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His Best "Lesbian" Friend





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Capítulo 31 — Let 'em talk 'cause we're dancing in this world alone, world alone, we're all alone.

(A World Alone — Lorde)

Eu nunca a vi dançar tanto. Não que já tivéssemos estado juntos em tantas festas assim, mas eu não era o único a perceber isso. Já estava tarde, a maioria das pessoas não se aguentava mais em pé e estava em algum canto com um grupo de amigos. Os amigos de a chamavam pra fazer outras coisas e ela sorria, gentilmente mandando irem sem ela com um aceno de mão.
eventualmente declarou que teria que tocar uma música ruim para fazer sair de seu transe. Mas ela não fez nada, porque, como todos os outros, ela também notara que estava muito bem ali. Como se ela estivesse tendo o melhor dia da vida dela.
Claro que isso devia ser parcialmente culpa do álcool, mas ainda assim. Ninguém queria acabar com aquilo.
Ela dançava com quem quisesse dançar, apesar de até nesses momentos ainda parecer que dançava sozinha. Um cara tentou se aproximar mais e ela rodopiou para longe do jeito menos profissional possível, deixando claro que ballet não era a sua especialidade. Ah, e que não queria ninguém se esfregando nela.
Bom, isso foi até as músicas de esfregação voltarem a tocar. De repente, ela estava fora do transe e puxava Rapha e Phill para dançarem com ela. Foi a cena mais hilária da festa, e, obviamente, ainda assim sexy. Era atraente, pra mim, porque acima de tudo ela estava se divertindo. Seus movimentos podiam ser atrapalhados, mas ela os fazia com confiança. Uma confiança rara de se ver em seu corpo, quase a mesma que ela tinha ao representar no Teatro. Só que no Teatro ela não estava sendo ela mesma, e sim algum personagem. Aquela dançando era ela, verdadeiramente confiante, uma imagem que eu gostei de ver.
Então, obviamente, fiquei dançando ridiculamente por perto. E toda vez que era obrigado a me afastar — ir com alguém pegar alguma bebida, comida, ou coisas em geral — deixava claro que não via a hora de voltar, demorando a deixar de olhar para trás. Se ela percebeu das outras vezes, fez questão de não reagir, mas na última, não negou e riu com leveza enquanto afastava o olhar de mim.
Fazendo meu sangue borbulhar de vontade de voltar imediatamente. E foi o que eu fiz.

*

Becky realmente não apareceu. Ou, se apareceu, ficou escondida o tempo todo. Eu podia sentir que, por mais que Phill não dissesse nada, ele também estava pensando nisso.
Enquanto nos arrumávamos, e eu arranjava todos os meios possíveis de lembrar Phill dos motivos pra ele gostar de mim, ele disse que Rebecca havia dado certeza de que vinha. Acho que o único motivo para ele ter me perdoado era que eu também estava preocupada.
Becky sempre se arrumava com a gente. Ela também não costumava ser tão ausente, e muito menos tão secreta, sobre a sua vida. Phill não havia engolido a história da fazenda.
Mas agora estávamos bêbados demais pra pensar nisso por mais de um segundo.
Então, às vezes, nos olhávamos e o pensamento cruzava nossa mente ao mesmo tempo, mas logo ia embora e nós ríamos. Foi depois de uma dessas que peguei o olhar de em mim, e finalmente ele decidiu que ia dançar comigo. Estava divertido. Em meses, eu estava tendo um tempo realmente bom. Sem a bebida, claro, teria a preocupação com Rebecca, mas eu havia bebido a quantidade certa pra não me preocupar com nada, e ainda assim conseguir lembrar-me de tudo no dia seguinte.
Eu não estava fora de controle, mas estava mega leve. Era difícil acertar esse nível de alcoolismo. Obrigada.
Então dançou comigo, e ninguém nunca acreditaria se disséssemos que fazíamos aula de dança na Ferdinand. E a melhor parte era que realmente não importava. Ninguém estava ali para dançar bem.
Estava tudo indo muito bem. Divertíamo-nos juntos, sem aquelas confusões de antes. Era muito mais fácil lidar com aquilo assim, sem cobranças. Eu queria beijá-lo. Ainda havia coisas para perguntar sobre ele, no entanto. Temos tanto tempo, e só essa tentativa pra fazer dar certo.
Contive minha vontade de beijá-lo. Contive minhas perguntas.
Mas não contive meu corpo.
E dançamos. Ficando melhor nisso conforme as músicas trocavam. Ficando mais próximos também. Minha parte favorita era quando a respiração dele batia no meu pescoço. Tinha mãos para todos os lados, também.
— Que casal engraçado! O Cheshire Cat com um metaleiro cabeludo. Posso dizer que já vi de tudo.
Paramos de dançar em câmera lenta, procurando a origem da voz.
— Hey, Valerie! Você aqui? — questionei, ciente de que ela nunca passara em uma festa de .
— Só de passagem, vi meu par e não pude ir embora antes de dar um oi. — me afastei um pouco de , sem querer. Leveza da bebida! Ela interpretou errado. — Não, não, podem continuar! Ele é seu por hoje.
Ri, genuinamente. Afinal, alcoolizada.
— Oh-kay!
Valerie me encarou por um tempo, estranhando o sorriso em meu rosto. Ela olhou , que parecia perdido, e depois voltou a olhar para mim.
— E você, já tem par? Pro baile?
Oops. Vaca, querendo me provocar? Coitada. Foi escolher justamente o pior dia do ano pra isso. Tenho 99 problemas, mas vacas não são um deles. Vacas são amigas.
— Você sabe que eu não me importo com isso, né, Valerie. Eu vou com a Becky, como sempre, a não ser que ela decida arranjar outro par, ou talvez eu vá com a minha irmã, já que ela vai passar pro High School em breve e precisa saber onde vai se enfiar antes... — falei, como se o pensamento tivesse acabado de surgir. Porque havia.
— Ah... Bem... Ok, tchau.
E ela se foi.
— Esquisita. Boa sorte com ela no Baile. Aliás, pensei que nós tínhamos te avisado sobre Valerie?
— Avisaram. Eu não sei bem como isso aconteceu. Acho que foi depois de alguma prova. Lembro de dizer "ok", mas não lembro o assunto.
— Oh.
Então desatei a rir.
— Obrigado.
— Você sabe que pode dispensá-la, né? Tipo, ela não pode te forçar a ir com ela.
— Sei. Pelo menos ela quer ir comigo. — ele disse, num tom ácido demais, e se afastou.
Fui atrás, um pouco atordoada.
— Ahn? !
— Você tem o direito de ir com quem quiser, não tem? Eu também tenho.
— Certo... Eu achei que você não quisesse ir com Valerie.
— Eu quero. E não quero atrapalhar você e Becky.
Parei, assistindo enquanto ele saía da casa sem olhar pra trás. Procurei Rapha e Phill para ver de eles tinham visto aquilo. Encontrei Rapha com um olhar chocado e Phill gargalhando. Imediatamente, comecei a rir também.
E logo dançava novamente com eles.
— Espere Rebecca ficar sabendo dessa! Ela não vai deixar em paz! — Phill gargalhou mais.
— Venha cá, nossa querida amiga "lésbica". — Rapha abriu os braços para mim, me chamando com as mãos.
— Eu odeio quando vocês fazem aspas nos ares, principalmente quando é pra me chamar de amiga lésbica. — disse, emburrada.
Virara realmente um costume entre a comunidade gay me chamar de amiga "lésbica", fazendo as aspas. Alguns iam além, como Rapha, e diziam minha melhor amiga "lésbica", ou a melhor amiga "lésbica" do .
Bom saber que alguém se divertia com essa situação.
— Existem dois tipo de pessoa... — Phill começou, deixando nossa imaginação preencher o resto.
Acabamos gargalhando por alguns minutos. Ah, as maravilhas de se estar bêbada na medida certa.
— Eu totalmente ia dar pra ele hoje. Forte.
— Argh, sem detalhes! — Phill pediu. — Sexo hétero!
— Heterofóbico! — Rapha gritou, gargalhando em seguida. Então ele se recuperou da própria piada. — Nope, eu gosto de detalhes. Pode falar. O sexo é bom, pelo menos? Porque, olha, pra aguentar esse drama...
Algo estalou no meu emaranhado alcoolizado de pensamentos.
— Acho que combinamos, não é? Rainha e Rei do Drama.
— Só se ele for a Rainha! — Rapha usou seu tom mais esganiçado para ressaltar sua opinião.
Gargalhadas, novamente.
também não ia estragar o melhor dia do ano.
Acordamos com a casa quase de volta ao normal. Tia Kathy sempre contratava uma empresa de faxina para arrumar tudo no dia seguinte, enquanto ficávamos do lado de fora para não atrapalhar.
Do lado de fora igual na piscina.
Em poucos minutos, estávamos todos de óculos escuros boiando em alguma boia. , , , , Phill, Rapha e eu. de intruso, claro, mas um intruso bem aceito. Ele estava conversando tanto com Phill sobre videogames, que quase acreditávamos que ele não estava ali somente por .
E quando Rapha brincou que ia acabar perdendo o bofe, acrescentou "Devo admitir que estou tentado", fazendo todos rirem. E, talvez sem perceber, ele passou no nosso teste anti-preconceituosos.
— Ele é o primeiro hétero que eu gosto. — Rapha sussurrou, recebendo o meu olhar arqueado. — Depois de você, amor, é claro. Você meio que não conta mais, né. E não é macho, porra. Eu tava falando de macho!
— Da próxima vez, especifique. Eu tenho sentimentos frágeis.
Ele mandou a língua, resmungando um "Boba!" infantil, em seguida. Rimos, obviamente.
Não fiquei por muito tempo, precisava ir para casa para conversar com meus pais sobre o presente de aniversário de Aimée. Eu sabia o que ela queria, mas ela nunca diria aos nossos pais.
Então, como ótima irmã mais velha - ou péssima irmã tentando se desculpar pelos erros passados -, eu o faria.
Cheguei em casa na hora certa; nas tardes de sábado, Aimée fazia aula de corte e costura. Algo que eu considerava como puxa-saquismo até descobrir que ela fazia peças de roupas incríveis. E eu fui descobrir só quando ela esqueceu alguns desenhos em cima da cama.
Aimée ficou tão envergonhada que eu quis apertar suas bochechas até elas ficarem sem cor. E então ela mostrou uma jaqueta que havia customizado, e perguntou se eu a usaria.
Obviamente, guardei para usá-la em seu aniversário. Por mais que eu quisesse usar todo dia, toda hora, porque esse é o estilo de irmã que eu sou.
Não tinha como não ser, também. Sofri muito durante os anos de gelo - aqueles nos quais Aimée me odiava.
Encontrei Richard e Donna na sala, vendo um filme de época.
— Eu descobri o que Aimée quer de aniversário.
— Diga de uma vez, Sherlock! — papai pausou o filme e eles me encararam.
— Estou tentada a fazer uma enorme observação, agora, fazendo vocês seguirem toda a linha lógica para descobrirem o que eu já sei. Hmm.
. — Donna repreendeu.
Argh, por que sempre tão sem graça?!
— Certo. Ela quer participar de um acampamento medieval. Eu pesquisei um perfeito, com ótimas recomendações e diplomas de verdade, reconhecidos! Cavalgar, usar uma espada, o arco e flecha... Tudo! Sete dias de duração, ela ia amar! — estendi a pasta para Richard, e Donna a afastou imediatamente.
— Nem pensar.
— Mas você nem olhou!
— Senhora.
Tentei não revirar os olhos. Ok, falha minha, vamos de novo:
— Mas a senhora nem olhou!
— Não preciso. Ela não quer mesmo isso, é absurdo! Por que Aimée teria vontade de participar de uma coisa dessas? É... Grotesco!
— Ela leu sobre, e tem vontade de aprender mais! É totalmente seguro, e as vagas são sempre preenchidas igualmente entre garotas e garotos. Com alojamentos separados. Segurança, instrutores, tudo. Olhem a pasta!
Richard, dessa vez, conseguiu pegar a pasta.
— Vamos olhar, . Certo, querida?
— Como você sabe que essa é a vontade dela? Como sabemos que não é você quem está impondo seus gostos... Exóticos... Em Aimée?
Bufei, ofendida.
— Porque eu não sou você, mãe. Eu não imponho as minhas vontades a ninguém. — caminho errado, ia acabar falando muitas coisas ruins sobre minha mãe e estragar de vez as chances de Aimée. Corrigi o mais rápido que pude. — Ela pesquisa sobre esses acampamentos todo dia, é só passar em frente ao quarto dela na hora certa pra ver, sem querer. Tenho que atender meu celular, agora. Ela quer isso. Pensem bem. Ia ser um presente fantástico. Eu vou junto, se vocês ficarem mais inclinados a aceitar assim e, mais importante, se ela quiser, mas ela tem que pedir.
Eu havia mentido sobre o celular, só queria sair da sala antes que falasse mais algo que fosse atrapalhar a decisão deles somente por birra de Donna, mas meu celular começou a vibrar, tocando de verdade. E era um número desconhecido.
— Alô?
"? ?"
— Sim... Quem é?
"Sou namorada da Becky e preciso falar com você. Estou na porta da sua casa, acho. Espero. Por favor, é urgente."
Becky.
Urgente.
No segundo seguinte eu estava na porta, antes mesmo de desligar o celular, com todas as sensações ruins que eu vinha escondendo me inundando de uma vez. Como uma avalanche de maus pressentimentos sobre o meu pobre e indefeso peito.
No fim dos degraus estava uma garota loira, de cabelos compridos e enrolados. Ela tinha um bronzeado que eu nunca conseguiria adquirir nem em duas vidas, mas seu rosto era de uma palidez doentia. Seus olhos castanhos estavam vermelhos e com olheiras. Ela parecia cansada.
— Então você é a famosa . Prazer, sou Evelyn.
Fiquei parada, sem achar palavras para formar uma frase. Ela própria parecia ter usado muita força pra dizer algo.
— O quê... A Becky... Onde...
— Não surte, eu sei que fiz errado e ela vai me odiar por um bom tempo, mas a Becky precisa de você.
Andei até ela, sentindo toda a minha força ir embora a cada passo que dava.
— O quê... Só me diz o quê, por favor...
Evelyn me olhou nos olhos por alguns segundos, o que pareceu uma eternidade.
— A Becky tá internada em um hospital. Ela vem combatendo um câncer no cérebro há um mês. A operação está marcada pra amanhã.
Não existe descrição dramática o suficiente para descrever o que eu senti. Balbuciei algumas coisas, como "Phill" e "avisar os outros", e Evelyn provavelmente disse que não devíamos fazer isso, mas não consegui processar os motivos.
O mundo não girou e nem ficou lento, sequer pareceu cair sobre mim. Eu simplesmente não prestava mais atenção nele.
Voltei para casa e Evelyn provavelmente me seguiu até a porta. Foi onde eu a encontrei quando desci a escada novamente, com uma mochila nas costas. Parei na porta da sala.
— Preciso sair. Uma amiga... Depois eu ligo explicando.
E, quando saí da casa, Evelyn encontrou meu olhar novamente; o que eu vi em seus olhos foi pura compreensão.
— Eu sei que você gosta dela tanto quanto eu, mesmo que de forma diferente. Ela não sabe, mas você também ama.
Eu senti que devia dizer algo como "Não entenda errado, somos só amigas", mas pareceu ridículo. Evelyn sabia, eu não precisava dizer nada. Seria subestimar sua inteligência. Seria o mesmo que dizer o quanto Becky era especial; ela sabia. Afinal, era a namorada dela, não era? Era o mesmo que ela própria dizer isso pra mim. Eu era sua amiga, eu sabia o valor de Rebecca. Se ela dissesse isso para mim, eu me sentiria ofendida. Falar sobre isso seria outro caso, plausível, mas não se aplicava ao momento.
— Obrigada. Por vir.
Evelyn sorriu, o máximo que alguém na situação dela poderia sorrir.
— Não tem o que agradecer. Eu a amo. Eu sei o que é bom pra ela.
Senti as primeiras lágrimas caírem, e a enxurrada foi inevitável. Perguntei pra mim mesma se Evelyn sabia que esse choro era, em parte, por gratidão.
Por alguém dar a Rebecca a atenção que ela merecia. Por esse alguém ser tão incrível, e por ter me procurado mesmo sabendo que Becky provavelmente brigaria com ela por isso.
A viagem demorou mais do que eu esperava, talvez a ansiedade e angústia tenham contribuído para isso. Quando chegamos, Evelyn não saiu do carro.
— A família dela não me aceita. Prefiro não abusar.
Abri a boca para exclamar em horror, mas de nada aquilo adiantaria. Ao invés disso, fechei-a novamente e engoli em seco.
— Verei o que posso fazer.
Evelyn riu.
— Ela disse que você era a maior defensora dos fracos e oprimidos que existia sobre a face terrestre.
Deixei um grunhido escapar, mas já sorria.
— Se com isso ela quis dizer que eu tenho bom senso, é, eu descubro cada vez mais que tenho um excesso disso, mesmo.
Entrei no hospital decidida sobre o que faria sobre os pais de Rebecca, mas fraca quanto ao resto. Será que aguentaria ver Becky internada? Prestes a passar por uma cirurgia? Eu seria tão forte quanto ela precisava? Provavelmente não, e ela sabia, por isso não havia dito nada.
Meu rosto esquentou, e percebi que estava brava. Como ela podia ter pensado isso? Que seria melhor não a vermos? Não ficarmos sabendo, ao menos? Queria dar tapas na cabeça dela até minha mão arder, mas, claro, não podia fazer isso. Câncer no cérebro. Quais eram as chances... Quão arriscada seria a cirurgia?
Resisti ao impulso de procurar no Google. Estava num maldito hospital. Encontrei uma enfermeira dando sopa (na verdade, ela comia sopa, mas meu cérebro não resiste a esse tipo de piada ruim), e me fingi de perdida.
"Fingi", sabem.
— Moça? Posso ajudar?
— Ah, não, imagina, você está comendo!
— Posso fazer os dois. — ela era ruiva, percebi pelas sobrancelhas. Seu cabelo estava todo escondido embaixo de uma touca branca. Sorri, deixando o desespero transparecer.
— É que eu acabei de chegar e... Uma amiga está aqui, mas ela não disse que estava... Doente, sabe? Vieram atrás de mim, mas ela não sabe.
— Hm, qual o nome da paciente?
— Rebecca. Rebecca...
— Montgomery! Sim, a Becky! Que bom que alguém veio! Tentei conversar com ela, mas a garota tem uma opinião inquebrável.
Ri, fraco, mas ainda assim uma risada.
— A própria, sem dúvidas. Você pode me explicar o que ela tem? Porque sei que ela não vai dizer a verdade.
— É benigno. Rebecca notou algo estranho porque começou a sentir dores de cabeça incomuns. Ela foi ao médico bem há tempo, mais alguns meses e ela teria começado a perder a visão lateral. O que seria horrível para o handball e a bolsa que ela precisa pra fazer faculdade.
Um peso enorme evaporou, me fazendo perceber o quão preocupada estava. Era benigno.
Fiquei algum tempo em silêncio, sem saber o que dizer.
— Por isso ela não quis alarmar ninguém, é uma cirurgia no cérebro, mas o médico é sensacional e, se Deus quiser, ela estará nova em folha depois de amanhã. Sem sequelas.
— Obrigada.
— Sem problemas, querida. Sabe o quarto?
Mostrei o papel que Evelyn havia me dado. A enfermeira assentiu, piscando em seguida.
— Faça-a sorrir. Pensar em outras coisas. Por mais que ela seja forte, cirurgia assusta qualquer um.
— Pode deixar. Vou tentar.
— Algo me diz que você é uma das poucas pessoas que pode conseguir, já que foram atrás de você contra a vontade dela.
Desejei que ela estivesse certa. Já havia passado da hora de eu retribuir alguma coisa por tudo que Rebecca havia feito por mim.
E ela havia feito tanto. A que eu era quando pisei na Ferdinand a primeira vez...
Enquanto procurava o quarto certo, entrei no wifi do hospital. Sabia como faria essa entrada. Becky sequer lembraria que devia estar brava com alguém.
Encontrei seus pais no corredor do terceiro andar, tomando um café. Eles ficaram surpresos ao me ver, mas felizes.
, que bom que você veio!
— Como...
Eu simplesmente sorri. Eles se entreolharam.
— Alguém que ama e se importa tanto com a Becky que não liga de a contrariar. Alguém que devia estar aqui dentro, também.
Eles encararam algum ponto distinto, e esperei que suas cabeças estivessem sendo sensatas enquanto ia em direção ao quarto.
Dei play no spotify. Deixei Destiny's Child tocar, "Survivor", um tempo antes de entrar no quarto. Dançando, é claro.
— Caramba! — Becky desatou a gargalhar.
Não sei por que, eu estava dando muito "Beyoncé realness" ali.
Quando minha performance acabou, Becky tinha lágrimas nos olhos. E eu tinha certeza que elas eram de rir.
— Como você tem esses momentos?
— Não sei, eles simplesmente me acometem, e não há nada que eu possa fazer quanto a isso.
Rimos juntas, e sentei na cama com ela. Becky parecia bem, tirando as olheiras e sua pele ligeiramente mais pálida que o normal.
— Vamos fazer assim, eu não te bato e você não fica brava. E encerramos o assunto.
Becky demorou para responder, mas acabou sorrindo.
— Vai, me abraça de uma vez.
Obedeci sem precisar processar o pedido.
— Então... Você tem uma namorada.
— Não vai ficar com ciúmes, vai? Eu não ia te esperar pra sempre, baby. — Rebecca provocou, com seu sorriso ladino e olhar de descaso.
Gargalhamos.
— Eu gostei dela. No pouco que a conheci, eu realmente gostei dela. Ela devia estar aqui dentro.
Becky somente sorriu, seu olhar tão carregado de amor que foi como levar um soco no estômago.
— Ela sabe que incomoda a minha família, então prefere ficar lá fora. Dá pra vê-la da janela. Meus pais não disseram nada, sabe, mas eles também não disseram o contrário. Não a convidaram, sabe. É difícil. Eu não estou realmente no clima pra debater isso. Todos esses remédios... Vão cortar meu cabelo amanhã cedo. Raspar, digo.
— Cry me a river. — zoei, fazendo-a rir mais. Rebecca sempre tivera vontade de raspar o cabelo, só não podia. Seria um escândalo. Agora ela era obrigada. — Vai ficar incrível.
— E ainda vai ter uma cicatriz!
— Oh, deus, você ainda vai sair em público comigo, né? Ou vai ser legal demais pra isso?
— Totalmente vai ferrar com a minha nova imagem, mas você vale o sacrifício.
— Merda. Quero te abraçar de novo.
— Então, abrace, seu pedacinho de merda sentimental.
— Ouch? Não, não me ofendi. — dei de ombros e abracei Becky, fazendo-a rir levemente.
Como se não tivesse preocupação nenhuma no mundo. Como se não estivesse super medicada, numa cama de hospital, esperando para passar por uma cirurgia.
— Deus, ainda bem que você veio. Teria sido muito pior se Eve tivesse ido atrás do Phill. Ele estaria encharcando a minha roupa.
— Que, aliás, é muito sexy. Camisola? É da Victoria's Secret?
— É. De seda. Especial, parece algodão ruim, mas é seda.
Rimos.
Só paramos quando os olhos de Rebecca se distanciaram levemente de mim, e ela pareceu surpresa. Sem palavras. Virei-me para ver o que havia pego a sua atenção.
Eram os pais dela, na porta. Com Evelyn.
— Olha só quem achamos no estacionamento, passando frio. — o pai de Becky sorriu, indicando Evelyn com as mãos.
— Querem algo, meninas? Estamos pensando em pedir pizza para a janta. — era quase natural, como se Evelyn não fosse um incômodo para eles.
Era pra se reconhecer o esforço. Mesmo que, pra início de conversa, não devesse ser um esforço.
Também não vamos ignorar o mundo real etc.
— Eu posso comer pizza? — Becky perguntou, incerta. Provavelmente mais incerta sobre a atitude dos pais do que sobre a pizza.
— Teremos o cuidado de não deixar ninguém ver. — seu pai falou em um tom brincalhão.
E então eles se foram. E Evelyn ficou. Tivemos um minuto de silêncio, e eu era a única que sorria. Olhava de Rebecca para Evelyn e de volta para Rebecca, esperando-as reagirem. Rebecca finalmente balbuciou algo.
— O quê...
— Foi ela. Ela fez algo. — Evelyn apontou para mim, na hora.
— Eu? Jesus, sou inocente. Eu não fiz nada. — ergui as mãos em rendimento.
— Eles foram até você? — Becky perguntou, parecendo ainda processar o que tinha visto.
— Eles vieram direto até mim, e disseram que eu não devia ficar no estacionamento. Sua mãe disse que eu deveria estar aqui, com você. Seu pai se embolou, e foi muito fofo o jeito como ele disse que eles eram antiquados, mas queriam o bem de qualquer pessoa que amava sua filha. Eles pediram desculpa por terem me feito sentir como um incômodo. Coisas assim, não me lembro de tudo, estava em choque.
Becky começou a gargalhar, e lágrimas rolaram de seus olhos. Evelyn a seguiu.
— Então eu fiquei sem par pro Baile. — comentei, distraída.
— Não me diga que não vai com o panaca do . Ele não te convidou? Porra. Eu fico tentando dar outra chance pra esse cara e ele continua pisando na bola. Odeio esse moleque. Ele parece mais maduro que os outros babacas, mas, meu Deus, as coisas que ele faz! — a última frase foi dirigida para Evelyn.
— Você perdeu ele com ciúmes de você na festa de Halloween da . — disse, lembrando do acontecimento.
— Ah, não... Não, não me conte mais nada. Mentira, conta sim! O que aconteceu? Como??
— Valerie aconteceu. — arregalei os olhos, balançando a cabeça negativamente. — Ela decidiu que o vai com ela no baile, e tentou me cutucar perguntando com quem eu ia. Daí eu disse que ela sabe que não me importo com isso e, como sempre, eu iria com você. Ou com a minha irmã, para ela descobrir aonde vai se meter.
— Podemos ir em trio. — Evelyn deu de ombros. — Me sinto mal separando a dupla dinâmica do Baile de Inverno!
— Oh, isso sim daria assunto praqueles cabeças ocas. — comentei, chocada somente com a perspectiva. — E nós faríamos um trio incrível.
Seria incrível.
Porém, apesar de não acreditar em Bailes, eu realmente não queria estragar o Baile delas.
Rebecca ainda ria de , mas enfim secou suas lágrimas e disse:
— Muito gentil da sua parte, amor... Mas espero que isso não tenha nada a ver com a beleza irresistível de . Se você me trair com ela, eu não vou sobreviver.
— Oh, então você não tem medo de cirurgias, mas de me perder pra sua melhor amiga gata você tem? — Evelyn apoiou as mãos na cintura.
— Basicamente. — Becky respondeu, curvando os cantos da boca para baixo.
— Como se eu fosse estragar um casal maravilhoso que nem vocês. Quero colocá-las numa caixinha de vidro e guardar pra sempre, por favor. Resistam aos seus impulsos, a minha sensualidade não vale a relação de vocês.
Evelyn deixou um "Eu gosto dela" escapar entra as risadas.
Quando os pais de Rebecca voltaram com a pizza, todos se posicionaram em volta da cama para jantar. As pizzas ficaram na mesinha da cama, o que fez Rebecca se sentir momentaneamente a Rainha da Pizza.
Depois do choque inicial, os pais de Rebecca pareciam estar realmente lidando bem com a situação. Eles perguntavam sobre nossos estudos, festas, amigos. Acabamos dividindo memórias engraçadas, inclusive Evelyn, que tinha um irmão muito mais novo que estava em uma fase terrível. E ela não ajudava muito. Era arte por toda a casa, todo o tempo.
Liguei para os meus pais e expliquei o que havia acontecido, e que passaria a noite no hospital. Eles foram incrivelmente compreensivos. Quando voltei pro quarto, Rebecca estava contando para Evelyn sobre a minha entrada triunfal.
— Eu ouvi a música tocando no corredor e pensei "Que louca está ouvindo Destiny's Child no corredor de um hospital?", claro que eu devia ter adivinhado.
— Culpada. — levantei a mão, abaixando a cabeça enquanto voltava a sentar.
E fomos assim noite adentro. Acabei adormecendo na mesmo cadeira, com a cabeça apoiada na cama de Rebecca, horas depois dos pais dela terem se retirado. Eles se ofereceram para pagar um quarto no hotel ao lado, mas eu estava bem assim. E não era agora, que ela era aceita ali, que Evelyn ia escolher deixar o quarto.
Eu tive um sonho bem esquisito envolvendo com sua fantasia de Halloween, Valerie e gremlins. Nós nos beijávamos loucamente ( e eu, não Valerie e eu ou nós três), e Valerie aparecia para dizer que a gente não podia ser feliz nunca. Aí entrou o exército de gremlins.
Logo eu acordava, no susto. Balancei a cabeça negativamente e voltei a dormir.
Na manhã seguinte, foi tudo um pouco tranquilo e caótico ao mesmo tempo. Todo mundo fazia o máximo para não incomodar Becky. E para não parecer nervoso. E para ser corajoso, por Becky.
Assim que ela entrou para a cirurgia, algumas lágrimas rolaram. Em uns mais, em outros menos. A enfermeira ruiva passou por nós, sorrindo seu melhor sorriso de "vai dar tudo certo" antes de passar pela porta também.
Foram as horas mais longas da minha vida, com certeza. Foi como se nunca fosse acabar, e não é como se eu pudesse abrir um livro e ler até aquilo acabar. Não sei nem se conseguiria ler.
Então acabamos, Evelyn e eu, dividindo o sofá, com as cabeças quase encostadas enquanto encarávamos o teto.
— Eu gosto do jeito como ela fala de você. É como se ela fosse a sua mãe.
— Oh, ela não é nada como a minha mãe.
— Ela também disse que você tem essa mania de ser literal demais mesmo quando entende a figura de linguagem.
— É, mas eu faço isso só para irritar as pessoas.
Evelyn deu uma risada curta que fez seu corpo balançar um pouco.
— Ela me contou também sobre como vocês se conheceram. E como ela sempre te cantava.
— Ainda acontece, de vez em quando. Mas agora é mais como elogio. Eu demorei pra entender que a intenção dela era só aumentar a minha autoestima, que sempre foi meio... inexistente.
— Sim. Eu disse que não sentiria ciúmes se ela me dissesse que não era pra sentir, mas ainda assim ela quis me contar tudo. Foi ai que eu percebi o quão importante você era pra ela. E o quão importante eu era, se ela precisava tanto que eu gostasse de você.
— Eu soube de primeira vista que você era uma pessoa inteligente. De verdade.
— Obrigada. — ela corou um pouco. — Ainda mais vindo da melhor aluna da Ferdinand.
— Nah. Eu aprendo devagar. Ainda estou aprendendo. Eu mesma só fui perceber o quanto ela se importava comigo no primeiro Baile de Inverno... Eu não tinha ninguém pra ir, e, na verdade, não ia. Nunca ia nessas coisas na escola antiga. Rebecca ficou escandalizada. Ela disse que a sapatão era ela, e até ela ia colocar um vestido e uma maquiagem exagerada e dançar a noite toda. Ela disse que era uma festa entre amigos, o resto não importava. Eu disse que não tinha amigos. Ela disse "Você tem a mim, e eu não vou deixar você ficar em casa sozinha se lamentando", então acabamos meio que indo juntas, porque ambas não tínhamos par. O que acabou gerando murmuros. E, claro, Becky mandou todos se foderem quando a patrulha anti-homossexualismo veio dizer algo. Ela disse que a culpa não era dela se nenhum garoto era corajoso o suficiente pra me convidar. Ou pra ser no mínimo legal comigo. E ela estava ali como amiga, e que nós tínhamos o direito de aproveitar o Baile como amigas sem um bando de babacas preconceituosos vir estragar nossa festa. Eu fiquei muito espantada, porque ela estava tentando me defender, e não precisava. Eu a peguei pela mão, os mandei cuidarem da própria vida, que o que eu fazia era problema único e exclusivo meu, e saí pra pista de dança. Foi aí que nossa amizade começou, mesmo.
— Você é provavelmente a minha segunda pessoa favorita no mundo, e eu te conheci pessoalmente só 24 horas atrás.
— Também gosto de você, obrigada, mas talvez você goste de mim porque só me conhece a 24h. — rimos daquele modo fraco, sem vida. — A coisa com a Becky... Eu acho que ela viu o quanto eu me prejudicava por tentar me diminuir em tudo. Eu... Eu sempre tive tanto medo de ser que nem as outras crianças na Holliang, que eu só queria fazer o oposto em tudo. Eu não queria ter nada a ver com eles. Já me bastava meus pais serem ricos. Então eu me excluí, em tudo. Depois que eu entrei na Ferdinand... Todos me ajudaram muito, mas Becky... Ela foi me ajudando sem dizer que eu tinha que mudar, sabe? Porque eu sou muito cabeça dura, quando me dizem que eu tenho que fazer algo é como se meu cérebro me impedisse de fazer esse algo. Pra sempre. Becky me mostrou que podia ser diferente, que eu podia ser mais feliz. E isso eu realmente demorei pra perceber. Acho que ainda estou percebendo.
— Você está tentando me fazer amá-la mais? Porque eu já amo tanto que dói. Por favor, pare.
Gargalhei.
— Mas e vocês? Ela não me disse...
— Ela não disse pra ninguém. Becky é um tanto... Cética. Não queria estragar nada contando para os outros. Na verdade ela ia contar pra vocês no Baile. Chegar comigo e tal. Estava planejado, antes de descobrirmos o câncer... — Evelyn rapidamente mudou de assunto. — Eu estava na negação antes de conhecê-la, na verdade. Acho que só aceitei que era lésbica depois que vi Rebecca. Meio que não importou mais, cada célula do meu corpo parecia pulsar por ela. Como se sem ela meu corpo fosse ficar sem vida.
— Pare, antes que eu comece a chorar.
Evelyn riu fraco.
— Eu trabalho em uma loja de CDs, mas de tarde. Becky sempre ia de noite, quando ia. Um dia eu tive que ficar um pouco mais, porque o funcionário da noite se atrasou. Seis meses atrás. Eu a atendi, no caixa. Estava um pouco nervosa porque fiquei espantada com a atração que senti por ela. Falei qualquer coisa idiota sobre o DVD que ela estava comprando, era do Paramore. Ela disse que era pra uma amiga. — Evelyn parou para me olhar profundamente. Soltei um "ah!", porque a amiga era eu. — Daí ela disse que nunca tinha me visto ali, eu expliquei que trabalhava de tarde. Ela disse "Ah... Bem, obrigada. Até a próxima, Eve", pegou a compra e foi embora. Não sem me olhar de novo antes de sair, claro. Eu senti meu corpo todo tremer. Ela viu meu nome no crachá, óbvio, mas me chamou de Eve. Achei que fosse morrer. Queria ir atrás dela e beijá-la, na hora. Pensei que estivesse enlouquecendo. Eu decidi que ficaria até mais tarde todos os dias, então me achei idiota por isso. Tentei esquecer. No dia seguinte, ela foi à loja de tarde.
— Acho que eu vou morrer de fofura. Sério. Acho que vou fazer um livro sobre vocês, por todos os deuses, que maravilhosas. Só pra te situar, eu não escrevo livros. Mas, por vocês, escreveria. — umas lágrimas teimosas realmente rolaram pelo meu rosto. Queria abraçar Evelyn.
E a abracei.
Ela riu um pouco e me abraçou de volta. Quando nos separamos, estávamos ambas vermelhas e com os rostos úmidos. Uma cena bem patética.
Um grito abafado interrompeu nosso momento. Olhamos imediatamente para a mãe de Becky, que olhava para a porta. Olhamos para a porta, e lá estava a enfermeira ruiva.
— Podem relaxar, queridos. A cirurgia foi um sucesso, logo menos Becky estará na UTI. Infelizmente, só parentes são permitidos, garotas.
Nós nem a agradecemos. Os pais de Becky já se abraçavam e os avós comemoravam com os braços pro ar, enquanto eu suprimia um grito e Evelyn me abraçava novamente. A enfermeira sorriu e deu as costas, mas eu consegui mandar um "Obrigada!" meio enrolado antes dela voltar ir embora. Os outros também agradeceram, em seguida.
Senti uma vontade absurda de soltar fogos de artifício.
Becky foi acordar muitas horas depois, e seus pais deram um jeito de conseguir enfiar uma pessoa de fora no quarto. Eles deixaram a gente escolher quem ia, e claro que eu deixei Evelyn ir, desde que ela prometesse entregar um beijo meu.
"Na testa, claro, nada de boca."
Evelyn, que era muito mais esperta do que eu, pegou o celular e ligou o gravador de áudio. "Ela pode ouvir, desde que eu coloque os fones."
Esperei o horário de visitação acabar, e Eve voltou com um recado de Becky. "Ela disse: Vai pra casa, sua cabeça oca, nos vemos em breve. Te amo. Obrigada."
Senti como se meu sorriso fosse rasgar meu rosto.
Evelyn me levou de volta para casa, e dessa vez a viagem foi muito mais leve e feliz.
Eu não fazia ideia do quão prejudicado poderia ficar o meu humor naquela segunda-feira. Depois de passar por uma montanha-russa de emoções e dar tudo certo com Rebecca, achei que nada poderia estragar o meu dia.
Eu dirigira para a escola ouvindo "Walking on Sunshine" o caminho todo.
Aimée aceitou ir comigo ao Baile, mal contendo sua empolgação enquanto saltitava por todo o quarto antes de sairmos de casa. Ela não estava mesmo pensando em ir no Baile do Middle School.
E eu tinha um plano perfeito pra acabar com a "frescurite" de . E livrá-lo das garras de Valerie, se ele quisesse.
Mesmo se fosse uma segunda-feira das antigas, com carona de Donna, cheia de sermões, não teria sido tão ruim quanto o que me esperava na Ferdinand.
Senti como se nunca tivesse deixado a Holliang. Todo o preconceito estava ali, também. Talvez escondido por entre panos, mas agora havia aflorado, sendo posto em cada uma das árvores do jardim em forma de cartazes. Não eram sequer folhas comuns, eram grandes, como cartazes que usavam para fazer propaganda de algum candidato a representante de sala ou... Ou dos candidatos a Rei e Rainha do baile.
O maldito baile de inverno.
Não fiz questão de olhar cartaz por cartaz, já havia visto rostos conhecidos o suficiente. E eu não acho que se fossem desconhecidos eu iria me importar menos, mas um rosto em especial fez o meu sangue borbulhar de tal forma que eu não poderia responder pelos meus atos se continuasse ali. Achei que me movia devagar, mas cheguei ao prédio com uma rapidez impressionante. Provavelmente porque minha cabeça estava em outro lugar, e eu sequer vi o que fazia.
Podia ter me teletransportado.
Só havia uma coisa que podia estragar o meu bom humor depois do sucesso que fora a operação de Becky, e isso era ver o rosto da mesma em um ridículo cartaz homofóbico logo na entrada da escola.


Capítulo 32 — Run for the hills before they burn! Listen to the sound of the world, watch it turn, but shake a little!

(This River Is Wild — The Killers)

Andei mais devagar depois que entrei no prédio, não de propósito e sim porque cada passo parecia fraco, torto, errado. Havia um peso gigantesco sobre o meu peito, dificultando as coisas para a entrada de oxigênio no meu cérebro. Cheguei até o meu armário, ou até o armário de alguém, e me apoiei com uma mão.
Em seguida, com as duas.
O corredor estava vazio, que era o que acontecia em dias bonitos. Todos entravam somente no último minuto, e ainda era cedo pra isso. Estavam todos lá fora. Lá, fora.
Pensei nos cartazes com os rostos dos meus melhores amigos, com coisas horríveis escritas sobre eles. Senti ânsia.
Minha visão estava turva, perdendo o foco. Concentrei meus esforços em respirar com calma e profundamente.

*

Decidi que metade de uma garrafa já era água o suficiente para a primeira aula assim que a vi entrar no prédio.
Abaixei o olhar, ignorando-a.
O bebedouro estava especialmente lerdo hoje. E eu estava especialmente chateado com , especialmente por ela estar tão tranquila quanto ao Baile de Inverno.
E o nervosismo me faz ficar usando a mesma palavra muitas vezes seguidas, ok.
Talvez o meu real problema fosse com a reação que eu tive na festa.
Sinceramente, eu.
Não queria encará-la porque não sabia como agir.
Então, demorou um pouco pra eu perceber que algo não estava certo. Notei que ela se apoiava nos armários com as mãos, mas até aí ela podia simplesmente estar cansada. Ou brava. Pra variar.
Isso, . Finja que não a ama perdidamente, omita que nada nela é um defeito pra você.
Mas aí ela virou, apoiando as costas nos armários, e vi que seu rosto estava lívido. Branco como uma folha de papel. Seus olhos estavam fechados, mas aparentemente nem isso ela conseguia fazer, deixando-os levemente abertos. Parei de lutar com o bebedouro.
— Hey, tá tudo bem?
Ela pareceu nem me ouvir. Tentei de novo, mais alto.
?
Ela foi escorregando até o chão, e aí sim eu me movi, correndo até ela com medo de que batesse a cabeça em algo, como os cadeados dos armários, ou até o chão, se ela tombasse. Cheguei a tempo de mantê-la apoiada nos armários, percebendo que ela teria sim tombado em seguida se eu não estivesse ali.
? O que foi? Tá me ouvindo?
— S... Ss...
— O que é? Você parece que vai desmaiar? Tem pressão baixa?
— Óxi... Oxigênio...
, respira.
Ela estava tentando, mas fazia um esforço absurdo para respirar e aparentemente pouquíssimo ar realmente era puxado. Como em um ataque de pânico, mas ela provavelmente tinha apenas pressão baixa. O dia estava quente, perfeitamente normal.
— Eu... Cor...
— Não fala nada, você vai apagar. Licença?
Pedi por educação, porque ela mal estava me vendo. Seus olhos não abriam completamente e sua cabeça não se sustentava. As gotas de suor no rosto dela foram o sinal pra mim, só tinha um jeito de impedir que ela desmaiasse. Ou um jeito dela voltar rápido, se desmaiasse.
Deitei seu tronco no chão com facilidade.
Seu corpo estava todo mole. Ela balbuciava palavras incompreensíveis, quase sem emitir som.
Olhei ao redor, buscando por ajuda em vão.
Ninguém, claro. Tirei a camisa preta, ficando somente com a minha blusa banca, e molhei um pouco dela com a água que havia acabado de pegar. Tentei refrescar um pouco , mas isso não ajudou muito. Poderia carregá-la até a enfermaria, mas isso demoraria muito. Ela precisava de oxigênio no cérebro, então era só eu mandar mais sangue para o seu cérebro — e você pergunta: como? Levantando suas pernas.
E quem disse que aula de Biologia não serve pra nada? Mantendo as pernas dela no alto, mais sangue iria para a sua cabeça e assim ela acordaria.
Que interessante seria se todos decidissem entrar no prédio naquele momento.
Tentei fazer vento com a camiseta enquanto isso. E, milagrosamente, em alguns instantes ela abriu os olhos. Demorou mais um pouco, mas enfim ela conseguiu focar o olhar em mim.
— Qual o seu nome? — perguntei.
...
— Não, errado.
Ela grunhiu.
Fucking . A esquisita que desmaia no meio do corredor porque esqueceu de respirar. — sua voz era fraca, mas ela saiu sem interrupções.
Ok, ela se recuperou com uma rapidez admirável. Desci suas pernas, e ela ficou deitada algum tempo antes de pedir ajuda pra levantar. Sua cor estava voltando.
— Você esqueceu de respirar? Isso é impossível, sabe...
— Esquecer, sim. Bloquear inconscientemente por causa de nervoso, não.
Acabei rindo, imaginando que tipo de nervoso ela poderia ter passado pra chegar a desmaiar, mas o olhar que recebi me fez reconsiderar. Talvez algo sério tivesse realmente acontecido.
— O que aconteceu?
— Você não viu? — sua voz, apesar de baixa, tinha um tom agudo de exasperação.
— O quê?
— Lá fora? Nas árvores?
Recapitulei o momento em que chegara à escola, mas não consegui lembrar-me de nada em especial no caminho. Muito menos algo nas árvores. As árvores estavam normais, como sempre.
— ... Não.
— Há quanto tempo você tá aqui dentro?
— Faz algum tempo. Mais do que meia hora, eu quis chegar cedo... — deixei a frase morrer. Eu quis chegar mais cedo para não dar a chance de ficar a sós com ela. Se possível, ficar o mais longe possível dela.
Ela entendeu, e desviou o olhar para a porta na sua tentativa de desviar a atenção para fingir que não sabia onde aquela frase ia parar.
Por sorte, os autofalantes da escola fizeram um barulho irritante bem naquele momento, e em seguida uma voz feminina soou pelo corredor.
"Todos os alunos, por favor dirigirem-se à quadra de esportes imediatamente. Todos os alunos para a quadra de esportes imediatamente."
— Eu vou precisar da sua ajuda.
— Não acho que eu consiga te carregar até lá.
Um riso fraco escapou de . Ela me olhou com um toque de diversão na sua expressão solene.
— Não, não preciso disso. Preciso que você me impeça de matar alguém durante o caminho até a quadra de esportes.
Ri, de novo, e de novo ri no momento errado porque a expressão dela escureceu. Pigarreei.
— Ok. E o que eu posso fazer pra impedir isso?
— Ficar do meu lado direito, impedir que eu veja as árvores. Mas o mais perigoso vai ser ouvir alguém falando algo que só vá me deixar mais brava. E dessa vez eu não vou desmaiar, , eu vou estrangular alguém.
Percebi que o chamado incomum nos autofalantes devia ter algo em comum com o motivo para ter se estressado e quase apagado. Suspirei.
— O que aconteceu?
— Você vai ver. Vamos.
Ela tirou fones de dentro da mochila, colocou-os no celular e deixou alguma música tocar no último volume. se levantou sozinha, e por alguns segundos pareceu reunir coragem para dar o primeiro passo – se era por medo de desmaiar de novo ou por medo de não conseguir enfrentar o que nos esperava lá fora, não soube dizer. Mas logo ela andava e eu estava ao seu lado, como havia pedido.
Abri a porta e passei primeiro, para tampar a sua visão.
Ela acabou colidindo em mim, provavelmente porque estava olhando para o chão ou para trás, só para garantir que não veria as árvores. Ela não contou com o fato de que eu não havia visto aquilo ainda, e a visão foi uma surpresa para mim.
Extremamente esclarecedora, mas ainda assim uma visão perturbadora.
De onde tinham surgido todos aqueles cartazes? E quem faria uma coisa daquelas?
Eram cartazes como os de candidatos a Rei e Rainha do baile, porém o conteúdo não era nem um pouco enobrecedor.
Além de rabiscarem as fotos das pessoas, ainda tinham apelidos para cada um dos rostos expostos. "Sapatão prostituta" foi o que mais se destacou, e estava no cartaz onde havia o rosto de Rebecca.
Meu corpo toda havia tensionado de uma forma que jamais havia acontecido antes.
A voz de veio como um sussurro pelas minhas costas.
— Não se esqueça de respirar.
A ironia na sua voz fez com que eu conseguisse dar uma risada sem vida, e de alguma forma meu corpo relaxou um pouco. Ela havia tirado os fones.
— Bom, não posso garantir que em vez de te impedir eu não acabe te ajudando a matar alguém.
— Você precisa pensar na figura maior, . A intenção aqui não é deixar as pessoas passarem impunes, e, sim, não acabar na cadeia por causa desse tipo de pessoa.
— Entendido.
O caminho até a quadra de esportes foi completado por passos fortes e mãos abrindo e fechando. Não quis passar o braço entorno dela porque isso daria a impressão errada – a de que ela precisava de conforto. não precisava de nada disso, sua expressão era cada vez mais determinada.
As arquibancadas estavam quase cheias, e pensei que seria melhor escolher um lugar mais vazio. Antes que eu pudesse indicar a arquibancada mais à frente, sentou no primeiro lugar que viu.
Pelo seu olhar, entendi que ela não conseguiria atravessar todo aquele mar de pessoas.
Pareceu uma boa escolha, mas ela estava sem seus fones, e acabamos ouvindo as conversas alheias. Ela fez menção de colocar os fones, mas parou no meio do caminho.
Mais ou menos ao mesmo tempo em que uma garota falou "É errado, mas talvez se eles não fizessem tanta questão de mostrar o tempo todo como são gays, isso não teria acontecido."
Vi lágrimas se formarem em seus olhos e congelarem ali.
Nem uma gota chegou a escorrer.
Seus pulsos estavam cerrados. Sua expressão era de fúria.
Não pensei duas vezes antes de pegá-la pelo braço e puxá-la para longe dali.
Ela deixou que eu a guiasse até a metade do caminho, então se soltou de mim e foi com determinação para o meio da quadra.
Parecia ter alguma coisa ali. Algumas cadeiras, talvez. Ela parou ao lado de uma das cadeiras e olhou fixo para a entrada da quadra. Segui o seu olhar, e encontrei boa parte dos seus amigos, com expressões abaladas.
Quando voltei a atenção para ela, estava em cima de uma das cadeiras, com um microfone em mãos.

*

Meu coração batia tão forte que não sentia mais nada no meu corpo. Subir na cadeira não havia sido a ideia mais inteligente, porque eu sentia como se fosse desmoronar a qualquer momento. Havia uma diferença, no entanto, daquele momento e do momento que eu entrara na escola.
Ali na minha frente estavam alguns dos rostos que não mereciam passar pelo que estava acontecendo naquele instante. A minha raiva ficou imediatamente em segundo plano, e apesar do meu coração ainda bater violentamente dentro do meu peito, meu corpo parecia mais firme do que nunca. E, com uma certa surpresa, minha voz saiu no seu tom normal, sem um único desvio de dicção.
— Com licença. Eu queria pedir silêncio, por alguns minutos. Eu sei que muitas vezes é impossível nos impedirmos de emitir opiniões escrotas e preconceituosas sem pensarmos, mas eu queria alguns minutos só pra conseguir esclarecer algumas coisas aqui.
A cena devia ser chocante o suficiente para fazer com que parassem de falar, porque mesmo que não havia entendido o que acontecia havia notado que uma aluna meio louca estava no meio da quadra, em cima de uma cadeira, com um microfone na mão. Talvez o absurdo da cena fosse suficiente para que eu conseguisse falar o que queria sem ser interrompida.
— Se possível, eu gostaria de alguns minutos em silêncio só pra deixar uma coisa clara aqui. Nós fomos convocados aqui provavelmente porque querem apontar culpados. Escolher alguém para repreender e fingir que isso resolve algo, quando isso não muda em nada o pensamento errado que temos aqui, e está bem exposto nesse momento. Por isso quero aproveitar agora para falar. Não importa quem fez aqueles cartazes, não importa mesmo quem foi a mente egoísta e limitada por trás disso, e muito menos o motivo para terem o feito, porque não existe motivo no mundo que justifique aquilo. — acabei rindo, porque era uma observação mais do que óbvia, e, ainda assim, eu estava tendo que constatá-la em cima de uma cadeira, no meio da quadra de esportes, com um microfone em mãos. — Mas deixando esse ponto óbvio de lado, eu gostaria de dizer o que realmente importa. E isso é que NENHUMA pessoa merece esse tipo de exposição. NINGUÉM merece passar por uma coisa dessas. MUITO MENOS vindo de pessoas que frequentam o mesmo ambiente que você, a maioria há anos. Aqui, nós somos alunos, e apesar de cada um de nós termos uma experiência de vida diferente, deveria existir o mínimo de solidariedade possível entre nós. É INACEITÁVEL QUE, sabendo como a rotina de estudo é sufocante, alguém ainda ache correto tornar o ambiente escolar ainda menos receptivo. É ABSURDO que alguém se ache no direito de fazer a vida de um colega de classe pior, e é INCABÍVEL QUE ALGUÉM AINDA ACHE QUE ISSO É CULPA DE QUEM FOI EXPOSTO. — respirei fundo, fixando o olhar na garota que quase me havia feito chorar. Ela abaixou o olhar, envergonhada. — EU SEI que falamos coisas sem pensar, mas o fato é que precisamos pensar. Eu não vou ficar aqui, vendo pessoas incríveis, que nunca fizeram nada de ruim pra ninguém, serem expostas e humilhadas desse jeito sem lembrar todos nós que somos todos estudantes, e, acima disso, pessoas. Um ataque desses não é só um ataque aos homossexuais, vocês não veem? É um ataque a todas as pessoas que ousam serem elas mesmas. É uma declaração repressora e clara de que vocês não podem ser quem vocês são, nunca! Porque isso vai incomodar quem se acha acima do resto da humanidade. Eu tenho uma péssima notícia pra quem fez isso: eu não vou deixar de ser quem eu sou porque isso incomoda a sua percepção limitada do mundo. E ninguém mais deveria. Eu vou ser nerd, se isso é o que eu amo, e não dar a MÍNIMA pra o que pensam! — gritos inesperados vieram do final da quadra, e demorei um pouco para perceber que não eram vaias. — Eu sei que muitos de vocês jogam RPG online escondidos, com medo dos amiguinhos ficarem sabendo. AMIGA, SE JOGA! A verdade é que ninguém dá a mínima pra você, a única pessoa que tá se importando com aparência aqui é, bem... — deixei a frase ser completada por quem era culpado. Não perdi o tempo em avaliar os rostos que me encaravam. As pessoas que tinham gritado em apoio agora riam e batiam palmas, acompanhadas por alguns outros na quadra. — Eu queria saber o que é que tem a ver as coisas, que a gente gosta, com outras pessoas! Isso sinceramente é só da nossa conta. Meter a fuça nos estudos religiosos dos outros, por exemplo. O que isso incomoda, gente? DE VERDADE? Nunca vi ninguém dos estudos bíblicos tentando enfiar a Bíblia pela goela de alguém, e ainda assim sempre tem alguma piada sobre os "maníacos religiosos". É engraçado porque não tem nada de maníaco em sentar com outras pessoas e discutir algo que todos gostam. — o grupo de estudos bíblicos não estava unido, mas cada um gritou um "É!" do seu canto. Senti um sorriso se espalhar pelo meu rosto. — E as nossas maravilhosas líderes de torcida? Porque elas são menosprezadas quando não aceitam sair com algum cara de algum time, ou tiram dez em Cálculo avançado? — eu não ia citar nomes, mas Joanne, com toda a sua beleza afro-americana, após o olhar de surpresa, ficou em pé na arquibancada e gritou um "Damn right, girl!" — É tão difícil aceitar que uma garota incrível não queira nada com você? Segue em frente, cara, tem outras garotas. E não é com essa atitude que você vai conseguir alguém incrível como a Joanne. Agora... Quem te dá o direito de maldizer alguém, né? Nós mesmos. Sim, é difícil aceitar, mas a culpa é só nossa, e isso é o que diretor nenhum vai subir aqui pra dizer. Eu mesma estou com muita vontade de xingar com todos os nomes possíveis, mas isso não me faria mais certa do que quem fez aqueles cartazes. Eu sou a última pessoa que queria estar aqui, com um microfone, falando isso pra vocês. Mas alguém tem que falar. Isso não pode continuar. Quem tem que impedir essas coisas não é a diretoria, descobrindo quem prendeu esses cartazes nojentos e punindo os responsáveis. Isso não resolve nada, próximo ano outra pessoa vai lá e faz o mesmo. Ou fazem só de ouvido em ouvido, fofocando sobre a vida dos outros. Somos nós quem não deveríamos aceitar esse tipo de tratamento vindo de ninguém. Nós podemos ser o que quisermos, mas não podemos mudar quem somos. Para sermos o que quisermos, precisamos aceitar e saber usar o que temos. E diminuir os outros ao nosso redor é a maneira mais preguiçosa e vergonhosa de tentar se sentir bem consigo mesmo. Acho que seria melhor vocês aceitarem logo quem são, e pararem de punir quem está mais do que bem consigo mesmo. Eu não estou aqui pra fazer ninguém se sentir mal, mas ao invés de ficar gritando "ooh" escondidos no meio dos amigos, eu espero que vocês entendam que ninguém devia ser inimigo de ninguém aqui. E se tem algo de errado com alguém, não é com as pessoas maravilhosas que estão expostas pela escola, e sim com quem não sabe o seu lugar. Vocês não vão conseguir reprimir ninguém aqui, desistam de uma vez. Todos temos os mesmos direitos, e é melhor vocês se acostumarem com isso.
Desci da cadeira e mirei meus amigos. Reparei que Raphael colocava as mãos ao redor da boca enquanto gritava, e a quadra ao meu redor virou um caos de palmas e gritos.
A Diretora estava na porta, olhando diretamente para nosso grupo. Ela deu alguns passos antes de chegar até nós.
— Bom, eu suponho que não haja motivos para expor os culpados, agora, mas devo informá-los que sei quem são, ao menos os que penduraram os cartazes.
— Não diga! — Rapha exclamou. — estava certa, não vai mudar nada, e eu ainda vou ter que encarar essas pessoas sabendo disso... Certamente não faria bem para o meu estômago. Ele faria questão de vomitar na cara de cada um, todo dia. Melhor não saber. — ele concluío.
— Eles seriam linchados, e mesmo que não fisicamente... O clima da escola ficaria horrível. — Phill apressou-se em dar uma explicação melhor que Rapha, enquanto os outros abafavam risos.
A cena aqueceu meu coração, fazendo o sangue voltar a circular naturalmente. Era assim que deveria ser, sempre. Pessoas risonhas, felizes. Não senti mais aquele peso desconfortável e asfixiador no peito.
Percebi que arrancaria o microfone das mãos do Presidente para vê-los assim.
Agradeci por não ter nascido na Rússia, onde isso seria um grave problema.
— Estamos dispostos a expulsar os culpados.
Houve uma troca de olhares entre todos nós. Percebi que pensavam como eu.
— O que eu falei foi exatamente contra isso. O nosso ambiente escolar precisa ser mais acolhedor, menos aterrorizador. Não vai adiantar nada apontar pessoas... Mas expulsá-las também não adiantaria nada no clima. Ainda mais no último ano.
nos alcançara, apesar do tumulto. As pessoas pareciam nem perceber que a Diretora estava ali. Ele pareceu concordar, também.
— Pois bem. — ela nos olhou uma última vez antes de sair.
Ela deu a volta na confusão para conseguir chegar ao centro da quadra. Foram necessárias algumas tentativas antes de efetivamente conseguir a atenção dos alunos. Algumas conversas ainda demoraram a morrer, mas ela esperou pacientemente.
Sua expressão solene e ao mesmo tempo irritada acabou atraindo os alunos, eventualmente.
— Eu serei direta. Nós sabemos quem são os responsáveis por pendurar os cartazes. Sabemos quem trouxe-os para a escola também. No entanto, não diremos nada, além disso: nós sabemos quem foi. Parem. Ou o resultado será expulsão, e esse só não é o resultado agora porque me pediram. Usem esse exemplo de atitude e sejam pessoas melhores uns com os outros.
Faltou somente ela soltar o microfone e deixá-lo cair no chão da quadra, mas ela não o fez. Houve uma nova rodada de aplauso, mas alguns alunos saíram com pressa, parecendo incomodados. Tentei não julgá-los, isso quem fazia eram os preconceituosos. Não queria pensar que pessoas concordavam com aquilo, ou que se sentiam incomodadas em perder aula porque algo daquele nível havia acontecido.

*

Eu sei que desmaiou e eu a ajudei, que seus amigos foram atacados e expostos de forma horrível e tudo mais. Isso não significava, no entanto, que eu estava de bem com ela. Eu ainda estava muito bravo, e o pior era que nem sabia mais o motivo.
E o Teatro não foi bem de muita ajuda nisso. Foi como se cada cena juntos ela fizesse algo a mais para me provocar. Até os beijos pareceram mais ousados, e os toques queimavam mesmo por cima da roupa.
Eu a esperei na porta um bom tempo, e ela passou direito, sem me ver. Respirei fundo, ponderando por um momento se ela fazia de propósito ou se fazia parte do jeito aluado dela.
Acabei correndo para conseguir pará-la.
me olhou confusa, entre pânico e um sorriso ladino, mas deixou que eu a guiasse.
Paramos no jardim isolado, e ela havia se decidido pelo sorriso que portara durante todo o ensaio.
O mesmo que fizera meu sangue ferver.
— Você não pode me beijar assim.
Seu sorriso virou escárnio.
— Ah é? Por quê? Como eu posso te beijar?
— Você não pode.
— Claro que posso, você é o Romeu e tal, eu sou a Julieta...
— Já ouviu falar em beijo técnico? Tenho certeza que deve ser fácil de aprender.
Ela gargalhou. E então deu as costas, e ia ir embora se eu não a tivesse segurado.
— Eu falo sério.
— Ah, porque você vai com a Valerie pro Baile? Já disse, não considero esses Bailes.
— É mesmo? — perguntei, sarcástico.
Estava aprendendo a colocar esse veneno na voz com ela. riu, e se aproveitou da proximidade que eu havia colocado e me beijou.
Incrivelmente, cedi, pego de surpresa, mas logo lembrei do que acontecia ali e a afastei. Ela suspirou, parecendo um pouco irritada e ao mesmo tempo cansada demais para se estressar.
— Mesmo. Nunca chamaria um garoto que eu gosto pra ir comigo nisso. Ou aceitaria ir com um. Nunca aceitei. Você devia se sentir honrado de eu não estar indo com você, se eu fosse é que teria algo de errado.
— E você já gostou de alguém antes de mim, pra dizer isso?
— Na verdade, sim. Mas eles eram ainda mais idiotas que você, então guardei pra mim. Pelo jeito, tenho um péssimo gosto.
É claro que me ofendeu. O olhar dela foi o pior, como se disse com todas as palavras que ela não se importava com os meus sentimentos.
— Qual é, ? A gente vai mesmo ficar assim por isso? Já disse, fala pra Valerie que foi um mal entendido.
— Você está pior do que uma patricinha mimada. Eu já disse que vou com ela. De qualquer jeito, se eu não for com ela você ainda não vai comigo. E eu não quero ir sozinho, mas muito obrigado pela consideração.
Recebi um último olhar que pareceu escárnio antes dela dar as costas e ir embora, dizendo um "tanto faz" por último.
Fiquei o resto do dia com um gosto horrível na boca. Já passavam das nove quando a campainha tocou, e eu não podia mandar abrir porque ele já havia deitado para dormir. Eu estava tendo problemas com isso, apesar de já ter deitado também.
Abri a porta, odiando a ausência de um olho mágico nela. E lá estava , parada sobre o tapete, com uma expressão fechada, de meia-calça, saia escura e... Blazer? Fiquei um pouco perdido, despreparado para agir como deveria na sua presença.
— Desculpa vir sem avisar, aliás, desculpa ter vindo, mas eu fiquei sem opções. Todos os seus amigos parecem ter decidido passar a noite com alguma amiga minha, logo, as casas que me dariam teto por uma noite se resumiram a zero. Posso entrar, ou você vai ficar me olhando de boca aberta, ? Aliás, você não deveria ser ?
Sua última pergunta pareceu a melhor linha de conversa a seguir, todas as outras teriam uma resposta um tanto rancorosa. Também não era legal ser a última opção dela, apesar de eu estar fazendo por merecer.
— Nós não somos primos realmente, mas nossas famílias são amigas há anos. — dei passagem para ela entrar, meio desanimado demais. — Fomos criados como primos. — fechei a porta e me virei para ficar de frente para ela.
— Ah. — ela pareceu sem graça, perdendo um pouco a pose dura que carregava do lado de fora da casa. — Obrigado por me deixar entrar, está meio frio lá fora.
— Tudo bem. Mas por que você não foi pra sua casa?
A expressão dela voltou a ficar dura.
— Porque foi de lá mesmo que eu saí. — ela suspirou, tentando relaxar a tensão de seu corpo. Notei que seus trajes eram muito mais finos que o normal, no sentido de serem mais caros e também no sentido literal, o que explicava o frio que ela devia estar passando. — Hoje é aniversário da minha irmã, e minha mãe fez o favor de estragar o jantar me criticando. Eu sinto compaixão de Aimée, nem no aniversário dela o assunto fica longe de mim... Era melhor quando pareciam me ignorar.
Eu não podia entender como uma aluna tão boa como tinha problemas com os pais, mas talvez eles cobrassem ainda mais dela, não sei. Tentei ser menos monstro com ela, mas só um pouco. Afinal, eu era a maldita da última opção dela.
— E , porque não foi pra casa dela?
revirou os olhos.
— Porque seu "primo" está com ela! E com , e está na casa ao lado, com . E eu não vou ficar na mesma casa que os dois agora que eles "voltaram", sabe. — ela fez todas as aspas com os dedos.
Becky. Ela havia omitido Becky. Talvez elas não fossem tão amigas, ou estivessem brigadas, ou Becky estivesse com uma nova garota, cansada de ser step de como eu estava evitando ser. Comecei a imaginar coisas demais, e senti que estava injustiçando-a um pouco.
está no quarto, deve estar com outra pessoa.
riu, mas riu com muita vontade.
— Certo. O quão sincero seus amigos são eu não sei, mas posso garantir que o único quarto que está essa noite é o de , a sinceridade dela eu te garanto. O que ele disse, que estava com dor de cabeça e ia dormir? — ainda ria. Pior que era exatamente isso que ele havia dito. — Pode conferir, se quiser. Se a porta estiver aberta.
Fiquei alguns segundos em silêncio.
— Ok, eu vou pegar um travesseiro e uma manta pra você. Prefere alto ou baixo?
— Baixo. Obrigada, . — ela abaixou o olhar para o chão e eu saí dali.
estava certa, o quarto de estava trancado. A questão era por que ele estava escondendo aquilo com tanto afinco? Podia ter dito que ia dormir fora, não precisava ter dito com quem dormiria. Mas, aparentemente, todos os nossos amigos estavam se dando bem, enquanto nós... Bem, nós estávamos daquele jeito, e pelo menos o clima de New York parecia nos acompanhar. Peguei um dos meus quatro travesseiros e abri o armário para puxar uma coberta. Encontrei-a no mesmo lugar quando desci.
— Desculpa?
— Pelo quê? — soei como se tivesse uma lista de motivos em mãos pelos quais ela podia se desculpar.
Odiei isso porque não era exatamente uma mentira.
— Por hoje cedo. Não devia ter te beijado contra a sua vontade. É errado. Não sei o que deu em mim. Acho que perdi a noção... Mas, realmente, no Teatro... Vão perceber se começarmos a nos beijar diferente.
Era verdade.
Dei de ombros, resmungando um "tudo bem".
— E Valerie. — ela suspirou, parecendo exausta. — Seria horrível você dizer agora que não vai com ela. Talvez ela só queira alguém pra ir ai baile, mesmo... Talvez ela queira ser legal, só não sabe como ainda. Quem sabe ela não empresta você pra mim, um pouco, e a gente dança uma música.
Um sorriso se formou no meu rosto antes que eu percebesse, escondi-o torcendo para que ela não tivesse visto.
— Acho que vai ser difícil. Eu sou um dançarino e tanto, ela não vai querer me emprestar.
Falei sério, mas, por algum motivo, gargalhou.

*

Não podia esquecer-me de pedir desculpas a depois... havia guardado meu segredo por um bom tempo, além de me ajudar em tudo. E , bem, era um babaca atualmente, mas eu não tinha nada que sair contando seus segredos. Não era um direito meu. Bom, não tinha como eu explicar o motivo de estar ali na casa de sem dizer a verdade. A não ser, é claro, que eu não tivesse saído de casa, pra início de conversa. Ou se minha mãe não tivesse me estressado tanto ao ponto de me fazer agir sem sequer pensar no que fazia. Mas não era do meu feitio culpar todos ao meu redor menos uma pessoa: eu mesma. Sabia que, de alguma forma, a culpa não era só de Donna.
Tudo ia muito bem até o foco da festa se voltar para mim. Obviamente, na hora da janta.
É claro que eu voltaria assim que o dia nascesse. Aquela fuga era de apenas uma noite, na esperança de recuperar a noite do aniversário de Aimée. Era o mínimo que eu podia fazer como irmã mais velha, e já que o único modo era sumir dali por uma noite... Que fosse, então. Até sem pensar eu agia melhor que minha mãe. Agora contava com meus avós paternos para melhorar a noite de minha irmã... arrumou o sofá para mim, e o que eu esperava, né, a cama dele? Já estava feliz por ele não ter batido a porta na minha cara, estava realmente uma noite fria. Mas depois da semana que tivemos, eu não duvidava que ele o fizesse. Apesar de que agora, ali, sozinha com ele, eu não lembrava dos motivos para estar vivendo o inferno que vivia. Eu gostava dele, não gostava? Mas a indiferença de a mim me lembrou do porque eu estava travando aquela guerra com ele. Uma trégua, então, de uma noite, onde eu o privaria da minha recém descoberta maldade por uma sofá para dormir. Parecia ok, e era o que tinha.
— Já quer dormir?
— Na verdade, não... Você podia não dizer ao que eu falei sobre ele e ?
Ele se sentou e ligou a TV, fazendo sinal para que eu fizesse o mesmo.
— Tudo bem. Você devia estar desesperada mesmo pra contar um segredo desses pra mim.
Assenti com um sorrisinho. Aquele que pirralhos dão quando fazem algo que sabem que foi errado. Ele riu brevemente, voltando a atenção para a TV.
— Obrigada mesmo, .
— O que aconteceu pra você sair de casa, mesmo?
— Minha mãe resolveu estragar o aniversário da minha irmã, e eu a puxei para uma conversa na cozinha. Ela permaneceu cabeça dura, brigando comigo sobre meus cursos extracurriculares e meus planos, minhas prioridades e minhas amizades, e ela usou aquela adorável frase "o que as pessoas vão pensar" e eu perdi a cabeça, dizendo que ia passar a noite na casa de alguma amiga. Eu abaixei o tom, cheguei bem perto dela e disse que era melhor ela começar a se preocupar com o que as filhas dela iam pensar, ao invés de se importar com estranhos que não deviam significar mais que suas próprias filhas. E aí eu saí.
parecia compreender, mas foi quando eu falei a última parte que ele me olhou com uma certa dor no semblante.
— Entendi. E... Tá tudo bem? Com você, quero dizer?
— Sempre tudo ótimo comigo. — sorri, parecendo um pouco amarga. Lembrei de não trazer aquele assunto para nós. — Só espero que Aimée não fique brava comigo de novo. Só não queria estragar seu aniversário como mamãe fez questão de fazer.
Chegava a ser engraçado como eu ainda chamava minha mãe de "mamãe" mesmo estando bravíssima com ela. Malditos laços familiares.
— Hmm. É. Família. — deu de ombros, e eu percebi que não sabia quase nada da família dele.
— Você nunca falou da sua. Conheço seus pais, claro, mas pouco. E só. Você tem um irmão, não tem?
olhou pra mim com um sorriso.
— Tenho um irmão mais velho que é tipo você, só que homem. Foi atacante do time de futebol americano, além de ser o melhor aluno da turma. Nenhuma faculdade abriria mão dele, algumas até quiseram dar um carro pra ele, mas meu pai recusou. Eu acho que entendo sua irmã, ela só deve ter medo de não ser tão boa quanto você.
— Eu... Eu não sou tudo isso. Sou o desgosto da família desde...
— Não importa, mesmo sem estímulo você vai atrás das melhores coisas e as conquista... É ainda mais admirável e amedrontador. , não existe irmão mais novo que não enalteça seu irmão mais velho na história desse mundo, acredite. Ainda mais um irmão que dá tantos motivos pras ser admirado.
Considerei a informação que ele me dera, e até fazia algum sentido. Até se encaixava em algumas atitudes de Aimée... Éramos amigas novamente, mas eu ainda precisava entender algumas coisas para assegurar que estava mesmo a ajudando, e não apenas mentindo para mim mesma. Já falhara vezes suficientes como irmã mais velha. Será que eu estivera tão ocupada para não perceber essas coisas? Era por isso que eu não gosto de apontar os defeitos dos outros, eu mesma tinha os meus. Eu precisava conversar com minha mãe, sem tons altos, sem julgamentos, eu precisava de uma conversa de mãe para filha, uma via de duas mãos.
— Devo investigar isso.
Enquanto zapeava os canais da TV, Cell Block Tango do filme Chicago se destacou. Ele me pegou cantando a parte da Velma Kelly empolgada demais, não que eu não tivesse cantado tudo desde o começo. O som da TV não estava muito alto, e isso deve ter me entregado. estava com uma careta assustada assistindo o filme, então eu aproveitei e soltei um "Buuuh!" bem alto. Ele deu um pulinho, e depois me olhou feio. Eu gargalhei, e comecei a cantar a música mais alto, saindo do sofá e dançando como dançavam na TV. Os olhos de me acompanhando.
— "You been screwin' the milkman," he says. He was crazy! And he kept on screamin', "You been screwin' the milkman!" And then he run into my knife. — corri para ele, caindo rindo no sofá, como se nada tivesse acontecido. Simplesmente não sabia como essas coisas aconteciam quando eu estava perto dele. Meu corpo queria ignorar o que meu cérebro dizia. — He ran into my knife ten times!
Ele me olhava de um forma que eu não conseguia decifrar. Minha respiração ficou fraca, como se lembrasse que fora ali que eu havia dado meu primeiro beijo. Podia sentir o gosto de pistache... Tentei entender aquele olhar, e a música continuou tocando.
Ele não fez nada. Então eu fiz.
Aproximei nossas bocas numa velocidade tão devagar que ele tivera mais de 42 oportunidades de se afastar, mas continuou ali, deixando que eu unisse nossos lábios de novo e de novo. Finalmente o beijei, encaixando a mão na sua nuca, entremeando os dedos em seu cabelo.
Durou muito, e quando acabou pareceu pouco.
Principalmente porque foi ele quem se afastou.
E parecia bravo novamente, mas um bravo diferente... Que eu não soube interpretar.
— Vou buscar uma bermuda e uma blusa pra você dormir mais confortável.
Ele parecia novamente indiferente. Merda, eu não acertava uma! E o que tinha acontecido com o todo atencioso ? Eu era só mais uma? Ele havia investido tanto tempo em mim pra me descartar assim? Eu não deixara claro o suficiente que gostava dele?
Me encolhi em pavor, a dona insegurança falando mais alto.
Talvez o encanto tivesse acabado. Shakespeare não falou sobre isso.
Ele voltou com um shorts masculino curto, de corrida, e uma camiseta Hurley. E eu tirei a meia-calça, que me pinicava.
— Está bem aquecido aqui dentro. — pensei alto.
Ele concordou com um aceno de cabeça, vidrado na TV. Rolei os olhos e tirei a saia pinçada que era um roxo quase preto, colocando os shorts dele. Seus olhos nem piscaram, ele nem devia ter percebido o que eu fazia em pé ao lado do sofá. Tirei o blazer azul marinho e a camisa branca que tinha embaixo, vestindo sua camiseta Hurley rapidamente. Podia estar aquecido, mas eu ainda sentia frio. Psicológico ou não, me senti bem quando entrei debaixo da coberta.
Permanecemos no sofá em silêncio por um tempo, até que se moveu desconfortavelmente.
— Vou dormir. Boa noite.

*

O "" ficou preso na minha garanta. Saí do sofá ouvindo um "Boa noite..." baixo e subi para o meu quarto, com as reticências e tudo. Eu ainda ia descobrir como ela conseguia deixar até as reticências claras, era absurdo como ela se expressava bem.
O QUE EU ESTOU FAZENDO INDO PRO QUARTO??! SÉRIO!
Afinal, o que ela queria com tudo aquilo? Me beijando, entrando numa Guerra Fria comigo, depois indo na minha casa com cara de cachorro sem dono, de saia! E dançando pra mim, cantando no meu ouvido! Baixinho, suave...
Cheguei no meu quarto e bati a porta, sem querer. Ou querendo. Eu já não sabia mais o que era o quê. Por exemplo, eu queria segurá-la forte enquanto ela me beijava. O que eu fiz? A afastei. E quando voltei? Ela se trocou na minha frente. Não que eu tenha visto muita coisa, mas ela fez! O que aquilo significava? Que eu era só um amigo, então tudo bem ela se trocar na minha frente? Ou ela estava mesmo tentando me seduzir? A última ideia me agradou mais, é claro, e revivi sua dança em minha memória.
Seus traços e seu sorriso cantando, sua emoção na voz que demonstrava que ela sabia cada sentimento da personagem que interpretava. Eu nunca havia visto aquele filme, não gostava de musicais. Não gosto. Não sei mais, não sei mais... Malditos hormônios, que faziam questão de me lembrar que ela estava lá embaixo, no sofá. O mesmo sofá do nosso beijo. Usando roupas minhas. E estávamos sozinhos na casa, aparentemente. Nem tentei bater na porta de . Fechei os olhos com força, determinado a dormir independente do que meus hormônios queriam. Era só aquilo, hormônios e nada mais.
Eu ainda estava bravo com ela, e não tinha nada haver com a frustração sexual que estava sentindo.

*

Tentei não voltar a sucumbir a insegurança, que eu já havia superado, enquanto fuçava os canais da TV sem realmente ver alguma coisa. Um dos filmes parecia bom, então voltei. Curti o enredo, até que começou uma cena de sexo explícito sem fim. Procurei a descrição, mas não dizia nada sobre o filme ser para maiores de 18. Tampei os olhos, esperando aquilo acabar, sentindo o rosto queimar. Eu era ridícula, não ficava assim quando pensava em , lembrava muito bem do que fazíamos e me tocava sem ao menos corar, mas não podia ver uma cena daquela na TV. Ah, não me julge, era uma cena forte, de verdade. Se fosse um pouco menos escandaloso eu conseguiria assistir (com curiosidade, até). Era tão forçado que eu queria rir toda vez que olhava. Era ridículo alguém filmar aquilo, e eu sinceramente esperava que eu não parecesse uma boneca de pano sendo jogada pra lá e pra cá quando estava com , apenas gritando. Cansei de esperar o filme voltar ao seu roteiro normal e desliguei a TV. Deitei em cima de algo, um livro. Estava bem escuro, não vi o título. Coloquei-o na mesa. Fechei os olhos com força, mas o sono não vinha. Dediquei mais alguns minutos à tentativa antes de começar a ficar impaciente.
Simplesmente odeio quando isso acontece. E então, é claro, veio, povoar meus pensamentos. Considerei me tocar, pelo menos assim acabaria de uma vez com aquele fogo. Resisti. Não estava confortável ali, não estava confortável com nada. Tentei não ser mais ridícula, ignorando com uma força incrível o aroma das roupas de .
O tempo devia estar passando com uma lerdeza assustadora. Dormir, dormir, dormir. Nada. Eventualmente, notei algo diferente no recinto, como se houvesse outra pessoa ali. Meus olhos seguiram instintivamente para a escada, como se quisessem estar certos. Era o seu perfume? Eu ouvia sua respiração. Tentei levantar do sofá sem esbarrar em nada e cheguei na parede com sucesso, sem fazer barulho algum. E então vi um leve, quase imperceptível, pedaço de pele. A mão de sobrava, como se ele estivesse de costas para a parede do corredor da escada, com as mãos espalmadas ali. Num impulso, fechando os olhos e, exalando profundamente, estiquei minha mão envolvendo a dele o mais confortável que a posição permitia, a quina das paredes machucando levemente meu pulso. Senti a mão de tensa, mas logo ela envolvia a minha de volta, carinhosamente. Um leve puxão fez com que nossos corpos se encontrassem, e me beijou suavemente enquanto seus braços envolviam minha cintura com extrema... Necessidade.
Todo o peso foi retirado de mim, e então estávamos na sua cama.
E ele riu.
— O quê?
— Nunca pensei que ia tirar roupas masculinas de alguém.
— Defina "masculinas", tudo o que eu vejo são apenas roupas.
Porque eu ainda consigo ser assim, desse meu jeitinho, em horas como essa.

*

Ela sorriu, com toda a sua inteligência. Tive que admitir que ela estava certa. E, então, tirei as suas roupas — quer dizer, minhas roupas, dela. Ri mais, e dessa vez ela me acompanhou.
Euforia, percebi. Por que eu demorara tanto para descer, mesmo? Eu quase rasguei minhas próprias roupas (as que estavam em mim, mesmo) até que - rindo - afastou minhas mãos e fez o serviço com uma calma que não podia ser de verdade. Ela me deitou, e então beijou cada pedaço de pele exposta que havia antes de sequer tirar minha bermuda.
Como se meu pescoço e meu peito já fossem diversão o suficiente.
...
— Shh, sem pressa. — ela falou baixo, sem me olhar, enquanto seus dedos traçavam meu torço.
— Mas amanhã tem aula. E já é tarde.
Seus olhos faíscaram em direção aos meus.
— Então vamos dormir.
Um grunhido levemente divertido escapou da minha garganta. É claro que não íamos dormir. Ela sorriu e beijou minha barriga uma última vez antes de se levantar para tirar a minha bermuda.
E assim a noite começou.
Recebi com prazer a costumeira sensação de como se fosse nossa primeira vez juntos, mas com a intimidade de um casal de longuíssima data.
Ela deu um jeito de me olhar fundo nos olhos, como se gravasse o momento e ao mesmo tempo lê-se minha mente. Perdi o contato, fechando os olhos por um breve segundo, e não conseguindo abri-los completamente depois.

se ergueu, sentando, e se apoiando em mim em seguida. Abracei seu corpo, esterrando o rosto em suas costas enquanto ainda tentava recuperar a respiração. Ela apoiou os braços nos meus.
— Não preciso chegar na primeira aula, amanhã é só revisão mesmo.
A abracei mais forte, e depositei alguns beijos nas suas costas.
— Vamos passear amanhã, então. Nada de escola.
— Hm. — ela pareceu surpresa, e interessada. — Ok. Parece uma boa ideia.
Ela se afastou e deixou eu me virar com a camisinha enquanto ia ao banheiro. Acabei a seguindo e puxando-a para o banho. Ela parecia tão forte e tão pequena ao mesmo tempo que eu não sabia se a admirava ou se a puxava para mais perto. Então ela me beijava com tamanha vontade que eu pensava que ela ia querer outra camisinha, mas então o beijo acalmava e se tornava necessário, e não exigente.
Dormimos rápido, logo depois de nos encaixarmos embaixo dos cobertores, sem tempo de fazer indagações sobre a vida, ou sobre nós. Só com a sensação certa de que éramos algo, pelo menos naquele momento.


Capítulo 33 — Why don't we just surrender, please just take my hand.

(The Kooks — Are We Eletric)

Acordei com algumas memórias breves da noite, como deitada em meu peito, uma perna entrelaçada nas minhas e uma mão espalmada no meu ombro. Depois ela virava de lado e eu a abraçava. Trocávamos, mudávamos algo; mas sempre juntos, a noite toda.
O pior? Foi incrível. De algum modo, passei a questionar todos os casais que reclamavam de espaço na cama.
Não devia ser exatamente uma novidade pra mim, o garoto que dormiu com ursinho de pelúcia até os nove anos de idade. Isto é, até perceber que mais ninguém fazia isso, e ser zoado pelo meu irmão mais velho constantemente.
Quando saí da nuvem de sono, percebi que ela não estava mais na cama, e o vazio que eu sentia era o lugar que ela havia ocupado. Antes que eu entrasse em pânico, no entanto, ela apareceu na porta do meu banheiro.
— Hey, bem a tempo! — tinha apenas a minha toalha na frente de seu corpo. — Vamos? E traz outra toalha, só tem essa aqui.
Claro que ela não esperou uma resposta. Quem diria, não?
Eu fui afogado pela realização de que eu a queria, e isso não era novo.
O novo era que eu precisava dela. Era mais do que desejo.
Senti minhas mãos tremerem tão levemente que podia ser apenas coisa da minha imaginação, mas refletia perfeitamente o que eu sentia naquele momento. Pânico.
estava acostumado a suprimir tudo o que necessitava. Ele não precisava de nada, ele só fazia o que queria. Necessitar de algo nunca acabava em coisa boa, só o deixava extremamente fodido no final.
Depois que parei de pensar em mim mesmo em terceira pessoa, percebi que tinha uma escolha a fazer. Confiar ou não em ? Confiar, e aproveitar tudo que eu sabia que ela podia me proporcionar? Não confiar, e continuar vivendo a vida com as rédeas justas, sem um único afrouxamento, garantindo que nada seria espetacular, mas no ordinário também havia a certeira segurança de que não me foderia irremediavelmente no final?
Precisava vê-la, por isso levantei e peguei outra toalha antes de ir para o banheiro, onde ela me esperava já embaixo do chuveiro.
A sensação foi como abrir as janelas de um quarto fechado há tantos anos que o único aroma era o de mofo, e, ao abrir a janela, o frescor do ar limpo era uma brisa de vida no ambiente apodrecido.
Entendi que cada parte minha gritava: sim, confie nela, você quer ser feliz, e pode. Pendurei a toalha e entrei no box, encontrando uma de olhos fechados embaixo da ducha, com um sorriso tão suave e feliz que soube imediatamente que eu sorria também. Ela abriu os olhos e sorriu mais, puxando-me para debaixo da ducha e saindo dela.
Fechei os olhos e deixei a água levar minhas inseguranças. Talvez eu devesse contar, talvez isso aliviasse todo o peso que eu sentia. Mas isso seria decidir por confiar.
Abri os olhos e ela estava ali, o corpo todo ensaboado, e assoprou sabão no meu rosto.
— Você tá quieto. — não foi uma pergunta, e ela me puxou para fora da ducha e começou a ensaboar meu peito. — Aconteceu algo?
subiu o olhar até meus olhos, e o que vi não foi curiosidade, nem mesmo preocupação. Ela só estava perguntando.
Prendi a respiração. Era agora.
Sim ou não?
— Eu tenho algumas coisas pra te contar, mas vai ser durante o dia. Tudo bem?
— Tudo bem. — sorriu, e passou a ensaboar minhas costas. Depois entregou a esponja pra mim e voltou para a ducha.
Ela pareceu se divertir muito com o fato de que usaria o meu shampoo para lavar o cabelo. "Eu cheiro a agora", ela disse enquanto ria. "Só falta o perfume!"
Por algum motivo, "alguém" decidiu que era hora de acordar também. Ela percebeu assim que tirou o shampoo do cabelo, e nem ao menos ficou vermelha. Percebi que eu era estúpido de ainda não confiar em , quando ela obviamente confiava completamente em mim.
— Ora, olá, aí em baixo. Saudade? — ela brincou, enquanto passava o condicionador nos cabelos molhados.
Tirei o sabão do corpo, rindo, e novamente enfiando a cabeça embaixo da ducha. Então senti algo. Passei a mão pelos olhos para tirar o excesso de água antes de abri-los, e lá estava acariciando com a mão o meu já animado membro. Ri.
— Não quer? — seu olhar atingiu o meu como fogo.
Ela tinha um sorriso ladino de tirar o fôlego.
— Não vou te impedir, sinceramente.
gargalhou, e em seguida ela estava de joelhos.
Nos sentamos juntos depois, embaixo da ducha. Abracei-a, e ficamos em silêncio por alguns segundos.
— Legal. — ela disse. — Não sabia que conseguia fazer isso.
— Você fez perfeitamente bem.
— Obrigada.
— Tenho quase certeza que sou eu quem deve agradecer.
— Você agradece depois. — ela piscou de lado, rindo em seguida.
Beijei a extensão das suas costas até seu ombro, e então subi para seu pescoço. Ela virou o rosto e beijei seus lábios. Era incrível o quão diferente ela era daquela garota que eu vira no corredor da Ferdinand no meu primeiro dia de aula. A quantidade de confiança que ela exibia, junto com uma leveza...
Senti vontade de dizer, mas não podia. Não antes de contar tudo pra ela. Porém, eu disse para mim mesmo, e isso já era o suficiente, por hora. Eu já tinha pensado essas palavras, mas com raiva. Quem as dissera fora o leão ciumento e raivoso dentro do meu peito, e não eu.
Calmo e sereno, completamente ciente do que pensava, eu disse mentalmente com todas as letras:
"Eu te amo, ."

— Então você conhece toda a malha ferroviária de New York.
Ela decidiu que o dia estava lindo demais para se desperdiçar as aulas cabuladas.
— Perfeitamente, estrangeiro. Não uso carro há tanto tempo assim. Às vezes, eu esqueço que você é canadense, e que se eu disser que é melhor ir pro Central Park com a Verde você acredita sem questionar e vai parar, sei lá, no Brooklin. É um lugar legal, aliás, mas como estrangeiro você ia se sentir apavorado. É só falar que me conhece, aliás, se algum dia parar lá por engano.
— Tá me zoando?
— Nope. É lá que fazemos o trabalho voluntário, eu vou lá mais que as outras meninas. Além da loja do Drieds, lembra? Ou você achou que eu ia pra lá de carro? Haha. E ótimos shows, também, a maioria de graça, até na rua mesmo. Ótimos artistas de rua.
Decidimos ir ao Central Park porque eu, estrangeiro relapso, ainda não havia entrado no tal parque. Só passado pelo lado de fora, e de carro. se recusou a ir de carro. Era realmente melhor ir de metrô, e poder abraçá-la com a desculpa de que ela poderia cair, e vê-la corar.
Era definitivamente um primeiro encontro.
"Eu não caio no metrô, me respeita.", ela dizia, mas sem se afastar, e eventualmente até me abraçou de volta.
— Isso é legal. — ela comentou, com o rosto encostado no meu peito. — Perigoso, no entanto, poderia dormir assim facilmente.
— Em pé?
— É uma habilidade especial. — ela respondeu, orgulhosa.
— Com certeza.
— Então, você disse que tinha umas coisas pra me contar...
— Sim. Porém, eu poderia usar um parque primeiro. Sentar na grama, embaixo de uma árvore, sabe?
— Sim, o cenário importa. Eu entendo.
Senti seu corpo chacoalhar levemente contra o meu, como se ela estivesse segurando a risada.
— Você tá rindo de mim? — tentei fazer uma voz irritada, mas falhei. Acabei rindo também.
— É aqui! — ela disse num pulo, puxando-me com pressa pra fora do vagão um pouco antes das portas avisarem que iam fechar.
Saímos dentro do Central Park. A droga da estação tinha uma saída para o parque! Parabéns, New York. Compramos comidas para os esquilos, e sorvetes em casquinha para nós. nos levou para o melhor cenário possível, uma ótima árvore numa espécie de morro, e com vista para um lago. O parque estava muito movimentado, com diversos panos estendidos pelo chão e pessoas empinando pipa, lendo, jogando futebol, brincando de frisbee com o cachorro, caminhando...
Tinha de tudo, uma cena não muito comum nas partes mais frias do Canadá, apesar de algumas pessoas ainda tentarem mesmo por lá. Só que mais agasalhadas. Incluindo os cachorros.
O frio de New York seria uma brisa de verão no Canadá.
Todas as árvores tinham as cores do outono, cada uma em seu tom, formando uma paisagem admirável. Eram tantos tipos, não apenas de árvores, como de arbustos e flores, ficava difícil lembrar que aquilo era Manhattan.
— Então... Vou tentar resumir, você não precisa ouvir isso detalhadamente...
— Ah, cala a boca. — ela interrompeu, aparentemente ofendida. — Não se importe com isso, eu amo ler, adoro uma boa história. Entretenha-me.
— Não é realmente uma história boa, nem de se ouvir e nem de se ter vivido. — disse, sério.
— Parece uma descrição perfeita para a minha própria vida. — deu de ombros, fazendo um ótimo ponto.
Acabei rindo, e a tensão diminuiu um pouco. Respirei fundo e apoiei as costas no tronco da árvore. alimentou o primeiro esquilo como se fizesse aquilo todo dia, quase sem vê-lo.
— Não tem como te contar essas coisas sem falar da Nikki. A Nikki, sabe? A que você conhece e tal.
levantou a mão esquerda aberta, colocando-a quase em meu rosto.
— É melhor seu plano não ser falar mal dela, , eu gosto dela.
— Não é esse o meu plano. Você viu que ela conheceu um cara no aeroporto, depois que nos despedimos dela, e eles estão juntos? — confirmou acenando a cabeça positivamente com uma empolgação notável. — Enfim... Ela não foi sempre tão boa, e antes disso também não era tão má. A mãe dela fodeu com a cabeça dela de um jeito... Muito eficaz. O plano não é falar mal da Nikki, ou eu não teria motivos para me importar com ela como você sabe que eu me importo. Mas eu já me importei mais, e isso era quando eu, bem... Ainda era uma alma pura e inocente, sabe?
— Estou a par do conceito, continue.
Ri, com a facilidade que só ela obtinha de mim, apesar de estar um tanto sem jeito, desacostumado a falar sobre mim para outra pessoa. Desistir era uma opção o tempo todo no ar, e eu sentia coragem no ato de persistir, apesar de ser uma coisa ridícula.
Eu nunca tinha falado de mim mesmo desse jeito pra ninguém. Nem pros psicólogos da família. Até porque, com esses, eu acabava falando mais sobre psicologia do que sobre minhas dúvidas existenciais.
— Então... Nós descobrimos algumas coisas juntos, e por um tempo eu pensei que tínhamos mais do que só uma amizade. Ela não acompanhou essa ideia, e esqueceu de me dizer isso. Esse não foi um problema muito grande, na verdade, eu percebi rápido que também não a via assim, mas foi o começo de um outro problema. Eu meio que achei que aquilo era o normal, não esperava ser tratado de uma forma melhor do que aquela que eu fora apresentado. Eu não quero... Falar de tudo, muito eu prefiro não lembrar, mas tem um caso que pode ajudar a resumir e explicar.
Ela deixou de olhar o esquilo, entregando a noz de uma vez, e pousou o olhar em mim. Tranquila, com um sorriso suave, ela assentiu.
— Eu não saí do Canadá à toa. Meus pais viajaram muito, e eu os acompanhava, mas, desde que voltamos para o Canadá a última vez, eles não saíram mais, só para viagens curtas, e eu já tinha idade para ficar sozinho alguns dias. E "sozinho", sabe, com faxineira e cozinheira. Eu podia ter continuado lá até me formar, sem maiores problemas. Só que, nesse ponto da vida, eu já não tinha amor próprio. Eu era o cara que as garotas procuravam quando queriam alguém pra usar de tapete sem sentir remorso, porque eu era assim, esse era o meu jeito. Não era culpa delas.
A expressão de era de dor, e eu não soube se era porque ela não queria ouvir aquilo ou se realmente estava simpatizando com a minha história. Abaixei o olhar.
— Então uma garota apareceu, amiga de alguma amiga de uma amiga de Nikki. Ela elevou o termo "tapete" pra um nível totalmente novo, até mesmo pra mim. E eu, claro, deixei. Eu estava até ciente de que não seria nada, mas aí alguma coisa acontecia. Ela me beijava numa festa, me dava esperança, e no dia seguinte agia como se nada tivesse acontecido. Qualquer relacionamento que nós tivemos era escondido dos outros, e com ajuda do álcool. Até que eu descobri que ela estava namorando, antes dela me contar. Eu achei que estava apaixonado, e descobri que fazia 15 dias ou mais que ela estava em um relacionamento sério, e eu queria tirar satisfação com ela, porque em alguns desses dias ela havia passado comigo... Por sorte, Nikki não deixou, mas, por azar, acabamos cruzando com ela de qualquer jeito. Com ela e o rapaz, que, por sinal, eu conhecia e era um babaca. Pedi para conversarmos, a conversa foi horrível, ela foi ridícula e, enfim... Aqui estamos. Eu vim pra New York para ver se conseguia deixar isso pra trás. Para respirar um ar novo, me reencontrar, toda essa baboseira de que eu desesperadamente precisava pra sobreviver. Percebi que o errado era eu, mesmo, e ninguém mais, e decidi que era hora de acertar isso. Só que eu me apaixonei por você na primeira vez que te vi. Não fazia parte do plano, aliás, era uma bela ameaça ao plano. Eu não sei lidar muito bem com a necessidade de outras pessoas, porque acho que todo mundo sempre me substitui. Por mais que eu tente negar, o sentimento que fica sempre no canto da minha cabeça é o de que eu não sou suficiente pra ninguém.
Durante o meu monólogo corou, sorriu, e suspirou, tentando aliviar sua expressão de dor. Talvez ela tivesse realmente simpatizado com a minha história, por mais que eu não fosse nenhum contador.
— Bem, dá pra entender a sua relutância, Dy. Eu não estava tentando nos esconder, no entanto... Acho válido deixar isso claro. Minha intenção nunca foi te usar, muito menos só quando ninguém via. Tenho que confessar que estou me sentindo péssima agora. Se eu soubesse disso... — Ela suspirou, batendo o ombro em mim em seguida. — Então eu te ajudei um pouco, pelo menos. A deixar ela pra trás.
Gargalhei.
— Quem é ela? Eu nem lembro. Só fiquei com medo de ser usado igual, mas você nem se compara... Eu achei que sabia o que queria, até te conhecer.
Ela estava de lado, mas olhou na direção oposta para esconder a surpresa que as minhas palavras trouxeram. Em seguida, riu.
— Isso tá ficando perigosamente romântico, . Onde está o sorvete, pra eu sujar seu nariz e você sujar minha boca e me beijar? Aí a gente rola até o lago, já aproveita e mergulha de roupa etc.
Bati com o ombro nela, e rimos.
— Já que comecei a falar, já aproveito pra falar tudo. Afinal, é o nosso primeiro encontro, né.
— É, sabe-se lá quando vai acontecer de novo. Espera. O quê?
Virei o corpo na direção dela e encaixei a mão em sua nuca.
— Vamos fazer isso certo, sim?
— Eu não falei nada de primeiro encontro...
Gargalhei.
— Mas é, não é?
pensou por alguns segundos.
— Ok, é um bom lugar para um primeiro encontro. Mas a gente, err...
— Não importa, a gente disse que ia fazer certo, não disse? Começa assim, com um primeiro encontro.
— Depois de dormir na sua cama. E tomarmos banho juntos. — ela riu, mas seu sorriso dizia o que sua mente relutava em aceitar. — Gostaria de deixar claro que eu jamais faria nada daquilo com você, e nem com mais ninguém, na verdade.
— Eu sei. É por isso que decidi te contar.
O sorriso dela foi o maior do dia.
E esse entendimento silencioso, o sentimento mútuo, foi muito melhor do que um simples "eu confio em você".
— Aproveitando o momento... Você não deve fazer ideia do porquê todo mundo acha que eu sou lésbica, né? — ela riu, parecendo ao mesmo tempo desconfortável e segura. — Nem devem se lembrar do porquê acham que eu sou.
— Sim, eu perguntei e ninguém respondeu... É claro que eu duvidei, mas, sabe como é... O meu histórico também tem uma garota que era lésbica e tal, claro que tinha que ter.
Ela revirou os olhos. Em seguida, estendeu sua camisa xadrez na grama e deitou de lado, virada para mim.
— Claro que tem. Eu já ouvi sofrimento demais por um dia, essa pode ficar para a próxima. — seu tom deixou claro que ela brincava, e por mais que estivesse curiosa para saber do meu passado trágico, ela não queria me forçar a relembrar aquelas coisas. — Bom, basicamente todo o boato nasceu porque eu nunca beijei ninguém da escola, e tentaram me forçar a fazer isso na minha festa de aniversário de 16 anos.
Minha cara deve ter sido de puro horror, porque parou de falar para rir.
— Sério? No seu aniversário?
— Sim. Enfim, a apareceu para me salvar, e ela já era conhecida como a líder das bi-girls. Fizeram um mais um, e, na lógica absurda deles, a única resposta possível era que eu sou lésbica. Fiquei sabendo só na semana seguinte, e estava pronta pra rir e chamar todo mundo de louco, só que chegou em mim primeiro. E me convenceu a deixar quieto. E eu aceitei, porque não queria garoto nenhum me importunando como eles estavam fazendo nos últimos tempos. Era a solução perfeita para todos os meus problemas, eu poderia estudar em paz. Daí conheci todos os gays e lésbicas e bis desse lugar maravilhoso e nunca nem pensei em voltar atrás, achei que eventualmente iam sair da minha cola, e um boato trouxa desse não ia perdurar muito. Como vimos, eu estava errada. Porém... Não vejo isso como problema. Não ligo para o que pensam, sabe?
— Sim. Eu entendo completamente, e sei que fui um idiota...
— Mas você pelo menos teve motivo pra ser um idiota. Isso conta, .
— Obrigado. — ri, e ela apoiou a cabeça no meu ombro.
— Eu sinto muito por ter brigado com você, e dito todas aquelas coisas horríveis...
— O meu passado não justifica um comportamento imbecil, . E ignorar o que você dizia por causa de um boato sem fundamentos foi bem imbecil da minha parte. Nada muda isso. Eu escolhi não te contar nada, me proteger, fugir. Você em momento algum fez essas coisas, você me disse tudo e eu não quis ouvir.
Ela sorriu de lado, compreensiva.
— Ok, então, por via das dúvidas, tudo isso tá perdoado. Você é incrível. E não vou te substituir. Combinado?
— Sim. — respondi, rindo.
— Ok... primeiro encontro. Então, precisamos de algum restaurante chique para almoçar.
Franzi o cenho, incerto de que ela não estava apenas me zoando.
— Ok... Não conheço nada por aqui, não olhe pra mim.
— Pode deixar, estrangeiro.
Acabei deitando também, somente para finalmente beijá-la.
Uma boa meia hora se foi assim, até reunirmos a energia para voltar a caminhar e continuarmos a explorar o Central Park. Eu já estava perdido há muito tempo, mas parecia se direcionar pelo lugar sem esforço algum.
— É realmente um parque enorme, principalmente pra uma cidade grande. — comentei.
— Sim. É insano, na verdade. Tudo ao redor é prédio, e dos mais altos. Sorte a deles de ter essa vista. Pena que a cidade toda não é assim. Não é louco pensar que uma ilha tem tantos prédios? Isso aqui é o natural, mas a gente ainda se espanta.
Assenti.
— Você ia gostar do Canadá.
— É só convidar, .
Ri, saboreando a ideia.
Passamos por tantos lugares que eu já havia visto antes em filmes ou seriados, que parecia um passeio pelos estúdios Hollywoodianos, e não uma volta no parque. ia tirando fotos de mim, e de outras pessoas, com uma naturalidade profissional apesar de ter nas mãos apenas um celular.
Então saímos do parque, passando pelo American Museum of Natural History. E então ela parou.
— Restaurante chique de primeiro encontro, é? — perguntei, com um sorriso de orelha a orelha.
Ela gargalhou.
Estávamos em frente ao Shake Shack, uma lanchonete que fazia um ótimo milk-shake, de acordo com o seu cartaz.
— Amo milk-shake. — respondeu, com aquele ar de criança arteira.
— Quem não ama?

*

Estávamos na Ferdinand a tempo para a aula de dança; a última antes da "apresentação" para a escola. E foi a melhor aula de todas, com certeza a apresentação chamaria a atenção de muitos alunos em potencial. A turma olhava com interesse para a nossa interação suave, até porque mais ninguém havia visto eu brigar com como a turma de dança vira. Estava tudo no ponto, e o professor decidiu pagar sucos naturais bem gelados para todo mundo depois da aula.
A manhã fora surreal. Meu cérebro não sabia nem por onde começar a processar o buraco negro de informações novas. Nem a intensidade dos olhos de , que pareciam ter se intensificado depois da nossa conversa. Eles queimavam em mim mais do que na primeira vez que nos vimos.
Primeiro encontro. Ri sozinha, jogando-me na cama de costas. Dessa vez, a minha cama.
Tinha tantas coisas para me preocupar, mas estava ali, sendo uma personagem de filme romântico.
Era realmente bom ter algo dando certo. Tudo o que faltava era continuar naquela zona e ter que fazer o SAT assim.
É, estava chegando.
O Baile de Inverno seria um "vamos relaxar agora que todo mundo se fodeu gostoso". Vai ser um espírito festivo e tanto. As garotas apareceram para estudar comigo, assim como Rapha, Phill, e eventualmente até mesmo .
Muitos dias seguidos.
Criamos uma rotina automática, a Biblioteca de casa sendo o ponto de estudo de todo mundo. Inclusive quando eu mesma não estava presente. Donna ficou um pouco estressada no começo, mas acabou sorrindo e trazendo bolos para os meus amigos (!!!), e peguei meus pais conversando algumas vezes sobre "a época deles", num tom nostálgico extremamente sentimental.
Os ensaios do teatro diminuíram para uma vez por semana, apenas para garantir que não esqueceríamos de tudo. Depois voltaríamos a ensaiar com tudo para finalmente apresentarmos Romeu & Julieta.
parecia outra pessoa. Ou, na verdade, a pessoa que eu via sempre se escondendo em seus olhos.
Toda noite que me chamava para correr, no fim dos estudos diários, ele esperava em uma das arquibancadas da pista de corrida mais próxima, sabendo que uma hora passaríamos por ali. O clima no grupo estava tão harmonioso, que ninguém ousava questionar o que acontecia, dando o espaço que nós precisávamos para ser.
Um dia, ele não estava sozinho. havia vindo conosco, então também decidiu ir, e acabou indo também. deu de ombros e acompanhou os amigos.
Subi até eles para pegar a água gelada que sempre trazia consigo para mim.
— Vocês são rápidas! — comentou, surpreso.
— A maior parte do tempo estou pensando em morrer. — declarei, esvaziando metade da garrafa em seguida.
— Esse é o segredo. Focar na dor e senti-la. — riu, sentando no andar de baixo para se alongar.
Passei a garrafa para ela, e sentei ao lado de .
A noite estava gostosa, com uma brisa que não chegava a arrepiar.
— Alarme de garotas gostosas passando. — sussurrou, assoviando baixo em seguida.
Quando foi que ele virou um babaca?
Fiquei feliz por não estar ali para presenciar isso.
— Nah, nem tanto. Sou mais a garota tocando violão em grupo, ali na frente. — comentou. — Não acha, ?
— Você tem bom gosto, . Com certeza acho. — respondi, sentindo o nó que o comentário de havia causado se desfazer com uma facilidade quase prazerosa depois de ouvir . — Confio no seu gosto.
Ele riu. Eu ri. Ninguém mais entendeu, então rimos deles.
O SAT seria nesse final de semana.
Obviamente eu estava nervosa, mesmo que não assumisse. Dei boa noite para minha família como se fosse um dia comum, eles responderam com a preocupação estampada na testa.
O pior era que todos tinham certeza de que eu conseguiria, e de primeira.
Era isso que estava sufocando o meu peito.
Enchi a banheira e coloquei todos os sais e coisas possíveis na água, numa tentativa de relaxar. Instalei o notebook ao lado e coloquei um episódio de Gravity Falls para ajudar.
Eu ria, mas no fundo da minha mente ainda existia aquele nervosismo insistente.
Fiquei quase uma hora ali, esvaziando a banheira quando a água já estava gelada e terminando o banho por obrigação.
A cama nunca pareceu tão longe.
Não podia ficar sozinha num momento daquele. Pensei em fazer uma chamada de emergência, mas todos já deviam estar dormindo sob o efeito de alguma droga lícita.
Por que eu não comprara algumas? Até parece que conseguiria dormir.
Encarei o teto pelo que pareceu ser uma eternidade.
O pensamento era claro: Só quero que acabe.
Deem logo essa maldita prova pra mim!
A ansiedade é a pior, pior, pior, pior!, parte.
Então minha porta fez um barulho. Não a do corredor, e sim a da varanda.
Uma risada conhecida soou como o calmante que eu precisava.
— Sabia que você estaria acordada.
fechou a porta atrás de si e veio até a cama.
— Acho que vou morrer. — declarei. — Dessa vez, é sério. Meu coração vai parar.
— Você anda muito mórbida. Posso? — ele pediu para se sentar.
Assenti.
— Tive uma ideia! — sentei, como se tivesse levado um choque.
— Eu tive primeiro.
passou a mão pela minha nuca e me puxou para um beijo sedento.
Senti todo o meu corpo relaxar, e me entreguei.


Capítulo 34 — And we know that we're headstrong and our heart's gone. And the timing's never right, but for now let's get away on a Roman holiday.

(Roman Holiday — Halsey)

É mais saudável pular para a parte em que todos se encontraram depois da prova. Foi quando o planeta pareceu voltar ao normal, com o nível certo de oxigênio, etc.
O ponto de encontro era um parque, e claro que eu fui uma das últimas a chegar. Junto com , que ficou esperando do lado de fora da sala até eu sair.
Normalmente, eu teria gritado para a pessoa ir embora. Eu sentia pressão em ter alguém me esperando, por isso, todos os que já sabiam disso não me esperaram.
No entanto, eu só soube que ele estava ali quando eu saí. E eu senti uma gratidão sem tamanho por encontrá-lo.
— Eu odeio que me esperem.
— Quem disse que eu estava te esperando?
Dei um abraço quase que violento, atirando meu corpo repentinamente contra o dele, e murmurando em seu peito que achava que tinha feito o meu melhor. Ele me abraçou de volta e sussurrou: "Tenho certeza que sim."
Ele estava pedindo para ser esmagado. O que deu no garoto, que, do nada, virou o personagem romântico ideal de todo romance? Se eu fiquei um pouco assustada, apesar de perdidamente vendida? Eh. Não.
Apenas me beije! Vamos! Eu tenho fome de felicidade.
Eu sei que devia estar pensando pelo menos um pouco sobre o quanto aquilo ia durar, mas não consigo evitar a ingenuidade. Nós já erramos bastante, é hora de acertarmos. É agora ou nunca! Pelo menos tem cara de que vai ser agora.
Se não for, bem, nunca é uma palavra muito forte. Ha ha ha!
Se não fosse , eu só conseguiria dormir com comprimidos de enjoo, que por sinal, já ficavam ao lado da minha cama para emergências do tipo. Ansiedade, não enjoo. Se bem que algumas vezes a ansiedade vinha com enjoo também.
Ah, a fantástica vida do ser humano ansioso. Ao menos, eu só sou assim com a faculdade. Podia ser pior.
Sempre pode, né?
Então chegamos ao grupo de pessoas destruídas por volta da uma da tarde, e todos estavam com uma linha tênue carregada de informação no rosto. Era quase possível ler "FOME" na testa deles, de verdade.
Aproximando-me, percebi que eles conversavam. Apesar de alguns estarem até com uma blusa em frente aos olhos (técnica usada por estudantes quando estes querem dormir a céu aberto ainda durante o dia).
— Existe entrega de pizza no parque? — perguntou, a cabeça apoiada no colo de .
— Provavelmente não, amor. — respondeu, automaticamente.
Um coro de "awwwn" surgiu, sincronizado, como se ensaiado. corou, mas apenas de leve.
— Nem se eu pedir por favorzinho? — brincou, e, dessa vez, todos riram.
— Quanta derrota por metro quadrado. — declarei, sentando-me na grama com eles.
Recebi alguns olhares de ódio, mas eram olhares bem menos potentes que o normal. Esgotados demais para odiar com dedicação.
— O pior de tudo é ter aula amanhã. — suspirou, sentando ao meu lado.
— Não vamos pra aula amanhã, já avisamos os professores. — Rapha disse, parecendo nervoso, mas ao mesmo tempo animado.
— Caramba, é tão ruim assim? — perguntou, provavelmente apenas para ser do contra. — Tudo bem que eles ficam insistindo no assunto, mas...
— Não é isso. — Phill o interrompeu, revirando os olhos para não fazer algo pior.
Phill não era a pessoa mais paciente do mundo normalmente, imagine então naquele estado de esgotamento físico e mental.

*

— Vamos ao congresso amanhã, acompanhar... — Rapha começou a explicar, e foi cortado por um grito de .
— A VOTAÇÃO! É CLARO! SIM!
— ... A votação pela legalização do casamento igualitário em todo o país. — Rapha concluiu, agora sorrindo.
— No meio de tanta loucura, eu perdi a noção do tempo! É amanhã!! — ela parecia uma fênix que acabara de renascer das cinzas. Ainda mais em meio a todas aquelas pessoas acabadas. — Nos encontramos onde?
Uma garota que eu já havia visto de relance algumas vezes soltou uma risada breve, parecendo surpresa.

*

Ayala não costumava sair com o nosso grupo, apesar de ser parte da pequena comunidade LGBTQ+ da Ferdinand. Ela provavelmente só estava ali porque seus amigos ainda estavam na prova, ou saíram antes dela e não a esperaram. Alguma coisa assim. Ou por Phill e Rapha, talvez, porque eles eram grandes amigos. O que era no mínimo estranho, já que eu também era grande amiga deles. Talvez, mas somente talvez, ela não fosse com a minha cara.
Os olhos dela eram daquele tom de castanho claro, quase mel, que dependendo da iluminação parece esverdeado. Sua pele era negra, e cintilava como se o sol existisse apenas para iluminá-la. Quem dividia o mesmo tom de pele que ela devia sentir inveja, e quem era branquela como eu apenas observava em completo encanto.
Ela sempre fazia eu me sentir pequena quando estava por perto, e agora lá estava ela, ainda por cima, rindo; provavelmente de mim. Senti o rosto corar. Era timidez, talvez por ficar extremamente consciente de mim mesma na presença dela.
E a questão não era o quão comum eu era, não, ia muito além da aparência. Ayala era consciente de si, e a sua postura a firmava em qualquer cenário. Ela tinha uma firmeza que eu não alcançava nem quando atuava.
Olhar para ela me dava vontade de tentar forçar os ombros para trás e fincar os pés com força no chão. Ser merecedora do chão que ela pisava.
Naquela troca de olhares, em que ela olhou nos meus olhos pela primeira vez, eu entendi que Ayala era apenas uma pessoa, e o que a fazia diferente era saber disso, aceitar e exigir ser vista assim pelos outros.
Eu sou mulher. Eu sou preta. Eu sou uma pessoa. Eu sou real. Eu existo.
Essas coisas.
— Você vai amanhã? — ela perguntou, talvez ciente do que passava pela minha cabeça, mas sem demonstrar.
— Ah, se vou! Afinal, eu sou lésbica, né?
Minha resposta me surpreendeu, e minha surpresa foi abafada pela risada dos que entenderam a ironia. Os outros estavam mortos demais para perceber qualquer coisa, e provavelmente preferiram apenas ignorar.
Ayala também ria, e sua gargalhada era como um passarinho assoviando uma bela música numa tarde de verão. Apesar da comparação ser clichê, a gargalhada dela não era. Senti orgulho de ter conseguido responder, tão espontaneamente e tão bem.
— Ah, é que eu não achei que você fosse do tipo que casa... — ela se "corrigiu", entrando na brincadeira.
Ri.
— Não sou mesmo, mas acho que quem quer casar deve ter esse direito. Em qualquer estado que quiser, sem precisar se mudar. Em qualquer país.
— Amém, irmã. — quase todos disseram.
— Amém. — Ayala disse, sorrindo.
— Então, pizza? — tentou novamente.

*

Fomos em dois carros e meio, o meu, o de Evelyn e de . Não precisa dizer qual era o "meio" carro da soma, né? Ayala, Phill, Rapha, um garoto e uma garota que eu não conhecia foram com ela, sem reclamar; Phill já preparando a playlist no celular. O resto se dividiu entre os dois carros, cabendo sete pessoas em cada. O destino era a pizzaria perto de nossas casas, que boa parte do grupo não conhecia e se interessou em conhecer com a descrição que e deram. Aparentemente, eles estavam passando muito tempo por lá, e terminaram de aprofundar a amizade já aprofundada que tinham com os funcionários do lugar.
Acabamos no andar de cima, que era dividido em salas individuais, com uma mesa enorme para 22 pessoas. Surpreendentemente (ao menos para mim), estávamos em vinte. Alguns (muitos) desconhecidos para mim, e a mesa ficou lotada. Acabei no lado oposto à , pelo menos poderia chutá-la para chamar sua atenção.
Claro, chute a garota por baixo da mesa, super legal da sua parte, !
Porém, acabei somente observando. Muitas conversas paralelas se iniciaram, como sempre acontece em grupos gigantes, e de tempos em tempos alguém gritava para ter a atenção do grupo todo e dizer algo que desencadearia uma longa gargalhada por toda a mesa. Ou talvez uma discussão filosófica.
Aos lados de estava sua nova amiga Ayala e a namorada de Becky; Becky estando logo ao lado da namorada, e esse era o grupinho de conversas de . Elas pareciam se divertir, e falava como raramente se via em público, quase o tempo todo acompanhada de Ayala. Evelyn falou algo mais baixo, que não pude distinguir, e a abraçou, ao que Rebecca respondeu abraçando as duas.
Ayala retirou um lenço da bolsa, e disse algo como "combina com você", e ela se levantou para ensinar Becky como usá-lo. Becky riu, dizendo que não se imaginava usando aquilo, mas Eve disse que ela tinha ficado bonita, e combinava com seus olhos, então ela deixou quieto.
De vez em quando seus olhos passavam pelos meus, demorando-se pouco mais que um segundo antes de olhar para uma das pessoas aos seus lados.
Eu eventualmente era incluído em alguma conversa, mas acabava sobrando por prestar mais atenção ao lado oposto da mesa.

*

— Ela vai ficar incrível quando o cabelo crescer joãozinho. Já não aguento só de imaginar. — Evelyn disse.
Concordamos, fazendo Becky corar de prazer.
— Não acho que jamais consiga deixar crescer novamente. — ela disse, apoiando a cabeça no braço. — Só deixava por causa dos meus pais, mas agora eles não estão se importando tanto com isso. Eles estão deixando a Eve entrar em casa, não acho que se importem mais com o comprimento do meu cabelo.
Suspirei.
— Preciso enfrentar minha mãe. Não queria desrespeitá-la, mas não aguento mais esse cabelo reto. Nem um repicadinho?
Ayala arregalou os olhos.
— Sua mãe não te deixar repicar o cabelo?
— Eu sei, parece absurdo. Porque é. No fim, eu acho que é a única coisa que ela tem controle sobre mim, então ela gosta de manter esse poder. Se algum cabeleireiro por aqui cortar meu cabelo, o salão fecha no dia seguinte.
— Ela não pode fazer isso! É exagero. E se você mesma cortar, ou eu?
Ri.
— É uma possibilidade, mas aí voltamos para o fato de que não quero desrespeitá-la... Gostaria que ela entendesse, e parasse com esse absurdo.
— Hm. Eu já teria passado a zero, não tenho paciência pra isso. Sendo mãe ou não, ninguém manda no meu corpo além de mim mesma.
Concordamos, em silêncio. As palavras de Ayala eram tão fortes e sinceras, tão estupidamente verdadeiras e óbvias, que faziam você querer ouvir mais. Ou ao menos me faziam querer ouvir mais.
O que ela dizia fazia sentido, ao contrário das coisas que eu ouvia em outros lugares.
Como a forma que eu me visto diz ao mundo quem eu sou. Mesmo?
Ela começou a falar sobre algumas palestras que explicavam o básico dos problemas sociais, de forma que não era possível que alguém conseguisse não entender, e ainda assim muitas pessoas não entendiam.
— Pensar sobre mudar o status quo sempre incomoda, as pessoas se sentem atacadas porque o discurso traz instabilidade para o mundo que elas conhecem, por mais que seja uma conversa tranquila e simples...
Nessa hora, Martini, outra amiga de Phill que eu não tinha muito contato, gritou, e a atenção de todos voltou-se para a parede esquerda da sala.
— O PHILL TEM UM NAMORADO. VOCÊS SABIAM DISSO?
Claro que a pergunta não era pra todos, mas ainda assim todos responderam que não.
— Tá brincando, né? — Becky perguntou, incrédula.
— NÃO! — Martini respondeu, e um celular veio deslizando pela mesa, antes que Phill conseguisse impedir.
— Oh... Agora eu me sinto traída. — comentei, após olhar o visor do celular.
Era uma mensagem, e dizia "Saudades, meu príncipe."
É, não vamos questionar o uso de "príncipe" aqui. Não entendo o que as pessoas têm com a monarquia, sabe. Como diria a Rainha Elsa, let it go!
— SIM. — Martini gritou. — TRAÍRA.
— SUA BOSTINHA. COMO VOCÊ PÔDE? — Rapha gritou, ficando em pé.
— Aconteceu muita coisa, eu não achei o tempo... E não estou namorando... Pode não ser nada...
— E pode ser muito. Como você não disse nada pra nenhum de nós? — perguntei, magoada.
Phill soltou a ar, nervoso, quase ultrajado.
— Ah, não você, . Você não tem moral pra me julgar.
O silêncio foi ensurdecedor.
Se ele tivesse jogado uma faca em mim, teria doído menos.
Obviamente, fiquei sem palavras.
O que dizer para um de seus melhores amigos quando ele foi claramente cruel com você? Bobão? Vou contar pra sua mãe?
Foquei em como o humor de Phill era ácido, ainda mais quando ele estava cansado. Repeti mentalmente "Ele está cansado. É só cansaço. Ele não te odeia."
Deixei a discussão seguir sem realmente prestar atenção no que acontecia. Abaixei os olhos pro pedaço de pizza em meu prato e voltei a comer.
Senti um chute fraco, carregado de carinho, no meu pé, e levantei o olhar para encontrar os gentis olhos de . Ele sorriu fraco, dando outro chute leve. Devolvi o sorriso, e voltei a atenção para a pizza.
Apesar do ambiente melhorar, e as conversas voltarem a se fragmentar, o ar parecia escasso. A sala ficou abafada demais para mim.
— Vou dar uma volta. — disse, meio que para ninguém, mas as garotas assentiram, e Becky se esticou para segurar meu braço.
— Tá tudo bem?
— Claro. — fiz um esforço para sorrir. — Bateu o cansaço, só isso.
Saí da sala sem olhar para trás, murmurando um tchau antes. Ayala me alcançou ainda no corredor.
— Eu sei que é um clichê horrível, a garota afrodescendente te indicar um livro de uma autora africana, mas eu realmente acho que você devia ler Americanah. Principalmente se você gosta de escrever, tem uma personagem feminina incrível.
— Ah, não, eu não escrevo literatura. — expliquei, soltando uma risada cansada. — Não sirvo pra isso. Só consigo analisar, mesmo, no máximo. Sou mais a área acadêmica...
Ayala riu, daquela forma que eu não sabia ao certo se era comigo ou de mim, mas que no fundo não me incomodava, porque não era uma risada maldosa. Ela não estava caçoando de ninguém. Acabei rindo um pouco também.
— Você é engraçada, . Não vamos perder contato. Se quiser, te empresto o livro.
— Claro. Sim, claro. Obrigada.
— E não liga pro Phill. Ele é uma drama queen. Só é muito quieto sobre si, sabe, aquele sol em escorpião...
Não fiz ideia do que aquilo queria dizer, e minha expressão deve ter deixado isso claro, porque Ayala riu mais. Então ela beijou meu rosto e voltou para a sala.
Não podia ficar mais surpresa com o dia. Desci a escada um pouco zonza, questionando se o ar realmente ficara escasso ou se meu sistema respiratório estava se desligando em autodefesa ao ataque de Phillipe.
me alcançou quando eu estava entrando no carro.
— Você realmente parece cansada. Acha mesmo uma boa ideia dirigir?
— ... Não. — respondi, derrotada.
Ele riu, oferecendo a mão para eu sair do carro.
— Vem. Assinamos o Netflix ontem.
— E você conseguiu sair de casa depois disso? — ri, arregalando os olhos.
— Pra você ver como eu gosto de você.
Sorri, apesar de ele não ter dito nada demais. A verdade era que nunca era ruim ouvir que outra pessoa gosta de você, principalmente se sua relação com essa pessoa não foi das mais calmas. não soltou minha mão até chegarmos em seu quarto, onde ele arrumou seu computador para que pudéssemos assistir deitados. Fui ao banheiro enquanto ele resolvia o que assistir, e voltei vestindo seu pijama.
Não conseguia imaginar algo como "dormi de calça jeans porque estava cansada demais pra trocar", jamais. Eu tiro a calça jeans e durmo sem nada, mas não durmo vestindo essa coisa.
— Acho que vou dormir.
— É a intenção. Ficou linda, a propósito. Bem melhor que o dono desse pijama fica.
Ri fraco, mais por falta de energia do que por qualquer outra coisa. Deitei em seu peito, e Daredevil começou. Eu já havia assistido toda a temporada, felizmente - porque era sensacional - e infelizmente - porque agora tinha que esperar uma eternidade pela temporada nova -, mas ainda assim o seriado me prendeu por um episódio e meio, quase.
Em que parte da vida eu conseguia assistir séries? Bem, naquela parte em que eu não conseguia dormir e não havia um para me ajudar.
Também naquelas horas em que o estudo deixava de render, o que acontecia mais do que eu gostaria que acontecesse.
Acabei adormecendo no peito de .
Acordei era quase uma da manhã, e sufoquei um grito.
— Minha família!
Ele grunhiu, resmungou, mas se esforçou para dizer:
— Eu liguei pra eles... Disse que você estava muito cansada e acabou dormindo... Eu disse que você não era incômodo aqui, eles não reclamaram, só agradeceram o aviso.
A informação me assustou um pouco, percebi que devia ser um sonho.
Meus pais não se importarem de eu dormir na casa de dois garotos, sozinha?
— Hmm. Obrigada.
— Nada.
Voltar a dormir pareceu melhor do que tentar resolver aquilo, e decidi que podia dizer que dormi em qualquer lugar, dariam cobertura pra mim depois. Sempre havia , e sua maravilhosa mãe, a Tia Kathy.
Devo ter levado menos de um minuto para voltar a sonhar pesado.

"Você não tem casa mais, ?" Donna resmungou do outro lado da linha.
realmente havia falado com meus pais. Não foi um sonho.
— Desculpa, mãe, eu tentei dirigir pra casa, mas minha pressão deve ter abaixado, fiquei muito cansada...
"E agora, vai pra onde? Alguma manifestação perigosa, lutar por algo que nem te diz respeito?"
Respirei fundo. Por que as pessoas tinham essa mania chata de me dizer o que me diz ou não respeito?
— Mãe, é claro que me diz respeito! Toda luta por igualdade social me diz respeito! Qualquer ausência de democracia é uma ameaça. Olha, não vamos brigar agora, ainda mais por telefone. Estou indo pra casa fazer uma mala, vamos para depois do referendo. Vou ficar por lá, pode ligar pra Tia Kathy.
Ela bufou e eu desliguei.
Agradeci todos os deuses por não ter ninguém em casa nesse horário, além dos empregados. foi comigo, decidido a também ir ao referendo. Depois de dar um alô para Antonella, separei o que precisava, que não era lá muito porque já tinha um bocado de coisas minhas na casa de , e fiz um ovo-mexido-louco para comermos enquanto esperávamos o ônibus. É claro que tinha um ônibus para levar todo mundo ao referendo, tinham vários ônibus, de vários pontos da cidade. E do estado.
É, do país também.
Quase todos já estavam nele, faltava Phill, mas já estava com as maquiagens de Tia Kathy e, sendo assim, fomos recebidos por uma equipe preparadíssima. pediu uma bandeira arco-íris na metade direita do rosto, para a quase-completa surpresa de todos. Iam só jogar umas purpurinas nele, talvez fazer um coração; mas atenderam ao pedido de bom grado.
E eu tive que segurar minha vontade de beijá-lo. Se esse era o modo dele se desculpar por todas as coisas que tinham acontecido, ele estava acertando, e muito.
Eu pedi um "LOVE ALWAYS WINS", que ocupou meu rosto inteiro em tinta vermelha e muita purpurina. Porque eu sou esse tipo de beesha.
Muita purpurina nunca é purpurina demais.
Fiz um coração vermelho na outra bochecha de , e dá-lhe pupurina. Vestimos as tie-dyes que Rapha havia feito, tudo isso ao som de uma incrível playlist mais homossexual que todas as pessoas ali naquele ônibus juntas.
Ou seja, uma playlist que eu precisava ter na minha vida.
Prendi a respiração quando entramos na rua de Phill, e comecei a olhar para todos os lados, menos para frente. É claro que só durou até ele entrar, e então eu estava olhando-o diretamente em seus olhos estupidamente verdes e maravilhosos.
Phill entrou e veio direto me abraçar. Deram espaço para nós. Apesar da bagunça continuar, eu o ouvi claramente.
— Eu estou tão, tão arrependido.
— Eu quero te socar.
— Vá em frente.
Dei um soco ridículo em seu ombro esquerdo, do tipo que não fez Phill sequer se mover.
— Pronto. Obrigada. Eu te amo.
Ele riu.
— Eu te amo.
Abraçamo-nos novamente, e eu apoiei o rosto em seu peito e fiquei ali um tempo.
Aquela coisa toda de ficar sentado quando o ônibus está em movimento? Bah, não respeitam isso nem no transporte público.

*

A espera foi uma festa, mas uma festa tensa. Uma festa de ar escasso, uma festa de ansiedade. As pessoas levantavam cartazes, gritavam frases de ordem, cantavam músicas de liberdade e direito, mas todos estavam preocupados.
O resultado daquele referendo era muito importante.
— Não existe a chance de o resultado ser não, existe? — questionei , que mal conseguia disfarçar sua ansiedade.
Ela estava chorando. Ela olhava ao seu redor e chorava.
As pessoas que viam a beijavam, e muitas vezes seus amigos diziam que ela era hétero - o que faziam pessoas se alinharem para a abraçarem ou beijarem. Às vezes na testa, às vezes no rosto, e às vezes na boca mesmo, o que a fazia desatar a rir.
Até eu ganhei alguns selinhos. Se eram gays, bis, lésbicas, trans, pans, não importava. Aquela era uma festa do amor.
Eventualmente, até Rebecca pareceu surpresa comigo. Não sei exatamente o porquê; eu nunca tive problemas com a variedade de gêneros. Toda a confusão com o boato de ser lésbica deixou todos eles com a impressão muito errada sobre mim. Dá pra compreender o por quê, né? Então não vou questionar.
— Eu vou beijar seu... amigo, . — Becky disse.
— Vá em frente.
E ela me deu um selinho, segurando meu rosto com ambas as mãos.
— Eu tô de olho em você. — Becky disse, ainda próxima de mim, e sem soltar meu rosto.
— Eu posso ver.
Evelyn gargalhou, e puxou sua namorada para beijá-la intensamente. soltou um grunhido de dor.
— ISSO NÃO ACABA NUNCA. DIGAM SIM DE UMA VEZ!!!
As pessoas ao redor gritaram em uníssono. Um coro de "Sim! Sim! Sim!" se espalhou pela multidão.
Quando a resposta finalmente saiu, a multidão explodiu.
Aquilo sim foi uma festa.
gritou tanto, que, com certeza, ficaria sem voz. Ela também chorou, mas não era a única. Até eu, coração de pedra que sou para lágrimas, deixei algumas escaparem.
Era meio difícil, com tantos casais comemorando ao redor, pedidos de casamento sendo feitos em todas as direções.
E as pessoas mais idosas? Os casais de velhinhos...
É claro que eu chorei também.
O absurdo de esse direito só ter sido garantido naquele momento me atingiu como um meteoro. Era absurdo. E, ainda assim, eu estava ali, vendo aquilo acontecer, o que era incrível.
Puxei e beijei-a, em meio ao tsunami de amor que aquela multidão, que já era um mar de amor antes, virou.
Ela me beijou de volta com todos os sentimentos que estava sentindo, como sempre fazia. Esse foi, provavelmente, o melhor beijo de toda a minha vida até então.
E eu desejei ter muitos outros desses.

*

Teve muita festa, marcha, e comemoração. Bem ao estilo gay de ser, ou seja, FELIZ.
Acabamos todos mortos na casa de , quando já havia anoitecido, mas estávamos animados demais para ficarmos parados.
Passamos pela ducha, para remover a tinta e a sujeira, antes de nos jogarmos na piscina. Ninguém estava a fim de conquistar o ódio dos .
Então, porque fomos bonzinhos, o pai de decidiu fazer um churrasco, e sua mãe ligou o som e pulou na piscina conosco.
Vê? Nessas horas eu tenho um pouco de dó dos meus pais. A concorrência é desleal.
John, o senhor , colocou salsichas e hambúrgueres na churrasqueira, e então preparou algumas bebidas.
Ele sentou à beira da piscina, com uma travessa repleta de queijos, salames, copos de plástico e uma jarra de alguma batida de limão. Aparentemente.
Ninguém realmente se importou com nomes.
— Você ganhou o direito de ficar para a noite. — disse para , há poucos metros de mim, e só ouvi porque estava boiando (literalmente), em completo silêncio. Porque minha boca estava repleta de queijos.
Uma dama, eu sei. Manic pixie dream girl 100%.
— Valeu, , mas eu não trouxe nada e não quero incomodar...
— Shh. Tem vários gays ao seu redor, você acha mesmo que eles não vieram com roupa extra? Tenho certeza que você consegue algo. Talvez seja rosa, mas não vai te matar, né?
— Na verdade, eu fico extremamente bem de rosa.
— É mesmo? Bem, então tá resolvido!
Eu precisei olhar para confirmar, mas realmente abraçou . De lado, um tanto sem jeito, mas abraçou. Ele a abraçou de volta. E então ela se afastou, sorriu, e nadou pro outro lado da piscina.
Senti um nó na minha garganta. É claro que ela estava feliz por ter feito parte daquilo com a gente. não estava ali. jamais estaria ali.
estaria na sua sepultura muito em breve, se não parasse de fazer minha amiga sofrer.
Nadei em sua direção, sem ele perceber.
— Eu vou matar o seu primo. — disse, entre dentes.
— Eu... Eu acho que eu também. Não sei o que anda acontecendo com ele, , mas alguma coisa tem. Ele não era assim.
— Não me importa, nada justifica o que ele tá fazendo com a Julliebee.
— Julliebee?
— Eu gosto de apelidos, não enche.
jogou as mãos para o ar. Então nos chamaram para comer.
Não seria saudável ele dormir aqui. Já tínhamos dormido juntos sem nada a mais uma noite, eu provavelmente não aguentaria mais uma. Talvez, se ele dormisse no lado oposto da casa. Ou do quarto, porque é claro que dormiríamos todos no mesmo quarto.
Aff, como se eu não soubesse me controlar. Se orienta, !
Assistimos a vídeos de toda a parte dos EUA, comemorando o resultado do dia.
Vesti meu pijama estampa de pugs com muito orgulho. Todos riram, mas fez questão de deixar claro que eu estava "hot".
Rapha emprestou uma regata branca para ele, acabando com os estereótipos da sociedade numa única tacada, e Phill emprestou seu shorts azul marinho... Com estampa de arco-íris. É, não se pode vencer estereótipos sempre. E, nesse caso, fodam-se os estereótipos. Arco-íris? Super cool.
Eu fiz questão de deixar claro que ele estava "hot" também.
Somos um casal lindo.
Hm.
Não exatamente um casal, mas enfim, lindos.
Então jogamos jogos estúpidos a noite toda, e bebemos durante o processo, e ficamos só falando baboseiras e assistindo a vídeos sem sentido no YouTube, num quarto forrado por colchões.
Provavelmente deu na cara que eu estava tentando dormir o mais longe de possível, mas todos tiveram o bom senso de fingir que não perceberam.
Também tiveram o bom senso de fingir que não viram que estávamos juntos na manhã seguinte, dividindo o colchão "dele".



Capítulo 35 — And his voice is a familiar sound, nothing lasts forever but this is getting good now.

(Wildest Dreams – Taylor Swift)

A treta ficou séria no Teatro, e eu lembrei o motivo pelo qual não queria pegar o papel principal no começo do semestre. Eu tinha que estar ali o tempo todo, à disposição não apenas de Margaret, mas também de todos os outros alunos. Desde o elenco até os figurinistas. Deus nos acuda se as cortinas da janela de Julieta não combinarem com OS MEUS OLHOS, sabe? Inferno, até as moças da limpeza perguntavam coisas para mim como "Será que esse produto deixa o chão limpo demais? Não vai ficar incongruente à época?"
Sim, eu sei, muito apertáveis! Elas também gostavam de encenar as falas. Coitadas, mal sobrava tempo para elas limparem o Teatro sem estarmos ali fazendo uma algazarra. Não, nós tínhamos que atrapalhar o trabalho delas também. Pelo menos, elas se divertiam.
Com a data da apresentação definida, tudo ficou completamente insano. Em casa, declarei formalmente que só apareceria para dormir, caso não acabasse acampando na escola, e comecei a nova rotina.
Nova rotina: quase não ver as belíssimas faces dos meus familiares. Tirando Aimée. Aimée ia comigo de manhã, afinal, e me ligava pelo facetime no fim da tarde para ter certeza de que eu estava bem – e não apenas viva, como também corada e bem alimentada. Ela trazia café quando saía da escola, de vez em quando um doce também. Glicose direto para as minhas veias.
Eu caminhava pelo jardim da entrada da Ferdinand sem me preocupar em passar despercebida, eu era provavelmente a única do grupo que havia feito a lista de questões de Literatura – tendo lido todos os livros citados nela. Todos iam querem dar uma espiada nas minhas respostas.
Os minutos livres do dia eram utilizados para colocar tarefas em dia e, por sorte, nas matérias em que eu sofria mais, era extremamente bom. Não apenas em resolver os exercícios, como também em explicar o que eu não entendia. E, novamente por sorte, estávamos passando boa parte do nosso tempo juntos.
Agora a escola estava cheia de cartazes de Reis e Rainhas, obviamente para o Baile de Inverno, incluindo o cartaz de um casal sensacional que fizeram um photoshoot completo que estava mais para "Rei e Rainha do RAP, YO!" que com certeza ganharia o meu voto, apesar de eu não gostar nem um pouco dessa coisa de Rei e Rainha do baile. Faria uma exceção por eles sem pensar duas vezes.
Os cartazes me lembravam do episódio homofóbico de alguns dias atrás, então, no geral, eu não gostava sequer de vê-los. Especialmente o que reunia uma das cheerleaders e um dos jogadores do time de basquete. Brancos, loiros, de olhos , sorrindo o sorriso de opressão histórica exercida às cegas. Como esse tipo de ser humano gosta de afirmar, "racismo inverso" da minha parte. Em verdade, esse é o termo errado para o sentimento despertado no âmago do meu coração.
É só ódio, mesmo, do maldito sorriso opressor. O sorriso que diz o que se passa naquelas cabeças, além de vento. Superioridade. Eu sou tão melhor que vocês, esquisitos. Como ousam serem esquisitos assim na minha presença? Não. As coisas são assim, porque afinal ninguém inventou nada, né? A sociedade já nasceu pronta, então por que nos preocuparíamos em mudar algo? Vocês são loucos. Esquerdinhas.
Argh.
A gente tem que se preocupar quando simples Direitos Humanos vira uma coisa de esquerda.
No entanto, em meio aos nauseantes cartazes do Baile de Inverno, havia outro cartaz que passava batido. Muitas vezes coberto por outros cartazes, esquecido. Eu mesma só passei a reparar nele quando Phill chegou com um na nossa mesa.
— Festival de Outono!
— Ual! Achei que não teria esse ano! – pegou o cartaz, rindo. – Anunciaram o Baile mais cedo que o normal... Maldito Baile, sempre rouba toda a atenção.
— Como sempre. Logo menos vão anunciar o Baile antes do período letivo começar. Pode anotar. – Rapha disse, com seu ar de sabedoria no melhor estilo Dumbledore.
— Festival? – perguntou. – De quê?
— Artesanato. – respondeu, seco.
— Ouch! Você anda convivendo demais com a senhorita Só-Depois-Das-Nove-Horas . – comentei, recebendo um olhar de sono de e um sorrisinho de . Que podia significar "Isso aí, não falem comigo antes das nove horas" ou "Espere só eu acordar, isso vai ter volta, querida".
A mesma que, por sinal, estava com a cabeça deitada na mesa sem sequer se importar com as questões de Literatura. Ela era inteligente, com certeza fizera tudo sem maiores dificuldades na noite anterior. E já havia lido os livros anteriormente.
Mas ninguém se atreveria a pedir para ver as suas respostas. Pelo menos não antes das nove.
— Música, priminho. – respondeu, sem tirar os olhos das minhas respostas. – E nós com certeza vamos participar. O prêmio é recompensador.
Engoli em seco. Não existe um prêmio.
O Festival de Outono é uma festa que dura doze horas seguidas, com músicos da Ferdinand e de fora dela. Qualquer um pode se inscrever e tocar no dia. Pessoas podem se conhecer e decidir tocar algo juntas. É maravilhoso.
Ou seja, não podia vir nada bom de . Seja lá qual fosse o "prêmio" a que ele se referia, só podia ser algo ofensivo.
, claro, não sabia disso, e fez a pergunta que ninguém mais faria:
— Tem um prêmio?
— Claro. As garotas. Toda garota adora um músico.
O grunhido que saiu da minha garganta foi involuntário, levantar foi automático. Antes que desse por mim, eu estava caminhando para o mais longe possível. Até que ouvi começar a falar.
— Não somos prêmios, . Não somos um objeto pra você adquirir e desfilar por aí. Babaca.
Tive que me virar novamente para não perder a imagem incrível de , em toda a sua glória, arrancar as folhas de e vir na minha direção. Ela disse para os outros "Quem não for um otário, pode vir comigo, mas eu não fico aqui e essas folhas muito menos."
E entregou as folhas na minha mão. Segui-a tão orgulhosa da nossa amizade que estava prestes a lacrimejar.
Becky veio rindo e batendo palmas, e ela sequer precisava das folhas. Por motivos diferentes dos de ; Rebecca não fingia ser o que não era nem ao menos com uma simples tarefa para nota. "Isso aqui é o que eu fiz, isso é o que eu sei, então é isso aqui que vão corrigir. E se não gostarem, o problema não é meu".
Ponto para Rebecca Montgomery. Apesar de que ela jamais aceitaria receber pontos, biscoitos ou palmas por isso. As pessoas que verdadeiramente prezam a autenticidade não costumam querer reconhecimento por isso. Elas apenas são.
Fomos até as árvores próximas da divisa com o Middle School, meu ponto de leitura favorito, e sentamos. Aproveitei para mandar uma mensagem avisando Aimée, caso ela quisesse nos fazer companhia.
(arrastando ), Phill Rapha, e (!) vinham atrás de nós, deixando apenas com . Que, eu espero, tenha ficado para trás somente pelo histórico deles. Se eles realmente eram próximos a ponto de se considerarem família, era o mínimo que podia fazer.
Tentar por juízo na porcaria da cabeça do "primo" dele!
Não, não fiquei com raiva. Não de . Todo mundo precisa de um amigo, até os babacas como . Todo mundo precisa de alguém que aguenta os seus piores momentos. E aquilo era um momento, estava cada dia pior e ficava difícil lembrar de como ele era sereno e amigável no começo do High School... Eu quase não lembro dele tocando piano na sala de música velha.
Se existe uma força maior por aí, e um lugar bacana pra se ficar após a morte, desejei que fosse recompensado de alguma forma por sua alma caridosa. E que ele tivesse muita paciência para lidar com e ajudá-lo.
Eu, porém, tinha coisas mais importantes fazer, e tudo bem se "a força maior" não quiser me recompensar, porque eu precisava muito, por exemplo, deitar na grama e ficar olhando o céu.
Muito importante.
— Então, o Festival de Outono... – Phill deitou ao meu lado, deliberadamente me encarando com seus enormes olhos verdes. – Nós temos que participar.
Gargalhei. Um pouco histérica, assumo.
É o peso das responsabilidades acumuladas caindo sobre a minha pouca sanidade.
— É mesmo? – questionei.
— Sim, ! É o nosso último ano aqui! – ele falou, sentando, desastrosamente agitando as mãos para todos os lados.
— Se continuarmos dizendo "É o nosso último ano aqui!" e fazendo tudo que aparecer pela frente, vamos fazer TUDO, menos nos formarmos! E aí não vai ser o nosso último ano, porque vamos REPETIR. – respondi no mesmo tom animado que ele, apenas pelo prazer da ironia.
— Sempre TÃO dramática. - Phillipe reclamou num muxoxo.
Dei de ombros.
— Você sabe que eu tenho razão.
— Quando é que você não tem, né? – Phill revirou os olhos, voltando a deitar ao meu lado. Dessa vez, mais rabugento.
— Acho que uma versão acústica seria legal. Se tivesse alguém que topasse tocar Tegan & Sara comigo...
mal terminara de falar quando Becky gritou:
— EU! VAMOS!
— YAY! – comemorou.
— Back In Your Head, por favor. – pedi. – De nada.
Elas se juntaram e continuaram a conversa empolgadas, olhando algo nos celulares – provavelmente cifras da música.
Pressenti o que aconteceria, e assisti acontecer. Em menos de um minuto, todos tinham escolhido uma música para tocar no Festival. E no minuto seguinte, todos olhavam para mim.
— Por favor, não. Eu já tenho coisa demais na cabeça... Não façam essas caras!
Ninguém disse nada, o que, claro, era muito pior. Seus olhares já eram o suficiente. E eles diziam "Não seja a única chata, ".
Suspirei, quase que num uivo.

*

Havia mais pessoas do que o previsto. O mistério das aulas de dança trouxera muitos alunos para a apresentação no Teatro da Ferdinand.
O nervoso que senti fez uma pergunta finalmente surgir na minha cabeça:
"O que eu estou fazendo aqui?"
Não, essa também, claro. Mas não era essa.
"Como vai ser com a peça?"
Agora sim.
Provavelmente foi nessa hora que eu comecei a tremer. apareceu ao meu lado sorrindo, e também espiou a plateia. Como ela conseguia sorrir sem parecer que ia desmaiar a qualquer momento?
Eu podia ter reparado na roupa dela, ou em seu cabelo, ou em qualquer outra coisa, mas foi o sorriso que me prendeu.
COMO ela conseguia estar sorrindo?
— Já acostumei com esse nervosismo. – disse, lendo minha mente. – Você vai ver, fica tudo bem depois que começa. Relaxa.
Ri, fiz algumas caretas, esfreguei as mãos na calça, suspirei.
— Você podia me ajudar com isso, né?
Ela riu, mas seu semblante estava carregado de empatia.
— Como? Dicas? Bem, respire fundo...
Puxei-a para mim e uni nossas bocas. Foi um impulso, sim, mas nada novo. Não acontecia muito na escola, é verdade, mas o tempo que estudávamos juntos em casa era cheio de intervalos para isso. Algumas vezes acontecia na Biblioteca, quando não havia ninguém por perto. Eu sempre esperava que ela fosse reclamar, e estava pronto para interromper o beijo, mas apenas correspondia.
Como fez agora. Afinal, o Teatro não era exatamente um cenário estranho a essa cena.
Beijamo-nos com pressa, até mesmo com um tom de desespero, mas a calma de foi se misturando ao beijo, até que ela nos guiava e eu comecei a me acalmar também. Meus batimentos, minha respiração, ela acalmou cada nervo em mim. Só então abri os olhos, e ela cortou o beijo, fazendo o mesmo.
— Melhor? – perguntou.
— Sim.
— Então talvez você deva aproveitar e limpar o batom vermelho do seu rosto.
Passei os dedos pelos meus lábios e meus dedos saíram avermelhados.
— Wow.
riu.
— Vou retocar o meu batom, por motivos óbvios. Lembre-se de respirar. - ela disse, já se afastando.
— Pode deixar.
Limpei o rosto no banheiro e já aproveitei para jogar água em todo ele. Quem diria, eu, , sentindo um nervosismo desse. Decidi ir atrás de antes que tivesse uma crise de novo.
Matteu estava lá, claro. O aluno prodígio de Victor, deliberadamente dando em cima de , para variar.
Pra variar, também, tive que segurar o famoso "leão dentro do meu peito" e decidi apenas assistir de longe, apesar de querer ir até lá e dar um soco na fuça de Matteu.
Não era ciúmes, era o modo como ele invadia o espaço dela, e ela claramente não gostava daquilo. Era possível ver no rosto dela o quão incomodada ela se sentia, com letras neons em sua testa que soletravam distância. Ela não demorou muito para se cansar, deu um sorriso amarelo e se afastou sem dizer nada.
Viu, leão? Nossa garota sabe se cuidar sozinha, não tem motivos pra dar uma de louco e surgir dando uma voadora na cara do coleguinha.
— ODEIO esse tipo de pessoa! – ela sussurrava entre dentes para assim que me juntei a elas. – Parece que eles querem sugar o seu ar e roubar o seu espaço... Oi, ! Tá melhor?
— Sim. Quer que eu bata nele por você?
Shhh, leão!
Ela riu.
— Você viu isso? Pff. No entanto, desnecessariamente muito homem das cavernas.
— Sim, eu sei. Mas, precisando... Nunca se sabe.
— É. Fique de olho, porque se precisar eu mesma farei algo e aí sim é bem capaz que eu vá precisar de ajuda porque com todos os meus 1,65m de altura...
— AMIGA, VOCÊ CRESCEU??? – gritou, quase não conseguindo segurar a risada.
— Vá se ferrar, fofa! – respondeu, escondendo um sorriso ladino.
— Vai você, lindona!
esbarrou o corpo no meu, de lado, e sorriu.
— Respire, .
— Ah, ok. – ri, meio nervoso. – Ainda vai demorar muito pra começar ou...
— Queridos! Chegou a hora. Todos para o palco que a cortina abre em cinco. – Victor disse, já saindo da sala e sendo seguido pelos alunos.
— Cinco? Segundos? – levantou em um pulo, e percebi que eu não era o único nervoso.
— Claro, com certeza são segundos. Ou milissegundos, quem sabe? – revirou os olhos.
— Você tá além do mau humor normal, amiga. – comentou. – Aconteceu algo?
não respondeu, o que fez franzir o cenho.
Arrumamo-nos em nossos postos com rapidez, então cerca de dois minutos foram apenas silêncio e olhar nos olhos. Desviamos algumas vezes antes de finalmente mantermos o olhar fixo um no outro. Não era melhor que beijá-la, mas também me ajudou com o meu nervosismo.
— Quer dançar? – ela perguntou, levantando uma das sobrancelhas numa tentativa cômica de parecer misteriosa.
— Com você? Com certeza.
— Então vamos, gato. – piscou exageradamente, e quase que ao mesmo tempo pudemos ouvir os alto-falantes pedindo silêncio.
Ri, e os alto-falantes soaram novamente, dessa vez com a mensagem de segurança.
— Espero que não tenha um incêndio.
— O único incêndio aqui vai ser causado pela nossa coreografia. – disse, confiante. – Pronto?
Respirei fundo e assenti.
— Pronto.
As cortinas finalmente se abriram, e a música começou.
Logo, tive uma sensação intensa de surdez. As únicas coisas realmente distinguíveis naquele cenário eram a música e a garota a minha frente. Em segundo plano estavam os outros casais, e a plateia podia estar vazia ou abarrotada; eu não saberia dizer.
A roupa de se movimentava para todos os lados, acompanhando fielmente os movimentos de seu corpo. Dessa vez, fizemos a coreografia sem realmente estarmos bravos um com o outro, porém mantendo a intensidade exigida. Vivíamos uma briga através da dança, repetindo os passos do casal até eles finalmente entrarem em sincronia.
Respirávamos fundo quando a música acabou, nossos rostos tão próximos que quase a beijei. Salvo apenas pela própria , que, sem desmontar a pose em meus braços, levemente tombada, virou o rosto para o público e sorriu.
As palmas foram ensurdecedoras, e o silêncio em minha cabeça foi substituído por caos.

*

Desfilei pela Ferdinand ainda com a roupa da apresentação; assumo, era um costume do Teatro. Sempre saíamos para jantar depois de uma apresentação ainda com o figurino. Não era um desafio muito grande para mim; mas as pessoas que se fantasiavam de cavalo, por exemplo...
Todos ficaram em pé para nos aplaudir, e fiquei extremamente feliz pelo interesse que alguns alunos demonstraram em fazer as aulas. Porque eu, sem dúvidas, teria que pará-las. Talvez participar somente de algumas, mas jamais faria outra apresentação.
Senti uma pontada de tristeza e fiz questão de a afastar. Não era a hora de ficar triste.
parecia um pouco mais selvagem que o normal. Seus olhos estavam mais reluzentes, vívidos; como chamas de gelo que queimavam ao invés de congelar. Eu poderia estar imaginando, claro, minha imaginação sempre voava para níveis que não consiguia alcançar.
Poderia ser efeito da performance perfeita.
Toda vez que ele me olhava eu sentia meu coração queimar e meu corpo congelar. Pelo simples prazer de me torturar, ele se sentou bem a minha frente no restaurante mexicano que Victor escolhera.
Belina passou nos elogiando, e Matteu fez o mesmo. Dessa vez respeitando o meu espaço pessoal, muito obrigada! Que evolução.
Victor ficou na ponta oposta, onde a conversa era mais alta e animada. Provavelmente pessoas que continuariam fazendo as aulas. Nossa ponta da mesa estava estática; em êxtase pelo sucesso da apresentação, mas ciente de que seria a nossa última.
Eu estava experimentando aquela sensação de missão cumprida.
Estava feliz.
— Eu nunca comi mexicana. – comentou, recebendo olhares arregalados de todos.
— Prepare-se. A sua boca vai doer de tanto prazer. – eu disse, dando de ombros. – Esteja pronto.
A expressão de ficou repentinamente séria.
— Eu nasci pronto.
É claro que adorou a comida. Ele não conseguia parar de atacar os tacos. Eu entendo esse sentimento, já estive naquela situação quando e me levaram ao meu primeiro restaurante mexicano.
Um momento que nunca se esquece, porque te marca para sempre. O que estamos fazendo aqui, comendo hambúrguer o tempo todo, quando existe culinária mexicana?
Italiana também. Sem motivos para sentirem ciúmes, italianos.
Enfim, eu não sou exatamente um parâmetro para isso; comida é uma maravilha e ponto final. Agora, uma pessoa na mesa estava com a cabeça muito mais longe do que a minha — o que, convenhamos, é uma situação raríssima no meu cotidiano. deixava raros "ah" escaparem, a maior parte do tempo apenas fazendo gestos com a cabeça ou as mãos. Ele parecia ter dificuldade em lembrar que estávamos cercados por outras pessoas, e não tirava os olhos de mim.
Isso, somado ao bizarro efeito de calor no meu peito e frio no restante do corpo... Bem, em questão de uma hora eu não estava nada bem. Minhas mãos suavam, apesar de frias, e elas não paravam de subir para a minha nuca e descer para as minhas pernas. Todo momento em um lugar diferente, procurando por algo que não achariam ali, assim.
Eu comecei a me sentir mal porque não estava deliberadamente ignorando as pessoas, eu simplesmente estava perdendo a habilidade de me concentrar. E ignorar pessoas não é algo que me faz sentir orgulho de mim mesma, então logo eu levantei com a desculpa de que ia ao banheiro, e tive a brilhante ideia de aproveitar a desculpa para lavar o rosto.
Além de, claro, respirar fundo.
Tinha certeza que ou , ou talvez ambas, viriam atrás de mim. Era uma questão de segundos. E elas não me desapontaram.
Elas jamais me desapontavam.
— Eu ia dizer a frase óbvia então vou deixar a começar, porque não curto clichês tão escancarados. – encostou no batente da porta, claramente julgando o meu estado com o olhar.
Sequei o rosto.
, você tá bem?
A expressão de era mais serena; ao contrário de , ela tinha até um resquício de um sorriso nos lábios. Provavelmente estava rindo da minha situação, mas, ainda assim, melhor que o olhar fuzilante de .
— Eu... Eu...
— Ótimo, perdeu a capacidade de falar, também. Pelo amor de "Zeus", , apenas diga! Desembuche!
— O quê? – notei um tom assustado em minha voz. Assustado por quê? Com medo de quem? Essas duas pessoas são minhas amigas! HAJA NATURALMENTE, CÉREBRO.
NORMALIZE O SISTEMA, RAPIDÃO.
— ARGH, EU DESISTO! Você faz o diálogo, , eu vou ficar quietinha. – entrou em uma das cabines, provavelmente para não me estapear até eu sair daquele transe.
... Você não está normal desde, bem...
— A dança? – perguntei, e assentiu. – É, eu sei... Eu... Não sei, na verdade, foi tudo tão...
— Intenso? – riu. – Notamos.
— É... Mas eu realmente... Não sei... Não é normal...
, há quanto tempo vocês não transam?
A naturalidade e tranquilidade com que perguntou aquilo me fez sair do limbo.
— Ah... Alguns dias? Uma semana? Foi... Antes da prova...
— Pelo amor de "Zeus", arranjem um quarto e resolvam isso. Aproveitem e assumam o namoro, porque todo mundo já entendeu. Quer dizer, não precisam necessariamente namorar, você me entendeu, apenas assumam em público que tão se pegando, é ridículo ver vocês dois disfarçando quando estamos juntos. Como se ninguém visse vocês sozinhos pela escola, na biblioteca, etc. Pronto, já disse o que tinha que dizer, agora vou voltar pra mesa. Falou.
não esperou sair para rir, mas isso não mudou em nada a postura mandona da Srta. . Alguma coisa havia a mordido, e eu não fazia ideia de quê.
— Ela está ótima, é só uma daquelas coisas pessoais que ela vai mencionar pra gente depois de uma semana que já tiver resolvido, ou ao menos feito de tudo para tentar resolver e só então aceitar que precisa da nossa ajuda. Nada demais. Provavelmente algo com . Talvez ele a tenha pedido em namoro.
— Será?
— Não, acho que não. Ele teria feito todo um estardalhaço, sabe como é, já que é pra se arriscar...
— Ele se arrisca com estilo.
— Sim. Então... Tem algo novo entre vocês, não tem? – perguntou, voltando ao assunto principal.
— Muita coisa. A gente... Tá se comunicando, pra começar. – desatei a rir.
— Ok. Muito bom. Mas cuidado, .
— Sempre.
— Te amo.
Eu tive que abraçá-la. Não era só o "Te amo" do nada, porque fazíamos isso, mas a sua carinha de amiga preocupada.
— Também te amo, !
— Agora, sério, arranjem um quarto.
— Ok.
Voltamos a rir, e só depois de pararmos que voltamos à mesa. O que podia levar um tempo quando se tratava de e eu.
— Pessoal, eu preciso de um ar, acho que vou indo. Foi um prazer dançar com vocês. – declarei assim que me encostei à mesa.
Todos mandaram beijos e Victor se levantou para me abraçar e agradecer. Achei que meus olhos fossem me trair e deixar lágrimas pesadas caírem, mas eles não me deixaram na mão e foram fortes até o fim.
— Apareça sempre que quiser, .
— Muito obrigada, Victor.
Ele piscou e voltou ao seu lugar na mesa. Saí do restaurante antes que meus olhos decidissem parar de colaborar, e não cheguei nem ao fim do quarteirão antes de me alcançar.
— Tem algum lugar pra ir, por acaso?
— Não. Talvez.
— Então, pra que toda essa pressa?
— Porque depende. Talvez eu tenha algum lugar para ir.
— Mesmo?
Ri da lerdeza dele, e então ele entendeu.
— Ah. Bem, eu moro aqui perto.
— É mesmo? Dessa eu não sabia.
Ele jogou o corpo contra o meu, de lado, sorrindo, e notei que suas maçãs do rosto estavam coradas.
Minutos atrás, essa pessoa estava incansavelmente me devorando com os olhos, mas agora era uma hora muito plausível para ficar encabulado. Palmas para o bom senso e para a plausibilidade.
— Eu posso te mostrar.
— Vamos pro carro logo, .
Eu demorei para lembrar de , mas, por sorte, ele não estava em casa. Então eu podia simplesmente ter me poupado de lembrar de alguém que ultimamente só trazia ácido pro meu estômago.
fez questão de afastar esses pensamentos perigosos de mim, e decidiu que seria uma ótima ideia ficar me provocando o caminho inteiro.
— Podíamos fazer uma cena dessa na peça também, né? E não só Romeu e Julieta acordando juntos. Pra dar um pouco de emoção.
Ri, negando com empolgação demais.
— Herege.
— Vai dizer que você não ia gostar? – ele apoiou a mão na minha coxa e deslizou-a para a parte interna, apertando-a em seguida.
Segurei um grunhido.
— Talvez... Mas duvido que as outras pessoas iriam se sentir confortáveis com isso.
Talvez? Você tá passando mal, garota? Fazer uma cena de sexo no Teatro? Até ontem você não dava nem beijo, mulher! Margaret ia certamente me internar se eu sugerisse ou apoiasse uma ideia dessas. EU não ia me sentir confortável com isso... Ou ia?
riu, com seu sorrisinho discreto, me olhando com os olhos somente semi-abertos. Ele piscou, e questionei por que eu não estava rindo ao invés de me sentir extremamente excitada. A casa dele não era PERTO? Devo estar fazendo o caminho errado, não é possível.
Um farol. Ele me beijou tão lenta e torturosamente que dessa vez deixei uma reclamação contida escapar.
— Por que a pressa?
Quis socá-lo.
É assim que ele quer jogar?
Vamos ver, então, quem é que fica com pressa.

*

Ela saiu do carro com a tranquilidade que esboçara antes da apresentação de dança. Esperei-a entrar em casa com uma impaciência crescente, mas não consegui dizer nada para apressá-la; somente observei seus movimentos.
foi direto para a escada e eu a segui.
Na porta do meu quarto ela começou a tirar o vestido, virando o rosto para mim e apontando para o zíper.
Deslizei-o até o fim, e ela voltou a andar.
O vestido caiu lentamente pelo seu corpo antes de atingir o chão, e só então ela se virou inteiramente para mim. Sua lingerie era preta e toda rendada. O sutiã contornava fielmente as curvas de seus seios, a calcinha era a mais fina que eu já havia a visto vestir. Não que eu tivesse visto muitas de suas roupas íntimas, mas essa era claramente nova.
— Comprei de aniversário para mim mesma, mas nunca usei.
— Tem certeza que foi para você?
— Sim, . – ela levantou uma sobrancelha, desafiando-me a dizer que havia sido um presente para mim e ela sabia bem disso. – Por quê?
Não iria cair nessa armadilha, porque entendia muito bem que aquele presente não fora pensado para um cara.
— Porque parece pra mim de tanto que eu gostei, mesmo que não tenha sido a intenção.
Ela riu com gosto, satisfeita com a saída que tomei.
Andei até ela, puxando-a lentamente com a mão em sua nuca para um beijo lento e exploratório.
— Pra quê a pressa, ?
Seus olhos faiscaram enquanto me devolviam a provocação que eu já esquecia de ter feito. Ri, entendendo que aquela seria uma longa noite.
Então tirei minhas roupas também, para empatar nosso jogo.
subiu o olhar pelo meu tronco, fazendo minha pele formigar, e mordendo o lábio inferior, para finalizar.
Dei dois passos em sua direção, e ela foi responsável pela distância restante. Beijamo-nos sem pressa, nossas mãos passeando pelo corpo um do outro com extrema delicadeza.
Encenamos uma dança muito mais lenta que a da apresentação. me empurrou com cuidado, fazendo eu me sentar na cama, e então subiu no meu colo.
Continuamos nos beijando por muito tempo, mesmo nossos corpos pedindo por mais que beijos.
Não havia pressa.

*

Meu celular vibrava insistentemente. O episódio de How To Get Away With Murder estava sensacional, então ignorei o celular durante todos os 50 minutos restantes do seriado. Depois, rolei para longe de , levemente emburrada por estar sendo perturbada tão insistentemente.
Para o meu completo choque, eram meus pais. E Aimée. Eu havia avisado todos eles que não dormiria em casa! Liguei sem ver as mensagens, ligeiramente preocupada. E me sentindo uma pessoa horrível por tê-los ignorado todo aquele tempo.
Aimée atendeu o telefone de casa.
— Anne, você precisa vir pra cá... – ela diminuiu o tom, e falou quase sussurrando: – Não venha.
— Ahn? Aimée? O quê... Eles querem que eu vá para casa por quê? E por que você acha que eu não devo ir? O que tá acontecendo?
Ouvi Donna dizer ao fundo "Mande ela vir rápido! Não me importa na casa de quem ela está, diga que quero ela aqui em cinco minutos no máximo!"
Pelo tom e pelo jeito de Donna, soube que ninguém havia morrido, se ferido, ou qualquer coisa do tipo. Eu que havia feito merda.
O quê, eu não fazia ideia, mas devia ser uma das beeeeem grandes.
— Passa pra ela, Méme.
— Mãe, ela quer falar com você...
"Não! Diga para ela vir!"
— Eu já disse!
Bom, pelo menos Aimée estava do meu lado.
Fiquei ouvindo a discussão por algum tempo, reconhecendo a voz tranquila de meu pai tentando apaziguar Donna.
"Vocês dois, parem! Se vocês acham que eu vou aceitar a minha filha por aí indo pra cama com outras mulheres, estão muito enganados!"
Segurei a respiração.
Caí de volta na cama.
Fechei os olhos com força.
De algum modo, aquele boato idiota e infantil havia chegado em Donna. Provavelmente alguma amiguinha socialite dela. E eu não soube identificar o que era mais ultrajante; ter chegado nela ou ela se importar.
Eles sabem que eu tenho amigos gays. Eles sabem que eu tenho amigas lésbicas. Eles sabem que eu tenho amigas bissexuais. Talvez eles parem no máximo aí, sem considerar que a variação de gênero vai muito além disso; então, é claro, ao ouvir de uma pessoa qualquer que a filha dela é uma lésbica, só podia ser verdade. Donna Marie não tinha motivos para discordar; por que eu teria tantos amigos homossexuais se não porque eu também era uma deles?
Eu, ricona , era uma bela de uma lésbica.
Do fundo do meu coração, comecei a desejar que realmente o fosse.
Por que, deuses, vocês não me fizeram lésbica?
Minhas energias pra lidar com isso novamente não apenas não existem, como são negativas. Parece que eu estou sempre tendo que me explicar para alguém... Eu não tenho que me explicar. Pra ninguém.
Sinto muito, mãe.
— Aimée, tá com o telefone ainda?
— Anne? Sim, sim...
— Diz pra eles que vou seguir com o planejado. Estou cansada demais. Amanhã depois do ensaio de Teatro estarei em casa.
— Tudo bem. Bom descanso, Anne.
— Obrigada, Méme.
Ela sussurrou um te amo antes de desligar, e eu só ouvi o começo do novo surto de Donna.
estava sentado ao meu lado, analisando o meu estado.
— Sorvete? – ele perguntou, levando a mão esquerda até seu ombro direito para coçar a pele exposta, e me forçando a olhar para seu peito nu.
Lésbica, deuses. Vocês deviam ter me feito lésbica.
Será possível tantas pessoas homossexuais terem que ouvir que estão erradas, que não sabem o que são, e etc, como eu estava constantemente sendo vista como homossexual? Eu tinha que pintar HÉTERO na minha cara, por acaso? Não é possível que só uma fofoca já faça alguém ter certeza da minha sexualidade. O que as pessoas consideram ser heterossexual e o que eles consideram ser homossexual?
Provavelmente se dividia em algo assim:
-> Aceita tudo que é dito pela sociedade sem questionar absolutamente nada: hétero.
-> Questiona: homo.
Então, basicamente, estou feliz de constantemente acharem que eu pertenço ao segundo grupo. Claro, esse não é o problema. Realmente não me importa o que acham da minha pessoa, intelectualmente ou sexualmente.
O que me machuca é a limitação imposta ao cérebro humano! Nós podemos ser TANTO, e todo mundo vive com medo de se afastar do padrão e ser julgado. Manter-se no padrão e ser julgado porque alguém vai achar que você não é "padrão" o suficiente. E aí vive-se numa neurose. Mais uma pra lista!
Essa não é a vida que eu quero pra mim.
Essa não é a vida que eu quero pra qualquer outra pessoa.
Nós podemos ser muito mais.
— Ok, sorvete. – se respondeu ao não receber resposta minha, e continuei encarando o teto até ele voltar com um pote de Ben&Jerry's de Cheesecake Brownie.
Ele sentou, apoiando as costas à parede e começou a comer o sorvete sem tirar os olhos de mim.
— Não vai me dar um pouco? – finalmente disse, num muxoxo.
— Ah, você quer? Estava em dúvida se você estava viva, pra dizer a verdade, tava pensando em checar seus batimentos a qualquer instante.
— Muito engraçado, ...
Ele deu uma colher cheia de sorvete para mim. Peguei-a extremamente agradecida.
— O que aconteceu? – ele perguntou, após alguns minutos de silêncio e sorvete.
— Pelo que eu entendi, minha mãe acha que eu sou lésbica.
engasgou com o sorvete porque começou a rir.
— Espera. Ela nunca soube do que aconteceu no seu aniversário?
, querido... – suspirei. – Ela não sabe de nada. Nós não conseguimos ter uma conversa normal sem nos arranharmos. Até quanto tem potencial, alguém acaba chutando o balde e estragando tudo. Ela desaprova demais o meu estilo de vida, e eu desaprovo demais o estilo de vida dela. Só que eu não meto a colher em como ela vive a vida, já ela adora tentar me mudar... E eu, além de não achar justo, simplesmente não consigo mudar. Hoje eu aceito isso.
— E em algum momento da sua vida você não aceitou?
Encarei-o de frente, e vi uma leve surpresa tomar conta do rosto de .
Ah, ele acha que eu sou tão mais confiante do que eu realmente sou.
— Claro. Eu só não consegui mudar. Não significa que eu não tentei, por um tempo. Eu vivi muito tempo fazendo as coisas que Donna queria, mas eu nunca as fiz da forma certa. Ou seja, pra ela foi a mesma coisa que eu não ter feito nada. Nem sequer tentado. Aimée se saiu melhor nisso, então Donna me deixou um pouco "em paz". Você precisava me ver nas aulas de etiqueta. As preparações para o Sweet Sixteen! Que inferno.
— Eu não consigo nem imaginar esse cenário na minha cabeça. Talvez com a ajuda de fotos...
— Nem pensar. Não. Nunca.
— Nunca? – ele riu, desafiador. – Nunca é muito tempo, .
— Nunca. – eu repeti, fuzilando-o com o olhar e roubando o pote de sorvete para mim. – Eu não sou tão confiante quanto você aparenta achar.
— Hm... Tenho minhas dúvidas... Uma pessoa que não tivesse confiança teria mudado de qualquer jeito.
— Hah.
Encaramo-nos por um tempo.
— Ok, então. Acho que podemos assistir a algo mais light agora, não é mesmo? Já viu Gravity Falls?
Dessa vez, tive que engolir o "Eu te amo", porque, realmente? Que pessoa maravilhosa.

*

Ela dormiu no meu ombro depois de duas horas de episódios seguidos, e juntei as minhas últimas energias para arrumar na cama e me deitar ao seu lado. Como se adivinhasse, ela rolou para o meu peito e nos aconchegamos um ao outro. Apertei-a contra mim antes de finalmente dormir.
Esse era um lugar novo.
Esse, de dividir uma intimidade tão profunda com alguém, e servir de apoio em tudo, até mesmo literalmente, como agora.
Tudo era ótimo, e foi pensando no encaixe macio dos nossos corpos que eu adormeci.



Capítulo 36 — Throw me no more bones and I will tell you no lies.

(Never Ending Circles – Chvrches)

Na manhã seguinte, todos na Ferdinand sabiam que algo estava errado, e com certeza suspeitavam que eu tinha alguma culpa nisso. Até que foi chamada para a sala da diretora. Aí todos tiveram certeza que algo estava muito errado.
Comecei a receber mensagens de praticamente todos os seus amigos. Isto é, os que tinham o meu número.
"O que aconteceu?", "Vocês passaram a noite juntos, não? Não precisa mentir.", "Alguém morreu?" e por aí vai.
Sussurrei para , que era quem estava mais perto de mim:
— É a mãe dela. Faça as pessoas pararem de perguntar, e peça para não perguntarem para ela. A tá realmente chateada.
— Notamos, . Obrigada.
Saí da aula depois de dez minutos, em parte porque não queria estar no meio do balburdio, mas principalmente porque queria ir atrás dela. Quando cheguei na sala da diretora, já não estava lá.
A secretária Perkins me olhou com um sorriso e disse:
— Pois não?
— Ahn, a... – pensei em saindo, dizendo que ia voltar para a aula, e eu chegando e dizendo que ela nunca chegou na sala. – Nada, errei o caminho.
Dei a meia volta depois de receber um olhar maternal da Sra. Perkins e segui um instinto repentino: a laje da escola, sempre vazia e com uma ótima vista panorâmica. Subi as escadas e abri a porta com medo de estar errado. podia ter sido forçada a voltar para casa, mas algo me dizia que se isso acontecesse, eles pelo menos a deixariam pegar suas coisas na sala antes, o que não fora o caso.
E ela estava ali, na ponta oposta do último andar da Ferdinand High School, olhando para o que estava à frente. Tudo. Talvez nada, se seus olhos estivessem marejados.
Adivinhando que era eu o responsável pelo enorme barulho produzido pela porta corta incêndio, disse:
— Donna ligou para saber se eu estava aqui. Ela tentou convencer a diretora a me mandar para casa, mas não funcionou. Provavelmente só porque ela mencionou que "recentemente sua primogênita estava fazendo de tudo para tirá-la do sério", o que fez a maravilhosa santíssima diretora estranhar alguma coisa e ir atrás do meu histórico. Enfim, ela disse que não iria prejudicar uma aluna por causa de problemas familiares que podiam ser resolvidos depois. Minha mãe deve ter escalado a parede. – balançou a cabeça negativamente, tombando o rosto para baixo em seguida. – Ela acha que tudo gira ao redor dela, a minha vida se resume em desagradá-la. Foi pra isso que eu nasci, não tenho mais nada pra fazer por aqui. Nada interessante.
Encostei-me ao muro ao seu lado, mas virado para a saída e de costas para o horizonte. Virei o pescoço para olhá-la.
— Eu gosto dessa diretora.
— Eu também. Ela tem diversos prêmios de educação, e pesquisas sem fim na área. Foi um dos motivos para eu escolher a Ferdinand.
— Não estou surpreso. O que me surpreende é como sua mãe consegue achar tantos motivos para não te idolatrar completamente. Você é a melhor filha do mundo. Se você fosse minha irmã, nem o meu irmão teria chances. Você seria idolatrada até por ele, provavelmente.
— Não exagera. – ela deixou um suspiro longo sair de seus lábios, fechando os olhos e deixando a brisa bagunçar seu cabelo. – Eu acho que devo a lembrar muito do passado.
— Hm? Como?
— Quando ela era pobre. Antes de conhecer meu pai. É uma história e tanto, uma que ela só conta quando quer me convencer a participar dos eventos sociais da elite prestigiada de New York. Minha mãe nasceu em uma família operária, meus avós mal conseguiam por comida na mesa, ou seja, os filhos viviam entregando jornais e essas coisas para ajudar em casa. Minha mãe quis ir além. Ela foi atrás dos melhores cursos, frequentou as melhores escolas que podia, vivia em bibliotecas por toda a cidade... E acabou em Harvard. Talvez por minha culpa, afinal, eu nasci no dia em que ela devia ter feito a entrevista... Então, é... Eu me sinto um pouco culpada. Ela não fez Harvard por minha culpa. E largou tudo para ser uma socialite. Porém, ela ainda continuou estudando, por conta. A tese dela? Incrível. Só nunca diga para Donna que eu já li a tese dela. Ok?
— Okay, claro. Wow.
— Muita informação, né? Eu sei... Eu amo minha mãe, .
Acabei não conseguindo segurar o suspiro.
— Mas isso não é sua culpa, . Você não escolhe o dia que nasce. Não aceitaram entrevistá-la em outro dia?
— Você sabe como é. Já não querem mulheres, ainda mais mães. Mães não têm tempo pra estudar.
Não tive resposta pra isso.
— Sua mãe também te ama, .
Ela olhou para baixo, e vi uma lágrima molhar sua bochecha.
— Não sei se sei isso. Não sei se isso é verdade. Não sinto que é. Eu realmente sinto como se tivesse arruinado a vida dela.
A dor da confissão dela fez meu peito doer, e acabei envolvendo-a inteira em um abraço, tentando sugar a dor dela para mim.
— Não diga essas coisas, é claro que ela te ama. É impossível não amar, é genético.
A risada dela foi abafada pelo meu peito. levantou o rosto.
— Não, não é.
— Pois então como você a ama? Não parece que ela te deu muitos motivos para isso, e ainda assim você a ama.
— Porque ela é minha mãe! E eu a admiro muito! Mas... Mas... Ela nunca é assim comigo. Eu não a conheço de verdade, ela não deixa! Ela se esconde atrás daquela máscara de socialite e não me deixa conhecer a Donna de verdade. Eu queria, como eu queria...
Deixei chorar contra o meu peito por alguns segundos, logo ela secava as lágrimas e se afastava.
— Eu respeito as escolhas dela. – disse, voltando a olhar a paisagem.
Abracei-a de costas.
— Eu vou com você.
— Ahn?
— Depois do Teatro, eu vou com você para casa. Para a sua casa. Eu te levo; bem, não exatamente, a não ser que você deixe eu dirigir o seu carro, mas tudo bem se você levar também.
precisou virar para me olhar nos olhos.
— Figurativamente, você vai me levar? - ela riu, jogando a cabeça levemente para trás. - , não precisa...
— Eu vou. Posso não entrar na casa, mas eu vou com você até lá, e vou esperar do lado de fora, e se precisar eu vou interferir. Eu vou. Já tá decidido. A não ser que você considere invasão de privacidade, claro, aí eu vou relutantemente aceitar e ficar só olhando de fora. Porém, eu vou. Aliás, usar "figurativamente" numa conversa cotidiana? Só você, mesmo. Você é demais pra mim. Pra qualquer um, na verdade, mas por algum motivo isso me deixa louco de vontade de te beijar.
— Pare de falar e me beije, então.
Obedeci, porque era sempre a melhor coisa que eu podia fazer. De algum modo, era sempre o que mais me beneficiava.
riu da minha prontidão, mas também não encerrou o beijo.
Ficamos todo o tempo, até o sinal ecoar, assim. Então aproveitamos que os corredores estariam lotados e a sala sem professor para voltarmos à aula forçosamente cabulada e pegarmos nossas coisas.
— Aimée mandou mensagens pelo celular de uma amiga da escola. Aparentemente Donna tirou o celular dela para ela não falar comigo? Loucura, .
— Loucura, . – concordei, recebendo um sorriso cômico dela pelo modo como respondera.
— Ela deve estar preocupada com a possibilidade de "transformar" a preciosa caçula dela em lésbica também.
— Sempre me incomodou como essas coisas demonstram uma ideia frágil da heterossexualidade. Como se bastasse apenas saber que existe outra coisa para o ser; como se nós escolhêssemos.
— Eu penso que, de certa forma, viver em um grupo mais aberto faz você esquecer os padrões e aceitar quem você é. E não somos todos tão definidos quanto gostaríamos de ser. Não existe só 100% hétero, nem 100% homo.
— Ok. Faz sentido.
fez um som de surpresa.
— Acho que você é o primeiro homem no mundo a concordar com isso de prontidão e em voz alta.
— Não tenho problemas quanto a minha sexualidade.
— Ah, entendi, porque você é TÃO hétero que seria impossível s...
— Na verdade, olha, eu tenho uma crush e tanta pelo Johnny Depp. Só não vejo isso como um problema pra minha vida.
gargalhou.
— Você e o mundo todo, !

*

Estava fazendo uma tarefa antes de dar o horário do ensaio quando alguém me cutucou e sentou ao meu lado. , que estava no meu lado oposto, nem sequer percebeu que alguém se juntara a nós.
Aimée sorriu, mas pude ver que ela não estava normal.
— Mal consegui dormir pensando em tudo isso, Anne.
— Como assim, Méme?
Ela me abraçou, de lado e ainda sentada, um tanto sem jeito, mas nos ajeitamos.
— Eu não consegui parar de pensar no absurdo da situação. No começo, eu queria gritar que você não era nada daquilo, mas depois eu queria gritar que você era e tinha direito de ser muito mais? Qual é o problema das pessoas, Anne?
— Méme... – dei um longo suspiro. – Eu aceitei que sou, na verdade. Eu sou uma lésbica que gosta de homens. Mas isso é muito avançado pra humanidade entender.
riu, e até mesmo Aimée deu uma risada, mesmo que curta e fraca.
— Eu devia ter dito? Que você não é lésbica? Eu ia dizer, quando começou, mas ninguém estava me ouvindo. Foi horrível.
— Não, Méme, você fez bem em não dizer. Sinto muito por você ter presenciado isso tudo.
— Tudo bem. O acampamento compensa isso. O papai disse que sem você eles jamais teriam sequer pensado nele. Obrigada. – ela me abraçou de novo, e, dessa vez, ficamos assim por um tempo.
Em silêncio.
Até ela ter que ir embora.
Quando enfim acabamos o ensaio, eu estava metade pronta para encarar a fera e metade preguiçosa demais para me mover até em casa.
Cômico, mas acabou realmente dirigindo o carro.
Ele parou o carro uma esquina antes, virando-se para mim com um olhar preocupado. A minha expressão não devia ser das melhores, também.
... Um jeito de resolver isso, sabe, rápido, seria... Bem, eu poderia pedir pros seus pais pra te namorar, sabe, oficialmente...
— Não. Não. ? Promete que não. – comecei a rir histericamente, demorando alguns minutos para controlar o ataque. – Não, eu não quero nem preciso provar nada pra ninguém, fofo. Obrigada, mas não. Eu jamais aceitaria em condições assim, se você entrar em casa dizendo essas coisas eu juro que saio na rua e beijo a primeira garota que passar, e você não quer fazer isso com a coitada.
De tudo que ele podia dizer, escolheu uma única palavra:
— Fofo?
Ri, depois respirei fundo, e só então pedi:
— Pode parar em frente de casa, por favor.
Ele ainda me olhou por alguns segundos antes de ligar o carro novamente, mas eu estava segura de que ele respeitaria a minha vontade. A expressão de cansaço sumira do meu rosto, e cada segundo era um traço mais firme que eu ganhava. Quando saí do carro, não havia mais nada de medo ou preguiça; eu estava pronta pra passar por aquilo.
Abri a porta de casa e Donna já apareceu no corredor.
Ela começou a falar coisas como "Ela tem casa, olha só, Richard", mas eu estava concentrada em dar meus passos o mais firmes possível, o mais madura que eu conseguisse ser. Olhei-a no fundo dos olhos, sem desviar ou pestanejar.
Richard pediu que Donna voltasse para a sala, e eu os acompanhei. Não quis sentar, e apenas observei enquanto Donna ia de um lado para o outro dizendo tudo que havia "passado" por "minha causa". Sim, uma mulher do grupo de amigas tinha uma conhecida que tinha um filho que etc etc etc, isso não importava. As únicas coisas que importavam era o quanto Donna estava se importando com aquilo, e que ela não questionara em nenhum momento a possibilidade de ser mentira.
Eventualmente ela pararia de reclamar de mim e me faria a pergunta, mas só estar ali ouvindo aquilo tudo significava que a minha resposta não teria valor algum.
Então, enquanto minha mãe dizia todas as piores coisas possíveis dessa vida, eu entendi o que eu sentia em relação a tudo aquilo. Como uma borboleta, nasci para ser diferente e voar para longe, mas, ao invés disso, eu fui capturada e fixada a um quadro para ser categorizada.
Minha forma de pensar era estrangeira, no que estrangeiro significa em seu sentido mais básico: estranho.
A única escolha que eu tinha que fazer era simples. Abraçar a minha estranheza ou tentar me encaixar em alguma categoria.
E matar todo o pouco que havia de realmente pessoal em mim. Não ousava pensar em original, porque, como escritora frustrada, eu entendo perfeitamente que tudo interfere em nós, e é quase impossível pensar algo que não tenha sido influenciado por muitos outros pensamentos alheios. Porém, ainda uso um "quase" antes do impossível, porque acredito que algo em nós é nosso antes de qualquer contato com o mundo.
Aquilo, que estavam constantemente questionando de mim e querendo mudar; isso sou eu.
Deixar isso para trás seria o mesmo que morrer, com o perdão do drama não-intencional.
Quando Donna parou de falar, e finalmente esperava por uma resposta minha, eu sabia exatamente o que precisava dizer.
— Mãe... Eu não vou dizer que o que a senhora ouviu é mentira. Eu também não vou dizer que é verdade. – ela fizera menção de dizer algo, mas Richard pôs a mão em seu colo, silenciosamente pedindo que ela esperasse. Respirei fundo. – A única coisa que eu vou dizer é que eu já fiz a minha escolha, e ela é a seguinte: eu me aceito como sou, como fui, como for. E isso deixa a escolha de vocês: Aceitarem também ou me expulsarem. Literalmente, mãe, pai, porque não me aceitar ocasiona em negar a minha existência, que é o mesmo que me expulsar. Eu irei sem problemas, se essa for a escolha de vocês. – senti que ia fraquejar, e fechei as mãos em punhos. – Mas, se vocês são meus pais, e estão me ouvindo, saibam que eu quero ser aceita. Não pelos outros, só por vocês. Ninguém mais importa, realmente. Vocês sim. Saibam quem eu sou, aceitem me conhecer, e nada mais importa pra mim.
Aimée, que devia estar escondida na escada esse tempo todo, entrou na sala com o rosto úmido e os olhos vermelhos e me abraçou. Sem dizer uma única palavra.
Abracei-a de volta, abandonando a postura firme e confiante, sentindo um pouco da exaustão voltar. Como fechara os olhos, não percebi que mais alguém se aproximava. Quando ele nos abraçou, eu soube que era meu pai. Olhei dele para Donna, sentindo meus olhos lacrimejarem. Meu corpo ecoava um único pedido, "por favor", e meus olhos o disseram para ela.
Donna deixou um soluço escapar e cobriu a boca em seguida. Seus olhos marejaram, e ela finalmente levantou e correu até nós.
Desabei junto com o peso que caía dos meus ombros, e disse entre soluços:
— Eu amo vocês.
Aimée respondeu com presa, atropelando-se num ato desesperado de me dizer que eu era amada também.
Meus pais responderam depois.
"Nós também amamos vocês."
Minha mãe disse baixinho ao pé do meu ouvido: "Desculpa."
esperava com uma expressão tensa encostado ao carro. Como minha aparência não era das melhores, sorri. Ele se desencostou, vindo em minha direção, mas antes que perguntasse algo, minha família apareceu na porta e Donna disse:
— Está com fome, querido?
— Ah... Eu... – ele gaguejou, e assenti com um leve aceno de cabeça. – Pra ser sincero, sim?
— Isso foi uma pergunta, ? – meu pai perguntou, rindo.
— Não, não, foi uma afirmação. Mas não quero ser um incômodo, já vou indo, só...
— Fique, vamos pedir comida japonesa. – eu disse, encostando o meu ombro ao dele. – Não vai ser incômodo algum.
E, então, ele aceitou, e voltamos para dentro de casa.
Foi o almoço mais "família" de toda a minha vida. Comemos na sala, assistindo ao episódio IV de Star Wars, A New Hope (Uma Nova Esperança), meus pais no sofá e Aimée, e eu no tapete, encostados ao sofá. Comentando o tempo todo sobre o filme, fazendo ligações com acontecimentos diários ou apenas mencionando fatos curiosos.
— Ainda não acredito que vai sair um filme novo. – Richard disse. – Faz eu me sentir com 14 anos novamente. Quero vestir minha roupa de Jedi e ficar na fila para o cinema.
Todos nos viramos para encará-lo.
— Pai? – Aimée disse. – Pai, o senhor era... Tem nome pra fã de Star Wars?
— Fã de Star Wars. – Richard respondeu, rindo em seguida. – Sim, e, por favor, não me julguem.
Suspirei, rindo ao final.
— Pai, eu não estou te julgando. Fiz isso em todos os filmes de Harry Potter. E eu acho muito importante ser entusiasmado com coisas. Principalmente com coisas da área da imaginação.
Deixei a sensação de familiaridade transbordar pelo meu corpo. Era a coisa mais em comum que eu jamais teria com o meu pai.
— Bem, ninguém perguntou, mas... Eu prefiro Star Trek. E temos nome, Trekkie.
Donna. Foi Donna quem disse isso. Dessa vez, meu queixo caiu.
MEUS PAIS SÃO RIVAIS DE FANDOM.
E MUITO ANTES DE ISSO SER COOL.
— Nossa. – foi o único capaz de falar, já que a única outra pessoa que não estava surpresa era meu pai, e ele estava ocupado demais rindo. – Vocês são Romeu e Julieta da vida moderna.
Santo Zeus.
Sim.
O filme acabou tarde, e pedi permissão para dormir em casa. Montamos o acampamento na sala, e Aimée dormiu comigo no sofá – que é daqueles gigantes, que deitam e etc, e ficou com um colchão no chão. Dormimos assistindo a Pokémon no Netflix, meio conversando, meio dormindo.
Na manhã seguinte, saímos mais cedo de casa para passarmos na casa de antes de irmos para a escola. Deixamos Aimée no Middle School e fomos para o estacionamento.
Então, entramos juntos na Ferdinand. E eu só fui pensar no que isso podia gerar depois de receber os olhares dos meus colegas de escola. Até então, mesmo nas ocasiões (raras, ok) em que dormimos juntos, nós entrávamos separados porque eu ia buscar Aimée para deixá-la na escola.
Claro que, diante dos olhares completamente escancarados, eu comecei a rir.
E só parei quando chegamos aos nossos colegas de verdade.
— Teve festa do pijama, por acaso, e eu não fui convidada? – cruzou os braços, fingindo muito bem estar brava.
Claro que ela estava nos zoando, apenas. É pouco dizer "Ontem teeeeeeeeeeeve!", não é mesmo?
— Só falta dizer que teve Star Wars também, aí eu corto amizade. – disse, participando da brincadeira sem fazer ideia do quão certa estava.
— Tô feliz por vocês, finalmente assumindo que não são mais virgens e deixando claro que estão exercendo o máximo possível a não-virgindade de vocês. Lindo, de verdade. – Phil fingiu secar lágrimas imaginárias dos olhos.
— Céus. Pior que se eu disser o que realmente aconteceu, ninguém vai acreditar. – ri, amaciando as têmporas.
— Essa é a pior desculpa esfarrapada já conhecida, então dizer isso não ajuda muito também. – disse, rindo em seguida.
— Bom, então melhor nem dizer o que aconteceu, né?
Ameacei ir embora e fui puxada de volta por algumas mãos.
— O que aconteceu, princesa? – Phil disse, tentando fingir que não estava interessado.
— Minha mãe ficou sabendo do boato...
— Meu deus! – Rapha levou as mãos até sua boca, fazendo sua melhor expressão de Rainha do Drama.
— Te expulsaram de casa. – falou, com toda a certeza possível.
— Aí o te ofereceu abrigo. Hm, podia ser pior. Não tem amor familiar, mas tem sexo. – deu de ombros, como se realmente ponderasse as opções.
— Na verdade, eu fiz um discurso show, disse que não ia desmentir e nem dizer que o boato era verdade, e que eles precisavam me aceitar como eu era ou me deixar ir e me esquecer. E eles me abraçaram e nos amamos muito, Donna pediu desculpa pelo surto todo e eu saí para avisar que estava tudo bem, mas eles acabaram convidando ele para jantar. Comemos comida japonesa e assistimos a Star Wars. Bem resumidamente, foi isso. Acho melhor contar com detalhes, se vocês quiserem...
A roda permaneceu em silêncio por um bom tempo.
, não zoa com a nossa cara desse jeito. – disse, dessa vez, realmente nervosa.
— Foi surreal, eu sei, mas aconteceu.
— Eu nem sei... São seus pais, mesmo? Ninguém abduziu sua mãe? – perguntou.
Para a minha própria surpresa, meus olhos se encheram de lágrimas. Solucei.
— Sim, tenho, eram mesmo meus pais. E minha mãe.
Rapha veio me abraçar na hora.
— Que bom, amiga. Já tinha passado da hora, né! Agora conta com detalhes.
O carinho de Rapha me fez voltar a rir.
— Ok, então, primeiro Aimée me ligou...

*

Mais uma tarde no Teatro, e mais uma noite na Biblioteca. estava fazendo um trabalho que eu não fazia ideia de onde ela havia o tirado, porque não podia ser o mesmo trabalho de História que eu tinha que fazer.
— Você tá fazendo isso porque não tem coisas suficientes para se preocupar, ou...?
Ela riu, apesar de ser uma risada cansada.
— É o Marcell. Ele continua com a história de que vai fazer a minha carta de recomendação se eu me demonstrar digna o suficiente. Acho interessante que, mesmo sabendo que ele me odeia e nunca vai fazer uma carta de recomendação pra mim, eu tento do mesmo jeito. Ou seja, acho que sou sadomasoquista.
— Bem, eu tenho uma mente aberta, se você quiser nós podemos testar essa tese qualquer dia...
Dessa vez ela riu com um pouco mais de vontade, e até levantou o olhar dos livros.
— Ok, e a minha palavra de segurança vai ser "puggies de skate". Quem sabe? O pior é que ele é um historiador incrível! As coisas que ele me passa pra ler... Eu quase considerei mudar de ideia e fazer história em Harvard. Porém, ele adivinhou meus pensamentos e me proibiu de fazer isso. Foi show.
Dessa vez, eu ri.
— Sério?
— O quê? Os puggies de skate ou fazer história? – ela perguntou e eu só consegui rir, então continuou. – Sim, ele disse que viu meus trabalhos de literatura, o que só em si já me dá pesadelos suficientes para uma vida toda. Porém, ele foi além, e disse que também conversou com meus professores de literatura. E, basicamente, eles fizeram um ótimo trabalho em aumentar as expectativas para as minhas análises literárias. O meu trabalho de história? Ele pediu para eu relacionar diversos livros, fazendo uma análise histórico-literária. Estou sofrendo, basicamente, e amando. Ao mesmo tempo. Sadomasoquismo.

*

Ele riu. De novo. Eu estava especialmente engraçada hoje.
— O que foi? – perguntei.
— Falando em sadomasoquismo... Agora que superei a coisa toda, deu saudade do Canadá. Muita saudade mesmo.
— Ah...
— Você viria?
— Ah? – tentei não gritar, ou sair correndo.
— Comigo. Você iria pro Canadá comigo? Talvez... No dia de Ação de Graças? Lá já foi, mas sempre comemoramos junto com o daqui porque meus avós são norte americanos... Bem, é incrível, nós sempre vamos ao jogo dos... Ah, claro, sua família...
— Não! Não, minha mãe é péssima com o dia de Ação de Graças. Eu adoraria ter qualquer desculpa para fugir dela. Ela com certeza não reclamaria de eu passar o feriado com a sua família.
Minha mente podia se resumir em uma linha de pensamento assim: "wow" "wow" "wow" "isso é sério" "wow", porque, apesar de eu já conhecer os pais de ... Era diferente. A casa deles. No país deles. A família toda dele. E eu.
Eu de intrusa. Eu em contato com toda a vida dele antes de conhecê-lo.
— Então feito. Meus pais vão adorar. Talvez eles convidem todos vocês, de tão empolgados. Isso seria a cara deles. Acha que seus pais aceitariam?
OK, se tiver mais gente junto, as atenções não ficam só em mim. Talvez seja um pouco melhor.
— Até ontem, eu diria que Donna jamais abandonaria suas chatices sociais, mas acho que talvez exista uma chance de ela aceitar... Além de tudo, seria uma viagem para outro país, né. Deve ganhar de festas da elite. Por mim, ganha atropelando, mas acho que nem minha mãe resistiria... Tem certeza? Quer levar a minha família inteira pro Canadá?
— Claro! Por que não?
Apenas o olhei, como se ele fosse a coisa mais pura e inocente desse mundo.
Depois de tudo que ele vira sobre a minha família, ele queria nos levar para o seu o dia de Ação de Graças perfeito no Canadá, com a sua família perfeitamente saudável e sem problemas.
E ele achava que seria ótimo.
Pobre alma.
Eu queria colocar em um potinho e protegê-lo dos males do mundo.
— OK. Cada louco com a sua loucura, já diziam.
riu e se inclinou para mim, beijando meus lábios com doçura, e depois me olhando sem colocar entre nós mais que os centímetros necessários para me enxergar com foco.
— Agora estou ansioso para o dia de Ação de Graças, e antes nem sabia o que pensar dele.
— Posso dizer o mesmo, pensando bem.
No final de semana, fiquei sabendo de um festival incrível que estava acontecendo no Central Park. Um festival era exatamente o que a minha alma precisava depois dessa semana louca.
Música nova, música boa, um lugar na grama para sentar e apenas curtir.
Peguei o celular em um impulso, e mandei a mensagem antes que pudesse mudar de ideia.

*

"Hey, muito ocupado?"
Era . Destravei o celular, largando a lapiseira na cama e me encostando à parede para digitar uma resposta.
"Um pouco."
"Mas com estudos, então se tiver uma sugestão melhor, por favor, ME SALVE"
Ela respondeu com uma risada, e depois disse:
"Se arrume, em 15 minutos eu tô aí e vamos pegar o metrô novamente. Até xx"
Simples assim.
Ela chegou em treze, o que significa que me pegou semi nu.
me deixou entrar. – ela disse, rindo. – Você ainda não foi tomar banho?! Eu disse minutos, não horas.
— É, faltou eu entender isso. Dá próxima, desenhe. – dei de ombros, vestindo a camisa. – Pronto, apressadinha. Tô pronto. Você que chegou mais cedo. Quatorze minutos agora, vê?
Ela apenas riu.
E continuou não dizendo para onde íamos. Porém o caminho me lembrou muito o passeio de metrô que fizemos a última vez, então suspeitei que ele fosse dar no mesmo lugar, apesar de existirem outras possibilidades.
Acabou que eu estava certo, e acabamos no Central Park para um Festival.
— SummerStage?
— Descobri hoje, tem uma tag no twitter.
— Claro.
Ela riu.
— As pessoas em New York usam muito o twitter pra falar de atividades culturais que tão rolando, é só seguir as pessoas e as tags certas. Vi a Amanda Palmer umas duas vezes, assim.
— Claro. – repeti.
— Não força... – pareceu que ia dizer algo a mais, porém mudou de ideia.
Sentamos em uma colina com uma ótima visão, depois de retirar um cobertor compacto da bolsa e estendê-lo na grama. Estávamos entre um carrinho de hot dog e um de sorvete. tinha mais coisas em sua bolsa, apesar de ela ser de um tamanho médio para pequeno; carteira, celular, iPod e fones, um bloco de notas com uma caneta presa a ele, um prendedor de cabelo e a máquina de fotos instantâneas. Por algum motivo, aquilo me fez lembrar da bolsa em Harry Potter que a Hermione enfeitiça para caber mais coisas dentro.
O que, claro, me fez pensar em Doctor Who em seguida. E aí achei melhor cortar a viagem.
Eu, que sequer levara uma bolsa, questionei a necessidade de tudo aquilo. Com minha carteira em um bolso e o celular em outro, poderia atravessar a cidade inteira.
Como se adivinhasse, ela fez questão de usar cada uma daquelas coisas. Enquanto o festival não começava? Ouvimos música no iPod. E ela rabiscava no caderninho, tanto palavras quanto desenhos. Assim que o festival começou, ela pegou a câmera instantânea. Tirou fotos dos artistas e fotos aleatórias.
Percebi que estava fazendo parte de um ritual comum.
Percebi também que provavelmente estava sendo um intruso nesse ritual. Mas não disse nada. Se ela realmente costumava fazer isso sozinha, não devia questionar por que eu estava ali dessa vez. Só devia, sei lá, tentar merecer estar ali.
Estávamos curtindo o Festival bem tranquilos, anotava os nomes dos artistas que gostava, filmava algumas músicas e só, até que uma mulher de cabelos entrou no palco.
— Wow, belo cabelo. – disse, pegando a câmera instantânea para tirar uma foto.
Mas não parou por aí.
— Meu nome é Marina. Eu tenho 20 anos. Sou pisciana. Nasci em Florham Park. E adivinhem só! Eu canto, também. – a moça de cabelos azuis disse, e riu. riu também, ainda vidrada no palco. – Essa é a minha Ode To The War.
It was a cold winter day
Like the one when I was born
And I could hear in every tone of voice
The fear they felt
I tried to be good
Já estávamos com a plateia junto ao palco antes mesmo do refrão. enfiara tudo de volta em sua mochila, menos o celular e a câmera instantânea. Ela deu o celular para mim e pediu para eu gravar. Com direito a "por favor" com som de "pelo amor de Deus me ajuda".
I will never be good
So now I pledge alliance to the battleground
And sing my ode to the war
As polaroids ficaram incríveis. Marina conseguia demonstrar sentimentos extremamente bem, e conseguia capturá-los. A próxima música me pareceu familiar, e todos ao redor começaram a cantar junto com Marina. Reconheci Powerful, do Major Lazer, Ellie Goulding e Tarrus Riley. E então o cantor latino de pop Rocco Bettencourt entrou no palco, e todo mundo foi à loucura.
pareceu fora de si o resto do dia, provavelmente com a cabeça na garota dos cabelos azuis.

*

Eu nunca ouvi falar dela! Como? Nenhum bar, nenhum festival. No google só dá pra achar a autoria dela em algumas letras famosas. Descobri seu nome completo com a ajuda do twitter do SummerStage, e então seu twitter, instagram, facebook...
Tentei não parecer tão fangirl, apesar de não negar que sou uma fangirl completa, mas fora pega de jeito por Marina Williams.
Voltamos para casa somente de noite, e encontramos um grupo de amigos razoavelmente bravos com a nossa ausência.
— Onde vocês estavam, queridinhos? – cruzou o braço assim que passamos pela porta.
— Olá, todo mundo. – riu, levemente surpresa. – Perdemos algo?
— Ainda chegaram antes da pizza, a única parte boa em terem sumido é que ia sobrar mais pizza... – resmungou.
— Ótimo, estava mesmo com fome. – sentei no sofá, cansado pelo sábado inesperadamente agitado.
— Vou usar seu banheiro, . Já volto. – subiu sem esperar resposta.
Claro, por que ela precisaria de uma resposta? Não é como se ela precisasse de permissão para usar o meu banheiro.
Não depois de já ter tomado banho comigo nele, e feitos algumas outras coisas além.
— Onde vocês estavam?! É tão difícil responder? Deus, digam MOTEL.
Gargalhei, sozinho. Notei que me encarava brava quando consegui controlar o riso.
— Ela não gosta quando a não responde nossas mensagens. – explicou.
— Ah, ok, mas, bem, nós estávamos em um festival. No Central Park. Acho que ela nem destravou o celular esse tempo todo, só usou o atalho para a câmera fotográfica. Sabe? Sem sequer ter que destravar e tal.
— Ah...
— Festival? Vocês foram num festival? Vocês? Dois? Juntos? – perguntou, levemente alterada.
— ... Sim, foi o que eu disse. Tem várias fotos, se você quiser...
teve uma crise de risos.
— Wow. – disse, parecendo surpresa.
— Eu não estou entendendo...
— Ela nunca chama ninguém pra essas coisas. Ela simplesmente some, e reaparece horas depois dizendo que estava em algum bar, festival, garagem, qualquer coisa assim que descobriu pelo twitter.
— Ela conheceu a Amanda Palmer assim, e nem pensou em chamar a gente. – disse, parecendo levemente chateada.
voltou nessa hora, sorrindo.
— E então, essa pizza vai chegar ou não?
Suas amigas a olharam com expressões nada amigáveis.
— VOCÊ NUNCA CHAMA A GENTE PRA ESSES PASSEIOS! POR QUÊ? - explodiu.
pareceu surpresa.
— Porque eu gosto de ir sozinha...
— MAS VOCÊ LEVOU ESSE GAROTO! ELE É MAIS IMPORTANTE QUE SUAS AMIGAS, POR ACASO?
— Não, ... Ele só é mais quieto. Ele... – estava claramente desconfortável. – Será que podemos conversar sobre isso a sós?
, , e eu pegamos a deixa e subimos para os quartos sem dar um único pio, com medo de sobrar algo para nós.

*

— Eu me sinto bem desconfortável em ter que explicar isso. - declarei.
grunhiu.
Melhor, rugiu.
— Não me interessa! Você SOME e nem ao menos nos diz onde está indo!
— Eu não digo onde vou nem pros meus pais, . - dei o meu melhor olhar incrédulo para ela.
— Não importa! Somos suas amigas, e nós sempre incluímos você!
— Tá, eu sei, mas eu gosto de fazer isso sozinha...
— ENTÃO POR QUE...
— PORQUE ELE É COMO EU, OK? – minha voz se alterou sozinha, e tentei me acalmar em seguida. – , ele tem a mesma sintonia que eu para as coisas. Eu não sei explicar, e ter que explicar me deixa extremamente desconfortável. Mas ir com ele ou ir sozinha tem quase o mesmo efeito. Não significa que eu não aprecie a companhia de vocês, mas esse tipo de programa eu gosto de fazer sozinha.
Ficamos em silêncio por um longo período.
Até que disse:
— Ah, vocês vão se casar.
— Definitivamente. – concordou.
— Eu quero ser madrinha. – bateu palmas.
— O quê? Do que vocês...
Por sorte, a campainha tocou. E como todos só esperavam uma coisa, em menos de cinco segundos, os quatro garotos estavam na sala dizendo "Pizza?" e me salvando daquela conversa que ficava cada segundo mais constrangedora.


Capítulo 37 — I used to hold my freak back, now I'm letting go. I make my own choice.

(Confident — Demi Lovato)

O Festival de Outono era no domingo da primeira semana do outono, na qual ganhávamos umas breves férias escolares. Umas breves férias muito bem vindas, depois de trabalhos, provas, apresentações... Margaret nos liberaria do Teatro, mas estava exigindo muito mais de nossos ensaios por causa disso.
Muitos instrumentos musicais passaram a circular pela Ferdinand, e as quadras de esporte estavam sendo usadas para as "bandas" ensaiarem. Nós, claro, tínhamos a sala de música velha e esquecida.
Eu ainda tinha que aguentar alguns olhares feios porque não ia me apresentar, mas depois que concordei em participar do coro em uma das músicas, a galera finalmente me deixou em paz.
É claro que eu tinha outras ideias em mente. Vamos chamar essas ideias de: surpresa.
Devo ao menos assumir que o clima na Ferdinand era outro, ao menos nas quadras de esporte. Mudamos nosso "grupo" de estudos para elas, até porque estava ensaiando uma música com .
O que me dava um pouco de náusea, mas era perdoável pela escolha da música.
Eles tocariam Pinball Wizard com a ajuda de no contrabaixo, e na bateria.
Não fui a única a ficar surpresa. Aparentemente só sabia que fazia aulas de bateria. Nenhum deles reclamou, é claro, porque arranjar um baterista era o único problema que eles teriam.
Ajudar com o backing vocal foi uma saída, mas nem tanto. Toda vez que eu parava o estudo para fazer o backing vocal para alguém, uma pessoa nova perguntava se eu não ia cantar nenhuma música como vocal principal. E aí, as caretas dos meus amiguinhos para a minha pessoa voltavam.
Mal sabiam eles que eu estava treinando algo em casa.
Aguentei, usando todo o meu conhecimento de atuação para não dar com a língua nos dentes. A verdade é que eu ainda não estava certa de que iria apresentar algo no Festival de Outono, e me comprometer com todos estragaria todo o meu flerte com a ideia. No momento era um flerte agradável; assim que eu contasse, ele deixaria imediatamente de ser qualquer coisa, menos uma dor de cabeça extra. Então, mantive os lábios selados.
deu um berro, tirando a minha concentração dos livros de história.
Outras pessoas gritaram também, mas porque se assustaram. estava estática, inteira, sem ferimentos aparentes, encarando o celular em sua mão com os olhos arregalados.
- AMIGA, SUA LOUCA, O QUE FOI? - gritou de volta.
- O... O... - ela estava tremendo, olhando para o celular como uma lunática.
foi até ela e olhou o celular, confusa, e deu um urro ao ver a tela.
- PRECISA MATAR TODO MUNDO DO CORAÇÃO POR CAUSA DISSO?!
se afastou antes que socasse , e veio ao auxílio. Ele a trouxe até as arquibancadas, diretamente para mim.
apenas entregou o celular para mim, e conseguiu dizer:
- É a nossa chance.
Eu também gritei. Desculpa.
Mais para fangirl do que para psicótica, como fizera, mas gritei.
O MUSE acabara de anunciar um show especial no Wembley. Os fãs cadastrados no site teriam preferência na compra. Quem fosse do fã clube poderia comprar os ingressos uma semana antes do público. Uma semana. Não tinha como não conseguir ingresso.
Senti uma necessidade incrível por aparelhos de suporte vital; não tinha estruturas para aquilo.
segurou minha mão, e nos encaramos em silêncio. Falávamos sobre isso desde que nos conhecemos, e agora a oportunidade estava ali, dando um oi.
O show seria no fim do ano, depois do Natal e antes do Ano Novo. Estaríamos de férias. Era perfeito.
Peguei o celular e comecei a procurar preços de passagens.
Ah?
É claro que estamos cadastradas no fã clube oficial. Pff.
O dia do Festival chegou. A escola estava fechada, e o palco era bem em frente à entrada principal. A decoração era um tanto Woodstock, apesar de ninguém estar vestido a caráter. Quer dizer, algumas pessoas tinham coroas de flores na cabeça, mas era isso. Muita gente era de fora, ou do Middle School.
As pessoas de fora valorizavam mais o festival que os alunos em si; só ficavam os músicos, ou os apaixonados pela música.
Ainda assim, era um Festival muito bem organizado. Tinha até mesmo um caderninho com todas as apresentações do dia. Claro que meu nome não estava ali; depois de todos os shows do dia, o palco ficava aberto para quem quisesse tocar. Nessa hora, bandas se uniam, rodas de violão de formavam, cantores faziam apresentações somente com vocais, etc.
Era a melhor parte do Festival.
Isso e a barraquinha de algodão doce, claro.
Chegamos cedo para pegar nossos postos na "grade" - não havia uma, mas considere o conceito de grade - então curtimos o Festival desde o início. Quando a fome começou a dar as caras, , , , e foram buscar hot dogs e bebidas. Fiquei extremamente feliz de não ter ido junto, porque logo menos uma banda de quatro garotos que com certeza não eram da Ferdinand começaram a se apresentar, e os santos tocaram The Killers. Under The Gun.
O vocalista, por alguma benção divina, além de ser lindo ainda conseguia imitar o tom de voz do Brandon Flowers. Seus cabelos pretos cobriam os ouvidos, quase chegando no ombro, parando em alguma parte do pescoço. Ele era branco, mas não tão branco assim. Quase um caramelo, uma deliciosa bala de caramelo.
Todo mundo estava curtindo com vigor, mas ele teve que notar quem? Eu.
E ele cantou pra mim.
E eu pedi a Zeus que ele não fizesse nenhuma proposta de casamento ali, porque, no estado de transe em que ele me pusera, eu diria sim. Imagina se ele pede algo mais simples como "Sobe aqui no palco e canta comigo"? Eu nem ia responder, apenas ir. Perigoso demais.
O Brandon Flowers cover veio até mim e se abaixou, ainda cantando. Olhando nos meus olhos, e eu presa ali. Pude reparar no castanho dos olhos dele, num tom claro, mas que ainda não chegava a pender para o mel. Pude ouvir Becky rir ao meu lado, e me cutucar, mas não estava reagindo. Não quando um garoto com a voz idêntica ao vocalista do The Killers está ajoelhado no palco olhando pra mim e cantando "Stupid on the streets of London, James Dean in the rain. Without her it's not the same. The same, the same, but it's alright!"
Meus lábios ainda se moviam de acordo com a letra da música, mas apenas porque eu as sabia de cor e era automático, para mim, cantar junto. Finalmente consegui desviar o olhar, certa de que ia corar caso não tivesse cuidado, então passei a pensar em desmatamento, crise capitalista, entre outras coisas ruins. O Brandon-Cover voltara para o centro do palco para terminar sua apresentação, mas Becky sussurrou para mim:
- Não comemore, eles vão tocar duas músicas.
Suspirei.
Ela e riram.
- Não jogue a sua calcinha no palco, por favor, . - Becky pediu, já olhando para o resto do grupo que voltava com os lanches e as bebidas.
entregou um lanche para mim e apontou para o suco no engradado de bebidas que ela trazia:
- Esse é seu. Que gato, ! - ela sussurrou. - Todo mundo viu.
- Ahn? Que o vocalista veio cantar aqui? É, foi legal.
- Ele tá totalmente na sua. E que gato!
A música que começou a tocar me fez gritar por dentro. Por fora, só emiti um "Ah!", que já foi o suficiente para as pessoas em volta me julgarem. Chegamos um pouco para o lado, onde não tinham pessoas em pé assistindo, e sentamos para comer. Acabei assistindo à apresentação de olhos vidrados.
Leaves are falling down
On the beautiful ground
I heard a story from the man in red
He said the leaves are falling down
Such a beautiful sound
Son, I think you better go ahead
Senti que não devia, mas não conseguia tirar os olhos do Brandon-Cover. Não queria chatear , e sentia seus olhos passarem sobre mim como quem não queria nada, mas ele precisava entender que aquela música...
Não era o vocalista, era a música!
But you always hold your head up high
Cause it's a long, long, long way down
This town was meant for passing through
But it ain't nothing new
Now go and show them
That the world stayed round
But it's a long, long, long way down
Fingia rir das piadas, prestar atenção na conversa, mas toda hora meus olhos buscavam os olhos castanhos do vocalista da Rocket Music, que aparentemente era uma banda "de verdade", porque algumas pessoas na plateia carregavam cartazes e vestiam camisetas.
You better run for the hills before they burn
Listen to the sound of the world
And watch it turn
I just want to show you what I know
And catch you when the current lets you go
Or should I just get along with myself
I never did get along with everybody else
I've been trying hard to do what's right
But you know I could stay here all night
And watch the clouds fall from the sky
This river is wild
This river is wild
Parei de olhar o palco, focando o olhar em uma árvore do lado oposto e comendo meu hot dog como se não estivesse pensando em mais nada. Ainda cantei a música até o final, mesmo que só murmurando.
Porém, é claro que ele viria até mim depois de se apresentar, não é mesmo? Estava pensando onde me enfiar quando notei que o Brandon-Cover fora para o lado oposto a nós.
Ok. Pode ser para o bem de todos.
A vez das meninas seria em breve, então fomos nos arrumar no vestiário da quadra de educação física, que virara uma espécie da camarim.
Elas meio que me transformaram em Electra Heart, da Marina & The Diamonds, então só por garantia, decidi implorar que não me fizessem cantar algo que eu nem tinha ensaiado.
- Não faremos isso. Só fica legal em você.
Ok.
- Eu ouvi boatos de que essa banda que tava se apresentando agora pouco, a Rocket? Então, parece que chamaram eles pra tocar no Baile de Inverno. - uma garota que estava ajudando com a maquiagem de todos disse. Tracy? Talvez Ella.
Vocês sabem como eu sou com nomes, né? Então.
- Hm.
Que bom pra eles, etc. Daora meixmo. Quem sabe até lá e eu já não nos desentendemos novamente e OOOPA! Não, nada disso, hahaha. Nossa, eu me odeio? Se controla, .
- As próximas são vocês! - Ella/Tracy disse, agitando as mãos. - Vão, vão, vão!
- Obrigada! - agradecemos, saindo do camarim quase correndo.
A primeira música era a de e Becky. Fiz os backings com prazer, tentando não olhar para a plateia.
O teatro? A dança? Fáceis. Isso sim era difícil. Comecei a questionar se a "surpresa" aconteceria.
A próxima a cantar foi , que encarnou sua Debby Harris interior.
Eu continuei não olhando para a plateia, e comecei a desejar uma peruca como a da Sia, ou uma sacola comum mesmo; qualquer coisa que cobrisse a minha cabeça para eu parar de me sentir tão exposta.
Rapha subiu ao palco para cantar Froot, o que foi o melhor momento de toda a história de New York, e fez eu me sentir um pouco mais relaxada.
, a caráter - cabelo topete, jaqueta de couro -, cantou Fluorescent Adolescent, fazendo todos "cantarem" junto. E admirarem a dicção dela, claro. Sua imitação de Alex Turner foi a coisa mais fofa que vi em toda a minha vida.
Eu fui a primeira a sair do palco, óbvio o suficiente, então achei que seria muito esperto da minha parte ir ao banheiro. "Ah, ela saiu correndo porque precisava mijar!"
Bem melhor que "Ela tava morta de vergonha", claro. Ou achariam que sou covarde.
Depois, percebi que precisava de água. Minha garganta estava tão seca que, quando Ayala passou por mim e disse "Oi!", a minha resposta foi um som assustador de algo sendo arranhado. No caso, o algo era a minha garganta.
Algo parecido com um Dementador tentando dizer "eu te amo".
Fui até a barraca de bebida e pedi um copo de água. Assim que me entregaram, eu esvaziei o copo em um único gole e pedi para encherem novamente. Nessa hora, alguém parou ao meu lado. Alguém de 1,80cm, cabelos pretos que acabavam no meio do pescoço e um sorriso realmente incrível.
- Olá. - ele disse, carregando sua voz, fazendo-a mais grossa do que ela devia ser.
Ou não, e a voz dele é realmente maravilhosa assim e eu estou tentando transformá-lo em uma pessoa chata só para não fugir com o Brandon-Cover pra algum país aleatório.
- Hey... - respondi, pegando meu segundo copo de água e bebendo com mais cuidado dessa vez.
Mantenha a boca ocupada e não serás obrigada a conversar com quem conversa com você, já diziam.
- Muito boa a apresentação do seu grupo mais cedo. Todo mundo cantou, fiquei esperando você.
- Ah, valeu.
Senti uma pontada de dó pela resposta curta, mas qualquer coisa além de "Ah, valeu" seria forçado, e também não seria honesto forçar uma reação. Ele que se esforçasse com alguma arma menos artificial do que engrossar a própria voz.
Ele riu.
- Eu sou o Nate.
- Muito prazer, Nate.
- Realmente não parece muito prazer... - ele disse rindo.
- Haha. Eu sou a . A sua banda foi ótima.
- Muito obrigado, . Belo nome.
- Obrigada.
- Então, nenhuma chance de você cantar ainda hoje?
- Não tenho muita certeza do motivo pra você realmente querer ver isso, mas se eu fosse você, não teria toda essa vontade. Não sei cantar.
Nate ficou sério. E então riu.
- Você é muito boa com piadas. Podia jurar que você estava falando sério...
- Haha, eu estou.
- .
- Nate?
- Você estava muito bem no backing vocal.
Gargalhei. Quanta vontade de me agradar, Zeus. Menos, Nate. Bem menos.
- É o backing vocal, nem dá pra ouvir.
- Ok.
E, assim, ele se afastou. Simples. Sem nem olhar para trás. Quer dizer, pode ser que ele tenha olhado, mas eu já estava de costas para ele, então não tinha como ver.
Ops.
Se ele esperou que eu fosse atrás dele, tomara que tenha sido sentado, pelo menos.
Avistei meu "squad" próximo ao palco, e fui em direção a eles. Claro que eles me viram, e provavelmente tinham visto o garoto Nate falando comigo, também.
Vi estampado na cara de cada um deles a vontade de me perguntar "E AIIIIII", então estava ciente de que pelo menos um deles não se importaria o suficiente com para segurar a vontade de me perguntar.
- E AIII, PEGOU O CELULAR DO BOFEEEEEEE!!!??? - Rapha gritou.
Me limitei a responder com pontos de interrogação por toda a minha face.
- Bofe? Sério?
- RESPONDEEE! - foi tudo o que Raphael disse em sua defesa.
- Se eu soubesse de quem você tá falando, eu responderia!
- Do Brandon Flowers Coveeeeerrr!
Surpreendeu-me de leve que Rapha dera o mesmo apelido para Nate que eu. Mas me recuperei rápido. É claro que ele daria. Nós somos almas gêmeas.
- Ah, o Nate. Não, ele só se apresentou. E elogiou as apresentações de vocês.
Agora eles que ficaram com pontos de interrogação na cara. E ninguém disse nada.
- Ahn, . Você pode vir comigo? Preciso de ajuda com uma coisa.
Ele não respondeu na velocidade normal, o que já era esperado.
- ... Ok.
me seguiu em silêncio. Eu fui mordendo o interior da minha boca sem saber o que fazer. Eu devia me desculpar? Mas nós não éramos exatamente comprometidos. Ninguém havia dito nada sobre isso. Porém, se o acontecido tivesse sido com ele, eu estaria chateada. Claro que estaria. Ele estava levando muito bem, na verdade... Provavelmente porque sabia que esse tópico não fora discutido, e era um assunto delicado. Eu podia dizer algo e ouvir "Pff, por favor, não temos nada, você flerta com quem quiser", mas duvidava.
Ele queria convidar a minha família inteira para o dia de Ação de Graças.
Se Rapha soubesse disso, jamais teria sido a pessoa a dar com a língua nos dentes.
Respirei fundo, já estávamos quase na quadra quando consegui coragem para falar.
- , desculpa por isso, de verd...
Ele não me deixou terminar. me puxou para si pela cintura e me beijou. Simples assim.
Agradeci, beijando-o de volta, realmente grata pela solução apresentada. Quando separou nossas bocas, ele não separou nossos corpos.
- Você não precisa dizer nada, mas obrigado por dizer.
- Eu realmente não disse nada significante... - tive certeza de que corava, mas não desviei meus olhos dos dele.
riu.
- Você ia dizer. Porque você se preocupou. Porque você se importa. Já é mais que o suficiente. - ele riu novamente, dessa vez corando. - Fez valer o esforço que foi não ter um ataque ridículo de ciúmes.
- O quê? - ri também, surpresa. - Você é do tipo ciumento, ?
- Você não faz ideia, . Eu só sou muito interiorizado quanto a isso. E não é como se eu tivesse o direito de surtar sobre você, não só porque te faria passar uma vergonha desnecessária mas porque você, bem, é dona do próprio nariz.
Ponderei o quão ridículo seria me declarar para ele ali. Dizer que nem o Brandon Flowers de verdade conseguiria me tirar dele, quanto mais um garoto que eu nem conhecia (não que eu conhecesse o Brandon Flowers), que ele era tão raro que eu queria guardá-lo para sempre em um potinho, e não arriscaria me apaixonar assim por mais ninguém.
Ele valia esse risco. Estava ali, na minha frente, provando isso.
É, seria bem ridículo, tudo bem.
Então eu o beijei.
Depois que a última banda inscrita se apresentou, Jim foi até o microfone e anunciou:
- Antes de darmos início às apresentações livres, temos uma inscrição de último momento. Com vocês, !
Subi no palco olhando para o microfone. Ande até o microfone, .
Consegui, e sem tropeçar. veio atrás, nós dois com violões, e sentamos lado a lado.
- Primeiro, isso vai ser muito amador. Ele não sabia que ia tocar essa música até uns minutos atrás. Já eu, vinha pensando há algum tempo...
- SUA VADIAAAAAA! - ouvi Raphael gritar.
- Surpresa, gente. - acenei para meus amigos, que estavam metade putos, metade surpresos. - Eu não sabia exatamente o que tocar aqui, mas então ouvi essa compositora nova num festival que teve no Central Park e me apaixonei. - pensei nas consequências do comentário em seguida, visto a minha fama de lésbica, o que só me fez rir. - O nome dela é Marina, e essa é a sua "Ode To The War".
fez o acompanhamento do modo mais simples possível, o que realmente só necessitava de conhecimento musical e não de estudo da música em si. Ele lembrava do ritmo, então não teve problemas. Era uma versão acústica, afinal, e eu trabalhara na minha parte por tempo suficiente para só precisar de um violão de fundo para ter o efeito completo.
Algumas pessoas na plateia reconheceram a música; não reparei muito, estava ocupada cantando e tocando o violão com a minha alma. E ignorando a plateia, claro.
Eventualmente a música me fez esquecer o medo. E todo o resto. O mundo era a letra de "Ode To The War".
And when I think about the madness
All the wasted time
The only thing I hear
Is chaos between the flaws of my life
I was born with war inside my mind

*

Como sempre, pegou a todos de surpresa. Ela estava realmente com receio de apresentar a música, e pediu ajuda para quem? Isso mesmo, eu. Ela implorou (mesmo que não precisasse, na real) para que eu subisse no palco com ela e tocasse qualquer coisa ao seu lado, só para ela não ter que fazer isso sozinha.
Claro que, depois que começou, eu podia ter saído do palco que não teria feito falta alguma. Como no Teatro, fez seu personagem e prendeu a atenção de todos. O receio anterior que ela demonstrara devia ser porque, dessa vez, o personagem era ela mesma. Não era nenhuma outra pessoa, nem mesmo alguma personagem que ela fizera para subir ali. Com um violão em mãos e cantando, era a sua versão mais pura e vulnerável.
Eu apreciei a rara visão.
As apresentações que vieram depois foram muito mais divertidas, e surpreendentemente ótimas. Alguém gritava "Eu gosto dessa música!" e todo mundo que sabia, ou sabia mais ou menos, se manifestava, e as pessoas se organizavam para apresentar essa música.
"Acho que devíamos cantar 'Rolling in The Deep'!" e então um coral se formava. Alguém ia na bateria. Surgia um pianista, sei lá de onde. Aí vinha um violinista também, que, só por garantia, trouxera seu violino para assistir ao Festival de Outono.
acabou no palco mais algumas vezes, quase todas ficando dar cor de um pimentão nos primeiros segundos, ocasionalmente ficando de costas pra todos, mas cantando.
Eu já conhecia sua voz, mas muitos ali não. Ela não tinha técnica, mas, se tivesse, podia ser melhor que muitas cantoras de sucesso. Sua voz nem era o que mais importava, e sim como ela cantava. Do mesmo modo que fazia no Teatro, sentia a música e a cantava muitas vezes tentando imitar o cantor original. Era, no mínimo, divertido.
Ela acabou se soltando, e quando a fizeram cantar "Cherry Bomb" com mais três garotas, na parte dela ela disse "Eu vou desafinar!" e desafinou. Maravilhosamente, caindo na gargalhada depois.
Fomos todos para casa por volta das 23h, o que não fora combinado previamente, mas realmente não importava. Quase fechamos a Ferdinand pelos funcionários, ficando até ver todos irem embora.
- Eu nunca fiquei até o fim. - comentou, apoiando a cabeça no meu peito, no banco de trás do seu carro, porque tirara a carta há pouco tempo e queria treinar, então ela dirigia.
As ruas estavam tranquilas.
Não houve acidentes, e nos juntamos no sofá (chão, na verdade) da sala e procuramos algum filme para assistir. e fizeram pipoca, "fez" manteiga.
- Não olhem para mim, eu só sinto vontade de assistir Star Wars ultimamente. Enquanto esse filme novo não sair...
Todos fizeram expressões de "Sim", cada um ao seu modo.
Então acabamos assistindo ao episódio III.
Dividimo-nos nas duas casas. Para a casa de e , foram e , obviamente, e Rapha e . Becky, sua namorada e Phill ficaram conosco, provavelmente porque eles eram os que mais suportavam , ou porque apenas o socariam se ele abrisse a boca para falar merda. Nada que pudesse dizer faria com que eles se chateassem de verdade, porque eles não aparentavam sequer aceitar que existia de verdade.
Notei porque eles literalmente ignoravam quando fazia algum comentário invasivo.
Eles sequer piscavam.
- Eu vou dormir no meio de vocês duas, porque não sou obrigada! - Phill disse, deitando no meio dos dois colchões que colocamos na sala.
- Você vai dormir no buraco, isso sim. - Eve disse, sem um pingo de maldade na voz.
- Que bicha má! Já tá mostrando as garras, é, linda?
subira, sem ser notado pelos outros, mas eu notei sua expressão de "Não sou obrigado a ouvir isso", e ele sequer desejou boa noite. Não era do meu feitio, mas mordi minha língua num misto de preocupação e reflexão. O que podia estar tão errado? Talvez fosse a preocupação com o futuro, cada pessoa tem um modo de reagir ao fim do High School.
- Não, Phill, não vou te obrigar a dormir no buraco, você simplesmente vai acabar nele se tentar dormir no meio de dois colchões. É cientificamente comprovado. - Eve explicou, polidamente, e Becky, que mal dera atenção ao drama de Phill, beijou o rosto de sua namorada e deitou a cabeça em seu peito, em um silêncio contemplativo.
Como fizera comigo mais cedo.
Eu devia pedi-la em namoro.
Tive um momento, e perdi fatos importantes porque quando me recuperei, vinha até mim e me dava um selinho demorado.
- Isso, faz essa pouca vergonha na nossa frente, agora! Não basta tentar esconder da gente, agora vai fazer na nossa cara e continuar sem dizer nada também! Maldita! - Phill disse, diretamente do buraco entre os dois colchões, e eu apenas me deixei levar quando me puxou para a escada, somente rindo em resposta.
Subimos para o meu quarto, e ela foi direto para o banheiro.
- Tem alguma camisa larga aí pra mim?
- Não. Pode dormir sem nada, eu não ligo.
Ouvi sua gargalhada mais pura e sonora, aquela que, se ensaiada, jamais sairia com tamanha naturalidade.
- No que você tava pensando, lá embaixo?
- Hm? Ah, nada... Eu lembrei de uma coisa, aí fui longe, sabe? Viajei um pouco. Perdi muito do que aconteceu, você me beijou mesmo na frente do Phill e da Becky?
- E da Eve.
- E da Eve. Wow. O que eu perdi?
- Phill começou a fazer piadinhas que já bastava um casal "trepando" na casa, ele não precisava de mais um bem na frente dele. Aí eu perguntei "que casal?" e ele ficou levemente alterado, disse que eu mentia pra eles na cara dura, esses dramas. Daquele jeito dele de fazer piada, sabe... Enfim, aí eu disse que não tinha nenhum outro casal na casa, fui até você e te beijei. Porque eu não sou obrigada.
Foi a minha vez de gargalhar.
Ela saiu do banheiro vestindo somente seu melhor sorriso e uma lingerie que também não ficava muito para trás.
É claro que tive que a envolver em meus braços, e beijá-la sem dizer mais nada.
Acabamos fazendo muito na semana de férias, principalmente para pessoas que não tinham programado nada. Dessa vez, a família toda foi para a casa nas montanhas, e fomos todos convidados. e Aimée eram como duas abelhas circulando a mãe, agora que Donna exibia um comportamento muito mais acessível.
As brigas que, claro, ainda ocorriam, eram repletas de provocações inocentes e risadas bem humoradas. vestia um moletom laranja por cima da calça de moletom verde e blusa roxa, e Donna diria "Pelo menos ela não quer ser Designer, não é mesmo?", e ficava em êxtase demais com a imagem de sua mãe fazendo uma piada para se ofender, ou sequer ligar para a crítica.
Ela só ria e concordava.
- Imagina só como a Vogue seria se eu estivesse no comando. - e ela fazia a réplica humana do famoso "shrug emoji".
Foi um pouco mais difícil não estar o tempo todo em contato com . Ela me beijar na frente de Phill, Becky e Eve daquele jeito, extremamente simples, mudou as coisas. Ela tinha dito, sem utilizar palavras, que estávamos juntos. Que tínhamos algo. E agora eu não lembrava do porquê reprimir aquilo.
Seus pais eram o motivo. Não que eles fossem proibir, longe disso. Eu lembrava muito bem de Donna quase vendendo para os meus pais. E os pareciam gostar de mim, então, zero problemas.
Mas eu não poderia dizer "e aew, tô pegando a filha de vocês, beleza" e dormir na mesma cama que ela.
Além de ter que pedi-la em namoro, teríamos que agir como um casal que acabara de se unir. Seria mais difícil do que manter a distância. Então eu me segurava, e aproveitava os momentos que ela propiciava, aproveitando algo para me abraçar, dar um soco, esbarrar com o corpo no meu enquanto ria.
Até mesmo fazer briga de galo na piscina, por que não?
Seus pais pareciam saber, claro, como eles pareciam saber desde a primeira vez que eu pisara na casa deles, mas nem Richard e nem Donna disseram algo. Nenhum deles tentou dar indiretas para mim quando ninguém prestava atenção, tão pouco.
Dessa vez, não viera. Ele disse que viajaria com os pais, e apesar de estranhar, não questionei. Aquele não era o ambiente para , mesmo. Infelizmente. Talvez, um dia, depois de ele se entender, quem sabe?

*

Rapha estava encantando com Donna, e não parava de falar de moda com ela. e , que conheciam melhor a minha mãe, não conseguiam evitar o olhar de choque. Estava claro que elas esperavam uma explosão de Donna a qualquer momento. Eu também estava surpresa, é claro, mas eu sabia que aquela era a minha mãe. Com as piadas espertas, ácidas, e a risada elegante com um tom quase invisível de vilã da Disney.
O que eu via mais, no entanto, era o olhar de Richard. Ele não conseguia tirar os olhos de Donna, como se a estivesse vendo pela primeira vez em muitos anos.
- Malditas socialites. - Richard disse para mim, num riso breve. - Se eu soubesse que elas eram o problema, teria resolvido isso antes.
- Ah, pai... - suspirei. - Eu sempre soube.
- Sabichona.
Rimos; ele acariciando minha cabeça - e, consequentemente, bagunçando meu cabelo - e eu dando tapinhas em seu ombro.
- Será que ela deixa a gente escapar das festas, agora?
- Talvez... O dia de Ação de Graças... - quase entreguei os planos de , mas me lembrei que ele ainda não dissera nada confirmando isso, e me calei. - Bom, talvez não escapemos do Ano Novo, só. Porém, melhor só o Ano Novo que tudo.
- Com certeza!
Ele saiu andando, para ver suas árvores e plantas queridas, e não percebeu nada. Respirei fundo.
Muito boooom, ! Dê o dia de Ação de Graças como algo garantido, mesmo! Aí os pais de dizem "Deus nos livre ter aqueles loucos aqui, nem pense nisso, esse dia é só da nossa saudável família perfeita!", e você vai ficar aí, triste e abandonada.
surgiu no meu campo de visão, com um sorriso que eu conhecia extremamente bem. Olhei ao redor, pronta para repreendê-lo, mas não encontrei ninguém. Claro, espertíssimo garoto , vendo que estavam todos longe da piscina e vindo se aproveitar da situação.
Eu gosto dele.
Não que isso já não tenha ficado óbvio, eu sei.
Fui até a dispensa que ficava no espaço de refeição junto à churrasqueira, e deixei que ele me seguisse. parecia vir numa velocidade cruel, muito mais devagar que o necessário, e até mais devagar que o plausível. Então, ele estava me provocando.
Esperei ele chegar, encostada à parede como se não estivesse ligando para a enrolação dele.
apoiou a mão na parede um pouco acima da minha cabeça, mantendo uma distância mínima entre nós.
- Tá difícil. - ele disse, suspirando.
Senti seu hálito fresco de quem sempre carregava uma bala no bolso.
- O quê? - perguntei, quase encostando a ponta do nariz ao rosto dele com o movimento.
Percebi que precisava me expressar menos com o corpo para falar.
- Fingir que não quero te beijar o tempo todo.
- O tempo todo? Que exagero, .
Ele pressionou o corpo contra mim com delicadeza e firmeza, encaixando a mão livre em minha nuca, passando os dedos pelo meu cabelo no processo.
- É ridículo como soa bem o meu sobrenome na sua boca.
Não segurei a risada.
- Não vá dar uma de literatura erótica pra cima de mim, .
riu, claramente desaforado com a minha indiferença, e me beijou, deixando claro que ele não estava exagerando. Beijamo-nos por todo o tempo que estávamos sem nos beijar, desde que dormira na sua casa depois do Festival de Outono.
- Pare de dizer o meu sobrenome assim, então.
- Sério?
- Sério.
- Hm. Bom saber.
- ...
- ...
Ele riu, beijando-me de novo, dessa vez bem menos tenso.
- Você vai me enlouquecer.
- Só relaxe, .
Selei nossos lábios, e nos beijamos de novo. Afinal, tínhamos que aproveitar o momento.
- Eu vou te acordar durante a noite. - ele declarou, decidido.
- Boa sorte com isso.
Fui para dentro da casa, direto para o nosso cômodo. Aquele, com todos os jogos e tal. Estavam todos ali, menos meus pais. Eles deviam estar no lago.
E, obviamente, eu passei a chamar pelo sobrenome o tempo todo.


Capítulo 38 — The way is long but you can make it easy on me.

(The Mother We Share — Chvrches)

Os ensaios do Teatro voltaram com tudo. Ainda não estávamos no ponto de fazer uma apresentação completa sem Margaret nos interromper para mudar algo, ou alguém errar, mas já estávamos lidando perfeitamente com os erros que aconteciam. Uma troca de falas, um esquecimento, alguém dizendo a sua parte antes... Estávamos flexíveis.
Cheguei em casa na sexta-feira antes do dia de Ação de Graças ligeiramente podre.
Não existe definição melhor para como eu me sentia.
Exausta? Não.
Podre.
E mal entrei na cozinha e já ouvi:
— Temos que fazer as preparações para o dia de Ação de Graças! – Donna disse, pegando o seu celular pra fazer alguma lista de tarefas, com certeza.
Senti meu estômago afundar. não dissera mais nada sobre seus planos, claro que minha mãe ia achar algo para fazer.
Provavelmente seus pais tinham odiado a ideia, ou ele próprio vira a loucura que estava sugerindo.
— Você já sabe o que vai levar, querida? - Richard perguntou, sorrindo.
— Levar... Para onde? – peguei um copo que estava no escorredor de louça e o enchi de água.
Ambos me olharam, surpresos. Bebi a água, sem entender o que eu tinha perdido.
— Como assim para onde, Anne? – Aimée perguntou, finalmente tirando os olhos do trabalho que fazia em seu notebook. – Eles não param de falar nisso desde que fomos convidados.
— Convidados... Para o quê?
Eu já comecei a planejar diversas desculpas para não ir no evento que fosse, qualquer coisa de Donna para o dia de Ação de Graças que precisasse de preparação não podia ser algo que eu fosse gostar. Simples assim. Sem intenção de magoar, apenas a verdade. Eu não me sentia bem nesses eventos, e fim.
, para a casa dos , no Canadá. Os pais de conversaram com a gente na última reunião que fizemos na empresa! Pensávamos que você já sabia, eles disseram que a ideia foi de .
Encarei Donna, sem palavras.
— Ah, eles... Eu... Sim, o me perguntou, ele, um tempo atrás, mas... Era só uma ideia, ele não... Confirmou... Eu...
Minha família riu de mim, afinal, o que mais eles fariam ao me ver completamente sem chão, e palavras? Tudo bem, família, perdoados. Agi ridiculamente por alguns segundos, e então respirei fundo.
— Vou matá-lo.
— Não faça isso, querida, vai ser no mínimo constrangedor aparecer para o dia de Ação de Graças na casa dos sem o filho deles porque você o assassinou. É uma regra de etiqueta básica, até mesmo eu sei disso.
Encarei meu pai, séria, por alguns segundos, antes de me juntar às risadas de Aimée e Donna.
— Ok, eu tenho uma mala pra fazer! E mensagens de ódio para mandar! Estarei em meu quarto.
Eles acenaram para mim, como uma bela família feliz.
Antes de chegar no fim da escada eu já ligava para , e a chamada era com vídeo. Porque eu queria ver a cara daquele cínico!
Ele atendeu já rindo.
— Mas acabamos de nos ver, já está com saudade?
— Não. – respondi, tentando manter a postura.
— O que foi, ?
Ele tinha um sorriso sádico no rosto.
Decidi mandar a postura pra lua.
— O QUE FOI? O QUE FOI? DIGA-ME VOCÊ O QUE FOI, FOFO!
gargalhou.
— Eu te disse que ia falar com os meus pais. – ele respondeu, dando de ombros.
Simples assim, .
— Só esqueceu de falar que já tinha falado! E que eles gostaram da ideia! E que eles falaram com os meus pais! E que a gente VAI PRO CANADÁ! E eu não vou ter que fugir de nenhum evento esquisito de Ação de Graças!
— Bem, isso eu não prometo, você lembra que tem aquele lance que a gente sempre vai assistir ao jogo...
... Cala a boca. – respirei fundo, segurando a vontade de dizer "Eu te amo" pelos motivos errados. Se eu dissesse para qualquer pessoa que estivesse no lugar dele, seria normal. Mas, como era ele, o garoto com o qual eu estava me relacionando amorosamente, seria errado simplesmente dizer "Eu te amo!" como se fosse um "Saúde!" ou um "Obrigada!" – Diz logo, o que eu devo levar de roupa?
— Provavelmente nada... – ele ficou em silêncio por tempo suficiente para eu quase interrompê-lo com um "Não vou andar pelada no Canadá", então ele continuou falando rindo. – Deixa pra comprar as coisas por lá, acho melhor. Se você vestir três dos seus melhores casacos ao mesmo tempo, é provável que, além de desconfortável, ainda não seja o suficiente.
— Ok... Precisamos ir às compras. Não quero perder tempo comprando roupa lá. Você tá ocupado agora? – perguntei, e ao ver a expressão dele, completei: – A resposta certa é não.
Ele assoprou um riso.
— Não... Mas estou bem cansado...
— Ótimo! Passamos aí em quinze minutos. Quinze minutos de verdade, , esteja vestido dessa vez.
Desliguei, sentindo um leve prazer de ver a expressão cansada e incrédula dele.
Não precisei convencer ninguém de sair às compras, até mesmo meu pai adorava uma saída para comprar roupas novas. Eu sei, somos ensinados que isso é raro e absurdo, e muitos homens negam que adoram comprar roupas porque acham que isso os diminui (???) (nem vamos entrar nessa discussão, amores), mas vamos ser honestos: é o ápice do sistema capitalista, todos nós adoramos comprar coisas. Se você está no clima para comprar roupas, você está no clima para comprar roupas. Fim. Agora, ficar parado em pé vendo outras pessoas comprarem coisas é o que nós não gostamos.
Ninguém gosta.
Não importa se você é homem ou mulher.
Dessa vez, quando estacionamos em frente à casa de , ele estava na calçada esperando. Escorreguei para o banco do meio, e ele sentou ao meu lado. Uma conversa animadíssima sobre o Canadá se iniciou, com todo mundo agradecendo pelo convite.
— Na verdade, eles tiveram a mesma ideia. Só não sabiam se vocês já tinham planos, e ficaram com receio de convidar e atrapalharem vocês. Vai ser um prazer tê-los por lá.
— Gente... E as passagens? – perguntei, acabando de perceber que o Canadá era longe, e não ia dar pra ir, sabe, de carro.
Todos riram. Por um longo período de tempo, antes de finalmente alguém responder:
— Já estão compradas, . – Richard respondeu, respirando fundo em seguida.
Ele estava vermelho de tanto rir.
— Claro que estão. – disse, cruzando os braços. passou o braço para trás de mim, apoiando-o no banco e sorrindo estupidamente.
Eu queria socá-lo, então qualquer coisa que ele fizesse seria vista como estúpida por mim. Olhei para Aimée, para evitar seu olhar, porque sou birrenta mesmo.
Chegamos ao shopping e fomos atrás de uma loja especializada em roupas de frio.
— Ah, gente, eu já estou com fome. – Aimée lamentou-se.
— É psicológico, você pisa no Shopping e já quer comer, sabe. – disse, avistando uma loja que parecia boa.
— Não é porque está acontecendo na minha cabeça que significa que não seja real, Harry. – Aimée respondeu, tão naturalmente que me deixou em estado de choque.
Encaramo-nos por alguns segundos, em silêncio.
— Essa foi muito boa.
— Obrigada. Estou me sentindo muito engraçada agora.
— Não se empolgue, eu sempre estrago o momento quando me empolgo.
— Pode deixar.
apenas nos encarava. Quando o encaramos de volta, ele levantou as mãos para o ar, como que dizendo que não ia dizer nada sobre o nosso diálogo paralelo, e então ele foi até meus pais ajudá-los com as roupas.
Aimée me olhou de um forma esquisita.
— O que foi?
— Vocês dois, hein?
— Nós dois hein o quê?
— Por favor, apenas não me obrigue a ser a noivinha. Eu não tenho mais idade pra isso.
Tive que dar um cascudo nela. Onde já se viu? A minha própria irmã?
— Querida, você está louca.
Seguimos por uma hora e meia de compras. Ou seja, chegamos a um ponto em que o cansaço ficou aparente. Afinal, passava das 20h30.
Fomos para um restaurante, cheios de sacolas.
Tivemos uma janta repleta de histórias sobre o Canadá, e eu fugindo do olhar insistente de Aimée que dizia: Vocês vão se casar!
Não me ajude a surtar, querida irmã.
De volta ao carro, deixou a mão esbarrar na minha, por cima do banco, e então estávamos de mãos dadas. Não corríamos o risco de ninguém ver, a não ser Aimée, que viu imediatamente. Senti que ela derreteu um pouco ao meu lado, sofrendo demais com a cena para fazer qualquer ação maldosa. Eu quis sorrir, mas tentei me conter.
Fui levada a pensar que meus pais deviam ter certeza sobre . Ainda mais agora, depois do convite para o dia de Ação de Graças. Ainda assim, até onde eles sabiam, eu podia muito bem ser bi.
Inferno, até onde EU sabia, eu POSSO muito bem ser bi.
Não é como se eu mesma fosse começar a colocar rótulos em mim, ainda mais agora, não é mesmo?
— Amanhã passamos de táxi às sete da manhã, querido.
— Muito obrigado, Donna e Richard.
— Pelo quê? – Richard perguntou, e eles riram.
— Descanse bem, querido. – Donna disse, e eu me senti numa cena tão surreal que meu estômago de revoltou um pouco.
Ele dizia: Está tudo muito perfeito, querida.
E que oportunidade melhor para estragar tudo do que uma super viagem em família, que vai se unir com outra família?
De repente, o dia de Ação de Graças não pareceu mais uma ideia tão boa assim.
Na manhã seguinte, ficamos todos prontos antes da hora, até mesmo Aimée, que estava com a aparência de quem nem sequer havia dormido. Ela estava com o celular tão próximo do rosto, que devia ser somente para a luz do aparelho mantê-la acordada.
— Passou a noite conversando com o pretendente, é? Como é mesmo, o Noaaah... – provoquei, e ela sequer teve a energia suficiente para olhar para mim.
Alguém vai dormir MUITO no voo, olha só. Vou apostar com o .
"Uma barra de chocolate Canadense pra quem acertar quem dorme primeiro no voo: eu chuto a Aimée."
"Haha, seu pai tem cara de quem encosta na poltrona e dorme!", ele respondeu.
Pura e inocente criatura divina.
A viagem era de apenas 1h40min, no entanto. Não seria super rápido, mas já fiz viagens de carro que foram mais longas.
Chegamos no aeroporto no horário pedido para fazer o check-in. Tomamos café, comemos cookies, e a Aimée dormiu na cadeira do café, mesmo.
— Acho que ganhei. – disse, sorrindo.
— Você já sabia que ela estava cansada, não vale. – resmungou.
Tentei não ser ridícula, mas quis beijá-lo.
— Então é assim que você é, um péssimo perdedor? Bom saber, .
— Oras. – ele riu, balançando a cabeça negativamente e desviando o olhar para o seu honesto Frappuccino de chocolate.
No voo, só não assistimos a mais um episódio de Star Wars porque não daria tempo de ver o filme inteiro. Então, em vez disso, escolhemos Big Hero 6. Porque desenho não é só coisa de criança, certo? De nada.
Às vezes, parecia que minha vida podia ser resumida a livros, músicas, seriados e filmes. Ou, pelo menos, as partes boas da minha vida. Chegamos a Toronto e tudo o que eu consegui pensar foi:
— Toronto. Você é daqui. O que você foi fazer em New York, mesmo?
gargalhou. Ele me mostrou seus braços, e eles estavam completamente arrepiados. Ri.
— Céus, eu senti falta daqui!
— Você está surpreso?
— Eu realmente não achei que fosse sentir falta quando decidi ir morar com o , . Nem passou pela minha cabeça que isso podia acontecer.
— Bem... Seja bem-vindo de volta. – levantei as mãos na altura da minha cabeça e as agitei abertas no ar, sorrindo como se estivesse em um comercial de pasta de dente.
— Bem... Talvez eu não estivesse tão feliz de voltar se você também não estivesse aqui.
Prendi a respiração, mas ele não esperou uma resposta. Continuamos andando como se ele tivesse dito que água é essencial para a vida humana.
Os pais dele estavam nos esperando, claro. E, junto com eles, havia um outro casal que eu não conhecia. A mulher era ruiva, com o cabelo chanel, e sardas milimetricamente espaçadas e simétricas. Seus olhos eram cor de mel, e ela era muito, muito, muito bonita mesmo. Eu perdi o fôlego por alguns segundos. E então o homem se virou, provavelmente porque William e Bethany disseram que nós já estávamos vindo.
O cabelo dele era o mesmo que o de , somente um pouco mais claro, e aparentava ter acabado de ser aparado. O formato do rosto era mais definido, a barba mais espessa, os olhos mais .
Não lembrava de ter dito o seu nome, mas com certeza aquele era o irmão mais velho dele.
E pelo seu sorriso, percebi que ele era uma daquelas pessoas incógnitas na minha vida; eu normalmente tinha uma primeira impressão muito certeira, sabia se iria me dar bem ou se nada de bom podia surgir daquela relação, só de bater o olho. Porém, com algumas pessoas, eu realmente não sabia dizer se elas me agradavam ou se me enojavam mais.
Fomos recebidos por abraços calorosos numa temperatura agradável – como ainda era cedo, o termômetro media 12ºC. Fomos apresentados à Mariah e Benjen (hah, tenho certeza que não disse que seu irmão tinha o mesmo nome que um personagem de Crônicas de Gelo e Fogo, Benjen Stark, porque eu com certeza lembraria disso), e fiquei um pouco perdida quanto às nossas malas.
— Não, querida, fique tranquila, já cuidamos disso. Elas estarão em casa, seguras. Agora vamos levar vocês para conhecer a cidade! – Bethy disse, passando o braço pelas minhas costas e me abraçando de lado.
— A viagem foi tranquila? – Mariah perguntou, iniciando uma conversa que eu não fazia questão de fazer parte.
Estava mais preocupada com como nos dividiríamos nos carros, que deviam ser dois. Nossos pais podiam ser deixados juntos sem ninguém para supervisioná-los? No ambiente de trabalho era uma coisa, mas ali eles com certeza começariam a planejar nosso casamento.
Constrangedor.
Só de imaginar.
Ou até mesmo só achar que eles fizessem isso, mesmo que não fizessem.
Não, não podia deixá-los juntos.
E enquanto eu pensava em como faria para separar o grupo de forma mais saudável, paramos em frente a uma limusine.
— Que bonita. – eu comentei, distraída, e sem fazer a mínima ideia do que estava acontecendo.
Por sorte, somente ouviu. Eu não sou muito empolgada com carros, então o comentário foi mais um sussurro, e não um "NOSSA QUE BONITAAAAAAAA", sabe? Enfim. também ficou surpreso quando Benjen disse:
— Tem dez lugares, alugamos para passear pela cidade com vocês hoje.
— Tour de Limusine? – perguntou, rindo.
Percebi que ele estava ligeiramente envergonhado, e não prestei mais atenção no que diziam. Cheguei perto dele, de lado, fingindo que olhava para trás, e disse:
— Tudo bem, minha família também é exagerada quando se trata de agradar convidados.
— Tudo bem querer agradar, mas isso parece mais demonstração de poder.
Mesmo sabendo que, se fosse o contrário, eu também estaria bem brava, fiz o melhor que podia para tentar acalmá-lo:
, não é nada disso...
, é sério.
— Eu quero beijar essa sua boca toda tremendo de nervoso.
Ele me olhou, meio surpreso e meio bravo.
— Vai ter que esperar.
— Só se ela parar de tremer, ou seja, se você ficar calminho.
Ele suspirou, deixando a tensão abandonar seus ombros.
— Okay.
Decidi que era uma boa hora para ocupar a cabeça dele com coisas mais leves, como:
— Você nunca disse que o seu irmão tinha o mesmo nome que o famoso Benjen Stark.
não ficara feliz com o começo da frase, mas depois, quando percebeu que eu estava fazendo uma piada, ele sorriu.
— Isso é mencionado no seriado?
— Não sei, talvez. Você devia ler os livros. Sério.
— Eu vou, prometo.
— Vocês dois vão entrar ou vão ficar aí mesmo? – Aimée colocou a cabeça para fora do quarto, parecendo acordada pela primeira vez no dia.
Provavelmente a perspectiva de conhecer Toronto a havia acordado.
Entrei na limusine e veio atrás, alguém fechou a porta por ele. Suas mãos se fecharam em punhos, mas ele logo achou um jeito de resolver aquilo, e passou o braço por trás de mim, novamente apoiando-o no banco do carro. Fechei minha mão direita e bati duas vezes em sua perna, fazendo o sinal de tesoura com os dedos, em seguida.
Levantei o olhar até os olhos dele numa interrogação. Ele sorriu, aceitando o jogo.
Então fomos alheios ao que acontecia, no nosso próprio mundinho, brincando de jokenpô.
Passamos por todos os principais pontos turísticos, entre eles o Ripley's Aquarium of Canada, o Toronto Zoo, a Art Gallery of Ontario, o Royal Ontario Museum e a CN Tower ficou por último, para vermos o pôr-do-sol. Sim, o passeio durou o dia todo. Eu fiquei bem feliz de ter trazido a câmera instantânea (e muito filme, diga-se de passagem), como pode-se imaginar.
Desejei me mudar para o Canadá, fortissimamente.
De repente, a vida de boa em casa sendo mulher de não me pareceu tão ruim assim, se os vizinhos fossem tão adoráveis quanto as pessoas em Toronto. Talvez pudéssemos viver em Vancouver! Com vista para as montanhas! Gargalhei muito depois de realmente viajar por essa linha de pensamento. Eu. Esposa. Tranquila, no Canadá. Faculdade? Pff! Pra quê? Nossos pais são ricos. Perder tempo estudando o que eu amo? Nem dá dinheiro, ainda por cima.
Não. Essa não sou eu. Professora, acadêmica, pobre, solteira, e podia ser lésbica só pra fechar a mão de vez pra dar logo um soco na cara da sociedade. Mas, não, tinha que existir um homem na minha vida que aparentemente era ok. Eu ainda precisava de muito tempo com ele pra saber se realmente daria certo, mas existia a possibilidade de dar, o que já era algo. Ah, e ele também fazia meu peito doer quando ia embora. E meu corpo desejar o dele o tempo todo. Extras.
Até ele dizer "Mulher minha tem que..." porque no "mulher minha" a gente já sai correndo, besha. Não precisa nem chegar no TEM QUE. Voando, se possível.
Vamos torcer sempre pra que nunca aconteça, mas se for pra acontecer, melhor que seja logo, né não?
Só nunca vi "desrespeito" como um atributo de , talvez por isso eu gostasse tanto dele, então seria realmente uma surpresa ter que passar por essa.
A casa dos era uma mansão. De verdade, daquelas com portões enormes na entrada e seguranças. A limusine parou em frente à mansão.
Uma parte de mim queria estrangular por não ter mencionado que a "casa" dele era uma MANSÃO. Outra parte sabia que, se fosse o contrário, eu teria feito o mesmo. Eu provavelmente nunca sequer teria o convidado para conhecer o lugar. Vamos ficar longe da casa que prova que eu sou uma herdeira fodidamente rica, sim? Haha. Vamos fingir que ela nem existe.
TALVEZ os fossem mais ricos que nós. Mas, sabe, só TALVEZ.
O que totalmente explica por que nunca pareceu chocado com a nossa casa em New York. O andar térreo da mansão dos pais dele devia ser maior que a nossa casa inteira. Porém, eu lembrava de ele ter gostado bastante da decoração e tal. Ponto para Donna!
Santos deuses. Quanto trabalho. Deve ter uma empresa de limpeza inteira pra cuidar só disso aqui.
Uma AJUDANTE nos mostrou onde nossas coisas estavam, e realmente achei que fosse ficar no mesmo quarto que Aimée, porém, com uma casa daquele tamanho, isso não seria necessário. Ao menos não para eles, porque Aimée me olhou com a pior expressão do mundo.
— Ahn, será que podemos ficar no mesmo quarto? – perguntei, com receio de parecer indelicada ou algo do tipo.
— Se preferirem assim, claro. – ela respondeu, polidamente.
— Por favor. – Aimée pediu.
— Sim. Por favor. – confirmei.
— Com prazer, senhoritas. Pedirei para trazerem as suas malas todas para cá.
Enfiamo-nos no quarto assim que a ajudante saiu em direção ao fim do corredor. Nossos olhos estavam arregalados em um profundo sentimento mútuo de terror.
Sério, nos éramos as piores "herdeiras" do mundo. Não devíamos ficar super felizes em lugares assim?
— Parece uma daquelas festas de Ano Novo, que vamos para um hotel gigantesco e ficamos cada uma em um quarto e, argh, tem uma camareira!!! – Aimée disse, depois de fechar a porta, balançando as mãos no ar enquanto falava.
— Eu sei! Eu vi! Eu não sabia de nada disso!
— OK, sabíamos que a família dele era bem rica. Mais rica que nós, sim. MAS ISSO?
— Eu nunca parei pra avaliar o quão rico eles eram, na verdade.
Eu nunca tinha parado pra pensar nisso.
Por que eu iria parar pra pensar nisso?
Pra quê eu sequer iria pensar nisso?
— É porque é você, fofa. Todo mundo sabe o quão rico eles são. Na Ferdinand talvez não tenha tanto isso porque muitos acham que ele realmente é primo do , e ainda não ligaram ele aos s. Eles estão em tantos ramos do comércio que nem sei, mas nem eu esperava isso. É engraçado pensar que isso existe fora de Hollywood.
Eu apenas sentei na cama.
Lembrei de como os garotos da Holliang tinham respeitado ele. Claro, agora fazia sentido. Ele era mais rico, ele estava acima na "pirâmide social" ou qualquer coisa assim.
— Isso é absurdo.
— Sim.
— Pra quê tudo isso?
— Fale mais baixo, vai que alguém escuta.
Aimée nunca era a pessoa a pedir postura, mas entendi que ali ela estava mais preocupada em chatear alguém, ou estragar o clima, não sei. De qualquer modo, eu estava com uma sensação incômoda sem previsão de fim, e ela me "corrigir" não melhorava em nada isso.
Ele não disse nada sobre isso, e o motivo podia ser: 1. Era óbvio, não precisava ser dito. 2. Ele sabia que eu ficaria incomodada. 3. Ele tinha vergonha (mas aí não fazia sentido ele ter me convidado pra lá, né?); de qualquer modo, eu me senti incomodada. Era um lugar muito frio, faltava muito para ser aconchegante, e eu já sentia isso em minha própria casa, que devia ser um terço dessa.
Eu nunca mais diria que nossa casa era fria.
A porta abriu, e entrou no quarto.
— Ah, vocês estão aqui! As duas. Gostaram do quarto?
— Sim. Preferimos ficarmos juntas, se não tiver problema. – respondi, levantando da cama.
— Nenhum. Se quiserem, colocam outra cama aqui.
— Não, vamos dividir, a cama é grande o suficiente para nós duas. – disse olhando para a cama, como se tivesse perda de memória e precisasse confirmar o tamanho da cama.
Adoro minhas reações quando estou desconfortável.
— E eu não vou entregar ninguém que, de repente, saia no meio da noite. – Aimée disse, tão sutil que nem se preocupou em evitar a risada.
E eu dei um tapa de leve no braço de Aimée.
— Estarão todos na sala, estão servindo alguns petiscos e bebidas antes do jantar. Vocês sabem ir para lá?
— Ahh, acho que sim. – respondi, olhando para Aimée para ter a confirmação.
Não era tão difícil assim, ao ponto de nos perdermos entre o quarto e a sala, mas minha cabeça estava um pouco... Bem, na lua.
— Eu só vou tomar banho, se quiserem eu espero vocês...
— Não, tudo bem, nós vamos tomar banho e depois descemos lá. – disse, tentando parecer descontraída.
— Ok... Qualquer coisa... – ele balançou o celular no ar, e saiu.
Ah, o climão.
Vamos jogar uma ducha nele, sim?

*

Eu nunca pensei que fosse me sentir tão nervoso. Liguei para Nikki até ela atender, e despejei aproximadamente meio milhão de inseguranças nela assim que ela disse "Alô!"
"Calma, , respira e começa do começo. Em que mansão o peru trouxe a família pro natal?"
Gargalhei, certo de que ela estava fazendo piada com o meu desespero.
Respirei algumas vezes antes de dizer:
— Eu trouxe a pra casa dos meus pais. No Canadá. Para o dia de Ação de Graças.
"Tenho certeza que isso foi umas semanas atrás, fofo."
— O americano, fofa, não o canadense. Você sabe que a gente sempre comemora o americano por causa...
"Dos seus avós, sim. Estava só descontraindo. Então vocês finalmente assumiram o namoro? E eu nem fui avisada? Quanta consideração, , não é porque eu estou na Europa que você pode me descartar assi..."
— Não, não foi isso.
"Ah, ok, você quis trazer uma amiga pro dia de Ação de Graças, nada demais. Ninguém vai suspeitar. Ninguém vai chegar com a aliança de noivado da tataravó ..."
— É pior que isso, Nikki.
"Pior? Você consegue ser tão dramático às vezes, como é que pode ser pior?"
— Eu trouxe a família toda dela.
Pausa.
Pausa absurdamente longa.
"Wow. Eu realmente fiquei sem palavras. Eu não faço ideia. Não sei o que dizer além de que não sei o que dizer, . Sabe o que é isso? A primeira vez na história da minha vida que alguém age tão absurdamente que EU não sei o que dizer. Eu não tenho nem piadas pra isso."
Esperei. Eu com certeza não tinha mais o que dizer, mas Nikki com certeza diria. Ela estava apenas fazendo uma cena.
"Você ficou louco? Diz que isso não foi só ideia sua. Seus pais convidaram eles, certo?"
— Sim, mas só porque eu sugeri.
"Você sugeriu. , o que nós já conversamos sobre você mergulhar nas coisas de cabeça? Tudo bem, você estava indo beeeem devagar com a , mas aí, puf, de cabeça. Será que você não sabe dar um passo atrás do outro?"
— Acredite, Nikki, eu sei. Eu sei.
"Bom, aproveite que vocês estão aí e desfilem bastante, passem por todas as ruas de Toronto e saiam no jornal, pra aquela louca que te usou ver que você tá com a deusa da . E que vocês vão, obviamente, casar em breve. Porque só isso justifica a família toda dela passando o 'dia de Ação de Graças' com vocês. Espera. O seu irmão tá aí também? Com a louca da noiva dele?"
— Sim. Nem me fale, eu sei.
"Não deixa os sozinhos com ele, . Você sabe como ele é. Seus pais não sabem, mas você sabe."
— Sim, Nikkie, eu sei... – suspirei, decidido que aquilo não estava adiantando. – Vou tomar um banho rápido, antes que eles fiquem todos juntos sem mim.
"É bom. Mantenha-me informada. E peça a em namoro de uma vez, pelo amor de Deus."
Desligamos, e suspirei.
Nikki não conhecia como eu; ela não sabia que estávamos perfeitamente bem assim. Estávamos juntos, rótulos não importavam.
Porém, talvez trazê-la não tivesse sido a minha melhor ideia. Talvez tivesse sido menos pior pedi-la em namoro. Provavelmente.
Mas eu só precisava relaxar, e ter o cuidado de estar sempre com . Ela devia estar tão surtada quanto eu, então a prioridade era me acalmar para conseguir acalmá-la.
Seria bacana. O dia correra perfeitamente bem, sem problemas.
Era só manter essa tranquilidade por mais três dias e meio.
Aimée e foram as últimas a aparecerem. Eu já estava pensando que apareceria com uma calça social preta e uma blusa de manga comprida de alguma cor sóbria, como verde musgo. Apesar de que ela fosse mais para um vinho. Era uma combinação que eu jamais imaginara nela, a não ser talvez no dia que ela fosse uma critica literária renomada e precisasse ir a uma cerimônia receber algum prêmio. Talvez assim. Porém, jamais em uma noite comum em casa.
Mas era óbvio que ela jamais faria isso. apareceria com uma de suas camisetas de banda e uma calça de ginástica cinza escuro. Nos pés, uma sandália no máximo, mas provavelmente um All Star ou um Vans. Se estivéssemos na casa dela, seria uma pantufa de algum personagem animado.
Então dá pra imaginar que fiquei bem surpreso quando ela apareceu com uma calça social e uma camisa de manga comprida, de seda, azul escura.
Eu nunca a imaginaria com roupas daquelas no armário. Jamais.
Elas vieram diretamente para mim, já que eu ocupava um sofá sozinho, deixando dois lugares disponíveis ao meu lado.
Aimée sentou do lado oposto, deixando o lugar do meio para . Ela se sentou, sorrindo para todos sem interromper a conversa, parecendo um tanto nervosa. Claro, ainda não tínhamos conversado, e tudo ali contribuía para qualquer um ficar nervoso.
Eu sempre achava que as estátuas estavam me encarando, e tinham várias delas, o que não é nada legal se você é um fã de Doctor Who. Eu sempre me pegava tentando não piscar ou olhando desesperadamente na direção delas para ter certeza de que nenhuma havia se movido.
Uma vez a governanta esbarrou em uma e eu quase morri de ouvir o grito. Mas isso é uma história à parte, não é mesmo?
— Hey, quer dar uma volta? – cheguei perto do ouvido de para perguntar.
Se chegassem com a aliança de alguma tataravó, a única pessoa culpada por isso seria eu.
— Sim. – percebi que ela se segurou para não responder com mais animação, tentando disfarçar que estava louca para sair dali.
E, claro, também para conversar comigo.
Levantamo-nos e recebemos um olhar mortal de Aimée. Ela dizia "Isso, vão mesmo, me deixem aqui sozinha. Sem problemas!" e deu de ombros, sem fraquejar.
Provavelmente, tirar algumas respostas de mim era mais importante do que proteger sua irmã mais nova num ambiente que não indicava nenhuma ameaça física aparente. E psicológica, bem, Aimée já devia estar acostumada com reuniões assim, inclusive até mais formais. Ali éramos um grupo pequeno e razoavelmente entrosado, nada como aquelas festas de final de ano em que você ficava com centenas de pessoas que não conhecia.
Apesar de que, aqui e ali, essas festas terem algo legal. Raro. Mas aconteceu uma vez, podia acontecer de novo.
Fomos para a cadeira de balanço que havia no quintal. apenas me olhou, ao invés de me bombardear com perguntas.
— Vá em frente, pode perguntar. – autorizei, achando que era esse o problema.
Ela, no entanto, não podia ser tão simples.
— Por que você não me fala? Você sabe o que, não tem motivo pra sermos retóricos.
Suspirei.
— Ok, então vamos começar pelo mais simples. A casa. Primeiro eu achei que você soubesse, depois percebi que você não saberia esse tipo de coisa, porque não te interessa. Mesmo assim, não achei um jeito simples de dizer "Hey, a propósito, a casa dos meus pais é absurdamente gigantesca!", então...
— Assim.
— O quê?
— Assim teria sido um jeito ótimo de me dizer.
Ri. Claro que teria sido, eu só tinha receio de dizer e por isso não disse. Não importavam as palavras, meu receio era o mesmo.
— Sim, teria. Mas você teria me dito?
— Não sem passar pelos mesmos dilemas antes. Tudo bem, eu entendo. A casa realmente não importa. Próxima.
— Meu irmão é... Um assunto complicado.
— Hm. É mesmo?
— Sim. Como todo irmão mais velho, ele foi meu exemplo por muito tempo. Eu coloquei Benjen em um pedestal, que, na verdade, a família toda já o havia colocado, e nunca vi que ele tinha as suas falhas. Como mais ninguém vê, . Até hoje.
— Mas você viu?
— Sim.
— E não vai me dizer.
— Do mesmo jeito que isso não foi uma pergunta.
— Ok. Tudo bem, agora eu entendo. Só, sabe, diga algo se ele for um assassino ou algo do tipo, acho que isso seria importante saber.
Gargalhei.
— Pode ficar tranquila.
assentiu, e desviou o olhar para o jardim.
— Não consigo imaginar crescer em um lugar assim. Tão bonito, mas parece tão...
— Superficial. Sim.
— Eu já tive essa impressão em casa, e, bem, lá não é nada perto daqui. Eu já tinha a impressão de que, se me enfiasse em algum canto escuro, passariam horas antes de alguém dar por falta de mim. Não dá pra imaginar como teria sido aqui.
— Nikki ajudou. A casa da família dela é tão exagerada quanto a nossa. Ela fazia parecer normal pra mim, eu fazia parecer normal para ela. Nunca levamos amigos em casa, se saíamos era para qualquer outro lugar. A palavra "casa" era proibida. Por isso acabávamos fazendo amizade com quem gostava muito da própria casa ou não tinha interesse nenhum por casas em geral.
estava claramente imaginando a situação, então ficamos em silêncio.
— Como pode ser tão diferente? Quer dizer, algumas pessoas adorarem isso e não sofrerem as consequências de uma criação assim? Na sua própria casa tem você, e tem o Benjen. Me faz crer que nascemos prontos, e o ambiente influi minimamente.
E lá estava ela, começando um debate filosófico como se fosse algo comum.
Provavelmente era, dentro da sua mirabolante cabeça.
— Provável. Mas eu não acho que meu irmão tenha passado ileso, nem que adore tudo isso...
— Deixa eu reformular. Uns agem como se fosse ok, e outros não.
— Acho que isso resume tudo. Aliás, qual é a da roupa?
— Hm? Ah, eu... Não quis provocar a ira de Donna... – ela disse, olhando para o lado oposto a mim.
suspirou. Eu suspirei.
Suspiramos juntos, e fomos chamados para o jantar.
Decidi deixar a conversa sobre as vestimentas pra outra hora.

*

Eu não estava me sentindo nada bem.
Na minha cabeça só se passava uma pergunta: Por que eu escolhera vestir aquelas roupas? Elas tinham vindo no fundo da mala, para uma emergência do tipo "evento social não planejado", que eu planejava ignorar.
Porém, eu as vestira. Por quê? Porque nada parecera bom. Porque eu não me sentia à vontade. Porque eu tive medo de ser jogada para fora da casa caso vestisse qualquer uma das minhas roupas.
Eu tive diversas desculpas, posso listar todas, mas elas não importam de verdade.
Agora as roupas estavam ruins, as conversas estavam ruins, as pessoas estavam ruins. Eu não me sentir bem comigo mesma fez tudo ficar ruim. Eu estava tão desconfortável que queria subir correndo para me trocar. E sumir, em seguida. Teletransporte para New York, por favor.
No entanto, para não piorar mais as coisas, eu fiquei ali por cerca de duas horas, sorrindo, até Bethy dizer que devíamos estar cansados e que não precisávamos ficar ouvindo "Os Adultos Conversarem"; eu nem pensei em recusar a deixa, agarrando-a com afinco totalmente disposta a ignorar todo o resto.
Talvez tenha saído também, ou não, mas Aimée e eu nos enfiamos no quarto em uma velocidade recorde.
— O que aconteceu??? – Aimée perguntou, claramente assustada.
— Por que eu vesti essa roupa?!
— Ah, eu sabia que você não devia ter vestido isso...
Ao invés de falar tudo o que estava na minha cabeça, como achei que faria, eu apenas deitei na cama e encarei o teto. Imóvel.
— Anne, você quer conversar? Ou...
Neguei com a cabeça, e fechei os olhos em seguida.
Ouvi passos e uma porta se fechar. Em seguida, o som de uma torneira sendo aberta e a água saindo torrencialmente. Respirei fundo, e reuni forças para me despir.
Entrei debaixo das cobertas, ainda sem reabrir os olhos. Aconcheguei-me, evitando qualquer pensamento.


Capítulo 39 — Es fühlt sich an, als wär das hier für immer.*

(Chillin – Cro)

A manhã seguinte veio com uma leve brisa de surrealidade. Demorei para lembrar de onde estava, e o motivo para estar ali. Mas, assim que lembrei, a primeira coisa a me atingir foi a recordação da vergonha.
Renegar a mim mesma depois de dizer que eu havia me aceitado como era. Sem a pressão de ninguém além da minha própria.
Suspirei.
Se aceitar era bem mais difícil do que eu havia imaginado.
Dessa vez vesti a primeira coisa que vi na mochila, provavelmente escolhendo as duas peças que jamais "poderiam" ir juntas em um "look". Eu não tinha problema com a moda, eu só não a vejo como parte de mim. Eu posso colocar uma peça de roupa de cada cor, se assim quiser. Eu posso acabar vestindo a peça do momento. O que conta é eu me sentir bem.
Desci para o café da manhã com uma blusa do Metallica e calça de moletom, meu cabelo preso em um coque. Se existiram comentários, eu não os ouvi. Eu sequer estava realmente presente até William começar uma conversa literária e pedir a minha ajuda com alguns livros.
Daí pra frente eu deixei de lado a minha autopiedade.
Como sempre, a literatura me ajudava a voltar para mim mesma. Ela me lembrava quem eu sou.
Então eu finalmente tive uma conversa normal com a família , e nenhum deles pareceu se importar com as minhas roupas. Claro, eles já tinham visto algo parecido logo na primeira vez que nos visitaram em casa. Talvez Mariah, que ainda não me conhecia, tivesse questionado algo com as sobrancelhas, mas ela mal estava participando da conversa, e ainda estava fora do meu campo de visão. Benjen, no entanto, estava ao lado de William - que tinha toda a minha atenção -, e parecia muito interessado na conversa.
Porém, Zeus, ele não entendia de Literatura como o seu pai. William estava tentando explicar alguns dos livros que eram obrigatórios no ensino, como To Kill a Mockingbird e The Catcher in the Rye, mas a impressão que eu tive é que Benjen havia pulado essa parte do ensino básico.
De certo, havia algo com ele que eu não conseguia exatamente distinguir. Benjen me desconcertava, porque podia ser humilde e simpático em um instante, e extremamente cheio de si no instante seguinte. Ele tinha uma aura carregada de simpatia e excentricidade, como se dissesse "Eu sou uma pessoa muito boa, e sei disso."
Eu não sei lidar com esse tipo de coisa. Não sei lidar com pessoas que têm um ego maior que o planeta em que habitam.
— Você sabe tanto sobre Literatura para alguém da sua idade, . – Bethy comentou, certamente me elogiando apesar de eu não entender isso como um elogio.
— Bom, sempre tem algo que o aluno se interessa mais no ensino básico, não é? Eu escolhi Literatura, ou ela me escolheu, na verdade. De qualquer modo, eu que eu sei não deve ser nem a ponta do iceberg. Não vejo a hora de poder estudar mais na faculdade...
E então, sem querer, eu dei início a uma extensa conversa sobre Universidades.
Eu e a minha boca grande. Enorme.
Era uma questão de tempo até alguém dizer que eu devia prestar alguma outro curso qualquer; talvez Direito, já que eu gostava de ler. Claro. Como eu nunca tinha pensado nissp antes, é óbvio, tão óbvio quanto eu ser lésbica porque nunca peguei ninguém na escola, etc. Mesma linha lógica.
Graças ao bom , em um momento digno da minha salvadora da pátria , fui salva daquilo. Ele levantou e disse:
— Bem, família, vocês acabaram de adentrar o único assunto terminantemente proibido de se ter na frente de alunos que estão tentando entrar numa Universidade, então nós vamos sair e dar uma volta. Até mais tarde.
William ria, Bethy pediu para que voltássemos antes do almoço, às 13h.
E saímos.
— Você sabe andar de bicicleta? – ele perguntou, com um sorriso engraçado no rosto.
— Sim... – respondi, ligeiramente confusa.
— Ótimo, então nós vamos literalmente dar uma volta. Vem, a garagem é por aqui.
Vamos pular a parte em que eu comento maravilhada sobre tudo que tinha dentro da garagem gigantesca e subterrânea (sim) dos s, porque eu não me importo com nada disso e seria um pouco complicado descrever o que tinha lá dentro sem saber nada além dos nomes "moto", "carro", "triciclo"???, e essas coisas.
Tinha um bocado de extravagância lá dentro, e é só isso que eu vou dizer. Use seu conhecimento de coisas extravagantes para entender o que isso significa.
ajustou uma bicicleta para mim e um para ele, checou os pneus e pegou capacetes e luvas para nós. Agradeci por já estar com uma roupa confortável, apenas montamos as bicicletas e fomos dar a tal volta.
Toronto estava com o céu coberto de nuvens, e alguns lugares que passamos estava até com uma fina camada branca no chão.
— A neve aqui é bem úmida, mas acho que não passamos por nenhum ponto que tenha uma camada de neve na rua. Não nessa época, acho.
— Costuma never no natal, aqui?
— É raro, mas uns anos atrás aconteceu. É engraçado como todo mundo fica quando neva no Natal. – ele riu.
Andamos um bocado, mas o caminho era agradável e quase sem desafios.
Paramos no High Park, o maior parque de Toronto, pelo que a placa dizia.
Como se o caminho até lá não fosse bonito o sufiente, o High Park era... Sem palavras. De tirar o fôlego.
— Na sua cara, Central Park. – falei em tom de brincadeira, mas realmente foi o que senti.
"Quem é Central Park na fila do pão?", pensei.
riu.
— Sim, mas não compare coisas distintas. New York é a cidade mais urbana do mundo todo, e, ainda assim, tem o Central Park. Aqui todos os cantos tem um pouco de natureza, diversos parques espalhados pela cidade e tudo o mais. Em Toronto, o High Park é só mais um. Apesar de maravilhoso, não é uma surpresa que ele exista.
— Ok. Mas bem que New York podia ser Toronto, e ser menos urbana não é mesmo?
Caminhamos sem rumo durante uma hora, ou, pelo menos, eu não estava ciente do rumo. devia ter algo em mente, apesar de parecer também só andar.
Não íamos com pressa, ou seguindo um destino traçado.
Enfim paramos a beira de um lago, sentando na grama próximos de uma árvore que parecia mais velha que todos os meus ancestrais juntos.
— Eu preciso te perguntar uma coisa. – disse, fazendo os meus braços se arrepiarem.
— Ok...
Pode ser perigoso. Pode ser perigoso. O arrepio era de medo.
— Pode ser desconfortável.
Hm. Com desconfortável eu consigo lidar.
— Não vou me ofender. A não ser que seja preconceito com minorias, aí...
gargalhou, respirou fundo, e então olhou nos meus olhos.
— Você não está confortável aqui. Não é a sua casa, e tal. Você tá se sentindo deslocada, e por isso vestiu aquela roupa ontem.
Suspirei.
— Na verdade... Eu não queria causar nenhum incômodo. Com o novo comportamento de Donna eu sinto como se estivesse em um campo minado, prestes a despertar a ira dela. Não quero nada disso enquanto estiver aqui.
— Ah... É, faz sentido. – ele riu, mordendo a isca. Yay, mas um Oscar pra minha lista. – Ufa, sabe, eu ia ficar um pouco mal se você tivesse se sentido pressionada a ser quem não é pela minha família. Eu sei que eles sabem ser excêntricos, mas eles também não obrigam os outros a ser. Eu não sou.
— É, eu sei...
Desonra pra toda a sua família! Desonra pra tu, desonra pra tua vaca...
É, Mushu, não é fácil.
Na volta, algumas pessoas reconheceram , e fizemos algumas paradas antes de chegarmos na Residência . Sabe aquela história de saber se a pessoa é boa pelas amizades que ela faz? Foi isso que eu senti.
Podia ser algo com o fato de que canadenses são todos incríveis, mas além disso as pessoas que nos pararam por reconhecerem pareciam realmente bacanas. Pessoas que eu gostaria de fazer amizade com, sabe? E isso vindo da completa antissocial que sou.
— Tem festa marcada essa noite, . Você tem que vir. Você também, .
— Valeu, Ginny. – ele respondeu, olhando para mim. – Vamos dar um jeito.
Então eu tinha uma festa canadense pra ir.
Parece que vai ser divertido.
Os avós de já estavam em casa quando chegamos. Todos os quatro. Eles, elegantes, descontraídos, divertidos. Nós, sujos e suados.
Porém, não foi motivo de choque para ninguém.
— Quantas horas ele levou para pegar a bicicleta desta vez, William? – uma das senhoras peguntou, sorrindo.
— Desde que pisamos em casa, menos de doze horas, mãe. , estes são meus pais, Geneva e Christopher.
Então aquela era a avó .
Eu não sei se consigo lidar com tanta fofura.
Ela tinha 1,50cm de altura, no máximo, e seu cabelo tingido em vermelho fogo. Os olhos dela eram os mesmos de William e , então eu sabia de quem eles tinham puxado aquela beleza da natureza. Pequenas sardas coloriam o seu rosto, deixando-a ainda mais simpática. Apesar da Sra. tier um aspecto físico de quem poderia vencer muito marmanjo na queda de braço.
Era difícil não sorrir só de vê-la.
Christopher não era muito diferente. Carregava um óculos meia-lua no rosto, e olhos extremamente gentis. Sua postura era mais frágil que a de Geneva; era a postura de quem passara muitas décadas debruçado em livros.
As apresentações chamaram a atenção do outro casal de avós, e eles se aproximaram enquanto Geneva e Christopher abraçavam .
— E você é a maravilhosa . Ouvimos muito de você, querida. Eu sou Martha, e este é Francis. Bethy e William nos falaram muito de você. – fui abraçada por ambos. Martha, alta e esbelta, com os cabelos brancos como a neve, arrumados em cachos acima dos ombros, olhos castanho claro e a boca avermelhada. Francis tinha um cabelo mais acizentado, acompanhado pela barba, e olhos azuis também cinzentos. Acompanhava a mulher em altura, mas era mais forte e, por isso, parecia ser maior.
— Veja só, parece que você está mais forte! sempre foi o mirrado da família. – Francis explicou, enquanto estendia os braços para abraçar o neto.
— Tirando a época em que ele foi o gordinho. – Benjen comentou, aparecendo na sala com uma taça de vinha em mãos e um olhar maldoso.
O cabelo penteado para trás, com a ajuda de algum gel para fixar, a roupa engomada e a expressão dele foram a combinação perfeita para eu decidir: não, Benjen não era uma pessoa boa.
— O almoço está servido, queridos. – Bethy anunciou, e a seguimos para a mesa.
Claro que não era a mesma sala em que fazíamos o café da manhã.
Era muito maior, com uma mesa gigante, lustre gigante e coisas caras.
Tentei evitar o sentimento de estar dentro do seriado Downton Abbey. Principalmente porque eu ainda estava com resquícios de suor e sujeira do passeio de bicicleta. Tentei focar em , e no quanto ele ficaria chateado se eu agisse desse modo, e respirei fundo até voltar a mim mesma.
Por que eu ainda me importava com aquilo? Era realmente ridículo da minha parte.
Era tão fácil sair e dizer que eu me aceitava como era, mas nem tão fácil assim realmente me aceitar. E eu nem tinha algo realmente chocante e diferente pra aceitar; eu só não sei me vestir seguindo os padrões fashions, ou sei lá, gosto de estar confortável.
Por algum tempo, fiquei imaginando como seria amar uma mulher, e assumir isso para o mundo todo.
Entendi, finalmente, o por que era um processo tão longo. Por mais que eu amasse essa mulher, os olhares... A pressão social...
Dediquei um minuto de admiração para toda pessoa gay, lésbica, trans, não-binária, todas essas pessoas, por serem tão corajosos. E as pessoas ainda tinham coragem de dizer que era "moda" ser gay.
Santo Zeus, não é mesmo? As pessoas não param pra pensar antes de falar, só isso explica.
Realmente, deve ser hiper louco andar o tempo todo com medo de ser atacado verbalmente, fisicamente ou até mesmo só psicológicamente.
Os olhares.
Mais agressivos que muita coisa.
Só voltei para a mesa quando Aimée me cotovelou com delicadeza direto nas minhas costelas. Então reparei que todos olhavam para mim.
Oops.
- Ah, desculpa, eu...
- Ela faz isso sempre. - comentou, com um sorriso que indicava qualquer coisa menos menos indignação pela minha falta de respeito.
- Sim. - minha família concordou, em uníssono.
- Onde estava essa cabecinha, eu me pergunto. - William tinha um sorriso gentil no rosto, que, ao acentuar seus traços, revelou a sua semelhança com seu pai.
- Em Plutão, provavelmente. - Aimée disse, revirando os olhos.
Só ela conseguia fazer esse ato parecer fofo. Porque ela tinha que sorrir, em seguida.
- Desculpas, de verdade...
- Imagine, querida. Nós estamos aqui com assuntos tão bobos, William nos contou sobre o seu interesse pela Literatura. Com certeza o que está aí em sua cabecinha é bem mais interessante que corridas de cavalo. - Geneva disse, abanando a mão no ar. - Diga, conte-nos sobre alguma de suas pesquisas. Richard disse que leu seus trabalhos e ficou encantado.
Tanta. Pressão.
Eu adoro falar sobre literatura, mas essa impressão de que eu era a rainha da Literatura me fazia entrar em pânico. Eu não sou tudo isso! Não precisa encher meu ego, etc. Meu ego vai bem, na boa, na dele. Deixem meu ego em paz.
De qualquer modo, eu falei. Contei sobre a última pesquisa que eu fizera para o trabalho de história de Marcell, que acabara sendo o trabalho mais interessante que eu já fizera. Falei por um bom tempo, com todos parecendo interessados e fazendo perguntas para mim.
Era uma atenção esquisita, mas boa. Não costumava ter tanta atenção em mim, tirando quando estava no Teatro. Aquilo era diferente. Era diferente de tocar uma música num palco, também. Diferente de fazer um debate em aula, ou de responder uma pergunta quando o professor falava, até mesmo de quando apresentava um trabalho na frente da sala toda.
O almoço foi extremamente agradável, e então fizemos uma pausa antes da sobremesa. sugeriu que aproveitássemos a deixa para tomar banho, já que depois iríamos ao jogo de Hockey.
Quando saí do banho, achando que encontraria Aimée no quarto, dei de cara com outra pessoa.
Agradeci aos deuses por ter levado a roupa para me vestir no banheiro.
Benjen estava sentado em minha cama, e sorriu.
, .
Devo ter olhado para ele como se ele fosse um zumbi, porque Benjen riu. É, esse deve ser um olhar que ele não recebe muito.
Retomei a postura e perguntei:
— Hm, estou no seu quarto ou algo assim?
— Não, este é um quarto de hóspedes, claro. O meu quarto tem um tamanho decente.
Ah! Esnobe. Esnobe é a palavra para descrever a atitude de Benjen . Completamente esnobe. Ele exalava o mesmo ar que os piores garotos da Holliang. Ótima hora para perceber isso.
— Certo. Então, porque você está aqui, mesmo?
Foi difícil não fazer nenhuma piadinha, como "Num quarto tão pequeno, como você conseguiu entrar?", "Não se sente sufocado?" etc.
— Eu achei que seria melhor conversarmos. — ele respondeu, dando de ombros como se não fosse nada.
Como se eu soubesse do que ele estava falando, o que, caso não tenha ficado claro, eu não faço a mínima ideia.
— É mesmo? Sobre o que, exatamente?
— Meu irmão é muito... Sensível. Ele ficaria devastado se soubesse...
Tentei evitar que minhas sobrancelhas fizessem um ponto de interrogação gigante. Elas tinham esse dom que era revelado toda vez que alguém inesperadamente dizia algo completamente absurdo.
— Se soubesse de quê? — acabei perguntando, sem saber pra onde aquilo ia.
— Oras... De nós.
Nós?
Ok. Claro.
Nós!
— Nós quem? Você e Mariah? Você e seus pais? Ou todo mundo? Não tô entendendo nada, Benjen.
Ele gargalhou.
— Eu vi como você me olha, . Ele não percebeu porque está cego, mas preciso que você deixe isso de lado. Acabaria com ele saber que você se apaixonou por mim.
Agora o ar de superioridade dele estava me sufocando. As palavras dele não faziam sentido nenhum.
Ótimo, o irmão de é louco. Daqueles que vêm as coisas onde elas definitivamente não existem.
Maravilhoso!
— Olha, Benjen, eu sinceramente não sei de onde você tirou essa ideia, mas peço desculpas se passei essa impressão, eu tenho absolutamente nenhum interesse em você. Nenhum mesmo. Nada.
— Isso, muito bom. disse que você era uma ótima atriz. É só isso que você precisa dizer para ele. Mas, para de ajudar, eu vou aliviar um pouca essa tensão que você está sentindo...
Ele veio na minha direção, e eu?
Eu corri para a porta, claro.
Tenho anos de Criminal Minds, sabe? Onze temporadas. Me respeita.
Claro que, para dar um pouco de drama, ele me alcançou antes, mas não rápido o suficiente para me impedir de abrir a porta. Benjen me prensou na parede, levantando o meu rosto para si com força.
, não precisa fugir... É melhor assim, aceitando...
Eu vou gritar.
Eu. Vou. Gritar.
Eu gritei.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
Ele devia ser realmente iludido, porque ficou SURPRESO com a minha reação. Benjen deu um passo para trás, e Aimée apareceu na porta do quarto em instantes.
?!
— Oi, Méme, desculpa. Eu não vi que tinha um intruso no nosso quarto e quase morri do coração. Precisa de alguma coisa aqui dentro, Benjen? – perguntei dura, olhando friamente em seus olhos.
Ele se recompôs nesse meio tempo, e andou até a porta enquanto dizia:
— Não, eu achei que o quarto estivesse vazio.
— Não está. – respondi seca, vendo o rosto dele enrijecer de raiva.
— Mil desculpas.
E ele se foi.
Então, o irmão mais velho de é louco. E tentou me agarrar a força. Mesmo já tendo uma, isso mesmo, NOIVA. Aquele irmão, que dizia o tempo todo que jamais alcançaria o mesmo patamar, que sempre deixaria ele em segundo lugar, e que todos da família idolatravam. Tentou. Me. Abusar.
Eu definitivamente não tinha vindo pro Canadá pra isso.
Onde eu estava com a cabeça de pensar que alguma família nesse mundo está completamente livre de problemas, não é mesmo?
Isso é pra eu aprender a morder a minha língua.
Eu vou achar a chave dessa porta e trancar esse quarto antes de dormir, ah vou.
Aimée ainda me olhava, curiosa. É claro que a cena fora de todo bizarra, e nada faria sentido a não ser o que realmente acontecera.
— Ele estava sentado na nossa cama quando eu saí do banho, por sorte, já vestida. Então veio com um papo de que eu estava apaixonada por ele, e tentou me agarrar. Foi quando eu gritei, e ele ficou SURPRESO. – despejei tudo de uma vez. – Aimée, acho que ele é louco.
Minha irmã precisou de alguns instantes pra se recuperar. Sua boca até ficou aberta por um bom tempo antes de ela conseguir dizer:
— O quê?!
— Isso mesmo.
, você precisa contar pro .
— O quê? – perguntou, parando na porta com um sorriso lindo.
Eu quis beijá-lo. Seu cabelo estava molhado, grudado em algumas partes de seu rosto e arrepiado em outras. Além do sorriso, que por si só já me fazia querer beijá-lo.
Perder tempo falando do irmão mais velho dele? E provavelmente estragar a viagem? Eu conseguiria fazer isso?
Aimée, adivinhando meu pensamento, olhou para mim e disse:
— Conte para ele. Eu vou indo na frente. Mas conte.
Soltei todo o ar em meus pulmões.
assistiu Aimée sair e olhou para mim, confuso.
— Entra. – eu disse, fazendo um gesto com a mão e indo para a cama.
Sentei, e ele fechou a porta atrás de si e veio até mim, sentando-se ao meu lado.
— O que foi? Eu tô começando a ficar tenso, . Fala de uma vez.
Rugas literalmente se formavam no rosto de quanto mais eu demorava para dizer, então decidi que seria melhor não prolongar o suspense.
— Eu vou dizer, mas você precisa me prometer que não vai agir precipitadamente. Eu não quero estragar a nossa viagem, então, se você quiser fazer algo sobre isso, deixe para fazer qualquer coisa só quando formos embora. Por favor.
— Ok, estou oficialmente preocupado.
, prometa.
— É claro que eu prometo! Mas o que aconteceu para você ficar assim? – ele suspirou, revirando os olhos enquanto virava a cabeça para o outro lado do quarto. Então ele abaixou a cabeça, balançando-a negativamente, e olhou para mim. – Foi o Benjen, não foi? O que ele te falou?
Senti um peso enorme sair dos meus ombros; não era uma surpresa que Benjen podia ter feito algo. Provavelmente ele já fizera antes.
— Ok, eu saí do banheiro e seu irmão estava sentado aqui. Eu perguntei o que ele queria e ele começou com um papo esquisito, eu não estava entendendo nada até eu entendi que ele achava que eu estava apaixonada por ele??? Então, percebendo que seu irmão sofre de alguma ilusão assustadora de que todo mundo o ama, corri para a porta. Ele me alcançou e me prensou na parede, disse mais algumas baboseiras e eu gritei. Aimée chegou e ele, um tanto chocado com a minha reação, não teve nenhuma reação maluca e consegui fazer com que ele fosse embora sem tentar mais nada.
massageou os olhos, suspirando sem tirar as mãos dos rostos.
— Ele já fez isso antes, com Nikki. Eu achei que fosse algo exclusivo, até demorei um pouco para acreditar em Nikki, porque ela já estava em uma fase complicada. O problema foi que ele chegou em meus pais primeiro, comentou que Nikki era louca e tinha dado em cima dele, falando dela como se ela fosse um pedaço de lixo. Eu tinha esperanças de que não fosse acontecer com você.
— Então agora, o que acontece? Ele vai dizer pros seus pais que eu tentei me jogar nele??? Só pode ser brincadeira, .
— Espero que não. Mas talvez seja melhor nós falarmos com eles, logo.
Grunhi.
— Eu só queria não arruinar tudo uma vez na vida!
sorriu suavemente, e chegou mais perto para me abraçar. Descansei a cabeça em seu peito, sentindo o nível de frustração abaixar.
— Você não arruinou nada, . Sinto muito por isso, de verdade. Eu vou resolver, prometo.
Ao invés de descermos, chamou os pais até meu quarto. Eu estava tão envergonhada que mal falei, deixei contar o que acontecera, e Aimée testemunhou o que vira, enquanto eu olhava pela a janela. Quando fui chamada para a conversa, apenas disse:
— Eu sinto muito, de verdade, preferia fingir que nada aconteceu.
Foi, aparentemente, a melhor coisa a se dizer, porque eles acreditaram.
E a expressão de desapontamento de Bethy e William foi devastadora.
— Não, querida, você fez certo em nos contar. Não se deve fingir que uma coisa dessas não aconteceu. – Bethy se apressou em dizer.
— Sentimos muito pela falta de decência de nosso filho, e pediremos para ele se retirar se assim for melhor.
— Não! Não, realmente não precisa, eu não quero estragar o dia de Ação de Graças para ninguém, de verdade...
— Foi ele quem estragou, querida. – Bethy disse, estendendo a mão para apertar o meu ombro.
Ela me puxou para um abraço.
— Não, eu ficarei com ela o tempo todo, e creio que Benjen não tentará mais nada. Não precisamos expulsá-lo, mas ficaria mais tranquilo se vocês pedissem para ele não incomodar mais a .
— Tudo bem, filho. Tem certeza? – William perguntou.
— Sim. – respondi junto de , e prossegui sozinha: – Tenho certeza que ele não fez por mal, e entendeu alguma coisa errado. Deixei claro que não era nada daquilo, e creio que não se repetirá. Mas e... Bem, e Mariah?
Eles se entreolharam, os rostos cansados.
— Esperem. Vocês estão levando issode uma maneira muito fácil. – olhou de seu pai para sua mãe. – Eu lembro bem como foi quando aconteceu com a Nikki. Digam, o que eu não estou sabendo? O que aconteceu mais? Não é a primeira vez, é? Nem a segunda? Tiveram outras?
— Digamos que recebemos algumas reclamações, ... É complicado. – William suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— COMPLICADO? - explodiu, me pegando de surpresa. – Ele precisa de tratamento! O que é tão complicado nisso?!
— Não chega a ser tão grave, uma garota em um caso que Benjen estava bêbado disse que ele quase... fez algo, mas ela conseguiu fugir. Ele só vê interesse onde não existe. – Bethy explicou.
Ok, aparente essa é uma doença real. Ou, claro, uma desculpa pra ele ser um babaca.
— Mas é está NOIVO, mãe! Mariah sabe disso? – perguntou, a testa toda franzida.
— Ela está ajudando-o, querido.
— Ela é psiquiatra, por acaso? – riu.
Eles se entreolharam.
Ah, meu deus.
Ela É psiquiatra.
O noivado é uma farça.
Bem, pelo menos isso tira o "está enganando a noiva" da lista de babaquices de Benjen.
perdeu a cabeça.
— Claro! Por que seria muito absurdo o herdeiro da fortuna ser visto em uma clínica psiquiatríca. Santo Deus, mãe! Pai! Ele precisa de um tratamento de verdade!
— Mariah é ótima, querido, acredite... Ela descobriu alguns outros problemas, também... É melhor assim. – Bethy abraçou o filho mais novo, acariciando seu cabelo lentamente.
Lembrem-me de nunca mais deixar eu dizer coisas como "família perfeita", por favor.
Sério mesmo.
Mordi a língua tão forte nessa que não quero nunca mais.
ficou bem chateado, e seus pais desceram com Aimée, desculpando-se comigo uma última vez antes de saírem do quarto. Eu não sabia o que dizer para ajudar, então fui até ele e beijei-o.
Lembrem-me que essa foi uma ótima decisão.
Por fim, ele acabou rindo.
— E você achava que a sua família era louca.
— Nem me diga, eu não cometo esse erro duas vezes. Pra falar a verdade, tô até feliz que seu irmão tenha uns parafusos fora do lugar, desvia completamente a atenção dos nossos próprios defeitos.
Ele riu. Ok, ponto pra mim.
— Vem, vamos descer. – encaixou a mão na minha e me guiou para fora do quarto.
— Sabe... Eu ainda não conheci o seu quarto.
— Estou preparando esse momento, ainda. Tenha paciência.
Gargalhei.
— É mesmo?
— Claro. E a sobremesa já deve estar pronta para ser servida, não vamos enrolar.
— Boa saída, gênio.

*

Eu queria fazer um buraco na cara convencida de Benjen, mas ela não estava assim tão convencida quando chegamos. Mariah estava falando com ele, e ele olhava para o próprio colo.
Nunca vira meu irmão assim.
Não justificava nada, mas minha raiva diminuiu um pouco. Pelo menos estavam fazendo algo, mesmo que não fosse o ideal. Já era melhor do que culpar Nikki, como acontecera da primeira vez. Como eu era teimoso, Nikki continuou sendo minha melhor amiga, mas meus pais a tratavam como a culpada por todos os seus problemas, porque o filho precioso dele jamais faria algo do tipo.
Ele jamais tentaria forçar uma garota a beijá-lo, oras, ele já era tão bonito e perfeito, pra quê precisaria disso?
Ainda fazia meu sangue ferver.
não soltou minha mão, nem quando seus pais olharam e depois desviaram o olhar como se nada tivesse acontecido. Ela me olhou de espreita, como se me desafiasse a dizer algo. Apenas ri.
E toda a raiva passou.
ficou realmente encantada. Com as pessoas, com a torcida antes do jogo, com o estádio, com o jogo, com tudo. Depois, fomos direto para a festa que tinham nos convidado mais cedo. Foi extremamente divertido ver em um ambiente desconhecido, onde ela era a estrangeira e eu era o conhecido. Eu nunca a vira ser tão social, e questionei se ela não era uma "outsider" por escolha própria. Acabei comentando isso com ela.
— Como diria Adore Delano, I'm a fucking Libra, . - foi a resposta de , com um sorriso de escárnio.
— Eu não sei o que isso significa. – revelei, rindo.
— Eu também não, mas acho que uma das coisas é que eu nasci pra festa, sabe. E ser popular. Algo assim. – ela deu de ombros.
— Parece exatamente o que você faz. – disse, com as sobrancelhas erguidas e um tom saudável de ironia na voz.
— Não é porque eu tenho o dom que eu faço uso dele o tempo todo, . – ela disse, revirando os olhos e afastando o olhar de mim, o que junto com o modo que ela falava meu sobrenome me forçou a puxá-la para mim.
A beijei, e alguns conhecidos da festa deram seus gritos de surpresa e encorajamento.
riu.
— Vamos comer algo, sim?

*

Comemos um churrasco muito bom, acompanhado de refrigerante porque estava de carro – e eu não era chata ao ponto de beber enquanto a minha companhia tinha que ficar olhando. Ele fora bem legal de me trazer ali, o mínimo que eu podia fazer era acompanhá-lo nas bebidas não-alcoolicas.
Foi lá pelo segundo refrigerante que uma garota veio até nós, sorrindo. Ela tinha cabelos curtos e vermelhos e uma pele de porcelana.
— Eu fiquei sabendo que você estava na cidade. – ela disse, simplesmente.
Olhando para , claro, e fingindo que eu não estava ali. Será que essa é...?
— Natalie, quanto tempo. – respondeu da forma mais neutra possível. – Esta é , minha amiga de New York.
— Amiga? Foi uma cena e tanto a de vocês ali dentro.
Rimos. Nós talvez tenhamos nos beijado por algum tempo.
— Prefirimos evitar rótulos. – eu disse, sorrindo. – Prazer, Natalie.
Apertamos as mãos uma da outra, sorrindo.
— Bom, de qualquer modo, você tem muita sorte de ter o . Ele é uma ótima pessoa. – ela disse, sorrindo genuinamente.
Ao menos o sorriso parecia ser genuíno.
— Eu sei. – respondi, olhando para ele e sorrindo.
Acabei lembrando de quando conheci Eve, e como eu sabia que não precisava dizer para ela o que Becky era e o que não era. Enfim, não ia exigir o mesmo de todo mundo. Aquela não era a melhor amiga de , como eu era a melhor amiga de Becky.
— Eu já estou indo, só passei para ver como você estava. Fico feliz em te ver, . Cuide bem dele, .
— Digo o mesmo, Natalie. Se cuida. – ele respondeu, e ela o beijou no rosto antes de ir.
Fiquei em silêncio, esperando que ele dissesse algo.
— Sim, era ela. E, é, nada. Não senti nada. Nadinha.
riu por um tempo antes de me puxar para mais perto e me beijar por mais alguns minutos seguidos.
Senti uma felicidade esquisita dentro de mim, como um calor novo nas minhas entranhas. Senti que podia tentar decifrar aquilo, mas resolvi deixar quieto e só aproveitar o momento.
Pelo menos uma vez, só experimentar a felicidade inexplicável de um momento.
me levou para o seu quarto quando voltamos da festa. Ele era tão cheio de coisas que parecia pequeno, e acabei comentando isso com .
— É um dos mais pequenos da casa, na verdade. Eu nunca me senti confortável nos quartos grandes.
O "pequeno" da Residência era praticamente do mesmo tamanho que o meu quarto, que era um dos maiores quartos da nossa casa, tirando, claro, o dos meus pais. Por isso, apenas ri.
As paredes eram cobertas de pôsters e estantes cheias de livros e CDs. Chegamos, então, a sua coleção de vinils.
Eu realmente quis casar com ele.
Nós acabamos nus em sua cama, claro, mesmo que tenha dito que essa não era a intenção dele ao me levar para o seu quarto, de que outro modo aquilo podia acabar? O quarto dele era um reflexo das coisas que eu mais gostava nele, e estar ali era como finalmente estar dentro da sua vida.
Eu tinha que tirar nossas roupas, não podia deixar uma oportunidade dessas passar.
Tivemos uma boa hora de sexo lento e firme, beijos molhados, suspiros... Não ficava velho. Cada vez parecia melhor, e eu o queria mais e mais.
Apoiei o meu torso no cotovelo, para falar com de frente.
— Eu não quero, mas talvez seja hora de eu ir para o quarto ficar com Aimée...
Ele sorriu, fechando os olhos enquanto o fazia.
— Sua irmã está no mesmo quarto que seus pais, ela não ia dormir sozinha depois da cena do meu irmão... E você pode ficar por aqui.
Sussurrávamos.
— Não vão achar ruim?
— Ninguém precisa saber. – eles piscou, e eu deitei em seu torso pronta para dormir.
— Ok. Melhor assim, mesmo. – sorri, mesmo que ele não pudesse ver.
— Estreiou Jessica Jones no Netflix, quer assistir?
Ri.
— Você sabe como me agradar, não é mesmo?
Acabamos dormindo antes mesmo de ligarmos a televisão, mas o que importa é a intenção, não é mesmo?
Fizemos de tudo no resto da viagem. nos levou para patinar no gelo, visitar o zoológico com mais tempo, conhecer alguns parques, ver mais parques, passear de barco... Tudo, realmente tudo. Benjen não fora mais visto por nós, o que realmente não seria algo de que eu fosse reclamar.
Eu queria voltar ali mais vezes, e conhecer mais do de Toronto. Seus avós me contaram histórias tão travessas que eu jamais poderia imaginar.
— E você se passando pelo garoto quietinho. – o repreendi, e Geneva quase engasgou com o "quietinho".
— Ele é um terror, querida! Um terror! – ela enfatizou, fazendo minha vida mais difícil com toda a vontade que ela me dava de a apertar. – Mas é o terror da vovó.
abraçou a avó, rindo.
Eu tirei uma foto com a câmera instantânea, porque é pra isso que eu existo. Ser inconveniente em momentos de extrema fofura.
Não vou negar essa chamada da natureza.
Eu não queria ir embora, de verdade. Desejei que pudéssemos ficar ali, naquela bolha de alegria, para sempre. Sem provas, sem trabalhos, sem responsabilidades e preocupações.
Depois me senti muito mimada, e passou.
Demos as nossas escapadas para conseguirmos privacidade, mas quando sentamos no avião deixei que minha cabeça descansasse no ombro de sem preocupações.
Esperava que ninguém comentasse nada, mas também não agi de modo que fosse evitar isso. Era mais importante apoiar a cabeça nele do que as consequências que isso poderia trazer.
Eu ainda me sentia feliz.
Chocante.

Tradução do título: It feels like this is forever/Parece que isso é para sempre. <3
{Fica a indicação pra quem não conhece, Cro é maraaaa!}



Capítulo 40 — It's like wishing for rain as I stand in the desert.

(A Drop In The Ocean — Ron Pope)

Essa felicidade durou um bocado. Antes que percebesse, estávamos prestes a apresentar a nossa peça. Três semanas que passaram voando, para não dizer aparatando. Finalmente, a minha última apresentação de Teatro na Ferdinand.
Senti uma vontade leve de chorar que não havia previsto. Por sorte, consegui esperar as palmas da plateia para fazer isso. Minha família estava toda lá, o que era algo que eu também não havia previsto. A família de também — aparentemente, eles decidiram passar o Natal por aqui, com a família de . Benjen não veio junto, e me contou que seus pais finalmente tinham internado o filho mais velho em uma clínica.
Obrigada, né?
Quando as cortinas se fecharam, eu não acreditei que tinha acabado.
Tivemos um momento de lágrimas e muita emotividade. Foi massa. Nem Margaret resistiu, vindo com aquele papo de que nós éramos a melhor turma dela em anos e etc.
Fofa.
Até Marcell apareceu para nos parabenizar. Eu disse, massa.
Para dizer a verdade, foi tudo um tanto surreal. Eu lembrava de ter sido uma ótima encenação, beirando a perfeição para algo que acontecia ao vivo, mas, ao receber os elogios, eles pareciam ser para outras pessoas.
Depois de fotos, elogios e flores, agradecimentos à professora e da professora, acabamos em uma pizzaria, numa mesa gigantesca. Fechamos o andar da pizzaria, que já estava reservado para nós.
Margaret fez outro discurso na mesa, e finalizou-o desejando que realizássemos nossos sonhos.
É, eu ainda passaria no Teatro antes de me formar, nem que fosse só para ver os alunos ensaiarem.
O Baile de Inverno era no dia seguinte, dando início ao recesso de fim de ano. Aimée estava com um vestido roxo maravilhoso, o cabelo com duas mechas frontais presas para trás e o resto solto e com cachos grandes.
Ela parecia tão mais velha assim que eu tive que resistir ao ímpeto de enfiá-la embaixo da minha "asa" figurativa e nunca mais deixá-la sair. Aimée estava crescendo; eu também senti orgulho pela jovem que ela estava se tornando.
De criança birrenta para uma adolescente madura.
Eu estava de vermelho, claro. Um longo vestido de veludo que abria na metade da minha coxa direita. Meu cabelo estava todo preso em um coque, com uma rosa vermelha de veludo de enfeite.
Nós estávamos arrasadoras.
Donna ficou nos paparicando e arrumando cada detalhe até o último minuto, quando Richard tirou uma foto nossa.
Eu totalmente postei no Instagram, com a legenda: "melhor par para o meu último Baile na Ferdinand ❤ sisters ready o rock!", porque eu sou dessas que puxam o saco da maninha mesmo.
Eles nos levaram até a escola, e encontramos a galera na nossa mesa de sempre. A decoração do lado de fora era pouca, mas bonita. Discreta e perfeita. Parecia com o fim de uma era, e trazia consigo os ares da incerteza. Afastei os pensamentos disso, e fui ajudada pelos elogios dos meus amigos.
— Ataque cardíaco, ataque cardíaco certeiro. – Rapha disse, passando a mão pelo tecido da saia do meu vestido.
— Você quer matar um hoje, é isso mesmo? E esses lábios vermelhos! – Becky apoiou a cabeça no ombro de Eve como se chorasse.
Ah!, o drama.
— Você devia ter participado do Teatro, Rebecca. – eu disse, e ela riu.
Então eles mudaram o foco para a minha irmã, para falar de como ela estava linda e como havia crescido, um foco que eu preferia milhões de vezes mais.
Depois de todos estarem reunidos, finalmente entramos no salão do Baile. A decoração era bonita, apesar de nada original, e aparentava ter sido tão trabalhosa que seria um absurdo dizer qualquer coisa que pudesse soar como uma crítica.
Por isso, deixei quieto o fato de terem usado as cores da escola, azul e prata, para decorar tudo. Literalmente tudo. Não que eu esteja criticando, só tô passando a informação pra vocês, mesmo. Nenhuma crítica. Zero críticas.
Uma música super dançante já dominava o salão, e uma boa quantidade de alunos já estava por ali, então fomos direto para a pista de dança. Nem nos preocupamos em fingir acanhamento, porque se tem uma coisa que sabemos como fazer, é agitar uma festa. Não tem nada mais que eu precise além de música e minhas amigas (obs: os do sexo masculino inclusos).
Logo em seguida chegou, e apesar de eu estar ocupada dançando com Aimée (e de repente com Phill, então com Becky, mas aí com Eve, e então Rapha, depois Aimée de novo, e por aí vai), consegui olhá-lo o suficiente para saber que ele estava irresistível, e que Valerie era uma garota de sorte.
Mas eu era mais.
Ri com o pensamento, não por maldade; Valerie não tinha nada haver com a minha risada. Eu ri porque estava assumindo para mim mesma que tinha sorte por ter encontrado , e esse era um conceito engraçado. Ao menos para mim. E para a minha vida até então, no geral.
Eles demoraram um pouco, mas acabou conseguindo trazer Valerie para a nossa "roda", e, também, por que ela iria negar uma dança com o par dela, né? Enfim, uma hora Valerie se soltou, e eu comecei a achar que ela só era doida varrida em algum canto distante da minha mente.
As pessoas mudavam, afinal. Somos seres humanos, supostamente inteligentes, que aprendem e evoluem. Correto?
Ahh... Debatível, mas mais ou menos correto. Para não arriscar, eu optei por evitar dançar com . Só por via das dúvidas, sabe? Festa, nada de encrenca.
Na primeira pausa que fizemos para comer algo, sorteamos o Amigo Secreto, aproveitando que estávamos todos ali. Até mesmo participou. Eu esperei que isso fosse algo bom, um sinal de que talvez ele estivesse pronto para ser uma pessoa melhor. Ao menos com os seus amigos. Aimée, que não ia participar, foi a responsável por sortear.
Depois voltamos para a pista.
Quem eu peguei? É segredo! Haha.
Foi então que Aimée parou de dançar do nada, enquanto eu dançava anos 60 até o chão com Phill e Becky. Becky mais ou menos, porque ela parava na metade, rindo, mas o que vale é a intenção. Segui o olhar de Aimée e tentei processar o que acontecia.
Enfim, fui até ela, colocando-me à sua frente para dançar (e, talvez, discretamente tapar a sua visão).
— Hey, baixinha. – eu disse, sorrindo.
Ela sequer alterou a expressão.
— O que ele tá fazendo aqui?
— Hm... Méme...
— Quem é aquela garota, ?
— Ok, vamos trocar para eu olhar melhor.
Olhei, mas não adiantou muito. Sabe como é... É, você já sabe. Era melhor perguntar para alguém melhor informado.
— Ah, Rapha? Sabe quem é aquela ali? Vestido laranja.
Rapha diminuiu o ritmo da dança, se aproximando mais de nós após conferir quem eu indicava.
— Kristen. Ela é do segundo ano.
— Valeu.
Ele olhou para Aimée, depois para Kristen, e então pareceu entender o que acontecia.
Raphael, sendo a pessoa maravilhosa que era, deu um jeito de sair da pista com nós duas sem levantar suspeitas ou questionamentos inoportunos.
— Quem é o bofe? Seu namorado? – ele perguntou para Aimée, com o ar de um mestre.
— Não, não! Ele é só um amigo...
— Ha, sei, ótimo. Primeiro, você é muito nova pra isso, mocinha.
— Rapha. – o chamei, em tom de repreensão. – Pra esse tipo de coisa ela já tem eu, a irmã mais velha super protetora e ciumenta.
— Ah é, ok. Então só desembucha, gata.
Conhecendo Aimée, ela não "desembucharia" nada. Claro que Rapha era Rapha, e conseguiu levar a minha irmã para longe de mim (!!!) para conversar. "Vamos só jogar conversa fora, ! Relaxa!"
Voltei para a pista de dança quase espumando, mas me conformando que talvez fosse mesmo melhor Aimée conversar com alguém que não fosse eu.
Se tinha alguém que sabia como era bom desabafar com um amigo, esse alguém era eu. De todas as pessoas possíveis, eu estava feliz de ter sido Rapha. Ele era ótimo nisso, e eu confiava que nada que ele dissesse faria mal para Aimée.
Interromperam a Disco incrível que estava rolando para introduzir a banda da noite, e, sim, eram os garotos do Festival de Outono. Nate e a sua banda, Rocket.
Eu tinha que admitir que o som deles era muito bom. Dançamos incansavelmente, e eu fiquei rouca de tanto cantar junto as músicas que eu já estava tão acostumada com as letras.
Eles satisfaziam o meu lado mais indie.
Ilustrando: teve Michael, do Franz Ferdinand. Nessa hora Rapha já voltara, com Aimée, e nós gritamos muito juntos. Depois eu tive que ir pegar uma água, obviamente.
— Olá, .
Era Nate. Por coincidência, a banda também decidira fazer uma pausa na apresentação. Eu tinha quase certeza que eles deviam ter água no palco ou próximo do palco, mas não sou eu quem vai questionar a organização do Baile hoje.
— Hey, Nate. Parabéns pelo show. – sorri, talvez com empolgação demais.
Sabe como é... Franz Ferdinand.
— Obrigado. – ele pareceu que ia deixar por isso e voltar para a banda, mas então voltou-se para mim e continuou falando. – Sabe, você devia aparecer em algum show nosso. Tá com seu celular aí?
Tirei o celular de um bolso secreto no vestido, porque É CLARO que ia ter um bolso no meu vestido, e entreguei-o para Nate depois de desbloqueá-lo enquanto ele ria. Quando ele me devolveu o celular, eu tinha um contato novo na agenda.
— Ah, Nate...
— Olha, eu sei. Não estou exigindo nada. Da outra vez eu deixei a oportunidade passar, e foi um erro. Um erro que não vou cometer duas vezes. Não precisa dizer nada, sabe? Se quiser jogar conversa fora um dia, pode mandar um mensagem. Não vou ficar esperando. Isso não é um compromisso nem nada. Se não quiser conversar também, tudo bem. Mas, se quiser... Tá aqui.
Diante de um discurso desse, eu fiquei meio que sem ter o que falar. Então só concordei. E deixei ele me dar um beijo no rosto antes de voltar para o palco.
Bebi a minha água lentamente, em parte processando o que acontecera e em parte pensando em unicórnios pulando nuvens de algodão colorido.
Porque esse é o nível da minha concentração, apenas.
Eu sequer tinha a desculpa da decoração me lembrar algodão, porque ela passava muito longe disso, mas, é, talvez tom mais claro de azul pudesse ter alguma parcela de culpa.
Quando voltei para a pista de dança, encontrei um clima levemente perturbado. Pode ter sido impressão minha, porque logo passou. Seguimos cantando e dançando com a Rocket, uma vez ou outra saindo para comer e beber. Eventualmente eu percebi que sumira. Procurei por ele e Valerie pela pista, mas só achei Valerie com algumas garotas que supus serem suas amigas (ou, pelo menos, conhecidas).
Daí eu fiquei preocupada, claro, porque sou uma trouxa, e comecei a procurar mais com mais cuidado, parando de dançar. Saí da pista de dança, sendo discretamente seguida por Aimée, até dar de frente com ele, que estava de costas, explicando a dificuldade em achá-lo em meio à tantos alunos.
— Hey, !
Ele se virou parecendo que ia avançar no meu pescoço. Até dei um passo para trás.
— Quem você... – ele se parou a tempo, mas dava pra ver que o esforço era grande.
— Ah... Ok, o que tá acontecendo? – ri de nervoso, completamente perdida.
— Eu sei que não combinamos nada, mas, precisava? Precisava mesmo?
, eu vou dizer com todas as palavras que eu não faço ideia do que você tá falando. Por favor, explique-se.
Daí ele explodiu.
— Eu tô cansado, ! Eu tô cansado de... – mais uma vez, ele se parou. Notei que abria e fechava as mãos diversas vezes seguidas. Quis dar mais um passo para trás, mas fiquei firme. – Quer saber, tanto faz, você beija quem você quiser.
Daí eu perdi a paciência.
— Ahn, desculpa??? - disse, ouvindo minha voz se alterar em conjunto com o meu humor.
— Nem adianta fingir que não aconteceu, por que eu vi. – respondeu, levemente magoado, mas o que dominava a sua voz era outra coisa maior que mágoa.
— Você viu? Mesmo? O quê?
— Na mesa de bebidas, você e o Sr. Rockstar ali.
Não consegui segurar a risada. Pude sentir meu sangue borbulhar até as minhas orelhas.
— Ah, eu não sabia que não podia me comunicar com mais ninguém da raça humana, !
Raiva. A expressão de não era tanto de mágoa como era de raiva.
— Não começa, ! Você não tava só se comunicando, a não ser que precise enfiar a língua na boca de alguém pra "se comunicar"!
É, ele fez as aspas no ar.
Por sorte, a música estava alta e poucas pessoas notaram que algo acontecia ali. Pra muita gente devia parecer que estávamos curtindo o show de uma forma levemente peculiar, mas só. Como eu era levemente peculiar no dia-a-dia, ninguém sequer nos olharia duas vezes.
Tentei lembrar dos motivos que ele tinha para ser um (babaca) pouco inseguro, mas não ia ser agora.
— Acontece que eu não enfiei a língua na boca de ninguém! E nem tinha que estar aqui perdendo meu tempo e a minha paciência com isso!
— Não adianta negar que eu vi, !
VIU COMO, CRIATURA, SE NÃO ACONTECEU?
Segurei a minha vontade de pegar a cabeça dele e meter na parede mais próxima. Nessas horas minha pacividade ia para Groenlândia pegar um friozinho.
— Ah é, viu mesmo? E como foi que isso aconteceu, então, já quem nem eu vi? Conte-me, eu gosto de saber como é quando eu beijo alguém, e no momento não estou me recordando de ter feito isso!
Finalmente, ele pareceu me ouvir.
— Ah, na verdade...
— Foi alguém te que contou, né? – meu sorriso tinha um prazer sádico que me machucava ao mesmo tempo que dava satisfação em ver o olhar desolado de .
— Foi a Valerie. Ela me contou que viu vocês se beijando e eu...
— Acreditou. De novo, ? Mesmo? O que qualquer pessoa aparecer dizendo que eu fiz ou sou você vai simplesmente acreditar? Sério? Eu não vou nem falar de justamente QUEM você foi ouvir, porque não precisa. Já era hora de você ter aprendido a confiar mais em mim antes de confiar no que os outros têm a dizer sobre mim.
Eu nunca te pedi nada, Baile. Só pedi pra você não ter encrenca. Sério mesmo?
Queria que você se materializasse em uma pessoa para eu poder socar. Bem. No. Meio. Da. Fuça.
Será que nada nunca pode ir ok pra mim? Não precisa ser tremendamente wow, só ok? Por Zeus, que dificuldade.
Antes que conseguisse responder ou sequer reagir, o meu nome ecoou pelos alto-falantes do salão.
!
— Eu? – perguntei para o nada, achando que alguém tinha me chamado para perguntar algo. Ou que eu tivesse perdido alguma coisa, talvez meu celular?
Aimée, que estava atrás de observando a nossa conversa (à espreita, só esperando para atacar), arregalou os olhos e apontou para o palco.
Um caminho se abriu bem a minha frente. E ele ia até o palco. Não entendi.
— O quê...
— Venha ao palco, Rainha do Baile de Inverno da Ferdinand!
Meus olhos se arregalaram. Permaneci no meu lugar. Quando foi que disseram que iam anunciar o Rei e a Rainha? Até um minuto atrás tinha uma banda no palco!
Tudo bem, ok, todos aqueles pedidos para as pessoas votarem em mim que tinham rolado depois da cena no refeitório... Aquilo não era sério. Eu não sabia de quem fora a ideia, mas não podia ser sério. Eu, Rainha do Baile de Inverno? Alguém ia me matar por roubar esse título. Eu não almejava esse tipo de atenção.
Eu não almejava atenção alguma.
Inferno, eu só queria estudar linguística em Harvard.
Becky surgiu ao meu lado e de repente eu andava pelo caminho aberto pelas pessoas. Até o palco. Ninguém parecia ligar para o quão desconfortável e assustada eu estava com aquilo tudo, porque começaram a me aplaudir. Aimée e Becky me ajudaram a subir no palco, e então eu estava sozinha. O cara do microfone colocou uma tiara em mim.
Eu ainda pensava somente em "merda, merda, merda, merda".
— Agora, vamos ao nome do nosso Rei!
NÃO, agora vamos ao momento em que você diz "É brincadeira!!! Pode descer."
Olhei para o teto em busca de baldes, já que me sentia em uma cena de filme de terror e lembrava muito bem de Carrie, do Stephen King. Era exatamente assim que acontecia com a Carrie.
Ok, talvez não exatamente. Faltou ficarem me zoando porque eu menstruei, entre outros episódios de bullying sem fim, mas se eu ainda estivesse na Holliang eu não teria dúvidas de que estaríamos reencenando Carrie.
As pessoas fizeram sons de suspense, alguns gritaram "ABRE LOGO!" e coisas menos inteligíveis. O som dos batimentos do meu coração eram muito mais claros.
— E o Rei do Baile de Inverno da Ferdinand é... !
"MERDA, MERDA, MERDA, MERDA, MERDA!"
fucking veio até o palco mais rápido que eu, apesar de parecer surpreso. Ele esboçou um sorriso – coisa que eu não devia ter feito AINDA – e recebeu a coroa. Ele, na sua camisa social preta, sem gravata, alguns botões abertos... Ele, quem eu menos queria ver por ali.
Porque eu não sabia resistir. Eu ainda não havia aprendido isso.
Ele fora ridículo. Eu estava brava, e com razão. Ele sorria. Eu esquecia de tudo. Não! Não dessa maldita vez.
— Muito bem, abram espaço na pista para a nossa Rainha e o nosso Rei! Alguma palavra, majestades?
Vai se foder, essas são as palavras.
Você deve estar rindo muito, não é mesmo, "Baile"?
decidiu tomar a atitude, provavelmente motivado pela minha pose e expressão de múmia.
— Eu só queria dizer... Obrigado, Ferdinand! E a noite só começou!
A plateia estúpida explodiu em palmas e gritos. Não era muito difícil encantar aquelas pessoas. Daí um coro engraçado começou.
, , , !
— Diz alguma coisa!
— Eu te amo!
Localizei a pessoa que declarava o seu amor por mim e, sem surpresa alguma, reconheci Phillipe. De repente, me senti corajosa.
Existia um motivo para estar ali, e eu não devia esquecer disso. Não ia deixar passar em branco. Eu não estava ali à toa, ou porque fizera uma campanha em cima da minha beleza ou superioridade. Muito pelo contrário.
— Eu também te amo. – respondi, um sorriso travesso despontando nos meus lábios. – Ora ora, Ferdinand. – atravessei o olhar pela plateia, passando até pela banda Rocket e pelos professores assistindo nas laterais. – Não é que vocês sempre me surpreendem? – mais gritos. E depois, o silêncio. – Eu só queria dizer... Sabia que não devia ter subido naquela mesa, agora vocês vão querer me colocar em cima de cada palco que existir nessa escola!
Risos, gritos, palmas. E então a música do Rei e da Rainha do Baile começou, e descemos para a pista de dança. me ajudou com isso, ao que eu senti o mínimo de gratidão exigida, já que entre e Jennifer Lawrence o maior ponto em comum é o dom para o desastre. Nós simplesmente não lidamos com vestidos e degraus.
A música era lenta. Meu ânimo despencou novamente.
— Concede-me a honra desta dança? – estendeu a mão.
— Não é como se eu tivesse opção. – aceitei, deixando que ele apoiasse a outra mão em minha cintura.
Sorte que havíamos ensaiado aquilo no Teatro, ou eu não saberia o que fazer. Se não fosse o Teatro eu só lembraria de traumas tentando ser uma moça respeitável na alta sociedade. Duvido que isso resultaria em algum movimento que prestasse.
— Você sempre tem opção, . – ele falou baixo, próximo ao meu ouvido.
A pele do meu pescoço ficou automaticamente arrepiada.
— Discordo. – sussurrei, certa de que ele não ouviria, apesar da proximidade.
Ele começou a me conduzir, ao som da música, encostando o rosto ao meu.
Melhor assim, sem ter que olhá-lo nos olhos. Então a música começou de verdade, e fechei os olhos. Era "A Drop In The Ocean", do Ron Pope.
Porque tinha que ser uma música lenta que eu conheço a letra, não podia ser uma música lenta qualquer com uma letra ruim.
A drop in the ocean
A change in the weather
I was praying
That you and me
Might end up together
It's like wishing for rain
As I stand in the desert
But I'm holding you
Closer than most
'Cause you are my heaven
Mais pessoas começaram a dançar, e me apertou mais, colando nossos corpos como se ele estivesse esperando a noite toda para fazer isso. Mordi a parte interna da bochecha, lembrando que a culpa era dele. Ele havia aceitado vir para o Baile com outra. Pior, com Valerie, a garota que eu havia dito que era problema. Por que, depois de tudo, ele ainda acreditava em qualquer coisa que qualquer um dissesse sobre mim? Aquilo doía, e não seria uma dança que resolveria tudo.
Mas eu ainda podia esquecer. Por algumas horas. Ele parecia me amar tanto nesses momentos... Eu podia acreditar, por alguns minutos, que era verdade.
I don't wanna
Waste the weekend
If you don't love me
Pretend
A few more hours
Then it's time to go
As my train rolls down
The East coast
I wonder how
You'll keep warm
It's too late to cry
Too broken to move on
Ele sequer pedira desculpas.
Talvez a dança fosse o modo de se desculpar.
Still I can't let you be
Most nights I hardly sleep
Don't take
What you don't need from me
A drop in the ocean
A change in the weather
I was praying
That you and me
Might end up together
It's like wishing for rain
As I stand in the desert
But I'm holding you
Closer than most
'Cause you are my heaven
Senti a primeira lágrima vir, e enfiei o rosto no ombro dele, escondendo minhas lágrimas com sua camisa. O apertei com mais força e ele correspondeu.
Misplaced trust
And old friends
Never counting regrets
By the grace of God
I do not rest at all
New England
As the leaves change
The last excuse
That I'll claim
I was a boy
Who loved a woman
Like a little girl
Recebi um beijo suave no topo da cabeça, o que me fez tremer. Não, chorar já era humilhante, não ia soluçar também.
deve ter percebido que sua camiseta estava começando a ficar úmida, e como a pista já estava cheia de casais ele me puxou parar longe, sem tirar meu rosto do seu peito. A Ferdinand não perceberia que seu Rei e Rainha tinham fugido.
A drop in the ocean
A change in the weather
I was praying
That you and me
Might end up together
E então ele levantou meu rosto com delicadeza, encarando meus olhos marejados com a testa franzida. E talvez um olhar de tristeza.
E, sem dizer uma única palavra, ele me beijou.
It's like wishing for rain
As I stand in the desert
But I'm holding you
Closer than most
'Cause you are my heaven
You are my heaven
— Eu sinto muito. De verdade.
Encarei-o por poucos segundos, não consegui manter o meu olhar no rosto dele. Levei a mão esquerda ao meu rosto, disfarçando para secar as lágrimas que ainda estava escorrendo em meu rosto.
Porque eu tinha que ir lá e chorar.
— Eu não consigo te desculpar, nesse momento.
— Tudo bem. Eu só quero que você saiba que eu, realmente, sinto muito.
— Ok. Ah, e tem outra coisa. Ele salvou o celular dele na minha agenda. Eu não te devo satisfação nenhuma quanto a isso, mas digo porque gostaria de evitar novos surtos. Eu achei que já tivéssemos resolvido isso no dia do Festival, mas devo ter te entendido errado. De qualquer jeito, eu sou uma pessoa, , e vivo em uma sociedade. É melhor você aceitar isso e decidir se confia ou não na minha palavra.
E, dito isso, voltei para a pista de dança, direto para as minhas amigas.
Então, eu sou a Rainha do Baile.
Eu, esquisitona , sou a maldita Rainha do Baile da Ferdinand High School.
Toma essa, Holliang.
Um feito desses devia contar para alguma coisa. Fiz questão de aproveitar, e dançar com cada uma das pessoas naquele salão. Alguns diziam "Totalmente votei em você" e "Tive que votar em você", estavam todos cansados das mesmas pessoas ganhando aquelas coroas, disso tive certeza.
Saboreei o ato de rebeldia da Ferdinand, que votara em peso em duas pessoas que não tinham feito campanha alguma para o Baile. Muito bem feito, meus caros. Muito bem.
Eu eventualmente trombei com Valerie na mesa de bebidas. Não literalmente, estávamos em lados opostos, mas eu resolvi ir até ela.
— Parabéns pela coroa, . – Valerie disse, sorrindo.
Falsa??? Falsa.
Decidi ser sincera. Faz bem um pouco de sinceridade na vida.
— Por que você me odeia, Valerie? Eu entendo se você não gosta de mim, tudo bem, eu também não gosto de mim às vezes, e não acho que todo mundo tem que gostar de mim. Aliás, estou bem acostumada com não gostarem de mim. Eu só queria entender o motivo do ÓDIO mesmo.
Ela pareceu um pouco ofendida. Agradeci que seu copo estava vazio, só por precaução. Nunca se sabe quando as pessoas vão jogar a própria bebida em você.
— Como não odiar? Você foi a maldita Rainha do Baile, e com o meu par! Sendo que nem queria isso! Tudo simplesmente cai no seu colo, do céu. A sua vida é perfeita e você nem precisa se esforçar pra isso!
Apreciei por alguns segundos que alguém no mundo acreditava piamente que a minha vida era maravilhosa. Sabe, eu não ia ser a pessoa a reclamar, mas "perfeita" não é exatamente o adjetivo próprio para descrever a minha vida. Boa? Sim. Com muitos privilégios? Aham. Perfeita? Nunca.
Como acabamos de ver, né não? Haha.
De qualquer modo, Valerie ainda me encarava, esperando a minha resposta.
Suspirei.
— Sinto muito que você pense assim, e nem ao menos se importe em conversar comigo antes de decidir que minha vida é maravilhosa e me odiar por isso. Ainda te acho bacana, e espero que você consiga uma vida muito muito melhor do que você acha que a minha é.
Voltei para a minha galera, apenas querendo ficar de boa.
Encerramos a festa indo para a casa de . Aimée inclusa, e Aimée sem dizer uma única palavra sobre o que acontecera.
Só perguntei para Rapha se estava tudo bem, e ele me assegurou que eu não precisava me preocupar. Ela falaria comigo quando achasse que devia. Por enquanto ela parecia não saber ao certo que estava sentindo.
Ok. Eu sou paciente.
não nos acompanhou, claro. Ele não tentou voltar mais a pista de dança, e deve ter levado Valerie em casa como as regras de boa conduta aconselham. Eu não me importei.
— Então hoje vamos dormir acompanhados da realeza??? Segura essa auto-estima agora. – Phill disse, obviamente me caçoando.
— Eu teria mais cuidado com essa língua, súdito. Eu sou o tipo de Rainha que é igual a de Copas.
— Off with his head! - Becky gritou, imitando o som de um machado cortando o vento.
Rimos, e ainda jogamos muita conversa fora antes de finalmente cairmos no sono.



Capítulo 41 — You're all I need, underneath the tree!

(Underneath The Tree — Kelly Clarkson)

Tia Kathy preparava um almoço maravilhoso para nós enquanto nos mandava ficar na piscina. Não importava o quanto queríamos ajudar (e o quanto nossa consciência pesava por dar tanto trabalho a ela sem ajudarmos em nada), ela nunca deixava que fizéssemos nada.
Talvez a louça. Hoje, com certeza, faríamos a louça. Mas antes disso ficaríamos boiando na piscina deles por algumas horas.
Até nos chamarem para comer, então saímos para nos secar. A refeição seria do lado de fora, de qualquer jeito, e ficamos por ali até que meus pais apareceram. Sim, Richard e Donna estavam na cozinha com tia Kathy. Eles saíram, conversando e rindo como se fossem amigos de longa data.
Aimée olhou pra mim e eu olhei pra ela, sem conseguirmos evitar o arrepio de horror.
- Olá, queridas! - Donna nos abraçou, cumprimentando a todos em seguida.
Richard veio em seguida, e deu tapinhas em nossos rostos provavelmente para nossa expressão de surpresa se desfazer. Eles riam.
- Ligamos para Kathy para saber se vocês estavam bem e ela nos convidou para o almoço! - ele explicou, sorrindo como nunca.
- Ah, eu estava ansiosa para conhecer os pais de uma das melhores amigas de , precisava saber quem tinha educado tão bem essa moça aqui. - Kathy me abraçou de lado, sendo a corujona que ela era.
Meus pais. Preocupados. Ligando para saber como estávamos. Vindo almoçar na casa de . Conversando e rindo com Tia Kathy.
Wow.
Nos sentamos e tivemos um almoço muito prazeroso. Eu tinha um leve medo de deixar meus pais com os pais de , mas eles já tinham ficado um bom tempo juntos sem eu saber e aparentemente nada tinha dado errado, então fomos lavar a louça e depois subimos para tomar banho sem ter a mínima ideia do que eles faziam ou conversavam. Eu fiquei o tempo todo rezando pra nada dar errado, mas dei o voto de confiança a… Todas as forças supremas existentes nesse universo. Afinal, elas estavam me devendo.
Notei, então, que não éramos só eu e Aimée que estávamos chocadas com aquilo. Todos os meus amigos sabiam que meus pais estavam diferentes, mas não tanto. Não daquele jeito. Não "almoçando na casa das amigas da minha filha e sendo agradáveis com todos" diferente. Eles ficaram realmente felizes por mim, também, além de chocados com a mudança radical da família , e deixaram isso transparecer assim que pisamos no quarto de .
Depois que todos nos dividimos pela casa e tomamos banho, tia Kathy apareceu no quarto de com um envelope.
Um envelope pequeno.
Todo mundo gritou, obviamente. Aproveitei o momento de distração para fazer uma coisa que já tinha quase esquecido. Peguei o celular com destreza e abri a caixa de mensagens. Ouvi o som do envelope sendo rasgado e vi que estavam todos em volta de com olhares ansiosos em antecipação. Terminei de mandar as mensagens ao mesmo tempo que gritava.
- Passei!!! Na Universidade de Chicago!!! Em artes plásticas!!!
Como se nós já não soubéssemos o que ela tinha prestado, mas, claro, não se questiona o que acontece na cabeça de um pré-universitário nessa hora.
Todos gritaram, e fizeram um montinho em , todos a abraçando ao mesmo tempo. Tia Kathy tinha os olhos vermelhos e algumas lágrimas no rosto, mas seu sorriso era o que roubava toda a atenção. Eu nunca a vira sorrir tanto, olhando diretamente para a filha (ao menos para o que dava para ela ver da filha naquela bagunça) e transbordando orgulho em sua expressão.
Participei do abraço comunitário antes que alguém desse por falta de mim, e os parabéns duraram um bocado.
Depois disso, todos ficaram loucos para voltar para casa. E, ao mesmo tempo, nem tão loucos assim.
O sentimento que eu tive foi de que o chão fora tirado debaixo de mim, e meus pés flutuavam em uma imensidão escura. Ir embora foi ficando inevitável, mas ainda enrolei um pouco, curtindo a felicidade de .
Notei que seus olhos estavam iluminados, mas que também divagavam aqui e ali. Conhecendo bem a amiga que tinha, esbarrei em seu ombro no sofá e sussurrei:
- No que você tá pensando, hein, ?
riu.
- ...
- Eu te conheço e você me conhece bem, sem motivos para nos enganarmos, certo? – cortei-a antes que ela desse alguma desculpa, e riu, fechando os olhos e abaixando a cabeça.
Havia um peso sobre seus ombros, e ela se preparava para se livrar dele.
- Certo. Eu ia te dizer, de qualquer jeito. Pelo menos pra você. É segredo, por enquanto, mas eu estou tentando Oxford. Minha mãe sabe. Meu pai ainda não.
Tentei não gritar, apesar de estarmos sozinhas com Aimée na sala. Minha respiração ficou vergonhosamente audível.
- O quê?! - gritei sussurrando, o que era um feito e tanto. - Eles são ótimos! Sério mesmo? Que incrível, !
- Sim, mas é bem difícil. A taxa de aprovação é ridícula, tipo 8 ou 9% dos estudantes daqui conseguem entrar lá. Mas eu resolvi tentar. Seria bom pra mim, mudar de país...
- Tá brincando? Vai ser incrível! Tenho certeza que você consegue.
- Eu nem tentei a Universidade de New York por causa disso. Se eu passasse nela, meu pai jamais me deixaria mudar de país. Agora, ter que ir pra Chicago ou ter que ir pra Londres não muda muita coisa.
Gargalhamos. Muda bastante coisa, mas não achei que seus pais fossem impedi-la de realizar algo tão bom para a sua vida, tanto profissional quanto pessoal.
- Maravilhoso, ter uma desculpa para visitar Londres sempre? Adorei. Nem precisa me dar presente de Natal esse ano, linda.
— Eu ainda não consegui a vaga,
— Você mostrou seus desenhos pra eles? Vai mostrar? Se eles verem seus desenhos, amiga, eles chamam você e todos os seus descendentes já vão ter vaga garantida também. Você vai ter uma vaga vitalícia em Oxford, amiga!!!
Até mesmo Aimée riu, sem saber o que se passava. sussurrou um “Não conta pra ninguém!” em meio aos risos.

*


Eu estava quase desistindo e indo para casa quando o carro dos pais dela dobrou a esquina. Aí era tarde demais para me esconder ou fugir. Os acenaram para mim enquanto entravam na sua garagem, e assim que eles pararam em frente à casa, saiu e foi em direção a caixinha de correio. Seus pais seguiram para a garagem e ela veio em minha direção com alguns envelopes em uma mão e o seu molho de chaves na outra.
- Hey. - ela cumprimentou, sorrindo de forma superficial e passando reto para abrir a porta da casa.
- Hey... - passei a mão pelos cabelos, sem saber o que fazer em meio ao nervosismo. - Desculpa, eu só passei... Bem, acho que vou embora.
- Pode entrar. - ela disse, sem olhar para mim. Então se virou e deu um sorriso fraco. - Eu só vou subir rapidinho, já desço. Pode esperar na sala.
E ela subiu. E eu esperei. Seus pais e Aimée apareceram um pouco depois, parecendo ansiosos.
- Onde ela está? Ela subiu com as cartas? - Aimée perguntou, e eu assenti.
Eles esperaram, junto comigo. Ficamos os quatro olhando para a entrada da sala, esperando aparecer. Aos poucos, eu entendi o que acontecia, sentindo-me a pessoa mais devagar do planeta em seguida. desceu, uma hora, e colocou alguns envelopes em cima da mesa de centro, mantendo apenas um deles em mãos. Esse envelope em questão já estava aberto.
Ela o entregou aos pais.
- Diga de uma vez, ! - Aimée gritou, de forma razoavelmente contida.
- Olhem.
E eles olharam, juntos. Ela disse, com um sorriso se abrindo em seu rosto:
- Eu passei em Harvard. Eu consegui.

Enfim percebi que eu escolhera uma hora muito boa para visitá-la. Provavelmente não haveria uma hora melhor em nenhum momento futuro para eu me desculpar.
Eu praticamente nem tive que me desculpar. Apenas nos abraçamos, parabenizei-a, pedi desculpas pelo meu comportamento no dia anterior e ela disse "Tá tudo bem, " porque, bem, estava realmente tudo bem.
Tudo com que ela se preocupara a vida toda estava resolvido, ela conseguira entrar em Harvard, direto. Nada idiota que eu fizesse poderia estragar isso.
era só alegria. E agora ela tinha uma leveza em si, o tempo todo, traduzida em sorrisos, mas que significava muito mais.
Ela devia estar se sentindo mais do que leve.
Fui embora depois do jantar porque estava me sentindo um intruso na comemoração familiar. Talvez porque eu quisesse ver as minhas correspondências, também.
Não senti a mesma leveza que devia ter sentido quando peguei o envelope de Harvard. Ao ver a carta de aprovação, senti mais um alívio de ter uma preocupação a menos, mas algo no fundo da minha cabeça não deixou eu aproveitar a conquista.
Eu ia, afinal, fazer Engenharia. Não música. Eu não tinha conhecimento suficiente para tentar qualquer Universidade de música, porque jamais tivera apoio para isso.
Então o meu momento de glória foi nublado por não estar realizando meus reais sonhos.
Como se eu pudesse, do nada, fazer uma graduação em música. Só sabendo tocar um violão, e ainda por cima mais ou menos. Isso não era surpresa, ainda assim me deixou meio pra baixo.
Por sorte, estava acostumado com esse clima, e, sem perguntar nada, apenas me fez companhia. Pediu lanches gigantes e batatas fritas engorduradíssimas e ligou o PlayStation que ganhara de Natal adiantando para jogarmos algum jogo violento de guerra.
Ele talvez fosse a pior pessoa para o cargo de me ajudar nesse momento, porque ele ia fazer música, mas nem ao menos tocou no assunto.
Foi uma ótima oportunidade para ele me lembrar do amigo que era para mim. E eu queria manter isso, e retribuir.
- Hey, tudo ok com você? - perguntei, a boca meio cheia de batatas.
não tirou os olhos do jogo, mas também não ativou as muralhas em torno de si.
- Tudo ótimo, cara. Sabe como é, merdas acontecem. O tempo todo. Nem vale a pena falar sobre, às vezes.
Entendi a sutil desculpa que estava alojada em sua resposta. Bem sutil, mas eu o conhecia, de algum modo, mesmo que não completamente.
- É, mas caso precisar, você sabe, né?
- Sim. - respondeu, metendo uma bala na cabeça de um inimigo logo em seguida. - Pode ficar tranquilo.

*


A correria para comprar os presentes de amigo secreto e Natal virou uma maratona de verdade, mas uma maratona que eu estava muito feliz em fazer. E também já estava acostumada, então sabia como proceder para ser vitoriosa.
Aimée me acompanhou como uma fiel escudeira; tivemos o nosso momento D. Quixote e Sancho Pança. Ao fim do primeiro dia de compras intensas, eu tinha tudo o que faltava, então passamos algumas horas na casa de Raphael. Enquanto Aimée o distraía, eu checava nas estantes dele para ver quais livros faltavam.
A amiga secreta de Rapha tinha pedido essa ajuda, e dado uma lista dos livros que ela pensara em comprar. Quem? Segredo! Haha. Ajudei de bom grado e ainda sugeri alguns que não estavam nem na lista e nem na estante dele.
Raphael também tinha passado em Harvard, o que significava que seríamos colegas de turma. Achei que seria uma boa chance de ele evitar ter que comprar tantos livros se a sua amiga secreta (ok, é uma das garotas!) já adiantasse os que eu tinha certeza que iríamos precisar.
Porque é claro que eu já sabia a lista de livros que usaríamos. A vida não podia ser mais perfeita; esse era o sentimento do momento.
Eu tinha essa mania de comprar presentes para todo mundo, então vocês vão entender quando eu disse que já tinha feito algumas compras antes porque sabia que não teria tempo entre o Baile e a véspera de Natal.
e eu conversávamos normalmente; ele mandou uma mensagem dizendo que fora aprovado, também, e ficamos conversando sobre como seria estudar em Harvard.
O dia 24 de Dezembro chegou e eu estava com uma pilha de presentes muito bem embrulhados e cartas em cima da minha cama. Separei o que ia para a casa de no dia seguinte e coloquei na minha sacola vermelha de Papai Noel somente os pressentes de quem estaria em casa nessa véspera.
Daí fui tomar banho e me arrumar, tão animada que devia estar tremendo.
Uma sensação rara para se aproveitar quando a oportunidade vem, não é mesmo?

Se existe uma data na qual minha mãe nunca ousava estragar com alguma festa da alta sociedade, essa data era o Natal. Eu sempre fora extremamente grata por isso, não conseguia imaginar algo tão puro e belo como o Natal sendo destruído por todos aqueles sorrisos falsos. Só havia alguns sorrisos que eu precisava ver na véspera e no dia do Natal, e todos eles sempre estavam ali. Esse ano, no entanto, a data era ainda mais especial. Porque a nossa família parecia uma família. Donna e Richard continuavam sendo os pais compreensivos que tinham se comprometido a ser. Aimée e eu continuávamos colaborando para isso.
Eu ainda não ouvira um único “mas o que vão pensar”, o que era incrível. A vida era realmente outra sem essa frase (e conceito) terrível.
Vovó Maggie e vovô Austin sempre traziam os seus enormes sorrisos para a nossa fria casa nesse dia. Antonella observava com os olhos radiantes enquanto suas crianças eram paparicadas pelo casal de idosos mais fofo de toda cidade — provavelmente do resto do mundo também, mas aí é arriscado dizer que eu é que estou os paparicando; o que é algo que eu faço, mesmo. Cloe e Astrid vestiam lindos vestidos vermelhos, tão natalinos que me faziam querer chorar de emoção. Mentira, era a fofura delas que fazia isso comigo, sempre. Gabe estava de verde, parecendo um duende do Papai Noel. E isso era proposital. E fofo, mas isso tá subentendido.
Eu usava um vestido branco, com a saia rodada e alguns detalhes vermelhos em tricô. Coisa da vovó, é claro. Vestia minhas luvas natalinas (vermelhas) e um sapato do mesmo tom de cor com estampa branca de renas. Ah, sim, e uma tiara com renas em 3D.
É, eu assumo que a minha empolgação com o Natal talvez fosse um pouco exagerada.
Mas não esse ano. Esse ano eu tinha todos os motivos para estar deslumbrante com a data, sendo que finalmente eu sentia como se minha família fosse uma família. Dessa vez, não eram apenas Maggie e Austin que mantinham a minha fé no Natal. E eu conseguira passar em Harvard. Tudo que vinha me atormentando nos últimos tempos estava resolvido. Eu não podia estar mais feliz.
Outra coisa que fazia essa euforia aumentar em mim era o peru. Santos deuses, como eu amo peru. Peru de Natal, então... SEM MENTE POLUÍDA AQUI, OK? POR FAVOR. RESPEITEM O PERU! RESPEITEM O NATAL!
Donna estava cozinhando, ou seja, ninguém podia se aproximar da cozinha a não ser meu pai. Ele com certeza era o Yang do Yin dela. Queria eu saber como escapar dos ataques de fúria de Donna do mesmo jeito. Seja como for, a minha preocupação era outra, porque Donna ia tremendamente bem.
Aimée estava em um cantinho, com o olhar perdido na janela da sala. Ela não sorria, eu queria emprestar um pouco do meu sorriso de novecentos dentes para ela. Nada sobre o que acontecera na festa, nem uma única palavra. De vez em quando, eu olhava e percebia que a cabeça dela devia estar naquilo, e eu queria perguntar…
Porém, conhecendo-a como conhecia a mim mesma, não adiantaria nada “confortá-la”. O melhor que eu podia fazer era deixar ser. Ela não queria assumir, mas ver aquele pirralho com outra garota no Baile de Inverno havia sim a decepcionado. Talvez ela não estivesse brava, porque realmente o fizera esperar, não prometera nada, nem sequer havia saído com ele porque não havia me dito nada sobre sair com um garoto e eu tenho certeza que ela diria, mas Aimée tinha toda a razão em ficar decepcionada. Se o pirralho realmente gostasse dela, ele teria esperado muito mais e ainda agradecido pela chance quando ela enfim viesse.
Fui pega em flagrante, e Aimée finalmente abriu seu lindíssimo sorriso para mim. Ela veio andando até onde eu estava, e me estendeu seu celular.
– Leia.
As mensagens estavam abertas, comecei a ler.
“Ela foi o único jeito que eu arranjei de conseguir entrar naquele Baile. Só fui com ela porque precisava te ver, Méme.”
– Quem ele pensa que é pra te chamar de Méme? Vou achatar a fuça desse moleque. – deixei o ciúmes falar mais alto, Aimée soltou um sorriso fraco.
– O que você acha? - ela perguntou, suspirando.
– Que ele é um babaca.
Aimée revirou os olhos. Ri.
. Responda como uma amiga, e não como a irmã mais velha ciumenta e possessiva que você é.
– Outch! Meus sentimentos, pirralha! – dei um soquinho em seu ombro, dessa vez arrancando uma risada de Aimée. – Ok, ok... Eu... Talvez seja verdade, sabe? Não é a pior desculpa, é muito boa, na verdade… Quer dizer, ele entrou com a garota, mas depois disso não vi mais os dois juntos. Então talvez seja verdade, ou ele é um mentiroso patológico. Talvez seja melhor entrar em contato com os médicos dele, primeiro…
Aimée me interrompeu antes que eu começasse a falar sobre psiquiatria.
– Ele disse que era a amiga de uma prima dele, que está no segundo ano do High School também.
– Bom, então ele foi só pra te ver mesmo, porque se ele foi pra ficar com você... Ele falhou.
Ela suspirou, um tanto exasperada.
– Eu acho que ele nem sabia que eu ia, é isso que eu acho. Se soubesse, teria me dito antes. Ninguém sabia que eu ia no Baile de Inverno!
– Ah, por favor, né. Como puderam achar que a estrela do Middle School ia perder essa?
Ela revirou os olhos. De novo. Que mania irritante. Vou parar de revirar os olhos.
– Se ele realmente tivesse feito isso por mim eu acho que ele teria me explicado que ia com uma amiga da prima dele apenas pra conseguir entrar. Quer dizer, seria o sensato a se fazer, pelo menos.
Eu ri, abraçando–a.
– Oh, irmãzinha, primeira lição dura da vida: eles nunca fazem o que é sensato de se fazer.
Aimée riu, relaxando em meu abraço.
– O problema é que... talvez... ele tenha me ouvido conversando com você pelo celular. Sabe, quando você me ligou e perguntou se eu queria ir. Então, talvez, ele realmente soubesse que eu estaria lá.
– E isso é um problema porque...
– Porque eu acho que gosto dele, cabeça oca!
Suspirei.
– Ah. Meus pêsames.
Aimée finalmente gargalhou, pegando seu celular de volta e guardando–o em seu vestido. Sim, eu não era a única pessoa no mundo que achava que vestidos com bolsos eram geniais. Na verdade, eu acho que realmente todo mundo deve amar esses vestidos.
- Qual é o nome da famigerada prima dele, ele disse?
- Jessica Merks.
- Ok. - abri o Facebook no meu celular e pesquisei a tal Jessica. - Ele disse o nome da famigerada amiga?
Aimée riu.
- Marina, eu acho?
Demorei um pouco, mas enfim achei a garota.
- Ok. Nenhuma foto de casal, o que é um bom sinal, né? E tem algumas fotos dela com outros garotos… Amigos, talvez. Mas nenhuma com ele. E se tem com amigos e não tem com ele…
- É, acho que vou responder casualmente. Foi a sugestão de Rapha, sabe? Deixar quieto por alguns dias e depois conversar com ele como se nada tivesse me afetado e eu só estivesse sem tempo, mesmo.
Ri baixinho.
- Raphael é um gênio pra isso. Faço da sugestão dele a minha própria. Vá em frente, irmãzinha.
Ela me olhou estranho, rindo somente por já estar acostumada com a irmã que tem.
– O jantar será servido em trinta minutos! – papai apareceu, andando até o rádio e aumentando a música natalina.
– Surpreendentemente rápido para Donna, não é mesmo, Maggie? – vovô sorriu, abraçando a esposa de lado.
Maggie o censurou com o olhar, sem conseguir evitar o sorriso.
– Faz tanto tempo que nossa nora não cozinha para nós, Austin, não ouse reclamar.
– Não ousaria, jamais.
Chamei as crianças, deixando os adultos para trás, levando–as para o jardim. Estava na hora de deixar cenouras e água para as renas do Papai Noel, já eram 23h. Gabe, Cloe e Astrid espalharam as cenouras pelo jardim, e eu e Aimée fomos atrás com os potes de água. Em menos de cinco minutos estava tudo pronto, e ficamos assistindo às crianças brincarem.
Como é que esse dia podia ser tão bom?

* *

Todos aqueles familiares esquisitos, que eu mal sabia o nome, e que eu não via o ano todo (a não ser quando alguém da família morria), reunidos sob o mesmo teto.
Uma maravilha de evento, com certeza.
“Como vão os estudos?”, “E a faculdade, já decidiu?”, “Vai seguir a carreira dos seus pais e salvar vidas todo dia?”, e a pior pergunta de todas: “E os namoradinhos?”
É sério, a minha família pensa que eu sou a vadia das galáxias, só pode ser. E se eu for, queridos??? O que é que vocês têm a ver com a minha vida? O meu corpo? As MINHAS escolhas?
É claro que alguns deles ainda achavam que eu estava namorando o , de tão bem informados que são. Se bem que, bem... Ultimamente... Não importa, eles nem saberiam que a gente havia se separado por um bom tempo caso a gente voltasse. Provavelmente. Porém, era melhor isso do que se todos eles soubessem cada detalhe da minha vida. Eu sorria e comia, era isso o que eu fazia nessas ocasiões.
E bebia quando ninguém estava vendo.
Talvez respondesse uma mensagem ou outra também, de vez em quando.
Não via a hora de ir para a casa de , aquilo sim era o Natal. Muito mais divertido, muito mais que apenas comilança e fofoca. E, claro, ninguém na casa de ficaria me cobrando para ser médica, como os meus pais. Grande ponto a favor. Aquela era uma família para mim
Pelo menos a comida não era de todo ruim.

* *

Eu observei a festa da rua, encostado a alguma árvore. Podia ver responder minha mensagem no celular antes dele apitar com uma nova mensagem. Eu queria ir até ela, sabia que não seria impedido, pelo contrário, seria muito bem recebido. Só não sabia a reação de .
Imaginei que não seria muito boa, já que nem a sua própria mãe sabia que estávamos juntos.
“Não quer passar aqui um pouco? Temos cerejas. Eu sei que você ama cerejas.”
Ela demorou para começar a responder.
Demorou mais ainda para enviar a resposta.
“Melhor não, . Desculpa. Tá muito chato aí?”
“Pelo contrário.”
Ri, um pouco magoado, e dei as costas para a residência dos . A casa de meus pais ficava na mesma rua, um quarteirão para baixo. Recebi outra mensagem.
“Guarde umas cerejas para mim, ok?”
“Sinto muito.”
Não se passou nem um minuto quando eu ouvi alguém correndo atrás de mim.
– Você desiste muito fácil, ! Pra sua sorte, eu não. E eu realmente amo cerejas.
Gargalhei, abraçando e a tirando do chão.
– Você sabia que eu estava...
– Qual é, , você é tão branco que eu pensei que fosse o Halloween e não o Natal e que tivesse um garoto fantasiado de fantasma na calçada da minha casa!
– Desculpa ai, negona.
– Falei pros meus pais que ia visitar vocês, eles me deram 15 minutos antes do jantar ser servido. E disseram que se você quiser passar lá depois, pode. Então... Você podia passar pra gente ir juntos pra , e cumprimentar a todos antes. O que acha?
Ela parecia nervosa, mas como sempre tentava disfarçar. E eu queria sair saltitando e gritando “SIM, SIM, SIM!” como uma pessoa completamente descontrolada.
– Não acha que vai ser desconfortável nem nada?
– Oras, você que me convidou pra ir à sua casa primeiro, !
– Oras, meus pais sabem que nós voltamos a nos falar!
– Os meus também, seu tonto.
– Mesmo?
– Mesmo! Eles só faltaram chorar de emoção.
– O seu pai...
– Sim, o meu pai!
Gargalhamos. Não podia ser, tinha algo realmente muito bizarro no Natal pra uma coisa dessas estar acontecendo, porque eu podia jurar que algo assim estava longe de acontecer, e que eu ainda teria que provar muita coisa antes de citar o meu nome aos seus pais.
– Obrigado.
– Pelo que, ?
– Por me dar esse voto de confiança.
Ela sorriu.
– Você sabe que merece.
– É melhor eu estar certo, então.
riu e me beijou.

* *

Apesar do frio na barriga, estava tudo correndo muito bem. sorria ao meu lado, conversando com minhas primas com muita empolgação sobre aulas de canto. Seus pais estavam junto aos meus pais e tios, bebendo vinho e jogando conversa fora. O mais engraçado é que todos pareciam amigos há muito tempo, e não recém–conhecidos.
Eu estava começando a respirar normalmente. Estava tudo correndo muito bem, só faltava eu parar de me preocupar.
, o maníaco perfeccionista.
É só que eu havia esperado tanto tempo pelo que eu tinha com que... É, eu queria que nossas famílias se entendessem, que fosse tudo lindo e maravilhoso pelo resto de nossas vidas juntos. E sabia isso, porque toda hora apertava a minha mão e sempre que podia virava–se para me dar um de seus sorrisos. Daqueles que me deixavam 5% menos nervoso, e que eventualmente me acalmariam 100%.
Se eu soubesse que seria possível se importar tanto com alguém, e ser tão feliz assim, teria ido atrás de há muito tempo.
Ou teria fugido, é claro. Eu não fui exatamente um dos garotos mais maduros que já existiu na face da guerra. Mas uma garota como era simplesmente boa demais para não fazer um esforço, e mesmo à distância, ela havia me amadurecido para um dia merecê–la.
Pode parecer imbecil, mas é simplesmente como eu me sinto.
Talvez o amor seja imbecil. Mas, quando certo, até o imbecil pode fazer muito bem.
– Se eu soubesse que você seria tão dedicado, teria te dado uma chance antes, amor. – ela falou baixinho, assim que minhas primais saíram para buscar algo para nós bebermos.
Meu coração desacelerou e o nervosismo finalmente sumiu. Consegui sorrir.
– Isso não teria sido tão esperto. Você sabe disso, porque é esperta. Você soube a hora certa, meu gênio.
sorriu, mostrando a língua em seguida.
– Eu sei disso, só estava sendo legal pra recompensar todo o seu esforço.
– Muito obrigado, então.
Rimos, e a abracei. Em seguida, toda a casa gritava “Awwn! Que lindos!” e variações. corou, e acabamos rindo mais.


*


– Obrigado por me acolherem essa noite. – agradeci aos pais de , que riram.
– Por favor, , não o deixaríamos fazer a ceia de Natal sozinho. E se seus pais estivessem na cidade, teríamos os convidado também.
Minha família, que tinha vindo somente para me ver apresentar a peça do Teatro, teve um imprevisto e teve que voltar para o Canadá, mas eu fiquei porque já tinha combinado de ir a casa de para o Amigo Secreto e tudo mais. Era a minha primeira ceia de Natal na casa de , e a primeira constatação que fiz foi que estava certa: a família de estava toda ali. Não que eu conhecesse toda a família de , mas era gente demais que eu nunca havia ouvido falar na vida. A questão era: como, se nossas famílias eram tão unidas?
Acho que, afinal, a união dos meus pais com os pais de era fundada em negócios, e isso fazia diferença. Eu sabia os nomes dos tios de , de seus primos etc, mas parecia conhecer cada detalhe da vida de cada uma daquelas pessoas. Eventualmente, ela me acolheu, e me arrastou por toda a casa enquanto conversava com cada um dos seus parentes ali. , pelo contrário, ficava fugindo o tempo todo.
Grande amigo, eu tenho.
Gostaria de ressaltar que ele realmente não era assim, e deve ter algo muito errado acontecendo. Algo bem ruim, para ele não me contar.
De qualquer jeito, não adiantaria questioná-lo. Seria burrice pensar que alguém como ele fosse ceder por pressão. é o tipo de pessoa que se quiser ajuda para algo, você vai saber imediatamente. E essa seria a postura dele quando ele não quer resolver seus problemas, e é isso que me preocupa.
me abandonou por alguns minutos, pois precisou levar uma de suas priminhas ao banheiro, e eu, pego em flagrante com uma garrafa de coca-cola, tive que completar o copo da mãe de .
– Obrigada, querido.
! Você pode me ajudar com as crianças? Elas estão impacientes pra comer e ainda faltam dez minutos.
? Você é o ?
revirou os olhos para a mãe e tratou de me puxar para longe dali.
– Por que ela perguntou daquele jeito? O que ela sabe sobre mim?
– Pff, convencido. Por que ela saberia algo sobre você? Além de que você é o famoso amigo de infância do que nós nunca conhecemos.
Ah, sim. Isso.
– Ah.
– Apesar de que ele não vem sendo um bom amigo de infância nem pra você, né?
Passei o resto do tempo pensando nisso. era um ótimo amigo, de verdade, mesmo morando em outro país. Agora, que morávamos na mesma casa, ele mal conversava comigo. Nossos assuntos se resumiam a esporte, música e matérias. Nada pessoal, nem mesmo um "não tô ok", nem isso.
– Tem algo errado com ele.
– Evidentemente, meu caro Watson.
A mãe de nos chamou para dentro. Ficamos para trás, deixando todas as crianças entrarem primeiro.
– Alguma ideia sobre o que seja a causa de tudo isso?
– Só sei que não sou eu, de resto... Ele não fala mais comigo, nada. A gente... Bem, não vamos fingir que você não sabe, a me contou que deixou escapar esse segredo pra você. Tudo bem. A gente namorou um bom tempo, mas isso não funciona mais há um bom tempo. Eu não sei... Mas sinto que a culpa não tem nada a ver comigo ou com ele. Tem algo acontecendo que ele não fala pra ninguém. Eu pensei que talvez fosse a pressão dos testes, a vontade dele de conseguir cursar música... Mas quando tocava no assunto, ele parecia desprezar e me ignorar. Não sei mais o que fazer, mas eu me importo. Infelizmente.
Concordei, deixando-a entrar primeiro.
– E o que nós podemos fazer?
– Não desistir. Quando ele precisar, você tem que estar lá pra ele. Você precisa me prometer, .
havia parado na minha frente, séria. Não entendi direito, mas não sabia se tinha a liberdade necessária para perguntar.
– Sim. Claro.
– Diz.
– Quando ele precisar, eu estarei por perto. Eu vou ajudá-lo. Eu prometo.
Ela sorriu.
– Obrigada.
Assenti.
A ceia durou mais de duas horas, com uma infinidade de pratos e doces. Os presentes foram outra hora, e quando aquela cena toda me fez sentir como se eu não fosse mais aguentar de saudades dos meus pais, gritou que estava indo. Sua mãe jogou um molho de chaves para ela e puxou e eu para fora da casa.


Capítulo 42 — I'll be alone, dancing, you know it baby!

(Don't You Forget About Me — Simple Minds)

– CHEGUEI, QUERIDAS!
Escancarei a porta da casa de , notando que havia sido a última a chegar. De novo. Era a única coisa que eu sempre fazia, todo ano. Porque, afinal, o Papai Noel é sempre o último a passar, não é mesmo? E eu era a versão feminina e jovem dele.
Estava literalmente vestindo uma adaptação da roupa de Papai Noel, e juro que não é daquele tipo “Mamãe Noel Sexy”, eu juro. O vestido fora feito pela minha própria avó, como sempre.
– Oh, que ótimo, eu tinha acabado de explicar pra eles como você era sempre a última a chegar porque gostava de bancar o Papai Noel, e você chegando foi o toque final perfeito para eles entenderem o quão literal eu estava sendo.
Fui até rindo, e soltei o saco de presentes (vermelho) no chão.
– Muito engraçado, mocinha, lembre-se que ainda não é tarde pra você ser considerada uma má garota e perder o seu presente.
Todos riram, e esse “todos” eram: , Becky, , , , , , , Phill e Rapha. tratou de arrumar sua postura e piscar seus olhos inúmeras vezes. Eve não viera porque comemorava o Natal em algum lugar distante demais para isso.
Eu acho que, literalmente, ela ia pro Alaska. Precisamos convencer Becky a nos levar para lá.
– O que é tudo isso? – perguntou, esticando o pescoço para ver melhor o saco vermelho.
– Segredo! – respondi, antes que alguma amiga dedo duro resolvesse estragar a surpresa.
Só porque elas já sabiam, não precisavam estragar a surpresa dos outros.
– OK, ENTÃO, tudo pronto e quem faltava já chegou, vamos começar!
pegou uma garrafa de vodka vazia (provavelmente o conteúdo desta havia sido usado para encharcar os gummy bears, que estavam em uma vasilha no chão, de álcool) e colocou na mesa de centro. Ela esperou todos se arrumarem em um círculo e girou a garrafa.
Tentei não encarar , que nem sequer disfarçava para olhar para mim. Ele estava completamente ignorando a garrafa girando na mesa. Ela parou, apontando para .
Sentamo-nos e pegou o seu presente, ficando em frente à TV da sala.
– O meu amigo secreto é uma pessoa...
– DROGA! – gritei, não a deixando terminar a frase. – Eu sou um alienígena, então não sou eu. – expliquei, e assim que o fiz, entrou na minha, dizendo que era um dinossauro.
– Calem a boca! – pediu, rindo.
– Vou fingir que essa interrupção não existiu. O meu amigo secreto é uma pessoa muito legal, que eu conheço há muito tempo... mas só virei amiga mesmo, de ligar no meio da noite, esse ano.
levantou os braços, mas ele não era o único possível, para a sua tristeza. Rapha e Phill foram apontados, também. sorriu.
– O meu amigo secreto gosta MUITO de ler.
cruzou os braços, fazendo bico. Phill deu de ombros, encarando Rapha.
– Você gosta mais do que eu, acho, considerando a faculdade que você quer fazer...
Raphael pegou toda a sua feminilidade e foi saltitando até .
– AI, SUA LINDA, ADOREI SER SUA AMIGA!
Rimos, e entregou a caixinha para ele.
– Mas o que... Uma chave?
– É a chave do armário embaixo da escada. – respondeu.
Rapha correu para abrir o armário. Dentro dele, havia uma caixa muitas vezes maior. E milhões de vezes mais pesada.
– Foi difícil não pegar nenhum que você já tivesse, a teve que conferir muitos pra mim.
Rapha estava com a boca escancarada.
– SUAS SAFADAS LINDAS! – ele abriu a caixa e começou a chorar. – Quantos livros lindos! , obrigado!
Levou um pouco de tempo para Rapha se recuperar e assumir a sua vez na brincadeira.
– Ok, minha vez... Eu tirei uma pessoa super bacana, mas isso não resolve muita coisa, porque todos aqui são uns divos. Porém, essa pessoa em especial já me apoiou e me ajudou muito, não só a mim como a muitas outras pessoas que sofriam como eu, pelo mesmo preconceito...
– SUA VADIA, EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ MENTIU PRA MIM! ELE DISSE QUE TINHA TIRADO A REBECCA! – pulou do sofá, atacando Rapha com cócegas.
Ele entregou o presente para ela, rindo. Era um kit de desenho, com carvões de todos os tipos, bicos de pena e aquarelas.
– Pra sua faculdade, vadia. – ela leu no cartão, e eu senti pela sua voz que ela estava engolindo o choro.
Eles se abraçaram e Rapha sentou enquanto se recompunha de costas para nós.
– Estava na hora de alguém ter azar com o amigo que tirou, né? Eu tirei o . – ela andou até ele e soltou o presente no seu colo, dando as costas em seguida e sentando ao meu lado.
Senti o gosto amargo do destino. Tanta gente, mas logo ela tinha que tirar o ? Ele não quis abrir o presente, mas todo mundo reclamou.
– São as regras! – , que estava mais perto, se esticou para dar um tapa na cabeça dele.
– Tanto faz... É um livro de partituras.
, que estava ao lado de , gritou.
– É AQUELE LIVRO DE PARTITURAS! CARALHO. – ele tomou o livro das mãos de . – Não é o livro que...
– Eu sempre quis. É. Valeu, . - disse, parecendo que morria para emitir algum som.
– De nada. – ela acenou.
levantou, pegando o seu presente.
– Eu tirei alguém que me odeia, e com razão.
Os olhos dele se fixaram em . Percebi que todos prendíamos a respiração.
– Acho que muita gente nessa sala, você precisa ser mais específico. - ela respondeu, sem um único segundo de hesitação.
Outch.
– Eu sinto muito. Eu... Meus pais vão se separar. Eu sei que não é desculpa, e não tô dizendo como forma de desculpa, mas... Eu...
Se antes estávamos em silêncio porque não queríamos atrapalhar, agora estávamos em silêncio porque não sabíamos o que dizer. levantou como se tivesse levado um choque.
– Por que você não me disse?!
– Eu não podia...
– É pra isso que eu sirvo, ! Que merda!
– Eu não queria aceitar, ! Porra! Contar seria aceitar que estava acontecendo, e eu me recusei até… Até ser tarde demais.
Olhávamos de um para o outro como numa partida de ping-pong. Ela o abraçou.
– Eu sei. E eu te perdoo, mas eu não posso mais passar por isso.
Notei que quase todos estavam com os olhos arregalados, muitos sem entender o que acontecia. “ e eram amigos? Como eles nunca se falavam, então?” estava estampado na cara de e , enquanto Phill e Rapha pareciam encaixar as peças do quebra-cabeça.
– Eu sei.
– Enfim, eu já fui, então não sou eu. – tentou sorrir.
Ela tentou. Minha amiga é uma bendita super-heroína.
. – ele falou, engrossando a voz.
– Oh. Eu não te odeio. – levantei. – Ah, é, te odeio, sim. - toquei a cabeça como se tivesse acabado de lembrar que o odiava. riu, mesmo que de forma fraca. - Mas agora tô sentindo um pouco de simpatia por você, imbecil.
Ele deu de ombros, entregando o presente para mim.
– Use para escrever o quão babaca eu fui.
Ele voltou para o sofá, enterrando-se nele.
tentou dizer algo e recebeu um “não” extremamente seco. Abri o meu presente, encontrando um caderno de couro preto com bordas prateadas e uma caneta de nanquim maravilhosa.
Fui até e o abracei.
– Obrigada, nerd.
– Imagine, nerd-mor.
Fiz uma breve expressão de ofendida, depois dei de ombros e voltei para a frente da TV, com o presente do meu amigo secreto em mãos.
– Meu amigo secreto é uma pessoa muito importante para mim.
– MAS EU JÁ FUI, AMÔ! – Rapha deixou de olhar seus livros para reclamar.
– CALA A BOCA, BESHA, É A MINHA VEZ! – Phill gritou.
– IH, OLHA SÓ, AS ILUDIDAS! – gargalhou, recebendo um cutucão de .
Apenas ri.
– Tem muita gente importante pra mim aqui, então vou ser mais específica. Meu amigo secreto quase me matou do coração esse ano.
Todos ficaram em silêncio.
– Ué... – Phil deu de ombros, externando o que todos estavam pensando. – Eu sei que sou lindo, mas acho que não cheguei a quase te matar do coração... Acho, né, talvez a minha beleza seja mais perigosa do que eu imaginava.
Eles riram, enquanto Becky levantava do sofá.
– Tomem essa, trouxas.
Ela sorriu e veio até mim. Abracei-a tão forte que pensei que fosse quebrar os seus ossos.
– Como assim ela quase te matou do coração? A Rebecca? Não entendi. Ela nem é tão bonita assim.
Becky mandou o dedo do meio para Phil.
– É nosso pequeno segredo, Phill. Desculpa. – respondi, entregando o presente para Becky.
– Uma carteira, um cadeado, um chaveiro... O que são essas coisas?
– Uma carteira nova pra ter espaço pra sua carteirinha de Harvard, um cadeado para o seu armário em Harvard e um chaveiro especial para as suas chaves de Harvard, oras. Ah, e tem mais coisas. – fui até o meu saco de presentes e tirei uma carta.
– Sua filha da puta. Eu pensei que só a minha carta tivesse sido extraviada!
– Ei, olha a boca! O que foi que a puta te fez? - por algum motivo, todos riram da minha piadinha infame. Eles precisavam parar de conviver comigo. - Tecnicamente, foi extraviada sim. Pela sua mãe, a pedido meu.
Rebecca deixou uma lágrima cair.
– De primeira?
– De primeira, sua nerd.
Ela me abraçou.
– Você abriu a minha carta de admissão???
– A sua mãe abriu, eu nem ousei.
– Vadias.
Ela pegou o envelope da minha mão e me abraçou de novo. Todos a parabenizaram, e eu vi no seu olhar o agradecimento. Rebecca odiava coisas assim, ela jamais conseguiria abrir aquela carta sozinha. Eu mesma desejava que alguém tivesse feito isso por mim, a tensão de abrir aquele maldito envelope sem saber o que havia dentro dele... Uma palavra: horrível.
– Minha vez, então. O meu amigo secreto é um babaca.
– Eu já fui, Rebecca. – comentou, sorrindo de leve.
– Tá se achando, hein, ? O meu amigo secreto é ainda mais egocêntrico que você.
Rebecca virou para Phill. Ele gritou.
– ATÉ QUE ENFIM! – Phill pulou em Rebecca e a tirou do chão, quase esquecendo do presente.
– Tá aqui, gazela.
Ele abriu a caixa retangular e tirou um terno maravilhoso de dentro.
– QUE. LINDO.
– É pra realçar os seus olhos.
– EU VOU USAR NA NOSSA FORMATURA!
– Pode parar de gritar já, Phillipina.
– OBRIGADO, BECKY!
Phill tirou e deu para ela uma coletânea de CDs dos anos 90, fazendo quase parir. Ela, bem sortuda, tirou e deu uma caixa que ele não deixou ninguém ver o que tinha dentro. Como se precisasse, todo mundo adivinhou que eram jogos para o seu videogame (e não lingeries e brinquedos sexuais como ele disse que eram). tirou , e deu um par de meias para ele. De brincadeira, em seguida ele tirou outra caixa que estava cheia de DVDs com os filmes favoritos de . Eu, que não sabia do gosto para filmes dele, quis roubar aquela caixa. tirou , e deu uma caixa de Lego Engenheiro para ele, fazendo todos rirem. E , logicamente, tirou , e deu uma máquina de fazer pipoca para ela, dizendo que era para a casa dela e de depois do casamento.
deixou claro que isso não o poupava de ter que dar outro presente quando eles realmente casassem.
E, assim, com o amigo secreto terminado, eu pude entregar os meus presentes de Mulher Noel. Livros, DVDs e CDs, menos para . Para ela eu entreguei um envelope, sem que percebessem. Ela olhou o conteúdo dele e dessa vez seus olhos se encheram de lágrimas.
– Obrigada, .
– Eu só quero que você seja feliz.
Abraçamo-nos.
“E ter uma cama garantida pra mim em Oxford, sempre” sussurrei, fazendo-a rir.

*


Ela me deu um blu-ray ao vivo do Metallica, comumente conhecido como o melhor DVD ao vivo de todos os tempos.
Eu ia deixar para mais tarde, mas percebi que ali, com todos presentes, era o melhor. Mesmo que ela dissesse não. Perguntar ali, na frente de todos, mostraria o quão sério eu estava falando. Mais presentes eram trocados, eu peguei a fila para entregar o meu para ela.
Quando chegou a minha vez, me encarou.
– Eu tenho uma pergunta pra você.
Percebi o barulho ao nosso redor diminuir.
– Agora é a hora dos presentes, . – ela riu, parecendo nervosa.
– Eu sei. E, bem, talvez não seja bem um presente, mas... Quer namorar comigo?
Alguém sufocou um grito.
Talvez tenha sido . Ou Rapha. Talvez ambos.
não piscou. A boca dela se abriu minimamente.
Silêncio.
Total e completo silêncio.
– Eu quero que você seja a minha namorada. - repeti, dessa vez mais alto.
...
Ela devia estar pensando em todas as vezes que não conseguimos, e quantas vezes eu estraguei tudo. A cena no Baile de Inverno devia estar passando pelos seus olhos. Ela ia dizer não. Eu precisava fazer mais do que apenas pedir.
– Eu confio em você. Já passou da hora de te dizer isso. Eu sei que você é a única pessoa que não vai me desapontar. Eu não preciso mais esconder isso de ninguém, e, principalmente, eu devo assumir pra mim mesmo que te amo.
Dessa vez a comoção ao redor foi maior.
fechou a boca, mordeu o lábio, e então sorriu.
– Ok. Nesse caso, a resposta é sim.

Não lembro direito do resto da madrugada, sendo tudo apenas um borrão colorido e feliz na minha memória. Lembro de ter ficado com a “Mulher Noel” mais linda de todos os tempos no meu colo o tempo todo, fazendo-a corar e beijando-a na frente de nossos amigos sem receio algum.
Lembro-me de ter dito que aquele vestido caía tão bem nela que eu só conseguia pensar em tirá-lo. Lembro que ela ficou indignada, e eu logo corrigi dizendo que não era culpa do vestido, e sim do que estava embaixo dele. Ela poderia vestir uma burca que eu ainda a acharia atraente. Ainda mais sob a circunstância atual, na qual a felicidade parecia que ia explodir a minha cabeça a qualquer minuto. Lembro-me de sair da casa de com , de ir com ela para a sua casa, de entrar pela porta da frente, mas esperar a autorização dela para subir para o seu quarto.
Lembro-me de ter passado o melhor Natal da minha vida ali, naquele quarto cheio de decorações de Natal, apenas com a garota que eu amava e não tinha mais receio de assumir.
Foi definitivamente a melhor época da minha vida. Um Natal que eu gostaria de repetir muitas vezes.

*


É. Então. Namorados. Pois é. Isso aí. Eu sei.
O Natal realmente tem uns lances que não dá pra explicar. O clima, as luzes, as músicas, os olhares de e suas palavras doces e pronto, eu estava ali. Namorados, oficialmente, anunciado em alto e bom tom. Todo mundo sabia. Agora era fato, e concreto.
Só fiz ele prometer que nunca mais teria um ataque de ciúmes na vida. Até mostrei que tinha o número do celular de Nate gravado no celular, de novo, pro caso de ele ter esquecido..
- Eu falei a verdade no dia do Baile. Eu não pedi, ele pegou o meu celular e anotou, e não insinuou absolutamente nada, não foi desrespeitoso, e então eu não vou apagar, vai ficar aí, e se você tiver uma única coisa a dizer sobre isso...
respondeu rindo:
- Eu não tenho, namorada.
Argh, uma parte minha queria socá-lo toda vez que ele dizia isso. Outra parte, que eu preferia fingir que não existia, ficava dando risinhos internamente e queria apenas mordê-lo com muito carinho.

, , e eu fomos para Londres no dia 26. O senhor - meu pai - se comoveu com a desculpa que de que nos afastaríamos, porque iríamos para faculdades diferentes quando o quarto ano acabasse, e aceitou pagar a viagem para todas nós. As garotas ficaram em choque, de primeira, mas ele acabou as convencendo de gastarem o dinheiro delas em Londres, comprando lembranças para todos e aproveitando ao máximo.
Eu nunca fiquei tão feliz em ter um pai fodidamente rico. Viram? Eu disse que não era louca.
Ficamos cinco dias, dos quais três realmente aproveitamos passeando por Londres. Dia 30 à noite estávamos de volta, cansadas mas extremamente felizes. só faltava soltar fogos toda vez que lembrava que ia estudar em Oxford quando o próximo semestre acabasse.
Porque, claro, ela fora aceita. Com glória.
Depois que voltamos, surgiu a questão: E o Ano Novo?
não demorou muito para aparecer na minha sacada, na própria noite do dia 30. Ele fora com minha família no aeroporto, e eu não fazia ideia o que ele estava fazendo do lado de fora da minha janela.
- Sabe, você pode usar a porta de entrada. - eu disse, só por via das dúvidas. - Meus pais sabem que você tá aqui. Você veio com a gente do aeroporto.
- Muito comum. Acostumei com o papel de Romeu. - ele respondeu, simplesmente, debochando de mim.
Rimos.
- Então, o Ano Novo… - eu comecei a dizer, deixando a frase morrer com um suspiro.
Essa coisa de namoro. Várias preocupações.
- Tem esse evento louco todo ano que nós somos obrigados a ir… - começou a dizer.
Eu o interrompi, surpresa:
- Ah… Temos um desse, também!
- Mesmo? Poxa, que pena… Achei que ia te levar esse ano. Odeio essas coisas.
Ri.
- Eu ia convidar você.
Ficamos em silêncio, deixando alguns “É” escaparem, e alguns suspiros.
- Bem, nos vemos no dia dois então. - eu disse, puxando-o para se sentar na minha cama.
- É. - ele deu de ombros.
- Ok.
- Talvez seja a mesma festa. - disse, tentando soar esperançoso.
Era uma esperança muito vã, porque existiam diversas festas dessas no Ano Novo. As chances de irmos à mesma era irrisória.
- Eu duvido, nós já teríamos nos visto por lá. Eu vou todo santo ano desde que eu consigo me lembrar.
- Eu posso ao menos ter a esperança, né?
Ri, deitando a cabeça no peito dele.
- Claro, mas eu não vou te iludir.
- É… Tente não beijar ninguém por lá.
- Mas que… Absurdo. Nós somos oficiais agora, se eu já não faria isso antes…
Ele riu.
- Eu sei, só estou sendo chato. Realmente queria que você fosse.
Suspirei, aproveitando o carinho que ele fazia na minha nuca.
- Eu sei. Só tem gente horrível nesses lugares. Vou sentir a sua falta.
- E eu a sua. - ele respondeu, sorrindo.
- Dorme aqui hoje? - perguntei, já puxando-o para a cabeceira da cama.
sorriu, com um leve toque de malícia quase imperceptível.
- Vou me atrasar, mas não ligo. Sim.
Deitamos rindo, e o resto vocês já sabem.

Arrumei a mala como quem ia para o próprio funeral.
Dessa vez não tinha uma amizade para me salvar. A minha esperança era que fosse conosco, mas isso tinha voado pela sacada (literalmente) antes das seis horas da manhã. Pelo menos Aimée não me odiava mais, e fizemos companhia uma a outra. Ela e o pirralho estavam se falando. Aimée parecia mais feliz, então aceitei. Fiz questão de dar meu olhar mais severo para ele sempre que eles conversavam pelo celular com vídeo.
Donna ficou tão feliz que deixei-a escolher meu vestido para o Réveillon que pareceu até considerar a minha opinião para escolhê-lo.
Na verdade eu deixara porque não tinha tempo para pensar nisso, mas, bem, se ela ficou tão feliz, pra que eu vou estragar essa felicidade, né? Seria apenas cruel da minha parte, e não há motivos para ser cruel à toa. Ela acabou acertando em cheio, trazendo um vestido que eu talvez escolhesse sozinha em uma loja. Se ele fosse preto, claro.
Olhei para a máscara do ano passado, com dó.
Eu gostava daquela máscara, não queria usar outra. Ela era perfeita demais. Depois que você encontra algo tão perfeito, é muito difícil não usar ou ver sempre que puder.
Não seria pelo garoto misterioso do outro Ano Novo, mas ainda parecia errado não contar para . Acabei mandando uma mensagem para aliviar minha consciência. Afinal, se eu acabasse esbarrando naquele garoto, que mal teria reconhecê-lo e ser reconhecida? Poderíamos ser amigos. Eu me lembrava dele ser excepcionalmente legal.
Escrevi a mensagem antes de entrar no banho:
“Preciso te contar uma história engraçada.”
É, super engraçada! Eu me apaixonei, uma vez, nessa festa de Ano Novo que você não estava, sabe? Um garoto super bacana.
Acho que ia super ajudar a auto-estima e confiança do meu mais novo namorado.
Suspirei ao olhar no cabide. Mais um vestido branco que eu jamais usaria fora daquelas festas de Ano Novo. Por que ele não era preto, mesmo?
Entrei no box ao som de Chvrches.

*** Flashback ***

’s POV.

– Hoje é o dia, !
– Que dia, ? – já perguntei rindo, agradecendo mentalmente o fato de ter arrastado junto comigo para aquele inferno de ano novo em uma chácara gigantesca com toda a escória da alta sociedade reunida.
– O dia em que você finalmente beija alguém! Você viu quanto cara lindo tem aqui? A maior concentração de perdição por metro quadrado do mundo, eu aposto!
– Duvido que algum valha a pena. – revirei os olhos. não fazia ideia do que dizia por que jamais havia estudado na mesma escola que aquele tipo de garoto estudava. Meu estômago embrulhava só de pensar na Holliang.
– E eu pensando que você era a pessoa menos preconceituosa de todo o mundo.
– Não é preconceito. - disse, ríspida e um tanto rancorosa.
Eu tenho meus motivos, não me questione.
– Deve ter pelo menos um cara decente aqui, !
– Eu duvido. De verdade.
percebeu que estavam em uma disputa na qual a minha birra sempre venceria, e decidiu que tinha mais o que fazer naquele belo dia ensolarado. Muito esperta, . Ela voltou a deitar na canga que havíamos estendido na grama, deixando de observar os garotos que jogavam futebol. Eu voltei a ler o meu livro, feliz por estar temporariamente livre dos meus pais.
A única coisa boa nesses eventos era isso: eles ficavam ocupados demais para me perturbar. Até, é claro, a hora de nos vestirmos para o jantar.
Porém, antes do jantar, havia o almoço. Guardamos nossas coisas em sacolas de pano e subimos para o clube aquático, onde a refeição seria servida. Uma coisa boa sobre o almoço: por estar sol, ninguém estava super–extremamente–estupidamente–ridiculamente bem vestido. Na verdade, estavam quase todos de roupa de banho. Roupas de banho bem caras, claro, mas ainda assim. Era quase um ambiente confortável.
– Olha só se não é a nossa querida .
Mandei o dedo do meio sem sequer olhar para quem queria me importunar, fazendo rir descontroladamente ao meu lado enquanto entrávamos no restaurante. Eu não acho que ela já tenha visto esse meu lado, então devia ser uma descoberta muito prazerosa.
Que tipo de chácara tem um restaurante próprio, afinal? Ao lado de um clube aquático? Pois é. Esse cara devia ser, tipo, estupidamente mais rico que os meus pais. E os meus pais já são ricos demais pra mim. Pra que tudo isso? Fica a pergunta.
– Ok, eu preciso saber o que esse cara fez pra merecer essa resposta tão mau educada da senhorita certinha .
Neguei com um aceno de cabeça.
– POR FAVOR! - pediu, GRITANDO.
– OK! Não berra no meu ouvido! Nunca mais! Promete!
prometeu, gargalhando. Nos sentamos.
– Aquele babaca sempre arrancava as minhas provas da minha mão e saia falando a minha nota e lendo as minhas respostas pra todo mundo. E ninguém fazia nada. Eu tentava não ligar, mas era bem desconfortável. Ah, e eventualmente ele colava fotos minhas pela escola com rabiscos do tipo óculos de grau, bigode, monocelha e espinhas. Um amor de garoto. Não que eu me importasse, né, e isso só parecia fazer todos eles me odiarem ainda mais.
Depois que conseguiu recuperar o fôlego de tanto rir (pra vocês terem ideia, nosso almoço chegou antes) (é, eu acabei fazendo o pedido sozinha porque ela não conseguia parar de rir), ela insistiu que aquele era um comportamento comum para uma criança.
– Seria, sim, se a culpa não fosse toda dele pela minha imagem desgraçada na Holliang. Eu já te contei que uma vez eu fui salvar um garoto, que era zoado por ser nerd também, de ser jogado dentro da lata de lixo e ele entrou no lixo sozinho depois de dizer que preferia ficar com o lixo do que ficar com a Esquisitona–? Pois é. E, pode acreditar, o lixo estava cheio de melecas desagradáveis, com um cheiro horrível. Essa eu achei meio engraçada, na verdade. E pensar que eu mudei a minha rota pra ajudar um otário… Eu ainda era bem inocente, naquela época.
– Jesus Cristo, . Agora estou surpresa por você ser uma pessoa tão normal e bacana. Pelo jeito a sua infância foi no calibre da de um serial killer. Mas dá pra entender porque você não desvia da sua rota de jeito nenhum hoje em dia, não é não?
Dessa vez, eu gargalhei.
– Olha, eu mataria algumas dessas pessoas com o maior prazer. Elas apenas não merecem todo o meu esforço, nem um décimo dele. Principalmente porque eu perderia a minha liberdade depois, ninguém merece esse sacrifício. - comentei distraidamente, brincando com o canudinho do meu suco.
– Fico feliz de ouvir isso, apesar de apavorada.
Rimos juntas. Eu mais amargamente que ela. É claro que não tinha rancor, como fazia parecer, mas também não me ajudava em nada estar no meio daquelas pessoas. Muita gente havia crescido e amadurecido, mas no fundo eu questionava cada um deles. Quem era realmente honesto ali? Havia alguém? Talvez nem eu mesma fosse.
O dinheiro torna as pessoas tão superficiais.
Almoçamos em paz, apenas com perguntando se eu conhecia cada garoto bonito que ela avistava. Eventualmente, eu parei de olhar e apenas respondia "não", o que não impedia de continuar falando do garoto, tentando adivinhar a sua vida. Algumas vezes eu opinava, acrescentando alguns defeitos nas descrições perfeitas dela.
Apenas pela diversão, ou pelo menos era o que achava. E esse devia ser o principal motivo para ela ser minha amiga, a garota tem bom humor suficiente por nós duas. E, claro, eu apreciava isso.
Voltamos para o quarto no horário combinado - exigido - por minha mãe, e tivemos alguns minutos de descanso antes de baterem na porta.
– Ah, maravilha! Que bom que vocês já estão aqui! – uma mulher que parecia uma versão mais "real" da personagem Effie de Jogos Vorazes entrou em nosso quarto, seguida por um ajudante tão extravagante quanto. – Temos um longo preparo para a noite de hoje!
Oh, boy.
Na verdade, me diverti. Pode parecer irônico, mas aqueles dois sabiam criar um clima agradável. Música adequada, massagens, eu estava quase dormindo quando ligaram o secador de cabelo na minha orelha. Ainda assim, a conversa com o ajudante - Joel - manteve o clima, e logo ríamos sem parar com suas histórias. Ele até me fez falar das minhas histórias, o que chocou , já que ela levara cerca de meio ano para descobrir algo sobre mim pré-Ferdinand. Éramos amigas desde o incidente do meu aniversário, mas era a primeira vez que ela ouvia dos meus problemas com minha família.
– Se você falar, eu nego, mas realmente... Sua mãe deixou bem claro que eu não podia cortar mais que dois dedos do seu cabelo. E nada de franjas.
Fiz minha melhor expressão de "Eu disse", sorrindo.
– Tive franja até os 14, depois disso ela não me deixou mais cortar. Porque já estava virando uma "moça" e franja é infantil demais.
torceu o nariz.
– Eu gosto da minha franja.
– Eu também. – dei de ombros.
– Combina demais com o seu rosto! - Joel disse, bagunçando a franja de . - E com o seu também ia ficar esplêndido, se fosse feita acompanhando a...
– Joel... Não iluda a garota.
– Perdão.
Rimos.
– Tudo bem, eu meio que superei. Um dia vou pro Canadá e corto channel. Acho que a influência dela não vai tão longe.
Eu estava brincando, mais ou menos.
– Com esse tamanho de cabelo você teria coragem pra cortar channel?
– Claro. E doaria isso tudo para uma instituição de crianças com câncer, sabe, pra fazerem perucas.
– Uma garota com consciência social, já está no meu TOP 3 Melhores Clientes! – Joel pegou o babyliss. – O que acha de cachos?
– Só vou dizer sim pra não parecer tão empolgada.
E, claro, acabou ficando pronta primeiro, já que o cabelo dela era bem menor que o meu (e já era grande). Ajudei na escolha da máscara de , afinal, a festa era sempre um Baile de Máscaras, e assisti enquanto se deleitava com os vestidos.
O branco era obrigatório e a máscara podia ser de qualquer cor. Quando chegou a minha vez, já estava pronta. Ela escolhera um vestido curto que destacava o salto alto de mesma cor. O pano que faltava nas pernas estava todo na parte de cima, fechando o vestido em uma gola alta, sem mangas. Seu cabelo loiro estava preso em uma presilha prateada de flores de onde caíam os cachos feitos por Dori. E a máscara era do mesmo tom prata da presilha, cobrindo apenas os olhos.
Ela não podia ficar mais bonita.
Passei a mão por cada um dos vestidos que estavam no quarto, procurando o certo. Pra que, eu não fazia a mínima ideia. Talvez a dedicação de Dori e Joel tivesse me empolgado, no mínimo criado um respeito em mim pelo trabalho deles. Passei por um vestido "tomara-que-caia" leve, de duas camadas, na qual a superior abria abaixo dos seios, revelando a camada inferior. Um tecido branco que dava vontade de abraçar e não soltar mais. Voltei para olhar o vestido melhor. Parecia seda, e o tecido superior era transparente... Simples e bonito. Puxei-o e mostrei a todos.
– Hm, interessante...
– Podemos caprichar na sua máscara, já que o vestido é simples.
– É a sua cara, se você se vestisse bem sempre, eu diria que esse foi feito pra você. – bateu palmas, sem a intenção de ser ofensiva.
Afinal, era apenas a verdade. Mas eu sinceramente não me via usando esse tipo de roupa no dia-a-dia. Simplesmente não.
– Sua mãe sugeriu essa máscara.
– Sugeriu. – ri.
Ainda assim, olhei a máscara vermelha. Pelo menos era vermelha, e não, sei lá, bege. Era bonita, com detalhes dourados, mas não combinava com o vestido. Isso e o fato de que ela só escolhera a máscara para mim para poder me reconhecer durante o evento e assim garantir que me torturaria durante o mesmo. Fui até a mala de máscaras e olhei uma por uma.


*


Benjen estava se divertindo horrores. Passou o dia todo no clube aquático da fazenda, se é que aquilo podia ser chamado assim, e, consequentemente, eu tive que passar junto. Ele se divertia, ia de um lado pro outro, conversava com cada pessoa que passava por ali, enquanto eu fiquei num canto da piscina, quieto.
– Desse jeito você não vai conseguir uma namorada nunca, .
Levei um cutucão na boca do estômago. Apenas ri. Conversava sobre muitas coisas com o meu irmão mais velho, mas essa não era uma delas. E não seria agora que isso mudaria.
– Eu quero saber como Nikki consegue escapar desses eventos e eu não.
Benjen riu.
– Ela tem mais bolas que você, e foge. Você que é amigo dela e não sabe?
– Foi uma pergunta retórica.
– Touché. Mas então, ainda não a pediu em casamento?
Ri, incrédulo.
– A Nikki, casar? Realmente, eu que sou o amigo dela.
– Sempre afiado demais pra quem mal tem barba ainda, maninho. Você precisa sorrir um pouco mais.
Num lugar como esse? Difícil.
– Nah.
– Olha só tudo isso ao seu redor, deixa de ser hipócrita e se divirta um pouco.
– Nunca. E qual é a sua agora de querer me passar sermão?
Benjen desistiu de argumentar e partiu para algo que resolvia: tentou me afogar. Ficamos nessa briga por um bom tempo e, apesar dele ser o atleta da família, Benjen não conseguiu me afogar. Nem eu consegui afogá-lo, obviamente.
– Só não queria te ver sozinho essa noite, na virada.
– Você não vai ver, relaxa.
É claro que eu disse isso porque pretendia não ser visto, mesmo, mas Benjen provavelmente entendeu que eu já tinha alguma socialite na mira. Tanto faz o que ele entendeu, o que importa é que ele saiu rindo e foi cuidar da sua vida, enquanto eu fiquei o máximo em paz que podia na beira de uma piscina.
O sol já estava se pondo quando saí, e o experimento do dia havia sido bem sucedido: a partir de um certo ponto, a pele não enruga mais, permanecendo no mesmo estado até você sair da água. E no meu caso, o “certo estado” já era bem enrugado. Ri sozinho, recebendo o olhar curioso e assustado de algumas garotas por perto. Pisquei para elas, por bom modo, dando as costas e seguindo o caminho para o meu quarto.
Depois de tantas horas enfiado em uma piscina, pareceu ridículo tomar banho, mas digamos que o cheiro de cloro não era dos melhores perfumes. Me arrumei com pressa, provavelmente deixando a gravata torta, e penteei o cabelo. Chequei se não havia esquecido nada e fui para o hall que ligava todos os quartos da família. Se cada família ali presente tivesse cômodos do tipo, eu realmente não entendia o dono daquele lugar. Será que ele tinha aquela mansão apenas para esses eventos?
Não, provavelmente funcionava como um hotel o resto do ano. Um hotel para pessoas muito ricas.
Mamãe veio rapidamente me arrumar, desamassando o terno e ajeitando minha gravata.
Sorri o tempo todo, acenando para ela pensar que eu ouvia suas palavras. Enfim, ela me deu a máscara que deveria usar toda a noite até a virada de ano. A máscara era branca, sem detalhes, apenas cobrindo meus olhos. Bethany devia ter escolhido esta por motivos óbvios: realmente queria que eu a usasse, e não somente na sua frente. Tudo bem, mamãe. Eu posso fazer isso por você. Fiquei com eles até que fui expulso, já que Benjen estava longe há um bom tempo e eu continuava no meio de adultos. Vá se divertir, !
Como se fosse possível. Mas tive que ir. Então passei por cada canto do salão de jovens, procurando a garota menos patética por ali.
Ou, pra ser sincero, tão patética quanto eu. Meu estilo de patética.
Foi mais difícil do que eu esperava, e isso é dizer algo. Incrível como as pessoas conseguiam fazer algo branco ser exagerado, mas todos os vestidos eram tão carregados de coisas que talvez fosse melhor permitir outras cores. Ao menos assim não haveriam tantas pérolas e outras bugigangas penduradas. E as máscaras? Nenhuma era lisa, como a minha, e além de serem coloridas ainda carregavam penas, repito: PENAS!, para todos os lados. Algumas garotas sorriram na minha direção, e não me dei ao trabalho de devolver os sorrisos. Não ia dar, o jeito seria se esconder em algum lugar e esperar o tempo passar. Localizei Benjen e tive a sensatez de ir para o canto oposto. Talvez pegasse alguma garota e passasse por ele, apenas para fingir que estava me divertindo e por isso ele não estava me vendo por perto.
Finalmente deixando de olhar Benjen, reparei que o meu canto oposto já estava ocupado. Por duas garotas.
Maravilha. E elas ainda pareciam brigar. Parei, tentando achar outro lugar mal iluminado no qual pudesse me esconder, e não pude evitar ouvir algo.
– Eu não quero dançar isso! - a menor delas disse, parecendo nervosinha demais pro meu gosto.
– Me trouxe aqui pra que, então, maluca? Vamos! - a outra disse e ria como se o tom da amiga não a incomodasse.
– Não dá nem pra esperar algo bom tocar? - a primeira resmungou.
– Tipo o quê?
– Tipo Arctic Monkeys. Franz Ferdinand. Strokes?
Indie, pensei, rindo. Depois franzi o cenho. Indie? Naquele lugar, alguém com um gosto musical? Porque gostar apenas do que toca na rádio não é algo que eu considero como gosto musical. Tem que gostar de pelo menos uma banda ou músico que não se ouve na rádio. Parei de procurar outro esconderijo e apurei a audição.
– Ah mas você quer ficar sentada a noite toda, né? Porque não fala logo que só vai dançar quando o mundo for acabar?
Silêncio, prestei mais atenção e percebi que uma delas ria.
, eu não vou dançar eletrônica. Eu mal danço nas suas festas, imagina aqui!
– É, ok, você tem um jeito especial de dançar, mas ninguém vai perceber!
– Não tô com vergonha! Só não quero dançar agora!
– Fica aí então, sua chata!
A garota mais alta era loira e estava com seus cachos presos. Ela passou por mim sem sequer me olhar, indo para o meio das pessoas. Surpreendi-me ao perceber que o meu coração batia mais forte. Pff. Respirei fundo algumas vezes. A garota indie ainda devia estar parada no canto, mas nessa altura ela já devia ter reparado em mim, o cara parado perto de onde ela estava. Comecei a pensar o que era melhor: sair andando ou ir até ela e tentar conversar sobre algo.
Conversar, em um lugar como aquele, era algo para o qual eu não havia me preparado. Talvez ela viesse até mim, ou dissesse algo como “Odeio esse puts-puts sem fim.”
Ou talvez ela fosse como eu na piscina, quieta em seu canto sem perceber nada ao seu redor, testando quanto tempo conseguiria ficar em pé em seus saltos antes que seus pés ficassem dormentes. Sorri e num impulso me virei para ela.
Fui brusco demais, pois ela se assustou e acabou derrubando o que havia em sua taça no chão. Por sorte, a mão dela estava longe do vestido.
Reparei pela primeira vez em seu vestido, obviamente branco, mas inusitadamente sem adereço algum. Liso com um pano diferente que abria embaixo do peito e dava espaço para outro tecido branco que parecia reluzir dependendo da luz. Me assustei com a observação: era um vestido bonito. De verdade. E a máscara dela era... branca. Tudo bem que havia alguns detalhes em prata, linhas bem finas por toda a máscara, mas ainda assim... Sem penas. Delicada.
Nesse tempo todo em que eu simplesmente a encarei, ela permaneceu em silêncio, me olhando com olhos inquisitivos. E então sorri, um tanto sem graça.
– Desculpe-me se te assustei. – foi a única coisa que eu pensei em falar.
– Ah, imagine, bem, era só água. – ela riu, colocando a taça de lado e pegando um pano na mesa mais próxima.
Dei alguns passos até a alcançar.
– Ah... – água? Quem bebe água nessas ocasiões? Talvez uma maluca por fitness? Madame de academia? Ela tinha que ter algum defeito, afinal, estava ali. Se bem que eu também estava, e ela podia estar pensando o mesmo de mim. – Pensei que só eu achasse essas músicas um tédio.
Ela deu uma risada nervosa.
– Ah, na verdade eu gosto muito dessa. Com licença.
Eu não entendia muito de música eletrônica, mas com certeza a música não havia trocado. Ela passou por mim e continuou até entrar na pista, dando uma única olhada para trás, provavelmente checando se eu a seguia.
Ótimo, havia espantado a única garota interessante de todo aquele lugar imenso. Clap clap, . Desse jeito você vai mesmo ficar sozinho.
Comecei a rir, na verdade. Era muita sorte encontrar alguém assim por ali. Qualquer uma teria se jogado em cima de mim, ou fingido vergonha até cansar de ser galanteada e aceitar dançar. Ou ir pro meu quarto.
Esfreguei as mãos, com um humor totalmente diferente de poucos minutos atrás. Havia arranjado algo melhor para fazer do que me esconder em um canto da festa. Iria conseguir dançar com aquela garota antes da meia noite, e isso era uma promessa.
A segui de longe, sem perdê-la de vista.


*


O que eu estou fazendo? Essa é a pergunta. E a resposta é óbvia: Fugindo de algum almofadinha que está procurando as garotas quietas para aproveitar a noite. Se eles acham que é mais fácil, já digo: não é. Fiquem na pista e aproveitem a primeira que vier pra cima, é mais fácil.
Talvez ele fosse um nojentinho que aprecia a “caça”, e eu não estou disposta a ser a “caça” de ninguém, nunca. Mas uma parte pequena de mim estava perguntando “Por que você saiu tão rápido? Podia ter pelo menos dado uma chance ao garoto. Ele parecia bonito. E simpático.”
Simpático, sei. É, ele parecia mesmo bonito, mas e daí? Aquele lugar estava cheio de gente bonita que por dentro era só podridão. Pra que eu ia deixar um cara desses crescer as asinhas pra cima de mim? Quando eu quisesse me mandar, talvez ele não deixasse. Afinal, ninguém por ali perdia o seu tempo pra ser deixado na mão, e eu definitivamente não pretendia gastar o meu primeiro beijo ali. Nem que fosse com o mais simpático do lugar.
Afastei esse pensamento e continuei tentando achar , em vão. Acabei no outro lado da pista de dança, sozinha. E ainda tive que passar por muitos caras que achavam que eu queria dançar com eles. Cheguei no outro canto espumando e perguntando aos deuses por que eu tinha que passar por uma coisa dessas. Frustrada, obviamente decidi comer. Era difícil conseguir algo que prestasse por ali, mas essas festas também tinham um espaço infantil... É, isso significa: comida boa. E Aimée devia estar por ali. Fuji sorrateiramente para o salão vizinho, certa de que ninguém me veria. Se havia algo em que eu era boa de natureza esse algo era ser invisível quando eu queria.
E já estava de saco cheio de ficar com aquela máscara cobrindo meu rosto. Ela ia até o meu nariz, cobrindo minhas bochechas, e era realmente bonita, mas já estava me cansando. Imagina as pessoas que estavam com aqueles pavões na máscara, então? Eu já teria depenado tudo.
O garoto de mais cedo estava com uma máscara branca e lisa. Sem nada. Lisa de verdade. Simples. E muita bonita, ressaltando seus olhos ... Por que tô pensando nele de novo, mesmo? Sério, , eu esperava mais de você. Prestei atenção na cor dos olhos dele, já posso morrer? Num lugar desse, eu prestei atenção em algum garoto. Quis rir, mas cheguei no salão infantil e achei uma mesa vazia, cheia de salgados.
Ataquei os enroladinhos de salsicha. Não sabia como Aimée estava vestida, mas logo reconheci seus cachos louros. Ela estava com uma amiga, provavelmente, dançando e rindo. Quando me viu, fechou o rosto e deu as costas.
Ah, nada como um pouco de amor fraterno para melhorar a noite. Esse réveillon estava prometendo mais que o normal. E então, para confirmar a minha nova teoria, alguém sentou ao meu lado.
Alguém que já havia me assustado uma vez naquela noite, e estava conseguindo a segunda vez agora.
– Perdão? – ele pediu, quase rindo.
Perdão, por favor, que metido. Quem fala perdão nos dias de hoje com a nossa idade... Além de mim? Ah é, eu falo perdão. Gostei desse cara.
Não, não gostei não, cala a boca.
– Não foi nada. – respondi, um tanto seca. O problema era que eu sendo seca ainda parecia educada. Malditas aulas de etiqueta, ou maldita educação. Cala a boca e acaba com isso, ! – Você, por algum acaso, está me seguindo?
Ele levantou as mãos, como se assumisse culpa.
– Não pude resistir.
– É mesmo?
– Bem, não é todo dia que se vê uma garota com um vestido bonito por aqui, no meio de tanta coisa escandalosa.
O elogio (não devia, mas) me pegou de surpresa. Devo ter corado. Merda.
– Obrigada. Mas eu não caio nessas.
– Nessas? – ele riu. – Nessas o quê?
Também tocava música nesse salão, então muitas vezes eu só via seus lábios se moverem, como quando ele riu. Mal pude ouvir sua risada. Aliás, que lábios... MAS QUE MERDA! E eu achando que ia escapar da puberdade.
– Nessas cantadas fajutas. Apesar de que não está muito difícil de estar com o vestido mais bonito da festa hoje.
– É, quem não tá com pano demais tá com pano de menos.
Sorri.
– E aposto que você reparou bem nisso.
Touché, pensei.
– Touché. – ele falou, sorrindo. – A verdade é que eu também prefiro a comida daqui.
– Tem que ser maluco pra não preferir. – respondi, parecendo indiferente, mas sorrindo por dentro. Esse cara era legal.
Mas isso era impossível, num lugar como aquele. Se bem que eu estava ali, e eu sou super bacana. Não, não vá por esse caminho, . Desviei o olhar para a pista de dança e fiquei ali, apenas comendo e evitando o garoto ao meu lado. Então começou a tocar Beatles.
Cedo demais pra começarem a tocar as antigas, e isso me surpreendeu. E ele percebeu.
– Quer dançar essa?
– Você vai ficar me seguindo a noite toda até eu aceitar dançar alguma?
– Sou muito paciente quando quero.
Sorri de lado.
– Eu também.
Mentira, a presença dele já estava me enervando. Pelo menos nesse salão eu não precisava gritar para ser ouvida, falar alto já bastava. Mas ainda assim, não estava confortável, então me levantei e saí andando.
Assim que me encostei de volta ao canto do salão juvenil, ele se encostou ao meu lado. Encarei-o, com certo escárnio.
– Na verdade, esse era o meu plano pra noite, ficar escondido em um canto esperando o tempo passar. – ele se aproximou do meu ouvido para não precisar gritar, já que a música parecia ter aumentado no tempo em que estivemos ausente.
Ou, é claro, demoraria ainda um pouco para nos acostumarmos novamente com o volume.
Acabei rindo, apesar de me odiar por isso. Se fosse verdade, então o plano dele era o mesmo que o meu. Como nunca havia encontrado com ele nos outros eventos do tipo? Ou no Ano Novo anterior?
– Esse é sempre o meu plano e nunca cruzei com você.
– Normalmente eu tenho algum amigo comigo e não preciso me esconder.
Ah, ótimo. Se ele tem algum amigo ali, lá se vai a esperança de que ele podia ser alguém bacana. Dei um sorriso falso e voltei a olhar para longe. Qualquer ponto que tirasse da minha visão o garoto bonito e simpático que tinha um sotaque diferente. Sim, no salão infantil eu pudera ouvir um pouco melhor a sua voz, e ele tinha algum sotaque. Mais do norte, talvez?
Merda, eu amo sotaques.
– Eu trouxe uma amiga pela primeira vez hoje, e já a perdi.
– Acho que ela só queria que você se divertisse.
– Ah, então você também ouviu a nossa conversa? Stalker.
Ele deu de ombros.
– Não é minha culpa que você é a única garota interessante por aqui.
– Ah wow, que elogio. Sou sua única opção.
Dei um passo, deixando claro que ia andar para bem longe dali, mas ele segurou o meu pulso. Sem força, como se fosse um pedido.
– Qual o seu nome, afinal?
Apontei para a máscara.
– Acho que a graça é não dizer, não é?
– Verdade. – ele sorriu. – É só que... Eu não lembro... Não acho que esqueceria se já tivesse a visto antes.
Devo ter corado de novo, E COM ESSA CANTADA FAJUTA.
– São eventos bem grandes.
– Por isso mesmo, não quero correr o risco de te perder de vista e nunca mais te ver.
Ah, merda. Isso funcionou, cara. De verdade. Mordi o lábio, pensando em como fugir, e o improvável aconteceu. Franz Ferdinand começou a tocar. Numa versão remixada, óbvio, mas ainda assim... Ele sorriu e me puxou para si. Sem encontrar qualquer resistência.
– E agora, quer dançar?
– Cala a boca. – externei minha frustração com o xingamento, desistindo de resistir. Ele uniu nossos corpos e pude senti-lo rir. Meu cérebro tinha pensamentos fragmentados: íntimo demais, como lidar, calor, nunca fiz isso, eu, argh!
Então percebi que estávamos dançando eletrônica em ritmo lento. Quase valsando. Clichê? CLICHÊ!
– Não é assim que se dança isso. - resolvi cortar o clima, já que sou boa nisso.
– Eu não sou muito bom em dançar.
A facilidade com que ele assumiu isso me fez rir.
– Bom, eu também não.
– Ah, então tudo bem!
Ele começou a fazer passos estranhos e eu o puxei de volta, ainda rindo. Ótimo, era exatamente esse o plano, puxar o cara pra dançar comigo. Já era.
E, para o meu completo horror, nos divertimos muito.

Quando o rock clássico começou, a diversão aumentou. O garoto bacana ainda dava curiosidades aleatórias sobre as músicas que tocavam, e algumas eu já sabia. Ele tentou me beijar uma vez, talvez porque eu tenha olhado em seus olhos por muito tempo, dando falsas esperanças que não pretendia dar.
Mas aqueles olhos me prendiam com tanta facilidade, ainda mais quando ele sorria.
Desviei o rosto, é claro, e ouvi sua risada extremamente próxima do meu ouvido. Talvez eu tenha me arrepiado.
Então eu comecei a dar fatos aleatórios sobre as músicas, e ainda dançávamos, quando anunciaram que faltava uma hora para a meia noite. Era hora do jantar.
– Se você não vai me dizer o seu nome, ao menos prometa que vai estar no nosso canto quando chegar a contagem final.
Devo ter corado pela milionésima vez, é claro, e concordei com um aceno de cabeça. Ele sorriu e beijou o meu rosto – ou o que a máscara deixava ele beijar do meu rosto – e me deixou ir.
Fui todo o maldito caminho até a mesa de meus pais pisando em nuvens.
Que inferno.
me achou no meio do caminho.
– Tem uns dançarinos animais por aqui!
– E a maioria deles é do grupo de dança da Holliang, que alguns anos atrás proibiu a minha participação porque eu era estranha e estranhos não dançam em grupos descolados.
fez uma careta.
– Desculpa te abandonar, eu não consegui mais te achar depois que a raiva passou!
Dei de ombros e sorri.
– Tudo bem, de verdade.
Decidi não dizer nada mais, porque provavelmente me faria andar por todo o salão atrás do garoto bacana, só para ela ver quem era.
Comer de máscara se provou muito pior do que todo o resto. Sério, pra quê? Papai concordou que era uma bobagem, mas Donna não deixou que tirássemos nossas máscaras.


*


Conforme o tempo passava, meu coração parecia bater mais rápido. A janta parecia que não ia acabar nunca, e quanto Benjen perguntou se eu iria passar a virada sozinho... Apenas sorri.
O que aquela garota tinha? O que ela estava fazendo ali, essa era a questão. Eu sempre trazia para esses eventos, quando trazia algum amigo, ou ficava com Nikki. Mas ela... Eu não conhecia alguém como ela nem no meu ciclo social. Nem os amigos de Nikki, que eram bem loucos e espontâneos e toda aquela coisa meio livre, eram tão legais e interessantes quanto ela.
E eu nem sabia o seu nome.
Mas, em alguns minutos, eu saberia. Após a meia noite, todos retirariam suas máscaras. E ela estaria comigo nessa hora.


*


Faltavam dez minutos quando eu percebi o erro que havia cometido. Os piores cenários passaram pela minha cabeça, quase em todos o garoto tirava a máscara na minha frente e aparecia algum imbecil da Holliang. E quando ele via quem eu era, começava a rir. E logo todos riam.
Um cenário feito de pesadelos.
Eu não era bem a pessoa mais confiante do mundo pra querer passar por isso. Já imaginava o que ele diria, coisas como “Ela realmente acreditou que era especial e interessante!”, eu não podia ir. Mas queria ir. E havia prometido. Não, havia concordado, isso é bem diferente do que prometer.
Cinco minutos. As pessoas começaram a se espalhar, meus pais disseram que estariam na sacada ou de volta na mesa para quando eu quisesse os abraçar depois de “comemorar com meus amigos”. começou a olhar o celular, provavelmente preparando-o para as fotos, e fomos a caminho do salão juvenil. Quase todos estavam no gramado e queria ir para lá também. Mordi o lábio, indecisa.
Três minutos. Ia dizer para que precisava entrar no salão quando ela soltou um grito e me mostrou seu celular. Fechei os olhos com força e quando os abri ela estava sentada no chão, tremendo.
Dois minutos. O babaca do havia postado uma foto de si com outra garota e na legenda da foto lia-se “Meu beijo de réveillon está garantido”, abaixei e abracei . Era o melhor, era um sinal de que eu não devia ir atrás do garoto que parecia ser bacana, mas que eventualmente me desapontaria. Talvez não fosse hoje, nem amanhã, mas uma hora ia dar errado. Era definitivamente melhor assim, eu precisava me proteger.
Um minuto. E era muito mais importante. Talvez nos encontrássemos outro dia, talvez eu o reconhecesse e fosse falar com ele depois de verificar no google que ele não era um babaca, afinal.
Puxei o rosto de para mim e sequei suas lágrimas.
– Eu me recuso a te ver passar a virada de ano chorando, . Você sabe que é muito melhor que isso.
– Eu tô tão cansada de ser forte, ... Eu só queria... Eu pensei que vindo com você... Ele só foi e me trocou por outra, simples assim. Eu sou mesmo tão substituível?
– Não, não mesmo. Você é única e boa demais pra qualquer um. E não falo isso só pra te consolar. Por favor, não chora.
Trinta segundos. Já gritavam ao nosso redor, 28, 27, 26, 25... respirou fundo e nos levantamos. Ela começou a contar também e eu revirei os olhos – fazendo-a rir. 15, 14, 13, 12... Comecei a contar também, depois de ser chacoalhada algumas centenas de vezes por uma risonha. 7, 6, 5, 4... Dei uma última olhada para o salão, suspirando em seguida.
– ZERO!!!
Os fogos alcançaram o céu ao mesmo tempo que todos gritavam. me abraçou e começou a pular. Decidi não pensar em como ficaria surda, ou em como poderia estar conhecendo um garoto realmente legal no meio daquilo tudo. Decidi que a garota que mais havia me acolhido em toda a Ferdinand era quem precisava de mim naquele momento, e ali eu era verdadeiramente útil. A abracei de volta, feliz por estar com ela naquele momento e tê-la feito rir ao invés de chorar.
Seu celular ainda estava em minhas mãos, mas não o devolveria tão cedo. O desliguei e continuei segurando-o até que voltamos para a mesa ao final dos fogos. Guardei-o em sua bolsa de mão enquanto abraçava meus pais e agradecia o convite.
Havia feito o certo, por mais que meu coração tentasse me levar de volta ao salão juvenil. Ele podia ainda estar lá, me esperando.
Mas era melhor não. Eu sei que era.


*


Ela não veio, e eu entendi a mensagem. Havia pensado que... Bem, havia pensado errado e passara a virada sozinho e escondido, exatamente como havia planejado. Ainda assim, sorri, guardando com carinho aquelas últimas horas, que seriam para sempre impecáveis, afinal, seriam as únicas. Não haveria uma chance para estragarmos aquilo, pelo menos isso.
Subi para cumprimentar meus pais e então fui para o meu quarto. O momento mais esperado da noite parecia vazio e o sono havia sumido. Decidi ligar para Nikki, desejar um feliz ano novo e contar que havia conhecido uma garota legal no meio de tanta loucura. Ela duvidaria, ficaria excitada e então me chamaria de frouxo por deixado a garota sumir sem ao menos saber o seu nome. Ela a chamaria de fantasma, ou de amigo imaginário. Ela me faria rir, e isso talvez me fizesse relaxar e dormir.
Eu soube, no entanto, que nunca esqueceria aquela garota. Talvez esquecesse a sua risada, a sua boca, a sua voz – ou o pouco que consegui ouvir dela –, mas teria sempre na memória o que senti, e como fui feliz no ambiente menos provável da minha vida.
E quem sabe, talvez, eu não a encontrasse novamente, qualquer dia desses?

*** Fim do Flashback ***


Capítulo 43 — A jagged pulse runs through my veins, I write to remember.

(Here We Go Again — Paramore)

Tinha algo estranho com a telefonia. Ou com a internet. Talvez com tudo. É isso que dá viver numa era tão tecnológica.
sequer recebia minhas mensagens, apesar do celular insistir em dizer que estava com sinal, e eu acabei desistindo. Não era tão importante assim, eu falaria depois. Nem sabia se ia mesmo encontrar o tal cara do ano passado de novo.
Aimée também não conseguia falar com o seu rolo, mas estava encarando isso muito melhor do que eu. Provavelmente porque isso a ajudava, já que, assim, ela não tinha que resistir às mensagens dele porque elas sequer estavam chegando.
Acabamos dando uma volta por todo o lugar, fugindo de algumas cantadas inoportunas e caras que não entendiam um "Não" sem ter como complemento "eu já namoro".
Bem, não é porque eu namoro que vou começar a usar isso de muleta. Respeitem que eu disse não, caras. Não é tão difícil. Mas ali ou era isso ou era a reação "você só pode estar brincando comigo, quem é que resiste ao meu corpinho?", e eu realmente não sabia qual era pior. Em ambas, só queria fugir e ser deixada em paz.
Aimée acabou encontrando amigas e eu sobrei.
Abandonada e com sede - que fase, meus caros.
Combinei que encontraria Aimée de volta em nossa mesa e fui atrás de água.
Claro que, nessa hora, todos os garçons que passavam por mim tinham que estar com champagne. Eu não queria champagne, eu queria água. Essa é a história da minha vida.
Acabei no salão de dança, onde eu tinha certeza que havia uma mesa com garrafas de água e copos. Aproveitei que ela não estava muito movimentada e fiquei por ali mesmo, saboreando o frescor da minha água que provavelmente viera do Himalaia ou algo assim.
Passaram algumas pessoas por ali, normalmente acompanhadas, até que um rapaz encostou-se à mesa, sozinho. Olhei instintivamente, meio que para ter certeza que não era nenhum dos babacas da Holliang e que eu não precisava ter medo de jogarem água em mim. Porque eu os reconheceria mesmo se tivessem fantasiados de fantasmas.
Fale-me sobre trauma.
Porém, meu coração parou por um motivo completamente diferente. Esse rapaz usava a máscara.
A mesma máscara branca e lisa.
Do garoto que dançara e conversara comigo, na festa do ano novo anterior.
Era ele. Mas podia não ser. Mas podia ser.
Eu decidi esperar ele me ver primeiro, se fosse mesmo ele, nos reconheceríamos. Fui até a mesa de água novamente e me servi.
Senti que ele olhara, mas só de relance.
Então, ele olhou novamente.
E eu me virei para olhá-lo de frente.
Aí as fichas caíram, todas de uma única vez. Fichas que eu nem sabia que deveriam cair. Primeiro confirmei que era o mesmo garoto do ano anterior, sim, só que seus olhos agora me eram familiares. Eles não eram apenas olhos bonitos, eram olhos que eu vira diversas vezes em várias ocasiões. Seu maxilar também, e seus lábios eram os lábios que eu conhecia muito bem, e eles me conheciam ainda melhor.
Ele parecia processar as mesmas coisas que eu.
Era .
O garoto no ano novo anterior era .
Eu não sabia se amaldiçoava os deuses ou se os agradecia, mas meu sorriso já estava aberto quando dei por mim.
? - ele perguntou, enfim, parecendo mais surpreso que eu.
! - respondi, sem conseguir evitar o riso.
Ele apenas me beijou.
— Eu estava com tanta saudade! O sinal não tá funcionando. Não acredito que você deu um jeito de vir, mas e seus pais?
Fiz uma pequena careta, perguntando-me se ele não havia percebido. Porque, se for o caso, ok, é mesmo um tapado.
. Essa é a festa que eu tinha te falado. Meus pais estão aqui.
— Hahaha! - ele riu por algum tempo, me fazendo esconder o que sobrava do meu rosto com as mãos para fingir que não conhecia o bobo ao meu lado. - Eu disse que podia ser a mesma festa, não disse?
Revirei os olhos.
— É tanta coincidência que eu ainda não sei o que falar sobre isso.
Ele passou os braços em volta da minha cintura.
— Pois é. - ele suspirou, como se aceitasse os sinais do destino e finalmente entendesse que nós devíamos viver juntos para sempre. - Então você é a garota que eu conheci aqui ano passado.
— Sim. - não era uma pergunta, mas eu respondi.
— Fale-me sobre coincidência, . Quem diria que aquela garota ia acabar aceitando namorar comigo?
— Nem me fale, .
Sorríamos, ligeiramente marotos. passou a mão pelos cabelos, suspirando.
— Então, você me deu um bolo ano passado.
Corei. Senti meu rosto esquentar como não esquentava há semanas, talvez meses, e imediatamente comecei a me desculpar.
— Posso explicar, eu juro que não foi intencional. Eu ia vir, como combinado! Só que a , lembra da garota que estava comigo? Era ela, então, e bem na hora que eu ia vir pra cá ela viu coisas que não precisava ter visto sobre o seu querido primo...
apenas riu, achando a minha falta de habilidade social um ótimo entretenimento.
. Ele já estava nos atrapalhando naquela época? – ele, enfim, disse, revirando os olhos. - Deve ser algum tipo de recorde.
Soltei uma risada nasalada.
— Ele só é realmente muito bom em atrapalhar os outros. Foi quando tudo começou, de verdade, as confusões entre ele e ... Acha que foi naquela época que os pais dele começaram a falar de divórcio?
— Talvez, mas não serve de desculpa.
— Não...
Ficamos em silêncio por alguns segundos, daquela forma confortável que eu só conseguia ficar realmente quando estava sozinha. Ou, surpreendentemente, com ele. Lembrei do Festival que vimos juntos e acabei sorrindo com a ótima memória. Ele sorriu, ao meu lado, e passou a mão pelo contorno do meu rosto.
— Essa máscara é realmente bonita. - disse.
— Pois é, coloquei de novo porque não consigo gostar de mais nenhuma depois que vi essa. - expliquei, resistindo a vontade de retirar a máscara.
Era contra as regras, afinal. Só depois da meia-noite. As pessoas definitivamente têm algo com essa coisa de "depois da meia-noite."
— E eu sempre uso essa porque é a mais simples que existe. Sem penas.
— Sem penas. - concordei. - Penas fazem cócegas. E acionam a minha alergia.
— Exato.
Então, ele me beijou de novo.


*


Agora eu entendia a referência "parecia que meu peito ia explodir", porque, bem, no exato momento, eu estava sentindo justamente isso.
me puxou para dançar e ficamos ali curtindo a nossa sorte por um bom tempo.
Levei para a mesa dos meus pais, que ficaram tão surpresos quanto eu. Não pelos serem convidados para aquele evento, e sim por nós não sabermos disso antes. O jantar não demorou para começar a ser servido, e precisava dar sinal de vida para a sua família. Fui com ela e jantei por lá.
Ficaram todos felizes de me ver, e surpresos com a coincidência. Mal sabiam eles que tinha outra coincidência, que também tinha uma responsabilidade pela alegria que eu estava sentindo.
Eu já era apaixonado por antes de saber o seu rosto e o seu nome. Isso sim era poético.
Depois da sobremesa fomos todos para a mesa da minha família, onde jamais conseguiríamos ficar todos juntos, então saímos para achar um local apropriado no jardim.


*


Alguns caras da Holliang passaram batidos por mim, quase como se não me reconhecessem.
Bom, no mínimo eles tinham seguindo em frente, e eu os parabenizei mentalmente pela evolução.
Tudo correu harmoniosa e perfeitamente bem.
Nenhum desencontro, nenhum problema.
Pelo menos o ano estava se encerrando de uma forma decente, e eu sorri com esse pensamento enquanto a contagem regressiva começava.
Ficamos em pé, já olhando para o céu, esperando os fogos começarem.
— Três, dois, um... FELIZ ANO NOVO!!!


*


É claro que eu a beijei.
Nossas famílias soltaram exclamações prazerosas e Aimée fez o favor de desviar o seu celular, que já estava pronto para tirar fotos dos fogos de artifício, para nós. E, claro, tirar uma foto nossa.
Aquelas festas de final de ano nunca foram tão boas.
Só nos separamos depois que o sol nasceu.
Entre isso e os fogos de artifício houve um bocado de tempo. Gasto andando pela chácara/fazenda/coisa gigantesca de sempre, que eu já devia conhecer cada ponto de olhos fechados, porém deu um jeito de me levar em cantos que eu não lembrava de sequer ter pisado antes.
— Eu estou esperando você dizer, a qualquer momento, 'Seja bem-vindo a Nárnia'.
— Sinto muito te desapontar, mas essa passagem secreta eu ainda não encontrei. Não duvido que ela exista, no entanto, então vou continuar procurando.
Nos separamos com olhares cansados e cabelos bagunçados, mas com sorrisos bem abertos em nossos rostos.


*


Estávamos de volta a nossa casa, em New York, depois de dias muito bons no feriado de Ano Novo.
Fizemos planos de parar em Harvard, e eu. Vimos o mapa do campus, calculamos as distâncias e achamos alguns lugares em que poderíamos nos encontrar de forma que nenhum tivesse que se locomover muito a mais que o outro.
Era loucura. Planos, para o futuro, com outra pessoa.
Além de pânico, a sensação era de empolgação. E ansiedade. Nós ainda estaríamos juntos? E por que não estaríamos? E como seria, se estivéssemos? Incrível, claro.
Passamos dias na casa de Becky, com Eve, Rapha e Phill, sendo que todos os nossos outros amigos ainda estavam viajando.
Estava tudo bom demais, com aquela sensação de surrealidade ainda pairando sobre mim.
Eu devia ter suspeitado.
apareceu em casa naquela noite, ainda a tempo para a pizza. Caseira, feita por Richard e Donna, os meus mais novos chefes de cozinha favoritos. Aimée e eu só cortávamos as coisas, surpresas demais para fazer qualquer tipo de comentário. Meu pai até nos beijou no topo de nossas cabeças, com um olhar tão feliz e agradecido que aqueceu o meu peito de um jeito que ele nunca mais voltaria a sua temperatura normal.
Assistimos alguns episódios da era David Tennant de Doctor Who - com a desculpa de que Aimée precisava assistir aquilo - antes do meu celular começar a tocar.
— Hm, esse toque é da . - e estiquei até onde o celular estava carregando e atendi a ligação. - ?
A ligação era barulhenta e extremamente confusa.
, eu não tô te ouvindo. - falei mais alto, ciente de que ela devia estar me ouvindo ainda menos do que eu a ouvia.
Consegui distinguir um "..." baixo e trêmulo. Meu coração decidiu que era uma ótima hora para dar uma volta no meu estômago.
— O que foi, ?!
", eu preciso de ajuda", ela finalmente conseguiu dizer.
não estava bem. Percebi em sua voz que ela devia ter bebido demais. Provavelmente sem um único grão de comida no estômago.
— Ok. Você tá sozinha? Onde? - fui até a mesa de telefone, onde tinha sempre um bloco de anotações e uma caneta. — Certo. Logo menos eu estou aí. Fique bem.
Aimée e me olhavam preocupados. Eu devia estar lívida.
precisa de ajuda. - eu disse, quase como um papagaio de repetição.
— Eu vou com você. Eu te levo de carro, você não vai dirigir assim. Ok?
— Ok.
Entreguei o endereço para e deixei ele se virar com o GPS. Só me concentrei em não apressá-lo.
Chegamos no endereço em vinte minutos que pareceram uma hora. estava na varanda da casa, onde, aparentemente, ainda rolava uma festa.
— Foram embora sem você? - já perguntei assim que ela me viu.
abaixou a cabeça, como se o ato de mantê-la erguida exigisse uma energia que ela não tinha.
— Não, eu vim sozinha...
Ela falava mole e se movia de forma mole. O sangue corria como uma bomba pelas minhas veias, martelando contra minha pele.
, você tá... Verde.
— Eu não comi. - ela riu, lentamente.
Eu sabia. Porém, algo estava errado. Algo além de tudo aquilo. Por que ela estava ali, daquele jeito?
... O que aconteceu?
— Eu não posso... A gente já tentou namorar... Não deu certo! Mas ele pediu e eu quis aceitar, mas não aceitei porque eu não posso! Eu venci a aposta, você beijou o , eu não tenho que namorar com o !
— Céus, ! - eu a segurava com dificuldade, ela parecia estar fazendo o meu trabalho mais difícil de propósito. — Você não tá dizendo nada com nada. Vamos te levar pra casa, onde você vai tomar um banho e comer. ? Me ajuda aqui?
Ele estava parado a alguns passos de nós, mas se apressou a voltar a andar para me ajudar a levar até seu carro.
É claro que ela vomitou dentro do carro.
— Desculpa, mesmo. - disse, encarando a expressão de como infelicidade por ter seu carro banhado em vômito. - Eu vou dentro da casa e pego um pano...
— Não precisa. - ele respondeu, me cortando.
Estranhei a frieza em seu tom. Ele sequer olhou para mim. E ele continuou assim por todo o caminho.
Tudo bem, quando se está dirigindo não é muito bom tirar os olhos da rua, mas...
— Posso deixar vocês na sua casa?
— Claro. Por favor.
me ajudou a levar até o corredor, onde, do nada, ele decidiu soltá-la e voltar para a porta de entrada.
? - terminei de sentar ali, encostando-a na parede, antes de me virar para ele.
Ele continuou andando, então o segui.
parou nas escadas e se virou para mim.
— Vocês fizeram uma aposta? E sobre mim? - ele perguntou, firme.
— O quê?
Eu nunca imaginei essa pergunta vindo. Muito menos naquela situação.
disse que ela venceu a aposta porque você me beijou. Vocês fizeram uma aposta que me envolvia? Vocês apostaram algo comigo?
Do que ele estava falando? está BÊBADA, DESNUTRIDA e QUASE MORRENDO.
... - meu tom era de surpresa, mas uma surpresa negativa.
Algo como "POR QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO DISSO, QUE NÃO É DE FORMA ALGUMA SEQUER RELEVANTE?"
— Eu não quero saber, eu só quero a resposta! Sim ou não?
Dessa vez ele me enervou. Seu tom de voz já estava oficialmente me incomodando.
! Sim! Mas foi uma idiotice, pura provocação de , nós nem... estava só...
— Com certeza foi! - ele disse, me interrompendo. - Isso eu sei. Pode ter certeza.
Ouvi choramingar dentro de casa, provavelmente de dor, enquanto ia para o seu carro. Ela precisava de cuidados, ou acabaria no hospital.
Esperei que ele olhasse para trás.
!
Ele se virou para mim, já com a porta do carro aberta.
— Você é muito egoísta.
A declaração foi como um soco no meu estômago. E ele ia dizer aquilo e ir embora? Simplesmente ir embora? Mais uma vez? Ou ele queria que eu fosse correndo atrás do carro dele, deixando a minha amiga, que estava quase morrendo, sozinha no corredor da minha casa?
Implorei para que ele não me deixasse naquela situação.
E assisti em completo choque o seu carro indo embora.
Dei banho em . Aimée me ajudou, preparando um mingau e outras coisas que conseguiria comer. Até mesmo Donna acordou e separou alguns remédios, me explicando quais eu teria que usar e quando.
ainda estava com uma cara péssima, mas pelo menos estava na minha cama, e conseguindo comer.
— Hey, só mais uma colher, aí você pode dormir...
... Eu estraguei tudo, não estraguei? - ela suspirou, parecendo mais triste do que eu me sentia.
— Do que você tá falando, ? - ela provavelmente falava de , mas ri de qualquer jeito, agradecendo que os olhos dela mal conseguiam se manter abertos e secando as lágrimas que teimavam em se formar nos meus olhos. - Vai, agora deita, você precisa de uma noite de sono tranquila.
Ela me obedeceu e dormiu em menos de um minuto.
Eu demorei um pouco mais.
Quando as aulas voltaram, eu não devia ter ficado surpresa, mas, como sou idiota, fiquei. não apareceu, nem .
De primeira, eu não tive reação.
Meus amigos olhavam para mim e sabiam que havia algo errado, mas não arriscavam perguntar o que era. Não porque a minha cara indicasse que algo estava errado, mas porque eles eram meus amigos e sabiam me ler muito bem. Isso e a ausência gritante de . Talvez tivesse contado, se ela lembrasse de algo. O que não era o caso.
Pelo menos uma coisa boa, porque era só o que me faltava: uma amiga se culpando por algo que não era culpa dela. Ela e estavam dando um tempo, também, mas ele não parecia chateado, e eles continuavam se falando.
Ela precisava pensar e ele foi compreensivo.
Um conceito chocante, aparentemente.
Uma hora eles se acertariam e namorariam oficialmente. Ou não. De qualquer jeito, seria pacífico.
Nada como dizer que ela era egoísta e ir embora para sempre.
Depois de uma semana, eu reuni todas as nossas lembranças. Talvez ele ainda aparecesse, mas decidi que não faria diferença. Meu peito dizia que não faria diferença. O que era bom, mas um tanto triste. Acho que depois de tantos erros, aquele último não tivera tanto efeito. Juntei as fotos da câmera instantânea e as fotos do celular. Imprimi todas e apaguei-as em seguida. Salvei os vídeos em um pendrive e, depois, esparramei todas as lembranças pela cama. Até mesmo a máscara do Ano Novo.
Eu senti, apesar de tudo, que ele era pra sempre. Por uma fração de tempo, eu consegui nos imaginar em Harvard - a linguista e o engenheiro.
Se eu removesse todos os mal-entendidos, as memórias que sobravam eram boas demais para serem superadas.
E, ainda assim, não dera certo.
Ao contrário, dera errado em cada ponto possível. Sem a ajuda de ninguém.
De novo e de novo, sempre tinha algo para dar errado.
Nós éramos auto-destrutivos.
Eu não queria usar isso de desculpa para ser pessimista, mas precisava entender. Precisava aceitar que nada era perfeito.
E eu precisava aprender com isso. E ser mais forte.
Olhei ao meu redor, vendo todas as fotos espalhadas pela minha cama. Olhei para o bloco de folhas no meu colo e a caneta tinteiro na minha mão.

Eu não quero mudar nada com essa carta, .
Eu não vou escrever diversas cartas até desistir, .
A primeira coisa que eu escrever vai ser a verdadeira, , e é essa que eu quero que você leia.
Não precisa ler imediatamente, . Eu disse que ia ser sincera: a carta não é pra você. Quer dizer, é pra você, mas não é por você. Se você não ler agora, tudo bem, porque eu já escrevi. Eu já disse o que tinha pra dizer. Eu sei que você não está ligando pra isso, mas, bem, olha só, eu ligo. Afinal, sou eu. Esse sim é um ato egoísta, e não aqueles dos quais você me acusou, sejam eles quais forem. E não me importo em ser egoísta com isso. Acho que ganhei um tanto de amor próprio nos últimos tempos.
Então vamos lá.
Obrigada por tudo, .

Foi um ótimo começo de despedida.
Depois de terminá-la, citando todas as coisas boas do nosso tempo juntos e desejar que ele tivesse um ótima vida - sem culpa pelo que acontecera entre nós -, coloquei tudo em um envelope e fiz um exercício de respiração antes de ir para o meu carro. Dirigi até e toquei a campainha diversas vezes antes de desistir.
Não esperava que estivesse ali, mas achei que talvez estivesse.
Não. Estava errada.
Então dirigi até a casa de .
Tia Kathy atendeu a campainha e chamou assim que me viu. Ela estava por perto, porque chegou em menos de cinco segundos.
, finalmente! Ninguém estava conseguindo falar com você o final de semana todo... Você... Você tá meio acabada, amiga. - ela riu. — Eu sei que dizer isso é horrível, e eu odeio quando fazem isso, mas você realmente precisa de uma escova de cabelo, urgentemente.
— Não tive tempo de pentear, para com isso. Eu só preciso de um favor. - eu disse, já em tom de desculpas.
Porque eu ia pedir uma coisa difícil.
E eu seria egoísta de fazê-lo, mas precisava ser feito.
— Tudo bem, mas vamos no meu quarto primeiro.
Subimos e ela me fez pentear o cabelo ao som de Madonna antes de ouvir o que eu precisava.
— Eu sei que você evita o e está certa em fazer isso, mas eu preciso que você fale com ele. - disse, sendo o mais direta possível para evitar mais chateamento e acabar com aquilo de uma vez.
, como sempre, me surpreendeu.
— Ok.
— Mesmo?
— Sim, . Qualquer coisa. O que você quer que eu fale?
— Peça o endereço de onde eles estão. Ele deve estar com o , com certeza.
— Só um minuto, tá? - ela começou a digitar e a conversa durou bons cinco minutos, nos quais ela acabou tendo que mandar áudios escondida de mim para eu não ouvi-la xingar . Então voltou para o quarto, sorrindo. - Aqui está.
Ela me entregou um papel com um endereço anotado.
Austrália.
, muito obrigada.
— Imagina, flor. — deu um beijo quase materno em minha testa e me abraçou. - Você está bem? Mesmo?
Tentei parecer encorajadora.
— Sim, pode ficar tranquila.
— Não vai falar com ninguém sobre isso?
Dei um sorriso fraco, momentaneamente feliz por ter pessoas que se importavam tanto comigo.
— Eventualmente. Prometo.
— Ok então. Se cuida.
Depois passei na empresa que meu pai tinha um escritório, onde já me conheciam e seria mais fácil eu conseguir o que queria. O que eu queria? Mandar uma correspondência.
Saí do prédio e olhei para a rua, sem pressa. O que faria, agora?
Peguei o celular.
Abri a agenda.
Fui até o N.
Nate.
Mandei uma mensagem. Eu precisava, de verdade, jogar conversa fora.


*


voltou da recepção com um envelope nas mãos.
— Correspondência, já? — perguntei, meio que rindo, achando que era alguma propaganda. — Mal faz uma semana...
— Sim! Não faço ideia, não conheço o endereço e está no nome de uma empresa...
Estava distraído com os canais da TV, só voltei a olhar para quando ele deixou um "Ah..." escapar.
— O quê?
Ele pareceu estar batalhando internamente.
— Tenho que te dar isso, cara. Desculpa, mas eu devo uma pra ela.
tirou outro envelope de dentro do envelope e estendeu-o para mim.
Não.
— Não.
— Cara, só pega. Enfia no lixo, se quiser, mas pega. Sei lá, talvez... Guarde, sabe? Só guarde. Um dia você abre.
Quis xingá-la. Encher a boca para falar todos os palavrões existentes no mundo. Não pude.
— Por quê, ? Pra quê? Eu não quero saber de , nunca mais. Não agora, muito menos depois.
— Então o que isso pode mudar, certo? Nada, né? Talvez faça você odiar ainda mais a vadia egoísta.
Foi como uma leve picada no meu peito. Incômoda, ardida, mas eu já era grandinho o suficiente para deixar passar.
Tentei não me sentir mal por isso. Não devia nada à ela.
Mas ela também não merecia ser tratada assim.
Acabei me rendendo.
— Não exagera, . Só... egoísta.
Isso o fez levantar e jogar o envelope no meu colo.
— Então aceita o que ela enviou, oras.
E foi para o banheiro.
Não permanecemos juntos por muito tempo, o envelope e eu. Era como se ele estivesse congelando minhas pernas. Levantei num pulo, abri um compartimento que nunca pensei que usaria naquela mala e enfiei o envelope dentro.
Ainda não parecia certo.
Mas o que seria certo?
Relaxar e aproveitar a Austrália.
Isso era tudo o que eu ia fazer e pensar sobre.
Nada de e envelopes.


Capítulo 44 — I take the blows like a champion, but I get nothing at all.

(For You — Demi Lovato)

O semestre passou como louco. Provas, trabalhos, entrevistas... O sentimento era de fim. Acabou. Não era mais "está acabando", ao menos não para mim. Depois do Baile de Inverno, tudo na Ferdinand era repleto de um sentimento completo de fim.
não voltou para as aulas. voltou, mas ele manteve a sua distância. Nos cumprimentava, talvez trocasse até meia dúzia de palavras com , mas era isso. Seus pais estavam separados oficialmente e ele agora morava com a mãe, que se mudara para um lugar razoavelmente próximo de onde ele morara com . e continuaram ali. e mantiveram o papel de casal mais maravilhoso da Ferdinand, e com honra.
e deram um tempo depois que ela deu um fora nele e foi encher a cara de estômago vazio. Ela me explicou o quão insegura se sentiu quando ele, enfim, a pediu em namoro, por causa dos problemas que eles tiveram da primeira vez que namoraram. fora muito ciumento diversas vezes e não conseguia viver com aquilo. Eu consegui imaginar perfeitamente, era aquela pessoa que raramente dava satisfação até para os próprios pais. O medo de ver tudo se repetir a fez dispensá-lo, só que aí ela se arrependeu.
Eles conversaram e ficou bem menos chateado com o fora quando ouviu o lado dela. Então eles concordaram em manter a amizade. Cada dia era um dia a menos para eles, enfim, namorarem.
E se algum deles tinham notícias de , ninguém me dizia. No começo, eu queria perguntar. Como, raios, aquele louco ia conseguir se formar? Porque, é, uma vez , sempre , e o que me preocupava mesmo era a formação educacional das pessoas. Não era nem como se ele precisasse se formar, tendo o sobrenome que tinha. Seu pai jamais negaria um lugar na sua empresa multibilionária.
Depois de um tempo, eu deixei quieto. Ele não se prejudicaria só para manter sua distância de mim, eu tinha certeza que ele achara um jeito mais flexível que trocar de escola ou algo do tipo.
Eu namorei Nate, por alguns meses. É, eu sei... Parece horrível, mas eu prometo que não o usei. Primeiro eu abri meu coração para as amizades e eles me consolaram com muita pipoca de vários sabores e maratonas sem fim dos meus filmes e séries favoritos. Enquanto isso, Nate e eu continuamos jogando conversa fora por um bom tempo, até que ele começou a me chamar para os seus shows.
Nos encontramos em alguns deles antes dele me beijar a primeira vez. E eu deixei. Estava em paz com , fizera a minha parte e respeitava a escolha dele. Por mais que não fizesse sentido. Também estava cansada de ir atrás dele. Ele devia ter suas coisas para lidar, e eu não consegui ajudá-lo por mais que quisesse.
Nate veio para evitar que eu sentisse a sua falta, mas eu estava me virando bem sozinha. "Sozinha" sendo amiga das melhores pessoas do mundo? Difícil. Eu não ia usar outra pessoa para esquecer , era uma coisa horrível para se fazer. Nate perguntou o que acontecera com o garoto que estava sempre no meu pé, e eu expliquei.
Ele entendeu.
Ainda assim, "namoramos" por um tempo.
Então Nate saiu em turnê com a sua banda pela costa dos EUA e continuamos amigos. Ele tentou dizer que podíamos namorar à distância, mas eu sabia que seria ilusão. Abençoei a turnê dele e disse que sempre que ele quisesse jogar conversa fora...
Agora, a única coisa que me preocupava era o discurso de oradora da turma.
Claro, vocês acharam que iam dar essa tarefa pra quem, não é mesmo? A única louca dentre os alunos com as melhores notas da Ferdinand que ia estudar linguística, por favor! Eu ainda tentei empurrar para Raphael, mas ele não me deu chance nenhuma.
Afinal, eu era a maldita Rainha do Baile de Inverno, também.
Ótimo. Esse é realmente um ótimo estado de espírito para se fazer um discurso de oradora de turma, .
Primeiro bufei, depois suspirei. E, enfim, fui até a última gaveta da minha enorme escrivaninha. Eu tinha um caderno por ali com algumas das frases mais inspiradoras. Alguma coisa ia ter que servir. Devia haver algo que eu quisesse dizer para a turma que não fosse "Sejam vadias frívolas e vocês serão mais felizes", não é? Espero que sim.
Sentei ali mesmo, no chão, e puxei o caderno de couro, sentindo o cheiro de velhice dele. Ainda amava esses perfumes, meu coração começou a bater mais leve só de senti-lo. Talvez ainda houvesse salvação para mim. Sorri com escárnio e me pus a procurar alguma coisa com que eu pudesse trabalhar. As palavras saltaram aos meus olhos logo na primeira página. Li, reli e li de novo.
Eu era um gênio. Agora, no presente momento, não tinha tanta certeza, mas quando eu fiz aquele caderno eu certamente era um gênio. As palavras fizeram um bolo na minha garganta e eu mordi a língua tentando não chorar. É claro que não foi muito eficiente, mas estava feito. Como tudo que ficara no passado.
Eu estava deitada no chão do quarto, com um caderno e uma caneta, rabiscando furiosamente algo que viria a ser um discurso de conclusão perfeito.
Alguma coisa eu faria direito.

Eu esperava suar frio. Tremer até o último fio de cabelo e mal conseguir ficar em pé. Porém, por mais incrível que pareça, eu estava radiante.
No gramado da Ferdinand, pais e outros familiares me cumprimentavam. Os filhos, meus colegas de ano, me apresentavam como oradora da turma, e meu coração parecia que ia rasgar meu peito. E eu conversava com todos, de um em um, sem um único tropeço. Jamais estivera tão confiante na vida, sem dúvidas.
Aquele era o início de uma nova era para . E eu sorria, feliz.
Encontrei minha família na fileira mais próxima do palco, sem ser as que estavam reservadas para os alunos, e até minha irmã estava com os olhos marejados. Aimée buscava fortemente disfarçar aquilo, mas ela não me enganava mais. Meus pais estavam abraçados de lado, sussurrando um para o outro.
— Obrigada por virem. O apoio de vocês tem sido meu maior e mais forte pilar nesses últimos meses. - eu mal terminei de falar e os três já me abraçavam. — Vão perder seus lugares!
Eles voltaram para os bancos brancos num piscar de olhos. Gargalhei, sendo seguida por minha família. Minha família.
— Seus avós estão vendo as flores do bosque e seus tios estão vindo... - mamãe começou a explicar, mas papai a cortou gentilmente.
— Querida. , o prazer é todo nosso de estar aqui. Você nos orgulha muito, pequena. E não faça essa cara, você vai ser sempre nossa pequena. Vocês duas!
Aimée e eu fizemos a mesma careta e rimos ao perceber. Trocamos um high five e ela veio me abraçar de novo, parecendo tentar passar toda a sua força para mim.
— Boa sorte, . Eu sei que você não vai precisar, mas, sabe como é. Quebre a perna! - ela mostrou a língua e recebeu um cascudo carinhoso na cabeça.
— Eu estou bem, relaxem. E preparem-se para um discurso e tanto. - pisquei.
Donna só faltou desmaiar.
— Humilde como a mãe! - ela comentou, tendo humor e sendo sarcástica para a surpresa de suas, ainda não acostumadas, filhas.
Os funcionários da Ferdinand começaram a chamar os alunos para suas cadeiras.
— E agora temos a honra de chamar ao palco a oradora da turma de formandos da Ferdinand High School, escolhida pelo ótimo desempenho e pelos próprios colegas de ano, !
Aplausos. Uma salva deles. Respirei fundo e me ergui, o sorriso no rosto sem esforço algum. Era natural. Subi até o diretor e ele fez uma breve reverência para eu assumir seu posto. Agradeci, me ajeitei no palanque e finalmente encarei meus colegas de turma. As palmas cessaram e eu dirigi o olhar do último aluno até o microfone na minha frente. Nada de , mas meu sorriso permaneceu intacto.
— Eu ainda não sei como agradecer a honra de estar aqui, hoje, sendo a responsável por dizer algo que faça diferença nos próximos anos da vida de cada um de nós e que represente o encerramento desses anos na Ferndinand. Mas eu também estou grata pela oportunidade, não apenas pela honra. Acontece que nessa última semana eu descobri exatamente o que tinha para dizer, e que vai ser muito importante para todos nós. - dei um risinho e fui acompanhada pela multidão. Estavam sendo gentis, porque eu não havia dito nada, mas não era hora de avaliar os outros e a mim tão cruamente. — Esses últimos meses não foram exatamente os melhores de nossas vidas. Também, como conseguir aproveitar com tanta preocupação acerca do futuro rondando nossas mentes? Foi impossível. E eu sei que falo por todos quando digo que, às vezes, em meio a essa loucura, esquecemos de nos preocupar com o nosso presente.
Alguns acenos de concordância, algumas risadas, e meu discurso continuava.
— Então eu trouxe algo que eu gostaria muito de ver todas essas pessoas incríveis que estão presentes aqui hoje usarem para o resto de suas vidas. É uma lição importantíssima para qualquer um de nós, mas, hoje, eu dedico ela totalmente aos formandos da Ferdinand. Quando eu estava sem inspiração, com a cabeça quase explodindo de tanta preocupação, esperando o resultado dos exames e todo o resto... Eu achei um caderno antigo meu, que logo na primeira página continha o trecho de um provérbio chinês. E eu lembrei de toda a história, e ela é a seguinte: Um dia, desolado, um rapaz vai procurar a ajuda de um sábio, desejando saber se a garota que ele namora é a mulher certa para si. Ele gostava dela, mas não tinha certeza... Com tanta mulher no mundo, como ele ia saber se não existia alguém melhor para ele? O sábio, depois de tantas perguntas, apenas respondia "Ame-a", e quando percebeu que o rapaz não havia entendido, ele explicou. "Meu filho," ele disse, "amar é uma decisão, não um sentimento. Amar é dedicação. Amar é um verbo e o fruto dessa ação é o amor. O amor é um exercício de jardinagem. Arranque o que faz mal, prepare o terreno, semeie, seja paciente, regue e cuide. Esteja preparado porque haverá pragas, secas ou excesso de chuvas, mas nem por isso abandone o seu jardim. Ame, ou seja, aceite, valorize, respeite, dê afeto, ternura, admire e compreenda. Só ame! A vida sem amor não tem sentido."
Ouvi alguns soluços e a salva de palmas voltou. Pedi silêncio com um aceno de mão, ainda sorrindo.
— E agora chegamos a parte mais importante, aquela que eu espero que todos entendam e carreguem consigo para toda a vida. Não importa a profissão que sigamos, existe uma profissão acima de todas. A de sermos humanos. A profissão de amar ao outro e a si mesmo. A inteligência sem amor nos faz perversos. A justiça sem amor nos faz implacáveis. A diplomacia sem amor nos faz hipócritas. O êxito sem amor nos faz arrogantes. A riqueza sem amor nos faz avarentos. A docilidade sem amor nos faz servis. A pobreza sem amor nos faz orgulhosos. A beleza sem amor nos faz ridículos. A autoridade sem amor nos faz tiranos. O trabalho sem amor nos faz escravos. A simplicidade sem amor nos deprecia. A vida sem amor não faz sentido.
E, dessa vez, as palmas conseguiram ser mais altas ainda.
— Eu podia continuar falando aqui por muito tempo, mas eu acredito na capacidade de vocês de entenderem o que eu disse agora sem eu ter que ficar repetindo com outras palavras. Não importa o que venha por aí, vamos encarar tudo com muito amor, sim? Se o ser humano tem uma benção, essa benção é a empatia. Usem-na.
As entregas de diploma começaram, comigo. Fiquei ao lado dos professores depois de ser aplaudida, beijada e abraçada por cada um deles (sim, até mesmo Marcell!), sendo cumprimentada também pelos alunos que vieram depois. Essas palmas só se cessaram quando o diretor chamou o próximo aluno, e, é claro, para recomeçarem em seguida.
Quando todos haviam recebido seus canudos, voltei para o microfone com o diretor. Ele nos parabenizou e eu coloquei a mão no capelo.
— No três, galera! Um, dois... PARABÉNS, RECÉM FORMANDOS DA FERDINAND! TRÊS!
Capelos de formatura encheram o céu azul daquela manhã e o resto você pode imaginar.


FIM



Nota da Autora: (01/06/2016) Primeiro de tudo – NÃO MATEM A AUTORA! HAHAHAHAHAHAHAHHA Isto é, EUZINHA MESMA! Depois desses capítulos, eu sei que tenho que pedir isso. Lembrem que autora também sofre e etc. Mas HBLF chegou onde estava destinada a chegar. Acreditem. Eu tentei ser o mais realista possível com a história, e fiel aos personagens. Eu sempre quis mostrar algumas coisas com essa história, e espero que tenha conseguido <3
O amor por essa personagem é uma coisa que não tem limites, espero que vocês se sintam assim também <3 Ela <3 no <3 epílogo <3 Vocês não perdem por esperar! (hah, sempre quis dizer isso, tonta). As histórias têm mania de mostrar uma personagem morrendo porque o amor foi embora ou sei lá o que, não acho isso saudável. Nossa pp levou tudo como uma campeã. Pode ficar triste, sim, não pode parar de viver não.

E o canadense foi pra Austrália virar gente grande, quem sabe ele não volta mais evoluído HAHAHAH.
Eu esperei muito pra escrever esse epílogo, eu tenho ele programado há ANOS. FOI MUITO BOM FINALMENTE ESCREVEEEEEEER!
Enfim. Nem vou me despedir porque (NÃO ESTOU PRONTA) (ODEIO DESPEDIDAS) (NÃO TENHO ESTRUTURAS) vai ter o epílogo em breve então deixa o xororô pra quando o epílogo acabar. Esse final aqui é o fim da era e tal. É esquisito que eu trate HBLF como uma era, mas, enfim, sdjhfgkdhfgksjfgks eu dediquei um bocadin de tempo pra escrever, né? Foi bem uma era pra mim. Um ano e meio de ensino médio, dois anos de cursinho e quase três anos de faculdade escrevendo ela. Postando foi um pouco menos, mas ainda bastante tempo... AS LEITORAS DAS ANTIGAS QUE O DIGAM NÉ, QUERIDAS! Quem leu só pelo wattpad mal sabe como deu sorte sfhdgkfjdhgsk

Espero todo mundo de mente aberta pra ler esse epílogo, ok. Sexo, drogas e rock'n roll. HSHJGSKSHKFS MENTIRA, mas teremos personagens bem desbocadas e seguras. Aliás, mantenho HBLF de nome? Ou mando um His Ex-Best "Lesbian" Friend? HAUHAUAHUAHUAHUA GENTE, SOU MUITO CÔMICA NÉ AINDA MAIS QUANDO DEPRIMIDA

Já disse que odeio despedidas? Não me deixem ok E DIGAM SE PREFEREM COM OU SEM EX- HDSGKFSJHKGFSD (mentira, gente, vai ter só um Epílogo de extra no nome ok)

Beijos amo vocês <3

Me amem

Amem a pp

Sem ódio

Vamo achar uma editora pra publicar isso aqui, risos (Sério, estou reescrevendo a história, mudando algumas coisas - trazendo pro Brasil, por exemplo - pra tentar publicar. Prometo manter vocês atualizados!)

ALGUMAS CURIOSIDADES:

1. Eu realmente queria que o Phill não fosse gay. Eu queria MUITO que ele fosse bi, eu daria a minha vida pra ele ser bi, o meu OTP supremo é Phill e Roxie HJGKSJHFGSKHSK

2. Roxie e Becky também, se a Becky não fosse uma mãe pra Roxie <3

3. Eu não conseguiria, jamais, fazer o Dylan se transformar da noite pro dia e acabar com um "felizes para sempre", e sinto muito por isso. Mesmo. Eu tentei, mas o moço tem muitos problemas pra resolver antes disso, e eu cansei de ver a Roxie sendo feita de boba HDGSHGSJHFKS

4. A Anne, minha amiga (da faculdade/autora/leitora de umas histórias minhas que nem Deus conhece HGSJHGSKF) shippou Izzy e Roxie. MAIS ALGUÉM AQUI TÁ COM ELA? SGFSDFHGSKHGKFS (eu achei realmente maravilhoso, ponto pra Anne!)

5. Eu quero muito saber o que vocês acharam. De tudo. Eu sei que a gente sempre torce pro casal acabar juntinhos, mas, sinceramente, tentando colocar a dorzinha de lado, o que vocês entenderam dessa loucura toda que é essa história?

6. Amo você, muito obrigada por tudo <3 E tô sempre aqui, pro que precisar, não me abandonem que eu jamais abandono vocês *drama* HJGDSSKDSGF

xoxo,

Roberta Cintra, aka Rooxy

<3

Nota da autora - FIXA: VAI TER EPÍLOGO! (repete mil vezes) GDKHJGSKFS O grupo do facebook é essa maravilha aqui: Link , e todo mundo é bem vindo <3 pra me cobrar mais eficientemente, tem sempre meu twitter @rooxynroll :) (que, aliás, se decidir seguir, avise-me que és leitora que eu te seguireis de volta GKJHFGKSDHFGSK aff calei). Também estou revisando a história e postando ela no wattpad, ou seja, sem interação. Quem quiser dar uma olhada ou mesmo só apoiar dando umas estrelinhas e visualizações, divirta-se aqui, e eu vou te amar pra sempre. Comentem comigo <3 tudo <3 o que quiserem <3 Que eu ainda não tô pronta pra me despedir de HBLF não HAHAHAHAH beijinhos, rooxy!

Outras histórias:
We Say Summer (/fanfics/w/wesaysummer.html) - LongFic/Andamento
Unintended (/challeges/unintended.html) - ShortFic/Finalizada

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