seus olhos atentos não deixavam escapar nenhuma oscilação na voz ou algo que indicasse uma mentira.

— E então? — Ela incentivou, esperando o final da narrativa.

— E então o embate saiu do controle. O navio de Willhye era um pequeno navio comercial, não teve estrutura suficiente para acabar com o navio pirata. Não conseguiram salvar a sereia, e muitos homens morreram, mas os sobreviventes que conseguiram voltar para casa, meu irmão entre eles, de alguma forma milagrosa, ou mágica suspirou, digerindo suas próprias palavras, como se custasse a aceitar esse último fato. — Foram protegidos do confronto, mesmo com a embarcação em frangalhos. Eles entregaram esse colar para Syrena, e explicaram que nos seus últimos momentos, Ella os entregou a jóia, dizendo que ela os protegeria.

Syrena? — Dessa vez, havia algo diferente nos olhos de rubi da criatura. Mas tão logo quanto apareceu, se foi.

— Conhece nossa rainha? — O soldado perguntou, surpreso e um pouco confuso.

— Não — a resposta veio rápida demais. — Sereias não tem contato com o reino humano. De qualquer forma, supondo que eu esteja disposta a ajudar, para o que exatamente você precisa da minha ajuda?

— Você disse que não há piratas por aqui, mas está na ilha Roccia. Ela é a mulher que eu preciso levar de volta ao reino para ser punida por seus crimes. Meu pedido é para que, caso haja qualquer confronto marítimo no caminho, vocês sejam nossas aliadas. Da mesma forma que, se por algum acaso ela e sua tripulação consigam escapar, vocês impeçam — não havia qualquer indício de que a criatura estivesse disposta a aceitar a oferta, até que usou sua última cartada, a qual a sereia não pôde recusar: — O homem responsável pela captura e morte de Ella foi Rogers, pai dessa mulher.

Ainda mais do que antes, agora Pearl não hesitava em esconder a raiva que borbulhava de cada parte de seu corpo. Sua respiração estava alterada; era como se ela se concentrasse para não agir imediatamente, como se lutasse contra seus instintos de destruição. O clima hostil era quase palpável, e os tentáculos verdes que antes envolviam o navio de se soltaram, vindo rapidamente em direção aos dois homens e à sereia.

Mas, surpreendentemente, eles não representavam uma ameaça.

— Sua viagem até Roccia será tranquila. Levarei essas informações para minhas irmãs e nós entraremos em um consenso do que fazer quanto à isso — a criatura deu seu veredito para o soldado. — O Kraken devolverá vocês em segurança ao navio.

Ao mesmo tempo em que as palavras foram ditas, os tentáculos se enroscaram no corpo de e Frank. O primeiro – apesar de apavorado por ter o corpo sustentado por um Kraken – suspirava aliviado pelo resultado positivo da conversa e por ter sobrevivido. O segundo protestava em sons e gestos por se afastar de Pearl.

— Me leve de volta! Eu quero ficar perto dela! — O homem choramingava enquanto dava alguns socos nas escamas da criatura. — Não vá embora!

Pearl, mesmo em meio à toda raiva que sentia, não escondeu um sorriso quanto as palavras de Frank. Sua resposta, entretanto, foi direcionada ao soldado.

— O efeito vai passar em algumas horas, mas não posso garantir que ele ainda não se lembre de mim depois disso — ela cantarolou, sumindo pelas águas escuras enquanto o Kraken os colocava em segurança na proa do navio.

Depois de toda a confusão, a sereia se afastou da embarcação, nadando para longe e pensando na história que havia contado. No meio do caminho, porém, ela foi interceptada por uma de suas irmãs, Daryah, que vinha à seu encontro.

— Pearl — sua voz urgente indicava que algo estava errado, o que deixou a rainha das sereias preocupada. — Nós precisamos conversar.

Mais ao longe, vinda de outra direção, com um sorriso sugestivo no rosto e os cabelos ruivos esvoaçando em meio às águas escuras, Cheryl também se aproximou.

— Nós definitivamente precisamos conversar.


Continua...



Nota da autora: Oi xuxus! Como vão? Finalmente surgi com um capítulo fresquinho pra vocês! Sei que vira e mexe eu dou uma sumida, mas espero que não desistam de mim e que tenham gostado desse novo. Inclusive, queria agradecer por todos os acessos e por Sea Mission ter entrado nas Mais Lidas várias vezes. Me contem o que tão achando nos comentários!! É super importante ter esse feedback ❤
E se quiserem conversar comigo, teorizar ou qualquer coisa, vocês conseguem me achar em todas as redes sociais buscando por gabycelegao.
Um beijo e um xêro, e até o próximo!!



Nota da scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

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