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His Best "Lesbian" Friend





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Capítulo 19 — And she aches just like a woman, but she breaks just like a little girl.
(Just Like A Woman — Bob Dylan)
Naquela noite, justo a noite que eu precisava descansar, eu sonhei. E não sei vocês, mas, sempre que sonho, eu acordo um lixo.
Pois bem, com esse sonho foi um pouco pior.
Estava tudo escuro, exceto por alguns pontos luminosos bem longe de mim... No teto? Eu estava deitada. Era uma cama. Uma cama muito macia, por sinal. E o teto parecia o céu, na verdade. Ah, ótimo. Esse era um dos motivos pelos quais eu odiava sonhar, meus sonhos eram sempre repletos de coisas sem sentido como aquilo. Eu podia escrever bem, mas meu inconsciente era um péssimo roteirista de sonhos. Ou fazia isso para me provocar.
Comecei a ouvir um barulho calmo, repetitivo... Ondas. Ondas do mar. Tentei me levantar, mas estava presa, meus pulsos estavam... Algemados na cama. Genial, sonho. Contorci o corpo para tentar ver algo e encontrei o que temia: a beira de uma praia. Quis rir, "Mas que ótimo, uma cama no meio de uma praia, parece plausível, sonho". Sim, eu era sempre assim nos sonhos, queria mudar tudo. Ridículo, eu sei, e a única coisa que eu preferia guardar pra mim. Ia ser definitivamente considerada louca se dissesse que tentava mudar o roteiro dos meus sonhos enquanto sonhava. E então, uma risada me tirou daquele estresse.
- Não lhe agrada a vista, meu amor?
Era ele. se aproximou da lateral da cama, me observando atentamente dos pés a cabeça, como sempre fazia. Ele vestia somente uma calça larga, deixando todo o seu peitoral exposto, e os ombros... Torci as pernas só de olhar, extraindo outra risada dele.
- Prefiro você assim, sabia?
- Algemada, ? Pra quê, pra eu não te bater?
- Me bater, pequena? Por que você faria isso? E, bem, também, mas eu estava me referindo ao seu pijama.
Fui levada a olhar o que vestia, e, para o meu completo espanto, era uma camisola. Uma camisola transparente. Transparente!
Tentei cobrir meus seios, esquecendo que estava algemada, e terminei apenas bufando.
- Eu realmente quero te bater, .
- Eu quero te dizer que o tom como você fala funciona ainda melhor que sua camisola transparente e as algemas, . Apesar de eu ter adorado sua escolha.
- Você... Minha o quê? Eu não fiz isso! - gritei, frustrada por não conseguir me soltar e por continuar tentando involuntariamente.
- Você vai se machucar assim, linda. E é claro que você fez. É o seu sonho, gostosa.
- Não! Não me chame de...
- É o que você quer, . Aceite. Você quer me ouvir dizer isso. Você quer que eu te ache gostosa. É estranho, não é? Logo você, a garota intelectual e autossuficiente, precisando ouvir isso de mim. Gostosa. - ele frisou, fazendo meu sangue borbulhar de vez.
Mas, dessa vez, eu não falei nada. Aquilo era trabalho do meu inconsciente maldito, e não meu. Resolvi mudar a estratégia. Porque eu faço isso nos sonhos.
Sim. Eu já passei por psicólogos, mas achei-os realmente inúteis para o meu caso. Eu só tenho uma imaginação que não me ajuda. E uma roteirista de sonhos incansável.
- Quero mesmo, é?
- Quer. Você sabe que não tem ninguém que olhe essas suas coxas e não sinta vontade de apertá-las, mas mesmo assim precisa ouvir isso. De mim.
- Só de você, é?
- Só de mim.
Eu gargalhei. Ele se aproximou, ficando de quatro sobre mim.
- O que foi?
- Prepotente.
- Você que é, não consegue assumir pra si mesma que deseja a minha aceitação em tudo, até nisso... - ele desceu, passando a alisar minhas pernas até... - E essa bunda, ? Vai dizer que você corre só pra relaxar, né? Não tem nada a ver com manter essa firmeza deliciosa que a sua b...
- Chega! - explodi. - Me solta, !
- Ah, mas o jeito que você diz isso fala completamente o contrário, pequena. Me solta é, na verdade, me agarra. E seu pedido é uma ordem, mademoiselle.
Ótimo, francês. Aquilo era definitivamente um pesadelo, daqui a pouco estaria recitando um poema alemão. Pornô alemão. Provavelmente o lugar de onde meu inconsciente havia tirado o lance das algemas. Meu poeta alemão favorito tinha que ter escrito algumas pornografias nos seus poemas, não é mesmo? Soltei um grito quando percebi que algo molhado escorregava pela minha coxa. Levantei a cabeça para ver e encontrei e sua língua se divertindo pela extensão da minha perna esquerda... Merda, era bom. Merda, era um sonho. Eu já podia acordar, antes que algo pior acontecesse. As mãos do do sonho atravessavam meu corpo com maestria, acariciando cada pedaço dele. Eu já não reclamava, apenas gemia baixo sem conseguir controlar, com os olhos fechados. De repente ele subiu, deixando as mãos em meus seios e acariciando-os. Sua boca parou no pé do meu ouvido.
- O que você quer que eu faça agora, meu amor?
- Pare de me chamar assim e tire essa merda de pano entre você e mim.
Ele riu.
- Eu só te chamo assim porque é o que você quer ouvi, porém... Sim, senhorita . Mas qual pano?
- TODOS! - me exaltei sem perceber, e tossi em seguida, tentando disfarçar. - Todos. - repeti.
Ele já ria, tirando a camisola devagar enquanto beijava o que ia descobrindo. passou aquele inferno inútil pela minha cabeça e empurrou para as algemas, evitando que a peça ficasse caindo nos meus olhos, e então colocou sua total concentração nos meus seios. O que era aquilo? Como eu queria mais, mais! Mais o quê? Ele lambia, sugava e acariciava cada pedaço daquela área tão sensível, arrancando gemidos mais altos de mim. Então sua mão deslizou para minha calcinha, e logo ela não estava mais ali.
se afastou e desceu seu olhar pelo meu corpo com um sorriso absurdamente... De tirar o fôlego. E então ele estava em pé, tirando sua própria roupa. Eu devia sentir vergonha, muita vergonha, do que mostrava e do que eu via. Porém, eu só sentia uma coisa.
Necessidade. E essa necessidade era dele.
Do de verdade.
Ele voltou a ficar sobre mim, sem relar qualquer parte dos nossos corpos nus.
- O que você quer agora, ?
Respondi sem pensar duas vezes.
- Você.
Essa parte é engraçada, já que eu não faço ideia de como "isso" deve ser, e nem o meu inconsciente louco. Mas os livros diziam que era bom, os filmes mostravam todos aquele gemidos e contorções. Então, foi uma imitação criativa de tudo aquilo. Eu era criativa. E eu gemia, mordendo o lábio para não escapar mais do que aquilo. O fato é que eu queria mais, mas queria de verdade... Não em um sonho. O que me excitava era imaginar aquilo acontecer de verdade.
Eu devia estar me contorcendo na minha cama na vida real.
- E se for verdade, ? - me encarou, com seus olhos brilhando mais que o normal.
Pensei por alguns segundos.
- Então você devia me soltar, pra eu ficar por cima.
Ele riu, aquela risada gostosa que fazia meu estomago se contorcer.
- O sonho é seu, . É só você se soltar.
- Mas eu não consigo!!!!
- Você não conseguiu porque não era o que você queria. Tente agora.
Puxei minhas mãos e elas vieram, sem algemas ou marcas do esforço que eu havia feito. Sim, era um sonho. Não era realidade.
A culpa era minha. Eu devia ter dito que gostava dele de um jeito que não era normal, que eu não o beijava pensando em Romeu ou Julieta, que eu queria que aquela peça se explodisse! Eu só queria estar com ele. Por que não podia dizer? Por que tinha que ser tão insegura? Uma criança, era isso que eu estava sendo. E ele, o do sonho, segurava minha cintura, delirava com meus movimentos, gemia meu nome. Eu queria aquilo, de verdade. E eu jamais havia sentido aquilo. se curvou, buscando minha boca, e eu o beijei, sentindo que devíamos estar próximos de...
Pisquei. Uma, duas, três vezes. Quatro. Aquele era o teto do meu quarto. Sem estrelas. Amaldiçoei tudo que podia enquanto tateava pelo relógio de cabeceira. Cinco da manhã. Eu ainda tinha uma hora de sono. Sim, isso era a cara do meu inconsciente, me fazer ter um sonho daqueles e me acordar numa hora daquelas. Mas o mais frustrante é que nem nos sonhos eu era mais virgem. Aquilo nunca havia me incomodado até então, ser virgem. devia saber vários truques e posições, enquanto eu tinha no máximo alguns poemas alemães. Precisava resolver isso. Um livro erótico, talvez. Nunca havia visto um, mas podia ser uma boa ideia. E eu devia começar a frequentar mais o depilador da minha mãe, ela sempre insistia para eu ir e eu sempre pegava um barbeador ou uma cera barata de farmácia.
Oh, isso é a minha cara. Como quando eu ia completar 16 anos e comecei a ler livros de direção, em vez de perguntar aos meus pais como era dirigir. Como se livros pudessem ensinar aquele tipo de coisa.
Claro que não era uma boa ideia perguntar para os meus pais nessa ocasião. "Hm, mãe, como que é transar? Como a senhora faz?"
Nada contra eles fazerem, mas eu não preciso de detalhes.
Regra número um, não dê detalhes demais para a . Eu mesma havia feito essa regra. E havia motivos pra isso, acreditem.
Peguei o celular e procurei alguma coisa pra ler, desistindo nos primeiros três contos, que eram de uma qualidade de escrita lamentável. Não ia dar, eu já havia tentado fazer aquilo, só conseguia ler romances de sexo crus, aqueles que retratavam - ou tentavam retratar - a realidade. Nada de descrições minuciosas e excitantes, apenas o bruto. Era mesmo uma ideia estúpida, não queria aprender com um livro. Não isso. Queria a experiência, com a pessoa por quem meu corpo clamava.
Do jeito que eu sou, e não como dizem que eu devo ser. Dane-se os depiladores, também.
E, pensando nisso, adormeci de novo.

"I want to break free from your lies, you're so self-satisfied I don't neeeeed yooooou... Uuaaaah. Hmm. Boa música."
Demorei alguns segundos pra eu perceber que era o meu despertador que tocava. Acontecia, às vezes. Eu só não podia deixar o mesmo toque por muito tempo, porque aí eu começava a não acordar. E, sempre que eu trocava, acontecia aquilo. Cantar e pensar "Música da hora, bom gosto" etc., antes de cair a ficha.
Saí da cama direto para o banheiro, dando de cara com o espelho e me vendo em minha fantasia clássica de zumbi. Olheiras fundas, cabelos bagunçados e marcados pelo prendedor usado para dormir enquanto ele ainda estava molhado e um rosto amassado. Definitivamente, linda. Prendi o cabelo direito, usando uma tiara para afastá-lo do rosto, e lavei-o com água gelada. Dentes escovados, uma maquiagem neutra pra disfarçar as olheiras e procurei algo pra vestir. Era um pouco mais que seis da manhã e o dia prometia sol, mas peguei uma meia calça apenas para levar na mochila, por garantia. Vesti uma saia azul petróleo que ia até o fim da coxa, com algumas pregas, e encaixei uma blusa creme do Bruce Springsteen por baixo, deixando-a folgada, um ombro descoberto. Soltei o cabelo e resolvi as marcas indesejadas com uma trança. Analisei o reflexo no espelho. "Melhor", pensei. Vesti o clássico All Star vermelho de cano médio e peguei os óculos de sol antes de deixar o quarto com uma bolsa vermelho creme... Também conhecido como rosa. Mas não era bem rosa, tinha um quê de vermelho nela. E eu tenho um problema sério com denominações de cores. Simplesmente enxergo muito mais do que existe.
Ha, e não é que isso dá uma boa metáfora pra minha vida?
Consegui tomar um café da manhã decente pela primeira vez na semana, com suco de laranja natural feito na hora e torradas com queijo fresco. Aimée se juntou a mim sem dizer nada, como sempre, e logo estávamos dentro do carro, indo para a Ferdinand. Ela se vestia sem muitas frescuras, parecia comigo na sua idade. Uma blusa com crochê, uma camisa branca com as mangas dobradas e uma calça, uma saia ou um shorts. Aimée era linda, com seus cachos loiros e a pele mais branca que a de . Suas bochechas estavam sempre com um tom vermelho, e eu sabia que aquilo não era blush. Ela não usava maquiagem. Eu já devo ter descrito minha irmã, mas eu notava essas coisas toda vez que estávamos sozinhas. Seu silêncio lembrava a mim mesma, e eu a respeitava, mas não podia deixar de desejar que ela falasse comigo. Era minha irmã ali, e o tanto que ela demonstrava ter em comum comigo me preocupava. Talvez ela precisasse de alguém como eu precisei e não tive, porém Aimée se recusava a falar comigo. Queria que ela pudesse confiar em mim, doía saber que ela provavelmente não me via desse modo.
Pat Benatar tocava no rádio e Aimée batia os dedos no próprio colo, no ritmo da música. Aquilo me fez sorrir, esquecendo um pouco das dores que sentia. Ela não precisava de mim para se virar, como eu não precisei de ninguém. Teria sido mais fácil, sim, mas se Aimée queria travar suas batalhas sozinha, ela iria se sair bem do mesmo jeito.
Antes que ela descesse do carro, segurei seu ombro.
- Você pode não gostar de mim, Aimée, mas eu sou muito orgulhosa de te ter como irmã. Talvez não importe pra você saber disso, mas importa pra mim.
Sorri enquanto ela franzia a testa em confusão e terminava de sair do carro sem tirar os olhos de mim. Ela fechou a porta, ainda me olhando, e fez um aceno pontuado com a cabeça, como se me dissesse que havia entendido, mas ela estava bem longe de poder responder aquilo. Esperei ela passar pelos portões e vi ao longe Aimée hesitar, ainda de costas, parecendo levantar a mão... Ela parou no caminho, negando com a cabeça, e voltando ao passo firme e acelerado de sempre. Fui para o estacionamento com algo diferente no peito. Estava preparada para um rolar de olhos, um suspiro indignado ou um xingamento. Aquilo era novo. Por um segundo imaginei que talvez fosse receber um aceno de longe. Sorri, imaginando que talvez os muros de Aimée ainda tivessem uma passagem secreta guardada para mim.

*

Ela entrou pelas portas do Middle School numa completa nuvem de confusão. Aimée estava tão acostumada a odiar a irmã que havia se esquecido de que a culpa não era dela. A culpa não era de que todos os seus colegas imbecis decidiam exaltar os alunos mais velhos, a culpa não era de se ela parecia tão interessante aos olhos dos mais novos. Ela lembrava, agora, que ela mesma costumava achar cada passo de incrível. Porém, ela era sua irmã mais nova, e isso era plausível. Aquela adoração da Ferdinand por que não era, aquilo era doentio. Então ela foi ficando rancorosa, até não lembrar mais de como sua irmã não tinha nada a ver com isso. E de como costumava ser boa com ela, a irmã mais nova e mirrada.
Na Holliang, ela era a irmã da nerd esquisita. Na Ferdinand, ela era a irmã da superstar incrível.
Aimée odiava ambos. Ela não queria ser a irmã de alguém, ela queria ser ela. O que ela era, além de "a irmã"?
- Não importa. - ela disse em voz alta, como se as árvores pudessem ouvir e fossem abraçá-la.
E estava lá, para realmente abraçá-la, mas Aimée estava preocupada demais descontando todo o seu ódio contido nela. A única pessoa que parecia se importar. Havia anos que seus pais não demonstravam se importar com , e aquela era a sua recompensa. Porém, de uns tempos pra cá, nem isso ela tinha mais. Ela pegou o iPhone imbecil, abrindo a curta conversa que tivera com a irmã, e ponderou sobre o que podia falar sem demonstrar toda a carência e arrependimento que sentia. Ela podia citar Nietszche, sua irmã gostava de Nietszche, e ela terminara de ler um livro dele recentemente. Curto, porém bem complicado. Sua sorte fora que, junto com o livro, havia um caderno de anotações na biblioteca de casa. havia feito anotações sem fim sobre cada frase que havia, e no fim do caderno Aimée havia entendido até as entrelinhas de Nietzsche. Não sabia se admirava o homem ou a sua irmã, que havia feito todas aquelas deduções que Nietzshe não fora capaz de escrever de uma vez, usando toda aquela complicação, em vez de dizer o que queria. No final do caderno, havia uma anotação. "Uma das obras mais claras dele".
Aimée havia desistido de ler Filosofia antes de chegar ao High School depois de ler isso.
Ou ela podia dizer, na mensagem, que odiava seus colegas de sala, de ano, de escola. Odiava todos, menos os que não olhavam para ela. Íntimo demais, talvez.
O sinal bateu antes que ela se decidisse, e Aimée desistiu.
Pelo menos por enquanto.

*

e estava juntos na mesa quando eu cheguei, conversando com , , , e Becky animadamente. Um bom sinal, mas nenhuma garantia de quem fosse finalmente agir como uma pessoa decente e assumir o namoro com . Eu fui automaticamente levada a imaginar onde estava, correndo meus olhos pelo campo da Ferdinand. Nada dele. Talvez estivesse na sala de música, e por um segundo eu considerei conferir. Até que percebi o quão estranho seria, e talvez eu não estivesse pronta pra isso ainda. Claro que podia ser bom, do tipo "Olha, você!", e aí ele ia me agarrar e acabar de uma vez com essa tortura. Mas que merda.
Claro que não tive coragem pra isso, e me conformei em ficar olhando pra tela do iPhone no meu colo, esperando que ele fizesse algo mágico e resolvesse os meus problemas (vai saber, do jeito que babam ovo pra esse celular, eu não esperaria menos do que isso), ouvindo a conversa como plano de fundo.
me cutucou.
- Educação Física, .
Merda, tinha esquecido. Fomos para os armários e pegamos as trocas de roupa que deixávamos ali. Um short e uma blusa. Nos arrumamos no banheiro, que já estava cheio de garotas se arrumando.
- Tem algo errado, ? - perguntou, enquanto prendia meu cabelo num rabo de cavalo bem alto.
Eu era um desastre com aquelas coisas, me saía melhor nos penteados desleixados, já que desleixo com cabelo era comigo mesma.
estava em algum box, trocando de roupa.
- Eu... Não sei, . Tá tão claro assim? - emiti um sorriso fraco, olhando para ela pelo espelho.
- Você tá abatida como nunca te vi antes.
- Acho que eu só estou cansada...
- Hm, então não tem nada a ver com o gostosão canadense te dando uns pegas com sabor de sorvete de pistache? - finalizou com um sorriso malicioso, e eu vi o reflexo de se aproximando pelo espelho.
Virei para ela.
- Mas que merda, , tem alguém pra quem você não contou ainda?
apenas riu, revirando os olhos, como se fosse óbvio que ela só havia contado para e .
- Sabia que você não ia ter tempo pra contar, e eu precisava de alguém pra dizer "Eu sabia!" comigo. Só nós sabemos, e a . , nós podemos te ajudar.
Engoli tudo que pensara em dizer.
- Me ajudar como?! No quê?
Elas se entreolharam.
- Você anda se esforçando demais em mostrar seus outros lados para , e esqueceu-se de um pequeno detalhe... - deu um tapinha no meu ombro, finalmente satisfeita com meu rabo de cavalo.
- Você não quer que ele te veja como uma irmã super foda, e o único jeito de evitar isso e ainda mostrar suas mil qualidades impressionantes... - fiz uma careta nessa parte, tomando aquilo como uma ofensa. - É mostrando esse seu corpinho, besha.
Deixei meu queixo cair, e a sorte foi que meu maxilar estava bem preso no lugar, caso contrário, meu queixo teria parado literalmente no chão.
- Ele precisa ser lembrado constantemente que você é uma mulher, e não uma garotinha precisando de conforto. Você precisa lembrá-lo que ele deseja essas suas curvas, só assim ele vai ceder aos receios de te machucar e destruir essa potencial amizade. - me segurava pelos ombros como se tentasse fazer seus pensamentos passarem para a minha cabeça.
- Eu acho que até grego é mais claro que o que vocês acabaram de me dizer. Usar meu corpo? Quem são vocês e o que vocês fizeram com as minhas amigas?
Elas riram.
- Ai, , vai. Entra no banheiro e coloca esse top. - me entregou um pedaço de pano do tamanho de um sutiã.
- Mas nem ferrando eu vou usar isso de blusa!!!
Elas riram de novo.
- Depois você coloca sua blusa do Bruce e prende ela embaixo do shorts como tava com a saia, cabeção.
Suspirei, aliviada. Minhas amigas não queriam me transformar numa prostituta, ainda. Nada contra prostitutas, quer dizer, se ninguém quisesse o serviço delas, elas não existiriam. E... Ok, não vou entrar nessa discussão agora.
- E o que eu vou usar depois da Educação Física, gênios?
Elas se entreolharam com um sorriso sacana. Não me ajudou a confiar mais naquele plano.
- Nós já cuidamos disso, na verdade planejamos isso ontem. - fez joinhas com as mãos.
- Confie em nós, . - apontava seus olhos de gato de botas do Shrek diretamente pra mim.
As duas piscaram seus cílios perfeitos, fazendo meu coração amolecer.
- Ah, okay. Tanto faz.
Elas bateram palmas feito bobas, atraindo a atenção do resto do banheiro enquanto eu caminhava como um zumbi até o box mais próximo. Vesti o que elas haviam mandado de qualquer jeito e voltei, pronta para ser arrumada dos pés até a cabeça. Já sabia que ia passar por aquilo, por isso nem me dei ao trabalho de ajeitar a blusa. Só sei que encurtaram meu shorts, mas ainda estava moralmente aceitável.
Isso é, dependendo da sua moral.
Quando saímos do banheiro, o aquecimento na quadra havia acabado de começar. Corremos para nos juntarmos aos que estavam no chão e nos alongamos rapidamente.
- Cinco horas, olhe como quem não quer nada. - der as coordenadas, me fazendo pensar para onde devia olhar. Eu não era tão boa com aquilo.
- Com os olhos meio fechados! - sussurrou.
Fiz um careta pra elas. Olhos meio fechados? Mas que merda?
Estiquei os braços para trás, já ouvindo minha coluna estalar, e virei a cabeça delicadamente para onde cinco horas devia estar, aproveitando o movimento para alongar o pescoço em seguida. Só tive tempo de ver os olhos de fixos em mim.
- Eu realmente quero bater palmas agora. - sussurrou, usando meu ombro de apoio.
- E eu, um autógrafo! - deu uma risadinha.
Revirei os olhos.
- Não fiz nada demais.
- Só faltou escorrer a baba da boca dele, .
- Você fez uma encenação digna de filme pornô! - continuou com suas palminhas.
Fiquei dividida entre ficar confusa com a comparação e perguntar como ela sabia que uma encenação era digna de filme pornô. Acabei não fazendo nada, porque a perspectiva de arruinar a imagem sagrada de que eu tinha na mente era assustadora. Isso me faria a única virgem dali, o que podia ser desagradável. Se bem que, do jeito que anda o relacionamento /...
- Você tá ouvindo a gente ou recebeu um chamado do Planeta Gallifrey? - passou a mão pelos meus olhos, me forçando a piscar.
- Foi mal. O que eu perdi?
bufou e assumiu o discurso.
- Você vai correr da forma mais graciosa que conseguir, ok? Não é pra correr devagar, pelo contrário, mas com graciosidade.
- Eu tô usando benditos All Stars, .
- Sim, e quando eles estiverem te incomodando, ou melhor, quando você achar que já deu tempo de eles te incomodarem e estiver perto de , você reclama baixo, como se estivesse machucando. Ele provavelmente vai parar de correr pra ver se está tudo bem, e aí você sensualiza lá que tá com dor e se apoia nele, essas coisas. Rawr.
Não sabia se chorava ou se ria.
- Pensa assim, , pelo menos você vai acabar com esse climão que tá entre vocês, e ainda vai ser de uma maneira que não precisa de "Então, sobre ontem...".
O argumento de foi efetivo. Dei-me por vencida.
Não foi muito difícil fingir que o tênis me incomodava, porque ele deveras estava me incomodando. Esperei aquecer, sabendo a gracinha que eu ficava com o rosto corado de esforço, e alcancei . Mantendo uma distância mínima, porém segura, soltei um baixíssimo "Ai", esperando que não ouvisse. E, caso ele ouvisse, e ainda por cima parasse para ver o que acontecia, então... Então eu teria uma boa prova da sua moral.
E ele ouviu. Eu estava abaixada, tentando afrouxar o cadarço sem precisar me sentar, quando notei que ele estava vindo até mim. Joguei o rabo de cavalo para o outro lado e dei um sorriso sofrido para ele. Acho que aquela jogada de cabelo, deixando meu ombro exposto, podia ser considerada como sensualizar. Certo?
Eu sou péssima com isso. Sem problemas.
- O que aconteceu? Tá tudo bem?
- Eu, eu não sei, tava andando e senti uma pontada forte no pé... Deve ser o tênis...
- Precisa de apoio?
Aceitei o ombro dele de bom grado, puxando meu pé para cima e alongando ele.
- Ah! Melhor. Eu acho. Melhor correr menos, também. - mostrei a língua, como se tivesse feito arte, e imaginei toda a sensualização indo pro lixo. Fiz a primeira coisa que veio na minha cabeça, que foi...
Passar a mão do meu pescoço até o começo da blusa e depois voltar para o pescoço, suspirando no final.
parecia ter prendido a respiração.
- Essa doeu. - dei outro sorriso sofrido. - Obrigada, .
- Imagina. - ele engoliu em seco.
Soltei seu ombro e testei o pé que fingia ter machucado.
- Parece melhor.
- Te incomoda se... Eu te acompanhar? Caso você sinta outra dor ou...
Ele estava corado. Comecei a me sentir mal pela mentira.
- Não, por mim tudo bem. E por você? - sorri.
Ele sorriu de volta, revirando os olhos exatamente do modo como eu fazia. Voltamos a correr, num passo bem tranquilo. Pude ver os joinhas de e do lado oposto da quadra. Se esse plano delas desse certo, eu ia ter que ouvir pro resto da minha vida o quão geniais elas eram. Talvez elas até contassem para mais tarde que aquilo havia sido ideia delas.
- Ah, e bela blusa. - ele elogiou.
- Obrigada.
Nos entreolhamos por belos cinco segundos antes de voltarmos a atenção pra corrida. Senti meu rosto queimar, e agradeci pelo calor disfarçar aquilo. Quando o aquecimento acabou, e vieram até nós.
- E aí, !
Eles se cumprimentaram, e em seguida chamava , acenando freneticamente.
- Hm, acho que eu preciso ir lá. - ele virou pra mim. - Tá tudo bem aí?
- Sim! Obrigada, .
- Mesmo?
- Mesmo! - ri.
- Ok.
Enquanto ele se afastava, e imitavam nossas falas sem emitir sons. "Obrigada, !", e piscou os olhos vezes demais. "Mesmo?", e completou com "Você não quer que eu confira passando minhas mãos másculas nessas suas pernas firmes e femininas?".
Acabei rindo, apesar de querer dar uns tapas nas duas.
- A aula vai ser volleyball!


Capítulo 20 — Don’t you wanna come with me? Don’t you wanna feel my bones on your bones? It's only natural.
(Bones — The Killers)
O problema de ? É, o meu problema? Eu vou dizer. O problema é que eu não conseguia tirar os olhos dela.
magicamente aparecia para me cobrir toda vez que eu não via a bola vindo. A sorte era que toda vez que dava o último toque, eu pelo menos estava prestando atenção.
Esse estava sendo um ótimo dia para admirar a sua beleza.
Chega a ser engraçado como esses momentos acontecem. Às vezes você passa dias, meses, e até mesmo anos com alguém antes de ter essa hora de admiração. Aquela em que você analisa todos os pontos fantásticos da pessoa e está durante todo o processo repetindo "Ela é linda", e nada prova ou indica o contrário. Eu já tinha visto isso nela, mas antes de sequer conhecê-la. Era diferente, agora. Após algumas rotações na quadra, acho que provavelmente na terceira, teve que correr quase a quadra toda para conseguir fazer o último passo. Eu já me preparava para cortá-la enquanto me perguntava por que a anta do time oposto havia jogado a bola para quando sabia que ela não ia pegar e havia acabado de passar a bola pra anta. Surpreendendo todos, ela conseguiu fazer o passe, desviando do meu corte.
Ela era boa. Mas não estava pensando na sagacidade ou agilidade dela, estava vendo outros dotes bem na minha frente... Se é que você me entende.
E antes alguém do meu time mandasse a bola pra mim, ouvi um dolorido "Ai!" vindo de trás de mim. Era ela. Virei-me e passei por baixo da rede para segurá-la, com reflexos que nem sabia que tinha, bem na hora certa para evitar que caísse no chão. Sua expressão era de pura dor. Ouvi pessoas gritarem e o apito da professora soar algumas vezes, não me importei com nada daquilo.
— Machucou onde? — perguntei próximo do rosto dela, que estava encolhida e torta, apenas em pé graças ao meu apoio.
— Eu não sei se dei mal jeito no pé ou se foi uma distensão em algum músculo... Mas tá doendo perto do tornozelo... Eu acho.
— Temos que ver...
Ela levantou o olhar para mim, com uma expressão chorona.
— Eu sei. Melhor eu sentar, então.
— Vocês dois! , você entrou no campo adversário, isso é ponto pro time deles.
Ouvi o meu time argumentar com a professora, e já estavam me ajudando a levar para um banco. A professora desistiu e resolveu achar substitutos para conseguir continuar o jogo, apenas dizendo para que nós a chamássemos caso precisássemos de algo.
— Ok, chega. Coloca os braços em volta do meu pescoço. — ordenei, recebendo olhares confusos de e .
, que já havia passado por aquilo, apenas sorriu e me obedeceu. Quando suas amigas entenderam, elas apenas rolaram os olhos. Tinha nos meus braços, no meu colo.
— Já passei por isso antes. — cochichou no meu ouvido, abafando uma risada. — E, dessa vez, é cavalheirismo ou você quer passar a mão nas minhas pernas?
Dei o mesmo sorriso que dei quando ela perguntou isso da última vez.
— Essa é realmente uma pergunta difícil. — declarei.
apoiou a cabeça no meu ombro.
— Você respondeu bem da última vez.
Senti essa vontade indomável de corar, o que foi ridículo, enquanto tentava entender o que aquele comentário dizia. A última resposta... Um pouco dos dois. Ela gostou dessa resposta. Então... Isso quer dizer que?
— Deita ela aqui, . — e estavam mais à frente, perto dos bebedouros.
— Deitar?? Gente, eu tô bem, posso ficar sentada.
recebeu dois olhares repletos de maldade e aquietou-se. Resolvi obedecer ao pedido que aquelas duas garotas com olhares psicopatas tinham feito. Mais seguro.
Elas alongaram a perna de , movimentaram seu pé para todos os lados possíveis, e tudo que ela fez foi segurar minha mão delicadamente. Algumas vezes apertava minha mão quase imperceptivelmente, mas isso foi o máximo de dor que ela demonstrou.
— Viram? Eu estou bem. Cada minuto que passa a dor diminui, deve ter sido só uma fisgada no músculo... — ela se sentou, acariciando a panturrilha.
E que panturrilha.
Eu tinha que parar com isso.
— Você não vai voltar pro jogo, de qualquer jeito. Melhor tomar banho e deixar a água cair onde tá doendo. — falou, abraçando-a de lado.
— Obrigada, . Você pode voltar pro jogo. Você também, . Eu vou ficar com a , caso ela precise de mim.
, eu...
— Sem essa, . Pode voltar a doer e você sabe disso, eu vou com você.
— Ok... Obrigada, . .
— Imagina. — respondemos juntos.
— Vamos lá, adversário. — deu um tapa nas minhas costas e começou a se afastar.
Dei um último sorriso para antes de seguir .

*

me apoiou até chegarmos nos chuveiros. Eu estava me divertindo andando em um pé só, mas ela foi o caminho todo exigindo que eu a usasse como apoio. Era chato andar assim, bem chato. Ainda mais perto de ser carregada pelos braços fortes de . Que frase horrível.
Eu realmente havia machucado alguma coisa, não fora encenação para atrair a atenção de . Mas fora gratificante vê-lo me socorrer com tamanha prontidão.
— Ele não conseguia tirar os olhos de você. Fase Um completada com glória. — falou enquanto me fazia sentar nos bancos do vestiário.
Fase Um completada. Com glória. Desnecessário dizer como eu ri. Quando o surto passou, veio a observação óbvia.
— Fucking Hell, isso significa que tem uma fase dois?
— Mas é óbvio! — ela respondeu sem olhar pra mim, pegando algo em seu armário. Quando eu vi o que era, já era tarde para evitar a exclamação de pavor.
segurava uma de suas blusas grudadas, de manga 3/4 e decote em V. A única parte aceitável era que a blusa era preta, e tinha o David Bowie de estampa, bem na fase - clássica - de Aladdin's Sane. Se fosse rosa choque com a Barbie Malibu, eu teria desmaiado. Aí teria sido demais pra mim, mas aquilo já era chocante o suficiente. Mesmo sem o rosa choque. E com o Bowie. Senhor, por que me abandonastes? Quase pude ouvi-lo responder que eu é que não acreditava nele, em primeiro lugar.
Evitei chorar, não entenderia.
, eu não posso...
— Não só pode como vai.
Continuamos a discussão durante todo o banho. Eu dentro do box e do lado de fora, imutável. Já estava conseguindo apoiar o pé não chão, apenas evitava fazer peso dele. E na hora de me vestir...
— Não faça isso comigo, .
— Não faça isso comigo, . Estou te ajudando, não vou deixar você se atrapalhar mais. Acredite! É um teste, também. Se o só olhar pro decote, saberemos que ele não presta como muitos outros. Se ele só olhar pros seus olhos, saberemos que ele te vê como irmã, tarde demais. Agora, se ele olhar nos seus olhos e de vez em quando escapar pro decote... Perfeito! Bang! Conseguimos.
A pior parte sobre : ela sempre consegue uma justificativa plausível para as loucuras que decidia fazer. Sempre.
— Então a chance de isso dar errado é de dois terços? Então existe uma grande probabilidade de eu colocar um decote pra nada?
— Pra nada??? De qualquer jeito vai ser útil, vamos descobrir o que ele quer, afinal! Não é isso que você quer descobrir, ?
Não exatamente...
— Não sei. Não tô pronta pra isso, .
— Veste essa blusa agora, . Tem a porra do David Bowie nela, chega de frescura!
E eu vesti. Não sou muito boa em confrontamentos com minhas amigas. "Inimigos" são mais fáceis de lidar.
Seria o inferno não ficar corada o tempo todo com um decote daqueles. Eu não tinha percebido o quão corajosas eram as mulheres que vestiam aquilo até o atual momento. Eu simplesmente não podia sair do banheiro com um decote daqueles. puxou minha saia mais pra cima, penteou meu cabelo de uma maneira louca, mas tudo que eu via no espelho era aquele maldito decote. Lápis de olho, delineador preto, um batom cor de boca.... Quando ela guardou tudo, eu ainda não havia me movido.
— Vamos lá, .
— Não consigo.
— Oh, inferno. — saiu sem mim.
Engoli em seco. E então ela voltou com Becky e . Elas ficaram tentando me convencer de que aquilo não era um decote enorme, mas meus olhos viam o que eles queriam, e, para eles, eu estava quase nua. Quando o banheiro começou a lotar e ficar quente por causa dos chuveiros, eu cedi.
Arrependi-me no momento em que saí do vestiário, acompanhada de . estava ali perto, os cabelos molhados, tomando água. Ele estava no melhor estado pós-banho, e eu fiquei no melhor estado pré-coito; pronta para arrancar as roupas dele.
! — chamou, carregando para longe minhas esperanças de escapar sem ser vista. Ele olhou, passando os olhos despercebidos por mim... E depois voltando para os meus olhos. Seus olhos faiscaram, parecendo esconder algo.
Eu já estava prendendo a respiração.
— Hey. — ele respondeu, se aproximando e desviando o olhar de mim.
— Nós vamos tomar banho, você pode ficar com a ? Ajudar ela a andar e tal.
Eu estava inválida, por acaso? Porque foi assim que eu me senti.
, não precisa! Eu...
— Tudo bem. — me cortou. — Pode ir lá, vamos ficar nas escadas da entrada principal.
sorriu, agradecendo, e voltou pro banheiro. olhou pra mim. Nos meus olhos. Então desceu o olhar e o subiu rapidamente. Tenho uma mantra novo, ele é: "Não core, não core, não core, não core, não core..." e é assim que estou agora.
— Eu tô melhor, consigo andar. Só tô evitando apoiar o pé no chão, mas...
— Apoia aqui, vai.
Ele ficou do meu lado e eu me apoiei, sem jeito. Já disse que odiava andar assim, né? Mas fomos.

*< br>
Do outro lado do pátio, depois do jardim do High School, estava a árvore favorita de Aimée. Dessa vez ela estava em um galho mais alto, porém mais forte e com espaço para ela ficar com as pernas esticadas. Estava no segundo volume da trilogia de Coração de Tinta, distraída de sua vida enquanto esperava o sinal da segunda aula. Havia feito todos os exercícios em casa e o professor a havia dispensado mais cedo de sua aula. Uma movimentação suspeita começou abaixo de si.
— Ela está mancando!
— Aquele cara tá ajudando ela a andar.
Aimée começou a se virar, podia ser sua irmã.
— Aquilo é um decote?!?
Não, não podia mais. jamais usaria um decote, ainda mais um que fosse detectável de longe. Ela parou e voltou para o livro, esperando que a conversa acabasse.
— Ele tá pegando ela no colo!
— Eles estão namorando?
— Hey, Aimée!
Ela soltou o livro, bufando.
— O que é?
— A sua irmã tá namorando?
— Não. Por que...
Ela viu. Era a sua irmã. E era um decote perceptível de longe. Mindfuck.
Já não prestavam mais atenção nela, o grupo da fofoca se afastava para espalhar o mais novo babado. Sabe-se lá o que inventariam dessa vez, criatividade para isso eles tinham. Mas apenas para isso. Ela observou a irmã ser sentada nas escadas do prédio principal da escola, parecendo envergonhada e revoltada com algo. O garoto sentou-se ao seu lado, não muito mais confortável que .
Ela estava machucada.
Aimée puxou seu iPhone do bolso da blusa.
"Aimée: O jornal oficial da Ferdinand: Fofoca Diária acabou de informar que você está machucada. Tá tudo bem? Quebrou algo?"
A mensagem foi enviada antes que Aimée pensasse demais e não enviasse nada. Viu sua irmã se mover, pegando algo na bolsa. A resposta não demorou muito.
": Por que eles perdem tempo com isso? Tá brincando, né? Achei que essas idiotices fossem exclusividade de escolas como a Holliang. Estou bem, apenas com uma dorzinha no tornozelo direito. Um remédio deve curar."
"Aimée: Pode acreditar, eles fazem. Os arbustos que dividem isso aqui não são tão altos, e tem alguns buracos. Eles estão sempre olhando aí. Na verdade, eu estou numa árvore. Posso te ver."
levantou o olhar, provavelmente procurando-a. Sua irmã acenou, sorrindo. Aimée devolveu o aceno.
": Isso é um saco. Porém, a sua árvore é legal."
"Aimée: Obrigada. É a minha favorita."
Ela parou. Já haviam conversado demais, estava começando a sentir-se incomodada.
"Aimée: Melhoras."
": Obrigada."
Um baixo e longo suspiro escapou de seus lábios. Havia conversado com sua irmã. Conversado. Não fazia isso desde... Bom, faziam alguns anos. Um peso enorme parecia estar sendo retirado de seu coração.
Ela voltou o olhar para seu livro e guardou o celular.

*

— Eu consigo andar! — tentei pela décima vez enquanto ia com para a enfermaria.
— Não foi o que me disseram.
Bufei.
— Qual é a do decote? — perguntou, despojada. Por despojada, entenda-se: esquecendo de que eu morria de vergonha.
Fiquei automaticamente vermelha.
— Ideia de jerico da . Tô me sentindo como se tivesse com um ar condicionado entre os seios.
se ocupou rindo, enquanto eu pedia um remédio para a enfermeira. A senhora Gilly analisou meu tornozelo e decidiu que um remédio bastaria.
Fui com para a aula de História Contemporânea. Sentamos em nossas mesas.
— Então, qual é a do plano da ? Além de ventilar seus seios, é claro.
Ri. Estava começando a encarar aquilo pelo lado cômico. Isso me ajudaria a sentir menos vergonha.
— É o seguinte... Você soube do beijo. Depois foi estranho... Como se ele se arrependesse. E nas aulas de dança, eu não entendo... É como se ele quisesse, mas não quisesse. Sabe? Eu fiz a genialidade de dizer isso pra , e ela bolou toda uma estratégia pra descobrir o que o sente. E faz parte disso seduzir ele. Em suma, estou me sentindo ridícula.
Rimos juntas.
— Depois dizem que garotas são complicadas, eu já não faço ideia do que acontece com esse . Primo do , mas nunca tinha o visto em reuniões familiares... Apesar de o ter mencionado ele algumas vezes. Dei de ombros, tenho essa opinião: Famílias são coisas estranhas e distintas. Não dá pra entender uma pensando em outra, apesar de funcionar tudo do mesmo modo estranho.
— Eles não são primos de sangue.
— Ah... Agora fez sentido.
—Eu tinha pensado em algo muito simples. Forçar outro beijo. Ver como ele reage. Bem menos constrangedor. — assumi, afundando o rosto nos meus braços sobre a mesa.
... Um beijo é um beijo. As pessoas ficam fantasiando isso, como se o beijo fosse o fator determinante do amor, quando, na verdade, pode ser que a pessoa só saiba beijar bem. E acabe te iludindo mais ainda. Não tem como saber, pelo menos não avaliando se os beijos são bons ou não. Agora... me beija de todas as maneiras. É como se ele tivesse um beijo pra cada sentimento, e ele se encaixa perfeitamente no momento. Eu acho que isso é mais real, apesar de atualmente estar em dúvida quanto a personalidade de , eu sei que ele me ama. Então é, eu acho que forçar um beijo com seria a melhor opção. Já que a voz dele não fala, talvez o corpo fale.
Talvez o corpo fale.
Assenti em silêncio e voltamos nossa atenção para a aula. Duas horas depois, com o remédio fazendo efeito, caminhava sozinha para a lanchonete. Troquei mensagens com Aimée no caminho.
": Tá na árvore?"
"Aimée: Acabei de chegar."
": Aceita um croissant de chocolate?"
"Aimée: Só se estiver quente. E tiver cobertura."
Na volta da lanchonete tive que aguentar as gralhas que eu chamava de amigas me chamando para o pátio todo ouvir. Também havia aquela sensação maldita de que todo mundo olhava para o decote da minha blusa. Subir em uma árvore seria o melhor a fazer.
Aimée me esperava atrás dos arbustos. Ela colocou o rosto angelical em um dos buracos, fazendo com que um de seus cachos loiros enroscasse nos gravetos.
— Tava quente?
— Acabou de sair do forno! Cuidado.
Passei o lanche pelo arbusto e abaixei para vê-la.
— Quem te apagou pra conseguir colocar essa blusa em você?
Ri de novo.
— Antes tivessem me apagado. Foi uma tortura, e eu estava bem acordada. Eu não tinha outra blusa, só a da educação física... Longa história.
— Ótimo croissant.
— Serventia da casa, mademoseille.
Ela ficou de costas pra mim e pareceu sentar no chão. Sua cabeça ficou um pouco abaixo do espaço defeituoso do arbusto. Imitei-a.
— Estou lendo o segundo livro daquela trilogia da Cornelia Funke. — ela comentou, uma hora.
— Ah, esses livros são lindos! — virei para vê-la.
Aimée virou também.
— Sim!
Rimos, voltando a ficar de costas depois.
— Eu estou lendo o novo livro do Lemony Snicket. Bem pequeno, bem no estilo de Desventuras, bem ótimo. Não quero acabar.
Aimée riu.
— Acho que você é a única pessoa que lê e entende aqueles livros difíceis, mas ainda assim gosta de Literatura Infanto-juvenil.
A garota me conhece.
— Por favor, não é porque entendo livros difíceis que preciso esnobar os Juvenis maravilhosos. Tem muito livro que é Infantil e tem mais filosofia que livros aclamados por aí.
Ela apenas riu. Quando acabamos o croissant de chocolate, subimos nas árvores. Ela na sua favorita, e eu na mais próxima. Abrimos nossos livros e ficamos lendo. Eu tenho esse sério problema: reagir ao que leio. Na quinta risada, Aimée quis saber o que era tão engraçado.
— Lemony Snicket. Se eu disser, não vai ser metade engraçado. Você precisa ler e estar envolvida com o livro. O Handler é um gênio.
Vi minha irmã puxar um caderninho e um lápis quase extinto.
— Qual o nome do livro?
— O nome é "Quem Seria A Uma Hora Dessas?", da série "Só Perguntas Erradas".
Ela riu.
— Parece realmente um bom livro.
— Posso deixar no seu quarto quando acabar, não dou um dia pra devorá-lo inteiro e chorar por mais.
Aimée concordou com um aceno.
Continuamos nossa leitura até o sinal bater. Minha irmã sorriu para mim antes de descer de sua árvore e sair correndo, e eu desejei que aquilo não fosse apenas um espasmo do cérebro dela. Ela estava sendo legal. O que quer que tivesse acontecido, eu não ia deixar passar. Caminhei até o prédio, vendo o pátio quase vazio, e com um último suspiro, fui para a última aula.
já estava em nossa bancada, as roupas de laboratório já vestidas. Seu olhar encontrou o meu imediatamente, mas logo ele já desviava. Sem sequer um sorriso. Revirei meus olhos com uma única palavra em mente: "whatever". Tinha algo errado com esse garoto, e eu já estava começando a me cansar na tentativa de descobrir o que era. E eu realmente não precisava de mais uma coisa pra me cansar.
— E aí? — deixei minha bolsa no banco, pegando folhas e o estojo.
— Tudo bem. E o tornozelo?
Minha bolsa foi pro chão, e eu me sentei.
— Incrivelmente, ele continua no lugar certo.
deixou um riso breve escapar. Olhei-o, apenas virando o rosto em sua direção. Pensei em ser direta, perguntar se havia algo de errado pra ele estar agindo daquela forma comigo. Hora distante, hora íntimo o suficiente pra pegar a acidez na minha resposta. Desisti, a insegurança guardada no canto escuro e empoeirado do meu ser conseguindo falar mais alto.
— E aí, pronto pra ser o cientista louco do dia?
— Sei que estou em boas mãos.
Não vamos dizer em voz alta o quão boas foram as mãos dele ontem, enquanto nos pegávamos no sofá da casa que ele divide com o primo. Nem vamos perguntar se isso era recíproco, e era essa a referência dele para dizer que estava em boas mãos.

*

Se ela não estivesse com aquele decote, teria sido tudo mais fácil. Um maldito maricas, você vai me chamar assim (aliás, não é nenhuma ofensa, e você é uma pessoa ruim), mas eu não podia olhar... Que já estava errando medidas, jogando substâncias no lugar errado e coisas do tipo. ria e me ajudava, o que na verdade só piorava a situação. Eu estava olhando, e ela sequer percebia. Mas eles eram tão... Bonitos. O mais incrível era que a beleza não vinha de uma forma vulgar, apesar do decote. Ou vinha, mas eu estava ocupado demais endeusando-a para pensar uma coisa dessas. Jamais vulgar, meu coração parecia dizer com suas batidas fortes contra meu peito.
pressionou o braço mais forte contra a lateral de seu corpo, e eu parei. Pronto, esse é o auge. Não posso ficar mais ridículo que isso. Finalmente parei de observar os dotes da minha parceira de laboratório e me concentrei nos experimentos. Depois que acabei o último, comecei a limpar as peças e guardá-las. ainda escrevia quando eu finalmente sentei, concentrada demais nas palavras pra perceber o que acontecia ao seu redor. Eu já disse, é realmente algo bonito de se ver. Não por ela, ou por como o meu coração bate mais forte só de vê-la colocar o cabelo todo de um lado, expondo o pescoço. É a paixão com que a escrita é feita, e eu aposto que Química nem é um assunto que ela adora escrever sobre. Acredito que seja o ato de escrever em si que a domina daquela forma indescritível.
De repente percebo que ela terminou de escrever e está me encarando. Olho no olho. Eu agradeço ao mundo todo por não costumar corar antes de desviar o olhar pra a bancada.
— Você estava realmente longe. — quebrou o silêncio, mas sem fugir da tensão. Não é a distraída que falou, ou a comediante entediada.
— Te encarei por muito tempo?
— Não sei se você estava olhando pra mim, parecia que você estava olhando através de mim.
— Bom, até onde eu estou vendo, você não é transparente.
abandonou a expressão séria e relaxou o corpo todo enquanto dizia "Ufa!", levando a mão até sua testa dramaticamente. E então ela me olhou com um brilho diferente no olhar, e rimos juntos.
— Eu acabei aqui, quer dar uma revisada? — apontou as folhas em cima da bancada. Notei alguns olhares na direção dela das mesas vizinhas. Algo entre admiração e inveja. Talvez uma inveja respeitosa?
— Eu, corrigir o que você escreveu? Vou folhear e fingir que estou avaliando tudo. — puxei as folhas de sua mão com um sorriso debochado.
Ela fez uma careta.
— Vou tomar isso como um elogio e confiança demais no que eu faço.
— Você não estaria interpretando errado, como sempre.
Arrependi-me do comentário logo depois de falar, mas nada aconteceu. Levantamos juntos e deixamos os papéis grampeados na mesa do professor antes de saímos.
— E aí, pronto pra primeira aula de Teatro? — ela perguntou com um sorriso sádico nos lábios. Ela usava um batom bonito, aliás, estava com a maquiagem completa. Simples, mas acentuando cada qualidade belíssima de seu rosto. Gostava da sem maquiagem, mas a maquiagem reforçava sua beleza natural.
— Nasci pra isso. — respondi, imitando seu tom debochado.
deu uma risada curta, encaixando o braço no meu em seguida.

*

Definitivamente a aula mais engraçada de todos os anos de Teatro. O cenário já estava sendo feito pelos voluntários, e a aula toda foi sobre os papéis pequenos e ensinar aos alunos que não eram do Teatro. Margaret usava os alunos do Teatro para explicar posturas e tudo o mais que envolvia uma interpretação decente, e os novatos pareciam um pouco em pânico com a quantidade de informações novas. É claro que teríamos muito tempo pra ensaiar, aquilo era só uma introdução.
— Aula encerrada por hoje! Vocês podem ir embora. Cenário também, quero só nossa par romântico no palco. Vamos começar a trabalhar a personalidade de Romeu e de Julieta. Vamos, vamos!
deu tchau, correndo antes que Margaret pegasse uma vassoura para expulsar todos dali. Eu só ri.
— Quer que coloquemos as roupas, Maggie?
— Não, . Sem as peças do elenco. Ah, combinei de ir à sua casa sexta, jantar. Sua mãe disse que talvez ouvissem outras peças de roupa que se encaixariam em Romeu e Julieta.
— Ah...
Tentei não transparecer o quanto aquilo me chocava, mas o esforço foi desnecessário, porque Margaret não prestava atenção em mim.
— Muito bem, . Você é familiar com aquele gênero de homem que se apaixona o tempo todo?
— Hm... Sim.
— Ótimo. Quero que pense em um homem assim para fazer Romeu. Família rica, festas, muitas moças para se apaixonar. Bom com as palavras, galante.
Margaret ajeitou a postura de , ensinou-o como devia andar, instruiu-o a ficar com a cabeça sempre levemente inclinada, o cabelo caindo sobre o rosto, mas sem tampar seus belos olhos . E então veio para mim, e perguntou como Julieta devia ser. É claro que não seria tão fácil assim pra mim, Margaret sempre me fazia pensar primeiro antes de me instruir.
— Postura perfeita, ainda assim ombros encolhidos. Sempre sorrindo, de lábios fechados. Olhar baixo ou muito alto, raramente vendo as pessoas ao redor, a não ser quando lhe dirigem a palavra.
— E maçãs do rosto coradas. Perfeito. Bom, vamos ensaiar a cena do baile, sim?
Devo ter engolido uma pedra, porque meu estômago afundou. A cena do baile. Não havia pensado nisso, como seria dar um selinho em depois de ter... Feito muito mais que isso. Antes já era difícil ficar só naquela simples toque de lábios, o que seria agora? Eu tinha uma tese, e era isso que assustava. Lembrei da conversa com , e ia forçar um beijo qualquer hora, mas não na frente de Margaret.
— Podem colocar as máscaras. — Margaret avisou quando voltou a olhar para nós da plateia, percebendo que ainda estávamos parados no mesmo lugar.
Fomos até o armário, minha respiração mais pesada e sonora que o normal. Voltamos para o centro do palco, já de máscara. Tentei respirar fundo.
— Sem as falas, só os gestos. Quero que vocês demonstrem as falas com o corpo.
Ficamos naquilo por mais de meia hora, rodando pelo palco e encenando coisas diversas. tentava manter a pose exigida, mas às vezes demonstrava que aquilo não era natural. Ele ia precisar de prática. Eu não tinha muito problema com a postura de Julieta, tirando o fato de que, bem, estava doendo ficar com a coluna tão rígida.
— Eu vou ver algumas coisas na minha sala, vocês ensaiem a primeira cena inteira. Sem falas. Se eu demorar muito pra voltar, podem ir embora, só feche o Teatro pra mim, . — Margaret se despediu com um sorriso e saiu.
Nunca havia a odiado por nos deixar ensaiando sozinhos. Margaret gostava de deixar seus alunos se virarem, pra depois observar como nos saíamos. Mas o nervosismo voltou ao meu corpo assim que ela deu as costas para mim.
— Ceerto. — voltei-me para .
— Sem falar. — ele disse, olhando diretamente nos meus olhos por de trás da sua máscara.
— O-k.
Ele se aproximou, ajeitando um fio de cabelo que teimava em escapar da minha orelha. Não lembrava dessa parte do roteiro, mas fiquei corada como Julieta ficaria. E sorri como Julieta sorriria. Fiz uma singela reverência, e ele me seguiu com uma reverência muito mais acentuada, pegando minha mão e beijando-a. Um arrepio subiu direto de onde seus lábios haviam me tocado até meu coração, fazendo-o bater descompassadamente. Mordi o lábio, percebendo a besteira que havia feito somente depois de ter visto congelar na minha frente, os olhos presos na minha boca.
Deixei um suspiro treslouco escapar e no instante seguinte me agarrava ao pescoço dele, abraçando-o, unindo nossas bocas de uma vez. Sem selinho, sem indicações do que ia fazer, sem nada.
Se se assustou, ele não demonstrou. Suas mãos seguraram minha cintura com força, unindo nossos corpos nos espaços que eu não unia com o abraço. Havia fome por mais, mais toques, mais trocas, mais contato. Ele foi me forçando a andar de costas, e eu fui sem ter consciência do que fazia, concentrada apenas em beijá-lo. prensou meu corpo contra a parede, subindo uma mão para o meu pescoço, acariciando minha nuca, arrancando um suspiro baixo de mim, que foi abafado por sua língua na minha. Entreabri os olhos, vendo seus olhos calmamente fechados atrás da máscara e retirei-a cuidadosamente. Ele estava lindo com ela, mas aquele era Romeu. Eu não estava beijando Romeu, e queria ver quem eu realmente beijava. . Passei os dedos pelos seus cabelos e voltei a fechar meus olhos, apenas aproveitando a textura dos finos fios sobre meus dedos e da boca dele na minha.
Do nada, ele se afastou. Com pressa, com violência, e eu demorei um pouco pra processar a ideia de que ele não voltaria a se aproximar. Abri os olhos e vi apenas as costas de , caminhando para fora do Teatro.

*

Aquele beijo havia tirado a pouca sanidade que me restava. arfando de olhos fechados quando eu me afastei também não ajudava muito, e sair correndo do Teatro não seria o suficiente para esquecer. Tudo aquilo ficaria rondando a minha mente por um bom tempo. Então eu fiz a janta, arrumei a cozinha, arrumei a casa e zerei Resident Evil 5 antes de parar para pensar. Tinha funcionado. Não que eu tivesse esquecido, mas precisar de atenção no que eu fazia era a arma perfeita para a distração. E agora tudo que me restava fazer era tomar banho e dormir.
E isso nunca fora tão difícil antes.
Caso você tenha se esquecido, com uma ajuda das minhas últimas ações nada masculinas, eu sou homem. Mais do que isso, eu sou um ser humano. E eu tenho hormônios. E necessidades. E cada ato, inocente ou não, de despertava isso cada vez mais forte em mim. Não era só minha mente que precisava dela, ou o meu coração. Meu corpo parecia ser o mais prejudicado, nunca tendo sua vontade atendida ou perdendo o que tanto queria cedo demais. Meus lábios pareciam doer de frustração pelo beijo interrompido horas atrás, minhas mãos pareciam procurar pelo corpo dela, e as memórias... Nem uma ducha quente faria meu corpo relaxar, muito menos uma fria esfriaria o calor que eu sabia não ser proveniente da água do chuveiro. Ela havia me beijado. Pior, havia tirado a máscara, como se com aquele pequeno ato estivesse dizendo que ela sabia quem estava beijando, e não era um personagem em uma peça de Teatro quem ela queria.
Ela estava fazendo isso, por que eu não conseguia deixar? Por que havia uma voz dentro da minha cabeça dizendo que eu só ia me machucar nessa história? Traumas passados? Bom...
Achei um livro da biblioteca durante a faxina, não havia levado todos. Deixaria com na manhã seguinte. Ainda eram malditas nove horas da noite, eu não ia conseguir dormir.
— Tem uma loira aguada gostosa na porta dessa casa dizendo que é sua amiga, . Acho que a última vez que você me falou dela, o cabelo era preto com partes roxas. Parece ela, pelo menos.
Gritei de frustração, mentalmente. Não podia ser. Era tudo que não precisava aparecer na minha vida agora.
— Ok, tô indo lá.
Bom, eu já mencionei uma Nikki aqui, não? Uma amiga antiga, uma das poucas amizades que eu havia tido porque nossos pais eram sócios, e quase todo lugar que minha família viajava, a família dela viajava também. Uma amizade desgastada, mas que já fora quase de sangue. Desci a escada torcendo para que não fosse ela.
Em vão, é claro.
! — a própria Nikki correu e pulou no meu colo, enlaçando as pernas na minha cintura.
— Hey, Nikki. — a segurei, desconfortável.
Nós não tínhamos mais 12 anos há um bom tempo.
— Seu amigo está olhando as minhas pernas, .
— Talvez porque você esteja com uma saia, Nikki.
— Não está com ciúmes, bebê?
Aquela agonia esquecida já crescia em meu peito, era assim há alguns anos. Já havia brigado por Nikki muitas vezes, a maioria por motivos que ela era a culpada. Isso não me impedia de distribuir socos em que estivesse na frente. Eu era seu guarda costas, o otário que gostava demais da criança que Nikki havia sido para abandoná-la naquela fase estranha de piercings e bares. Eu já achei que gostava dela mais do que como amiga, verdade, mas essa possibilidade foi descartada quando ela decidiu que queria que eu fosse somente o seu primeiro cara, mas não o único. Se é que você me entende.
Eu não tinha nada contra ela querer aproveitar a vida, na verdade. Até seria engraçado de ver, se ela não voltasse periodicamente para conseguir algo de mim, como se ela não pudesse ser só minha, mas eu tivesse que permanecer ali, sempre esperando-a. Repugnante, aquela não era a Nikki que eu havia conhecido. E era esse provavelmente o motivo dela estar ali agora, e eu pensando que essa palhaçada tinha enfim acabado depois do desastre que me fez sair do Canadá.
Fiz Nikki descer e notei uma mochila na porta. É claro.
— Nikki, não tem lugar na casa.
— Eu fico com o sofá, tudo bem, vão ser só alguns dias. — seu sorriso não dizia o quão sórdida eram aquelas palavras.
É claro que seriam só alguns dias, ela iria embora assim que conseguisse o que queria. Ver que ainda me tinha na palma da porra da sua mão, apesar de tudo o que ela fazia.
Eu não conseguia resistir, sabe, antigamente. Eu não tinha motivos, na verdade, além da minha dignidade. O que não era uma coisa que eu costumava me preocupar, também. Eu nunca estava fixo com uma garota, porque nenhuma garota me achava digno dessa posição. Minha culpa, provavelmente, Dessa vez, entretanto, é diferente. Dessa vez eu tenho dois bons motivos para ignorar Nikki. Quero encerrar essa história, primeiro ótimo motivo.
— Eu só consegui vir pra cá por causa da mamãe, ! Ela e os eventos de socialite! Não vou poder te ver, a não ser que passe esse final de semana aqui. — ela fez um bico com a boca, apelando para sua infantilidade. — Tô com saudade.
riu, recebendo um sorriso de Nikki. Era isso, não havia como negar. O que ela disse na verdade foi: "Se você não me receber, minha mãe vai saber disso e vai contar para a sua mãe. Que tipo de homem você é, ?"
Suspirei, derrotado.
— Tudo bem, pode ficar. Vou pegar lençóis e cobertores pra você.
— Vou no , já volto. — saiu, fechando a porta de casa atrás de si.
Subi as escadas, respirando aliviado por não ter sido seguido. Não duvidava que Nikki fosse arrancar as roupas do nada e se jogar em mim, estando sozinha em uma casa comigo. Ela já havia feito pior com uma casa cheia de parentes dela, porque eu acabara de levar o pé na bunda da minha vida.
Quando desci, a confusão já estava feita. Vi tudo em slow motion.
1, o segundo ótimo motivo para eu recusar Nikki estava parado no vão da porta da sala, sem reação, com os olhos arregalados olhando para...
2, Nikki estava apenas de lingerie sentada no sofá da sala, exatamente na direção que...
3, desviou o olhar de Nikki até mim, parando nas coisas que eu carregava.
4, eu imaginei todo o tipo de motivos que poderia pensar para explicar aquela cena, e só aí eu surtei de verdade.
— Hey, quem é você? — não foi e muito menos eu quem perguntou.
Ambos olhamos para Nikki, que sorria com toda a sua falsa ingenuidade. Ela olhou de para mim, como se soubesse de tudo, até mesmo dos impasses que havia entre nós. E, mesmo assim, eu não consegui dizer nada.
Não com minha mente repetindo "Merda!" infinitamente.


Capítulo 21 — I've gone for too long living like I'm not alive, so I'm going to start over tonight.
(Miracle — Paramore)
Garota loira de lingerie no sofá. com lençol e coberta nas mãos. Garota loira de lingerie no sofá falando comigo. Acho que devo responder, já que mais ninguém fez isso. Garota loira de lingerie no sofá com um sorriso imbecil e irritante. Mas que porra??? Pronto, falei. Quer dizer, tecnicamente eu não falei, mas...
— Eu sou a . Erm, então, ... Só vim pegar um livro que esqueci aqui, queria devolver na biblioteca antes deles fecharem. Deve estar por aqui...
Caminhei até a mesa, fingindo que estava concentrada na procura de um livro quando na verdade mal enxergava o que via. Eu não ia chorar, não na frente deles. Ideia estúpida de buscar aquele maldito livro, que merda eu estava pensando quando decidi fazer isso? Ah, ah sim, a merda em que eu ainda achava que sentia algo por mim, que aquele maldito era diferente. Onde raios essa porra de livro está, de qualquer jeito?
— Tá na bancada, do lado da porta. Eu ia levar amanhã...
finalmente disse algo, sua voz parecendo a de alguém que estava sendo estrangulado. Oh, mas que inconveniente, eu, envergonhando os outros. Não se preocupem, já estou de saída.
— Ah, ok, então tchau. Desculpa.
DESCULPA??? Chega, Deus. Me leva.
Sai da casa me sentindo ainda mais ridícula, é claro que não havia agido com naturalidade. A loira aguada devia ter entendido tudo, e minha reação patética e desesperada apenas a faria rir. Amaldiçoei , que ria na porta da casa de e quando estacionei o carro na frente da casa. Ele disse que a porta estava aberta, ele disse que era só entrar. Preferia ter tocado a compainha, de verdade, mesmo que aquilo fosse apenas me manter no estado de cegueira amorosa em que estava. Às vezes a ignorância é uma benção. Primeiro garoto que beijo: tem uma namorada. Ou uma ficante. Ou, pior, ficava com qualquer uma. Menos eu.
E qualquer uma dessas opções fazia sentido. Ele não queria me beijar, foi um erro. Ou ele já gostava de alguém ou não gostava o suficiente de mim. Bam, o óbvio. Sinceramente, como eu sequer pude pensar que...
Parei o carro. Tive que piscar para voltar a enxergar alguma coisa, por mais que não quisesse deixar aquelas lágrimas caírem. Era o único jeito. Não conseguiria ir para escola, não assim. Mesmo que estivesse deserta. Voltei para casa, entrei pelos fundos e não tive que fazer muito mais que isso para não me notarem. Na verdade, eu sou boa demais nisso de não ser notada naturalmente.
Mais lágrimas. Precisava pensar em algo diferente, uma distração, meu rosto já estava começando a ficar úmido. Não, isso não ia acontecer. Entrei no meu quarto e fui direto para a pequena estante de livros que tinha ali. Pequena perto da biblioteca, suficiente para ter os meus livros favoritos, que não são poucos.
George Orwell se sobressaiu aos meus olhos, e como uma boa amante de distopias, fui noite adentro na companhia de "1984".

*

— Então... Você, com uma namoradinha? Quem diria, . Achei que seria bondoso da minha parte fazer uma visita.
Nikki já havia se vestido de novo, depois de cansar de ser rejeitada. Agora eu sentava ao seu lado, no sofá, encarando a TV completamente mudo e sem expressão. Quando resolvi falar, minha voz veio fraca e cansada.
— Não. Infelizmente, não.
Ela riu. Vadia.
— HAHAHA, foi colocado na friendzone por ela também, ?! Parabéns, sério. Ela parece ser tão boazinha, como conseguiu isso? Ou ela é inocente demais pra pensar em algo a mais?
— Friendzone, Nikki? Parabéns pra você também, por usar esse termo como se ele fosse válido.
Não, definitivamente não é inocente demais, Nikki. Cala a boca, Nikki. Para de rir, caralho.
— No seu caso, é, querido. Talvez você seja o único que realmente sofra de friendzone...
— Ela é lésbica, tá bom? Vê se não me enxe mais o saco!
Devo ter ficado vermelho de raiva, explodi, levantei e subi. Tranquei a porta do quarto e me joguei na cama. Ela é lésbica. Por que me apaixonei por ela? Por que ela me beijou? Por que eu me odeio tanto agora? Por que ela pareceu chocada de ver a Nikki? E se ela for como todas as outras garotas que eu já ousara beijar, e estivesse só me usando?
Eu não ia passar por isso de novo.
O quanto tempo demorou eu não tenho certeza, mas quando finalmente dormi já tinha a certeza de que não sairia da cama no dia seguinte. Muito menos do quarto.

*

Devo ter dormido três ou quatro horas, e, como o clássico, acordei fácil. Difícil seria lá pelas nove da manhã, eu provavelmente apagaria em algum lugar inapropriado. Desci para fazer café, muito café. Uma xícara grande pra tomar antes de sair de casa e uma garrafa térmica de 250ml cheia para o dia. Devia ser o suficiente. Até o 1º intervalo, pelo menos. Aimée desceu e me olhou com uma expressão estranha. Servi pão torrado com manteiga para ela, e uma xícara de chocolate quente.
— Hm, Anne... Tá tudo bem?
O apelido me chamou atenção. Anne. Desde quantos anos eu não ouvia aquilo?
era muito grande para o linguajar infantil de Aimée quando ela começou a aprender as palavras. Anne foi a primeira coisa que ela disse diferente de "mama" e "papa". E Anne era muito mais claro que era comigo do que mama era mamãe e papa era papai. Ela gostava tanto de mim, o que aconteceu?
— Sim, sim, Méme. Por quê?
Notei um sorriso de canto no rosto de Aimée. Méme era como ela dizia seu próprio nome, e eu adotei o apelido por um bom tempo. O que aconteceu para eu parar de usá-lo, afinal?
— Você parece um tanto... Agitada. Agitada demais para o horário. — ela tomou seu chocolate sem tirar os olhos de mim.
— Hm, bom, é que... Dormi pouco essa noite, e tomei café. — dei de ombros.
— E você dormiu pouco por...?
— Besteira. — dei de ombros novamente.
— Que besteira? — ela insistiu.
— Dá pra comer seu pão, Aimée ? Obrigada.
Saí da cozinha como um furacão. Entrei no carro e liguei o rádio, alto. Uma, duas, três gotas de água. Dos meus olhos. É claro, uma hora eu ia lembrar disso. Não ia dar certo, não ia...
Aimée entrou pela porta do passageiro, sentando-se de frente para mim.
— Você me chamou de Aimée . Você nunca me chamou assim, nem quando eu fui uma imbecil com você repetidas vezes nos últimos anos. Imaginei que você precisasse de mim agora. Se estiver errada, pode dizer que eu volto pra cozinha.
Levantei o olhar até seu rosto, virando meu corpo para poder vê-la de frente.
— Eu me sinto ridícula, sabe, com essas lágrimas idiotas.
— Hm, coração partido?
— Iught. É como o final da trilogia Fronteiras do Universo, só que sem os dois livros anteriores e toda a parte legal do terceiro livro. E nada de ter um urso chamado Iorek, ou o meu Pantalaimon.
— ... Caramba.
— Sim. — sequei o rosto com a manga da blusa de frio. — Espera... Você leu Fronteiras do Universo?
— Eu tô tentando chegar na sua idade tendo lido mais livros que você, sabe. Seria mais fácil se você não tivesse lido todos aqueles livros de filosofia e poesia! Juro que não entendo nada não importa quantas vezes eu leia.
Eu tive que rir. Não havia como não rir. E então logo as lágrimas secaram e eu ainda ria com Aimée.
— Certo, vou te levar pra escola.
— Eles são uns idiotas.
— Hm?
— Meus colegas de ano. Insuportáveis, de verdade. Sempre fofocando e falando da vida alheia... Sempre vendo o seu lado da escola pra imitar os mais velhos!!! É realmente cansativo. — ela se afundou no banco do carro. — Eles adoram falar de você, acho que é por isso que eu alimentei uma raivinha infundada todo esse tempo sobre... bem.
Sorri. Compaixão. Se eu podia entender algo, era aquilo. Eu bem sabia como aquele mundo de fofocas me irritava.
— Sei bem como é isso. Não faço ideia do que eles veem em mim, mas sei bem que deve ser um inferno. Uma merda que seja assim, Méme. Acho que, no final, pode ser até bom pra você. A gente meio que pensa dez vezes antes de fazer uma fofoca, por mais boba que seja, depois de conhecer tanta gente imbecil assim.
— Você me perdoa? — ela mordeu o lábio, parecendo aflita. Quis abraçá-la.
— Você é minha irmã, Aimée. Eu acho que nunca cheguei a realmente ficar brava com você pra ter que te perdoar por algo. Vem aqui. — abri os braços e ela veio de prontidão.
Nos abraçamos em silêncio.
— Sabe, não tem nada muito importante na escola hoje. — a voz de Aimée veio abafada, mas entendi-a claramente. — A primeira aula é pra terminar um trabalho que eu já fiz, a segunda é pra fazer exercícios que eu já terminei, e a última é educação física.
— Você está sugerindo...
— Não se for te atrapalhar. E, bem, acho que a aula não vai render muito pra você, de qualquer jeito, se você continuar, bem...
— Sim. — assumi. Ela era minha irmã, confidenciar algo assim era natural e seguro, independente do tempo que ficamos "separadas". Não era algo racional, também. Apenas era. — Não consigo controlar, só de lembrar eu...
— Ok. Então, posso me trocar antes? Não quero sair assim com você. — ela corou.
Hm? Perdi algo.
— Como assim?
— Bom, essas roupas de boneca que eu tenho. Você... Você tem roupas bem mais legais, roupas que mamãe jamais me deixaria comprar. E como eu só vou ao shopping com ela...
Uma lâmpada podia aparecer sobre a minha cabeça acesa, porque eu tive uma ideia brilhante. Eu soube exatamente como fazer para me redimir com Aimée.
— Feito! Então vamos ao shopping, e você pode comprar algo que você queria vestir ao invés do que os outros querem que você vista!
Aimée sugou suas bochechas, parecendo aflita.
— Você me ajuda?
— Com tudo. Até com a fúria da Stalin-Donna, quando voltarmos.
Minha irmã gargalhou alto, provavelmente imaginando mamãe nas roupas de Stalin, e eu dei partida no carro. De repente, a vida não parecia mais tão ruim. Foda-se, decidi. Foda-se, eu vou viver minha vida, independente do que apareça para me derrubar. Liguei o rádio e reconheci "18 Wheeler", da P!nk, e aumentei o som para cantar junto.
"You can push me out the window, I'll just get back up! You can run over me with your 18 wheeler truck, and I won't give a fuck." (Você pode me empurrar pela janela, eu só vou me levantar. Você pode me atropelar com seu caminhão de 18 rodas, e eu não vou nem ligar.)
Dirigi para o shopping 24h mais perto de casa, entramos em uma loja gigante de roupas. Aquelas que pareciam um atacado, que tinham tudo, e que Donna se recusava a passar perto. Era ali que eu fazia meus melhores achados. Aimée estava boquiaberta.
— Acho que o limite do provador é de vinte peças por vez. Divirta-se!
Em poucos minutos eu já carregava um bolo de roupas para minha irmã. Ela ia de arara para arara como se fosse ter uma parada cardíaca, às vezes rindo de uma estampa tosca e outras pedindo minha opinião. Alguém pedir minha opinião para moda era mais uma coisa inusitada para a lista de coisas inusitadas desse ano.
Quando entramos no provador a funcionária apenas julgou com o olhar a quantidade de roupas e nossa empolgação para o horário, mas não disse nada. Aimée trocava de roupa mais rápido do que o normal, desfilando para mim a cada troca que fazia. Blusas de bandas, blusas de filmes, jaquetas de jeans, rebite, calça preta, shorts... Eu via potencial em cada modelo que Aimée montava. Já podia ver a atenção que ela teria andando com seus cachos loiros e aquelas roupas em alguns anos. Eu seria desengonçada pelo dela, completamente ofuscada se ela mantivesse aquele sorriso de orelha a orelha que estava em seu rosto agora.
— E ele não disse nada, o tempo todo? — ela perguntou de dentro do provador, depois que contei o motivo ridículo para as minhas lágrimas ridículas.
— Nada além de onde o maldito livro estava. Nem disse quem eu era, nem quem a garota era.
— Que babaca, e eu achei que ele fosse maduro e inteligente, um cara bacana pra você. Foi a impressão que ele passou.
— Eu acho que todo mundo achou isso, inclusive... Inclusive eu.
Aimée saiu do provador, parecendo arrependida pelo comentário. Cocei o nariz, negando com um aceno qualquer pedido de desculpa que ela pudesse fazer.
— Não, tudo bem. O erro foi meu. Sempre li romances com um olhar crítico e cético, mas nas únicas vezes que gostei de alguém fui mais cega que todas as personagens cegas juntas.
Únicas, isso mesmo, no plural. Longa história, memórias evitadas. Quem sabe um dia eu conto, sem chance de isso acontecer agora.
, não é por nada, mas... Ele engana muito bem, se isso for verdade. Você não estava sendo cega... Tem certeza que, sabe, você interpretou as coisas direito? Não deixou nada passar?
Não, não. Nada. Queria ter deixado.
— Méme, não quero pensar nisso agora... Não sei se quero pensar nisso algum dia, muito menos agora.
— Ok! — ela jogou as mãos para o alto, dando voltas para rodar a saia preta que havia vestido. — O que acha dessa?
— Se você não levar, eu levo. — dei de ombros.
— Perdeu, é minha.
Aimée deu a língua e voltou para dentro do trocador sem dizer mais nada.
Suspirei. Quem quer que seja o responsável por essa mudança nela, eu sou eternamente grata. A amizade da minha irmã não podia ter vindo em uma hora melhor. Senti o celular vibrar na minha bolsa, e devia ser mais ou menos a centésima vez desde que dera 7h. Resolvi olhá-lo, percebendo sem surpresa alguma que eram 85% mensagens de , 5% mensagens de , 9% mensagens dos amigays e bi-girls, e uma mensagem de . Li por cima todas as mensagens e comecei pelo mais fácil. , a minha eterna salvadora da pátria.
"Não é nada disso que vocês estão pensando, não dormi com o . Não sei porque ele não está aí, mas o motivo pode ser muito mais aguada que eu. E de olhos esverdeados que parecem amendoados quando a luz é pouca. Por favor, , faça eles pararem com as mensagens, eu estou bem."
Era tudo o que faltava, também não ir para a aula. Por motivos diferentes do meu, é claro. Porém, no dia seguinte ao plano de ... Era óbvio que ela ia pensar que havia sido vitoriosa em seus planos malucos, e eu odiava estragar seus sonhos. faria isso muito melhor do que eu.
"Merda, ... Quer uma visita de todo mundo? Ou quer que assaltemos a casa dele e façamos uma fogueira na cama com ele nela?"
Eu ri, é claro.
"HAHAHA 1, não estou em casa. 2, já disse que estou bem. Vê se controla os ânimos desse povo. Tente manter todo mundo longe de acabar na cadeia. Gosto das minhas amizades assim, sem ninguém preso por homicídio."
"Sim senhora, chefa. Você quem manda. Porém... Onde raios você está?"
Aimée saiu do vestiário parecendo a Madonna em "Procura-se Susan Desesperadamente", sem a maquiagem. Quase bati palmas para a imitação dela.
— Só passeio com você se você estiver vestida assim! Devíamos passar em um cabelereiro e cortar seu cabelo e pintar ele igual.
— Mamãe ia se matar. Ou nos matar. Ou nos matar e depois se matar.
Rimos.
— Boa! Se ela ficar brava pelas roupas, digo que pelo menos não pintamos seu cabelo e cortamos ele no ombro. Tudo certo!
Aimée apontou pra mim reconhecendo a brilhante ideia e voltou para o trocador.
"No shopping, com Aimée. Longa história, mas estou me divertindo. Talvez passe por vocês mais tarde, tenho que entregar o fim do trabalho de História pra digitar e devolver um livro da biblioteca."
Passamos boa parte da manhã passeando pelo shopping depois que comprei as roupas de Aimée (com o cartão de débito do papai, haaaahahah) e ela se trocou no primeiro banheiro que vimos. Por passear pelo shopping, entenda: ficamos horas dentro de uma livraria.
— Eu não devia ter ficado todo esse tempo te evitando, Anne. — Aimée surgiu de trás da estante que eu analisava, assustando-me levemente. Ela riu. — Eu devia ter percebido muito antes que a culpa não era sua, que você não tem nada haver com a incapacidade mental dos meus colegas de escola. É só que...
Ela parou, como se já tivesse falado de mais. Como se mais do que isso ainda fosse muito para ser dito tão cedo, por mais sincero que fosse. Eu conhecia esse sentimento.
— Méme, eu já disse que está tudo bem. Você está se cobrando demais. — sorri.
— É só que... Você não fez nada. Você continua a mesma pessoa de anos atrás, você ainda faz o que quer sem pensar no que vão achar. Só que, dessa vez, resolveram gostar dessas coisas. Ao contrário de como era na Holliang. Eu... Eu só estou feliz de saber que você não mudou a si mesma, os outros que mudaram o modo de te ver. Isso... É importante, pra mim, de certa forma.
Percebi seu desconforto e a puxei para dar um leve cróc em sua cabeça enquanto a abraçava.
— Os outros não importam, Méme. O importante é estar feliz consigo mesmo, mais que isso é frustração gratuíta. Tem poucas pessoas que valem alguma confiança, Aimée. — a afastei, fizando meu olhar no dela. — E dentre essas pessoas, você pode sempre contar comigo. Por favor, eu imploro, conte comigo.
Ela fez um aceno afirmativo com a cabeça, séria.
— Agora vamos pagar esses livros! — apontei para a pilha em cima da mesa mais próxima e ela riu.
— É quase explêndido o fato dos meus colegas admirarem uma nerd como você sem sequer lerem os livros que a Ferdinand exige!
— Nerd como eu, olha quem fala! Já fiz o trabalho e os exercícios e blãblãblã. — a imitei, recebendo um soquinho. — Deve ser a genética. Papai era um nerd, mamãe já deve ter lido cada livro que existe na biblioteca de casa, até os que eu comprei.
— Tudo culpa deles.
— Tudo culpa deles. — concordei. — Devíamos comprar um bolo de presente pra eles, como agradecimento.
— Demorou, mana.
Passei o braço pelos seus ombros, rindo, e a puxei pra perto, fazendo com que caminhássemos juntas, no mesmo ritmo. As duas com um sorriso de 36 dentes.
Era um começo

*

Arrependi-me da escolha de não ir para a aula na primeira batida na minha porta. Não era , já estava tarde para ser . Levantei e fui direto para o banho, sem conferir quem era. 11h30, ainda dava tempo de pegar a última aula. Qualquer coisa para escapar de Nikki.
Saí do quarto pronto para passar reto pela sala.
!
— Tenho que ir pra escola, você se vira pra almoçar, certo?
Não olhei, mas notei uma queda perceptível de animação na postura de Nikki.
— Eu pensei que fôssemos, ahm, não sei, almoçar em algum lugar...
— Você pode ir, eu tenho que ir para a escola. Volto mais tarde. Tem uma chave reserva na primeira gaveta embaixo da TV.
Fechei a porta antes de ouvir uma resposta, mas pude ver e incredibilidade no olhar de Nikki. Satisfação define. Fui para a Ferdinand sorrindo. Sorrindo até chegar na mesa onde , e estavam. Havia outras pessoas ali também, além de , e . Na verdade, e quase não estavam ali, eles estavam em um mundo próprio. Até eu chegar na mesa. foi a primeira a me ver.
O silêncio chegou aos poucos.
— Boa tarde. — comprimentei todos, passando pela mesa e jogando a mochila ao pé da árvore mais próxima. Entendi que não era bem vindo na mesa, mesmo sem saber ao certo o motivo.
Não, é claro que eu sabia o motivo. , e pareciam confusos com o ar pesado que surgiu com a minha chegada. O resto deles parecia bem certo do porque me olhavam feio, e o resto deles eram garotas ou... Gays. já os havia me mostrado, para o caso de alguns deles parecerem interessados demais em conversar comigo. Besteira, mas foi o suficiente para eu entender que aquilo era por causa de . O que ela havia dito? Ou ela não havia falado sobre ontem, apenas que nós havíamos nos beijado? E então eu era o machista que estava ignorando quem era simplesmente para o meu bel prazer. Podia sentir o julgamento deles, e eles estavam certos. Mesmo que não fosse isso, deveria ser. A culpa corroía minha consciência, que gritava.
E aí ela apareceu, na porta do prédio principal, abraçada de lado com alguém que parecia ser sua irmã. Tinha a altura da sua irmã, e o mesmo cabelo loiro cheio de caxos grandes. Porém, havia algo de diferente... As roupas e o sorriso no rosto, pra começar. Assim ela se pareciam ainda mais, mas não aquele parecido de irmãs gêmeas. Não, era sutil, mas evidenciava a genética comum das duas em cada sutileza. O cabelo preso no clássico desleixado de , os caxos de Aimée jogados quase todos para o mesmo lado, presos por um grande laço preto. A clavícula exposta, o pescoço, eram detalhes tão idênticos que se olhassem só para eles, elas poderiam ser a mesma pessoa. Era mesmo Aimée, e elas vinham em nossa direção.
— É você, Aimée? — um dos garotos perguntou, a boca permanecendo aberta quando recebeu um tímido sim.
— O que acharam do novo estilo dela? — rodou a irmã, que ficou corada. Até isso elas tinham em comum. Irritantemente fofas. Todos aprovaram as roupas de Aimée, que sorriu mais. — , o fim do trabalho! — jogou alguns papéis no colo de , que resmungou.
— Nós vamos para o parque depois da aula, . Você vem? — Becky esticou a cabeça para que pudesse vê-la.
— Não sei, Becky... Vou assistir o ensaio de ginástica da pirralha aqui, hoje. — ela apertou o abraço ao redor da irmã.
— É, nunca se sabe quando eu vou resolver voltar a agir como um vaca. — Aimée brincou, revirando os olhos.
Ela devia estar extremamente nervosa de estar aqui, falando com todas aquelas pessoas mais velhas. Era provavelmente por isso que a abraçava, como se desse coragem para a irmã com o ato. Funcionou, pelo menos um pouco. Todos riram.
deu um tapa nitidamente carinhoso na testa de Aimée, soltando o abraço o mínimo possível.
— Você está perdida, nunca mais vai conseguir se livrar de mim. Bom, eu vou lá, só passei para deixar isso e devolver o livro.
Seus olhos rapidamente encontraram os meus. O livro, é claro. No final ela não foi para a biblioteca devolvê-lo, ontem. Por quê? O que a havia feito mudar de ideia? Poderia afetá-la tanto o que ela havia visto na sala de casa? Mesmo sem saber o que ela realmente havia visto? Ou o livro fora apenas um pretexto para ela me procurar? E, nesse caso, ter encontrado o pior cenário possível. Eu precisava falar. Precisava explicar, mesmo que não mudasse nada. Ela precisava saber.
, posso falar com você? Hm, a sós?
Todos os olhares voltaram-se para mim. Senti a confusão de meus amigos e a ira dos amigos dela, mas eram os seus olhos que me prendiam.
— Sinto muito, , não dá. Estou ocupada. Boa aula pra vocês.
Ela acenou para os amigos, dando as costas em seguida. Sua irmã continuou me olhando durante esse processo, antes de acompanhar a irmã. Como se tentasse dizer algo. Ou ler algo. Ou qualquer coisa. Talvez, o que ela queria dizer fosse exatamente o que eu vi em seguida. Que era independente. Que não precisava de nada, pelo menos não de mim. Ela não precisava das minhas desculpas.
Por último, observei o quanto as duas pareciam legais juntas. Daquele tipo de legal que atrai o olhar de todos, e que faz um sorriso surgir no seu rosto. Aquele tipo de legal livre, era isso. As duas pareciam irradiar liberdade. E assim elas saíram pelos portões da Ferdinand. Seus amigos me lançaram olhares reprovadores antes de sair, mas eu não os dei atenção.
— Que merda foi essa, ? — perguntou, chamando minha atenção.
Não havia mais ninguém na mesa, apenas eles. Nem mesmo .
— Eu... Eu não sei. Que merda?
revirou os olhos.
— Lembra quando a apareceu na frente de casa ontem, e nós estávamos na porta, e eu disse pra ela que a porta estava aberta pra ela pegar o livro e etc? Ela encontrou o se comendo com a Nikki.
— Mas já??? — exclamou.
— Pois é, eu não imaginei que fosse ser tão rápido.
A parte comovente é que eu nunca havia contado de Nikki para ou . devia ter se responsabilizado.
— Eu não comi ninguém, quem te disse isso? — optei pela pergunta mais fácil. Não queria brigar agora.
deu de ombros.
— Foi o que eu ouvi.
— Como assim foi o que você ouviu? Quem ia saber disso?
— Esse não é o meu departamento, .
. O próximo que me chamar assim vai ganhar uma fratura. Exposta.
— Ela encontrou Nikki de lingerie na sala, e entendeu tudo errado. Nikki estava em mais um de seus joguinhos, mas não ia funcionar, e não funcionou. É claro que não tinha como saber disso, e deve ter achado que... Sei lá o que ela achou, mas pelo visto não passou nem perto do que realmente aconteceu.
— Então... Ainda não entendi. O que isso tem haver com toda a comunidade gay, e te lançando olhares de ódio? — coçou a cabeça, visivelmente confuso.
— Não sei. — menti. Provavelmente a primeira merda era tê-la beijado, e a segunda era ter uma garota seminua sozinha comigo em casa. Fazia sentido.
— Ele a beijou. — disse, sem olhar pra mim. — se amassou com no sofá da minha casa e não me contou nada. E aparentemente ela tinha gostado.
Agora ele olhava pra mim, enquanto e tinham reações anormais. Eles podiam estar numa série crise epléptica. No entanto, não era isso que me preocupava.
— Como você... Quem te contou isso?
É, quem foi que disse que ela gostou? A fonte é confiável? Preciso falar com ela, agora é sério. Como assim ela gostou? Ok, é claro que ela gostou... Não foi ela quem parou, das duas vezes. Das duas maravilhosas vezes. Ridículo, mas foda-se. Isso ficou ainda mais claro quando foi ela quem beijou primeiro ontem. Era o que ela queria com aquilo que eu não sabia.
— Bom, a usa a mesma sala de música que eu, e também.
— Mas vocês nunca foram amigos. — estranhou.
— Nunca tivemos nenhum problema, também.— deu de ombros.
— Não, não, impossível. não foi na sala de música essa semana. — desmentiu, convicto.
— Conversei com ela no corredor, .
, para de mentir. Quem te falou isso? Nem pra mim ela falou algo, porque teria dito isso pra você em um encontro casual no corredor?
suspirou.
— Eu vou saber, ?
Eles desistiram. Eu não me importei. Devia ser apenas fofoca.
— Você beijou ela, cara! Parabéns. — deu um soco no meu ombro.
Sorri amarelo.
— É...
, eu vou perguntar pra . Se ela disser que não te disse nada, você vai ter que se explicar. Mentir pra gente, cara? Qual o motivo? — deu o soco não muito gentil no ombro de .
— ... Tudo bem. Foi a , ela que me contou. Eu estava assistindo TV na sala de casa e ela estava com a mãe dela e a minha na cozinha, até que veio conversar comigo pra dizer que ia quebrar a sua cara caso você ferrasse com a amiga dela. Acho melhor evitar ficar sozinho na presença dela, .
Ah, obrigado por me avisar agora, . Aposto como você não ia contar nada disso e eu ia apanhar de qualquer jeito.
— Mas eu não fiz nada! — massageei as têmporas, exausto. — Ela entendeu errado, já disse, Nikki...
— Você a beijou. Fim. Lésbica, lembra? Eu te avisei, cara.
— A... A disse algo sobre isso?
— Não, mas é óbvio, não é? Você só deve ter confundido a garota. Pior, você não pode mudar as pessoas, . Ela pode até pensar que gosta de você, mas uma hora a natureza dela vai falar mais alto. Eu penso no seu bem quando digo pra não se envolver com ela. Pelo menos não emocionalmente... Pelo menos isso.
Vi, pela primeira vez em algum tempo, pura preocupação no olhar de . Isso não costumava ser bom. Isso costumava ser pessoal. O que podia significar muitas coisas, como já ter passado por algo parecido ou ter experiência própria. Com .
Não, isso eu não podia imaginar.
Apesar de fazer sentido.
Não, não fazia sentido. Cala a boca.
— Vamos pra aula de uma vez, vai. — levantou, sendo seguido por todos.
Fiquei por último devido a ausência de vontade de existir.

*

— Então eu entro chutando a bunda de todo mundo que você apontar. Ou posso estar com roupas estranhas, pra eles verem como você tem um gosto muito melhor que o meu. Não vou nem precisar me trocar.
Aimée estava vermelha de tanto rir, tendo que colocar a batatinha que havia acabado de morder pra fora da boca para não engasgar.
— Melhor não fazer isso na frente deles, ou vão te achar nojenta. Não que eu tenha achado.
Ela juntou o máximo de ar que conseguiu antes de falar:
— Para de me fazer rir!
Tampei a boca com as duas mãos, escancarando os olhos. O que, obviamente, a fez rir. Desci as mãos deixando um sorriso no lugar. Era o mínimo que eu podia fazer pela ajuda incrível de Aimée nesse dia. Sem ela, sabe-se lá como eu teria reagido a tentativa de de falar comigo. Certamente não teria agido tão casualmente, deixando-o para trás como se não me importasse com o que ele tinha pra dizer. Como se não eu estivesse gritando para ele dar uma desculpa razoável o mais rápido possível.
— Tem uma coisa que eu quero fazer. — ela declarou.
— Sou toda ouvidos, mana.
Aimée riu.
— Ok, mana.
E então ela explicou seu plano mirabolante.
Quando passamos pelo portão principal da escola de Aimée, eu me perguntei como ela aguentava aquilo. Cada olhar virou na nossa direção, e eles estava claramente me observando. E então viram Aimée. Alguns queixos caíram, outras bocas sussurraram, mas continuamos andando, Aimée minimamente na frente, mostrando o caminho.
Dessa vez não nos abraçávamos, cada uma com as mãos nos bolsos da sua jaqueta, com aquele andar que exige respeito. Era isso que Aimée queria, ela estava cansanda da imagem de babaca. Ela queria que pensassem duas vezes antes de virem enxer o saco dela sobre mim, e eu a apoiava ao máximo com isso. Mesmo que fosse através do medo. Tentar ser legal não havia a favorecido todos esses anos, e muito menos ser indiferente.
— É aqui. — ela indicou o campo de futebol americano com a cabeça. — O equipamento de som fica nessa sala...
Ali ninguém olhava para nós, e antes que as líderes de torcida nos notassem, entramos. O equipamento não era dos mais complexos, e toda a fiação já estava pronta. Foi só ligar.
— Ok, pode ir lá. Dou conta disso. Vou te assistir na porta. — pisquei, e ela riu.
— Isso vai ser épico.
E então ela saiu da sala, e eu peguei o iPod. Espiei pela porta e vi que Aimée já estava pronta, passando por cima da grade que separava o campo da arquibancada. Deixei a música tocar, aumentando o volume do equipamento, e voltei para a porta.
Então todos olhavam para os autofalantes, em seguida notando Aimée.
Aha, aha
Stupid girls, stupid girls, stupid girls
Ela atravessava o campo todo, cantando a música para si, sem grandes interpretações.
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno Paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Go to Fred Segal, you'll find them there
Laughing loud so all the little people stare
Looking for a daddy to pay for the champagne (Drop a name)
What happened to the dreams of a girl president
She's dancing in the video next to 50 Cent
They travel in packs of two or three
With their itsy bitsy doggies and their teeny-weeny tees
Ela olhou para as líderes de torcida, como se cantasse para elas. Algumas pareceram bem ofendidas. O time de futebol parecia querer rir, alguns aplaudiam, e mais pessoas foram chegando, atraídas pela música. Ela tirou a jaqueta e a jogou no chão.
Aimée chegou até a mesa da treinadora, pegou o caderno que estava em cima e rabiscou algo. Em seguida alongou os braços e olhou para mim. Ela sorriu, e então começou a correr.
I'm so glad that I'll never fit in
That will never be me
Outcasts and girls with ambition
That's what I wanna see (Come on)
Ela voltou toda a extensão fazendo acrobacias que eu jamais havia a visto fazer. Nos jogos da escola, Aimée era sempre a base de algo, ou apenas balançava os pompons. Suas colegas pareciam tão surpresas quanto eu. Em uma estrela, ela pegou sua jaqueta no chão, voltando a vesti-la sem parar com as piruetas e sei lá mais o que ela fazia. Só sei que era legal.
As palmas já estavam ritmadas com a música, todos pareciam curtir Aimée, menos as outras líderes de torcida. Ela alcaçou a grade, finalmente encarando as colegas com um sorriso.
Baby if I act like that, flipping my blond hair back
(Baby if I) Push up my bra like that, stupid girl!
Aimée acenou com cinismo transbordando cada ato seu, e saiu do campo pelo menos lugar que entrara.
— Vê se aprende algo com essa música, Kat.
A plateia caiu na gargalhada com esse último comentário, e uma das líderes ficou de boca aberta, provavelmente incrédula com a ousadia de Aimée. Devia ser a Kat.
Tirei o iPod e sai da sala ao mesmo tempo que ela passou por ali, e segui-a rindo.
— As babacas nunca me deixaram fazer mais do que balançar os malditos pompons, espero que elas se arrependam até a morte por isso. Cancelei minha inscrição, tomara que elas se fodam nas federais e nem cheguem nas estaduais.
Alguns deram tapinhas nos ombros de Aimée, garotas a olhavam como se quisessem beijar seus pés. Agora ninguém me via, a atenção era toda de Aimée. E ela parecia pouco se importar.
— Não é por ser a sua irmã não, mas eu tenho que tirar o chapéu pra essa sua performance.
Ela inclinou a cabeça para poder olhar pra mim, um sorriso dançando nos lábios.
Uma voz masculina chamou pelo nome de Aimée algumas vezes antes de nos alcançar. Paramos de andar, Aimée fechou sua expressão enquanto o garoto recuperava seu fôlego. Ele tinha cabelos pretos em caxos sedosos e olhos em um tom muito bonito de castanho claro, que não chegava a ser mel.
— O que foi, Noah?
O garoto se ergueu, mostrando que era alguns centímetros maior que Aimée, porém ainda menor que eu. Ótimo, dá pra bater se precisar.
O que foi? Instinto natural de irmã mais velha é algo meio inevitável.
— Eu só... Queria dizer que adorei o que você fez lá atrás. A Kat tá espumando, provavelmente porque você é muito melhor que ela.
— É, ela não conseguiria lidar com isso. Só ela saber disso já era ruim o suficiente, quem sabe agora ela não vira gente?
Aimée deu as costas ao garoto e voltou a andar.
— Aimée! — Noah a chamou, de novo.
— O que é, Noah?
— É que... — ele olhou pra mim, e voltou pra ela.
Revirei os olhos.
— Não estou aqui. A não ser que ela queira que eu esteja. — estralei os dedos disfarçadamente, recebendo um olhar de medo de Noah.
Aimée apenas assentiu, e eu me afastei.
Olhei-os de alguns passos de distância, observando a mudança notável da cor das bochechas de Noah e a impassividade de Aimée. Ele devia estar convidando-a pra sair, ou algo assim. Ela deu de ombros e veio até mim. Pela cara dele, a resposta não foi a esperada.
— Maldito imbecil. — Aimée reclamou, novamente tomando a liderança de nossa caminhada. — Três anos inteiros pra me convidar pra sair e espera eu fazer isso pra criar coragem. Igual a todos os outros imbecis. Mais um.
— O que ele disse?
— Ele disse "Sua coragem me deu coragem pra fazer algo que eu devia ter feito no dia que te conheci blablabla!" — ela imitou o jeito do garoto com destreza, em um claro deboche. — Eu devo ter um idiota bem grande escrito na testa.
Afastei sua franja para conferir, recebendo um olhar de incredibilidade que virou uma gargalhada em seguida.
— Não, nada escrito. A não ser que só aqueles que abusam de imbecis possam enxergar. O que explica porque eu não tô vendo, devo ter um na minha testa também.
— Deve ser. Casa? Depois eu me inscrevo em alguma atividade física, quem sabe handball? Aí essas infelizes vão ter que torcer pra mim nos jogos da escola.
Fomos para o carro rindo.
— E então, o que você disse pra ele? O Noah.
— Disse que ia pensar, se não tivesse nada melhor pra fazer amanhã... — Aimée deu de ombros.
— Outch! — comentei, entrando no carro.
O sorriso que ela deu era de pura malícia.
— O caso dele é pior que todos os outros. — ela suspirou, mas foi um suspiro de impaciência. Não havia uma gota de lamentação na sua voz. — Noah foi legal comigo, quando ainda me ignoravam e não te veneravam. Ele sentou perto de mim algumas vezes, mas aí todo mundo começou a falar de você.
Isso não podia dar em boa coisa. Arrependi-me de perguntar no instante em que Aimée disse "você".
— De primeira ele não disse nada, mas ele começou a andar comigo e essas coisas. Eu... Bom, eu achei que estivesse me apaixonando por ele e etc, e ele era meu único amigo e tal, a única pessoa que não falava de você pra mim. E aí... Argh, e aí ele perguntou se você ia sair pra sei lá onde!
Quê?
— Quê?
— É, ele tava estranho naquele dia, e do nada disse que umas pessoas iam no parque no sábado e perguntou se você ia!!!
— Hm... Aimée...
— É, ele tava com o rosto corado, e já tava estranho antes, então eu ACHO que ele ia me convidar pra sair, mas ele tinha que escolher VOCÊ pra tocar no assunto??? Foi tudo por água abaixo, depois disso mal nos falamos. Hoje eu sei que talvez fosse só uma desculpa, mas na hora? Haha... Às vezes ele diz oi, mas nunca deixo ir além disso. E agora ele decide abrir o coração pra mim? Vai se foder.
Minha irmã, 13 anos, vida amorosa maior que a minha, falando vários palavrões. Ok, não, mas... Sim! 13 anos! Respira fundo.
— Hm, então você... Não vai sair com ele?
— Acho que não, vou fazê-lo esperar. Se der vontade daqui uma semana ou duas, quem sabe.
Tentei engolir que esse garoto devia estar interessado nela desde os 10 anos e liguei o carro. Assustador, com 10 anos eu era um monstrinho e Aimée já estava arrebatando corações. Ok, eu disse que ela era linda.
— Então, casa? — perguntei, ligando o rádio.
— Sim, vamos encarar a fera.
— Oh, isso vai ser divertido!
E, ao som de Paramore, fomos encarar o destino. Não podia ser tão ruim, afinal, nossos atos não desencadiariam uma guerra nuclear. Pense por esse lado, e siga sempre em frente.
Nada que não tenha desencadeado uma guerra nuclear é tão ruim que não possa ser arrumado.


Capítulo 22 — I've got a war in my mind. So, I just ride. Just ride.
(Ride — Lana Del Rey)

A discussão em casa não foi pouca, mas teria sido bem maior sem a intervenção de papai. Eu já havia dito que não eram peças absurdas, que Aimée as usaria junto com suas roupas, e que Donna não podia ficar escolhendo as roupas dela para sempre. Ainda assim, Donna batia o pé. Ridículo.
— São roupas bonitas. — Richard massageou os ombros de mamãe e o assunto morreu ai. Carreguei as roupas, levando-as para o quarto de Aimée, e ajudei-a com o guarda roupa. Quando acabamos, Aimée me abraçou.
— Obrigada, Anne.
— Qualquer hora do dia, Méme.
Ela sorriu abertamente pra mim e então nos separamos para tomar banho. Antie já trabalhava árduamente na cozinha, e claro que Donna não a deixava em paz. Pra quê ser rica se, numa hora dessas, ela não conseguia contratar um buffet e relaxar? Não, ela precisava estar sempre no comando. Era um alívio que Donna não tivesse um chicote. Antonella, por sua vez, era a alegria em pessoa. Ela adorava cozinhar, e era uma das poucas pessoas que não se incomodavam com o humor de Donna Marie . Antonella e papai deviam ser as únicas pessoas no mundo que conseguiam sorrir enquanto Donna descontava toda a sua ira no mesmo cômodo que eles. De qualquer modo, eu precisava mesmo de um banho. A banheira foi enxendo enquanto eu colocava o iPod em uma playlist bem calma. Nada de Radiohead, o ambiente era muito propício ao suicídio. E por mais que, às vezes, nada me acalme mais do que Radiohead (mentira, tentem música clássica, se não acalmar então procure um médico), eu sei bem que é meio depressivo demais de se ouvir.
Enfim, Lana Del Rey tocou enquanto me despi e encaixei o roupão perto da banheira. É, Lana Del Rey, bem menos depressivo. Finalmente entrei na água, uma perna de cada vez, sentindo o calor chegar até a minha cabeça. Estava quente o suficiente para avermelhar minha pela, mas nada insuportável. Estava bom. Inspirei e afundei até deixar somente a cabeça de fora. Expirei.
I hear the birds on the summer breeze, I drive fast
I am alone in the night
Been tryin' hard not to get into trouble, but I
I've got a war in my mind
So, I just ride
Just ride, I just ride, I just ride
(Eu ouço os pássaros na brisa de verão, eu dirijo rápido/ Eu estou sozinha na noite/Venho realmente tentando não me enfiar em problemas, mas eu/Eu tenho uma guerra na minha mente/Então, eu apenas dirijo)
Nem Deus sabe quanto tempo eu fiquei ali, de olhos fechados, mas quando Aimée bateu na porta do banheiro a água já estava quase fria. Avisei que já ia e abri o ralo, deixando a água escorrer para ligar o chuveiro e de fato tomar banho.
— Seu celular não para de tocar! — Aimée disse assim que eu saí do banheiro vestida com o roupão. — E mamãe vai vir aqui se você não descer em... Cinco minutos.
Dei de ombros.
— Posso me virar com esse tempo.
— Separei algumas roupas pra você.
Em cima da minha cama haviam quatro combinações de roupas, todas sociais. Vestido seria mais rápido, então peguei o azul marinho e uma meia branca e vesti na velocidade da luz. Prendi meu cabelo molhado em um coque, com a total ajuda de Aimée, e passei a maquiagem mais básica do mundo. Sapatilha azul reluzente e: Pronto!
Como sempre, estávamos prontas antes da visita chegar. Sentamos na sala, onde nossos pais estavam, e a música ambiente já tocava. Alguma Bossa Nova, o que era a cara de Donna. Tudo bem, se ela não gostasse tanto de música estrangeira eu talvez jamais tivesse me interessado também. Algo de bom, sim. Destravei o celular distraidamente e vi as mensagens e chamadas perdidas. Dessa vez havia mais mensagens e ligações de , o que era estranho, então comecei por suas mensagens. Resumidamente, eram todas exigindo que eu fosse para a casa de e depois do jantar. Ela estava surtada porque continuava agindo como se mal a conhecesse, mas pelo jeito ele não estava tratando-a mal ou fugindo da reunião. Um começo, talvez, apesar de um começo péssimo. precisava de alguns tapas pra virar um ser humano de verdade, mesmo.
Respondi pra ela parar de surtar e disse que eu não sabia que horas esse jantar ia acabar. Por fim, disse que iria, mas só se ela parasse de pensar nisso e aproveitasse a noite. Um dos meus compositores favoritos tocava quando a campainha soou. Antonella foi abrir a porta e todos saímos para o hall. Margaret vestia uma saia cumprida e bem solta, preta, com um véu também preto por cima. A blusa lilás de cetim era coberta com um casaquinho também preto, e seu cabelo estava solto em belíssimas ondas que eu jamais havia visto. Margaret estava sempre de cabelo preso, e em um coque.
— Seja bem vinda, querida. — Donna deu o primeiro passo para recebê-la.
— É um prazer finalmente conhecê-la, senhora .
— Por favor, por favor, apenas Donna. Este é meu marido Richard, e está é nossa filha mais nova, Aimée. você já conhece, é claro.
Margaret cumprimentou cada um de nós com um beijo no rosto. Eu estava sorrindo, sem precisar forçar, porque a presença de Margaret era sempre contagiante. No Teatro, se ela estava concentrada, eu estava concentrada. Aqui era o mesmo, e ela estava feliz. Então, eu estava feliz. O celular vibrou na minha mão, e eu esperei todos entrarem na sala de visitas antes de conferir a mensagem.
"Oh, e você entendeu errado. A tal Nikki é uma amiga de infância do , mas parece que eles não se falavam a muito tempo. A garota é meio louca, e o ficou tão surpreso quanto você por ela ter ficado só de lingerie, por isso ele não conseguiu dizer nada. Ou algo assim. Achei que você ia querer saber."
Ao contrário do alívio que eu pensei que sentiria, apenas senti um vazio. Não, aquela informação não mudava muita coisa, além de que podia ser mentira. Aquilo também não mudava o fato dele ter fugido de mim depois que eu o beijei. Não mudava o jeito como ele ignorou tudo depois que interrompeu nosso primeiro beijo de verdade. A verdade é que eu estava cansada, com coisas demais na cabeça. Eu precisava de um tempo, eu precisava de descanso. Deixei o celular sobre o móvel que servia para guardar os pertences das visitas e entrei na sala.
— Então o bom gosto musical de foi herança materna? — Margaret perguntou, reconhecendo a música, Caetano Veloso era alguém que todos sabiam que eu gostava. As diversas camisetas que eu havia mandado fazer e até mesmo feito eu mesmo sobre ele denunciavam isso.
Um gosto em comum com mamãe, quem diria.
— Parcialmente, o lado roqueiro clássico dela é culpa minha. — meu pai ofereceu uma taça de vinho para as mulheres.
Puxei Aimée para dançar aquela bossa tranquila, com classe, é claro. Não ia envergonhar Donna em sua própria casa. "Você É Linda", talvez você conheça. É bonita até mesmo sem entender o que ele canta, por sorte minha mãe tinha um livro que traduzia todas as músicas dele para o inglês. E essa era realmente uma música linda. Girava Aimée, que sorria, e notei a expressão levemente surpresa de papai. Realmente, nós duas juntas no shopping já era uma novidade. Nós duas dançando e sorrindo por vontade própria podia ser assustador. Porém, papai parecia feliz com aquilo.
A conversa seguiu por um bom tempo antes do estômago falar mais alto. Margaret contou que havia visto mamãe atuar quando estava no colégio, e então mamãe contou sobre muito dos seus anos de teatro, e até quando Antonella nos chamou para a mesa a conversa não parou. Salão de Jantar especial, é claro.
— As crianças estão no quarto dos fundos, elas estão com saudades, mas já dormiram. — Antonella falou, aproveitando que eu estava por último e ainda não havia entrado na sala. — Acho que vou ficar com elas por aqui amanhã, você vai ter tempo?
— Mas é claro, Antie. Para aquelas fofuras, eu tenho tempo sempre. — sorri e entrei na sala, sentindo o coração mais leve. Logo estaria brincando com Cloe, Astrid e Gabe, isso melhoraria qualquer semana ruim que eu pudesse ter.
Bom, chester era o prato principal do jantar, então não lembro muito bem do resto, mas quando dei por mim Donna estava indo mostrar seu guarda roupa do Teatro para Margaret. Como isso havia acontecido? Encarei as duas saindo da sala com os olhos arregalados. Devia ir junto? Era seguro? Talvez Donna estivesse apenas fingindo a noite toda, e planejasse assassinar Margaret. Que coisa horrível. Ela não é tão Stalin assim, e, aliás, Stalin jamais matava com suas próprias mãos. Respirei aliviada e voltei a atenção para a deliciosa torta de morango. Já eram dez horas da noite, Margaret e Donna voltaram em alguns minuros, ainda conversando animadamente. Porém, Margaret logo despedia-se e deixava a casa. Donna não calava a boca sobre uma peça que havia sido convidada a assistir, e Richard disse rindo que compraria os ingressos. Aproveitei o momento para anunciar que ia encontrar as garotas e voltaria depois do trabalho comunitário, amanhã. Donna acenou como se dissesse "Tanto faz, querida." e voltou a tagarelar com papai.
Subi e separei uma troca de roupa para o dia seguinte, escola de dente e a nécessaire já pronta, guardando tudo em uma bolsa, e saí.
As luzes na casa de estavam todas acesas. Ouvi um "Deve ser a !" quando bati na porta, e em seguida a abria.
! Estamos jogando algo que você ADORA!
Eu não precisava nem ter visto o que era pra saber que não podia ser boa coisa. Twister. Revirei os olhos.
, você sabe que eu não gosto de jogar isso porque sempre humilho todos, e não acho isso bacana da minha parte.
Eles gargalharam. Já estava todos pra lá de bêbados, é claro. O que dificultava um pouco as coisas no Twister. caiu, levando e Nikki consigo.
— Mas que porra, !
— Meu nome é , !
— Tem certeza? Achei que fosse Maria Mole! — se levantou rindo e pegou um copo de batida de morango.
Batida de morango não.
Mais ninguém prestava atenção em mim, então aproveitei para sentar no chão, apoiada no braço do sofá. Memórias, aquela sala trazia memórias demais. Fiquei ali em silêncio por algum tempo, ouvindo-os ficarem cada vez mais bêbados. O cansaço já havia me consumido, mas parecia achar sempre algo novo para me deixar ainda mais cansada. De repente subiu, despedindo-se com um tchau geral. Logo estava do meu lado.
— Você pode me segurar, antes que eu faça algo errado?
Pensei em dizer que ninguém notaria a ausência dela, mas lembrei que não merecia minha ajuda naquilo. Ela não iria atrás dele, não se dependesse de mim.
— Pode apostar, baby.
Virei-me para achar uma almofada e encontrei o olhar de . Por sorte, estava distraída demais e passei direto por seu olhar, encontrando a almofada e puxando-a, voltando à posição anterior e colocando a almofada ao meu lado.
— Pode deitar, você vai dormir rápido e então não vai ter como fazer nenhuma idiotice.
riu.
— Até parece que vou conseguir dormir tão rápido com tanto pensamento idiota na cabeça...
Mal passaram cinco minutos e já estava roncando. Ri pra mim mesma, sentindo o sono me embriagar. Ela já dormia, eu podia dormir também... E ao som de risadas altas e algum programa de pergunta e resposta na TV, adormeci.

*

Acordei de mal jeito no chão, e apenas a dor me fez mudar a situação. Levantei, desligando a televisão, e observei as outras pessoas nos colchões que estavam em cima do tapete da sala. Nikki estava no sofá, então só sobrava uma opção: a minha cama. Teria que subir. Apaguei a luzes e encontrei toda torta, apoiada no sofá, quase caindo sobre . Dei um longo suspiro, dividido entre dor e ternura. Não podia deixá-la ali, o torcicolo seria inevitável se ela passasse a noite assim. Lavei o rosto na pia da cozinha e me sequei, pronto para fazer o que devia.
Fui até e abaixei, encaixando um braço em volta de sua cintura e outro embaixo de seus joelhos. Levantei com um pouco de dificuldade, por causa do sono, mas foi o suficiente. Subi com dificuldade, mas sem machucá-la, e segui pelo corredor até o meu quarto. Nunca agradeci tanto pela casa ser pequena. Empurrei a porta com as postas e entrei, indo até a cama e deitando .
Pesada. Não que eu fosse forte, ainda mais com resquícios de bebedeira.
Ela parecia um anjo. Maldita comparação imbecil, mas sua expressão era tão calma... Soltei seu cabelo, sabendo que ela não acordaria, ou torcendo para que ela não o fizesse, e o estendi pelo travesseiro. Seu vestido azul marinho não era solto, mas também não era justo. Era um vestido social. Tirei suas sapatilhas e deixei-as ao pé da cama.
Linda. Ela é extremamente linda.
Cobri-a com o edredom e então fui até meu armário, pegando outro edredom. Não poderia deitar na mesma cama que ela, me mataria. Ou faria algo pior, como nunca mais me olhar na cara. Já estava sendo ruim o suficiente um dia, imagina pra sempre? Peguei outra coberta e puxei um travesseiro da cama. Montei tudo do lado da cama, há dois passos de . Podia não deitar com ela, mas iria dormir vendo-a. E o sono do momento não me deixaria julgar o quão babaca eu estava sendo.
ficou de lado, quase como se quisesse que eu tivesse uma visão melhor de si, e eu me cobri, também ficando de lado. E foi observando sua respiração tranquila que dormi.
E foi com leves chacoalhões que acordei, parecendo ter o mundo na minha cabeça. Não devia ter dormido nem uma hora.
? ?
estava na minha frente, sentada com as pernas dobradas para o lado, por causa do vestido. Pisquei algumas vezes.
— O que foi? Algum problema? Que horas são?
— Tarde. Ou cedo. Não, não é nada, é só que... Bom, você me trouxe aqui e deitou no chão. Achei injusto e estou me sentindo muito boazinha agora.
— Hm...
Ela falou depressa demais, e confusa demais, e meu sono não permitiu que eu interpretasse o que ela dizia.
— Vem pra cama, é grande. Não vou te atacar... A não ser que você me ataque primeiro.
— Não precisa, , aqui tá... Bom.
Pela minha careta, ela deve ter entendido que não estava nada bom. Minhas costas doíam. E o meu pescoço.
— Vem logo, , eu só chuto dormindo de vez em quando, e duvido que vá te acertar.
Mesmo com sono, ri, e deixei que a mão de me levasse. Não, não podia ficar com ela na minha cama. Os sonhos que eu vinha tendo inundaram minha mente... E então ela me jogou na cama, rindo, e foi para o outro lado deitar. E o colchão estava tão macio...
— Gosto daqueles adesivos fluorescentes pra teto, sabe? Minha mãe nunca me deixou colocar no meu quarto... — falava tão baixo que se não fosse o silêncio da madrugada, jamais a teria ouvido.
— Você ia gostar do meu quarto no Canadá.
Ficamos em silêncio, encarando o teto, até que adormecemos. Sinceramente, não sei quem dormiu primeiro.
Quando acordei ela não estava mais lá. Puxei o celular com presa para ver o horário, talvez elas ainda estivessem aqui, se arrumando para o trabalho comunitário. Dez horas da manhã. Não, elas não estavam mais aqui há um bom tempo. Suspirei. Devia ter falado quando ela me acordou ontem. Sobre Nikki, quero dizer. Agora a próxima tentativa de abordar o assunto seria desagradável, a não ser que o momento aparecesse. O que seria difícil se ela continuasse como havia me tratado na sexta. Talvez os minutos acordados no meu quarto fossem suficientes para normalizar as coisas, mas eu não ia contar com isso.
Nikki estava no sofá, a mochila ao seu lado. Ela ficou de pé assim que eu apareci.
— Só queria me despedir antes de ir embora.
— Já vai?
— Sim, eu... Sinto muito pelo que fiz. — seu sorriso dizia o oposto. — Se quiser eu falo com a lésbica depois.
Fechei os olhos, fazendo uma careta.
— Não... Não a chame assim.
— Ué, não é isso que ela é, ? Ou você está no período de negação? É melhor aceitar de uma vez, sabe...
— Nikki, cala a boca. Não é isso. Ela é uma pessoa, e não a sexualidade dela. O que aconteceu com você, hein, Nikki?
Ela deve ter percebido a dor na minha voz, porque sua pose malvada sumiu. E então, de repente, ela me abraçava.
— Desculpa, . Desculpa. Eu... Sério, se você quiser que eu diga pra ela, eu prometo que... Desculpa?
Demorei um pouco, mas acabei a abraçando de volta.
— Tudo bem. Tudo bem, Nikki. Senti sua falta. — algo começou a umidecer minha camisa, suspeitei que fossem lágrimas. — Quando é que você vai me dizer o que está acontecendo, heim?
Ela se afastou.
— Não é nada. Nada novo. Só estou... Ficando cansada. Meus pais só reclamam, na frente dos outros somos a família perfeita, eles querem me obrigar a fazer coisas que... Que não tem nada haver comigo! Eles não me deixam viver, ! Cada dia que passa é ainda pior...
Suspirei. Era claro que era isso. Sempre era isso. podia reclamar da família que tinha, mas isso era porque ela não conhecia a família de Nikki.
— Acho que eu sei o que pode te animar.
Tentei passar confiança através de um sorriso, e Nikki secou o rosto com a manga da blusa de frio, rindo fraco.
— Desculpa por ser assim com você, às vezes eu esqueço que tenho um amigo de verdade...
Puxei-a pela mão e fomos comer uma pizza. Sim, antes das onze da manhã.
Nikki foi embora quase duas da tarde, sorrindo. Ela prometeu que ligaria sempre que estivesse mal, e quando estivesse bem também. Eu decidi caminhar sem destino pelo bairro, não queria ficar enfurnado na casa. Sim, sim, tudo bem, mas isso não explicava como eu havia parado em frente a casa dos .
Fiquei bons minutos apenas olhando a porta da frente, e então desisti de evitar, não ia conseguir viver em paz enquanto não fizesse aquilo, e nada melhor do que conversar sozinho com . Conforme me aproximava, um barulho de conversa ficava mais alto. Parecia vir do jardim da casa. Desviei o caminho e fiquei atrás dos arbustos, que eram bem mais altos que eu. A visão não era das melhores, mas consegui distinguir três crianças, Aimée e .
— Olha o que eu desenhei, !
— Tá lindo, Cloe! É seu papai?
— Sim, no lugar que você disse que ele está esperando a gente, o lugar que as pessoas vão quando morrem... Esqueci o nome...
Céu? Não sabia que acreditava nisso. Ela era uma pessoa lida demais, é comum essas pessoas terem dúvida quando não tinham uma educação cristã rígida. Dúvidas eram o que moviam os leitores, afinal.
— Terra Do Nunca! — um garotinho falou, e a menina Cloe o abraçou dizendo "Isso!" enquando fazia uma expressão de compreensão. Tive que rir. Ela disse para as crianças que as pessoas vão para a Terra do Nunca quando morrem.
Isso é a cara dela.
— E você, Gabe, desenhou o quê?
O garotinho abraçou o desenho e fez uma careta de tristeza.
— Ok... Não faz essa cara... — Gabe estendeu o desenho para , que sorriu.
— Somos nós? Você, Cloe, Astrid, eu e Aimée?
O garotinho confirmou com um aceno repetitivo de cabeça. A outra menina, que devia ser Astrid, também devia ser a mais velha dos três, e ainda assim não devia ter sete anos.
— Tenho que entrar, crianças... Tenho um trabalho importante da escola pra fazer. — Aimée levantou, ajeitando a roupa.
— A gente pode ver depois? — Astrid perguntou, levantando o olhar que antes estava no papel.
— Claro que sim!
As três crianças abraçaram Aimée antes dela sair. Astrid olhou na minha direção, e eu torci para o arbusto estar me cobrindo o suficiente. Ela chamou e sussurrou em seu ouvido. Em seguida o olhar de estava em mim. Tive um breve instante de "O que eu faço?" e então optei pelo menos ridículo; dei um passo para frente, chegando na entrada dos arbustos para a parte de dentro do jardim e acenei. acenou de volta, parecendo confusa.
— Quem é ele? — Gabe cruzou os braços, dando um olhar não muito agradável para mim.
— Crianças, esse é o meu amigo . Pode entrar, . Esses são Cloe, Gabe e Astrid. — apresentou um de cada vez, e eu abaixei para cumprimentá-los. Isso pareceu os agradar.
— Seus primos? — perguntei.
— Bem que eu queria.
As crianças sorriram e continuaram seus desenhos.
— Hm, , eu queria... Falar com você. — recebi olhares curiosos, mas breves.
Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos.
— Crianças, eu vou dar uma volta no jardim com o , já volto. Ok?
Dois oks foram dados em uníssono. Gabe deu o seu ok por último, parecendo relutante. levantou do chão e me chamou com um aceno para acompanhá-la. Passamos por uma árvore e chegamos no fim da casa, onde havia uma churrasqueira. Decidi ser direto.
— Então... Nikki. Ela é uma pessoa bem problemática, mas já foi muito diferente. Às vezes ela tem um período de lucidez, mais a constante cobrança dos pais está destruindo-a. Nos conhecemos desde sempre, fomos muito amigos, ela é como a irmã que eu não tenho. Bom, era. Eu ainda tenho esperanças de ajudá-la, mas momentos como aquele que você presenciou acontecem. Eu acho... Eu acho que ela não acredita que tem um amigo que não exige nada em troca pela sua amizade, e faz essas coisas com medo de perder a minha amizade. É claro que é justamente fazer isso que acabou com a nossa amizade, e acho que ela percebeu isso dessa vez... Sinto muito por você ter presenciado aquele momento deprimente.
assentiu, desviando o olhar do meu.

*

Bom... Bom... Seria ridículo dizer que eu estou com ciúmes dessa Nikki, mesmo assim? Amiga dele desde sempre?? Eu podia ter Stalin de pai e mãe que estaria tudo bem, desde que tivesse DESDE SEMPRE. Calei a boca. Tudo bem. Isso faz sentido. Ainda assim, havia aquela pontada de ciúmes infernal no meu peito.
— Bom... Tudo bem. É só isso?
A boca dele abriu e fechou. Fiz o caminho de volta para as crianças e ele me seguiu.
...
! A gente pode ir na sala de Lego? — Astrid levantou, sorrindo.
Parei em frente às crianças e parou ao meu lado.
— Sala de Lego? — ele perguntou.
— Ela nunca te mostrou? É uma sala toda de Lego, mesmo! Até a porta! E a janela! Tudo! — Astrid falou, e Cloe e Gabe se levantaram também. — A gente pode ir, ? Mostrar pro ?
Devo ter feito cara de quem chupava um limão, porque Cloe piscou seus olhinhos angelicais para mim em seguida. O único que parecia estar do meu lado era Gabe. Sempre Gabe. E aí ele me traíu.
— Por favor, ?
MAS É CLARO, SEU FOFO LINDO. EU NÃO SEI DIZER NÃO PRA ESSES SEUS OLHINHOS PUROS!
— Sim, sim, é claro...
No instante seguinte amaldiçoei os genes daquelas crianças absurdamente fofas. Eles puxaram para dentro da casa e eu os segui, suspirando. Não estava confortável, nem um pouco. Era difícil me entender, mas devia ser ciúmes. Péssimo. Ele precisava ir embora. Aliás, eles precisavam ir embora. e o ciúmes.
Entramos no meu quarto e Astrid abriu a porta do closet, ainda segurando a mão de . Ela não acendeu a luz, dando um aspecto mais misterioso ao closet, e escorregou a porta do meio, na parede direita. A luz desse curto corregor ela acenteu, revelando a porta vermelha feita de Legos dos mais diversos tamanhos. Astrid deixou que abrisse a porta e entrasse primeiro. Ele não foi muito longe, estancando logo no primeiro passo.
Isso costumava acontecer com quem via aquele quarto pela primeira vez na vida. Ele ficou em silêncio por um longo tempo, até que as crianças começaram a rir e passaram por ele, indo direto para seus cantos favoritos.
— Isso é... Eu... Não consigo nem pensar direito.
Sorri, convidando-o para um passeio pelo quartinho com um leve aceno de cabeça. As estantes iam até o teto e eram quase como estantes de gatos, só que muito mais resistentes, para que eu conseguisse subir até a última e pegar o que quisesse sem precisar de uma escada (apesar de haver uma, e, sim, de Lego). O chão era fofo, quase um colchão. Era gostoso cair nele, eu achava. Nas estantes estavam as coleções de Piratas do Caribe, Indiana Jones, Star Wars e Harry Poter, entre outros. No final da sala havia uma casinha de Lego, que era onde Cloe estava. Astrid e Gabe estavam no centro na sala, onde havia uma mesa de Lego (com cadeiras de Lego!!!), brincando com uma das Death Stars que eu tinha. Uma das. Eu já disse, eram nessas horas que eu amava a riqueza dos meus pais, o sistema capitalista e Nova York. Eu tinha um preço, afinal. Todo mundo tem. Abri a janela, que dava para ver por cima a estufa de Donna no jardim, e deixei absorver o ambiente. Sentei no chão ao lado de Astrid e Gabe, passando a brincar com eles. Eventualmente, juntou-se a nós. Deve ter passado uma boa hora quando Antonella apareceu no quarto.
, nós temos que ir.
— Ahhhhh!
O coro de tristeza foi unânime, exceto por , que riu da nossa reação. Antonella também riu.
— Vamos, crianças, a tem mais o que fazer.
Os três me abraçaram e eu acabei sorrindo.
— Voltem mais vezes, ok? Não é incômodo nenhum ficar com eles, Antie. Você sabe.
— Ainda assim, não quero atrapalhá-la. Nós sabemos o quão ocupada você é, .
— Bons estudos, . — Astrid beijou meu rosto enquanto Cloe e Gabe desejavam o mesmo, beijando-me em seguida.
— Obrigada, crianças. Vou sentir falta de vocês. — fiz o clássico bico com olhar de cachorro abandonado na chuva e eles me abraçaram uma última vez antes de saírem do quarto.
Antonella ameaçou arrumar as coisas e eu a dispensei com um abraço.
— Pode deixar que eu tomo conta disso, vai aproveitar essas fofuras que você tem de filhos.
Ela se despediu de com um aceno de mão e saiu.
Uma palavra? Incômodo. Muito, muito incômodo.
me ajudou a colocar as coisas no lugar e depois saímos do quarto. Tudo praticamente em silêncio. Meu celular tocava, em cima da minha cama, e eu o atendi.
— Oi. Sim, sim... Eu... Tudo bem, estou indo. É, sério. Calem a boca. Tchau. Beijos. Tá bom, Phillip!
Desliguei e olhei para , que ainda estava quieto.
— Tudo bem, eu já estou indo. — ele falou, dando de ombros.
— Desculpa, mas eu realmente tenho que...
— Tudo bem.
Ele tentou sorrir, mas sua tentativa foi tão ruim quanto a minha. Sai do quarto sem conseguir dizer mais nada, e ele me seguiu. Abri a porta para ele e saiu, parando no batente e virando para mim.
— Eles são uma graça.
— São mesmo... Antonella deve ser responsável por isso, não existe ser humano mais agradável que ela. A Astrid gostou de você.
— Já o Gabe, nem tanto...
Ri. Isso era característico de Gabe.
— Ele costuma ser mais difícil, mas é só porque ele é cauteloso com desconhecidos. Ele provavelmente está decidindo se confia ou não em você, ainda. Pode levar mais algumas visitas pra ele se soltar, mas eu garanto, vale muito. Gabe é a criança de 5 anos mais adorável do mundo, todo dia eu torço para que ele continue assim pro resto da vida. Ah, e ele também costuma ter ciúmes dos meus amigos. Ele não se importa muito de dividir minha atenção com as irmãs, mas não aceita muito bem meus amigos, até que eles sejam seus amigos também.
— Realmente, adorável.
Deixei uma risada breve e incrédula escapar.
— Cala a boca.
— Desculpa, não quis ofender o seu pequeno amado.
Opa. O que foi isso? Cinismo? Ou... Ciúmes? De uma criança de cinco anos? Não, impossível.
— Vou pensar no seu caso.
Não desmenti, pois amava mesmo Gabe. Gabe, Cloe e Astrid. Aquilo era amor, já o que eu sentia por ... Isso eu não sabia, ainda.
Ele fez uma careta triste e então acenou, parecendo incômodo, novamente. Acenei de volta e fechei a porta enquanto ele virava para ir embora. Escorei-me ali e respirei fundo algumas vezes antes de voltar para o meu quarto.
— O que ele estava fazendo aqui?
Suspirei. Aimée parecia brava, mas aquele era seu jeito de ficar preocupada. Ou, pelo menos, costumava ser.
— Veio se explicar, é claro.
— Hm. Tá tudo bem?
— Sim, Méme. Obrigada.
Ela assentiu e voltou para seu quarto. Peguei um casaco leve e guardei minha carteira nele, colocando o celular em seguida e pegando o iPod. Saí de casa já com os fones. Phillip havia me convidado para uma reunião no parque, já que eu havia perdido a do dia anterior. E não conversava direito com eles há um bom tempo...
— Olha só, não é que a traíra resolveu aparecer?
A acusação doeu na minha alma, mas somente porque era verdade. Desde que as aulas haviam começado (pra não dizer desde que havia começado) eu não havia saído uma única vez com ninguém daquele grupo. Com exceção de Becky, eu mal havia falado com eles. Um oi aqui, um sorriso ali... E justamente com as pessoas que eu mais adorava na Ferdinand inteira. Rapha, o garoto que havia anunciado a minha chegada, estava sentado em cima da mesa da área de piquenique do parque, cercado pelos homossexuais mais lindos de toda a cidade. E quando eu digo lindos, não me refiro somente as aparências. O que mais doeu foi que eu havia procurado por eles exatamente quando perdi . Foi só me desapontar que eu lembrei quem eram meus amigos de verdade. Não podia conversar sobre aquilo com , ou ou . Não queria conversar, e delas eu não conseguiria esconder. Ali, naquele grupo singular e sorridente do parque, ninguém me forçaria a falar. Ou ser. Não era da natureza deles forçar coisas. Dirigi-me a ele desligando o iPod, notando seus olhos amendoados brilharem de algo diferente de raiva; alegria. Seus cabelos castanhos quase loiros faziam ondas perfeitas, apesar de curtas.
— Não fala assim, Raphael, vocês sabem que eu amo cada um de vocês. Porém, a vida é uma vadia e não gosta de dar tempo livre pra mim...
Parei na frente deles, fazendo bico com os lábios e aguardando o julgamento final.
— Mimada! — Becky bateu na madeira, o sorriso aparente.
Os outros disfarçaram os sorrisos muito melhor que ela.
— Só sabe reclamar, uma desculpa atrás da outra... — Phillip negou com acenos, parecendo desapontado. Phillip tinha os olhos mais verdes que um ser humano devia ser permitido de ter, realmente parecidos com esmeraldas. O cabelo preto que era maior atrás, indo até o pescoço, e parecia realçar seus olhos ainda mais. A pele alva detinha algumas pintinhas marrons quase transparentes. Phillip era o que as garotas chamam de "desperdício". Extremamente lindo, porém gay. Eu já o via como uma dádiva divina, um homem daquele hétero seria provavelmente insuportável, além dos limites da natureza, exatamente como sua beleza.
— O pior é que mesmo usando desculpa a cadela consegue ser fofa e derreter meu coração de diamante. Vem cá, sua linda!
Raphael abriu os braços na minha direção e eu corri para abraçá-lo.
— Não sou eu, são vocês. Vocês tentam ser maus mas não conseguem me odiar nem quando eu mereço.
— Ai, , sua gay. Você é a única que não tem direito de ser assim aqui, ok. Limites. — Phillip estalou os dedos fazendo o grupo todo rir, mas se juntou ao abraço em seguida.
Em menos de dez segundos eu estava sendo abraçada por todos.
— Alguém pegou na minha bunda!
Phillip sussurrou um "Foi mal, delícia". Todos riram de novo.
— Vê se não esquece da gente assim quando estiver famosa e rica na Harvard, princesa. — Rapha ajeitou os óculos finos no rosto, sem olhar para mim. — E vê se pede a nossa ajuda antes do príncipe te chatear, ninguém aqui quer te ver com essa carinha.
— Alguém tem que fazer o Raphael parar de falar como se falasse por todos nós. — Becky debochou.
— E eu não falo por todos quando digo isso? — ele posicionou as mãos na cintura, questionando a todos com o olhar.
— Espera. Como assim o príncipe me machucar?
Todos me encararam, o olhar parecia estar entre o cético e o "own que fofinha, acha que todo mundo é inocente que nem ela". Já havia visto esse olhar muitas vezes na vida. Raphael foi quem respondeu.
— Glamurosa, até as tias cegas da escola viram a eletricidade passando do seu corpo pro gostosinho novo que é primo do outro gostosinho . Aquele boy é definitivamente magia, porque pra mexer com você... Ninguém duvida que talvez ele seja o cara da sua vida. E, bem, não é te julgando, mas... Pra você ter achado um tempo pra gente, e pela sua voz no telefone... E essa carinha também não engana ninguém.
Olhei as pessoas ao meu redor e eles assentiram. Merda. Eu tinha que arranjar um jeito de ser menos óbvia com todo o lance facial.
— Perdoem-me.
— Pelo quê, princesa?
— Por ter "esquecido" de vocês e "lembrado" só agora que não sabia o que fazer...
— Caralho, , vai se foder. É pra isso que a gente tá aqui. Amizade não é pra se cobrar, é pra se oferecer sempre que necessário. E eu tenho certeza que você não ia negar ajuda a ninguém daqui que fosse falar com você. — Becky resmungou de braços cruzados, todos concordando a sua volta.
— Não mereço vocês, sério. — um suspirou escapou pelos meus lábios.
— Garota, você não beijou ninguém no seu aniversário independente da pressão que dizeram porque não queria e ficou com fama de sapata e nunca se importou em desmentir isso. Você é especial, gata, e merece cada um de nós. — Phillip mandou beijos no ar.
Revirei os olhos.
— Phillip, normalmente não dá pra perceber que você é gay, mas isso foi muito discurso de passiva.
— Fui descoberta! — ele afinou a voz demais e levou as mãos até o peito, na sua melhor imitação de bicha passiva. — Oh, e agora???
Dei um tapinha em seu ombro, sendo puxada para sentar na mesa entre Raphael e Phillip.
— Então, sua insegurança resolveu atacar.
Becky não fez uma pergunta, ela afirmou, sentando-se na minha frente e sendo acompanhada pelo resto do grupo. Agora eu tinha uma plateia de pessoas lindas.
— O quê? Não, não...
, você não é de confiar fácil... Devia pegar leve com o garoto.
— O quê? Não! Eu... Eu confiei no , esse foi o problema.
— Quem é ? — Phillip brincou, recebendo um tapa de Raphael por trás de mim.
— Ok, deixa eu adivinhar. Você chegou na casa dele e ele tava com outra garota. — Becky jogou, cortando as risadas e as brincadeiras.
— O qu... Como você sabe?? — a encarei chocada, sentindo meu coração começar a bater mais forte.
— Você pode nos ignorar, mas não vive sem nossos corpinhos.
— Ah, a fofoca! Ela não tem limites. — revirei os olhos.
— Tanto faz, agora me ouve! — Becky respirou fundo. — Você viu os dois juntos e nem deu tempo dele falar, saiu de lá e se trancou no seu quarto. Sem falar com ninguém.
— ... É, foi isso. Mais ou menos.
— E ainda deve ter pego algum livro pra ler. — Raphael comentou. Ele só sabia disso porque tinha muito em comum comigo, nessa parte. Rapha queria o mesmo curso que eu em Harvard. Passaríamos juntos e estudaríamos mais juntos ainda.
Becky relevou a informação enquanto eu sorria.
— E você ainda diz que confia nele... , alguém precisa te dar aulas de confiança. Se você confiasse nele teria ficado, teria esperado por uma resposta, e não teria assumido que ele tava com outra o tempo todo e sei lá mais o que você pensou. Pode ser verdade, mas... O modo como ele te olha, o modo como ele fala com você... Eu não acho que ele seria capaz de estar só te usando.
Eu esperaria esse discurso de qualquer um, menos de Becky. O fato de que ela era quem dizia aquilo tornava aquela probabilidade muito maior. Cheguei na hora errada, vi algo que não devia acontecer, o choque no rosto de ... Se ele estivesse mesmo me usando, teria reagido rápido. "Não é o que você está pensando" ou qualquer coisa do gênero. Talvez... Talvez ele já estivesse em choque porque a loira aguada e linda e estilosa... Talvez o que havia dito fosse mesmo verdade. Talvez a desculpa de fosse sincera. Talvez Nikki tivesse sérios problemas familiares e sociais.
Foda-se, ela é muito melhor que eu. Não tenho chance. Que tipo de garota fode o cabelo e continua linda? Eu tenho medo só de pensar em descolorir meu cabelo. O que uma nerd tem contra uma qualidade dessas? Eu posso fazer contas que vão me dizer qual a melhor posição e a iluminação certa pra eu parecer linda como ela, vai ficar tudo bem? Não, isso não resolve.
Ainda existe cirurgia plástica.
Só o pensamento me deu calafrios.
— Refletiu, né? Já percebeu todos os detalhes que deixou passar e que favoreciam a inocência do "príncipe"? — Becky imitou o jeito de Rapha, recebendo um "Diva!" de volta.
— ... Eu... Não confio nele. Mas...
— Mas pode confiar, um dia. Ele que lute pra conquistar isso, eu só tô aqui pra te fazer parar de sofrer. Agora, o que você quer fazer?
— Como assim?
Phillip assumiu.
— Vai conversar com ele e fingir que nada aconteceu, pra ele achar de vez que você não o vê como algo mais que um amigo? Ou vai ficar longe esperando ele tomar uma atitude?
Rapha me cutucou na cintura.
— Você precisa mostrar como é independente e linda e cheia de atitude. Que você não precisa dele pra brilhar!
— Sim, só preciso de glitter.
— Malvada!
Ficamos um tempo em silêncio.
— Ok, eu não sei o que é melhor fazer, mas eu sei a única coisa que eu vou conseguir fazer.
— E seria...?
— A segunda opção. Ficar distante e mostrar como sou linda sem ele.
— Poderosaaaaaa! Amo essa sua versão! — Raphael me abraçou, e logo todos me abraçavam de novo.
— Vocês tem que parar com isso, um dia eu acabo sufocada.
— CÓSCEGAS NA PRINCESA!
Nem sei quem falou, mas sei que todos obedeceram. E, dessa vez, as lágrimas derramadas foram de tanto rir.


Capítulo 23 — Rule number one is that you gotta have fun, but baby when you're done you gotta be the first to run!
(How To Be A Heartbreaker — Marina & The Diamonds)

Aimée levantou os polegares, sorrindo, ao virar-se para mim da entrada do Middle School, como se me encorajasse a continuar. E eu ia precisar daquele apoio, só de olhar para o meu reflexo no retrovisor eu tinha vontade de voltar correndo para casa. Batom vermelho em plena luz do dia? Pra ir pra escola??? Mas que idiotice.
Porém, eu precisava continuar. Sim, era uma necessidade.
Dirigi até o estacionamento e encontrei Phillip na sua entrada, como o combinado, de jaqueta de couro preta e calça jeans clara, o óculos escuro pendurado na gola de sua camisa. Ele parecia uma versão adolescente do Ian Somerhalder, e se não fosse a perfeita figura de um irmão para mim eu já teria me apaixonado por ele inúmeras vezes. Porém, a lembrança mais forte que tinha em minha mente de Phill era meu primeiro dia na Ferdinand depois do desastre do meu aniversário. explicava para toda a comunidade de gays e simpatizantes o meu problema, e Phill foi o primeiro a se manifestar, com um "Relaxa gatinha, agora você encontrou a caixa de papelão perfeita.", e enquanto todos riam, ele me abraçou, fazendo eu realmente sentir que pertencia a algo na minha vida.
Cada imbecil na minha vida era compensado por um bando de pessoas maravilhosas. Eu não podia reclamar de amizade, afinal, apesar do meu péssimo início no ramo.
- Princesa. - ele declarou, oferecendo a mão para eu sair do carro após estacioná-lo. Não precisava de ajuda, mas aceitei a brincadeira.
- Milorde.
Phill passou meu braço pelo seu e me conduziu para a entrada do colégio. Eu estava usando saltos vermelhos que combinavam com meu batom. Hoje era um dia para ser notada. Pra brilhar, como diria Rapha, do jeito que minha estrelinha merecia. Uma blusa justa do Metallica pendia em meu ombro esquerdo, blusa que havia sido cortada com um enorme pesar no dia anterior. Eu costumava fazer isso com as blusas de bandas, estilizá-las, mas algumas tinham estampas tão lindas que eu não ousava passar com a tesoura perto. Essa era uma delas. Disse bem, era. O jeans do dia era justo e escuro, quase preto, e a jaqueta também era da mesma tonalidade, toda desfiada e com rebites, chegando apenas um pouco acima da cintura. Eu estava um arraso, como Rapha dissera na noite anterior, na qual ele havia me ajudado a produzir o modelito sensação.
Atravessamos os portões já obtendo sucesso absoluto, o murmurinho começando automaticamente e todas as cabeças virando para nós pelo menos uma vez. Fingimos que não víamos, sendo legais demais para aquilo tudo.
- Bando de hipócritas, já devem estar assumindo que somos bis ao invés de gay e lésbica, ou que somos convencidos.
- Você tá fodido, essa sua carinha de Ian Somerhalder vai trazer quinhentas garotas aos seus pés com um boato desses.
E só eu sabia o quanto Phill odiava ser cobiçado por cabeças ocas. Sim, porque ele sempre ligava pra mim e fingia ser meu namorado quando algum ser do gênero vinha aporrinhar. Isso inclui ambos os sexos.
- Falou a... Scarlet! Não, espera... Marina, você é muito Marina Diamandis. A bochecha alta e tudo o mais, só falta desenhar um coração na bochecha esquerda.
- É, só falta isso e a beleza. E a voz estonteante. Quase ela, de verdade.
- Olha aqui, eu não reclamei de você me chamando de Deus do Sex Appeal, reclamei?
Entramos no prédio rindo e minha última visão foi a de minha amigas correndo até Rapha e Becky para saber o que se passava.
E a cara de tacho de .
Ah, a doce recompensa por cortar minha queria blusa.
- Qual sua aula agora? - Phill perguntou.
- Sociologia!
- Ótimo, o professor é um gato.
- ... Adoro como temos esse gosto em comum.
- Nem tanto, não vejo tudo isso nesse seu aí. Sou mais os que aparentam a intelectualidade, você sabe. Óculos de grau, camisa xadrez...
- Você diz isso do porque não o viu recitar Charles Baudelaire sem olhar o livro. - sorri triunfante.
Phill fez uma expressão de surpresa.
- Não faz propaganda não, queridinha! Quer que eu vire sua rival?
Entramos na sala rindo.
- Espera, você não tem Sociologia agora! Tem?
Eu não podia ser tão distraída ao ponto de não ter notado Phillip na mesma sala que eu. Não tínhamos nenhuma aula em comum, isso era certo.
- E quem liga, gata? - ele me sentou em uma mesa, apoiando as mãos uma de cada lado do meu corpo. - Eu sei que é um pedido difícil, mas... - ele suspirou. - Tente não se apaixonar por mim, ok?
Gargalhei alto. Aquela fala lembrava Um Amor Para Recordar, e esse era o filme preferido dos sleepovers LGBTQ. Aqueles que eu nunca perdia.
- Oras, isso é impossível, eu já te amo!
Phill fez cócegas em mim e eu tive a impressão de ver uma cabeleira conhecida passar pela porta, mas não tive tempo de reparar melhor porque Phill me atacava sem dó ou piedade.
O professor chegou e Phill começou a sussurrar seus atributos somente para eu ouvir.
- Espera. E como vamos saber onde parar com esse plano? Digo, como teremos certeza que ele surtiu efeito?
- Oras, quando ele vier atrás de você e for sincero. Se ele gosta mesmo de você, não vai aguentar essa ceninha toda. Mas você já tá querendo me chutar, é? Minha companhia é tão ruim assim, ó ?
Revirei os olhos no melhor estilo te despreza. Uma dose diária do meu desprezo pra você, Phillip. Mas com muito amor, ok?
- Cala a boca, eu tava morrendo de saudade do seu carisma e da sua beleza, Phill.
Phill piscou, parecendo divertido.
- Aliás, você já ouviy "How To Be A Heartbreaker"? Porque devia, é a sua carinha: fofa mas perigosa.
- Será que existe algum homem que indicaria uma música da Marina Diamandis para mim sem ser gay?
Fiz uma pose pensativa.
- Deve ter, gata, porque ela não é um pedaço de mal caminho e sim o caminho inteiro. Mas esse não é o caso.
Assenti, sabendo que tudo que ele dissera era a mais pura verdade.

*

Eles tentavam puxar assunto comigo, mas eu estava monossilábico. Era ousadia demais de me tratar como havia tratado no final de semana e aparecer linda daquele jeito... Nos braços de outro.
Aquele cara não era gay, afinal??
- Então o Phill não é gay. Nos fodemos, todas vão querer ele agora. - suspirou derrotado.
- Como vocês podem saber? Eles nem se beijaram. - resmunguei, deixando-os satisfeitos por terem obtido algo de mim.
Era incrível como todos por ali saíam julgando tudo que viam sem saber do que falavam. Não que eu fizesse isso, né, longe de mim! Hah.
Permaneci ausente no resto do intervalo, ocupado demais me torturando psicologicamente para perceber o que acontecia ao meu redor. O pior era que a próxima aula seria com ela. Com ela e com . Não estava pronta para ouvi-las fofocando sobre Phill ou algo do tipo.
Mas não conseguia evitar a expectativa de ganhar esperanças. Talvez não fosse nada daquilo.
Cheguei à sala antes das duas, que entraram um pouco depois, deixando o trabalho na mesa do professor antes de vir para as carteiras na minha frente. fez questão de sentar na fileira do lado, de onde eu teria uma visão privilegiada dela sem ela ao menos notar. Garota bacana, eu disse. Seu cabelo, sempre preso de lado, deixava exposto o tão apreciado pescoço, e também seu ombro... Já era o suficiente para tirar-me a sanidade e relembrar certos sonhos que eu vinha tendo.
É, no plural.
- Hey, ! - sussurrou, aproveitando que o professor ainda não havia começado a aula. - Qualé a sua com o Phillip?
Ela riu.
- Ele é meu amigo, , você sabe.
Vitória!
- Tá, mas e aquela coisa toda de chegarem juntos e nos ignorar pra ficarem a sós??
Meu querido leão, já de estimação, rugiu exigindo saber o mesmo.
Ela simplesmente revirou os olhos.
- Talvez - ela frisou. - ele tenha dito que gosta de mim.
- E VOCÊ? - se exaltou, recebendo um olhar de censura do professor. - Vocês se beijaram? Qualé, , todo mundo tem curiosidade sobre isso, com aquela carinha de jovem Ian Somerhalder que ele tem. Como ele beija??
gargalhou, abrindo deu livros e começando a copiar as anotações da lousa. Rugi silenciosamente, incorporando meu leão interior. Ele beija como qualquer um, horas, o que tem pra se mudar? Agora estava bravo com , também.
Aquilo ainda não havia acabado. Eu não ia perdê-la tão fácil.
O tempo não passava dentro daquela sala abandonada, convenientemente com a luz apagada e com o batente quebrado. Uma sala abandonada aberta no corredor da biblioteca: eu não podia pedir por mais. Esperava que saísse mais cedo, ela ainda teria handball hoje, mas conforme os minutos passavam ela deixava claro para mim que a havia julgado mal. Era uma mulher de responsabilidades, e gostava de cumpri-las.
Ainda assim, ela foi a primeira a sair, assim que seu horário chegou, confirmei pela fresta da porta que era ela e quando ela chegou ao ponto certo, abri a porta e puxei para dentro da sala, fechando-a em seguida enquanto prensava o corpo de contra a parede.
- Mas o quê... ?!
- Shh. - passei a mão que fechara a porta pelo seu braço descoberto, até seu ombro, onde ela se arrepiou enquanto meus dedos seguiam por sua clavícula e pescoço. Apoiei a cabeça na parede, deixando minha boca relar em sua orelha. - Ele faz isso com você também? Você acha que mais alguém vai te fazer sentir essas coisas, ?
Beijei o lóbulo de sua orelha, mordiscando-o, e no instante seguinte prensava também nossas bocas, não encontrando qualquer resistência em . Uni ainda mais nossos corpos, afundando a mão em sua nuca enquanto a outra adentrava sua blusa justa, apertando sua cintura. Sua pele macia parecia sempre alguns graus mais fria que a minha, não que seu corpo fosse frio. Ele emanava calor, correspondendo a cada toque meu. suspirava, mordiscava meu lábio inferior, pedia por mais. Seus olhos o tempo todo fechados, os meus indecisos entre aproveitar as sensações ou aproveitar a belíssima vista que era tê-la entregue aos meus cuidados e vontades. Suas mãos em minha nuca, como se precisassem se fixar ali para sobreviver. Afastei relutante, tentando evitar a vontade de continuar ali mesmo e ir muito além, começando com a retirada se suas peças de roupa cruelmente justas. O que não era algo sensato a se fazer numa escola, por mais que a sala fosse um tanto esquecida.
- ...
- A escolha é sua, . Só queria deixar claro que se escolher outro, você não vai ter mais isso.
E assim saí da sala, deixando-a para trás por mais que cada passo parecesse ter mil quilos. Eu estava de volta, e não rastejaria por aquilo. Se ela quisesse, ela viria atrás. Seria ela, não eu, quem teria que ceder. Não seria como havia previsto, não comigo.
Ninguém ia me usar, nunca mais.

*

- Phill, pelo amor de Zeus e quem mais quiser entrar no páreo, relembre-me dos motivos para não ir agora para a cama dele e ficar nua.
"Deixa eu ver... Boa tarde pra você também. Ah, espera, já é noite! Boa noite, ."
- Phill, eu tô falando sério! O handball me distraiu durante a sua duração, mas agora que saí do banho tudo que eu penso é numa cama, de preferência com nela, apesar de eu estar cansadíssima!!
"O que houve, gata?"
- Ele veio atrás de mim, depois da monitoria. Me agarrou na sala que tá em manutenção, mas me agarrou de jeito, Phillip!!!
"Dá pra perceber. Espera aí. Ele foi atrás dela, galera", ouvi gritos e aplausos. "Tão dizendo aqui que você arrasou, estrelinha."
- Manda um beijo pro Rapha. Tá no parque? Com as estrelas mais brilhantes de Nova York?
"Sim, estou. Agora, voltando aos motivos para não correr para ficar nua na cama dele... Desde quando você é tão atirada, heim, amiga? Se valoriza!"
Tive que rir.
- Phillip, eu estou falando sério!
"Okay, okay, relaxa a bolacha ai, princesa! Vai pra casa, te encontro lá. Vou te manter entretida essa noite."
- Falou, garota de programa.
"A gente ganha a vida do jeitinho que pode, né, princesinha."
- Ok, Phill, apenas esteja na minha cama quando eu chegar, com um som bem escandaloso pra gente dançar.
Desliguei e fui cega para o carro, com medo de enfrentar o pior: passar reto pela rua que dava numa certa rua de residências estudantis. Ir direto para casa. Mantive Phill e diversão no pensamento, batucando os dedos nervosamente enquanto Metallica soava nos autofalantes do carro. Consegui chegar em casa, quase cega pelo desejo de voltar atrás e terminar o que havia começado. Tentei voltar o foco para Phill, que já devia estar em meu quarto com uma boa música dançante.
E ele não me decepcionou nisso. Mais uma não-decepção com Phill para a lista gigantesca de não-decepções.

*

Patético, era assim que eu me sentia escondido atrás dos arbustos do jardim dos para tentar espiar o quarto da primogênita, também conhecida como a garota perfeita para mim, e irritantemente cabeça dura, que não havia ido atrás de mim como o esperado. . Ela ia sim me levar à loucura. estava certo.
Através do binóculo eu podia ver seu vulto dançar pelo quarto, e podia ouvir sua cantoria empolgada e a dramatização que ela sempre dava ao que fazia. Pelas risadas, ela não estava sozinha. Não queria pensar na probabilidade que minha razão tentava me mostrar. Ela não podia ter escolhido ele. Não tão fácil assim, não quando eu achei que estava ganhando.
E então ela saiu para a varanda, abrindo a cortina do quarto.
- Hollywood infected your brain, you wanted kissing in the rain! Oh, oooh! (Hollywood contaminou seu cérebro, você quis beijos na chuva!)
E então ele apareceu, encostando-se no batente da porta de vidro com um sorriso.
- Você devia participar do festival de música desse ano.
- Como se eu já não tivesse coisas suficiente pra fazer, não é?
- Gata, você ia ser um arraso de Marina Diamandis, eu já disse. Vem cá. - ele ergueu o rosto dela com a mão em seu queixo, e com a outra mão desenhou algo em seu rosto.
Ela ainda estava com a mesma roupa da escola, o que de certo modo me aliviava. Sem banho, sem trocas de roupa, sem... Coisas a mais com Phill. Mas ela não parecia nem considerar essas coisas, foi logo pegando o celular para ver o que ele havia desenhado.
- Igualzinho! Agora só falta ser linda que nem ela!
- E a voz, não esqueça.
Eles riram e ela ficou de frente para mim, mesmo sem saber que o fazia. Pude ver o coração em sua bochecha esquerda antes que ela o tampasse com o celular, tirando uma foto dela com Phill. Foi impossível impedir a onda de ciúmes que me atingiu quando notei que ele a abraçava pela cintura, o queixo apoiado em seu ombro descoberto.
- Você podia cantar Power and Control, bem poderosa.
Ela revirou os olhos daquele jeito característico seu.
- Ou Living Dead, bem mais a minha realidade. Super euzinha.
Não sabia que músicas eram, mas os nomes eram sugestivos o suficiente para arrancar de mim uma risada baixa.
Eu precisava aprender a respirar fundo, a não ser sempre tão precipitado e sair imaginando todas as piores razões para as coisas serem como são. Era uma relação amigável, mesmo que Phill quisesse mais ele ainda não havia alcançado seu objetivo. E mesmo que tivesse, isso não me impedia de continuar tentando até ser definitivamente chutado.
Ela valia o esforço. Cada grama dele.
Na metade do caminho de volta, Green-Tinted Sixties Mind começou a tocar, e eu teria imaginado que o som vinha de alguma casa se não tivesse acostumado com a frequência daquele toque no meu celular nos últimos dias. Mr. Big era a cara de Nikki, aquela música sobretudo.
- Fala, encrenca!
"Você sabe que me ama, ."
- Sim, amo uma encrenca. O que manda dessa vez, encrenca-mor?
"Nada novo, gafanhoto. Ainda não descobri o que meus pais andam aprontando, mas quarta tem um jantar que minha mãe vai dar pras socialites de Nova York e suas filhas. Espero descobrir algo ali, nem que seja bisbilhotando."
- Vê se não se mete em mais encrenca, Nikki.
"Algo me diz que eu já estou metida, . Nos últimos tempos meus pais não andam reclamando de tudo o que eu faço e deixo de fazer. Isso não pode ser coisa boa, simplesmente não é do feitio deles."
- Eu sei... Mas se cuida. E qualquer coisa, me liga.
"Mais fácil eu ligar prum táxi te buscar, né, ? Mas que ideia de jerico foi essa de ficar em NOVA YORK sem um carro, amigo? Sério!"
Rimos e jogamos papo fora até que Nikki desligou para jantar. Já estava deitado em minha cama e o pior me aguardava mais uma vez; sonhar com o que eu não tinha.
Por hora.
A aula de teatro estava interminável, como todo o dia havia sido. Os sonhos constantes com me impediam de vagar para qualquer pensamento longe de seu vestido preto exageradamente justo por baixo da jaqueta de couro vermelho que ia apenas até seus seios. A parte que eu mais ansiava ver, principalmente por estar escondida. A pergunta em questão era como seria o decote daquele vestido preto tão justo. Margaret estava nos deixando de lado, afinal, ainda ensaiávamos as posições dos personagens secundários e haveria uma hora após cada aula para focar em mim e . Enquanto isso, servíamos apenas de referência para distância dos personagens e apoio criativo. E claro que eu estava mais para um peso morto e era quem ajudava em tudo com um belíssimo sorriso nos lábios carnudos, que hoje estavam com um batom cor de boca. Eu só queria beijá-la de uma vez, e esse era a única chance. O único momento no dia inteiro em que Phillip não estava presente como um cachorrinho rodeando o dono.
Quando o teatro se esvaziou, minhas mãos já estavam suadas de expectativa. Margaret olhou para nós dois e sorriu, sentando em sua cadeira de diretora.
- Pois bem, vocês já andaram praticando os beijos da peça?
parou de sorrir ao meu lado, corando violentamente.
- Não... Não.
- Pois bem, podem começar pela cena da cotovia. O que você imagina pra essa cena, ?
Ela explicou como havia dito para mim no sofá de casa. Um beijo desesperado de Julieta, pedindo que Romeu ficasse, e então um beijo mais desesperado ai, beijos curtos enquanto ela falava e essas coisas. Eu já sabia daquilo, sabia o que fazer, e sabia porque ela parecia tão nervosa. Como no sofá de casa, seria difícil controlar aquilo. Seria difícil atuar quando ambos queríamos cada vez mais.
- Perfeito, então pode começar. - Margaret deu seu aval com um aceno de mão.
ficou de frente para mim, toda a sua confiança de outrora desaparecida de sua face.
- Já vais partir? O dia ainda está longe. Não foi a cotovia, mas apenas o rouxinol que o fundo amedrontado do ouvido te feriu. Todas as noites ele canta nos galhos da romeira. É o rouxinol, amor; crê no que eu digo. - ela tomou meu rosto em suas mãos e deu um beijo apaixonado em mim. Segurei sua cintura e aprofundei o beijo, ouvindo um pigarrear em seguida.
- Podem se afastar agora, minimamente. Julieta vai o manter perto com as mãos em seus ombros. Pode falar, Romeu.
Notei o rubor subir ao rosto de , e eu não devia estar muito diferente. Se beijar daquele modo na frente de uma professora... Imaginem a inconveniência.
- É a cotovia, o arauto da manhã; não foi o rouxinol. Olha, querida, as riscas invejosas que tecem um rendado nas nuvens que vão partindo lá para os lados do nascente. As velas noturnas consumiram-se, e o dia, bem-disposto, põe-se nas pontas dos pés sobre os cimos nevoentos dos morros. Devo partir e viver, ou fico para morrer.
passou a beijar-me repetidas vezes enquanto falava em seu melhor tom desesperado, mas ainda assim calmo.
- Não é do dia aquela claridade, podes acreditar-me. É algum meteoro que o sol exala, enviado para esta noite portador de tocha a teu dispor, e iluminar-te em teu caminho para Mântua. Portanto, fica ainda, não precisas partir.
Suspirei, apertando o abraço em sua cintura.
- Que me prendam! Que me matem! Se assim o queres, estou de acordo. Digo que aquele acinzentado não é o raiar do dia; antes, é o pálido reflexo da lua. Digo que não é a cotovia que lança notas melodiosas para a abóbada do céu, tão acima de nossas cabeças. Tenho mais ânsia de ficar que vontade de partir. Vem, morte, e seja bem-vinda! Julieta assim o quer. Está bem assim, meu coração? Vamos conversar... posto que ainda não é dia!
Beijei-a com vontade, sentindo-a arfar e tremer em minhas mãos. Outro pigarro. piscou e negou com um aceno antes de prosseguir com a encenação.
- É dia sim, é dia sim. Corre daqui, vai-te embora de uma vez! É a cotovia que canta assim tão desafinada, forçando irritantes dissonâncias e agudos desagradáveis. Alguns dizem que a cotovia separa as frases melódicas com doçura; não posso acreditar, pois que ela vem agora nos separar. Alguns dizem que a cotovia é o odiável sapo permutam seus olhos; como eu gostaria, agora, que eles também tivessem permutado suas vozes! Essa voz alarma-nos, afastando-nos um dos braços do outro, já que vem te caçar aqui, com o grito que dá início à caçada deste dia. Ah, vai-te agora; ilumina-se mais e mais a manhã.
Beijei-a uma última vez, um longo selinho, e sentenciei:
- Ilumina-se mais e mais... enquanto anoitece em nossos corações!
Margaret aprovou, mas nos fez ensaiar inúmeras vezes até que não perdíamos os pontos certos para cortar os beijos. Cerca de meia hora depois estávamos com os lábios vermelhos e ela parecia satisfeita.
- Pois bem, por hora basta. Isso foi bem mais fácil do que eu espetava. Se quiserem ensaiar algo mais, sintam-se à vontade. - e, dito isso, ela saiu.
Nos entreolhamos.
- Eu sinto muito, por ontem. Eu não devia... Não devia ter feito o que fiz. - dei as costas e desci do palco, sentindo o olhar de queimar minha nuca.
Não podia me entregar. Não podia ficar com ela, era desejo demais. Sempre querendo mais, meu corpo nunca se saciaria. estava certo, era perigoso demais. Logo ela me ultrapassava sem sequer direcionar o olhar para mim.
- Pode vir comigo, eu te dou carona. É caminho, lembra? Sem problemas.
Fiquei sem palavras e logo estava com ela no estacionamento. Dessa vez o olhar que recebi do garoto do estacionamento foi definitivamente um olhar de ódio, porque nem ao menos um olá de ele recebeu. Estamos na mesma, meu chapa, acabei de dispensá-la e aposto que ela está brava é comigo e não com você. Foi mal ai.
Fomos em silêncio até a minha casa, nem mesmo o rádio havia sido ligado. Estranho. Antes que eu dissesse qualquer coisa, a porta da casa de se abriu, e gargalhava até nos ver.
- Vocês chegaram BEM na hora! - exclamou, atrás dele.
- Estamos indo pra pizzaria, tomar umas batidas e comer pizza! Topam? - eles se aproximaram enquanto eu descia do carro.
- Pode ser. - respondi, indiferente, com a impressão de que negaria o convite.
- Hm, na verdade eu... - ela começou a negar, sem sair do volante.
- AH, MAS NEM VEM! , eu mal te vejo mais, você vai com a gente e ponto final. - , que parecia ser a mais calma do grupo, atacou a porta do motorista, arrancando de dentro do New Beetle vermelho.
Todos pareciam estar chocados com a atitude.
- Mas, ...
- Sem mas, mas que saco, isso sim! Você precisa relaxar, pelo amor de todos os deuses de todas as culturas, mulher! Uma breja vai fazer bem pra esse seu sistema nervoso decrépito.
Alguns seguraram o riso mordendo o interior da boca. Outros morderam o lábio.
- ... Você não gosta de cerveja. - foi pelo caminho menos provável, provavelmente tão assustada e surpresa quanto o resto de nós.
- É, mas eu não tenho nada contra um bom saquê com frutas tropicais. Vamos!
E, ainda autoritária, foi arrastando uma ainda sem reação, liderando o grupo de pessoas risonhas até a pizzaria da esquina.
Esperava ansiosamente pelo momento em que o calor seria tão insuportável que removeria sua jaqueta curta, revelando o decote que eu ansiava tanto em ver. Essa oportunidade chegou no segundo copo de saquê com morango dela, enquanto todos estavam no décimo e eu estava no quinto.
- ? - ela chamou, virando-se para mim, que estava logo ao seu lado, e dando uma visão privilegiada do conteúdo de seu decote. Não era um decote grande, mas era o suficiente para fazer meu sangue fervilhar. E o vestido era tão justo... Já mencionei isso?
- Oi? - aproximei-me esquecendo de que a havia dispensado e devia evitar esse tipo de proximidade. Ninguém pareceu notar.
- Podemos ir lá fora?
- Claro!
Saímos ainda sem sermos notados, graças ao milagre do álcool que nossos amigos haviam ingerido inúmeras vezes mais do que nós.
- Onde estamos indo? - perguntei receoso, vendo que ela não parara na porta da pizzaria. Não havia mais ninguém em casa. Depois do(s) episódio(s) no sofá, nós nunca mais havíamos estado ali sozinhos.
- Tenho algo pra te mostrar. - ela ria, divertida, dançando pela calçada como se flutuasse.
Ela abriu a porta de casa e entrou, sem me esperar, subindo pela escada e indo direto para o meu quarto. A segui com pressa, perdendo o pouco de leveza que o álcool havia me dado.
- Hm, esse é o meu quarto, .
- Eu sei, bobinho. Você já me trouxe aqui. - seus olhos faiscaram quando ela olhou para os meus. - E eu disse que tinha algo pra te mostrar, mas não pode ser em qualquer lugar.
Ela riu de novo, e rodou lentamente, olhando o teto.
- Fecha a porta. - ela pediu e eu obedeci, pensando sobre o que fizera apenas depois.
Fechado, no meu quarto, com ela. Estava ferrado, ia acabar fazendo alguma merda. Justo agora, que tinha reconquistado o controle sobre as minhas vontades, eu ia estragar tudo e mostrar o que realmente queria apesar do que eu dizia.
- Hm, ... - ameacei voltar para a maçaneta da porta.
- Por que tanto receio, ? Você tem tanta atitude, é muito mais maduro que a maioria dos garotos da nossa idade... Então, por quê?
Sua pergunta me pegou de surpresa.
- Receio... Com o quê? - já imaginava a resposta, mas não entendia seu propósito. Ela veio até mim.
- Você manda sinais que dizem uma coisa, mas você diz outra. Seu corpo diz que me deseja, seus olhos me repelem. Eu não entendo. Você gosta de me confundir, é? - seu sorriso se perdeu enquanto ela ajeitava a gola da minha camisa. - É das outras pessoas que você tem medo? Elas não precisam saber, . Se você quiser. Seremos somente amigos na escola, e a noite você pode escalar o viveiro que tem do lado da janela do meu quarto e ser meu Romeu. - seus olhos brilharam, e seu sorriso estava maior do que antes.
Era justamente isso que eu não queria. Ter que esconder. Imaginei que o que ela sentia por mim fosse só atração, e como uma boa lésbica não gostaria de assumir para a escola inteira. Mas ela estava ali, me pedindo, com seus olhos brilhando e o sorriso tão inocente e... Feliz.
Ela me tinha na porra da palma de suas mãos.
- Tenho medo de estragar nossa amizade. Eu gosto de você, . - assumi, torcendo para que ela entendesse.
- Então! - ela riu alto. - Como isso pode estragar alguma coisa?
O leão dentro de mim gritava a mesma coisa. Já minha razão dizia o que achava óbvio: "Eu te amo, porra, e você não sente o mesmo por mim. É, eu já te amo, e eu não quero ser usado assim, grato."
Ela se afastou de novo, indo até o meu rádio. Deu play sem ver o que tinha dentro, e deu uma risada gostosa quando Bruce Springsteen soou. Ela voltou até mim e ficou na ponta do pé para quase encostar-se à minha orelha.
- Eu quero você, . É isso que eu quero te mostrar. Eu quero você. - ela sussurrou em meu ouvido e eu perdi tudo. O chão, a razão, a respiração...
E, com esse simples pedido, ela me teria. Quantas vezes quisesse, era só dizer aquelas três palavrinhas. "Eu quero você."
Ela sorria tão inocentemente quando se afastou que duvidei de suas palavras. E da mordida que ela havia dado no lóbulo da orelha antes de se afastar. Mas havia algo em seu sorriso que não era muito puritano.
No milésimo seguinte eu a tinha em minhas mãos, e beijava sua boca como se estivesse esperado a vida toda por isso. Mal ouvia a música, meu coração parecia muito mais alto aos meus ouvidos. Mas era Fire, e Fire falava muito sobre "nós". Podia ser um pouco sobre , mas eu me sentia muito como a mulher da música. Esse pensamento não me ajudou a frear aquilo.
E ela estava sendo o homem da música, tanto que começou a tirar minha roupa primeiro. Ok, a camisa, mas estava sendo iniciativa dela. Lésbicas. Será que era assim transar com uma? Apesar de que ela não me beijava como uma... Mas eu nunca havia beijado uma lésbica para saber, a não ser ela. Segurei seus pulsos, impedindo-a de continuar. Ela fez uma careta contrariada.
- ...
O jeito mole como ela falou meu nome me fez sorrir. Ela estava implorando. Agora sim.
- Você pediu por isso, não foi? Então você vai ter o que tanto quer.
Um sorriso tímido formou-se em seus lábios. Voltei a beijá-la, com a mesma sede de antes, e pareceu melhor ainda. Como era possível, eu não sabia. Mas era incrível.
Conduzi-a lentamente até a cama, para jogá-la nela quando estivesse perto o suficiente. caiu e riu, jogando o pescoço para trás. Seu vestido extremamente justo havia subido um pouco, deixando sua perna inteira à mostra.
- Agora sim, . - ela sorriu, revelando aquele algo nada puritano no sorriso anterior. A diferença era que agora havia algo bem pequeno de inocente nele. Ela passou a unha pelo meu peito, fazendo a pele ali se arrepiar. Passou as mãos para as minhas costas e fez um carinho por toda a sua extensão antes de cravar as unhas nos meus ombros.
Fechei os olhos deixando um grunhido mal contido escapar. Senti seus lábios nos meus antes que conseguisse dizer que não havia reclamado de dor. Não era bem dor que eu havia sentido, e aquele grunhido não era bem um grunhido, se é que você me entende. E ela pareceu entender. Não demorou muito para o vestido dela ir parar no chão. Me afastei para observá-la e reclamou com um "" do mesmo modo mole e carregado de sensualidade que havia proferido antes. Seu cabelo estava espalhado pelos meus travesseiros, seu lábio estava extremamente vermelho e ainda mais convidativo que o normal. Suas bochechas estavam coradas, mas não era de vergonha. Era calor. Puro calor. Eu sentia o calor emanar dela e de mim, e a mistura dos dois...
Mordi o lábio inconscientemente, e soltou um gritinho breve, levantando um pouco o tronco para alcançar meu pescoço com as mãos. Ela me puxou com força para deitar de novo sobre ela, mas eu fui devagar, curtindo a tortura no seu olhar. mal conseguia dizer alguma coisa para reclamar, ela abria a boca e não saia som algum. Antes que seu tronco voltasse a encostar completamente no colchão, eu soltei seu sutiã. Ela pareceu esquecer que estava sendo injustiçada por mim e riu. Ela estava adorando aquilo, era por isso que tanto ria. Só podia ser. entrelaçou as pernas em minha cintura, e eu pressionei meu corpo contra o dela. Senti a pele dela na minha, e fechei os olhos em deleite. Por que tinha que ser tão bom? Por que ela era tão boa? E, acima de tudo, porque ela não podia querer mais do que simplesmente me usar?
O pensamento me fez acordar, brevemente.
- ... Você... Tem certeza?
Dessa vez quem gruniu foi ela, um grunhido de verdade.
- Eu quero você, ! - gritou. E gritado aquilo soou melhor ainda, como se fosse possível. Nada daquilo devia ser possível, era bom demais.
Então era isso, eu jamais seria forte o suficiente para resistir. Ela teria o que queria, quantas vezes quisesse.
Afundei o rosto em seu pescoço, beijando o lugar com... Paixão. Era essa a palavra para aquela sede toda. tirou minha calça com facilidade, usando os pés para empurrá-la após abri-la com as mãos. Desci o beijo pelo seu colo, descobrindo que ela estava arrepiada. Pegando fogo e arrepiada, ao mesmo tempo. Com os olhos forçosamente fechados. Um chama de esperança se acendeu em mim, talvez ela não estivesse apenas me usando. Quando olhei-a novamente, seus olhos me analisavam descer pelo seu corpo. Era como se ela estivesse se obrigando a ver aquilo, por mais que seus olhos quisessem fechar. E eu podia ficar ali por dias até beijar devidamente cada pedaço do corpo dela, depois de tanto tempo desejando aquilo. Mas era tempo demais esperando para demorar tanto, e minha boxer já me incomodava demais. Voltei para os seios dela, tão cheios e perfeitos, que não pude acreditar que os tinha ali. Os beijei com uma devoção cômica, quase como se os venerasse, e mal conseguia conter seus gemidos. Seus olhos entreabertos, mas jamais fechados. Ela cravou as unhas nos meus ombros mais uma vez, quase como se não aguentasse mais, e eu desci os beijos pela lateral de seu corpo, dando leves mordidas ali.
dessa vez me observava com os olhos completamente abertos.
- ... - ela chamou, baixinho. - Eu sei que já te disse isso, mas... Eu sou virgem, então... Er, cuidado? - ela sorriu de lado, serena, apesar de pedir por cuidado. Ela confiava em mim? Era o que parecia.
Mas de onde ela tinha tirado que já tinha me falado aquilo?? Busquei na memória e nada apareceu, e percebi que estava nervoso. De preocupação. Eu seria o primeiro dela? Ou ela queria dizer o primeiro "cara"? Não, não devia ser. Lésbicas também fazem sexo, e conta como sexo. Então ela não devia ter feito ainda, com ninguém. Fiquei confuso, e na minha confusão ela me puxou de volta para si, para seus lábios, que foram precisos do meu pescoço para meu ombro. E ela tirou minha boxer, em seguida, sem deixar de olhar nos meus olhos, observando minha reação muda. Estiquei a mão para a gaveta, agradecendo brevemente a por ter colocado camisinhas ali logo no meu primeiro dia em New York. Impedi que ela tirasse a própria calcinha.
- Você tem certeza?
- Quer que eu grite de novo? - ela sorriu.
Tomei seus lábios com os meus e tirei sua calcinha, jogando-a junto com minha boxer no chão. Me protegi devidamente, respirando pesado, sem conseguir evitar o calor que o olhar dela dava em mim, insistente.
- Você é tão linda...
Ela sorriu, envergonhada, e passou a mão no meu rosto, acariciando-o. Então começamos o jogo, de verdade.

*

Beijei como se não o fizesse há anos, colando meu peito no seu e subindo a mão para seus lindos cabelos sedosos. Tirei a camisinha com a destreza de quem está desesperado para deitar, jogando-a direto no lixo ao lado da cama.
Quando ameacei cair para o lado, ela me segurou. Joguei meu corpo sobre o dela, cansado demais para discutir. pareceu satisfeita, e passou a fazer um cafuné em mim. Eu ia dormir em seus braços, daquele jeito.
- ... ? - levantei a cabeça para olhá-la, e sorriu. - Me beija de novo?

*

Estava me sentindo como em uma obra Shakesperiana, de verdade. Não namoramos, a "sociedade" não nos aceitaria juntos, mas estávamos ali, nus, abraçados, depois de fazer... Amor.
Podem me chamar de brega, aquilo foi... Amor. Pelo menos para mim. Não que eu tenha parâmetros, mas duvido que seria a mesma coisa com, sei lá, o padeiro. Ah, sim, eu sendo a típica garota apaixonada. Bem, vai se ferrar e me deixa curtir a felicidade um pouco, sim? É um momento bem raro por aqui.
Não éramos nem ficantes (pelo menos não constantes) e havíamos feito amor! Shakespeare ficaria orgulhoso de nós! E eu estou sorrindo que nem uma idiota não sei por que! E usando pontos de exclamação o tempo todo!
subiu um pouco para alcançar meus lábios, e me beijou. Agora seus sinais estavam dominantes, não havia nada nele que me afastasse. Esse era o que tanto se escondia, era ele. E eu o amava. Ele fora tão doce, tão apaixonado em cada ato... Meu coração parecia que ia explodir de tanto amor e dedicação.
E, naquele momento, toda essa intensidade não me assustava.
- Posso dormir aqui? - pedi, assim que ele afastou os lábios.
Ele sorriu, derretendo ainda mais meu coração.
- Claro que pode. Se continuar o cafuné. - ele brincou, falando mole e deitando-se ao meu lado.
Fiquei de lado para vê-lo de frente, e voltei a beijá-lo. Não conseguia parar, não agora que finalmente o tinha. Havia dado certo, aquele plano maluco mal bolado de última hora.
O desespero de ficar sem ele servira para alguma coisa.
- Vou colocar a boxer de novo, quer sua calcinha?
- Pode ser, mas não quero mais nada.
Pronto, agora eu estava assumindo que gostava de dormir só de calcinha para os outros. Mas não era os outros. Sorri.
Ele ria.
- Ok.
levantou-se para achar sua cueca e eu o observei sem pudor algum, lembrando-me dos minutos anteriores, vendo todos os seus músculos se contraírem enquanto se movimentava sobre mim, nos momentos que conseguia manter meus olhos abertos. Quando ele pedira para eu continuar rebolando, tão baixo, perto do meu ouvido, e eu nem sabia que estava rebolando. Meu corpo agia por si próprio.
Ele era tão... Estonteantemente lindo. Deixei um suspiro escapar e ele se virou parar mim, já com a boxer, me pegando no flagra.
Mas não disse nada. Deitou do mesmo jeito que estava antes e me envolveu em seus braços. Aconcheguei-me ali e passei a acariciar suas costas.
Não sei quem dormiu primeiro.


Capítulo 24 — She burns like the sun, and I can't look away. And she'll burn our horizons, make no mistake.
(Sunburn — Muse)

Acordei cerca de duas horas depois, deitado do mesmo modo que dormira. ainda estava em meus braços, então ela não pretendia mesmo fugir. Observei sua expressão serena, afastando-me um pouco para vê-la melhor. O lençol contornava perfeitamente seu corpo nu; era verdade, ela estava ali, na minha cama. Melhor que isso só se estivéssemos na casa fixa no Canadá, ela provavelmente adoraria meu quarto. Percebi que sorria.
Saí sem acordá-la e cocei os olhos. Achei minhas roupas no chão e as vesti. Fui até a cozinha, com sede. A casa ainda estava vazia, o que só podia significar uma coisa: ainda estavam todos na pizzaria da esquina. Tomei uma decisão precipitada enquanto tomava água e saí da casa, trancando-a devidamente antes de correr para a pizzaria.
Precisava de conselhos, não estava mais me virando tão bem sozinho.
! Finalmente! — foi o primeiro a me ver.
Agradeci por nenhuma amiga de estar junto a eles, nos últimos tempos e pareciam apreciar a companhia delas, não seria nenhuma surpresa se elas ainda estivessem ali.
— Eu preciso de ajuda.
— Sorte sua, mal bebemos, ainda estamos sóbrios. — deu tapinhas no meu ombro, indo para o lado no banco e me puxando para sentar. — Diga!
Pensei no que eles haviam bebido antes de eu sair e imaginei como eles estariam sóbrios depois de mais três horas bebendo.
— Eu... Dormi com a . — fiquei com vergonha de dizer "fiz amor", não sei de onde tirei aquela expressão, mas parecia err
ado dizer, sei lá, trepei. — Sem gritar! — pedi ao ver tantos olhos arregalados.
Eles se aproximaram da mesa e sussurraram ao mesmo tempo.
?!
— Sim, a própria...
— E isso é problema? — fez uma careta, desentendido.
— Quando?! — e estavam quase em cima da mesa.
— Não é bem esse o problema. — rolei os olhos para . — Umas horas atrás. — dei de ombros, não tão certo quanto à brilhante ideia que tivera de pedir ajuda aos três.
Gostava deles, me via como família, era gente boa e também, com sua paixão pela e tudo. Mas...
— Onde?! — eles pareciam que iam avançar em mim.
— No meu quarto, oras.
— NO SEU... ELA AINDA TÁ LÁ? — levantou e eu o puxei de volta pro banco.
— Sim, mas eu preciso de ajuda AQUI! — já me arrependia de não ter trancado o quarto dela. É claro que eles iam querer ver.
A ausência de vida social fixa estava me fazendo esquecer de como era ter amizades longas.
— Você a deixou sozinha lá, seu idiota! Ela tá na sua cama e você vem aqui pra pedir ajuda no quê? Você conseguiu traçar , não tem nada que possamos te ajudar que você não faça melhor! Exceto vir pra cá ao invés de traçá-la de novo. — resmungou revoltado. — A porra da garota mais difícil do colégio tá na sua cama agora, imbecil!
A... O quê?
— Como assim, mais difícil? — perguntei, confuso.
jogou as mãos para o ar, impaciente, e assumiu.
— Quando ela entrou na escola quase todos os alunos tentaram ficar com ela. E durante um ano todo ela não ficou com ninguém. — deu de ombros. — Ela parecia gostar de um nerd lá, mas sei lá o que aconteceu, ele deve ter feito alguma merda, então... Ninguém nunca ficou com ela, , você é tipo um herói nacional agora.
— Porque ela é lésbica, não é?
— Não me parece muito lésbico da parte dela ir pra cama com um cara. — resmungou sabiamente. — Também nunca a viram beijando uma garota, e, acredite, babados desse tipo não passam em branco na Ferdinand. Eu tinha certeza que ela era porque... Bem, não importa. Como não vimos antes?
e concordaram. Não viram o quê? Ah, a mania de julgar tudo antes de saber direito das coisas. E porque ele tinha certeza que ela era lésbica e agora não tinha mais? Que inferno!
— Volta logo pra lá, ! Antes que ela acorde! Ou nós vamos. — riu da própria piada e levou um tapa na cabeça de .
— Vocês nem ouviram no que eu preciso de ajuda!
— Você precisa de um psicólogo, é disso que você precisa, ! Ela foi ruim, é isso? Deixa ela se acostumar, devia ser virgem até hoje. — deu de ombros, indiferente.
— Ela foi ruim? — perguntou, avançando na mesa novamente.
Me perguntei se devia ser sincero.
— Não... Ela foi perfeita. Ela é perfeita.
A zoação superou a curiosidade masculina deles, e fui coberto de "gay" e "veadinho" entre outros apelidos carinhosos como aqueles que faziam eu questionar o senso de humor humano.
Talvez fosse convivência com , mas aquilo estava me incomodando cada vez mais.
— Então volta logo pra lá, dude!
— Mas e se ela só estiver me usando? Sei lá, e se ela começar a namorar uma garota e me usar de step, ou...
— Cara... Aí você entra pra um ménage, que vida ruim! — afundou a cabeça nas mãos, fingindo desespero.
Rolei os olhos, dessa vez sem me preocupar se eles veriam ou não. Não ia conseguir nada ali, além de congratulações pelo enorme feito. E eles não tinham ideia de que fora um ótimo feito, de verdade. Bom até demais.
— Ok, ok. Mas nada de fofocar sobre isso, sério! – automaticamente, todos eles concordaram. — Se ela surtar e me chutar porque descobriram, eu vou saber que foi um de vocês.
E deixando a ameaça no ar, saí do bar. Devia ter pego um shot de qualquer coisa antes, não sabia como seria quando acordasse.
Antes de dormir ela estava... Adorável. Mas podia ser efeito do relaxamento que o orgasmo proporcionava ao corpo. E eu não precisava perguntar para saber se ela o havia tido.
Sorri com a lembrança de seu corpo arqueado caindo no colchão enquanto ela suspirava, ainda sem conseguir abrir os olhos. Meu orgasmo havia vindo logo em seguida, como se fosse possível se segurar com uma visão daquelas além de todo o resto.
Esse sorriso só sumiu quando cheguei no meu quarto e ele estava vazio. Olhei o banheiro, e nada. Gritei seu nome, e, mais um vez, nada. Suas roupas também haviam sumido. Então seria assim?
Dei um murro na cama, e algo caiu no chão. Andei para o lado até vê-lo: o sutiã dela. Fui até ele e o peguei. Apertei-o, bravo. Como ela podia ir embora? Tudo bem que eu saíra primeiro, mas... Seu perfume chegou ao meu olfato. Aquilo era ridículo, nem ir embora por completo ela havia ido. Tinha que deixar algo seu para me torturar. Meu celular tremeu, na escrivaninha.
Fui até ele, ainda nervoso.
"Hey, acabei de sair daí. Você sumiu! Desculpa... Minha mãe me ligou querendo saber onde eu estava, exigindo que eu voltasse pra casa... Tive que vir..."
Outra mensagem chegou assim que terminei de ler a primeira.
"E esqueci meu sutiã!! Onde você o enfiou, heim? Haha... Fica de lembrança. Um dia eu vou buscá-lo. ;) Beijos, ."
Boa desculpa ela achou. A mãe, seu pesadelo, pra encobrir a vergonha que estava sentindo. Estou sendo severo demais? Talvez... Frustração. Queria beijá-la mais, tentar acreditar naquilo, mas ela fora embora. Bem legal.
Fui para o chuveiro e esfriei a cabeça para ver se conseguia voltar a raciocinar direito, mas ia ser difícil com tantos flashes de nua invadindo os meus pensamentos.

*

Caralho, porra, merda... Esqueci o sutiã! Ainda bem que o vestido tem um tecido mais grosso no busto... Eu, usando vestido! Colado pra caramba, diga-se de passagem. Ri, lembrando de todo o plano para seduzir . No fim, para nada, porque eu que havia ido atrás dele. E, merda! Ir embora sem me despedir, depois de... E ele, onde tinha se enfiado?!
Por mais que tentasse ficar brava, não conseguia. Talvez ele tivesse ido comprar alguma coisa, um sonho numa padaria. E então , o meu sonho, me traria um sonho. Eu, sendo a boba que sou, gargalhei sozinha, assustando uma senhorinha que estava andando na calçada da rua de casa.
Meu celular não piscou pelos minutos seguintes, e desisti de ficar encarando-o. não devia ter levado o celular consigo, o que provava que a saída seria rápida. Guardei o celular no bolso para que soubesse assim que sua mensagem chegasse, e finalmente estacionei o carro.
Mas ela não chegou. Aguentei o papo furado de minha mãe e subi para o quarto para tomar um banho. Arrumei algumas coisas, estudei, fui à cozinha comer algo, já que havia perdido a janta... E nada.
Então ele estava me evitando, mesmo. Saíra de casa para que eu acordasse sozinha e fosse embora sem ter que passar pelo desagrado de me ver. Não havia voltado ainda porque queria ter certeza que eu não estaria lá quando chegasse... Será que eu sou tão ruim assim? Tão... Feia? Tão sem jeito, tão inexperiente? Ou ele não gostava mesmo de mim, e fez por... Sei lá, obrigação?
Bati a cabeça na escrivaninha. Ótima hora pra atacar, insegurança. Hora perfeita! Difícil não ser insegura com a mãe que tenho, mas eu sinceramente achava que já tivesse superado isso. E culpar minha mãe por isso não melhorava as coisas.
Resisti à vontade de ligar para , Phil, Rapha, , Becky ou e deitei, sem sono algum. Se ligasse para qualquer um agora, me fariam encontrar todos em algum lugar para "contar tudo", e eu não ia arriscar sair de casa de novo, ainda mais sem avisar e àquela hora. Ainda mais tendo aula no dia seguinte. Fiquei com o celular na mão, mas não fiz nada. Até que, uma hora, adormeci.
Eu ia roer todas as minhas unhas se continuasse sem falar com ninguém. não dera notícia alguma, e já eram mais de onze da manhã. Procurei-o por toda escola e nem cheguei perto de achar sua sombra. Ok, ele podia estar dormindo... Cansei de remoer tudo aquilo sozinha e mandei uma sms para Phil.
Adivinhem?
"PODE SAIR DE ONDE ESTIVER, NOS ENCONTRAMOS NO JARDIM VAZIO ATRÁS DO PRÉDIO DA BIBLIOTECA. xx Becky"
Sim, eu mandei a sms para Phil. Não, eu não errei o número. É, tenho certeza disso.
Já estava no local que Becky havia descrito, não havia entrado para a aula depois do intervalo, então apenas continuei andando em círculos.
!
Becky estancou no lugar enquanto analisava meu estado a distância. Tentei dar um sorriso, mas devo ter falhado porque no instante seguinte ela corria para me abraçar.
— Eu não devia, Becky, não devia. Menos de um mês e... Sem compromisso... Estou me sentindo péssima.
— Posso ver! Ah, , sua insegurança sempre escolhe os piores momentos. Me escuta. — ela me afastou minimamente, fazendo com que nossos olhares se encontrassem. — Não tem nada pra você se envergonhar. Era o que você queria, foi o que seu corpo pediu e não existe nada de errado nisso. Me olha!
— Becca, eu...
Ela fraquejou ao ouvir seu outro apelido, aquele que quase ninguém a chamava. Sua avó costumava chamá-la assim. Eu sempre o usava quando estava sensível demais.
... Olha, deve ter uma explicação. — ela me abraçou de novo, com ainda mais força. — Por favor, não surta. Eu te amo, não fica assim.
Chorei. Chorei cada lágrima que fora engolida durante o dia. Pensei ter visto na entrada do jardim, entre os arbustos, mas as lágrimas eram muitas para ter certeza, e isso só me fez chorar mais. Comecei a tremer e isso me fez soluçar, estava tendo um ataque. Estava surtando. Rebecca era a única pessoa ali que já havia me visto naquela situação, e por isso ela me abraçava com força e repetia minhas qualidades dizendo que me amava. Era patético, mas cada elogio melhorava um pouco a dor no meu peito que tentava se espalhar pelo meu corpo.
— Você não vai surtar agora, . , tá me ouvindo? Aposto como você deu uma canseira absurda nele e por isso ele perdeu o horário.
Afastei suas mãos de mim, jogando-a para trás. Becky quase tropeçou, mas aquilo não a assustava mais. Não depois da primeira vez em que ela havia presenciado essa crise. Agora ela já sabia exatamente os pontos que precisava pressionar.
— E ontem?! Por que ele não me ligou ontem?! Ele odiou, Becca, ele se arrependeu!!
, você nem o deu uma chance de se explicar! O que eu sempre te digo sobre confiança? — seu tom era calmo, suplicante, do tipo que aquecia meu coração congelado.
— Era pra isso que eu o estava procurando! Para ele ter a incrível chance de se explicar. Mas, oh, ele não veio pra escola! Quanta coincidência.
Ela se aproximou de mim.
— Conheço pelo menos dez pessoas que não fariam isso se tivessem a chance de dormir com você, não vejo porque justamente aquele que conseguiu fosse fazê-lo.
— Becca, não viaja!
Dez! Ela também não precisava exagerar tanto assim pra tentar me dar autoestima e encerrar a crise.
, me escuta. Você é linda, você conquistou esse cara de primeira vista, ele está babando por você desde que chegou aqui! Você precisa dar um jeito nessa sua autoestima, !
— Obrigada pelo conselho novo, Montgomey! — frisei seu sobrenome como ela havia frisado o meu.
A verdade é que eu já não tremia, e minhas lágrimas começaram a secar. Não havia surtado, Becky havia conseguido me acalmar. Aquilo era um feito e tanto, quando eu me desesperava... Era uma via de mão única para o sanatório.
— Se acalmou? — ela perguntou, rindo.
— Sim, sua fofa. — suspirei, precisando me sentar para recuperar a força. — Mas que inferno, eu acho que ele viu.
— Ahn?
— Tive a impressão de tê-lo visto na entrada do jardim enquanto eu chorava. Não tenho certeza se estava imaginando ou não, mas...
— Que se foda ele, estou louca pra dar umas lições pra esse canadense infeliz!
— Becca, não surta.
— Sim senhora. E já pode voltar a me chamar de Becky, ou ainda está frágil demais pra isso?
Mandei o dedo do meio para ela, que se sentou ao meu lado rindo.
— Foi o que eu pensei. — Becky finalizou, abraçando meus ombros de lado.

*

"... Olha, deve ter uma explicação. Por favor, não surta. Eu te amo, não fica assim."
Era minha culpa. Minha culpa. E ela havia recorrido à Becky, estava em seus braços agora, chorando. Porque eu a havia seduzido, porque eu havia feito uma lésbica perder a virgindade para um homem. Só podia ser isso, ela havia se arrependido.
Corri para longe do jardim escondido com lágrimas embaçando minha vista. Elas não iam cair, a culpa era minha. Eu não merecia chorar. Talvez, se tivesse conversado com ela... Talvez ela não me odiasse. Agora era tarde demais, talvez ela até começasse a namorar Becky. Que épico seria, finalmente perceber que a amava. Todo esse tempo, Becky estava ali...
Sabia que o lance delas não era uma simples amizade, a garota me olhava com sangue nos olhos. Rebecca, pensei com desgosto. Não seria a primeira Rebecca a desgraçar minha vida.
Outra longa história, a garota se aproximou de mim para chegar em Nikki, mas até ela dizer isso eu já estava na dela. Bêbado e de coração partido, aquela foi a noite em que perdi minha virgindade. Não vamos falar sobre isso, perder a virgindade me lembrava...
Tarde demais. Lá estava a imagem dela chorando desolada no ombro de outra pessoa.
Respirei fundo, entrando no prédio principal pelos fundos, ainda evitando o encontro com algum conhecido. Havia adormecido após o banho, e começara a digitar uma mensagem para ela, um pedido de desculpas jamais concluído porque minhas pálpebras resolveram fechar, parecendo ter uma tonelada cada uma. Acordei depois das onze e fiquei indeciso entre enviar ou não uma mensagem, finalmente decidindo vir quando faltavam poucos minutos para o intervalo. Agora me arrependia de ter saído da cama. E de existir também.
Lá estava eu, supondo coisas novamente. E daí que Becky dissera que a amava? Podia ser... Podia ser um amor de amiga, e seus olhares de ódio para mim tinham como motivo a confusão que eu andava fazendo com a cabeça de . Ela podia amá-la como a uma irmã, e me odiar por estar levando-a. Haviam muitas outras desculpas tão plausíveis quanto elas terem algo mais. Ou pelo menos era nisso que eu queria acreditar.
Podia ser só isso.
A aula de dança chegou e eu estava quase tendo certeza de que dançaria sozinho ou com a aluna-ajudante Belina quando ela entrou na sala parecendo carregar uma tempestade ao seu redor. A imagem do olhar furioso porém contido dela me trouxe de volta ao primeira dia de aula, quando a vi entrar do mesmo modo pelos portões da Ferdinand. Seus cabelos estavam soltos, como estavam no dia, e pareciam movimentar-se como ondas do mar mais tempestuoso até que ela parou na minha frente. Sem dizer uma palavra, se pôs a alongar seu corpo. Cada parte dele. Ela estava há um bom tempo exibindo seu pescoço para mim quando Victor ligou a música e nos mandou fazer os passos ao mesmo tempo. Até agora havíamos treinado separado, restava-nos sincronizar tudo aquilo.
Em poucos minutos eu lembrei que não fazia ideia do que andava fazendo naquela aula. bufava, transbordando seu descontentamento, quando parou a dança jogando meus braços para longe do seu corpo.
— Será que dá pra dançar direito? Você mal me segura, não é pra ter todo esse distanciamento e ele ainda atrapalha em tudo!!! — ela explodiu, fazendo todos pararem no recinto, até mesmo a música. negou com a cabeça. — Desculpem, mas assim não dá.
Ela se afastou com passos pesados e então olhou para Victor — que havia pausado a música — como se implorasse por ajuda.
Demorei para olhá-lo, mas ele pareceu assentir. Ela voltou como um furacão em minha direção, pegando minhas mãos e as posicionando com brutalidade, e então uniu nossos corpos com uma força quase prazerosa. Seu olhar fixou-se no meu, faiscando, e então a música havia voltado, e ela me conduzia. Victor veio até nós.
— Mais forte, . Puxe-a, jogue-a... Isso. Mais forte, sem hesitação. ... Vocês serão o casal principal.
Ela riu.
— Tá brincando, né, Victor?
— Não. Ele dança afastado, você o empurra como estivesse brigando e puxa-o para o mais perto possível. Começa conduzindo a dança até que ele se irrita e é seduzido a conduzir.
— Seria brilhante, se pudesse funcionar.
Aquilo me irritou. Ela estava me desacreditando em alto e bom som, no meio de muitas pessoas. A puxei de volta para a dança, dessa vez a conduzindo sem um pingo de delicadeza. Victor apenas riu.
— Vamos, voltem a dançar todos. Se conseguirem ficar um pouco mais sincronizados vamos para as partes sentadas. Lembrem-se, as danças não precisam ser igual, mas devem começar e acabar juntas. E sem esbarrões. — Victor voltou a música, ainda com um sorriso.
Pude ver o as chamas nos olhos dela tentarem me consumir.
A dança funcionou exatamente como Victor havia pedido. Ela me empurrava, voltava, conduzia e então era conduzida com excelência. Todos os meus pudores haviam sumido, afinal, já havia feito muito mais que aquilo. Pra começo de conversa, sem roupa alguma. Então, o que eram algumas pressões de seus seios no meu peito e coxas em coxas? Ainda estávamos com roupas, pelo menos.
A sala ficou inevitavelmente mais quente enquanto cada toque trazia uma memória da noite anterior. estava novamente corada por motivos diferentes de vergonha, e aquilo fazia meu sangue fervilhar. Ela não podia ter nada com mais ninguém, era impossível que ela sentisse tudo isso com qualquer um. Eu já tive algumas mulheres mais fixas que uma noite, e nenhuma delas se comparava ao que eu tinha com . Até mesmo as melhores companheiras não obtinham aqueles efeitos em mim. Sim, companheiras, eu nunca havia namorado. Com exceção da amizade de Nikki, que nossos pais gostavam de ver como um namoro infantil antes de nos desvirtuarmos na vida.
Ok, nada tão grave quanto isso soou. Mas pode ser difícil ter um irmão mais velho inteligente e atlético enquanto eu era... Só inteligente. E mirrado. E sem jeito para lidar com as festas públicas dos meus pais. E Nikki... Nikki tinha uma família bem complicada, e ainda era filha única. Sua mãe se descobriu estéril quando tentou engravidar pela segunda vez, então todas as responsabilidades hereditárias caíram nos ombros dela. Fazia sentido ela ter ficado meio pirada.
E pela primeira vez aquela aula passou rápido. Depois de muito apertar, puxar e empurrar, respirava com dificuldade contra meu peito. Ela e afastou num impulso e não parou até sair da sala do mesmo modo como havia entrado.
Uma tempestade de sentimentos.

*

Meu celular vibrou e eu nem olhei na direção dele para não ficar mais estressada, não podia ser nada bom. A única ligação boa agora seria a de Becky, e se ela ligasse, "Activity Grrrl" iria tocar. E assim eu saberia que era ela, pois aquele era o seu, e somente seu, toque. Pelo menos nos celulares que eu tivera desde que a conhecera.
Não era Becky, o celular não tocou.
Cheguei em casa mais cedo que o prometido, então não encontrei Donna para aporrinhar mais minhas ideias. Essa noite haveria um incrível jantar com a ala feminina da alta sociedade, e, adivinhem? Era apenas para maiores de 16 anos. Aimée estava fora, sobrava para mim.
Tomei um banho rápido e me arrumei o melhor que pude com o que possuía no pequeno espaço destinado aos eventos sociais de mamãe do meu closet. Era um jantar, logo um evento noturno, roupas escuras sairiam melhor. Escolhi um vestido de tom vermelho quase preto que ia até abaixo do joelho, onde abria lateralmente até metade da minha coxa. Mais comprido que ele seria social demais para o evento. As costas eram fechadas, junto com a parte da frente, unindo-se em um colar e deixando meus ombros e braços descobertos. Pendurei o echarpe de tecido reluzente, que era do próprio vestido, em meu pescoço. Desajeitadamente, mas por hora serviria. Procurei o sapato da combinação, minha mãe jamais comprava um vestido sem comprar o sapato perfeito para ele, então tinha que estar ali. E devia ser da mesma cor, porque a echarpe era.
Encontrei um salto médio idêntico ao tom da echarpe e tão reluzente quanto, então os calcei, partindo para a pior parte. A maquiagem. Após prender o cabelo num coque péssimo, fiz o mínimo que uma maquiagem noturna exigia. E, acreditem, eu sei dessas coisas. Não havia como ser filha de Donna Marie e não saber.
Passei o batom nude sabendo que ia ouvir reclamações, mas não queria olhar para o vermelho agora. Delineei meus olhos e passei um blush leve. Estava pronta. Exceto pelo cabelo. Eu menti, a pior parte era o cabelo.
Sequei-o tentando evitar a vontade de dormir, ou seja, nem vi o que fazia. Então peguei o babyliss e passei a hora seguinte morrendo de tédio e quase queimando as pontas dos dedos e minhas orelhas. Quando Donna apareceu no meu banheiro, ela sorriu satisfeita. Apesar de torcer o sorriso ao notar o batom.
— Eu sou horrível com isso. — levantei o babyliss fazendo a melhor cara de pidona possível.
— Não está tão ruim assim. – isso foi um elogio? Eu acho que sim! – Dá isso aqui.
Donna aproximou-se e assumiu o babyliss, fazendo o trabalho com maestria. Apreciei o raro momento mãe e filha em silêncio, com um medo, quase palpável, de estragá-lo.
— Obrigada, mãe.
— Levante-se. Fique de frente para mim, isso. Ah, ! Você já é uma mulher! E está linda.
Guardei a ironia do comentário para mim mesma, já que para eu ser mais mulher só me faltava engravidar, agora. Poupei-me de imaginar o que ela acharia dessa novidade e a agradeci com um abraço. De início, ela pareceu sem jeito, dura. Pronto, havia estragado o momento. Mas então ela correspondeu, afundando o rosto em minha clavícula.
— Ah, e o perfume?!
Ri e me afastei atrás do meu perfume noturno favorito. É claro que eu ia esquecer algo, sempre esquecia. E de tudo que eu havia feito, o perfume era a única coisa que eu tinha o hábito de usar diariamente. Vai entender.
— Estou pronta. — sentenciei
— Não vai levar uma bolsa de mão?
— Não, não precisa.
— Quer que eu leve algo seu na minha?
— Obrigada, mãe, mas não.
Trocamos sorrisos recatados e saímos como duas perfeitas damas, recebendo elogios de papai.
— Ah, filha, por que você tem que crescer?
Ri enquanto recebia um abraço comovido de Richard Benedict . Até mesmo Aimée veio nos abraçar, e se demorou mais comigo.
— Boa sorte, Anne. Paciência. – ela revirou os olhos, sabendo a chatice que aqueles eventos eram.
— Obrigada, Méme.

Estava me encarando há um bom tempo no reflexo do grande espelho do grande banheiro da grande casa quando a porta se abriu. Não aguentava nem mais um segundo da conversa daquelas mulheres com minha mãe, mas a pessoa que entrou me fez preferir ouvir mais cem conversas daquelas à estar ali. A garota loira tinha cabelos curtos que passavam só um pouco do ombro. Loira demais, um alarme vermelho começou a piscar no meu cérebro. Coloquei a echarpe, tentando me esconder. Tarde demais, ela me viu.
— Hey... Você não é a amiga do ?
— Hm? — fingi que lavava a mão, como desculpa para não olhá-la.
— É sim, a melhor amiga lésbica dele! Sou a Nikki, lembra?
Meu cérebro congelou. E rebobinou em seguida. O que ela disse? Eu ouvi direito? A melhor amiga LÉSBICA dele?
— Desculpa... Do que é que você me chamou? — dessa vez eu virei para olhá-la, esquecendo-me de secar as mãos.
— Melhor amiga lésbica do . Desculpa, não foi pra ofender. É só que ele disse que você era, eu não...
Ele disse que eu era. Foi isso que ele disse pra ela? "Ah, não, ela é só minha amiga lésbica!"
— Tudo bem, Nikki. Sim, sou eu. E eu me lembro. — sequei as mãos e fiquei de frente para ela, sorrindo.
— Garota, que mundo pequeno! — ela deu um tapa no meu ombro, rindo.
Parecia bêbada.
— É, né? Você tá bem? — a segurei, achando que ela fosse cair.
— Acho que bebi demais. Ninguém merece essas jantas. Sabe, eu nunca tive curiosidade, mas você é bem bonita... — ela me olhou de perto, me analisando sem pudor algum. — Qual o seu nome, mesmo?
. — respondi, seca, a soltando.
! Isso! Me beija?
Definitivamente muito bêbada.
— Hahah... Desculpa, Nikki, não vai dar...
— Por quê?? — ela fez cara de criança mimada, e, porra, que bêbada chata.
Ok, talvez eu não estivesse com o melhor dos humores pra julgar isso. Na verdade, eu nunca estivera com um humor tão ruim como naquele momento. Eu nem sabia que um humor daqueles podia existir.
— Porque eu não sou lésbica.
— Ma... Mas o disse que... — ela pareceu confusa, e eu cortei o lenga-lenga de uma vez.
— O deve ter sido idiota o suficiente pra acreditar num boato, e só. Tchau, Nikki. Até a próxima.
OU o decidiu que seria melhor usar aquela alcunha para evitar qualquer aparência de que fôssemos mais do que amigos. Mas que ótimo!!! Era tudo que eu precisava. Então era isso o que eu era. Só a amiga lésbica dele. A maldita amiga lésbica dele. Mas que felicidade!
Devo ter atravessado o salão como um ogro, porque logo Donna estava ao meu lado.
— Aconteceu algo, querida? - Donna perguntou com um tom de preocupação que não me enganava; a preocupação dela não era comigo, e sim com a minha encenação e o que as suas amigas iam pensar dela.
Tentei não espumar pela boca, ou soltar fumaça pelos ouvidos; essas coisas.
— Não, tá tudo ótimo! Podemos ir embora?
, diminua esse tom para falar comigo. - ela disse, em sua pose quase militar.
— Eu não estou... Estou fora do meu controle, mãe, não force a barra.
Donna pareceu perder a pose de durona.
— O que houve, querida?
— Eu só quero ir pra casa, mãe... Será que dá? A sobremesa já foi, o que tem mais por aqui?
— É falta de educação...
— Lá vem você com essas regras sociais...
!
— Donna! Quer saber, estou indo sozinha. Tchau.
Andei distribuindo falsos sorrisos para as intrometidas que olhavam para mim e saí gloriosamente daquela maldita mansão, correndo para o ponto de ônibus que havia visto na ida. Precisava ser rápido, e se Donna viesse atrás de mim eu continuaria andando até em casa. Não me importava. A raiva me cegava, tampando meus ouvidos e afastando a razão. Era melhor quando eu não tinha vida social, doía menos. Apesar de não ser tão menos assim...
É claro, nada melhor do que lembrar dos piores anos da sua vida quando a pior coisa do ano acaba de acontecer. Mais um ano de merda pra lista, yay! Raphael diria que... Raphael!
Digitei rápido. "Estou indo para a sua casa. De ônibus."
"Arrasou, estarei esperando!"
Arrasou, arrasou é tudo o que não devia ser dito pra mim.

— Olha, você tá certa porque esse garoto é mesmo um tapado. A Nikki pode ser uma vadia, mas ela não tirou do nada que você é lésbica. E, sendo que ela conhece a Ferdinand tanto quanto eu conheço a Bósnia, só pode ter sido ele quem disse isso pra ela. Eu não sou a Becky, e eu digo: fique puta.
Rapha estrebuchava pelo seu quarto azul. Não era grande, e parecia mais aconchegante que o meu. Além de mais bagunçado. E azul. Com detalhes roxos. Ele andava pelo quarto daquele modo espalhafatoso desde que eu contara do episódio no banheiro. Ele sequer deixara eu chegar na discussão idiota com a minha mãe.
— Rapha... Eu tô morta, vamos dormir?
— Claro, claro. Mas amanhã você vai com aquele vestido pra aula. — ele apontou para o vestido do jantar, que agora estava pendurado na cadeira da escrivaninha dele. — Só pra debochar.
— Cala a boca, Raphael. — revirei os olhos, já enfiada embaixo do edredom.
Ele apagou a luz e se jogou na cama.
— Posso pegar um vestido da minha irmã pra você, pelo menos?
Suspirei, revirando os olhos mesmo com as pálpebras fechadas.
— Se isso fizer essa sua boca maravilhosa ficar fechada, sim.
Rapha comemorou silenciosamente e, após um episódio de The X Factor, dormimos.
A pior parte foi a aula de Teatro. Margaret não podia perceber a mudança na relação do seu querido casal principal, então eu precisaria atuar de verdade. Era agora que saberíamos a atora que eu era. Difícil seria olhar para sem sentir vontade de arrancar sua cabeça ou de vomitar. Se eu era mesmo toda essa atriz que Margaret via, era agora que eu iria descobrir.
A turma se esvaía aos poucos, restando apenas ele e eu. Margaret sentou-se em sua mesa e deu o seu aval.
— Quero passar todas as falas, podem começar.
Custou, mas consegui. Não me senti como a tola Julieta, mas tentei passar a imagem de tola. Afinal, não era muito diferente disso os meus sentimentos em relação ao Romeu à minha frente. Ele parecia estranhar, notando que eu mal o olhava nos olhos, mas sendo o covarde que era não questinou nada. Ao término da aula, eu estava no meu limite.
— Tudo bem, , pode ir para casa. Próxima semana começamos o ensaio geral, e essa hora extra fica no critério de vocês. Se quiserem, deixarei o Teatro aberto, desde que levem a chave até a sala dos professores depois. , você já conhece bem isso. Aliás, gostaria de conversar com você um pouco antes de ir embora.
Assenti, prevendo o que escutaria. Assim que saiu, parecendo contrariado, ela fixou o olhar no meu.
— O que foi, Maggie?
— Eu que lhe pergunto, . Você estava estranha. Hm, atuando além do natural.
Suspirei.
— Apenas cansaço. Estresse demais. Não vai acontecer de novo, eu prometo.
— Se tem algo errado com o , agora é a hora de falar. Ainda há tempo para substituí-lo na peça.
Ponderei as felicidades que aquilo me traria. E os desgostos de ver a peça arruinada.
— Não, não existe um garoto melhor pro papel. Não aqui. Está tudo bem, Margaret. Só foi... Recente demais pra conseguir evitar que atrapalhasse a atuação. Mas não é nada demais, ninguém morreu. Eu sobreviverei, etc.
Ela me deu um último olhar de análise.
— Tudo bem, você é quem sabe. Não me venha chorar depois.
Ri.
— Você sabe que não sou disso.
Margaret riu, já entrando na coxia do palco.
— É, talvez esse seja o seu problema.
Engoli a direta de Margaret como quem engole uma pedra, e então desabei. Era demais, demais para um único par de ombros. Responsabilidade demais, infelicidade demais, frustração demais. Até as roupas da irmã do Rapha eram pequenas demais.
Sentei desajeitadamente no chão, cansada. Massageei minhas têmporas, seguindo pela solução mais rápida. Esquecer. Apagar. Pular. Qualquer coisa. Quinta era um dia dos infernos. Duas aulas com ele, e o Teatro. Praticamente o dia todo vendo sua cara de desentendido, coitadinho. Levantei, sem tempo para crises existenciais, e peguei minhas coisas para seguir até a monitoria.
É claro que o dia todo não bastava, ele ainda tinha que estar esperando do lado de fora do Teatro. Deixei um riso histérico escapar, demonstrando toda a incredulidade que senti.
— Não, me escuta. Eu... Não sei o que tá acontecendo, mas com certeza foi um engano...
Parei de andar, virando-me para ele.
— É, , foi um graaaande engano! Tudo foi, um dos bem grandes mesmo. Agora me dá licença, eu tenho um compromisso pra atender.
— Eu sei, e... Bom, eu tenho um trabalho de Literatura pra fazer.
Quis bater no seu sorriso ladino acanhado, como ele podia... Como ele... Arrrgh! Voltei a andar.
— É, e eu acho que já te ensinei como fazer isso. Não consegue se virar? Não dou monitoria exclusiva, . Existem mais alunos nessa escola.
...
— Boa sorte!
Quase corri até a minha sala de monitoria, torcendo para que ele não me seguisse. Eu andei tão rápido que provavelmente teria sido mais tranquilo se tivesse corrido de verdade. Apesar do calor da briga ter despertado outro desejo junto... Não, nada disso. Eu não seria o brinquedo dele, pra ele usar como quisesse. Era uma amiga lésbica que ele queria? Era uma amiga lésbica que ele teria. Nada mais que isso. O que estou falando?
Enterrei a cabeça em um livro, até que ouvi uma tosse tímida. Um novato, é claro. Suspirei e sorri, oferecendo a cadeira ao meu lado para que o garoto se acomodasse e tirasse de uma vez por todas as suas dúvidas. Aquilo no mínimo iria me distrair. E eu sei ser grata.

*

— Eu tenho mesmo que ir?
"Querido, será que dá pra abaixar a música?"
Gruni, diminuindo o volume do rádio do quarto.
— Pronto, mãe.
"Sim, estamos com saudades! E é um evento para as famílias, . Vai haver de tudo, até mesmo mesas de sinuca. Com certeza você acha algo que te agrade por lá."
— E o que trouxe vocês à Nova York, afinal? Apenas um evento?
"Seu pai tem negócios para tratar aqui, querido. Uma empresa que ele está de olho há anos, extremamente próspera e..."
— Ok, não me interessa. Então vocês ficarão por um bom tempo.
"O que for necessário. Não precisa morar conosco se não quiser, afinal, aí é bem mais próximo da sua escola. E como vão os estudos?"
— Muito bem, estou ótimo aqui... Eu tenho mesmo que ir? — repeti a pergunta, em vão.
"Sim, . Não vou mais discutir isso. Você vai e ponto. Nikki vai também, pelo amor de Deus."
— ... Ok, ok. Eu vou. Mas não tenho roupas.
"Amanhã eu mando algumas, junto com o endereço. E seu carro."
Quanta liberdade, mamãe. Obrigado.
— Não tenho escolhas, tenho?
Ela riu.
"Boa noite, querido. Seu pai está mandando um beijo."
— Diz que eu mandei um pra ele e outro pro bigode dele.
Ela riu de novo, desligando em seguida.
Sentia falta deles, não podia negar, mas preferia um jantar em família do que uma grande festa de empresários ricos em Nova York. No sábado, ainda. Como se eu não tivesse outras coisas pra fazer num sábado. Como... Como... Como dormir, por exemplo. O dia todo, é.
Eu já disse que não gosto dessas festas, né?
Revirei na cama, relembrando cada cena que havia para lembrar. Todas com ela. Respirei o travesseiro como se o perfume dos cabelos dela ainda estivesse ali. E não estava, mas eu conseguia senti-lo. Eu pensei que após a aula de dança algo melhoraria, nem que fosse o mínimo. Nem que fosse apenas uma conversa pacífica. Bom, tivemos uma conversa, porém nada nela foi pacífica. Não da parte de .
Suspirei, desejando que ao menos uma noite conseguisse adormecer com facilidade.
Claro que não seria essa noite.
— Festa? De novo?
— Ué, você tava junto quando combinamos. Toda sexta tem algo, é tipo uma promessa. Somos a turma sênior, último ano dessa merda, temos que viver comemorando! — deu palmadas nas minhas costas, sorrindo.
chegou com e as garotas, se acomodando na mesa. estava por último, e permaneceu em pé. provavelmente dissera algo engraçado, porque elas vinham rindo. Todas menos .
E então ouve um estalo. O efeito da mão de na cabeça de .
— Ai! , com esse tapa todos os piolhos foram pro outro lado da minha cabeça! Olha só a instabilidade que você vai causar no habitat deles!!!
riu como se aquela fosse a melhor piada que ela já havia ouvido na vida, enquanto revirava os olhos.
— HAHAHA, AH, PIOLHOS... HAHAHA! COMO EU... NUNCA... HAHAHAHA!
dirigiu seu olhar rabugento para , mas acabou sorrindo.
— Idiotas. — ela sentenciou, sendo abraçada por em seguida.
E então foi como se mais ninguém estivesse ali. sussurrou algo no ouvido de , com um sorriso nos lábios, e no instante seguinte ela o beijava.
Ótimo, já havia passado da hora deles se acertarem, mesmo.
— Aí, tá ficando constrangedor. — jogou uma bola de papel nos dois, rindo.
E então eles começaram a beijar-se escandalosamente, mostrando línguas e fingindo suspiros. Todos riram, até que os dois não aguentaram e riram também.
— Eu tenho que ir. — avisou, já dando as costas.
— Vemos você na festa? — perguntou.
— Que festa?
— Minha casa, 21 horas! — respondeu.
— Não sei...
— Qualé, ! — reclamou.
— Verei, verei...
Ela já estava longe.
É claro, ela estava me evitando. Mesmo que isso significasse fugir de suas amigas. Aquelas não eram suas únicas amizades, afinal, ela devia encontrar alguém nos limites da escola, ou ler algo.
Só faltava e virarem um casal, aí eu também precisaria arranjar amigos novos.
Então tentei a técnica de fugir dos problemas e passei na biblioteca para pegar alguns livros que resolveriam os trabalhos que estava fazendo. Passei a tarde toda trancado em meu quarto, tirando os cinco minutos em que tive que pegar as roupas que mamãe havia mandado. E a chave da BMW. Quando desci para arranjar a janta, estava fazendo spaghetti para ele, , e .
— Finalmente, Bela Adormecida! — riu.
Estavam todos na mesa enquanto aparecia pela janela da cozinha.
— Eu não estava dormindo.
, tem uma BMW parada em frente a casa, algum playboy metido resolveu se expor...
Suspirei. fez uma careta.
— É dos meus pais.
— É dele. — corrigiu.
As zoações começaram, coisas como "Você tem uma BMW e tá morando nisso aqui?", e eu preferi ignorar. Seria melhor. Sentei no sofá, passando os canais da TV sem prestar muita atenção no que via. e apareceram um pouco antes do jantar ficar pronto, e se havia uma coisa que sabia fazer era almondegas.
Eu peguei algumas partes da conversa, apesar de estar mais entretido com o spaghetti.
— Quem vai ser o DJ da festa? — perguntou, limpando o rosto sujo de molho vermelho.
— O Phillip. Ele tem um equipamento legal e um bom gosto pra música. Perfeito. — respondeu enquanto apreciava sua almondega.
— Ah...
Eu não era o único que estava mais entretido com o spaghetti, também. As conversas eram breves e interrompidas pelo barulho dos talheres que trabalhavam arduamente. As garotas tentavam não se sujar com o molho enquanto os garotos já haviam ligado o foda-se. Afinal, eles ainda se trocariam para a festa, enquanto elas já estavam com seus vestidos.
— Eu ainda acho que devia ir atrás da . Aposto como ela vai aparecer com um jeans velho e uma blusa desgastada. — suspirou.
— Parece legal pra mim. — deu de ombros, ainda comendo.
Ou seja, com a boca cheia.
, não é porque você está sempre decidindo as roupas de festa dela que ela não saiba se vestir. Dê esse crédito pra nossa . — sorria, divertida.
— Não sei... Ela sempre tenta me convencer a pegar uma calça jeans.
— Isso é porque você está lá pra dizer não e forçar o vestido nela. Sem você ela vai revirar os olhos e pegar o vestido do mesmo jeito.
riu, concordando.
— Ok, aposta. Se ela aparecer de calça jeans, você dança em cima da mesa. — propôs.
— Ok, e se ela aparecer de vestido, você dança em cima da mesa. – riu.
Elas riram mais e reclamou com muxoxos.
— Espero que ela venha de jeans.
Ele recebeu tapas de e de enquanto os outros riam.
— Quer ver minha mulher dançando na mesa, ?!
— Não, , não foi isso que eu quis dizer... Ah! Vocês são impossíveis. Quero mais spaghetti, com licença.
Já devia ser mais de nove horas da noite quando a sala de e começou a ficar cheia. Havia mais pessoas ali do que o clássico nós quatro e elas quatro, a maioria dos outros amigos deles que eu conhecia apenas de vista ou de poucas trocas de palavras. De qualquer jeito, aquela festa não era pra mim. Não estava no clima para aquilo, então me escondia na cozinha com um copo de whisky enquanto observava a festa pelo canto do vão. Nada dela, não ainda. Já estava perdendo as esperanças que não tinha quando a porta abriu e vieram gritos.
— HAHA, EU GANHEI! EU NÃO DISSE?! VESTIDO!
abraçou uma confusa enquanto negava com acenos, sorrindo.
— E que vestido, heim?! — a abraçou, impedindo-me de ver a peça de roupa que causava tanta polêmica.
Eu mal conseguia distinguir a conversa, por causa da música, mas depois que a abraçou também pude ver o seu vestido. Tomara-que-caia com decote... Não sei, em coração? Se eu soubesse os nomes dessas coisas que seria estranho, certo? Certo. Eu aposto que nem ela sabe. Ele ia até um pouco acima do joelho, e tinha duas camadas. Dois tecidos diferentes, um brilhante e outro transparente e fosco. O primeiro, que estava por baixo, devia ser cetim. Mas não vou arriscar afirmando algo que eu não tenho certeza.
Me aproximei, tentando decidir sobre a iluminação duvidosa se a cor era roxo ou vermelho.
— Mas esse é um vestido novo. Você não foi comprar, foi?!
riu.
— Não, nem pensar. Vai ter uma daquelas festas amanhã e minha mãe apareceu com dez vestidos novos para eu escolher um. Por sorte, gostei de dois. Esse e o que separei pra festa.
— Precisamos ver esse outro vestido. — comentou, surpresa. — Se for mais bonito que esse... Vai ter que rolar um empréstimo.
— Passem lá amanhã, depois do trabalho comunitário! Almoçamos e sei lá, passamos a tarde. Que tal?
Todas concordaram. O cabelo dela estava inteiro preso, com poucos fios soltos além de sua franja.
— Acho que o Phillip tá acenando pra você. — comentou, cutucando .
E então ela me notou, e em seguida todas notaram. É claro, eu estava a um passo delas.
— Ahn, oi, eu... Queria falar com você.
Elas se afastaram olhando para , que me encarou pela primeira vez em um bom tempo. Ela suspirou, abaixando a cabeça em seguida e indo atrás de suas amigas na pista de dança improvisada.
Não fui atrás, derrotado. Voltei para a cozinha e peguei a garrafa de whisky, indo até a mesa em seguida e sentando na cadeira da ponta, encostada ao vão da cozinha.
Precisava beber mais.
Ela estava escondida entre as pessoas há um bom tempo quando subiu no sofá que estava encostado na parede e puxou junto. Eu não entendi o que acontecia até que reparei que seus lábios acompanhavam a música.
— You don't love me, big fucking deal! I'll never tell you how I feel. You don't love me, not a big deal! I'll never tell you how I feeeeeeeeeel! (Você não me ama, grande porcaria! Eu nunca vou te contar como eu me sinto. Você não me ama, não é problema! Eu nunca vou te contar como eu me sinto.)
caiu e puxou junto. Passei a prestar atenção no que tocava.
It almost feels like a joke to play out the part
When you are not the starring role in someone else's heart
You know I'd rather walk alone, than play a supporting role
If I can't get the starring role
(Quase parece uma piada interpretar um papel/Quando você não é o papel principal no coração de alguém/Você sabe que eu preferiria andar sozinha a interpretar um papel coadjuvante/Se eu não conseguir o papel principal)
Dessa vez ela apareceu ao lado de Phillip, representando a música enquanto era o centro das atenções. Era muito espontâneo da sua parte.
— Sometimes I ignore you so I feel in control. Cause really, I adore you, and I can't leave you alone! Fed up with the fantasies, they cover what is wrong. Come on, baby, let's just, get drunk, forget we don't get oooon! (Às vezes eu te ignoro para que possa me sentir no controle/Porque eu realmente te adoro, e eu não posso te deixar sozinho/Cansada de fantasias que escondem o que está errado/Vamos lá, baby, vamos ficar bêbados/Esqueça que não nos damos bem)
You like my dad, you get on well
I send my best regards from hell
(Você gosta do meu pai, vocês se dão bem/Eu mando minhas saudações do inferno)
I never sent for love, I never had a heart to mend
Because before the start began, I always saw the end
(Eu nunca cantei por amor, eu nunca tive um coração pra consertar/Porque antes da largada começar eu sempre via o fim.)
Deixei um longo suspiro escapar, finalizando a garrafa de whisky em seguida.
Yeah, I wait for you to open up, to give yourself to me
But nothing's ever gonna give, I'll never set you free
Yeah I'll never set you free
(Eu espero que você se abra, que você se dê pra mim/Mas nada nunca vai acabar, eu nunca vou te libertar/Sim, eu nunca vou te libertar)
Péssima escolha de música, Phillip. Se quis dizer algo ou não com essa atuação, não importa. Minha mente passou a maquinar diversas possibilidades para ela estar ali, cantando aquilo. Minha mente egoísta, achando que o mundo de girava ao meu redor.
E todas as possibilidades me levavam ao mesmo ponto: eu, sem coragem de agir, buscando outra bebida forte para aguentar aquilo. Tinha algo soando no fundo do meu consciente, mas com o nível de álcool no meu sistema eu não conseguia focar o pensamento nisso. Ia ficar pra depois, então.
Eu estava quase dormindo na mesa quando a vi ir embora sob alguns protestos.
Deixei-a ir. Não conseguiria sair dali mesmo.
E adormeci, com algumas garrafas me cercando.


Capítulo 25 — Entre o bem e o mal a linha é tênue, meu bem. Entre o amor e o ódio a linha é tênue, também.
(Linha Tênue — Maria Gadú)

Depois de passar boa parte do dia dormindo no lugar certo — minha cama —, estava finalmente pronto para a tal festa de gala da vez. Sabia que não devia ter comemorado, era bom demais pra ser verdade me livrar daquele tipo de tortura medieval apenas morando longe dos meus pais.
— Tem certeza que não tem como emprestar uma dessas roupas pra gente ir com você nessa festa de gente rica? — estava com a mão laranja de tanto comer salgadinho (sendo que o salgadinho era amarelo), sentado no sofá.
— Já disse que esses eventos são somente para as famílias, até pra levar um primo de verdade tem que avisar antes e rola uma super burocracia. — ajustei o terno uma última vez, procurando por dobras indesejáveis.
— Tudo bem. Vai lá, cara, e divirta-se com a alta sociedade e seus eventos caros enquanto comemos salgadinho e assistimos um reality show podre na TV.
Revirei os olhos, sem saco para aquela ladainha. Eu daria o meu lugar na festa pra qualquer um deles sem cobrar um centavo, se ao menos eu pudesse. , que já estava acostumado com isso, apenas ria.
— Eu trarei alguns aperitivos pra vocês, mas garanto que esses salgadinhos são bem melhores.
Saí da casa enquanto ouvia uma sinfonia de xingamentos e caminhei serenamente até a BMW branca. Eu podia não ligar para aquilo e aceitar qualquer carro que andasse, mas aquele era um belo de um carro. E eu estava percebendo algo enquanto me aproximava: saudade. Entrei no carro e liguei o rádio, escolhendo uma rádio de blues. Pude até ver a antiga Nova York, aquela dos livros de fotografia de minha mãe, em minha mente, enquanto dirigia. E isso me distraiu um pouco. Quando cheguei na mansão, estava atrasado. Não precisei ver o horário para saber disso, porque a Sra. já ligava para mim.
Ou seja, atrasado.
— Já cheguei, mãe.
"Ótimo, estamos no salão de jantar."
— Tem um mapa pra chegar nisso aí?
Minha mãe apenas riu, desligando em seguida. Ótimo. Entrei pelo jardim, procurando o lugar menos movimentado. Passei batido pela maioria dos convidados, anos de prática levavam mesmo a perfeição na arte da invisibilidade. Encontrei a piscina iluminada com poucas mesas ocupadas. A maioria dos jovens eu não fazia ideia de quem eram, todos felizes demais por estarem ali. Nikki seria fácil de achar, ela seria a única pessoa natural no meio de toda aquela pompa. E eu? Bem, eu era o único rabugento, com cara de quem preferia estar na África passando fome. Ok, isso foi uma coisa horrível para se dizer. Era esse o meu espírito presente.
Passei pelo salão de jogos, que era enorme e dividido em três compartimentos. Sinuca e caça níquels, jogos eletrônicos e fliperama. Com certeza ia passar a festa toda ali. A pista de dança estava no próximo ambiente, e tomava boa parte de térreo. Resolvi arriscar a escadaria, mas antes parei ali para beber uma taça de vinho tinto.
Naquela exato segundo, eu a avistei. Seu vestido era preto como a noite, e tinha raros brilhos por toda a sua extensão que pareciam estrelas. Ele ia justo até seus joelhos, onde acabavam em babados de um tecido diferente, o mesmo tecido que cobria seus ombros como mangas do vestido. Ela estava linda. O cabelo solto estava todo de lado, com uma flor do mesmo tecido dos babados do lado oposto. O brinco parecia uma cascata de prata, combinando com os sapatos de salto médio.
passou reto por mim, os olhos carregados de preto e os lábios quase vermelhos, talvez um rosa muito escuro. Era demais pra mim. É claro que ela estaria ali, seu pai não podia ter tanto dinheiro e escapar de eventos como aquele. Era o preço a se pagar por ser tão bem sucedido. Foi burrice minha não perceber isso antes, e então lembrei da festa no dia anterior. É claro, se eu não estivesse bêbado teria notado a referência dela a uma festa no dia seguinte. Podia ser coincidência, podia não ser. Eu estaria a esperando, pelo menos. A segui enquanto criava coragem de chamar seu nome.
Consequentemente, não percebi para onde íamos. O que eu diria? Hey, você vem me evitando, mas olha só como o destino é, estamos na mesma festa chata que pode ser muito melhor se ficarmos juntos!
— Ah, querida, vejo que achou nosso filho!
Reconheci a voz de mamãe enquanto virava-se para me olhar, confusa.
— Hey. — sussurrei para ela, com um sorriso tímido. Então olhei para meus pais.
Eles estavam com Richard e Donna, ao lado de uma mesa. Meu cérebro de gênio começou a trabalhar. Richard e Donna . . &. E&E. É claro, tinha que ser. Eles eram a empresa que meu pai tinha tanto interesse em se associar.
Ah, agora eu definitivamente ganharia a medalha de filho do ano. Sinto muito, Benjen, mas seus dias de filho favorito acabaram.
, querido! Esses são seus pais? — Donna parecia deslumbrada.
Não mais que minha mãe, é claro.
— Vai dizer que essa é a de que tanto ouvimos falar, ?
— É, sim.
abaixou a cabeça num leve cumprimento, recuperando sua postura.
— Ah, querida, venha aqui! Mas que adorável coincidência, nos falou muito sobre você!
— Bem, eu espero. — cumprimentou meus pais enquanto eu cumprimentava os seus.
— Muito mais do que bem! E vejo que ele não exagerou em nada. Mas que filhas adoráveis, Donna. Realmente não há como dizer qual é a mais bonita.
— É a Aimée, Bethany. Sem dúvidas. — deu tapinhas nas costas da irmã, parecendo orgulhosa. — Ela também é mais brilhante. Eu só sei ler.
Aimée revirou os olhos daquele modo que a deixava com a feição exata de .
— Ela só diz isso porque odeia ser o centro das atenções, Bethy.
— Bom, essa não é um vestido de quem não gosta de chamar atenção, querida. Mas que peça adorável!
A conversa passou a ser sobre o vestido que usava, então sobrou para mim me juntar aos homens enquanto a apreciava, sem prestar atenção no que eles diziam, até que ouvi o meu nome.
? Perdão, Richard, mas acho que sua primogênita tem um partido.
Eles riram. Deviam estar me chamando a um bom tempo sem que eu sequer percebesse.
— É, eu já vinha suspeitando disso, William.
Tentei não parecer intimado pela presença de Richard, sempre tão forte. O fato de eles discutirem meu interesse na sua filha não ajudava. Limpei a garganta, tentando desviar meu olhar para outro foco menos perigoso.
— Como andam os estudos, filho?
— Bem, bem. Sem muitas dificuldades, me ajudou bastante com Literatura.
E lá estava novamente.
— É mesmo? — aquele brilho único se acendeu nos olhos do meu pai, e logo ele arrancava delicadamente da conversa fashionista para falar sobre seu assunto preferido. Livros.
Agora a conversa ia longe.
E realmente foi. Sentamos e fiz companhia a Richard na falta de conhecimento sobre o que eles tanto conversavam. já dividia o mesmo olhar que meu pai, ignorando completamente a minha presença enquanto discutia os escritores mais diversos de todo o mundo. William parecia um jovem novamente, sorrindo mais do que a pompa permitiria em situações comuns. E aquilo prosseguiu até que Bethany sentiu-se entediada.
— Mas queridos, já abusamos demais da boa disposição juvenil de vocês. Podem dar uma volta, se divertir um pouco.
entendeu que aquilo era um "Chega de ocupar meu marido super interessante" e sorriu, levantando-se.
— Foi uma ótima conversa, Senhor , obrigada.
— Só Will, querida, só Will. E o prazer foi meu.
Ela se retirou sorrindo e eu a segui. ia a passos calmos, até que sumimos da vista deles. Ela apressou o passo, tentando me deixar para trás.
! Qual é...
Ela se virou, e a sua expressão nada tinha da de um minuto atrás. Ela era fúria, daquela que fazia meu sangue esquentar apenas de olhar.
— Já não acha que eu fiz o suficiente, ?
— Ah é, você realmente parecia estar sendo torturada com a conversa mole do meu pai.
— Você estava certo, ele é adorável. Agora chega, certo?
...
— Olha, a associação das empresas dos nossos pais seria realmente ótima para a estabilidade dos meus pais. Os verei mais em casa e eles aproveitarão mais a vida que têm. Não fui simpática pra salvar a sua pele, .
A arrogância dela me pegou de surpresa.
— Ok, entendi. Então podemos dançar agora, que tal?
Ela bufou, dando as costas e saindo. Pensei em segui-la, mas logo ela estava perdida na multidão da pista de dança. Ótimo.
E lá se foi a chance de ter uma boa noite.
Nikki me achou no instante seguinte, subindo a escadaria enquanto gargalhava.
— Finalmente! Achei que teria de aguentar isso aqui sem seu rosto bonitinho.
Ok, bêbada.
— Pois é, Nikki.
— Vamos dançaaaaaar?
A segurei, sendo levado para a pista de dança em seguida.
— Nikki, eu...
— Relaxa, .
Suspirei. Nikki bêbada, como se a noite não estivesse ruim o suficiente ainda havia minha melhor amiga se esfregando em mim.

*

Aquilo era o suficiente. Só pra fazer aquilo. Correr atrás de mim com toda a humildade do mundo e tentar ser bacana pra em seguida estar na pista de dança com outra. Com Nikki! A noite não podia ficar melhor. Fui ao banheiro, a reação comum que tinha ao ficar nervosa. Ao lado do fliperama. Perfeito. Ia passar o resto do evento jogando Street Fighter. A vida não podia ser melhor.
Antes que saísse do banheiro, no entanto, uma conversa chegou aos meus ouvidos.
— Mas Evelyn, assim tão rápido?
— Já passou da hora dela sossegar, querida. Nichole vai se casar. Não espalhe, ainda não fizemos o anúncio oficial.
— É, nem a noiva sabe.
A conversa continuou, mas toda a minha capacidade estava centrada no raciocínio. Nichole. Nikki? Quais eram as chances? Não, eu devia estar louca. Mas Nikki não é um nome... Bom, pode sim ser. Mas e se...
Esperei a conversa se afastar e saí do banheiro, direto para o fliperama.
O salto me deixava alta demais pra jogar confortavelmente, então os tirei. Nervosa, parecia ter esquecido todos os movimentos especiais da Chun Lee. Tentei me concentrar, afastando os pensamentos. Um evento tranquilo, era isso que minha mãe havia dito.
É, só se fosse pra ela.
Já estava chamando atenção demais da comunidade nerd da alta sociedade (4 ou 5 crianças que ainda eram muito novas para sofrerem as consequências do dinheiro dos pais) quando desisti e puxei meu celular da bolsinha que carregava no ombro.
— Atende, atende...
Caixa postal. Ótimo. Tentei de novo.
Dessa vez ele atendeu.
"O que houve?"
Que bom que ele tem o bom senso de perceber que, para eu estar ligando, havia algo grave.
— Qual o nome da mãe da Nikki?
"O quê?!"
Repeti.
"Evelyn, é Evelyn. Por quê?"
Dei um grito abafado. Merda.
— Preciso falar com você. E com a Nikki. Venham pra sala de sinuca, rápido.
", o que..."
— Tá muito barulho, não dá pra explicar assim. Rápido.
"Ok."
Peguei meus sapatos e fui para a sala de sinuca, milagrosamente quase vazia. A piscina parecia ainda mais vazia.
Meu cérebro parecia estar em curto-circuito.
Ele chegou, sério. Nikki veio rindo. Até me ver.
— Ops. Oi, .
— Vamos lá fora.
Indiquei a piscina com a cabeça e eles me seguiram.
— O que aconteceu?
Respirei fundo.
— Eu ouvi uma conversa que não devia. E era sobre a Nikki. Ao menos, eu acho que era. Nikki é o seu nome ou é um apelido?
Ela se sentou, o olhar assustado.
— Claro que é um apelido, meus pais jamais dariam um nome como "Nikki" para a filha deles. Nichole, sim. E eu odeio. Era minha mãe? Ruiva, de olhos verdes. Alta e muita magra, vestido...
— Sim, era Evelyn. Não vi tanto seu rosto, mas...
— O que ela disse? Eu sabia que ela estava aprontando alguma. O que foi??!
De repente, Nikki estava completamente sóbria.
— Ela falou de um casamento.
Nikki gritou.
— Não pode ser, ela não faria... Com quem?
— Ela não disse o nome do noivo, mas a noiva ficou bem claro que seria você.
deu um murro na mesa, atraindo nossos olhares.
— Eles não fariam isso. — ele falou, olhando para mim.
— Eu concordo, mas não achei legal arriscar.
, você precisa fazer algo. — Nikki choramingou.
— Não tem... Se eu conversar com eles, eles vão saber... Pode ser que eles adiantem o casamento, ou...
Assisti a cena com pena. Minha vida podia ser um inferno, mas meus pais jamais arranjariam um casamento para mim, ainda mais sem eu saber. Inimaginável.
— Nikki. Você ainda tem seu passaporte falso? — perguntou.
— Sim.
— Suas amigas irlandesas?
— Sim...
— Acho que é uma boa hora pra você voltar a viajar.
Ela assentiu.
— Só mais um dia. Acerto tudo amanhã e... Segunda estou no aeroporto.
— Tudo bem.
Ele a abraçou, beijando sua cabeça. Um ato extremamente fraternal, para a minha surpresa. Phillip costumava fazer aquilo comigo, e Phillip era como um irmão para mim. Talvez a relação dos dois não fosse muito diferente, apenas um tanto deturpada.
Nikki secou suas ralas lágrimas.
— Agora... Acho que eu vou comer algo.
— Vou com...
— Não. Você fica. Relaxa, . — ela deu um sorriso fraco e levantou. — Obrigada, . Você não tinha obrigação nenhuma... Obrigada.
— Imagina.
Engoli o resto da resposta porque estava sem palavras. Não havia algo bom pra falar. Não havia nem o que falar. Ela se afastou, entrando novamente na casa.
Um longo suspiro escapou de .
— Obrigado. Mesmo.
— Imagina. É... Horrível.
— É... Acho que eu mencionei que os pais dela eram bem extremos.
— É, e eu devia ter levado isso mais à sério.
Ele sorriu um sorriso abatido. Senti compaixão, é claro. Como não sentir? Eu também não sou de ferro. Não ainda. Ele deve ter percebido que meu coração estava amolecido, porque em seguida resolveu abusar da situação.
— Aceita... Aceita aquela dança, agora?
Outro suspiro da minha parte.
— É, você tá com cara de quem quer dançar. — ri, conseguindo contagiá-lo. — Que tal fliperama?
— É, é por isso que eu gosto de você.
Não fique vermelha, , pelo amor de Zeus. E olha que esse aí tinha muito amor pra dar, não é mesmo? Ignorei o calor que alcançou meu rosto e o acompanhei lado a lado até o fliperama.
— Tem Street Fighter. Acho que serve para quem está meio revoltado e desnorteado.
— Não conte com as minhas fraquezas pra me bater. Sou muito bom nisso.
— Não estou contando. E não conte com o fato de eu ser garota.
— Jamais pensaria nisso. Já apanhei de tanta garota na vida gameística que seria estúpido da minha parte.
A trégua não durou muito. Por mais tentadora que fosse a sua companhia, as palavras "amiga lésbica" não saiam da minha cabeça. Era isso que eu era, e meus pensamentos eram muito bons em me trazer sempre para aquela frase de Nikki. A amiga lésbica dele.
Subimos para o jantar um pouco depois. Nossos pais ainda estavam juntos, então sentamos lado a lado. Em silêncio, com sorrisos desconfortáveis, ouvindo nossos pais se gabarem da nossa inteligência. Um típico jantar social. Senti a mão dele na minha perna, e o olhei assustada. desceu o olhar para minha coxa, e eu o segui. Um papel e uma caneta estavam no meu colo. Li o papel.
"Vem comigo? Estou de carro, te deixo em casa."
Ponderei a resposta, sentindo um peso enorme no peito.
"Você sempre anda com uma caneta?"
Ele deixou um riso incrédulo escapar quando viu a resposta.
"Você sempre responde com uma pergunta? Hábito aprendido com meu pai, seu mais novo e adorável amigo Will. Sua vez de responder."
Mordi o lábio, confusa. Por que ele tinha que ser tão legal quando não cansava de pisar no meu coração?
"Não. Voltarei com os meus pais."
Ele pareceu claramente desapontado.
"Boa sorte para não dormir, então."
Amassei o papel e joguei-o no copo, fingindo indiferença. Por dentro meu coração estava desenfreado. Tinha que sair dali.
— Com licença.
Todos acenaram com a cabeça, e eu saí tentando encostar o mínimo possível em . Ele não facilitou meu trabalho, ficando imóvel em sua cadeira, olhando entediado para o copo na sua frente.
Andei até encontrar uma sacada, me escondendo ali. A visão era a parte de trás da casa, um bonito jardim. Estava começando a me acalmar quando a porta foi aberta.
Claro que era ele. Na verdade, eu sentia até um certo alívio de ser ele, haviam pessoas piores naquela festa, como antigos colegas da Holliang.
Era por isso que eu odiava aqueles eventos. A pior classe da Holliang estava ali.
— Você não vai parar de me seguir? — perguntei, voltando a admirar o jardim.
— Depende. Você vai parar de fugir de mim?
Ele ficou ao meu lado, deixando seu perfume vir até mim com a brisa.
Maldição. Eu tinha que adorar aquilo, não tinha?
— Acho que você me deixa sem opção.
Ele riu.
— Você está deslumbrante nesse vestido. Mais que o normal, se é que isso é possível.
Corei, surpresa pelo elogio.
— Você não está nada mal nesse terno, também.
Tentei parecer tranquila, indiferente. Falhei. Ele sorriu, de qualquer jeito, faíscando seus olhos na minha direção.
— Isso só faz a saudade aumentar. Não faz isso com você, também? Não sente a minha falta... Assim?
Ele prendeu meu corpo com o seu, mantendo uma pequena distância entre nossos rostos. Devia ter bebido muito pra dizer aquilo, mas concordei mentalmente. Sim, eu sentia sua falta. Desse jeito, junto ao meu corpo. Tão bom... Por que tinha que ser tão bom?
Fechei meus olhos por tempo demais, dando a resposta que ele tanto queria sem precisar dizer nada.
Ele acariciou meu rosto. Esperei pelo beijo, mas apenas encostou nossas testas.
— Por que você foge tanto disso se sente tanta falta quanto eu?
Foi o que precisava ser dito pra eu acordar.
O afastei com uma risada ácida.
— Por que você não me deixa em paz?
Saí da varanda antes que ele me impedisse com o seu charme delicioso. Não tive muito tempo para respirar, dando de cara com as pessoas mais deploráveis de Nova York. Eu não lembrava seus nomes, ou tentava não lembrar, mas era impossível esquecer os dias sendo perturbada na Holliang.
Ótimo, a noite não podia ficar melhor que isso.
— Olha só se não é a !
— O tempo te fez bem, .
— É, quase esqueci da sua esquisitisse olhando pra essas suas curvas dentro desse vestido.
Eram três garotos e duas garotas, todos em sua falsa educação prontos para se divertir as minhas custas. Saudades desse tempo, só que não.
— Ouvimos que você é quase uma Rainha na Ferdinand. Num lugar daqueles, não é estranho que tenham te elegido como representante.
Eles riram, e eu sorri meu melhor sorriso de vai-se-foder. Ia passar por eles sem dizer uma única palavra. Eles não mereciam um segundo do meu tempo.
— Pra quê a pressa, ? — um deles correu até mim, ficando na minha frente. — Fique mais, conte como aprendeu a disfarçar sua esquisitisse com um decote e boa maquiagem.
Novas gargalhadas. Tentei passar pelo infeliz que bloqueava meu caminho até a escada, em vão.
— Perdi a piada?
Olhei para a sacada, vendo sair dela. Ótimo, agora sim. bancando o herói, a noite podia sim ficar ainda melhor.
— Perdão, e você seria? — o garoto que segurava meu braço perguntou.
Soltei-me de sua mão, ele apenas de olhou de soslaio.
. E você?
— Ah! É um prazer finalmente conhecer o mais novo. Eu sou Rick, Rick Belmington. Esses são Katty, Johanne, Marcus e Gus.
— Aham. Se vocês nos dão licença, temos um compromisso. — me ofereceu o braço, eu aceitei contra minha vontade. Ele encarou Rick frente a frente, sem hesitar.
— Uma pena estar tão mal acompanhado, . Nós podíamos acompanhá-lo muito melhor.
riu.
— Não, duvido que exista melhor companhia nessa festa, Rick. Não se ofenda, — ele disse polidamente, apesar de parecer querer dizer o contrário. — Mas eu jamais conheci uma pessoa mais inteligente e bonita quanto a Srta. aqui.
Rick esboçou um riso, que se desfez ao perceber que aquilo não era uma brincadeira.
Meu ego inflou tanto que quase saiu pelas orelhas. Mesmo sabendo que ela estava apenas bancando o herói. Talvez.... Talvez fosse sincero.
Aquele pedaço masoquista do meu ser queria que fosse sincero.
— Você andou trancafiado em uma masmorra nos últimos anos, ? — Marcus perguntou, desencadeando outra onda de risos.
— Muito pelo contrário. É claro que é preciso ser homem de verdade para merecer tal companhia, então talvez vocês nunca descubram o quão fantástica é. Porém, vocês não deviam se orgulhar disso. De qualquer modo, sobra mais chance para mim de ter a sua atenção, então... Continuem assim, meus caros.
E então ele me conduziu para as escadas, deixando engomadinhos embasbacados para trás. Quando ficou claro que não seríamos seguidos, falei:
— Você acabou de fazer cinco inimigos bem chatos.
— Gente como essa me diverte, principalmente porque eles não tem coragem de me desafiar por ser filho de quem sou. Ou irmão de quem sou, pra falar a verdade. Uma pena, adoraria quebrar a cara daquele Rick Belmi sei lá o quê.
— Eu também, apesar de não ligar para essas coisas mais.
— E não devia mesmo, essa cena é típica de quem se sente ameaçado e resolve fazer um time para amedrontar a possível ameaça. Você é muito melhor que todos eles juntos, e isso está claro até mesmo para o mais burro daqueles cinco.
Então o elogio era verdadeiro. Meu ego sorriu satisfeito.
E o meu pedaço masoquista também.
— Obrigada. Pela ajuda, digo. Eu nunca precisei, mas foi legal ver as caras de babacas deles sem reação, pra variar.
— O prazer foi meu.
Eu ri.
— E essa escolha de palavras difíceis, até me senti mais velha.
Ele sorriu ladino.
— Apenas para mostrar que eu não era da laia deles.
— Uh, desculpa aí, elitista.
Ele riu, faíscando aquele azul dos seus olhos na minha direção.
— Ainda vai negar aquela carona que eu ofereci?
— Sim. Meus pais já estão indo, logo menos.
— E a dança?
— Pensei que tívessemos trocado ela pelo fliperama.
Ele suspirou, derrotado.
— Ok, você venceu.
— Então vamos.
O surpreendi, puxando-o para a pista de dança. Tocava uma dessas músicas pop eletrônicas de rádio, e eu apenas deixei meu corpo encontrar o ritmo certo. fez o mesmo, as mãos apoiadas docilmente na minha cintura, no mesmo ponto que, dias atrás, ele havia segurado bem mais forte...
Não era seguro lembrar disso agora. Muito menos de como fora bom. Aproximei minha boca de seu ouvido para que a música não o impedisse de me ouvir.
— Eu pensei que você não gostasse de dançar essas músicas.
Afastei-me a tempo de vê-lo sorrir.
— Mudei de ideia depois de dançar com você a primeira vez, um mês atrás.
— Hm.
Dançamos juntos demais para a minha sanidade, nossos corpos se encontrando em pontos distintos até que ele soltou minha cintura e começou a fazer graça, dançando desajeitadamente. Acabei rindo e entrando na onda dele, fazendo os meus melhores passos de Grease. É. Então dançamos descontraídos ao som de algumas músicas, apenas brincando e rindo. Fizemos alguns passos da aula de dança, até. A flor no meu cabelo se soltou, e eu a prendi no vestido. A gravata de foi parar em seu pescoço, enquanto ele desabotoava sua camisa social vermelho sangue. Ele ficava ainda mais lindo assim.
— Esse terno deve estar te matando!
Ele concordou, abrindo outro botão da sua camisa e me fazendo morder o lábio. Mas que coisa, tire essa camisa de uma vez!
— Água! Água. — ele pegou dois copos de um garçom que passava por perto, dando um deles para mim.
— Obrigada.
A música mudou para uma balada mais calma, deixando claro que a festa estava acabando. Uma pena, pensei enquanto devolvia o copo vazio para outro garçom, pronta para sair dali e subir a escadaria.
Porém, segurou meu braço, puxando-me de volta para si e encaixando as mãos novamente em minha cintura.
Ele não disse nada, apenas me encarou.
Senti minha respiração pesar enquanto meu corpo parecia tremer de satisfação. Tudo bem. Tudo bem. Só... Uma dança. Apoiei minha cabeça no ombro dele e descansei minha mão em seu peito, fechando os olhos e deixando me conduzir numa valsa lenta, quase devagar demais para a música que tocava.
Respirei fundo, tão próxima de seu pescoço que pude sentir os vestígios de seu perfume confundido com o seu suor. Mais lembranças.
Não devia ser tão bom. Ou eu realmente me sentia mais leve nos braços dele ou era coisa da minha cabeça, apenas pregando peças em mim.
— Veja como eles são lindos, Bethy.
— Ainda mais juntos, Donna.
Abri os olhos, vendo nossos pais parados na escadaria. Ah, que ótimo. Agora sim eles falariam de nós dois como um casal. Talvez eles nos obriguem a casar, se não dermos certo. Lindo. Aimée era a única que parecia estranha com a cena, nos olhando como se tivesse acabado de morder um limão.
— Já estamos indo? — perguntei, afastando-me de .
Ele me deixou ir, soltando minha cintura.
— Sim, querida. Amanhã vocês podem ficar mais tempo juntos, agora vamos para casa. — Donna sorriu, passando a mão pelos meus cabelos.
Nos depedimos da família e seguimos para a entrada, todos com sorrisos nos rostos.
— Essa foi uma noite encantadora. Por sorte teremos mais amanhã. — mamãe suspirou, enquanto esperávamos o carro.
— Hm? — questionei, sentindo que havia perdido algo.
— Ah sim, querida, seu pai convidou Will e Bethy para o almoço, amanhã. Ele disse que faria seus camarões grelhados. Tomara que esteja sol. Você pode até dar alguns mergulhos para eles, querida!
Sim, isso é tudo o que eu mais quero, mãe! Obrigada. Senti uma certa amargura descer pela minha garganta enquanto mamãe tagarelava. Aimée apontou para a minha bolsa, parecendo nervosa. A abri, vendo que o celular tocava.
Era uma mensagem.
"Aimée: O que raios aconteceu???"
": Como assim, Méme?"
"Aimée: Você estava puta com ele e então te vejo dançando juntinho de olhos fechados com quem??? Explique-se, ."
Suspirei enquanto entrávamos no carro, e expliquei o mais rápido que consegui. No final da narração sobre a minha noite, Aimée mandou uma única mensagem.
"Aimée: Merda, ele faz umas coisas muito fofas pra quem diz por aí que você é só a amiga lésbica dele."
Bem observado, minha cara irmã.
Imagina o que meus amigos disseram, então, quando eu contei os eventos da noite para todos numa reunião pelo skype.
"Já que você está assumindo assim, eu devo começar a dizer que você é a minha melhor amiga lésbica também, né? Eu dizia só melhor amiga mas esse lésbica faz TODA a diferença!"
É, foi o jeito deles me lembrarem repetidamente o que dissera sobre mim para Nikki, já que eu parecia ter um sério problema de memória.

*

Ah, definitivamente o filho do ano. Primeiro por ter arranjado uma garota tão fantástica, segundo por ela ser filha dos donos da empresa que meus pais queriam se associar. A aprovação nos olhos de Bethany era completa, como jamais visto antes. Até me senti como se fosse meu irmão.
— Uma mulher e tanto, filho. — William apoiou a mão em meu ombro, me olhando de frente.
— Eu sei.
Ah, e como eu sei.
— Não, filho. Eu falo sério... Ela é mulher demais.
Isso me pegou de surpresa.
— Como... Como assim? Tá dizendo que eu não aguento? — ri.
— Estou dizendo que ela não precisa de um homem. Ela não precisa de ninguém. Até a postura dela demonstra a independência... Eu já conheci uma mulher assim. Elas não costumam se prender.
— É mesmo? Pai... Eu sei de tudo isso, desde a primeira vez que a vi, mas eu não consigo... Não consigo tirar ela da minha cabeça.
William assentiu, retirando a mão de meu ombro.
— Isso também é perceptível, meu filho.
O velho deu uma risada, como se me zombasse. Acabei rindo também. O que se podia fazer, afinal?
— Temos um almoço amanhã, querido. Creio que você saiba o caminho para a casa de , não?
Almoço na casa dela. Era só o que faltava.
— Sim, mãe.
— Ótimo, passaremos na república em que você está com o antes e você nos guia até a casa. Aliás, como vai ? A casa é grande o suficiente para vocês dois?
está ótimo e a casa é perfeita para nós dois.
Conversamos um pouco mais antes de decidirmos ir embora. Me despedi e fui atrás da minha BMW, sem paciência para manobristas. A verdade é que estava sem paciência para qualquer coisa que não envolvesse . Ainda sentia sua cabeça no meu ombro e a pressão de sua mão no meu peito... Sem um único beijo além do que recebera no rosto, como despedida.
Como um convite. Como um "Venha buscar mais, você sabe onde eu moro." E, ah, eu sei mesmo. Amaldiçoei o bendito vestido que ela usava, marcando perfeitamente suas curvas sem mostrá-las completamente. Os outros achariam o vestido bonito, respeitável. Enquanto eu, que já havia visto por debaixo de qualquer pano, o achava extremamente apelativo. Um insulto a minha incapacidade de agir estando num lugar como aqueles. Um convite para segui-la.
Não.
Eu precisava parar de ver convites em tudo, principalmente onde não existia convite algum.
O pior de tudo era não conseguir tirar esses pensamentos da cabeça nem quando havia algo como minha melhor amiga prestes a ser casada com algum estranho. Mesmo assim, tudo que minha teimosa mente masoquista pensava era em com seu belíssimo vestido, me esperando em seu quarto para ajudá-la a tirar aquela magnífica peça de roupa. Doentio.
Seguir para a rua de casa ao invés de entrar na rua que levaria a casa de não foi fácil. Por sorte, não havia ninguém em casa e devia estar dormindo. Tirei a roupa, deixando-a jogada pelo chão, e caí na cama.
Não havia nada a se perder, então mandei a mensagem que aguardava na tela do celular antes que caísse no sono.
"Sinto a sua falta."
Adivinhe para quem essa mensagem foi.

*

Pior dia de todos para uma tarde amigável com a família . Papai não podia ter escolhido uma data mais infeliz. Eu balançava para frente e para trás há mais de uma hora no balanço da árvore de casa, tentando sumir com o nervosismo. Eu era fraca, depois da noite de ontem... E a mensagem que ele mandou de madrugada... Eu jamais conseguiria resistir.
Antes de dormir, recebi uma mensagem de . O fechamento perfeito para as suas atitudes da noite, uma mensagem dizendo que sentia a minha falta. Dormi serenamente, mas acordei em pânico. O que ele queria, mais uma noite? Me usar? O que eu queria? O que a vida queria?
O que o universo pretendia, com tudo isso?
Muitas perguntas, nenhuma resposta.
Raphael mandava mensagens de meia em meia hora, sempre com as palavras "melhor amiga lésbica" no meio do conteúdo.
Fale sobre pessoas rancorosas.
A campainha de casa tocou. Desci do balanço, ajeitando a calça jeans de cintura alta (daquelas que tem vários botões, sabe?) e a blusa branca comum que estava por dentro da calça. Tudo certo. Aimée passou me chamando e eu entrei, pronta para a tortura.
Ah sim, seria uma verdadeira tortura passar a tarde na companhia do interessantíssimo William e do seu filho super maravilhoso pelo qual eu me apaixonei tanto que entreguei dois v's pra ele, se é que você me entende.
Revirei os olhos para mim mesma e cheguei no hall, onde os cumprimentos já aconteciam. Bethany devia esconder algo que me faria cair aos seus pés, também, e desejar trocar de família. Não, isso eu jamais faria. Laços de sangue, dizem. Esse lance é bem real quando eu paro pra pensar. Apesar de tudo, jamais trocaria minha família.
Esses pensamentos foram levados para longe assim que o vi. vestia uma blusa preta de gola v, daquelas que deixavam a maioria dos homens parecendo ter um ego absurdamente grande e a minoria com um real sexy appeal impossível de aguentar. Adivinhem qual dos dois era . Tudo que eu senti foi vontade de passar a mão pelo sei peito, até arrancar aquela maldita camiseta dali. Péssimos sentimentos pra se ter em uma tarde em família, péssimos. Péssimos. Tentei disfarçar tarde demais, seu olhar já me estudava do mesmo modo de sempre. Dos pés até a cabeça. Tentei um sorriso, apesar de ter tremido só de ver o primeiro passo que dava na minha direção, fazendo a calça jeans clara marcar as suas pernas. Seu cabelo ainda estava um pouco molhado, o que só aumentava a sua atratividade. E, pra fechar a combinação perfeita, ele vinha com seu melhor sorriso ladino. Tentei manter a postura, mas então senti o seu perfume. Próximo demais, ele se inclinou para beijar meu rosto.
— Então você sentiu a minha falta, também.
Não foi uma pergunta. E lá estava eu de olhos fechados de novo, mas que inferno!
Dei um passo para o lado e fui na direção de seus pais, ou o mais longe possível dele que eu conseguisse.
!
Ótimo, já estávamos íntimos assim.
— Bethy, Will.
— Ainda mais bela na luz do dia. — Bethy não parecia mentir, e recebi um leve carinho no rosto.
— Obrigada. — agradeci, sempre sem ter algo melhor para fazer em uma ocasião como essa. — Digo o mesmo sobre a senhora, vermelho lhe cai extremamente bem.
— Ah, querida, obrigada...
E lá começava outra conversa sobre roupas.
Então eu mencionei nossa biblioteca, e Will precisava conhecê-la. Então, a conversa se moveu para lá. Apresentei todos os cantos, a sala somente com os livros de Donna e a sala de Richard, deixando a minha sala por último. Nesse ponto, meus pais já haviam ficado para trás, com Bethany. Aimée nos seguiu apenas porque o fizera. Ela provavelmente nunca mais nos deixaria sozinhos depois de perceber que eu não conseguia resistir aos seus charmes. Não enquanto ele não fosse confiável.
O pensamento me divertia, já que há tão pouco ela preferia me ver morta, mas outra coisa me divertia mais: William .
— Até aqui tem uma escada...
— É claro, como alcançar os livros de cima sem uma?
— A maioria das pessoas só tem livros em cima para não deixar o espaço vazio.
— Não é o meu caso.
— Eu vejo. E parece até mesmo a escada de A Bela e a Fera, aquele filme da Disney. Até temos uma Bela para a biblioteca.
Ri com o elogio, sentada no sofá enquanto o observava andar pela sala. A Bela e a Fera sempre fora meu filme da Disney preferido, somente porque a personagem principal amava livros.
— Deixei-me ver se eu entendi. Nenhuma estante esta cheia, com excessão dessa. Esses são os livros que você não leu ainda.
— Exato.
— Hm... Não devia deixar esse aqui esperando tanto.
Os Contos dos Irmãos Grimm. Em alemão.
— Não queria deixar nenhum deles esperando tanto, é claro que eu precisaria largar tudo para resolver esse problema.
— O maior problema de todo bom leitor. — Will sorriu. — Então as outras estantes são de livros lidos... Filosofia e sociologia, ficção, romance... Mas por que os espaços livres?
— Bom, cada vez que eu leio um, ele sobe uma prateleira.
— Então você leu Harry Potter algumas vezes, não é mesmo?
— Boa parte da minha infância, sim.
— Pra quem reclama de tempo para ler esses daqui, você releu algumas vezes esses outros... — William olhava para a última prateleira.
— Eu não decido nada, eu apenas obedeço minha vontade de ler. Os que foram muito lidos, mereceram.
— Ah sim, e vejo Uma Canção de Gelo e Fogo entre esses, então seus desejos estão muito certos, . Muitas pessoas batalham para lê-los uma única vez, e você já leu o terceiro três vezes.
— Eu gosto de sofrer.
— Deve gostar mesmo, metade dos meus personagens favoritos morreram nesse livro.
Certo, William já havia lido George R. R. Martin. Eu realmente desejei por um instante que ele fosse meu pai. Foi mal, pai.
— E ainda assim ele é um dos melhores da série até agora.
— Eu sempre acho o último que eu li melhor.
— Eu também! Mesmo, no caso, os meus favoritos mal apareceram nesse quinto livro...
— Temos uma Stark aqui, estou certo? — ele riu. — Eu finjo que não, para evitar sofrimentos futuros, mas sou completamente um banerman dos Starks.
— Ah, então você também é masoquista, Will? — brinquei, porque aquela era uma verdade. Se algo desse certo para aquela família, seria porque tudo já tinha dado extremamente errado antes e a única coisa surpreendente que o autor poderia fazer era arranjar algo bom pra quem sobrou com esse gene.
Nos divertimos mais um pouco discutindo livros antes que Donna nos chamasse para a churrasqueira, então me sobrou a companhia de . E Aimée, é claro. Papai já fazia os camarões, e haviam alguns petiscos na mesa que serviram de distração enquanto nossos pais discutiam o futuro brilhante que tínhamos pela frente.
Mas eu nunca fui muito boa em aguentar essa ladainha, então logo saia para vestir um bíquini e entrar na piscina. Quando a comida estivesse pronta, almoçaríamos no espaço gourmet que havia no subterrâneo, ao lado da piscina.
O vestiário era onde meus bíquinis ficavam. Peguei o mais bonito, um azul marinho com as costas em um x feito de correntes de ouro. Na frente havia um broche de ouro com uma âncora próximo do busto esquerdo. Seria esse. Me vesti e fui para a piscina, louca para afogar alguns pensamentos.
Eu estava bancando o Percy Jackson (sentada no fundo da piscina, parada) quando eles entraram, acendendo luzes e trazendo a comida. Então eu nadei todos os nados possíveis, até que papai pediu um mergulho. E eu mergulhei, mesmo sem entender toda aquela fascinação pelos meus mergulhos. Eles sempre diziam que eram muito bonitos e até mesmo silenciosos. Sinceramente, não me importo. Antes isso do que ter que, sei lá, desfilar.
Logo que saí da piscina me arrependi. Ouvi Donna e Bethany numa discussão profunda sobre minhas qualidades, e não sabia o que era mais horrível: minha mãe me elogiando ou minha mãe me vendendo. Era como se ela estivesse falando "Vejam como minha filha é ótima, talvez até mesmo ótima demais para o seu filho." Decidi tomar um banho, chegaria bem a tempo da comida e escaparia daquela feira. Não se empolgue tanto em vender a minha virgindade aos , mãe, eu já dei essa tal pra ele. Talvez ele tenha algo a falar sobre as minhas qualidades, quem sabe?
Agradeço aos deuses todos os dias por não ter nascido naquela época infeliz em que uma garota da minha idade já teria dois ou mais filhos. Ainda mais quando os casamentos eram arranjados e tudo o mais. Já odeio o sentimento de passar por isso, imagina se realmente fosse ser vendida assim. Aliás, pagar pra ser levada. Um dote, mas isso era algo que eu não engoliria. Penso muitas vezes em honrar a liberdade que a mulher conquistou jamais me casando. Já parou pra analisar o casamento sem os floreios que fazem? Pura aquisição de propriedade. Não sei se quero deixar de ser para ser qualquer outro sobrenome. Meu nome é , e é assim que vai ser a vida toda, até a morte.
De qualquer modo, tomei o banho o mais rápido possível, tentando não arrancar minha pele quando deixava a raiva tomar meus movimentos com a esponja.

*

Entendi a pressa com que ela sumiu da piscina, estava tão chateado com a conversa de Donna quanto aparentou estar. Sua mãe estava nomeando qualidades dela como se não fosse óbvio para todos o quão incrível sua filha era. Talvez porque ela não acreditasse nisso, é claro. William ouvia a conversa com as mãos unidas na frente da sua boca, provavelmente chegando a mesma conclusão que eu. E, talvez, tentando entender porque uma mãe não sabia a filha maravilhosa que tinha.
Aproveitei a primeira chance que tive para sair dali também.
— Ah, querido, aproveite para chamar ! A comida vai esfriar.
— Claro, Donna.
Sorri, guardando a vontade que tinha de sacudi-la e perguntar o que havia de errado.
Fiz o conhecido caminho até o quarto de sem pressa. Ia bater na porta ou apenas esperar ali, só que: a porta não estava fechada.
Ela saiu do banheiro com a toalha na frente de seu corpo, sem cobrir suas laterais. O cabelo ainda molhado respingava nos seus ombros, deixando pequenas gotas fazerem uma trilha convidativa para as minhas mãos. me viu, parando de frente sem emitir qualquer reação além de me olhar.
Eu não pude resistir, passando o olhar por cada canto descoberto de seu corpo. Quando voltei ao seu olhar, ela parecia me analisar.
Diga alguma coisa. Diga alguma coisa.
Ao invés disso, me aproximei. Ela pareceu segurar a toalha mais forte em seu peito, talvez por medo de mim. Bom, então seria melhor ela dizer não, porque só aquilo não me faria parar. Não antes de ficar bem na sua frente, pelo menos. Ela não disse nada. Eu também não. Passei as mãos pelos seus ombros, descendo pelos braços e parando na cintura. Nenhuma reação além da respiração dela, que parecia mais forte. Desci uma das mãos pelo seu quadril, alcançando a sua coxa.
Foi quando ela me parou, com a sua outra mão.
No instante seguinte eu a beijava, encostando-a na parede e apertando meu corpo contra o dela. Desci os beijos para seu pescoço, já enlouquecido com os efeitos que ela tinha sobre mim. Já latejando para tê-la.
Foi quando tentei puxar sua toalha que ela agiu.
, não.
Não dei ouvidos, passando os beijos para o seu ombro.
! Você veio me chamar pro almoço?
Mas o que...
— Sim.
— Ótimo, porque não vai ser nada suspeito se a gente demorar pra voltar, né?
Entendi.
, eles nem vão...
— A porta tá aberta, minha irmã pode aparecer!
— Eu fecho!
Ela me afastou, parecendo furiosa, e entrou no banheiro.
Dando uma visão e tanto das suas costas descobertas. E do que tem embaixo das costas também.
Urrei de frustração, querendo socar a parede. Eu não era do tipo que socava coisas, então ficou só no sentido figurado mesmo.
Levou mais de um minuto para me recuperar e a sanidade voltar. Ela estava certa, pra variar. E Aimée apareceu no instante seguinte, me olhando estranho.
— Tudo bem?
— Tudo.
— Méme? — a voz veio do banheiro.
— Sim!
— Pega a roupa que está na cama pra mim, por favor?
Aimée olhou para mim.
, será que você pode esperar do lado de fora do quarto?
— Ah, claro.
Saí e fechei a porta, ainda sentindo meu coração bater forte demais. Se não tivesse me parado... Sabe-se lá a reação que a irmã dela teria. De qualquer modo, não seria uma cena muito bonita pra uma irmã presenciar, e eu era um imbecil.
Por outro lado, vê-la daquele jeito... Era impossível ter outra reação que não fosse a total perda da razão. A culpa não era totalmente minha, não depois de tudo o que já tinha acontecido entre nós.
Desculpas? Sim. Eu sou um imbecil, ponto.
Elas saíram do quarto rindo, e vestia uma jeans surrada e uma blusa do Whitesnake sem gola. Isso me pegou de surpresa. Casual demais... Talvez fosse de propósito. Talvez, haha. Com certeza. Esse devia ser seu modo de não atacar sua mãe. Antes se rebelar contra a etiqueta do que voando no pescoço da própria mãe, já diziam os sábios.
Apenas as segui em silêncio, observando a graça com que recebeu o olhar de reprovação de sua mãe, como se nada a fizesse mais feliz naquele momento. A conversa, por sorte, estava em meu irmão, então almoçamos tranquilamente sem termos que nos incomodar com os adultos. Aimée conversava com por sinais e caretas, detalhes que eu não saberia julgar se estivesse no lugar dela. Mas, é claro, se fosse o meu irmão no lugar de Aimée, eu entenderia cada movimento muscular.
Vou abster-me em observá-la. A incrível atrás de sua muralha impenetrável.


Capítulo 26 — When you’re around me I’m radioactive, my blood is burning radioactive!

(Radioactive — Marina & The Diamonds)

O jogo havia começado há horas. Vai saber o nome disso, mas era tudo sobre pegar um cartão e incorporar o personagem que estava nele. Os outros participantes poderiam fazer perguntas, cada um na sua vez, e as respostas podiam ser apenas "Sim" e "Não". Cada um tinha três chances de acertar o nome, se errassem as três estavam fora da rodada.
Todos estavam se divertindo muito, e eu também estaria se conseguisse parar de pensar em . Eu não estava no esquema pr'aquilo.
Por algum motivo obscuro, a roupa desleixada e sua falta de postura a deixavam ainda mais atraente pra mim. Provavelmente porque, assim, ela estava completamente relaxada, de um modo que eu raramente via até mesmo na escola. Aquela devia ser quando ela estava sozinha em seu quarto. Seu quarto... No andar de cima, no fim do corredor. Deus, eu só queria tirar suas roupas. Não na frente de nossos pais, é claro. Às vezes ela pegava meus olhares, parecendo incomodada. Porém, não demorou muito para ela estar no mesmo jogo que eu. E ah!, meus caros, jogava sujo.
Ela parou de arrumar a manga da blusa, que insistia em deslizar pelo seu ombro o tempo todo. Ela começou a molhar os lábios e mordê-los mais do que o necessário. E cada vez que nossos olhares se cruzavam, havia algo nos olhos dela que faziam o meu corpo queimar. E então ela sorria, voltando a atenção ao jogo. E eu, que já estava perdendo antes disso, afundei de vez.
De algum modo, deu um jeito de conseguir ganhar.
Ela conseguia essas coisas, parecia ser o seu hobby: ser impossível.
— Perdoem-me, mas eu preciso dormir ou não estarei bem para a escola amanhã. Senhor e senhora ... — ela deu um beijo no rosto dos dois. — Foi um prazer recebê-los, espero que venham mais vezes.
— O prazer foi todo nosso, . Aguardamos sua visita no Canadá!
Ela disse que não perderia esse passeio por nada e deu boa noite antes de sair, levando consigo Aimée.
Minha deixa.
— Bom, eu estudo na mesma escola que elas. Acho que vou indo também, se estiver tudo bem para vocês.
Meus pais concordaram, Rick e Donna pediram para eu voltar mais vezes e então eu estava livre. Livre para voltar para casa, é claro. Ou, quem sabe... Bom, ela que havia correspondido! Ela não podia simplesmente ir pro quarto dela e esperar que eu não fizesse nada. Certo? Bom, na verdade ela parecia estar gostando de me torturar atualmente, então talvez ela batesse a porta na minha cara. Porém, nessa altura do campeonato, meu orgulho parecia já estar dormindo. Orgulho. Quem eu quero enganar?
Como se alguma vez na vida tivesse tido orgulho.
Mas eu também não podia deixar meu carro ali e ir para o quarto dela, imagine quando meus pais fossem embora e todos vissem que meu carro ainda estava ali?
Entrei no carro, ainda tentando decidir o que fazer. Podia levar o carro em casa e voltar andando, a distância não é muita. Porém, a escuridão das ruas não é bem o que se chama de agradável. Seria melhor levar o carro até a rua de trás e deixá-lo ali enquanto ia até o quarto de . Ok, temos um plano.
Então eu entrei no carro e dei uma volta no quarteirão, parando fora da vista dos pais dela e fora do caminho que meus pais fariam. Passei a batucar o volante, imaginando o que fazer e como fazer. Calculando as estatísticas, tentando adivinhar qual era a probabilidade de aquilo dar errado.
É claro que eu já havia aprendido que, em se tratando de , probabilidades de nada me serviriam.
Então eu fiz o que parecia se encaixar melhor, e saí do carro num impulso. Era isso. Era o que eu queria, então eu seguiria minhas vontades. Agiria por impulso, e se ela não gostasse... Que fosse procurar outro idiota pra atormentar (de forma incrivelmente deliciosa).
Talvez fosse o vinho falando, eu sei que não costumo ser impulsivo. Mas a ideia realmente pareceu boa.
Adentrei o jardim da casa, tomando o cuidado de não ser visto pelas janelas, até chegar embaixo da sacada do quarto de .
E agora?
Olhei o balanço pendurado na árvore e então admirei os troncos, que quase chegavam na sacada. Se eles fossem mais grossos nas pontas eu arriscaria...
Procurei por uma pedra, mas aparentemente os não gostavam muito de pedras. Estava considerando gritar quando ouvi a porta da sacada se abrir em um deslize suave. Permaneci onde estava, bem embaixo da sacada, e aguardei. Logo ouvi um suspiro. O sussurro em seguida foi quase cantarolado.
— Uma noite gostosa.
Era ela. Dei um passo para frente, olhando para cima, e a encontrei apoiada no muro da sacada, olhando para baixo. Obviamente, a assustei.
Após alguns xingamentos, ela voltou para o meu campo de visão. E eu estava rindo.
— O que você quer? — ela perguntou, brava.
É claro que ela estava brava, eu havia quase a matado do coração e estava rindo. Nem ao menos um "desculpa" saiu dos meus lábios. Não, eu só consigo fazer uma ou duas coisas de cada vez. E, naquele momento, eu ria, e a admirava.
vestia uma camisola de cetim que eu não imaginaria nem no melhor dos meus sonhos. Simples, com rendas delicadas e vermelha. Seu cabelo estava solto, do jeito desregrado que eu tanto amava. Só consegui suspirar, por mais idiota que isso pudesse parecer, mas a risada disfarçou um pouco, evitando, assim, maiores constrangimentos.
— Você achou mesmo que eu fosse conseguir ir embora depois de... Bem, tudo?
— Achei. — ela respondeu, dura. — Você costuma ser bom nisso. Muito bom.
Entendi a mágoa por trás de suas palavras. A conversa estava caminhando para o lado errado. Eu não estava fugindo, agora.
, eu sinto muito. Eu... Eu não...
O que dizer? Que eu não sabia o que pensar de nós? Que eu tinha medo de tê-la e perdê-la? Que eu jamais me recuperaria se isso acontecesse? Eu me conhecia bem o suficiente para temer essas coisas... E eu temia. era o meu maior sonho e o meu maior pesadelo. Ela entenderia tudo isso? Ou ela me acharia louco? Precipitado, no mínimo? Seria possível eu a assustar mais?
— Foda-se, . Você quer subir? Pois bem, boa sorte com a trepadeira. — e então ela entrou, fechando a porta atrás de si.
De primeira, fiquei confuso. Como assim, trepadeira?
Então olhei para o que havia ao lado da sacada. Era uma trepadeira, e ela subia presa em uma armação de madeira... Perfeita para subir até a sacada.
Tive que rir. Aquilo era tão Romeu e Julieta. Tão inesperado e tão clichê ao mesmo tempo. Fui atingido por um raio de compreensão: Tão .
Bem, se era isso o que ela queria...
Comecei a subir com pressa, mas logo diminui o passo. A trepadeira era mesmo traiçoeira, e aquela já seria uma boa queda. Dois minutos para subir, enfim chegando são e salvo na sacada. Ajeitei minha roupa e bati na porta. Toc toc. Sorri ao encontrar o olhar incrédulo de . Ela fechou sua boca, me encarando por alguns segundos antes de andar até a porta e a abrir.
— Que bom que você conseguiu subir, mas a descida é pior. Boa sort...
Entrei no quarto antes que ela terminasse, pegando-a pela cintura e unindo nossos corpos ao mesmo tempo em que minha boca tomava a dela. Ela levou outro susto, mas dessa vez não teve tempo de reagir, eu já puxava seu cabelo com carinho e descia os beijos pelo seu pescoço. Sem que ela percebesse, escorreguei as alças da camisola pelos seus ombros e a peça caiu, fazendo com que uma exclamação escapasse da boca de .
Eu tinha muito pelo que me redimir, afinal.
... — ela suplicou, baixinho.
— O seu desejo é uma ordem. — respondi com um sorriso, puxando-a e erguendo-a, levantando em seguida e colando suas costas na parede.
Foi uma longa noite.

arfava, os olhos em mim. Nos beijamos. Senti meu peito explodir em alegria. Aquilo era felicidade demais, bom demais...
— Eu senti o seu coração bater dentro de mim. — ela disse, baixinho.
— Quando? — deitei ao seu lado, sem quebrar o contato visual.
— Quando você parou... — ela pareceu ficar mais corada, mas talvez fosse minha imaginação porque ela já estava bem corada por causa de toda a atividade física que acabara de acontecer.
— Pensei que fosse o seu que eu estava sentindo...
— Talvez fossem os dois.
Olhamos-nos por alguns segundos em silêncio.
— Eu devia ir pra casa.
— Sim.
— Está bem tarde.
— Sim.
— É perigoso dormir aqui...
— Não, ninguém entra no meu quarto. E, bem... Eu tranquei a porta hoje. — ela desviou o olhar, encarando o teto.
— Por que você trancou a porta hoje?
Ela não respondeu, ainda encarando o teto.
....
— Eu queria que você viesse. Fiquei nervosa porque você demorou muito! — ela se entregou.
— Hey... — virei-me para ela, sorrindo.
— Pode ir embora, não quero te prender aqui.
— Hey! Vem aqui, vem.
Tive que a puxar para os meus braços, e aproveitei para puxar o edredom junto. Deitei-a no meu ombro e abracei seu corpo, nos cobrindo em seguida.
— Eu quis te seguir no momento em que você saiu daquela sala. Eu só não podia. E então fiquei com receio de vir até aqui e... Bem, você me expulsar.
— Eu tentei. — ela respondeu, contra o meu peito.
— Mas não com muita vontade.
— Tentei sim!
— Sim, mas você disse "Vai embora!" como quem diz "Sinta-se em casa".
Ela soltou um muxoxo de indignação, levantando o rosto para provavelmente me xingar. Porém, beijei-a antes que ela conseguisse pronunciar qualquer coisa.
Dessa vez o beijo foi mais calmo.
— Devíamos colocar nossas roupas.
— Cala o boca, . — ela deitou a cabeça de volta no meu ombro, passando a mão pelo meu tórax e acariciando a região.
Não demorou muito para que nós dois estivéssemos apagados, no mais profundo dos sonos.

*

Acordei com o som de batidas leves. Demorou alguns segundos pra eu me sintonizar no sistema solar certo e perceber que as batidas eram na porta do quarto.
— Anne? Por que a porta está trancada?
Meu coração foi de 50 a 160 em um segundo, o que não pode ser saudável, e, imediatamente, eu levantei. Dando de cara com uma cama vazia. Um sonho? Não, eu ainda estava nua.
Um sonho realista, talvez.
— Ops, devo ter trancado sem querer!
Respondi Aimée, pulando da cama e correndo para o banheiro. Puxei a toalha e voei para abrir a porta do quarto.
— Estava entrando no banho. — foi a desculpa genial que achei.
— Tudo bem, é que dessa vez eu que acordei mais cedo. Fiz o café pra você. — ela sorriu, inocente.
— Obrigada!
— Tá tudo bem? — ela perguntou, parecendo entranhar algo.
— Sim! Vou me arrumar rápido, já desço!
Fechei a porta e voei pro banheiro, soltando a toalha assim que entrei. Respirei fundo.
Banho primeiro? Ou procuro uma nota, uma mensagem, qualquer coisa? Era arriscado ter dormido com no meu quarto, claro. Mas ainda assim parecia absurdo ele sair sem deixar uma desculpa.
Pensamentos sobre a noite anterior deixaram meu rosto quente. Também fizeram um sorriso abusado surgir em meus lábios.
Entrei no banho antes mesmo da água esquentar, o que eu só costumava fazer quando preciso acordar. E, bem, não era o caso. Acordar daquele jeito, com a dose de adrenalina incomum, costumava remover qualquer traço de sono do meu corpo. Pelo menos por algumas horas.
Não me senti muito disposta para a escola, mas logo estava com Aimée no carro.
— Oh, e aquele garoto, o... Noah?
— O que tem ele? — ela fingiu indiferença.
Eu sei que ela fingiu, porque eu faço tudo exatamente igual quando quero fingir indiferença.
— Ainda sendo enrolado pela minha maninha arrebatadora?
— Obviamente. — e então ela começou a rir. — Ele quer ir comigo no Baile de Inverno do Middle School.
— Baile de Inverno, já???
— Pois é. Todo aquele papo de "Você é a única pessoa legal nessa escola e eu queria muito ir com você blablabla". A verdade é que eu disse que tinha uns rolos com um amigo e que precisava entender isso antes de sair com ele, então acho que ele tá querendo provar algo como "Tenho planos futuros com você" pra mostrar que não quer só sair comigo ou sei lá. Resumidamente, tá engraçado.
Ri, é claro.
— Pelos deuses antigos e novos, minha irmã é um monstro.
— Não diga como se não aprovasse, .
— Eu não disse que não aprovava. — dei de ombros e ela voltou a rir. — E os outros babacas da escola?
— Mantendo distância, sendo ignorados se tentam falar comigo, etc. Uma cheerleader veio falar comigo, ela era a mais quieta do grupo e agradeceu o que eu fiz com a Kat. Ela também saiu do grupo e disse que vai tentar entrar pro handball.
— Parece uma garota legal. — disse, erguendo as sobrancelhas.
Eu gosto de qualquer pessoa que goste de handball.
— Sim. Acho que vou mesmo tentar entrar pro handball.
— Se quiser dicas, eu posso te treinar um pouco.
— Não tem nada que você possa me ensinar, Anne. — ela não perecia me debochar, estranhei.
— Como assim?
— Eu assisti todos os seus jogos desde que você entrou no handball, conheço todas as suas táticas.
Senti a visão embaçar e mordi o lábio com força.
— O quê? — Aimée perguntou.
— Sou a pior irmã do mundo!
Ela riu.
— Não é não. E quem pode dizer isso sou eu, sinto muito. E eu não vou dizer.
— Você... Você assiste todos os jogos... Eu... Eu nunca...
— Eu assistia escondida, você nunca ia me ver. Porque eu não queria.
— Ainda me sinto horrível.
— Ah, cala a boca. O que você fez errado eu fiz três vezes pior, e você ainda disse que não tinha nada pra perdoar. Vamos esquecer isso.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, enquanto eu respirava fundo.
— Você é demais, eu já disse isso? — falei, suspirando.
— Talvez. De qualquer jeito, eu sei.
Rimos, já parando o carro perto da entrada de Aimée. Ela saiu do carro com um sorriso maravilhoso, como se não conseguisse parar de sorrir. Acenei e ela se virou para a escola, entrando.
Meu celular tocou. Uma mensagem. . Senti meu estômago gelar. Meu coração acelerou absurdamente. Argh, por quê? Pra quê reações tão imbecis? Respirei fundo e vi a mensagem.
"Já tá chegando na Ferdinand? Não entra no estacionamento, tô te esperando no portão."
"Por favor, rápido. E desculpa não explicar eu juro que assim que entrar no carro eu explico."
Fiquei assustada, é claro, e respondi com pressa.
"Já tô chegando, acabei de deixar a Aimée."
"Obrigado. Mesmo. Sabe ir pro Brooklin?"
Parei próximo ao portão e mal deu tempo para eu estacionar o carro. Ele entrou e jogou a mochila no chão. Ele arfava. E estava com o rosto vermelho, como se tivesse corrido muito.
— O que houve?
— Dirige e eu vou contando. Sabe ir pro Brooklin?
— Sim! Ok ok. É só que parece que alguém morreu.
— Quase isso.
Então a minha ficha finalmente caiu.
— É a Nikki?
— Ela me ligou tem cinco minutos dizendo que fugiu de casa. Ela ouviu os pais planejando uma janta com a família do futuro marido dela e surtou. Pelo menos ela fez uma coisa esperta, me ligou.
— Caramba... E aí? O que vamos fazer?
— Pegá-la no Broklin e levá-la para um aeroporto. Ela tem um cartão internacional que os pais não sabem, então não tem como descobrirem pra onde ela foi. E então você me deixa nos meus pais e eu vou pedir a ajuda deles pra conversar com os pais dela. Daí você pode ir embora, acho que dá pra pegar pelo menos a última aula do dia.
Ele falou tão rápido que eu ri.
— Pode falar mais devagar, .
— ... Ok. Ok.
Silêncio.
— Também não precisa ser tão devagar assim, né.
Ele sorriu.
— Desculpa.
— Imagina, eu...
— Desculpa por ter ido embora sem me despedir. Acordei cedo e precisava passar em casa, e não tive coragem de te acordar.
Ah, isso.
Corei.
— Não, imagina, eu pensei nisso mesmo... Não tem problema.
— Tem sim. — ele respondeu, num tom quase inaudível, e eu virei o rosto para observá-lo.
encarava as ruas, distraído.
Liguei o rádio.
Farol vermelho.
Batuquei o volante, uma mania involuntária.
— Eu estava pensando... — ele falou, de volta ao tom normal, tirando a minha atenção da música. — A gente podia ouvir uns CDs, qualquer dia, no meu quarto. Incluindo Whitesnake. — ele sorriu.
O farol ficou verde.
— Comprou uma vitrola, é?
— Não, na verdade melhorei o meu rádio. Queria testar o som. Concede-me a honra de fazê-lo em sua companhia?
— A honra será toda minha.
E a roupa espalhada pelo chão do seu quarto também.
Corei de novo. Dessa vez, menos intensamente. Ora, estava me acostumando com as coisas que minha mente poluída pensava.
Porque, afinal, eram coisas muito boas.
— Duvido. Ei, que caminho você tá fazendo?
— Conheço um atalho.
— Pro Brooklin?
— É claro! Ótimas lojas de vinil.
Ele riu.
— Certo. Coincidências de lado, eu acho que ela está em cima de uma loja dessas. Umas amigas que moram de aluguel, algo assim.
— Deve ser no Driederich. — sorri.
— Como você sabe?
— Ela tem cara de quem sabe onde os melhores LPs ficam. — dei de ombros. — O Driederich tem uma coleção fantástica de LPs antigos, muito bem conservados e por preços ótimos. Eu nunca saio dele desapontada, e ele nunca se desaponta comigo também.
— Por quê?
— Porque eu costumo deixar dinheiro suficiente pra ele passar o resto do mês fechado. — ri. — Gosto da sensação de fazer bom uso do dinheiro dos meus pais.
— Posso ver. Legos, LPs, fotos instantâneas...
Ele ria, mas eu soltei uma exclamação.
— É verdade!!! Eu esqueci completamente.
— O quê?
— Uma foto sua! Eu ainda não tirei uma foto sua pro meu mural de fotos. Nem da Aimée, diga-se de passagem. Mas que merda, é tanta coisa pra fazer que eu tinha até esquecido que tenho uma câmera de foto instantânea. Qual é o endereço, mesmo?
Ele me mostrou o celular. É, era o Driederich.
Nikki começava a crescer no meu conceito. Mais um farol vermelho, e dessa vez eu puxei a câmera instantânea e tirei uma foto de , que se recusou a olhar para mim. Tudo bem, a foto estava bonita assim, ele meio bagunçado olhando pela janela. Mas aí ele riu, chegou mais perto e fez pose pra outra foto. Essa ficou mais divertida. Quis beijá-lo, mas ri demais pra isso. Em poucos minutos estacionei o carro em frente ao prédio.
— Ela não atende o celular. — ele disse, preocupado.
— Vou ligar pro Drieds.
Ele ergueu as sobrancelhas, como se tivesse achado o apelido íntimo demais. Ignorei.
", querida, não é porque você sustenta o meu glamour que pode me acordar antes das onze horas."
— E eu já fiz isso antes, querido?
"Já. No dia que o LP do Whitesnake chegou."
— Quanto eu paguei nele, mesmo? Ando com a memória fraca.
"... E quanto você vai pagar dessa vez, boneca?"
— Só abre essa sua boutique pra mim, Drieds. Tem uma amiga minha em um dos apartamentos e eu preciso pegá-la.
"Já estou na porta, , não precisa chamar meu tesouro de boutique."
— Ok. Foi mal.
Ri e desliguei. Fiz um sinal pra e saí do carro. Ele me acompanhou.
— Então agora você traz estranhos pra minha loja, ?
Driederich abriu a porta assim que saí do carro. Seu cabelo loiro estava amassado e arrepiado, porém os olhos dele estavam bem abertos. O abracei.
— Drieds, esse é o . E se você soubesse que ele tem todos os LPs do Whitesnake não teria dito isso. Ah, e ele precisa subir. Eu... Acho que vou ficar aqui embaixo? — perguntei para , que assentiu.
— Sinta-se em casa, . Qualquer hora.
Eles nos deixou entrar e foi escada acima.
— A coleção completa do Whitesnake? — Driederich sussurrou, com os olhos arregalados.
— Yep.
— Se você ainda não deu pra ele, eu vou dar.
Gargalhei. Apenas uma nota: o Drieds é hétero. Bem hétero.
— Desculpa, cowboy.
Ele deixou o queixo cair.
— Sabia que devia ter achado esses LPs pra você.
— Tá me cantando, queridinho?
— Não, só tô dizendo que seria ótimo ter uma foda casual com você ao som de Whitesnake.
Ele recebeu um clássico revirar de olhos.
Deixe-me explicar: o Driederich tem uma namorada. Eles estão juntos há, hm, uns dez anos ou algo assim. É. Os dois só não casaram porque são contra o casamento. Acontece que ele e a namorada dele adoram me convidar para um ménage.
Sério. Tipo, toda vez que eu piso nessa loja.
Mas eles fazem isso porque descobriram que eu era bv ainda. E, desde então, ficam me atacando sexualmente sem pudor algum.
— O que vamos usar pra brincar com você agora? A Emma vai ficar desapontada, .
— Tenho certeza que vocês vão achar algo.
Quando reapareceu trazendo Nikki consigo, eu já estava agarrada a dois LPs. Deixei uma nota de cinquenta dólares antes de sair da loja atrás de . Nikki parecia dormir em pé, então ele a carregava. Drieds o ajudou com isso, e eu corri para abrir o carro. Depois de deitar Nikki no banco de trás, falou:
— Ela me convidou pra um ménage com a amiga dela, que estava apagada no sofá.
— Tentador. — respondi, dividida entre a queimação incomoda nas minhas entranhas e a vontade de rir imaginando a cena.
Não queria sentir ciúmes de Nikki, mas ela não facilitava isso nem um pouquinho pra mim. estralou o pescoço, fazendo uma careta.
— Nem um pouco, na verdade.
Drieds riu, e eu, que não tinha entendido a risada, fui levada a encará-lo.
— Bem, eu vou voltar a dormir. Boa sorte pra vocês. . — ele ergueu a mão no alto, como de costume, e eu pulei para alcançá-la como se tentasse acertar uma bola de basquete dentro da cesta.
Esse era o nosso toque de despedida. Porque, afinal, ele era alto pra cacete.
— Manda um beijo pra Emma, preguiçoso.
— Ela vai mandar você mesma entregar, já sabe.
E, dito isso, ele voltou para a loja.
— Direto pro aeroporto? — perguntei.
— Sim. Damos um litro de café pra ela por lá mesmo.
O caminho até o aeroporto foi silencioso, até mesmo o rádio estava com o som mais baixo para Nikki poder dormir. Contentei-me em ir cantarolando baixinho com a música. estava distante, mas é claro que ele tinha muitas coisas com o que se preocupar, então eu não questionei e fui o mais rápido que podia sem nos matar ou ganhar umas multinhas.


Capítulo 27 — No light, no light in your bright blue eyes! I never knew daylight could be so violent!

(No Light, No Light — Florence + The Machine)
Eu estava de volta bem na hora da monitoria. Havia deixado em sua casa, após um caminho todo de apenas música. Estávamos obviamente evitando discutir qualquer coisa que envolvesse Nikki.
Mesmo assim, antes de ele sair do carro, o cutuquei e selei seus lábios com os meus. Ainda podia sentir o calor do toque... Eu só posso ser masoquista.
De qualquer jeito, foi uma boa atitude. Melhor do que deixá-lo ir sem fazer nada. E recebi um sorriso. Um sorriso. A face toda torturada dele se desmanchou para me dar um sorriso. Aquilo era definitivamente um bom sinal.
Tudo isso me manteve distraída o suficiente para eu esquecer que devia avisar a treinadora que eu teria que sair do handball. A carga de estudos estava pesada demais para mim, eu não ia aguentar. Era melhor pular fora de uma vez do que continuar enganando o time enquanto elas podiam estar treinando alguém tão bom quanto eu que de fato estivesse comprometida com a equipe.
É claro que eu podia sair da aula de dança ao invés disso, mas... Digamos que... Elas estavam muito boas. Mais ou menos. O atrito com , a provocação da última aula... Aquilo merecia mais uma chance, por enquanto. Se minha rotina continuasse apertada demais, eu sairia também.
Deixei para falar com Sylvie no final da aula.
— Mais uma? Estamos perdidas esse ano. — Sylvie suspirou, e por um segundo pareceu que ela fosse chorar.
Deixei para questionar o "mais uma" depois. Não lembrava de ninguém mais ter saído, mas aquilo podia ser uma lamentação pelas garotas que tinham se formado.
— Sinto muito, Sylvie. Eu...
— Tudo bem, tudo bem, você precisa se esforçar. Eu sei que seu objetivo nunca foi uma bolsa esportiva ou algo do tipo. Boa sorte, querida.
Aquela foi a vez em que Sylvie mais demonstrou carinho por mim. Quase voltei atrás na minha decisão. É claro que ela só estava agindo assim porque, bem, não era mais a minha treinadora. Estava feito.
Cheguei em casa louca por uma boa noite de sono, para tirar todas as preocupações de mim. Precisava voltar ao meu foco principal, precisava reganhar o controle sobre a minha vida, ou enfiaria todos os meus anos de esforço no lixo.
E, durante toda a semana, fui bem sucedida. O Teatro estava nos eixos, o figurino ficava cada vez mais perfeito, as falas cada vez mais naturais e os movimentos perfeitamente ensaiados.
?
A cabeça de papai apareceu na fresta da porta do meu quarto. Era sexta, no meio da tarde. queria uma festa do pijama na casa dela, e, quem sabe, uma festa aberta para toda a Ferdinand amanhã.
Eu apoiei a festa do pijama somente, é claro.
E sem os garotos, também. Talvez com Phillip e Rapha, apenas, mas eles não contavam como garotos, e sim como divas.
Estava em um jogo divertidíssimo com a semana toda: aquele em que conversávamos e tínhamos ótimos momentos, mas no instante seguinte eu tinha algo melhor para fazer. Uma festa sem ele seria a cereja no topo do bolo. Ele ainda não havia aparecido na minha sacada essa semana. Quem sabe ele não resolvesse aparecer após uma festa sem ele?
Parei de divagar e levantei os olhos do livro que lia para indicar que estava ouvindo.
— Oi, pai!
— Querida, você está muito ocupada?
— Um pouquinho, mas, como saí do handball, tô conseguindo colocar os resumos em dia.
— Que bom.
Ele sentou-se na cama.
— O que foi, pai?
— É que eu ia pedir um favorzinho.
Isso não era muito do feitio dele, mas ok.
— Diga. — fiz um curto aceno com a cabeça, pedindo que ele falasse.
— Faz tempo que não visitamos nossa casa no interior, será que você poderia passar o final de semana por lá? — assim que eu arregalei os olhos, ele já emendou outra frase. — Sabe, é bem tranquilo e ótimo pra você estudar. Você pode levar suas amigas!
Torci a boca.
— Por favorzinho? — ele piscou os olhos.
Que drogas esse homem havia ingerido? Por favorzinho?!
— ... Tá. Tá, é o último final de semana antes da quinzena pré-provas e as meninas estavam mesmo pensando em algo pra relaxar. Tudo bem, eu faço esse favor. Tem algo que você quer que eu cheque por lá?
— Não, não, só veja se a casa está em boas condições, e, sabe, se os funcionários cuidaram bem dela.
— Ok. Eu vou avisar as garotas e vamos hoje mesmo.
— Antes de anoitecer.
— Hm... Não sei se elas fazem malas tão rápido assim.
— Todas têm roupas lá, , pra quê malas?
Porque são amigas que eu vou levar, pai. Onde já se viu viajar sem uma mala? Pois é, nem eu.
Digo, nem eu viajo sem mala. É claro que a minha mala tem umas coisas meio diferentes, mas ainda assim é uma mala.
Apenas ri, e papai beijou o topo da minha cabeça antes de sair.
Liguei para imediatamente.
"Ah... ... Será que, hm... Será que eu posso chamar o pra ir junto?"
NÃO?
— Ah, , eu não tava pensando em chamar nenhum deles, desculpa...
"Mas, ... É que a gente tá meio que completando um mês juntos. A gente tinha combinado de comemorar nesse final de semana, se ele não for... Eu, bem, eu não..."
Eu entendi como devia ser difícil para ela dizer aquilo. Mordi a língua com força.
— Ok, ok. Você pode chamar o . Vamos tentar sair em duas horas, então nos encontramos todas na , ok?
"Você já ligou pra ela?"
— Como se precisasse. Ela não vai nem esperar eu terminar a frase pra aceitar.
riu. Era verdade. Nos despedimos e desliguei.
Suspirei.
As outras ligações foram mais fáceis, e quando mencionei o caso de elas tiveram a mesma reação que eu, inclusive a parte de depois aceitar.
Chegando na casa de , já estava lá. Um pouco depois chegou.
— Quatro calcinhas e uma cueca, essa viagem vai ser um inferno pro . — comentou.
— Corta essa, nós somos demais. — balancei pompons imaginários.
riu.
— Eu não sei o que esperar, ele que mencionou essa coisa de um mês... Eu nem sabia... Eu... — ela estava da cor de um tomate, e a enchemos de beijinhos.
Se tinha algo fofo nesse mundo, esse algo era envergonhada.
E nós sempre fazíamos o máximo possível para prolongar esse momento de fofura.
E foi aí que chegou.
E havia algo muito errado.
Porque junto com ele estavam , e... .
Pisquei muitas vezes até que eles estavam bem na nossa frente e eu aceitei que aquilo não era uma miragem. puxou para um abraço e a encheu de beijos.
— Tudo pronto? — questionou, sorrindo de orelha a orelha.
— Ahn, só falta uma coisinha lá dentro, vocês podem esperar aqui. ? — chamou, abrindo a porta para que nós entrássemos.
tentou manter o sorriso.
Assim que a porta se fechou, ela implorou desculpas.
— Eu juro que não sabia disso! — ela sussurrou.
— Eu acredito! — sussurrei de volta. — Mas e agora?
— Porra, o tudo bem, mas o vai foder com a minha vibe! — sussurrou menos baixo do que devia e ganhou um coro de "shiiiiiu". — Desculpa!
Ficamos nos encarando em silêncio.
— Quer saber? — suspirei. — Foda-se. Que mal tem, não é? Quartos não são problemas naquela casa, nem banheiros. Na verdade, se eu me enfiar no sótão eu duvido que algum deles me ache durante todo o final de semana, então...
Elas riram.
— Mesmo, ? Se quiser eu fico, sei lá, digo que seu pai ligou cancelando o pedido... Por causa de... Uma infestação de... Pulgas! — sorriu como se ninguém fosse suspeitar daquela desculpa esfarrapada de última hora.
Revirei os olhos.
— Não, relaxa. Vamos logo, antes que escureça demais. Aliás, melhor assim, pelo menos na viagem vamos sozinha!
Passei uma animação que não era minha, apenas por .
Era bom o ter um ótimo motivo para trazer aqueles três juntos.
— Tudo certo, garotos! É só seguir a gente na estrada. — sai sorrindo, passando reto por eles.
— Eu vou colocar o endereço de lá no GPS de vocês. Aliás, de quem é esse carro? — riu. — Meu presente de um mês, ?
Ouvi que era de enquanto entrava na minha joaninha. Esperei todos estarem no carro para dar partida, mas a música já tocava pelos auto-falantes.
A seleção de música da viagem se resumia em Muse, The Smiths e Radiohead. Basicamente, todas queriam me matar depois da segunda música calma em seguida, mas aquela era minha vibe. E todo o carro explodia quando vinha Muse, calando as reclamações de e .
foi a primeira a dormir. Logo, eu estava sozinha, e a estrada tranquila demais para me entreter.
Então, meu celular vibrou.
": Você dirige feito uma joaninha."
": Ah, espera..."
Fiquei feliz por ele não poder ouvir minha risada.
": Muito engraçado, . Já pensou em ser comediante?"
": Espero que não."
Olhei disfarçadamente pelo retrovisor e o vi rir. Quer dizer, o vi se mover de uma forma incomum para uma pessoa dirigindo um carro e supus que ele estava rindo.
": Todo mundo dormiu aí também?"
": Provavelmente, ou eu estaria sendo xingada por digitar no celular enquanto dirijo em uma estrada."
": Faz sentido. Aliás, tá ouvindo o que aí? Sua cabeça não para quieta."
": Sua visão tá muito boa, , parabéns."
A resposta demorou um pouco mais do que eu esperava.
": Escuta, quer dizer, lê? Ah. Então, os caras não queriam falar por medo de vocês contarem pra , mas eu acho muita mancada a dona da casa não saber, então... O nos fez vir junto com ele porque ele vem ensaiando uma música a semana toda pra tocar pra na madrugada do domingo. Foi o dia que ele pediu ela em namoro, eu acho, ele não falou exatamente o que foi que aconteceu há um mês, mas foi algo importante então eu acho que deve ser quando ele pediu-a formalmente em namoro ou sei lá. Enfim... Desculpa a gente se intrometer na sua viagem assim, sem pedir nem nada. É isso."
": Não conta pra mais ninguém! Por favor? Eles me matam."
Mandei um ok antes de dar a seta para entrar na saída da estrada que levava à nossa casa de campo. Agora haveria uma longa subida, e tempo nenhum para trocar mensagens pelo celular.
Uma serenata pra ? Ok, eu podia aceitar essa desculpa como uma ótima desculpa pra não me dar satisfações ANTES de convidar seus amigos. Porém o precisava confiar mais em mim, credo. Eu jamais estragaria uma coisa dessas, pelo contrário, eu podia ajudar.
Qualé, eu sei tocar gaita.
E, nos meus padrões, nada mais romântica com uma serenata de gaita. Mas, enfim...
Foi uma longa subida.

*

Quando a subida eterna acabou, a rua até o portão de madeira em que parou era coberta de árvores. O lugar seria completamente escuro, se não houvesse lâmpadas em todo canto, quase como vagalumes. Sem sair do carro, o portão se abriu, talvez através de algum controle, e entramos direto em uma garagem. Bem grande, diga-se de passagem.
Decidi que era uma boa hora para acordar todos. Antes que aumentasse o volume do rádio, percebi que tivera a mesma ideia. Aumentei o volume, já rindo por vê-la pulando para fora do carro antes que suas amigas pudessem perceber o que acontecia. Fiz o mesmo, principalmente porque os meus amigos com certeza seriam mais violentos que as amigas dela.
olhou para mim, ainda rindo. Fui até ela e ergui minha mão. Imediatamente ela aceitou o toque, encaixando sua mão na minha com um estalo. Em seguida suas amigas foram ouvidas, com o rádio já desligado.
— Adoro como a pode ser delicada quando quer. — , ainda com cara de sono, resmungou.
— Ela não podia nos cutucar e dizer "Chegamos!"? Nãão! — fechou as portas do carro, indo direto para o porta-malas pegar suas coisas.
— Eu gosto daquela música, então, por mim, tudo bem. — deu de ombros, sempre sendo a mais otimista do grupo.
Eu, que não as conhecia há tanto tempo assim, já podia dizer que era otimista demais. E como otimismo era algo faltando no mundo, ela era muito agradável de se ter por perto. a abraçou, sendo abraçada de volta, e ficou claro para mim porque as duas eram amigas.
— Ok cabeção, já basta acordar a gente com Motörhead no último volume, não fica ai achando que vamos pegar suas coisas também. — me chamou pra realidade, e eu fui rindo pegar minha mochila no carro.
Levei apenas alguns tapas na cabeça, tudo bem.
— Acho engraçado todo mundo reclamando do jeito que acordou, mas ficar acordado com o amigo legal que estava dirigindo ninguém quis, né? — eu disse, encarando um por um dos meus queridos amigos.
Todos fizeram a mesma cara de desentendidos.
— OK! Prontos para o tour? Fiquem em fila indiana, por favor. — disse, andando para a porta.
— Que porra é uma fila indiana? Opa, desculpa o palavreado. — se desculpou porque o fulminou com o olhar.
— Um atrás do outro, . — respondeu.
— Ok amor, cê que manda. Mas eu acho isso um pouco de putaria demais, prefiro só eu e vocOUCH!
Ele levou um soco na boca do estômago.
— E amor é a sua avó.
— Ok crianças, não se matem, apenas me sigam. As garotas já conhecem aqui, então você podem ficar no final da fila. Obrigada. Vamos! — abriu a porta da garagem, que também era de madeira, e entramos em um corredor. — Esse é o andar térreo da casa, ele só possui um cômodo, mas é o maior e melhor cômodo da casa! — abriu a primeira e única porta, revelando um espaço gigante e forrado de um tapete branco que parecia muito fofo, colchões e puffs. As paredes estavam cheias de posters de jogos, filmes, seriados, desenhos e até de algumas bandas. Um único móvel preenchia a parede lateral à nossa direita, e nesse móvel estavam todos os consoles de jogos existentes no mundo, muitos DVD's e miniaturas de personagens de todos os tipos.
Estávamos os quatro parados, petrificados com o que víamos, as bocas abertas em espanto.
, e deram tapinhas em nossos ombros.
— Tudo bem, garotos, todo mundo fica assim quando vê isso pela primeira vez. — disse, observando sua parede de posters.
— Temo que não sairemos desse quarto durante todo o final de semana. — conseguiu dizer, o que já era mais do que eu podia conseguir.
Eu queria mesmo era expulsar todos eles dali e passar o final de semana todo sozinho com naquele quarto. Eu não estava apenas a amando, eu estava a adorando. Faria um altar para ela, ela... Ela era tudo o que eu queria na minha vida.
Eu simplesmente teria que pedi-la em casamento o mais rápido possível.
— Todo mundo diz isso antes de ver o resto da casa! — observou, parecendo ser a primeira vez que ela notava aquela coincidência.
pareceu reencontrar sua voz.
— O que pode ter de mais fantástico que isso?
Elas sorriram.
— Podem deixar suas coisas aqui, se quiserem. — apontou para um canto do quarto, onde havia um armário e uma geladeira. — Sim, são mantimentos. Tem um banheiro, também. — ela apontou para um porta, no final do quarto. — Mas existem outros banheiros na casa. Vamos?
Concordamos em silêncio, amedrontados pelo que ainda podíamos ver.
— Esse é o primeiro andar. Aqui temos as coisas principais, essa é a cozinha. — ela abriu a porta, mostrando uma cozinha que parecia vinda do futuro. — Então temos a sala de jantar, a sala de tv... — ela parou em frente a cortinas que iam do teto até o chão. sorriu para nós e abriu as cortinas, revelando portas de vidro com moldura da mesma madeira de todas as outras portas daquela casa.
No escuro, não conseguia-se distinguir muita coisa, mas então ela acendeu as luzes.
— NÃÃÃÃO! — exclamou.
— CARALHO! — não conseguiu segurar.
— PUTA QUE PARIU! — finalmente deixou sua exclamação escapar.
Eu, como sempre, não tive palavras pra expressar o que estava sentindo.
O quintal era amadeirado, até que havia uma piscina. Uma piscina bem iluminada, que acabava... No nada. Agora eu entendia porque havíamos subido tanto, a casa era no final de uma montanha.
— ACHO QUE VAMOS ENTRAR NA PISCINA. — já tirava sua blusa, chutou os tênis em seguida e saiu correndo.
— Isso é seguro? Essa piscina não cai? — perguntou, ainda incerto.
As garotas riram.
— Muito segura. — disse.
— Segura mesmo. — abraçou .
— Ah, e a água é aquecida. — comentou.
No instante seguinte estava pulando na piscina, e começava a tirar sua blusa. As garotas também começaram a se despir, deixando claro que aquele ritual era comum ao mostrarem que todas já estavam com biquínis por debaixo das roupas.
— Tá com medo, ? Ou um gato roubou sua língua? — me cutucou, demorando mais para se despir que suas amigas.
Elas já corriam para a piscina.
— É... É lindo demais.
— É bonito à noite por causa do céu, e é mais bonito ainda de manhã porque dá pra ver o vale... Todas as árvores, até mesmo o rio lá em baixo. — ela disse.
— Sério?
— Sim! Tem uma cachoeira, se ficarmos em silêncio dá pra ouvir.
Mas todos gritavam na piscina, então eu não consegui ouvir nada. deu alguns passos em direção à piscina antes de se virar de volta para mim.
— Vai entrar ou vai ficar só olhando? — ela perguntou, com um sorriso que fez meu corpo aquecer.
Aquele não era um sorriso inocente, eu sabia.
— Não pegamos toalhas nem nada...
Ela riu.
— Tem toalhas naquele armário ali, papai. Dá pra relaxar um pouco, agora?
No instante seguinte, mergulhava na piscina. A observei por alguns segundos antes de tirar minha camisa. Agora o pedido de fazia sentido: ele que havia dito para todos irmos de bermuda, que o havia avisado sem explicar o motivo. Tudo fazia sentido, aquilo era mesmo uma tradição por ali.
— HEY, ! Liga o som! — gritou. — Tá ali ó!
Achei o som e o liguei, um rock clássico começou a tocar e decidi deixar do jeito que estava. Voltei a olhar para a piscina e encontrei debruçada na beirada, olhando para o vale. Queria entrar sem que me vissem, para ir até ela e a surpreender, mas assim que cheguei perto da piscina já começaram a gritar meu nome. Pulei de uma vez, já que o plano havia fracassado. Após alguns caldos de , já havia se juntado a nós, cantando com as amigas a música da vez.
— Nós temos que cantar no karaokê! — gritou.
— Mas primeiro vamos dançar no Xbox! — gritou de volta.
— Tudo isso hoje? — perguntou.
— Aqui as regras mudam, . Ninguém dorme antes do sol nascer. Tem café na cozinha e muito energético em todas as geladeiras da casa, se precisar. — explicou.
— Valeu, .
— Imagina.
— ISSO AQUI É O PARAÍSO! — gritou, sento afogado por em seguida.
— EU TÔ COM FOME! — gritou, tentando sobrepor o barulho das gritarias misturadas com a música.
— CHURRASCO! — se distraiu e foi afogada por .
— Tem churrasqueira aqui? E carnes? TEM? — jogou água em para ela perceber que ele falava com ela.
— Ouch, cega, ouch! Tem, tem sim! Ouch! Não precisava disso! Desnecessário.
— EU SOU O DEUS DO CHURRASCO!
saiu da piscina puxando depois de berrar a revelação, e puxou que puxou que puxou que puxou que mandou todo mundo se foder. Observei mais luzes se acenderem, e uma cozinha/sala de jantar aparecer. Essa parte não era de madeira, e lembrava a cozinha vinda do futuro que havia dentro da casa. O que era de muito bom senso, já que era um espaço para se fazer churrasco e churrasco tem fogo e fogo com madeira não costuma ser uma boa combinação.
— Você tá bem? — perguntei, finalmente conseguindo me aproximar de .
— Tô, tudo certo. — ela pressionava os olhos com as mãos, apesar da resposta.
— Deixa eu ver.
— Não, tá tudo bem!
— Deixa de ser teimosa. — peguei em suas mãos e consegui afastá-las de seu rosto sem esforço. Seus olhos, no entanto, continuaram pressionados. — Abre devagar, pelo menos um.
— Calma, eu tô tentando! — ela respirou fundo e abriu os dois olhos lentamente. Eles não estavam nem avermelhados.
— É, acho que você não vai ficar cega.
Ela riu.
— Eu não sei por que doeu! Foi só água! Eu sempre abro os olhos embaixo d'água!
— Deve ter irritado algo, ou foi um jato muito forte... Deixa eu ver. — ela ficou quieta quando segurei seu queixo, me aproximando de seu rosto. — Não, tá tudo normal mesmo. — sorri, e ela sorriu sem graça de volta.
E se afastou, voltando para a beirada da piscina. Não sabia se aquilo era um convite para segui-la até que ela olhou para mim, indicando com um aceno de cabeça para eu me juntar.
— Vê os pontinhos de luz pelo vale? São como a rua daqui, lâmpadas nas árvores. Parecem vagalumes. É mais bonito com todas as luzes da casa apagadas. Principalmente o céu.
Ela olhou para cima, me levando a fazer o mesmo.
— Wow, são muitas estrelas!
— Né?
Todas as luzes se apagaram, até mesmo as da churrasqueira.
— De nada! — gritou, desligando também a música.
Mais estrelas apareceram no céu, e ao fundo eu comecei a distinguir o barulho de uma cachoeira. Todos pareciam prestar atenção no céu, principalmente na lua que, aos poucos, ia iluminando o vale e a casa. Aproveitei a proximidade com para sussurrar em seu ouvido.
— É realmente fantástico, mas principalmente por você estar aqui.
Ela virou o rosto com um sorriso maroto nos lábios, encostando de leve seu ombro em meu peito.
— Vai bancar o Romeu na vida real, é?
— Só se você for a Julieta.
Ela riu baixo, passando por mim para então mergulhar até o lado oposto da piscina, saindo pela escada lateral.
Queria abraçar por ter nos enfiado naquela viagem, todas as preocupações com Nikki conseguiram me ocupar durante a semana, mas agora que ela estava bem e com tudo resolvido... Já estava há tempo demais sem sentir o gosto de . E isso, em breve, seria resolvido.

*

era mesmo um ótimo churrasqueiro, mas como todo churrasco demora pra começar, alguns petiscos foram beliscados primeiro antes de enchermos as panças de carne. Eu estava na quinta latinha de Ice sabor Cranberry & Limão, o tipo de bebida alcoólica que devia ser terminantemente proibida, quando a comilança parou. Por incrível que pareça, mesmo achando que eu havia bebido demais em tão pouco tempo, eu era a pessoa mais sobrea da mesa. Não que eles estivessem bêbados, porque não estavam, mas qualquer um deles havia bebido mais do que eu – com exceção, talvez, de . , muito inteligentemente sentado ao meu lado, já havia descido a mão da minha cintura para a minha coxa algumas dezenas de vezes sem ninguém perceber, eu só não sabia ao certo se era realmente sem querer ou se ele sabia o que fazia. também não havia se empanturrado tanto de carne, então, é claro, fomos as primeiras a dançar. E, por causa disso, o jogo de dança escolhido foi "Michael Jackon: The Experience", o nosso favoritinho.
Nossos biquínis já estavam secos, então apenas vestimos um shorts por cima antes de começarmos nosso show. Um pouco enferrujadas, no começo, porque levava um tempo para lembrar das coreografias inteiras, mas logo estávamos ganhando nossas costumeiras 5 estrelas em todas as músicas do jogo, no level hard. Inclusive nas músicas em que havia passos conjuntos.
— Adoro Michael Jackson, mas não quero dançar ele com nenhuma de vocês. — comentou, com um misto de adoração e medo.
Apenas rimos e nos jogaram nos puffs.
— À vontade, ! — declarei, em um suspiro de puro cansaço. — Detonamos. — ergui a mão e bateu, tentando rir enquanto ainda recuperava o fôlego.
Todos dançaram, e todos riam. Todos... Acho que... Calma. Eu não lembro de ter visto...
— O não dançou ainda!!!
Todos, meio hiperativos depois de beber alguns energéticos e ainda um pouco bêbados do churrasco, pararam. Fizeram a cara que eu devo ter feito enquanto pensava, e depois gritaram. Tipo: "AAAAH!" mesmo. Acabei rindo, o que fazia com muita facilidade quando estava alta.
— Vai ter que dançar sozinho, ! — sentei para poder dar um tapa em sua cabeça.
— Não mesmo!
— Vai sim! Ficou ai na moitinha, agora vai ter que pagar! — fez sua assustadora cara de revoltada.
Era mentira, claro, revoltada? Haha!
— Vai ter que dançar Thriller! — decretou, fazendo pose de Juíza.
— Não, não... Melhor, dança Bad. E se reclamar eu coloco o Just Dance e vai ter que dançar Lady Gaga. — de alguma forma, acabei o convencendo com apenas esta frase.
Claro que não bastou uma única música, depois de Bad eu dancei Thriller com , daí o fez dançar Billie Jean com ela e por aí fomos. Até que, em algum ponto da madrugada, um soldado caiu e foi seguido de um em um por todos os presentes.
A derrota para o sono estava iminente.
Para eles, não para mim. Eu estava sem sono algum. Por sorte deles, eu nunca aplicava as punições para quem desobedecia a lei de "só dormir depois que o sol nascer", talvez porque eu fosse quase sempre a primeira a dormir nas festas em geral. Sofreria muito se fosse severa nos raros casos em que conseguia ficar acordada.
A verdade é que o nascer do sol era lindo demais para eu conseguir dormir antes de vê-lo. pausou o jogo, após se matar pela décima vez no mesmo ponto de "Donkey Kong: Country Returns". Fui até a minha bolsa, rindo.
— Eu só preciso de um minutinho. — ele falou, bocejando em seguida.
— Desliga isso, tá quase na hora.
— Quase na hora de quê?
Achei a bolsa da câmera instantânea, coloquei-a no ombro e disse:
— De ver o sol nascer, claro. Não precisa ir, você parece cansado demais. — já saia do quarto, deixando-o para trás.
— Ah não, não, não. Pode me esperar.
Não o esperei, o que o fez abandonar a preguiça e correr atrás de mim.
— Dejá vù. — ele falou.
— Ahn?
— É quando você vê algo que parece já ter visto, sabe, tipo que...
— Eu sei o que é devá vù, .
Ele riu.
— Eu sei disso, só falei pra te irritar mesmo.
Suspirei.
— O que te deu um dejá vù, afinal?
— Você não me esperando. Até pareceu o primeiro dia de aula, em que você nem me deu tempo de dizer que eu estava indo pra mesma aula que você. Sempre tão apressadinha.
— Bom, você viu como o Marcell é comigo, eu tento não dar motivo pra ele.
— É, o cara de te ama. Mas ele tem deixado você em paz, não?
Chegamos à piscina. Sentei-me na beirada, dobrando as pernas para não colocá-las na água.
— Se você chama me atormentar psicologicamente de paz, então sim. — revirei os olhos. — Ele achou um método de tortura mais eficiente.
— Como assim? — ele se sentou ao meu lado, colocando os pés na piscina.
— Acho que ele está vendo todos os meus trabalhos. Os desse ano eu tenho certeza, mas talvez ele esteja vendo até mesmo os dos anos passados. Venho perdendo o sono por causa disso, então acho que finalmente ele achou o modo certo de me torturar. — ri, sem ânimo.
— Sério?! Mas por que ele faria isso?
A noite já começava a clarear, então fixei o olhar no ponto mais baixo das montanhas, onde o sol surgiria em questão minutos.
— Acho, mas só acho, que ele quer fazer a minha carta de recomendação para Harvard. Eu não sei o porquê, já que sempre achei que ele me odiava. Talvez ele tenha frequentado uma terapia e aceitado que eu sou uma boa aluna. A lenda é que todo aluno que ele recomenda passa na faculdade que escolheu, e se esse aluno for bom mesmo o crédito do professor que o recomendou aumenta com a faculdade, então todo aluno que ele recomenda tem mais chance de ser aceito e etc, mas ele precisa recomendar alunos realmente bons ou perde essa credibilidade com as faculdades. Algo assim.
— Então isso é ótimo! Quer dizer, você com certeza já tá dentro de Harvard!
Revirei os olhos.
— Não, , ele não disse nada ainda. Suspeito de que isso seja só mais um jeito de me torturar, mesmo, algo pra colocar ainda mais pressão na minha vida para, no fim, recomendar outro aluno. Tô tentando não dar muita atenção pra isso, mas o pensamento de que ele pode estar lendo meus trabalhos antigos... Argh. Assustador.
Ele riu, recebendo um olhar cético de mim.
— Não acho que ele seja tão burro, se ele não a recomendar outro professor vai, e outro professor vai ganhar todo o crédito que podia ser dele. — ele bocejou por um tempo gigantesco em seguida, afinal me fazendo rir.
— Pode encostar em mim, ainda vai demorar alguns minutos para o sol aparecer.
não esperou dois segundos, encostando a cabeça no meu ombro quase como se ela fosse cair a qualquer momento. Ficamos em silêncio. Acabei voltando mentalmente àquele primeiro dia de aula. Parecia ter acontecido há tanto tempo atrás, mas foi só focar nele que comecei a lembrar de tudo. Ridículo. Eu estava brava, logo cedo. Espumando de raiva por algum motivo repetido que eu já devia ter me acostumado. É a vida, e quando se liga tanto para coisas que não vão mudar, muito menos do dia para a noite, é uma vida muito infeliz. E eu cheguei ali, naquele dia, sem ter ideia de como esse último ano de Ferdinand seria diferente. Tudo por causa do garoto sentando ao meu lado, com a cabeça no meu ombro. E pensar que eu mal havia olhado pra ele, naquela hora. Mal havia reparado nos seus olhos , que sempre me puxavam como ímãs. Suspirei, assolada pelo clichê da vida. Quem quer que falou sobre "primeira vista", esqueceu de avisar que a segunda era muito mais perigosa.
— O quê? — ele desencostou o mínimo possível para poder me olhar com seus olhos .
Suprimi uma risada, negando com a cabeça.
— Tá quase aparecendo. — voltei a olhar para o horizonte.
Ele se ergueu, voltando as pernas na piscina. Percebi que ele devia estar lembrando-se de algo, como eu. tinha o olhar de quem estava pensando em coisas que já tinham acontecido.
— Não vai olhar pro nascer do sol? — ele perguntou, com um sorriso ladino.
Senti meu rosto esquentar, e desviei o olhar de volta para as montanhas.
E o sol apareceu, transformando o roxo do céu em vermelho, laranja... Tirei a câmera instantânea da bolsa, fazia parte da tradição "sempre tirar uma foto desses momentos". espiou a foto, e eu segurei a vontade de revidar aquele "Não vai olhar pro nascer do sol?", mas contive a diva vingativa de Rapha que existia em mim.
— Tenho uma ideia. Posso? — ele apontou para a câmera.
Dei de ombros, entregando-a.
— Só toma cuidado, minha Anastasia é insubstituível.
parou, virando o rosto para mim.
— Ok, você dá nome pras suas coisas. Certo. Já vi loucuras maiores.
Ri, fingindo estar ofendida.
— Tudo tem nome! Os livros têm nome, CDs têm nome, animais têm nomes, TUDO! Por que eu não daria nome para as coisas que são importantes pra mim?
Ele estava em frente ao som, posicionando a câmera.
— Fiquei até com medo de responder. A Anastasia tem temporizador?
— Em cima, do lado direito.
— Achei, achei. Ok.
Ele ainda se demorou um pouco, ajustando a posição da câmera. Voltei a observar o nascer do sol.
— Então, qual foi a foto brilhante que você tirou, Annie Leibovitz? — perguntei assim que ele se sentou ao meu lado.
Ele riu, olhando para mim.
— Eu não sei que é essa Annie, mas espero que ela seja uma ótima fotógrafa. A foto ainda não foi tirada.
Finalmente o olhei, e logo em seguida ouvi o familiar som de "click" de uma foto sendo batida.
— Ah, sim. Entendi.
Ele gargalhou, voltando a se levantar para pegar a câmera. Perdi o olhar em algum ponto do vale, até que ouvi outra foto ser tirada. Levantei a cabeça, confusa. sentou-se, sorrindo.
— Quantas fotos só suas você tem?
— Dessas? Acho que... Nenhuma.
— Imaginei. — ele segurava as fotos na mesma mão, observando-as enquanto as imagens iam se formando. — Eu juro que tirei a foto pra você, mas acho que não vai dar.
— Ah? Ficou ruim?
— Pelo contrário. — ele virou as duas fotos para mim, elas ainda estavam revelando, mas já dava pra ver o suficiente para dizer que ambas estavam ótimas. Meu coração acelerou, não sei se você já ouviu falar disso, mas... Algumas pessoas, eu entre elas, acreditam que o modo como alguém tira uma foto sua é o modo como essa pessoa te vê. É claro que isso pode ser baboseira quando você contrata um fotógrafo para tirar fotos suas, afinal, ele é pago para conseguir boas fotos. Mas, quando a foto é tirada pura e simplesmente por ser tirada... Se esse era o modo como me via, eu tive a certeza de que eventualmente tudo daria certo.
Tirando o modo como pensar isso me fazia sentir-me idiota, também remoía algo que eu tentava não pensar.
— Pode ficar. — eu falei, como se não me importasse. — Só prometa que vai cuidar bem delas, o filme é caro.
Ele riu.
— Como se isso fizesse alguma diferença para pessoas com famílias como as nossas.
— Não me inclua nisso, eu sei o preço de cada coisa que tenho. Também sei que muita gente vai morrer trabalhando antes de ter metade do que eu tenho sem jamais ter trabalhado. Não sou hipócrita, , mas também não sou cega.
— Whoa, calma aí. Eu jamais disse...
— Eu também jamais disse muita coisa, e ainda assim as pessoas acham muitas coisas de mim.
Escapou. Mordi a língua em seguida, não ia entrar nesse assunto. Não. Eu me recusava. Não ia.
— O que... Como assim, ?
— Nada.
— Nada? Isso não pode ser nada, isso veio de algum lugar. Fala.
Olhei profundamente em seus olhos, e a sinceridade que encontrei neles me forçou a rir. E desabar.
— Sabe, toda vez... Toda vez que estamos juntos eu quase esqueço, eu quase acredito... Então eu lembro. — ri de novo.
— Eu não estou te acompanhando, .
— Você nunca está, .
Devo ter feito uma expressão muito amarga, porque ele ficou em silêncio. Soltei todo a ar dos meus pulmões.
— Eu não entendia o que estava te segurando. Eu pensei, por tanto tempo, que fosse coisa da minha cabeça. Que não existisse nada entre nós, que fosse só eu. Então, quando eu descobri que não era só eu... Por que, então? Eu nunca ia entender, não fosse a Nikki. Foi aí que ela chegou, e deixou tudo muito claro pra mim.
O nome da sua amiga pareceu o espantar.
— Nikki? Eu pensei que você tivesse entendido, , eu e a Nikki...
Pedi silêncio, levantando o dedo indicador e negando com um aceno.
— Não é isso. Eu tive que ir nesse evento, chá da tarde, qualquer coisa, com a minha mãe. Estava no limite da minha paciência, confusa quanto ao seu relacionamento com a Nikki. Eu ainda não sabia da história de vocês, mas não foi isso que me abriu os olhos. Eu estava escondida no banheiro, respirando um pouco, quando ela entrou. Muito desconfortável, ela estava realmente bêbada.
— Ela sempre fica quando é obrigada a participar dessas coisas. — ele comentou, quase em um sussurro.
— É, e nesse estado ela deixou escapar... Ela não lembrou meu nome, então perguntou se eu era a sua amiga... A sua amiga lésbica.
Um caroço se formou na minha garganta, impedindo que eu continuasse. Observei a expressão de clarear ao mesmo tempo em que seu cenho se franzia. Suspirei, tentei engolir aquele caroço, e consegui no momento em que percebi que ele começaria a falar.
Não, já que eu havia começado aquela era a minha hora de falar.
— Primeiro, antes de saber que vocês eram amigos, eu pensei que aquela devia ser a melhor desculpa que você havia achado para tirar da cabeça dela que nós tivéssemos algo além de amizade. Quando essa teoria foi abaixo, eu me recusei a aceitar o óbvio. Você realmente acreditou que eu fosse lésbica, sabe-se lá por qual motivo. O ponto, , é que eu nunca havia te dito isso. Você nunca perguntou, também. Eu não teria me ofendido, sabe? Eu teria rido, sim, mas jamais teria me sentido ofendida por você perguntar. Afinal, esse boato ainda existe e eu nunca fiz algo para acabar com ele. O que me ofendeu de verdade foi você acreditar nisso cegamente e jamais passar pela sua cabeça que talvez fosse melhor me perguntar, já que eu resolvi perder a virgindade com você. Mas, não, você decidiu continuar acreditando nisso? Eu não sei mais o que pensar, , mas eu realmente não queria estar falando tudo isso agora, não, eu esperei e esperei você dizer algo, qualquer coisa, até mesmo algo inocente que eu pudesse usar para abordar a história desse boato e como tudo começou. Então você diria rindo que tinha acreditado nisso no começo, e nós riríamos. Simples e prazeroso, sem dor de cabeça. Mas, aparentemente, nada pode ser assim entre nós.
Levantei, olhando uma última vez para a expressão pálida no rosto de .
— O mais engraçado é que você nunca pareceu o tipo preconceituoso pra mim. Como em muitas outras coisas, eu claramente estava enganada.
Saí, antes que alguma lágrima traidora resolvesse cair, ainda sentindo meu coração bater forte demais contra o meu peito.


Capítulo 28 — So tell me what I see when I look in your eyes. Is that you, baby? Or just a brilliant disguise?
(Brilliant Disguise — Bruce Springsteen)

Eu fiquei ali encarando o sol por muito tempo. Sem nenhum vestígio de sono, com olhos tão abertos que era um esforço absurdo piscar. Tudo porque desde que ela levantou e saiu, cada merda que eu havia feito resolveu passar pela minha cabeça.
Começando com o dia em que eu decidi acreditar que ela era mesmo lésbica.
Agora, sabendo que era mesmo tudo um boato velho e imbecil, tudo o que eu conseguia ver nos meus atos era a palavra babaca em letras maiúsculas escritas bem na minha testa. E o pior era que, mesmo com todas as merdas que eu fiz, ela ainda falava comigo. Ela ainda estava ali. Eu sequer merecia respirar o mesmo ar que ela, e ela ainda... É claro que ela não viria correndo conversar comigo assim que descobriu o que eu pensava, pra explicar que eu havia entendido errado. Não apenas por orgulho, mas também por presumir que eu tinha que ser um babaca pra acreditar naquilo ao invés de acreditar no que ela me dizia com seus atos. Eu quis bater a minha cabeça na parede inúmeras vezes, mas é claro que eu sabia o motivo pra ter feito tudo aquilo. É claro, pelo menos eu tinha que saber o porquê eu havia sido um babaca daquela forma. Mais ninguém precisava entender, muito menos , que nunca havia visto o pré-Ferdinand.
Não era obrigação dela saber o quão inseguro eu podia ser, ainda mais no quesito romance. E isso também não era desculpa suficiente por tudo que eu a havia feito passar. Nem todos os fracassos amorosos do mundo justificariam o que eu a havia feito passar.
Eu queria bater a cabeça no chão, com força.
Eu consigo corrigir tudo isso? Arrumar cada besteira que fiz e sarar cada ferida que deixei, ou eu apenas iria estragar mais as coisas? Ela quer que eu corrija algo ou aquele surto foi o exato momento em que ela desistiu de tudo?
Parece impossível que eu possa estragar mais isso.
Comecei a planejar estratégias, o que dizer, como dizer, o que fazer... E então levantei e procurei por ela em cada canto da casa. Inutilmente, claro, porque a casa é dela e ela devia saber como ninguém onde se esconder quando queria.
E do modo como suas mãos tremeram ao dizer aquelas coisas pra mim, eu aposto que ela queria muito se esconder.
Desci as escadas e olhei suas amigas. "Qual delas me odeia menos?", me perguntei, já que todas deviam saber o quão idiota eu havia sido nos últimos tempos. , nem pensar. Ela provavelmente aproveitaria a oportunidade pra me mandar de volta pra cidade a pé. Ela devia ser a que mais estava a par da situação. ... era bem agressiva de vez em quando, também.
Restou , que estava deitada junto a .
Claro, .
Em ocasiões normais eu nem teria pensado muito antes de ir até ela. Não era uma ocasião normal. Eu a cutuquei duas ou três vezes antes dela abrir um dos olhos.
— Onde a costuma se esconder? Você sabe? — perguntei para uma sonâmbula.
— Hm? ...
— Tem algum esconderijo aqui?
— Hm...
— A se escondeu em algum lugar e eu...
, vai dormir. — ela murmurou, fechando os olhos.
Desisti, por algum motivo sendo atingido ao mesmo tempo por toda a exaustão do mundo. Deitei no colchão mais próximo e apaguei.
Um tempo depois, que parecia ter sido apenas alguns minutos, alguém me sacudia.
... !
Abri os olhos e estava tão próxima de mim que por um segundo pensei que havia deitado no colchão errado. Até que percebi que ela estava ajoelhada.
— Oi...
— Você tentou me acordar ou eu sonhei com isso? — ela perguntou, sem me soltar.
— Não, eu... Eu tentei sim. A ...
— Ela tá no sótão. Logo que acaba a escada no último andar dá pra ver uma portinha no teto, quando ela se esconde lá a gente usa uma vassoura pra bater no teto até ela decidir aparecer.
— Ah...
— Mas por que ela foi pra lá? Aconteceu algo. — não foi uma pergunta, e mesmo ainda me sentindo um pouco grogue de sono isso ficou bem claro.
— Bem, eu... Ela... Eu...
— Sim, claro. Meu conselho é você não voltar nesse assunto e apenas se desculpar. Voltar em qualquer assunto que seja que tenha feito ela se trancar lá em cima não vai dar em nada, pense no que aconteceu e se explique depois. Se for lá agora, só se desculpe.
— O-ok, obrigado.
Ela piscou, sorrindo, e voltou a se deitar ao lado de .
Levantei e fui para a cozinha, fiz café e separei algumas torradas e geleias – coisas que não teriam problema de ficarem expostas caso demorasse para abrir a porta do sótão. Cozinhei ovos, também, e então comecei a achar que estava forçando muito.
Peguei um iogurte ao invés de fazer algum suco, como planejara.
Metade do café eu tomei, a outra metade eu usaria como desculpa para subir e entregar para ela antes que esfriasse. Achei uma vassoura e subi as escadas, sem nada cair durante todo o percurso. Apoiei a bandeja no chão e respirei fundo antes de bater no teto com a vassoura. Dei sorte, porque ela apareceu como quem havia acabado de acordar e não se lembrava do que estava fazendo no sótão.
Eu apontei pra bandeja e ela sumiu, com um grunhido.
! ... Por favor...
— Não grita, ou você vai acordar os outros também.
Ouvi algo ser arrastado, e em seguida uma escada descia.
Ela estava permitindo que eu subisse. Algo certo eu havia feito. Provavelmente a bandeja de café da manhã. Entreguei a bandeja para ela e subi o resto da escada, recolhendo-a depois de entrar no sótão.
— É bom recolher ou é capaz de todos subirem, e, bem... — ela deu de ombros. Entendi. Aquele era o canto dela, talvez até mais sagrado que o quarto dela. — Eu provavelmente vou voltar a dormir e não quero nenhum macaco pulando em cima de mim pra me acordar. Isso serve pra você, inclusive. — sentou-se na cama que havia perto da única janela do sótão.
— Obrigado por avisar. Acho que já dei mancadas demais pra um dia, né?
Ela afastou o olhar, concentrando-se em algo além da janela, que tinha algumas frestas por onde a luz entrava e impedia o cômodo de estar completamente escuro.
— Então quer dizer que todos eles acham que eu sou lésbica? — a voz dela estava serena, nada parecida com algumas horas atrás. — Logo, eles acham que você pegou uma lésbica?
Havia um leve tom de deboche no modo como ela fez a pergunta.
Lembrei das palavras de . Eu não estava puxando o assunto, ela estava. Seria seguro...?
— Sim... Desculpa, por isso, sério, eu devia...
riu.
— Considerando os amigos que você tem, eu devia ter suspeitado. Você foi um babaca, certo, mas eu perdi completamente o controle lá embaixo. Desculpa.
Andei até ela, sentando-me ao seu lado.
— Você não precisa pedir desculpa por nada. De verdade. Foi idiotice minha, eu... Eu usei como desculpa.
Ela direcionou seu olhar para mim, lentamente.
— Não sei se entendi.
Suspirei. Ela estava lá assumindo uma parte da culpa quando eu sabia muito bem que todo o desentendimento que tinha acontecido era todo por culpa única e exclusivamente minha.
— Você não me conheceu quando... Bem... Antes de te conhecer... É complicado.
Ela sorriu.
— Eu entendo de complicado. Sei que é sempre bom descomplicar primeiro.
Ri.
— Verdade.
— Eu estou morrendo de sono, mas sinto que já acordei.
Puxei a bandeja para perto e a ofereci o café.
— Servida, Srta. ?
— Obrigada, Sr. .
Ela saboreou o café, beliscando uma das torradas.
— Eu quero descomplicar. Quero fazer isso direito, do começo. — disse, olhando para ela desejando que ela ainda conseguisse confiar em mim.
— Legal. É um bom começo, . — respondeu, correspondendo o meu olhar.
— Você quer?
Ela sorriu de lado, como quem tem um plano mirabolante em mente.
— Sim. Mas não conte para eles.
— O quê?
— Não fale nada sobre eu ter surtado e dito que não sou lésbica. De preferência, converse sobre garotas comigo. Tipo, o meu tipo de garota, etc. Já que eles querem tanto acreditar nisso, vamos dar um pouco de gasolina pra imaginação deles. Mas nada muito gritante, sabe? Comentários inocentes, sem chamar atenção.
— Não é que você tem uma mente maligna?
riu.
— Eu não tenho nada contra os vilões.
Sorri, saboreando um pouco o silêncio agradável entre nós antes de falar.
— Acho que eles aceitaram antes de mim, menos .
— Nenhuma surpresa nisso. acredita nessa coisa como um modo de sobrevivência. Se ele deixar de acreditar, a cabeça dele explode. Eu só nunca pensei que estava nesse grupo de coisas que ele precisa acreditar pra não morrer.
A questionei em silêncio, e ela negou com um aceno. Ok.
— Então, o que pretende fazer?
— Bom, já que estou acordada, vou aproveitar pra estudar. Se quiser descer não vou me ofender. Acorde a galera, liguem a tv... Fiquem a vontade.
— E as minhas notas, como ficam? Pensei que estávamos nos ajudando nisso.
Ela riu.
— Ok, vamos ver literatura.

*

Já estavam todos alegres quando eu saí do meu horário de estudo. Por "alegres" entenda-se "bem loucos". Com exceção de , que havia estudado comigo.
, sua vez! — levantou do sofá, vindo até mim para me levar para a sala.
— Minha vez de quê? — fui rindo.
— Karaokê! — todos responderam, completamente dessincronizados.
— Aaah gente...
— Vai, !
já ligava a aparelhagem, com o apoio moral de . Ponderei, percebendo que precisava relaxar, e aquela viagem era pra isso.
— Ok.
Houve uma comemoração com direito a salva de palmas enquanto eu ia até os encartes das músicas. O karaokê era bem moderno, com os instumentos de verdade tocando ao fundo. Fui direto para o T, facilitando o trabalho de achar alguma música boa. Sorri com a escolha dos meus olhos, que bateram logo em "King Of Pain", The Police.
Quando coloquei o código da música, alguns reclamaram e outros aprovaram. Eu não liguei, se The Police tinha uma música de ouro, era aquela. Peguei o microfone e fiquei de costas pra TV. Por favor, quem precisa da letra? Eu não. Entrei no ritmo da música, imitando o jeito do Sting, e esperei minha hora de entrar.
— There's a little black spot on the sun today... It's the same old thing as yesterday... There's a black hat caught in a high tree top... There's a flag pole rag and the wind won't stop... — o ritmo calmo da música começou a mudar, e as palmas acompanhavam-no. — I have stood here before inside the pouring rain, with the world turning circles running round my brain. I guess I'm always hoping that you'll end this reign, but it's my destiny to be the king of pain...
Subi em cima da mesinha de centro, que era de uma madeira tão dura que seria mais fácil eu me quebrar antes de conseguir quebrá-la. Imaginei a expressão que minha mãe faria se visse aquilo, e meu ânimo cresceu com a música.
— There's a little black spot on the sun today! — apontei o microfone para as meninas, que fizeram seu coro de backing vocal.
— It's my soul up there!
— It's the same old thing as yesterdaay!
— It's my soul up there!
— There's a black hat caught in a high tree top! — desci da mesa e fui até as garotas.
— It's my soul up there! — elas não riam, levando a cantoria a sério.
— There's a flag pole rag and the wind won't stop!
— It's my soul up there!
Repeti o refrão, indo até os garotos.
— There's a fossil that's trapped in a high cliff wall! — apontei o microfone para , que já estava preparado.
— It's my soul up there!
— There's a dead salmon frozen in a waterfall! — passei o microfone para .
— It's my soul up there!
— There's a blue whale beached by a springtide's ebb! — e então, .
— It's my soul up there!
— There's a butterfly trapped in a spider's web! — estava por último, com um sorriso gigante no rosto.
— It's my soul up there!
Voltei pra cima da mesinha, soltando a voz com o refrão. Eu só queria anotar uma coisa: Essa música é ÓTIMA.
— I have stood here before inside the pouring rain! With the world turning circles running round my brain! I guess I'm always hoping that you'll end this reign, but it's my destiny to be the king of pain! There's a king on a throne with his eyes torn out, there's a blind man looking for a shadow of doubt, there's a rich man sleeping on a golden bed, there's a skeleton choking on a crust of bread... — imitei a guitarra, fazendo todos rirem. — King of pain!
Dessa vez permanecia na mesa.
— There's a red fox torn by a huntsman's pack! — apontei o microfone para os garotos.
— It's my soul up there!
— There's a blue winged gull with a broken back! — apontei o microfone para as garotas.
— It's my soul up there!
O ritmo quebrou, caindo concideravelmente.
— There's a little black spot on the sun today... — a nota era longa, bem lenta, como no começo da música. — It's the same old thing as yesterday... — e então o ritmo acelerou com tudo. — I have stood here before inside the pouring rain! With the world turning circles running round my brain! I guess I'm always hoping that you'll end this reign, but it's my destiny to be the king of pain... King of pain! King of pain! King of pain! I'll always be king of pain! I'll always be king of pain! I'll always be king of pain! — fui afastando o microfone, para fazer como na música. — I'll always be king of pain! I'll always be king of pain! I'll always be king of pain...
E então, acabou. Fiz reverência para a plateia que aplaudia com vontade.
— Não tem pontuação?? Ia ser um 100, com certeza! — foi o único a perceber.
Minhas amigas, sempre fiéis, caíram na gargalhada.
— É que... A ... É meio... Competitiva... Com o karaokê... — entre cada reticência havia uma risada mais forte, estava quase chorando. — Teve uma vez que ela...
não deu mais conta da sua vontade de rir, e e a acompanharam. Os olhares curiosos sobraram pra mim.
— Cantar é sobre se divertir, e não competir! Se eu quisesse nota estaria ganhando pra isso... E, bem, teve uma vez que eu fiquei cantando a mesma música pra tentar entender como esse treco dava nota. É ridículo.
Todo o meu discurso para nada serviu, porque assim que eu disse o que havia feito todos riam juntos. E então estava com as listas nas mãos, procurando uma música. Antes do nome da música aparecer na tela da TV eu já sabia o que veria.
"Every Little Thing She Does Is Magic".
Houve um coro de zoação da parte dos garotos, e um coro de babação de ovo da parte das garotas. Eu só prendi a respiração. Ah, queria ver aquilo, e como queria. A música começou e me imitou, ficando de costas pra TV. Eu estava do lado do sofá onde as garotas estavam, sem querer me mover. Ele olhou direto pra mim, e a voz que saiu de sua boa era a melhor imitação do Sting que eu já havia ouvido.
— Though I've tried before to tell her, of the feelings I have for her in my heart... Every time that I come near her, I just lose my nerve as I've done from the start! — o ritmo acelerou, e todos já batiam palmas. O que ninguém esperava era ver dançar. Meu queixo só não parou no chão porque estava bem preso no lugar. — Every little thing she does is magic! Everything she do just turns me on! Even though my life before was tragic, now I know my love for her goes on...
Talvez ele tivesse bebido um pouco. Não podia ser, era bom demais pra ser verdade. Imitando o Sting tão bem e sem vergonha? Quis tirar suas roupas ali mesmo. Apenas mordi o lábio, acompanhando o ritmo acalmar novamente. Ele estava sério.
— Do I have to tell the story of a thousand rainy days since we first met? It's a big enough umbrella, but it's always me that ends up getting wet... — e então sorria, e dançava pela sala novamente, se jogando pra cima das garotas enquanto cantava. — Every little thing she does is magic! Everything she do just turns me on! Even though my life before was tragic, now I know my love for her goes on...
Então ele veio até mim, e meu coração diminuiu as batidas como a música. Seu olhar grudado no meu.
— I resolve to call her up a thousand times a day, and ask her if she'll marry me in some old fashioned way! But my silent fears have gripped me, long before I reach the phone, long before my tongue has tripped me, must I always be alone?
Neguei com um aceno de cabeça, como se achasse sua atuação engraçada, até forcei um riso fraco. Ele voltou a dançar em direção aos amigos, que saíram do sofá para dançar com . E eu fiquei olhando, com o mesmo sorriso imbecil no rosto.
— Every little thing she does is magic! Everything she do just turns me on! Even though my life before was tragic, now I know my love for her goes on...
Deus, Zeus, Thor, Arceus, o fodelão da religião que você quiser, incluindo as assumidamente fictícias, mas como eu queria tirar a roupa dele. Me afastei da bagunça enquanto ninguém ligava pra mim, sem perder de vista. escolhia uma música com quando me viu. O chamei com o indicador e pisquei para a expressão de dúvida dele. Então subi a escada que havia descido alguns minutos atrás, e vi de relance a expressão dele clarear em compreensão. Vi um início de sorriso levado antes de perdê-lo de vista, indo para o segundo lance da escada.
Entrei no meu quarto e por alguns segundos fiquei perdida. O que devia fazer? Minha única vontade era a de tirar a roupa, um calor insuportável espalhando-se pelo meu corpo sendo o culpado principal por isso. Calor que fora despertado por . Tentei me recompor. Ouvi seus passos cuidadosos, e observei entrar no quarto.
— O que foi? — ele perguntou, com aquela sua cara de tonto que me dava vontade de enfiar os dedos em seus cabelos e bater a cabeça dele na parede com bastante força em seguida.
E eu não costumo ser agressiva assim.
— Eu te chamei aqui porque você tem que parar com isso. — fiz o possível para a minha voz não tremer e me entregar ainda mais.
— Com isso... O quê? — sorriu, fazendo-se de desentendido com um sorriso insuportável.
— Com isso aqui. — balancei a mão freneticamente no espaço entre nós.
— Isso aqui o quê? — ele riu.
— Tudo! — minha voz tremeu um pouco, mordi a língua para tentar me conter.
Ele riu e suspirou, aproximando-se de mim.
, eu...
, vamos supor que você não tenha cantado aquela música pra mim. Você olhou pra mim.
— Então eu estou proibido de olhar pra você? — ele deixou a cabeça pender para a direita, me olhando.
— Você está proibido de olhar pra mim enquanto canta aquela música. — disse, firme. — E qualquer outra, pensando bem.
— Então você gosta? Por isso me trouxe pro seu, hm, quarto?
O escarei por um longo tempo, remoendo tudo o que queria dizer (gritar). Dei três passos curtos até ficar perto o suficiente para ficar nas pontas dos pés e alcançar o ouvido dele.
— Não. Eu só não queria te envergonhar mais na frente dos nossos amigos. O que você fez já foi embaraçoso o suficiente.
E saí do quarto, gloriosa. O gosto do veneno ainda na ponta da minha língua. Ele queria mesmo bancar uma de espertinho? Sedução barata pra cima de mim? Não.
Mas ele tinha que me puxar.
— Agora é você quem tem que parar.
— O quê? — fiz o melhor tom de desafore-sem-parecer-uma-perua que eu consegui.
— Assim eu sou obrigado a te beijar.
E ele me beijou.
Eu odeio esse garoto. De verdade. Eu acho que estou no controle da situação, ele vai lá e me beija. E tudo fica claro.
Eu nunca estive e nunca estarei no controle daquilo. De nós. Da nossa... relação, acho que dá pra dizer isso sem implicar nada mais complicado. Não adianta eu negar, não adianta eu fazer pouco caso e me sentir gloriosa. Tudo isso é apenas reflexo de que não consigo controlar nada entre nós. Eu posso dizer "foda-se", eu posso mandar ele passear, eu posso tentar me enganar e fingir pra todo mundo que é verdade...
É só ele me beijar, e toda a farsa aparece. Eu percebo o quão inútil é lutar contra, ou tentar entender, mas principalmente tentar controlar. Se os lábios dele relarem nos meus, é tarde demais pra qualquer disfarce. Ele me beijou por quanto tempo quis, e quando parou deve ter parado por perceber o mesmo que eu. Ele se afastou e saiu do quarto, e eu fiquei. Parada, apenas fiquei.
E fiquei até ouvir o meu nome sendo chamado por . Não houve suspiro, ou qualquer respiração diferente, apenas passos atravessando a porta do quarto.
Antes de descer a escada, no entando, meu celular apitou. Nova mensagem. Phillip.
"Tem algo errado com a Becky. Ela sumiu e não atende ninguém. Tenta você, ela nunca te ignora. É urgente, ."
Não esperei mais nada, apenas fiz o que Phillip havia pedido. Descendo as escadas, liguei para Becky duas vezes seguidas.
Ela não me atendeu.
"Phill, ela não me atende também. Tem certeza que não é só uma soneca não?"
"É... Deve ser. Segunda a gente se fala. Se cuida."
Achei a resposta dele seca, pensei em ligar para questioná-lo mas fui interrompida por um ansioso.
— Preciso que vocês a distraíam, temos que afinar os instrumentos e ver se tá tudo certo e...
— Opa, tudo bem, calma! — ri. — Pode deixar, levamos ela pro quarto e ligamos a música bem alto, beleza?
— Ah, não sei como ia fazer isso sem você.
Sorri com satisfação.
— Obrigada. Agora mãos à obra.
No fim, tinha me chamado para resolver alguma questão idiota sobre quem tinha enfiado a cabeça numa gelatina quando viramos a noite estudando matemática ano passado, eu respondi que tinha sido a mas cortei a zoação antes que ela se propagasse de modo irreversível.
— Eu tô muito afim de um banho na hidro.
Muitos olhos se arregalaram.
— Hidro??? — perguntou.
— Como em HIDROMASSAGEM??? — perguntou.
— Sim, mas só para as garotas. — respondi.
Mostramos nossas línguas como se tivéssemos combinado, e em seguida apostava corrida para ver quem chegava primeiro. Fiquei por último de propósito.
— Esperem uns cinco minutos e podem começar o barulho de vocês.
— Obrigada, . Mesmo. — , que era o único que não estava emburrado por ter sido deixado de fora da hidro, agradeceu.
— Imagina. — dei de ombros.
Não era bem um esforço se envolvia uma hidromassagem.

*

— Então... Você e a ... — riu assim que os passos dela saíram do nosso alcance auditivo.
— Hm?
— Cara, até tentamos disfarçar, mas todo mundo percebeu. Vocês sumiram depois do karaokê como se já não tivessem ficado um tempão lá em cima sozinhos. — , como se precisasse, explicou com todos os detalhes.
— Sim... Estudando. E eu queria ir no banheiro antes de vocês nos incluírem no karaokê, depois que cantei eu fui. Ela eu não sei. — dei de ombros, sendo o primeiro a descer as escadas.
Ouvi os risos nas minhas costas, mas decidi não ligar. Ainda estava processando o dia, e principalmente a parte do dia que havia capturado a curiosidade dos meus amigos.
Fomos para o carro, onde os instrumentos estavam escondidos.
Eu não devia ter beijado-a. Quer dizer, devia, mas não naquela hora. Ela ficou tão vulnerável nas minhas mãos que quase senti vergonha pelo que havia feito. Eu precisava respeitar mais o que ela dizia, por mais que me provocasse ao máximo. Eu sabia que o que ela falava era só provocação, mas ver tão perfeitamente o quão tudo era mentira e ela queria sim apenas me beijar... Talvez não fosse bom para um casal de amigos tentando descomplicar as coisas.
Só espero não ter estragado nada. Mais.
O som vindo do andar de cima era tão alto que não havia chance nenhuma de suspeitar de algo. Afinamos tudo e guardamos no armário de toalhas e roupas de banho que havia perto da churrasqueira. De noite seria só pegar e mandar ver.
Quando elas desceram, o almoço já estava servido, com muitos pratos feitos pela cozinheira que os trouxe até a mesa da churrasqueira, do nada. cuidava do churrasco, e eu estava esfriando a cabeça na piscina.
Obviamente alguma menina ia acabar sendo jogada na piscina, a surpresa foi que quem jogou não foi , e a pessoa jogada não foi . deu uma pequena empurrada em , que nem teve tempo de reagir.
Quando ela voltou a superfície, apenas tirou o cabelo do rosto e tossiu.
— Bem, por um lado essa roupa fica muito mais bonita assim. Pena que é um vestido e fica subindo.
Todo mundo riu, e a ajudou a sair da piscina.
Foquei em ver se alguém a espiava. Não que eu seja ciumento, só precisava me concentrar em algo para em mesmo não espiar.
Não que tivesse alguma novidade ali pra mim.
— Eu juro que estou me segurando muito pra não te puxar comigo. — declarou rindo.
— Sei. Você é bozinha demais, ! — zombou, rindo.
— Não provoca, ??? Obrigada. — se afastou da piscina, receosa.
pulou na direção dela. E depois gargalhou.
— SÓ UM ABRAAAÇO! !
— AAAAAAAH!
Elas correram por todo o quintal até que cedeu e deixou a abraçar.



*
A tradução das músicas pode ser encontrada em: http://www.vagalume.com.br/the-police/king-of-pain-traducao.html & http://www.vagalume.com.br/the-police/the-police-every-little-thing-she-does-is-magic-traducao.html :)


Capítulo 29 — Pick my petals off and make my heart explode, I'm your deadly nightshade, I'm your cherry tree. You're my one true love, I'm your destiny.
(Froot - Marina and The Diamonds)
É claro que eu acabei empurrando na piscina. Não por vingança, já que esta não é um dos meus dons, mas pela ótima oportunidade de usar a desculpa para afastá-la dos outros e ficar de olho nela enquanto arrumavam tudo.
Foi uma hora antes do sol se pôr, e ela ficou tão surpresa com a revanche que eu ri como se estivesse saboreando demasiadamente o momento.
Assumo, senti um leve prazer nisso, mas não o deixei dominar minhas intenções.
— Eu não queria ser a única a ter que tomar banho de novo!
— Certo. — respondeu tentando conter seu sorriso carinhoso. Ela não era mesmo boa em fazer cara de má.
Já eu era oh, sensacional.
Tá, nem tanto, mas ela é um caso perdido. E eu a amo por isso.
era outro. Caso perdido, digo. Bastava encontrar o olhar dele preso nela pra saber o que ele sentia, e isso fazia um bem gigantesco pra romântica incurável que existia dentro de mim, pisoteando a mosca cética que vinha zumbizar nos meus ouvidos de vez em quando.
— Tomem um banho vocês também, seus gambás! — pisquei para eles antes de entrar na casa atrás de assim que ela se enrolou em três toalhas ou mais.
Fizemos uma ópera clássica durante o banho, como de praxe. A banda da vez foi Queen. Tomei um minuto para apreciar como amigos fazem bem pra nós. Eu nunca fui de muitos amigos, principalmente considerando os anos negros antes da Ferdinand, mas não podia mais reclamar. Nunca mais.
Elas são como família pra mim, e Becky, Phill e Rapha também. Os garotos lá embaixo... Bem, é legal. parecia um babaca esnobe, mas está se provando cada vez mais maduro e bacana agora que namora . ... Ele é um bom candidato. não. ainda teria que dar muito duro pra ganhar a minha simpatia.
Não que ele parecesse se importar, claro. Porém, agora, parecia se importar ainda menos que ele.
! — gritei, já no quarto.
— Oi! — ela saiu do banheiro com a toalha enrolada no corpo.
— O que acha desse? — expus o vestido na frente do meu corpo, que também estava coberto por uma toalha, e abri a saia para mostrar melhor os detalhes do vestido.
Ele era bege, quase rosa, com detalhes em marrom e partes rendadas em branco.
, que lindo!
— É a sua cara, né?
— Ah? Quer dizer, é, mas fica lindo em você!
— Nah, comprei pensando em você. Ia esperar alguma data especial, mas você sabe como eu sou.
riu, me abraçando, sabendo que seria inútil negar o vestido. Eu não costumo sair comprando roupas pras pessoas, inferno, eu quase nunca compro nem pra mim, quando eu compro pra alguém essa pessoa tem que aceitar.
— Obrigada, , é lindo demais!
Ela acabou fazendo a toalha que prendia meu cabelo cair.
— O prazer é meu, você sabe. — ri junto.
— Eu quero tanto usar agora!
— Usa, ué!
— Ok, mas você vai ter que colocar um vestido também. Não vou ficar nessa sozinha.
— Pff, que besteira.
— Por favoooor!
— Ok, ok, tá calor, mesmo.
Eu só estava mesmo era enrolando-a enquanto tentava decidir qual seria o próximo passo para mantê-la ocupada no quarto. No momento tinha aproximadamente zero ideias de como fazer isso. Ok, drama queen, eu tinha uma: testar minhas maquiagens recém-adquiridas.
Porque sim, eu comprei maquiagens. Digo, além do lápis preto e o corretivo. E precisava aprender a usá-las. era a escolha certa pra mim.
No entanto, ela foi mais rápida do que eu em achar outro assunto.
— Então, você falou com o senhor .
"ENROLE!", um alerta vermelho automático ativou dentro da minha cabeça. Por sorte, enrolar era não apenas o que eu queria: era o que eu precisava.
— O senhor ? Não, na verdade faz um tempo que não falo com o William. Saudades já, inclusive.
riu, sentando na cama em seguida.
— Isso meio que responde do mesmo jeito, você sabe, né?
Dei de ombros.
— Não faço ideia do que você está falando.
— Corta essa, , eu que disse onde ficava o seu esconderijo secreto pra ele.
Bufei.
— É, de secreto pelo visto ele não tem mais nada além do nome, não é?
— Você é tão hilária quando está enrolando alguém. — ela comentou, deixando a cabeça pender um pouco para a direita enquanto me olhava.
— Obrigada.
— De nada. Agora conta o que aconteceu.
Suspirei, fingindo que a conversa estava me dando uma dor imensa.
— Tudo bem... Mas vamos fazer isso enquanto testamos minhas maquiagens recém-adquiridas.
Os olhos de brilharam.
— Você... Como... Quando...
— Aimée me ajudou, mas ainda não testei nada porque sei que você manja mais que todo mundo. — ótimo, perfeito, ! A elogie, distraia.
— Awn, isso é muito fofo, mas não sou tão boa assim.
— É pra mim, ensine-me.
— Ok!
Ela me seguiu de volta para o banheiro quase saltitando. "Quase", aham.
— Bom, você ensina fazendo em si mesma e eu tento fazer igual. Boa?
— Ótima! Mas não pense que escapou de mim. Pode desembuchar ai.
E eu a obedeci. Afinal, estava acostumada a vê-la se maquiando, não seria tão difícil (quanto podia ser) fazer em mim mesma.
Então contei tudo para , sentindo cada palavra aliviar um pouco do peso que estava afundando meu coração. Contei sobre antes, contei sobre o nascer do sol, contei das fotos, contei meu surto... Contei tudo. Até a parte em que decididos descomplicar tudo antes de sermos algo além de amigos.
nem piscou antes de ir direto ao ponto:
— E você acha que vai conseguir?
— Hm? — questionei, surpresa.
— Resistir ao que sente por ele pra arrumar tudo antes de perder a cabeça de novo.
Outch, direta e reta, como um soco bem no meio do meu estômago.
— Sim.
— Se quer mentir pra mim, , tudo bem. Só não minta pra si mesma.
Soltei um grunhido, brava por ter que assumir aquilo e ao mesmo tempo mais brava ainda por tentar esconder.
— Eu sei, eu sei! Eu sei o que eu sinto. E eu sei que preciso controlar isso! Não dá pra continuar assim, , a gente precisa descomplicar. A gente precisa se conhecer melhor, confiar mais um no outro, e tudo isso!
— E eu concordo! Só quero saber se você tá pronta pra isso.
— Sim. Estou.
— Se precisar de ajuda...
— Eu sei, eu sei...
Ela riu, contagiando-me bem menos que o normal.

*

— Vamos começar a tocar com elas lá em cima? — estava começando a deixar seu nervosismo tomar o melhor dele.
Afinal, ele nos deixara arrumando tudo para tomar banho e se arrumar, agora estava checando detalhe por detalhe com medo de termos esquecido algo.
A mesa estava posta, a comida no forno, o vinho na temperatura certa. E vestido de terno.
— Nope, esperem elas voltarem. Fiquem nas suas marcas. A tá lá na escada esperando qualquer indício de que elas estejam planejando descer.
O olhar de gratidão que recebeu foi tão forte que ela ficou sem graça.
Eu nunca havia a visto sem graça.
finalmente sentou, pegando seu ukelelê. e eu pegamos os violões, já estava com os tambores, sentado há dois passos de . Nos sentamos ao lado dele.
finalmente apareceu na porta, sussurrando um "Elas estão vindo!" e correndo até . Elas apagaram todas as luzes e ficaram no posto para acendê-las novamente na hora certa. Em poucos minutos começamos a ouvir a conversa vinda de dentro da casa.
— Onde raios todo mundo se enfiou? — . Claramente. Que atriz, pensei, ela era mesmo a melhor pessoa para o trabalho de distrair enquanto arrumávamos tudo.
Impossível que conseguisse alcançar esse tipo de surpresa sem a ajuda dela.
— Tá tudo apagado aqui fora. Talvez todos tenham ido pro banho? — Vimos a silhueta de quase voltar pra dentro da casa quando surgiu, tampando o caminho.
— E e também?
Agora.
e acenderam somente as luzes que ficavam bem em cima de nós. Houve um curto segundo em que questionei se havia perdido a coragem de cantar, mas no meio do meu pensamento ele começou a tocar o ukelelê. cobriu a boca com as mãos, sem desviar os olhos de . ficou ao lado dela, admirando a organização e sorrindo ao reparar na felicidade da amiga.
E ela estava incrível, para variar.
Seu vestido era azul escuro, com a saia solta e as costas descobertas. Não era tão chique quanto o de , mas era perfeito. Era . Seu cabelo estava solto, com algumas ondas incomuns que o deixavam ainda mais bonito.
Tentei não fixar o olhar nela.
A música fora ideia de que, ao descobrir o gosto musical da namorada, decidiu que escolheria uma das músicas para fazer uma rendição. Admirei como ele não se importou nem minimamente quando e o zoaram pela escolha da música. costumava ser do tipo que só ouve eletrônica, Paramore era uma mudança drástica.
Afinal, "Paramore é coisa de bicha", nas palavras de .
Eu preferi me calar e ajudar. Acabou que a versão de para "The Only Exception" ficou muito boa, e ele conseguiu aprender a tocá-la no ukelelê consideravelmente rápido. A voz dele caiu como luva na música.
Notei que algumas lágrimas escaparam dos olhos de , fazendo arregalar os olhos e rir em silêncio em seguida. Ela parecia estar adorando aquilo mais que qualquer um ali.
Tentei novamente parar de observá-la, mas o movimento do seu vestido enquanto ela balançava no ritmo da música acabava sempre conseguindo a minha atenção de volta.
e foram até ela, e as três foram até a porta. A música acabou, nós levantamos enquanto elas batiam palmas e nos retiramos para dar privacidade aos pombinhos.
— Nós vamos ficar lá embaixo, a casa é de vocês! — falou, sendo a última entrar. — Menos o quarto dos meus pais, por favor.
riu, enquanto ainda chorava, e correu até .
O resto não vimos.
— Tem um forno aqui? — Dougie perguntou, levemente assustado.
— É, como é que faríamos pizza sem um forno? Bom, podia ser só no fogão, temos uma panela boa pra isso, mas essas daqui são pizza de massa grossa. É maravilhosa. — ligou o forno, voltando para nós em seguida. — Pronto! Então... Just Dance?
— Just Dance! — respondemos em uníssono, porque é isso que se faz quanto te fazer esse tipo de pergunta.
— Fomos um sucesso. — suspirou, sentando em um puff.
— Sim! — se jogou no puff ao lado. — E eu sofri pra mantê-la ocupada, por isso comecem vocês o jogo, eu vou ficar apenas olhando e rindo. E isso é uma ordem.
levantou rindo e se juntou ao resto de nós.
— Vamos lá, galera, temos uma expectadora exigente hoje!

*

" está certa." Era o que assombrava os meus pensamentos o tempo todo. Quando ela disse tudo aquilo, eu pensei que havia entendido. Porém, cada momento em que eu estava pondo o acordo em prática...
Primeiro Sting, agora isso.
Não me entenda errado, estava sendo incrível. E esse era exatamente o problema. Se ele estava sendo tão incrível, pra quê dar um tempo?
Também não estava ajudando todo o contato físico que acabávamos causando praticamente o tempo todo. "!", mão no meu braço. "!", mão no ombro dele. "Pizza!", e passávamos um pelo outro, do jeito mais atrapalhado possível levantando minimamente da cadeira. Ou acabávamos tocando nossas mãos para passar o pedaço de pizza.
Acho válido ressaltar que eu sou, afinal, bem nova. E ele é o tal "primeiro amor" pra mim, apesar de eu nunca ter dito as três palavrinhas e tal, e ter sentido estresse demais com a nossa relação para sequer senti-las. Mas eu gosto dele. De verdade.
E cada minuto com sua amiga me fazia cada vez mais querer ser mais do que isso.
Então, estava certa. Demais. Seria difícil.
O que ela se esqueceu de considerar, no entanto, é o que eu ganho com tudo isso. Ela se esqueceu de que antes de beijar , antes de sequer querer beijá-lo, eu apreciei o seu caráter. E, principalmente, a sua amizade.
Teríamos que ter cuidado, sim, porque já éramos tão familiares um ao outro fisicamente que num momento de calor seria difícil não nos esquecermos de nós mesmos e acabarmos nos beijando.
Mas, talvez, quando esse momento chegar seja uma boa hora para acabarmos com o nosso "tempo".
O resumo é que cada segundo descomplicado varria para longe as tristezas de nossos desentendimentos. E foi assim que eu soube que estava fazendo a coisa certa.
— Vocês seriam um casal lindo. — comentou com rancor após sentar no chão porque sua cadeira havia sido puxada para trás por mim e por sem que ele percebesse. — Fofo mesmo.
Como até estava rindo, não vi motivos para ter que me desculpar.
— É, é verdade, . Vocês dois têm muita química. — comentou, e eu notei uma pontada clara de cinismo em sua voz. — É uma pena.
"Não me provoque, otário" foi tudo o que eu consegui pensar.
— É uma pena por quê, ? Tá apaixonado pelo ? — brincou antes que alguém tivesse tempo de piscar.
O tom ácido dela também não me escapou. Ri, e fui acompanhada por todos.
— Ha ha ha, muito engraçado, .
— Não me provoque, . — avisou, piscando, e finalmente foi consolar seu homem da bunda dolorida.
— Bem, , sempre tem a peça da escola pra você realizar seus fetiches obscuros. Não é, ó Romeu? — entrei na personagem na última frase, levantando uma mão no ar como uma donzela oferecendo a mão para ser beijada, enquanto a outra mão repousou em meu peito.
— Ó sim, ó Julieta. — se curvou para beijar minha mão, também entrando no personagem sem pensar duas vezes.
Ponto pra ele.
Rimos.
— Argh. — fez uma breve mímica de auto-enforcamento.
— Pensando bem, não virem um casal. — fingiu descaso.
— Essa pizza é, definitivamente, a melhor pizza da minha vida. — atacou outro pedaço, fazendo todos perceberem o tempo que estávamos perdendo discutindo e fazendo gracinhas enquanto podíamos estar comendo.
Claro que, depois do jantar, ninguém estava em forma para jogar Wii em pé. Até mesmo sentado. Ainda assim, tentamos jogar Lego Star Wars por um tempo.
Foi o pior jogo da minha vida. Como sempre, eu acabei com o controle em mãos em todas as piores partes. "Não tá conseguindo? A fase é chata? Dê o controle para a !"
Acabamos no Netflix. Foi difícil não pensar em chamar , porque acabamos consentindo em assistir Monty Python. nunca havia visto, e era uma diversão conjunta minha e de acompanhar as reações de quem assistia Monty Python pela primeira vez.
Do fim da primeira compilação pra frente, foi difícil não dormir. Todos riam exageradamente para tentar espantar o sono, mas, um por um, acabamos cedendo.
, que era sempre a última a ceder ao sono (e a última a acordar depois, também), se arrastou do puff para os colchões, recebendo uma ajuda extremamente cômica de um sonâmbulo.
Naquele instante eu soube que estava tarde.
Porém, rir tanto tinha, afinal, tirado o meu sono. ainda estava acordado, também, e fizemos companhia um para o outro. Assistimos mais um episódio antes de nos rendermos, eu principalmente por causa do carinho que ele estava fazendo na minha mão.
Tão inocente, tão seguro, tão tranquilizador. É claro que eu ia acabar dormindo.
— A música ficou muito boa. — sussurrei, o som de Monty Python ainda ao fundo.
— Eu sabia que você ia gostar. escolheu a música. — respondeu.
— E os arranjos? Quem foi?
— Ok... Eu ajudei.
— Só ajudou? — ri, sabendo que um arranjo daquele não podia ter vindo de um iniciante. Claro que não sabia muito sobre a vida de , mas não custava confirmar.
Ele apenas suspirou, como se assumir aquilo fosse demais para o seu lado humilde.
— Vamos acabar dormindo aqui. — fugiu do assunto, claro.
Mas ele estava certo.
— E acordando com um torcicolo e muitas dores.
Sentei, percebendo que seria impossível levantar. Respirei fundo, fazendo rir. Ele levantou e ofereceu as mãos para me ajudar. Aceitei, caso contrário dormiria ali mesmo, e ele demorou mais que o necessário para soltá-las, obviamente me fazendo corar com o modo como me olhava.
Só uma idiota mesmo para corar com essas besteiras depois de já ter todo o tipo de intimidade com a pessoa em questão.
Lembrar dessas coisas não ajudou minha coloração facial, mas ao menos a iluminação estava ruim e ele provavelmente nem veria. Antes de me arrastar para os colchões, avisei que ia me trocar e fui para o banheiro. Sempre tinha pijamas extras ali. Troquei o vestido por um shorts e uma camisa confortáveis, escovei os dentes, tirei a maquiagem do rosto e saí para encontrar já deitado.
Tinham colchões disponíveis sem ser o que estava ao lado dele, mas para chegar neles eu teria que passar por cima de alguém. Isso nunca dava certo.
Abracei a desculpa e deitei no colchão ao lado de , de frente para ele. Ele abriu os olhos até a metade e sorriu.
— Boa noite, .
— Boa noite, .

*

Acordei no meio da noite e ela realmente estava ali, deitada, do meu lado. Só que agora não me encarava mais. Fiz a única coisa que podia fazer estando grogue de sono e prestes a voltar a dormir: abracei-a, unindo nossos corpos antes de mergulhar de volta no sono profundo.
Só que, dessa vez, o sonho tinha cheiro de baunilha com coco.

*

"Tão confortável" foi o pensamento que passou pela minha mente, ainda dormindo, naqueles poucos segundos que você pensa enquanto sonha. Certamente o melhor sonho da minha vida, e eu nunca pensei que sonhar que eu estava dormindo seria tão bom. Tão pacífico e perfeito, sonhar com o conforto de dormir com alguém.
Quando eu era criança, vivia me enfiando entre meus pais pra conseguir dormir. Rolava durante horas na cama, e era só deitar entre eles que eu simplesmente apagava.
Virei, no sonho, e me enterrei naqueles braços, provavelmente com um sorriso no rosto.

*

Por sorte, acordei algumas horas depois de verdade, no susto, percebendo o que havia feito.
Uma clara violação do nosso acordo, apesar de inofensiva. Mais ou menos. Se ao menos tivesse falado com ela sobre ANTES de fazer, mas não. Com sorte, muita sorte, consegui me desprender dela sem acordá-la.
E, como já havia abusado da sorte mesmo, beijei seu rosto.
"Espero por você o tempo que precisar", foi meu último pensamento um tempo depois, logo antes de voltar a dormir. "Espero que você me espere também".
— Será que é seguro ir para a cozinha?
— Por que não seria? — riu, sendo a única que ainda estava com a cabeça enfiada num travesseiro. — Tá com medo de encontrar os pombinhos nus na escada?
— Nunca se sabe. Deixamos a casa toda pra eles, isso inclui as escadas. — ele deu de ombros. — E eu não quero arriscar dar de cara com essa visão traumática.
Rimos, e abriu a porta.
— Pelo menos veríamos nua, cara.
— Não vale o trauma de ver a bunda peluda do Judd, desculpa . Ninguém valeria esse trauma. Ok, talvez a , mas, iugh.
levou tapas de , mas ela estava claramente pegando leve e talvez considerando uma declaração fofa.
Vai entender. Talvez exista mesmo aquela coisa de metade da laranja e tal.
— Dormiu tão bem que não quer acordar? — provoquei .
— Sim. — ela resmungou.
Cutuquei o seu pé, que imediatamente se recolheu.
Aaaaaaah!
Ela percebeu o meu olhar perverso e imediatamente vestiu sua máscara de cachorro abandonado.
— Por favor, não! Já levanto, olha, tô sentando...
Apenas ri do desespero dela e recebi um tapa na cabeça quando ela levantou e passou por mim.
— Eu dormi tão bem que estava fadada a acordar mal, não é mesmo?
Deixei um sorriso discreto brincar em meus lábios. Decidi seguir os outros quando eles saíram para a cozinha ao invés de esperar , que havia ido ao banheiro. Não responderia pelos meus atos se ficasse sozinho com ela.
Não tropeçamos em nenhum corpo, muito menos nu, pela casa, para a felicidade de e a decepção de . O café da manhã estava pronto e maravilhoso, e mais parecia um almoço.
O que, pelo horário, meio que era.
— Acho que devemos passar o dia todo na piscina. — sugeriu, saboreando sua fatia de bacon.
Concordamos. Logo os pombinhos apareceram e se juntaram a nós, com sorrisos grandes demais e um humor tremendamente ótimo. Se é que me entendem.
Aproveitamos as últimas horas de paz o máximo possível, até que chegou a fatídica hora de voltar para a realidade.
— Temos mesmo que ir embora? — choramingou o que passava por todos os nossos pensamentos.
— Sim. — respondeu, parecendo a menos abalada do grupo.
Provas. Em sete dias.
Aí vamos nós.

*

Do fim do final de semana pra frente tudo foi caótico, o que era exatamente o que a pedagoga da Ferdinand insistia para eu evitar. Tadinha. Conseguimos uma folga do Teatro, prometendo que leríamos as falas no tempo vago e que não esqueceríamos tudo em 15 dias.
Tempo vago, pra mim, era o banho. Logo, estava com folhas coladas na parte de fora do box transparente do meu banheiro, para estudar enquanto tomava banho.
Phill estava me evitando, do tipo dar as costas e ir embora assim que me via. Como se eu precisasse de mais drama em semana pré-provas.
Ao menos encontrei Becky, e ela não fugiu de mim. Rebecca explicou que havia passado o final de semana na fazenda dos avós, e por isso ficara sem celular. Nem ao menos o levara, disposta a viver a vida de fazendeira por dois dias.
— Phill ficou preocupado comigo e acabou descontando em você, relaxa que logo menos ele te procura.
— Mas, caramba, ele tá bravo até hoje?
Becky respondeu com um sorriso fraco, dando de ombros em seguida. Eu precisava correr para a monitoria.
— Como vai a Sylvie? — perguntei, disposta a me atrasar alguns segundos.
Rebecca pareceu estranhar.
— Como assim?
— Eu saí do handball, lembra?
— Ah... É que eu saí também.
— Oras... Por quê?
— Ah, você sabe... Muita coisa.
— Ok. Eu preciso mesmo ir, te amo, se cuida! — abracei-a e fui correndo para a monitoria.
O pensamento rondou a minha mente em algum momento. Becky, fora do handball? Essa era uma coisa que eu jamais esperaria.
Ok, eu também nunca achei que fosse sair do handball, mas ainda assim...
estava me ajudando muito com a sua presença na monitoria, de verdade. Com ele ali, as pessoas que vinham tirar dúvidas pareciam ser mais objetivas que o normal, e assim consegui um tempinho extra pra estudar.
Ele decidiu retribuir ajuda que eu dava na monitoria aparecendo na minha cara em horários variados, mas normalmente sempre no final da tarde. Pelo menos ele ligava alguns minutos antes de chegar.
No entanto, hoje eu havia vindo direto para casa, sem monitoria ou Teatro para me ocupar. Eu tinha acabado de terminar de me trocar quando ele apareceu na porta no meu quarto.
Obviamente, tomei um susto e o xinguei.
Ele riu, mas em seguida explicou:
— Eu estava atrapalhando a limpeza lá embaixo.
— Merda! — como observado, xinguei novamente. — A limpeza! A biblioteca...
— Inacessível. — ele confirmou minhas suspeitas.
Normalmente ele chegava e ia direto para a biblioteca, poucos minutos depois de receber a mensagem dele dizendo que ele estava vindo eu descia e já o encontrava lá.
"Normalmente", como se estivéssemos fazendo isso a vida toda. Rotina é uma coisa louca.
— É, vai ter que ser aqui então. Ok...
Esquadrilhei o quarto com o olhar, ciente de que a cama não era nem a última opção. Ela simplesmente não podia ser opção nenhuma. Muitas memórias, muito conforto. Se não cedêssemos ao cansaço, cederíamos à tensão. E você sabe bem qual. Porque claro que ela estava ali, presente, como um martelo na minha cabeça cada vez que eu decidia olhá-lo nos olhos. Ou olhá-lo quando ele estava concentrado demais para perceber.
Então, eu evitava ambos.
Tirei as pilhas de livros e fichários da escrivaninha, voltando-os nas gavetas e deixando apenas o que usaríamos para estudar. A escrivaninha era grande o suficiente para nós dois, até mesmo considerando a minha mania de ser extremamente espaçosa.
Estudamos.
Estudamos até nossos olhos deixarem de nos obedecer.
Quando falou, eu já estava com minha testa apoiada na mesa e de olhos fechados.
— Meu reino pelo chão do quarto. — ele declarou.
— Ah?
— Eu vou deitar no chão.
Ri.
— Pode deitar na cama, eu estou bem. — MENTIRA!
— Mentira. — ele riu. — Deita você na beirada da cama.
E ele foi quase que se arrastando para a cama, deitando no chão com tanta força que eu senti a dor. Mentira, porque eu me sentia como se mesmo que cortasse um dedo fora provavelmente diria apenas "Ah". E nem seria pela dor e sim por pensar no trabalho que daria limpar o sangue pra não manchar nada.
E ando mentindo muito, não é não?
Decidi aceitar a sugestão de . Fui até a beirada da cama e me joguei.
— Argh, eu não consigo nem sentir fome.
— Sorte a sua, eu sinto a fome de um touro e não tenho as forças pra mastigar. — resmungou.
Pendi mais para a beirada, deixando o braço cair da cama e quase relar em .
— Eu devo ter algo aqui. — apontei para debaixo da cama.
Ele ficou me encarando por algum tempo.
— Você guarda comida embaixo da cama?
— Só algumas barrinhas e cookies, como um kit de sobrevivência para momentos como, bem, este. A maioria de chocolate.
Ele me encarou por mais um tempo antes de declarar:
— Eu acho que você é a melhor pessoa do mundo.
Ri o máximo que o nosso estado atual permitia.
— Agora estou seriamente questionando o tipo de pessoa com quem você vinha se relacionando antes de vir pra cá, .
pegou uma barrinha de cereais sabor chocolate para si e entregou outra para mim. Forcei-a goela abaixo, batendo o meu recorde de demora para comer uma barrinha de cerais.
— Detesto ser o convidado que come e vai embora...
— Mas como você não foi convidado, não tem problema.
Ele riu.
— Ah é. Então, você precisa dormir e tal, acho que eu vou indo.
— Ou podíamos ensaiar a peça um pouco.
— Ah? — ele foi pego de surpresa, pois arregalou um pouco seus olhos. E, logo em seguida, corou. Eu quis soltar fogos: ELE corou. NÃO eu. — Ah, é, podíamos, ah...
— Nah, foi uma piada. Estou morta.
Sutil, frio, calculado. Senti orgulho de mim mesma.
— Ah sim. — riu, ainda uma risada um pouco nervosa, mas apenas no começo.
A vitória que eu senti... Perfeita para encerrar o dia. Ele se despediu e o acompanhei até a porta por educação, já que a minha vontade mesmo era a de me enfiar embaixo das cobertas e dormir.
Passei pela sala e dei boa noite para todos antes de subir e capotar em mais um recorde quebrado naquela noite.
Isso se repediu todos os dias da semana.
E na semana seguinte. Ao menos na semana de prova eu consegui organizar os horários direito para ter ao menos oito horas de sono toda noite. Também, com todo o cansaço emocional acumulado, essa era a minha melhor semana de sono, sempre. Estudar mais não adiantava, então eu apenas revisava e tirava algumas dúvidas finais, e dormia.
ainda aparecia em casa para revisar comigo, principalmente no dia anterior às provas de exatas. Ele havia ido muito bem nas provas de humanas e sentia que era um dever me recompensar ao máximo. Não reclamei, ele realmente era um bom professor.
Nas breves pausas que fizemos ele me contou um pouco mais da sua vida antes de vir para Nova York, principalmente sobre as vantagens e desvantagens de estar em constante mudança.
Obviamente uma parte minha pensava apenas em "Pronto, descomplicamos tudo! Vamos tirar a roupa e transar aqui mesmo no chão da Biblioteca dos meus pais!", mas essa parte minha não venceu. Porém, mais pelo falo de que seria muita falta de educação da minha parte. A biblioteca era dos meus pais. E um lugar sagrado.
Seria um problema voltar ao Teatro, já podia imaginar a tontura que sentiria depois de ter que beijá-lo. Seria uma vitória se minha roupa não se tirasse sozinha.
Não era, no entanto, um problema para eu me preocupar em plena semana de avaliação.
Tinha também outra coisa, o SAT. Ninguém falava sobre, mas ele pairava no ar como um ceifador, pronto para arrancar a sua vida.
Quando saí da última prova, quase chorei. Exagero, claro, mas eu realmente queria achar uma cama e dormir.
Ao invés disso, achei .
— Estamos indo para o Laser Tag comemorar o fim das provas! — ela praticamente gritou assim que eu pisei fora da sala.
Algumas pessoas que ainda faziam a prova resmungaram. soltou um "oops" e se desculpou, me arrastando pra longe dali em seguida.
— Todos já saíram?
— Sim. Só faltava você.
Novidade.
— Até e ? ?
— Sim, antes de mim inclusive, mas não porque a prova estava fácil.
— Uh, burn. Laser Tag? — questionei.
— Coisa do . Você não tem escolha, não pode inventar nenhuma desculpa pra não ir.
Gargalhei. Como se eu achasse que tinha escolha. Na minha vida, eu ficava surpresa com os momentos em que eu tinha escolha.
— Tem comida nesse lugar?
— É claro que tem, tá todo mundo faminto! Pizza. Salgados. Hot Dog.
— Mamma mia! — comemorei. Em seguida, suspirei. — As provas acabaram.
— As provas acabaram. — repetiu. — Você sabe o que isso significa?
— Que eu posso dormir 48 horas seguidas?
— Não, . — ela riu. — Que os preparativos pro Baile de Inverno vão começar.
Merda.
O Baile de Inverno.
E foi assim que a minha recém-felicidade pós-final-de-provas foi esmagada. Antes mesmo de eu poder deliciar uma saborosa pizza de pepperoni.


Capítulo 30 — One two three, one two three drink!
(Chandelier — Sia)
Após o tal Laser Tag eu deveria ter combinado com de revisar nossas falas juntos, porém, não tive coragem de sugerir isso. Se eu não tive essa coragem, muito menos ele. Já bastava a pegação que foi ser a dupla dele no jogo. Ao invés disso, então, passei o final de semana com Aimée – e até meus pais! De noite, eles largavam o trabalho e assistíamos algum filme clássico – apenas curtindo nossa casa. Wow. Sim. Principalmente curtindo a minha irmã, que tinha virado uma garota muito bacana sem eu sequer suspeitar disso.
Fui convidada para algumas coisas, mas neguei todas. Expliquei que estava em um final de semana entre irmãs. Eventualmente, ligou para brigar comigo e Aimée atendeu e disse que havia me sequestrado e que eu estava amarrada no armário dela por todo o fim de semana.
Daí pra frente decidiram me deixar em paz.
Nós até lemos fanfiction juntas, o que era definitivamente algo novo pra mim, considerando que eu tinha uma visão completamente errada sobre a minha própria irmã. Ela não era bem "Geração Harry Potter", mas aparentemente era difícil ser minha irmã e não conhecer o fandom.
"As melhores são as comédias com os gêmeos!" ela respondeu, quando eu questionei que tipo de fanfic ela lia.
"Tem uma que é um julgamento dos personagens com a J.K. de réu, já leu? É a melhor", respondi.
"SIM!"
E nos abraçamos.
Todas aquelas risadas e choros com um Harry Potter em mãos tinham valido algo que eu não tinha conhecimento ainda: transformar minha irmã mais nova em Potterhead.
Segunda-feira eu estava nova em folha, pronta para voltar à loucura. Só não estava pronta mesmo para encontrar tantos cartazes sobre o Baile de Inverno.
— Nem passamos o Halloween ainda. Que por sinal esqueci completamente de pensar na fantasia, e é amanhã. — resmungou, com o humor antes-das-nove-horas idêntico ao de .
Alguém dormiu mal, ou não dormiu.
— Também nos esquecemos de pensar na festa? — perguntei.
As festas de Halloween sempre eram na . Claro que existiam milhares de festas, mas a de era sempre a melhor. Ao menos, era a melhor em nossa opinião.
— Não. Tudo está pronto pra festa, de nada. — chegou, cumprimentando-nos com beijos. — E o pesadelo se tornou realidade. — ela falou, olhando os cartazes do Baile de Inverno.
— Nem brinca. Quem é que ficou responsável por esse inferno? Nunca vi isso. Já sabe com quem vai? — perguntei.
— Um gostosão do time de basquete me convidou. Aceitei. — respondeu, dando de ombros.
— Mas já? — gargalhei. — Femme fatale.
— Ra-wr! E você, vai esperar o príncipe te convidar?
Revirei os olhos.
— Será que ele consegue fazer isso sozinho?
gargalhou, e nos dirigimos todas para dentro do prédio.

*

Eu quase tive um ataque do coração quando Valerie apareceu do meu lado.
— Hey, par. — ela sorriu.
Par?
— Ah, oi, Valerie...
— Então, eu vou de lilás, use uma gravata lilás. E me pegue em casa oito horas, não gosto de chegar muito cedo. É só isso, até ma-ais!
E ela se foi.
Não entendi muito bem.
Não entendi nada, e estava começando a ficar perigosamente perto de me atrasar para o Teatro. Como não tínhamos treinado durante duas semanas, treinaríamos todos os dias dessa semana. Provavelmente até apresentar a peça em dezembro seria algo assim.
Passar pela porta foi quase nostálgico. Percebi o quanto gostava daquilo para ter sentido tanta falta. já estava com Margaret, aparentemente discutindo o cenário.
— Ah, veja só, nosso Romeu. Enfrentou sua primeira semana de provas com bravura?
— Graças à nossa Julieta. — respondi, cumprimentando a professora e .
— Ah, mas isso é roubar, sabe? Estudar com a ajuda da nossa melhor aluna...
corou, pedindo para a professor parar.
— Eu sei. — respondi, fazendo suspirar frustrada.
— Então. — ela pigarreou, chamando a atenção de todos que estavam no palco. — Vamos fazer o ensaio geral parte por parte para vermos se vocês ainda se lembram de algo. Se demorar pra acabar, a culpa é de vocês, não minha.
Margaret sorriu e todos riram.
É claro que aquele ensaio ia demorar.
— Primeiro beijo! — ela gritou, como se precisasse nos lembrar.
É claro que eu sabia que queria beijá-la, só não tinha noção das proporções que essa vontade já tinha tomado. E quando tive que dar um simples selinho em , meu corpo pareceu explodir.
Como se estivesse contendo a vontade até aquele exato contato físico.
Por sorte, ou azar, o ensaio durou horas demais para focarmos em beijos. Margaret eventualmente passou a pedir que passássemos os beijos ao repetir as cenas.
concentrou toda a sua energia em ajudar.
E eu, por mais masoquista que isso soe, acabei me divertindo o tempo todo só de observá-la.

*

No dia seguinte, não tive tanta sorte. Margaret nem me esperou cumprimentá-la para avisar que faríamos um ensaio "pós-ensaio", somente comigo e .
Rapidinho, só para trabalharmos mais nos detalhes.
O-K.
Eu diria "sorte que ela só focou nos detalhes mesmo, principalmente corporais" se isso não tivesse servido somente para me atiçar mais. E cada roçar de lábios era como um grito de desafio para o meu corpo.
Ainda assim, podia-se dizer que estava indo tudo muito bem. Até o telefone da sala de Margaret tocar. E, claro, ela se retirou para a sua sala. E ficamos ali, sozinhos.
O meu erro foi, provavelmente, olhar para ele. Nos olhos.
Matamos a distância entre nós dando a mesma quantidade de passos, logo, a culpa não seria de ninguém em particular. Dividiríamos. Com prazer.
Não houve sequer um selinho – já tínhamos dado demais deles. Bastou alguns segundos para estarmos arfando, emaranhando os dedos nos cabelos um do outros, num beijo que deveria parecer cômico para quem o visse de fora, tamanho o desespero de ambos.
A voz de Margaret sumiu, não que desse para ouvir o que ela dizia, ou que eu estivesse sequer conseguindo prestar atenção, mas antes era possível ouvir alguém falando. Afastei-me de com dificuldade, ficando de costas para a cortina e ele, como se olhasse para uma plateia invisível.
Margaret apareceu apenas para dizer que precisava ir embora. Virei com um sorriso e avisei que devolveríamos as chaves na secretaria por ela, ao que ela agradeceu rapidamente antes de sumir de novo.
Olhei para com um pouco de receio, e ele riu. Meu corpo todo relaxou, tornando possível que eu risse também.
— Melhor já irmos, eu combinei com as garotas que chegaria às 17h na .
— Tão cedo?
— Elas já estão lá, eu vou é chegar tarde. — ri. Dei de ombros em seguida. — Halloween. Dá trabalho. Levamos o assunto a sério. Temos até maquiadoras profissionais no grupo, a mãe de é fantástica com desenhos.
— Wow, agora estou ansioso pra ver isso.
— Você vai, quando chegar.
Ele riu um pouco, provavelmente se divertindo com a minha relutância em revelar algo.
— Qual será a sua fantasia?
Revirei os olhos.
— Como se eu fosse falar. Mas você pode dar uma de stalker e entrar no meu álbum de fotos do facebook e saber quais eu definitivamente não vou fazer. Nunca repetimos fantasias. — expliquei. — O que é meio triste, mas bem legal. Tem algumas que eu não consigo me desfazer depois, mas normalmente doamos para orfanatos de adolescentes. Fica meio difícil me apegar às fantasias quando lembro da felicidade das garotas ao verem as roupas. Não fico mais que alguns meses com elas no armário.
Ele riu com um ar incrédulo.
— Caramba, será que você pode ser menos boa? Chega a ser irritante.
Parei no ato de trancar a fechadura do Teatro e o encarei.
— Não fala assim. Faz eu me sentir uma hipócrita.
Ele gargalhou. Gargalhou.
— É brincadeira, essa ideia é incrível! Todas as fantasias que eu tenho amontoadas no armário no Canadá...
— Eu sei, mas isso faz eu me sentir uma daquelas socialites que adoram se sentir humanitárias, mas na verdade só veem o próprio umbigo. Como "Ooh, vejam como sou boazinha, ajudando os menos favorecidos enquanto nado no meu biquíni de diamantes", horrível.
— Nossa, não foi isso, eu juro...
— Eu sei! Tudo bem. É só que... Não fazemos essas coisas porque queremos que nos vejam como santas, são pequenas ideias que cada pessoa tem e que mudam o mundo. Essa foi da , e é maravilhoso como podemos fazer tanta diferença na vida de pessoas que nem conhecemos. Não gosto de pensar que sou "boa" por fazer isso. É o mínimo que eu posso fazer, não estou fazendo nada além disso.
Terminei de fechar a porta, notando o sorriso ladino dele.
— É por isso que você escreve, né. E lê. E quer fazer isso na faculdade.
— É mais porque eu queria aprender a fazer isso através da escrita. Sou muito boa com trabalhos de escola, mas na hora de escrever algo meu... É aterrorizante.
— Duvido muito.
— Porque você nunca viu. — fiz uma careta básica de terror.
riu, e fomos andando para a secretaria para deixar as chaves.
Depois ofereci uma carona, porque estava de bom humor. "Não precisa, não quero atrapalhar, etc" depois, ele estava no carro comigo. Batendo com os dedos nas pernas enquanto a música tocava, até mesmo cantando junto comigo. Foi um momento Metallica, fomos cantando e rindo.
Ele saiu do carro e eu abaixei o vidro.
— Até mais tarde! — falei.
se apoiou no teto do carro, curvando-se para me olhar.
— Você não faz ideia a vontade que eu tô sentindo de te beijar.
Fogos de artifício? Juro que ouvi. Ele tava mesmo assumindo, assim, ao ar livre? Soltei uma risada nasalada, que soou muito mais firme e abusada do que eu realmente me sentia.
— Insista e eu talvez o deixe, em algum canto da festa...
Ele sorriu, afastando-se do carro.
— Eu tô contando com isso.
E fui embora, sentindo um sorriso teimoso dominar minha feição. E o meu corpo pronto para dançar madrugada adentro.
Céus, eu estava ansiosa pela dança? O que havia acontecido por aqui?

*

Eu realmente entrei no facebook dela para checar as fantasias passadas, e percebi que o Halloween era mesmo coisa séria por ali. Malévola, Belle e Rainha do Gelo eram algumas das fantasias mais bonitas de . Desde bem nova as fantasias dela já eram boas, mas a maioria se resumia em Harry Potter. já fora Ginny, o próprio Harry, Hermione e, aparentemente, Dobby também. Aimée aparecia nas fotos mais antigas, nas quais elas usavam fantasias mais comuns.
A capa do álbum era uma reunião de todas as pessoas que ela conversava com rostos muito mais jovens. Todos vestidos de algum personagem de Harry Potter, provavelmente o primeiro Halloween dela na Ferdinand como amiga de . E era justamente e quem estava ao lado dela o que mais me chamou a atenção: e estavam lado a lado, de gêmeos Weasley, com direito à pose e tudo o mais. Não havia nada parecido com o ódio que pairava sempre entre os dois, e lembrei-me da garota que sempre falava sobre, sem dizer o nome e muito menos assumir que gostava dela. Ele só deixava escapar, ocasionalmente, algo que ela falava ou fazia.
Decidi deixar de lado e me concentrar na prioridade: impressionar .
A minha fantasia? David Coverdale, o vocalista do Whitesnake.
Era óbvio que ela conseguiria a minha atenção com o que quer que fosse vestir, então eu precisava garantir o mesmo. E nada melhor do que o vocalista de uma banda que ela adora.
"Não devia ter visto suas fotos, agora estou intimidado pelas ótimas fantasias. Wow."
Mandei a mensagem e logo ela já respondia. "Não seja besta."
"Mas se chegar aqui com um lençol dizendo que é um fantasma, você não entra."
Prometi que seria a última mensagem antes de me arrumar: "Droga!", e coloquei o celular no silencioso para conseguir resistir à tentação de ficar conversando com ela. Era mesmo melhor que ela sentisse um pouco a minha falta antes de eu chegar à festa como o príncipe encantado dos sonhos dela.
Fui para o banho rindo sozinho como o real ser patético que sou, esperando que aquela última mensagem a fizesse rir, esperando que aquela festa acertasse tudo de vez. O beijo no Teatro já fora algo, mas ainda faltava uma coisa: acontecer em público. Ela precisava ceder em público. Ou deixar que eu cedesse em público, o que era mais provável de acontecer.
Convenci de irmos mais cedo para a festa com muito mais facilidade do que esperava, e o motivo ficou claro assim que chegamos à casa de : chegar mais cedo era padrão. A festa já estava cheia. Muitas luzes ainda estavam acesas, mas a festa já acontecia. Todos conversavam, andavam, bebiam e posavam para fotos por toda a casa.
A decoração era incrível, cada cômodo com um tema. O da sala, onde estava a costumeira pista de dança, era a sala de poções de uma bruxa excêntrica. Morcegos, caldeirões, teias de aranha, esculturas, objetos mágicos... Uma bruxa viveria ali muito feliz, obrigado. Era a parte mais escura da casa, obviamente, com as luzes já apagadas e a iluminação feita em verde e roxo.
Achamos e já dançando. Ele estava de Jack e ela de Sally, parecendo de verdade os desenhos.
— Heey! — disse, assim que nos aproximamos. — Yeah, cabeludo do Metal e... Caça fantasma de novo, ?
— Nem vem, não tive tempo de fazer outra e gosto muito dessa.
— Certo... A mãe de que fez nossas maquiagens! — sorria de orelha a orelha, apontado para o próprio rosto e em seguida dizendo: — Perfeitas, né?
realizou um sonho. — falou, rindo. — Ser maquiado pela tia Kathy.
— Mas ficou incrível mesmo, vocês parecem que saíram direto do filme pra curtir uma festa.
— Espere para ver as outras. — piscou, e ficou claro que por "outras" ela quis dizer .
Por sorte, não tive que esperar muito. Eles desceram juntos, e foi fácil identificar que o tema da vez era Alice in Wonderland. vinha por último, junto com Phill, com quem conversava. Ela parecia se desculpar, fazendo a sua mais irresistível expressão de "Perdoe-me, por favor!", o que era muita covardia. Reconheci sua fantasia: era de Cheshire Cat. Muito bem adaptada, o rabo do gato era na verdade a sua saia. As cores principais eram azul e um cinza arroxeado, e a blusa que ela usava era de um tecido bem fino, transparente, que deixava a mostra um top roxo. Conforme ela se aproximava eu via mais detalhes, mas a atração principal era definitivamente o seu rosto.
Todo o seu cabelo estava preso em um coque, e o prendedor era feito de plumas da mesma cor da saia. Ela era a personificação do gato.
Ela veio até nós junto com (Coelho Branco) e (Alice). Claro que não perdi muito tempo com eles.
— Não faça a piada. — foi a primeira coisa que falou para mim.
— Que piada? Ual, que gata? Ou... De manhã é Julieta, mas de noite é felina? Hm, acho que a segunda foi pior.
riu.
— E eu sou idiota, porque ainda consigo dar risada.
Ela piscou os olhos amarelos — lentes de contato amarelas! — fazendo os cílios roxos enormes e penosos se tocarem. Os desenhos em seu rosto pareciam adesivos para a pele, tatuagens, parte dela. Não podiam ser desenhos. Até mesmo os três fios de bigode de cada lado do rosto pareciam pertencer ali. Seu rosto era o rosto do gato.
— Vamos dançar, molengas! — chamou, tirando a minha atenção de momentaneamente.
já havia se mandado para algum lugar.
— Estou com sede, na verdade, e um pouco de fome, até... Vou ao buffet. — ela já começou a andar, e não esperei para segui-la.
— Eu te acompanho.
— Yeah, sempre bom ter amigos famintos. Chegaram faz muito tempo? — ela olhou de relance para mim, voltando o olhar para o caminho logo em seguida.
— Nah, acabamos de chegar. — dei de ombros.
— Viu a Becky em algum lugar, por acaso?
— Não... Mas também mal andei pela casa.
— Gostei da fantasia. — ela disse, dessa vez olhando para mim por mais tempo.
— Obrigado. Aliás, mesmo? Perto de você, quer dizer, de vocês, parece que eu peguei uma roupa velha do meu pai e vim.
— Você até fez uma peruca idêntica. Não achou assim pra comprar, né? Deve ter dado um bocado de trabalho pra fazer.
— Um pouco, mas é assim que se aprende a respeitar as Drag Queens. E você, que se transformou no Cheshire Cat?
me olhou com algo que parecia quase idolatria. Talvez fosse pelo comentário sobre aprender a respeitar as Drag Queens.
— Bom, a maquiagem não fui eu, é tudo a Tia Kathy. E pare com isso, você tá muito mais sexy que eu, e Halloween meio que vira isso na nossa idade, né?
Decidi comemorar apenas internamente o fato dela ter dito que eu estava sexy.
— Eu posso ver suas curvas, mocinha, inclusive esse abdômen por baixo da blusa transparente, não me venha com isso de "a sua fantasia é mais sexy".
— Você está com uma jaqueta de couro sem mangas e aberta sem uma blusa em baixo. Posso ver o seu umbigo. — ela retrucou, talvez corando por baixo de toda aquela maquiagem.
Eu jamais saberia.
— Também posso ver o seu, oras. Aliás, gostei muito daqui, vocês elevaram o nível das fantasias e parece que todo mundo entrou na brincadeira. Nunca vi tão poucas coelhas da Playboy numa festa de Halloween.
Ela riu, pegando uma Ice e um canudinho. Fiz um prato de salgadinhos para nós dois.
— Sério, adorei sua fantasia, não fique com frescuras.
Ri.
— Na verdade, não estou, só queria ouvir mais elogios de você, afinal, escolhi a fantasia pensando em você.
Ela me encarou, mordiscando o interior da boca, pensativa.
— Não entendi.
— Não me diga que hoje no Teatro não foi nada.
— Não vou. — ela deu de ombros. — Não é mais segredo que temos uma atração física muito forte um pelo outro.
— Ótimo. — assisti-lhe tomar a Ice pelo canudinho, como se tivesse dito que dois mais dois são quatro. — Então... Nós somos mais do que só amigos. Mesmo quando somos só amigos. Pelo menos pra mim. Ao mesmo tempo que a sua amizade é mais do que "só", porque ela é muito, ela também é pouco, porque eu quero mais do que isso. É mais do que eu posso controlar, é como o fato de eu sempre te achar mesmo quando eu não sei que entrou mais gente na sala. Meus olhos vão direto pra você. Desculpe o clichê, mas é assim que é.
riu, o que é sempre um bom sinal.
— Não tenho muito contra clichês. Tente ser completamente original em pleno século XXI, não vai dar coisa boa. Tudo que é bom já foi feito. Se você se prender nisso é que nunca mais vai existir nada bom.
— Não fuja do assunto.
— Não estou. Ao menos não intencionalmente.
Apenas a olhei, e ofereci o prato de salgadinhos em seguida. Seguimos em silêncio durante alguns minutos, enquanto beliscávamos a comida.
— Quer dançar?
— Sim.
Largamos as coisas e fomos para a pista de dança.

*

Eu me sentia como se nunca fosse querer tirar aquela fantasia. O que era muito bom, porque ajudava a balancear a vontade extremamente oposta que estava me dando: a de tirar tudo.
Nós dançamos, nós bebemos, nós trocamos de par diversas vezes e, de algum modo, eu sempre voltava nele. Nada de clichê nisso, porque era intencional. Não o destino, e sim o propósito. Era muito legal dançar com os outros, principalmente Rapha, mas nenhum deles estava tão bonito. Ou me deixava passar as minhas mãos pelo seu peitoral fingindo acreditar que era distração, ou parte da coreografia.
A coreografia. Céus, como dançávamos bem. Só que o oposto disso. Qualquer um duvidaria se disséssemos que frequentamos aulas de dança na Ferdinand, porque aquilo estava muito longe de ser aceitável.
E quanto mais tempo passava, mais bebida entrava e mais ridícula a dança se tornava.
— Tá muito calor! — gritei.
— Eu sei! — respondeu, virando outro copo de algo alcoólico.
— Não adianta beber mais!
— Mas tá geladinho!
Rimos, demais. Esse é o meu alarme para "Opa, você está ficando alegre. Prosseguir?", e a ordem da noite era "Prosseguir". Fizemos as brincadeiras de Halloween, comemos, dançamos mais. A festa da Halloween era sempre a melhor festa de . E estava apenas começando.


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